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A GNOSE DE JUNG

Transcrito (e levemente editado) do livro de Stephan Hoeller

Imagem do Livro Vermelho de Jung

Desde o princípio de sua carreira psicanalítica até a morte, Jung manteve um vivo interesse e uma
profunda simpatia pelos gnósticos. Já em 12 de agosto de 1912, Jung escreveu uma carta a Freud a
respeito dos gnósticos, na qual qualificou a concepção gnóstica de “Sofia” de reaproveitamento de
uma antiga sabedoria, que poderia aparecer uma vez mais na moderna psicanálise. Não lhe faltava
literatura capaz de estimular seu interesse pelos gnósticos, porque os eruditos do século XIX na
Alemanha (embora quase que em nenhum outro país) devotavam-se diligentemente aos estudos
gnósticos. Todos os biógrafos de Jung mencionaram seu profundo interesse por tais assuntos. Uma
das declarações mais reveladoras a esse respeito é citada por uma de suas ex-colaboradoras, Bárbara
Hannah, que lhe reproduz as palavras sobre os gnósticos: “Senti como se finalmente tivesse um
círculo de amigos que me entendessem”. A mesma biógrafa também ressalta que Jung desenvolveu
um interesse por Schopenhauer, justamente porque o grande filósofo alemão lembrava-lhe os
gnósticos e a ênfase que colocavam no aspecto do sofrimento do mundo; além disso, ele aprovava
de todo o coração o fato de Schopenhauer “não falar nem da providência onisciente e todo-
misericordiosa de um Criador, nem da harmonia do cosmo”, mas ter afirmado abertamente “…que
uma falha fundamental subjazia ao triste curso da história humana e à crueldade da natureza: a
cegueira da Vontade criadora do mundo…”

Que essas são afirmações completamente gnósticas não é preciso dizer. Como seu interesse por
Schopenhauer remonta à infância, podemos considerar Jung, sob muitos aspectos, como um
gnóstico “natural”, possuidor de uma postura gnóstica mesmo antes de familiarizar-se com alguns
dos ensinamentos do gnosticismo. Apesar de Jung ter tido acesso a certo volume de literatura
poética e erudita bem cedo na vida, ele não contou com quase nenhum material de natureza
gnóstica procedente de fontes originais à sua disposição. Como muitos outros, para informar-se
sobre os gnósticos, Jung teve de se basear nos relatos fragmentados e, sobretudo, deslealmente
distorcidos dos padres da igreja anti-gnóstica, em particular Irineu e Hipólito. As pesadas
engrenagens da erudição acadêmica apenas começavam, com extrema lentidão, e mesmo relutância,
a dedicar-se aos três códices coptas Codex Agnew, Codex Bruce e Codex Askew, que na época
mofavam em vários museus, esperando para serem traduzidos e publicados. Pode-se considerar algo
miraculoso que Jung tenha sido capaz de obter tanta compreensão e extrair tanta informação
valiosa, favorável ao gnosticismo, das polêmicas dos padres caçadores de hereges da Igreja. A
contribuição de Jung aos estudos gnósticos em geral e a uma esclarecida interpretação
contemporânea do gnosticismo em particular é pouco menos que notável em alcance e importância.
É lamentável que essa contribuição não seja ainda apreciada por um número crescente de
especialistas em gnosticismo, dentro do campo de estudos bíblicos, embora isso não seja
particularmente surpreendente, em vista do fato de que a maioria desses eruditos provém de
escolas de teologia e de religião com tendências ortodoxas. Além disso, muitos deles carecem por
completo de qualquer apreciação séria da psicologia, especialmente do tipo de psicologia que Jung
proclamou. A falta de atenção e respeito é ainda mais inacreditável, considerando-se que a influência
de Jung consiste praticamente na única responsável pelo projeto vital de publicação do maior acervo
de escritos gnósticos originais descobertos na história: a Biblioteca de Nag Hammadi.

