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(Parte 1)
August 28, 2019
Vimos, no artigo anterior, que a antiga cosmologia gnóstica era geocêntrica, concebendo a
Terra como o centro do universo, rodeada por esferas governadas pelos Archons –
potestades mesquinhas e ciumentas que criaram e governam o mundo. Ao fim do artigo,
prometemos extrair as consequências antropológicas e morais dessa cosmologia, e é o que
faremos a seguir.
As esferas são, portanto, os tronos dos Archons, que dominam o mundo de forma coletiva
(e cada um, individualmente, em sua própria esfera), atuando como carcereiros cósmicos.
Seu regime tirânico (e, por vezes, o cosmos-prisão como um todo) é frequentemente
designado como heimarmenē, palavra grega para “destino”, compreendido
especificamente como sujeição humana a forças incontroláveis e caprichosas. Na condição
de guardião de sua esfera, cada Archon bloqueia a passagem da alma que procura ascender
após a morte, assim evitando a sua fuga do mundo, e o consequente retorno a Deus.
Os Archons são também os criadores do mundo, ainda que, em algumas correntes do
gnosticismo, essa prerrogativa seja reservada a uma liderança única, o demiurgo – artífice
do universo, segundo o Timeu de Platão. No gnosticismo clássico, o demiurgo costuma ser
retratado de forma negativa, com as características pretensamente implacáveis de Javé, o
Deus do Antigo Testamento, com quem os homens mantêm uma relação de rivalidade e
hostilidade.
A cosmologia gnóstica é inseparável de uma antropologia para a qual o homem é um
prisioneiro por excelência, primeiro do cosmos, mas também do seu próprio corpo.
Segundo essa antropologia, o homem é feito de carne/matéria corporal (hyle), alma
(psyche) e espírito (pneuma). As suas carne e alma respondem por sua natureza mundana,
enquanto o seu espírito é um resquício de sua origem extramundana, ou, mais
precisamente, divina. Assim, tanto o corpo quanto a alma são tidos por frutos decaídos das
potestades cósmicas. E é graças a eles, corpo e alma, que o homem se mantém preso ao
mundo, restando sujeito às forças imprevisíveis do destino.
Encapsulado no corpo e na alma está o espírito (pneuma), também chamado de “centelha”
– uma porção da substância divina que, originária do além, despencou no mundo atual.
Foi para nele manter aprisionada a centelha divina que os Archons criaram o homem. Se,
no plano macrocósmico, o homem acha-se enclausurado pelas esferas celestes, no plano
microcósmico, o pneuma está encarcerado dentro do corpo e alma humanos. Em seu
estado não-redimido, o pneuma está imerso na alma e na carne, inconsciente de si próprio,
amortecido, adormecido ou intoxicado pelo veneno do mundo – em suma, ignorante. O
seu despertar e a sua redenção dependem da gnose, pois o gnóstico só se liberta do
cosmos-prisão quando compreende o pneuma como a essência do seu verdadeiro ser.
A formação de vanguardas é, precisamente, um fenômeno típico dos movimentos
revolucionários, tanto medievais quanto modernos
A natureza radical do dualismo gnóstico também determina a sua escatologia. Se o Deus
transcendente é estranho a este mundo, o pneuma também o é, e todo o esforço gnóstico
consiste em libertar a essência humana das grades do mundo hostil, fazendo-a retornar ao
reino originário da luz. A condição necessária para tanto é que o gnóstico adquira
conhecimento do Deus transmundano e da sua própria situação. O que impede essa
tomada de consciência – ou insight gnóstico – é a ignorância (agnoia), a essência mesma
da existência mundana. O Deus transcendente é desconhecido neste mundo, sendo
impossível conhecê-lo por meio deste. Exige-se, para tanto, alguma forma de revelação,
necessidade fundada na própria condição humana perante o cosmos. A revelação altera
essa situação em seu aspecto central – a ignorância. Portanto, já é, ela mesma, parte
decisiva no processo de salvação.