Os gnósticos foram prolíficos escritores da tradição sacra. Seus inimigos observaram com
desaprovação que os seguidores do instrutor gnóstico, Valentino, costumavam escrever um novo
evangelho a cada dia, e que nenhum deles era muito estimado, a menos que desse uma nova
contribuição à sua literatura. Entretanto, de toda essa profusão de textos, muito pouco sobreviveu,
devido à incansável supressão e destruição da literatura gnóstica a que se dedicaram os queimadores
de livros e caçadores de hereges da Igreja que, com o apoio do poder constituído, obtiveram
predominância sobre os seus rivais. Durante muitos séculos não se soube da existência de nenhuma
literatura gnóstica original. Foi somente nos séculos XVIII e XIX que viajantes, como o destemido e
romântico escocês James Bruce, começaram a trazer para a Europa, do Egito e localidades vizinhas,
fragmentos de papiros antigos contendo textos. Embora talvez escritos originariamente em grego,
esses haviam sido traduzidos pelos escribas gnósticos para o copta, a língua popular do Egito
helênico. Sendo realmente raros os eruditos coptas e demais pessoas interessadas em gnosticismo, a
tradução desses textos procedeu-se muito lentamente. Então, um quase milagre aconteceu. Em
dezembro de 1945, pouco após o término da II Guerra Mundial, um camponês egípcio encontrou
uma coleção inteira de manuscritos gnósticos enquanto cavava para extrair fertilizantes na
vizinhança de algumas cavernas, na caldeia montanhosa de Jabal al-Terif, próximo ao Nilo, no Alto
Egito. Aparentemente, esses tesouros fizeram parte, em certa época, da biblioteca do vasto
complexo fundado na região pelo pai do monasticismo cristão, o monge copta São Pacômio.

Imagem do Livro Vermelho de Jung

Como seus predecessores, a descoberta de Nag Hammadi custou muito a se concretizar. Os métodos
lentos dos acadêmicos foram, entretanto, bastante acelerados pela influência de um homem que
não era nem erudito copta nem especialista bíblico, mas simplesmente um arqueólogo da alma
humana. Esse homem era, é claro, Carl Jung. Ele se interessou pela descoberta de Nag Hammadi
desde o princípio; foi um antigo amigo e colaborador de Jung, o professor Gilles Quispel, que tomou
a iniciativa de traduzir e publicar os livros de Hag Hammadi. Em 10 de maio de 1952, embora a crise
política e a dissensão acadêmica paralisassem todos os trabalhos relativos aos manuscritos, Quispel
adquiriu um dos códices em Bruxelas, e desta porção da grande biblioteca realizou-se a maior parte
das primeiras traduções, envergonhando assim a comunidade erudita, que se viu na contingência de
apressar o trabalho longamente adiado. Esse documento – intitulado Jung Codex – foi apresentado
ao Instituto Jung de Zurique por ocasião do octogésimo aniversário do Dr. Jung, tornando-se o
primeiro item da descoberta de Nag Hammadi a ser abertamente examinado por eruditos e leigos
fora do turbulento ambiente não-cooperativo do Egito dos anos 50. O próprio professor Quispel
declarou ter sido Jung uma peça-chave no despertar da atenção sobre os manuscritos e na
publicação da valiosa coleção de Nag Hammadi.

Qual era a verdadeira visão de Jung a respeito do gnosticismo? Ao contrário da maioria dos eruditos
até bem recentemente, ele jamais acreditou que se tratasse de uma heresia cristã dos séculos II e III.
Também nunca deu importância às infindáveis disputas de especialistas a respeito das possíveis
origens do gnosticismo: indiana, iraniana, grega e outras. Antes de qualquer outra autoridade no
campo dos estudos sobre os gnósticos, Jung reconheceu-se por aquilo que eram: videntes que
produziram criações originais e primordiais, a partir do mistério que ele chamou de inconsciente.
Quando, em 1940, perguntaram-lhe se o gnosticismo era filosofia ou mitologia, ele respondeu com
seriedade que os gnósticos lidavam com imagens reais e originais e não eram filósofos sincretistas,
como muitos supunham. Jung reconheceu que imagens surgem ainda hoje nas experiências
interiores das pessoas, ligadas à individualização da psique: nisso ele via evidência do fato de que os
gnósticos expressavam imagens arquetípicas reais que, como se sabe, persistem e existem
independentemente do tempo ou de circunstâncias históricas. Ele identificou no gnosticismo uma
poderosa e absolutamente primordial e original expressão da mente humana, uma expressão
dirigida para a mais profunda e importante tarefa da alma, ou seja, a obtenção de sua plenitude. Os
gnósticos, como Jung os percebia, interessavam-se acima de tudo por uma coisa – a experiência da
plenitude do Ser.

Considerando que isso incorporava seu interesse pessoal e também o objetivo de sua psicologia, é
incontestável sua afinidade com os gnósticos e com sua sabedoria. Essa visão do gnosticismo não se
confinou aos trabalhos psicológicos de Jung, e logo entrou no mundo dos estudos gnósticos por
intermédio do supracitado colaborador, Gilles Quispel, que em seu importante trabalho Gnosis als
Weltreligion (1951) apresentou a tese de que o gnosticismo não expressa nem uma filosofia nem
uma heresia, mas uma experiência religiosa específica, que então se manifesta como mito e (ou)
ritual. É de fato lamentável que, após mais de 25 anos da publicação desse trabalho, tão poucos
tenham apreciado suas significativas implicações.

Em vista dessas considerações, pode-se compreensivelmente indagar: Jung era um gnóstico? Pessoas
mal informadas responderam sim a essa pergunta, querendo dizer com isso que Jung não era nem
um cientista respeitável nem um bom homem, de acordo com o significado religioso ortodoxo do
termo. Em virtude do uso pejorativo da expressão “gnóstico”, muitos dos seguidores de Jung, e
ocasionalmente o próprio Jung, negaram que ele fosse um gnóstico. Um exemplo bem típico dessas
evasivas foi a declaração de Gilles Quispel, segundo a qual “Jung não era um gnóstico no sentido
comum do termo”. Por outro lado, é muito duvidoso que jamais tenha havido um único gnóstico no
sentido comum do termo.

O gnosticismo não constitui um conjunto de doutrinas, mas a expressão mitológica de uma


experiência interior.

Em termos de psicologia junguiana, poderíamos dizer que os gnósticos deram expressão, em


linguagem poética e mitológica, às suas experiências dentro do processo de individualização. Ao
fazê-lo, eles produziram uma profusão do mais significativo material, contendo profundas
percepções da estruturada psique, do conteúdo do inconsciente coletivo e da dinâmica do processo
de individualização. Como o próprio Jung, os gnósticos não descreveram apenas os aspectos
conscientes e pessoais inconscientes da psique humana, mas exploraram empiricamente o
inconsciente coletivo e forneceram descrições das várias imagens e forças arquetípicas. Como
afirmou Jung, os gnósticos foram muito mais bem sucedidos do que os cristãos ortodoxos na
descoberta de expressões simbólicas adequadas do Ser, e essas expressões assemelham-se às
formuladas por Jung. Embora Jung não tenha se identificado abertamente com o gnosticismo como
escola religiosa (da mesma forma que não se identificou com nenhuma seita religiosa), pouca dúvida
pode existir de que ele fez, mais do que qualquer outra pessoa, lançar luz sobre o impulso central
das imagens e da prática simbólica gnósticas. Ele viu no gnosticismo uma expressão particularmente
valiosa da luta universal do homem para readquirir a plenitude. Embora não fosse prático nem
modesto que ele o dissesse, não há dúvida de que essa expressão gnóstica do anseio pela plenitude
só foi reproduzida uma vez na história do Ocidente, e isso se deu no próprio sistema da psicologia
analítica de Jung.

Imagem do Livro Vermelho de Jung

Que tipo de gnóstico era Jung? Certamente, não um seguidor literal de nenhum dos antigos mestres
da Gnose, o que teria sido um empreendimento impossível, diante da insuficiência de informações
detalhadas a respeito desses e de seus ensinamentos. Por outro lado, como os gnósticos do passado,
ele formulou pelo menos os rudimentos de um sistema de transformações ou individualização, que
se baseava não na fé, numa fonte exterior (seja Jesus ou Valentino), mas na experiência interior
natural da alma, que sempre representou a fonte de toda verdadeira Gnose.

A definição léxica de gnóstico é conhecedor, e não seguidor de alguém que pode ser um
conhecedor.

Jung sem dúvida era um conhecedor, se é que já houve algum. Negar que ele era um gnóstico nesse
sentido equivaleria à negação de todos os dados reconhecidos sobre sua vida e seu trabalho. A mais
provável indicação desse caráter, especificamente da linha seguida por Jung, no entanto, não é outra
senão o tratado intitulado Sete Sermões aos Mortos, o qual, segundo admitem proeminentes
junguianos, constituía a fonte e a origem de seu trabalho posterior. Quem, a não ser um gnóstico,
escreveria ou poderia escrever uma obra como esses sermões? Quem optaria por revestir suas
revelações arquetípicas pessoais, que formam o esqueleto do trabalho de sua vida, com a
terminologia e o estilo mitológico da Gnose Alexandrina? Quem preferiria eleger Basílides, em vez de
qualquer outro vulto, como autor dos Sermões? Quem usaria com versada compreensão e finesse
termos como Pleroma e Abraxas para simbolizar estados psicológicos altamente abstratos? Há
apenas uma resposta para essas perguntas: somente um gnóstico faria essas coisas. Como Carl Jung
realizou tudo isso e muito mais, podemos considerá-lo gnóstico, tanto no sentido geral de um
verdadeiro conhecedor das mais profundas realidades do ser psíquico como no sentido mais estrito
de moderno restaurador do gnosticismo dos primeiros séculos da era cristã.

Referência:

Saindo da Matrix: Os gnósticos

Gnosis: A Journal of Western Inner Traditions – Vol. 8, Summer 1988 – C. G. Jung and the Alchemical
Renewal Stephan A. Hoeller

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