Quem carrega a mensagem de salvação é um mensageiro do reino transcendente da luz,
que atravessa as esferas cósmicas, sobrepuja os Archons, desperta o pneuma de sua
letargia mundana e lhe transmite a gnose sobre o caminho de volta a Deus. Equipada com
essa gnose esotérica, e após a extinção da carne, a alma inicia a sua ascensão, deixando
para trás, a cada esfera cósmica ultrapassada, as “vestimentas” psíquicas responsáveis por
seu aprisionamento. Com isso, despido de todas as amarras mundanas, o pneuma alcança
o Deus transmundano, reunindo-se novamente à substância divina original. De um ponto
de vista teológico, o processo faz parte da restauração de uma totalidade divina perdida, e é
a fim de recuperar a “centelha divina” decaída que os mensageiros supracósmicos intervêm
na história.
Como nota Hans Jonas, a cosmovisão gnóstica tem implicações profundas sobre o campo
da moralidade. Em sua vida mundana, o pneumático (ou seja, o portador da gnose) vê-se
como um ser apartado do conjunto da humanidade. A moralidade gnóstica é marcada pela
hostilidade ao mundo, bem como por um profundo desprezo por todo vínculo mundano.
Desse princípio geral costumam derivar duas atitudes existenciais opostas, mas no fundo
complementares: o ascetismo e a permissividade.
O gnóstico ascético deduz da posse da gnose a necessidade de evitar a contaminação pelo
mundo, procurando reduzir ao mínimo o seu contato com a realidade atual. Do mesmo
princípio, o gnóstico permissivo deriva o privilégio autoconcedido da liberdade absoluta.
Não é mero acaso que, no decorrer da história, diversas correntes gnósticas tenham
lançado ataques frontais aos mandamentos mosaicos, com suas conhecidas fórmulas
imperativas do tipo “Farás” e “Não farás”, compreendidas, nessa perspectiva, como
manifestações da tirania cósmica. Para o gnóstico, as sanções associadas à transgressão
desses mandamentos só podem afetar o corpo e a alma, ou seja, os elementos mundanos
da natureza humana. Todavia, uma vez que o pneumático não está submetido ao
heimarmenē (o “destino”), ele se sente liberto do jugo da lei moral. A ele, diria Dostoievski,
tudo é permitido, pois o pneuma desperto torna-o imune aos cruéis desígnios dos Archons.
É o tipo permissivo, mais que o ascético, quem revela com nitidez o aspecto niilístico
presente na negação gnóstica do mundo. De todo modo, ascese e permissividade são duas
faces de uma mesma moeda, cunhada na forja do anticosmismo. Odiando o mundo atual, o
ascético pretende fugir para um outro; odiando-o não menos, o permissivo só é mais
impaciente, pretendendo transformá-lo por completo, à imagem de uma realidade futura
que ele imaginar conhecer, e à qual crê pertencer de antemão.
Em The Pursuit of the Millennium, Norman Cohn – que não trata diretamente do
gnosticismo, mas do milenarismo medieval – parece dar razão a Hans Jonas. Escrevendo
sobre uma heresia cristã dos séculos 13 e 14 conhecida como “Espírito Livre”, o autor
ressalta o seu caráter gnóstico, conferindo-lhe um lugar de destaque no conjunto das
escatologias revolucionárias que, dali em diante, viriam a se alastrar por toda a Europa.
Os heréticos do “Espírito Livre” eram místicos anárquicos, propondo uma afirmação tão
impetuosa da liberdade que, nas palavras de Cohn, acabou resultando na “negação total de
qualquer tipo de comedimento ou limitação”. De certa forma, podem ser considerados
precursores remotos de Bakunin e Nietzsche. Nas palavras de Cohn: “Individualistas
extremos como esses podem facilmente se converter em revolucionários sociais – e assaz
efetivos – quando em face de uma situação potencialmente revolucionária. O Super-
Homem de Nietzsche, não importa o quão vulgarizado, certamente povoou a imaginação
de muitos dos ‘boêmios armados’ que fizeram a revolução nacional-socialista; e vários dos
expoentes da revolução mundial contemporânea devem mais a Bakunin do que a Marx. Na
baixa Idade Média, foram os adeptos do Espírito Livre que conservaram, como parte de
seu credo na emancipação total, a única doutrina revolucionária então existente. E foi a
partir de suas ideias que surgiram doutrinários para inspirar a tentativa mais ambiciosa de
revolução social que a Europa medieval já havia testemunhado”.
A descrição dos livre-espiritualistas oferecida por Cohn ilustra exemplarmente o tipo
permissivo de gnóstico descrito por Jonas. Os adeptos do “Espírito Livre” eram
extremamente subjetivistas, não reconhecendo outra autoridade que não a de suas
próprias experiências pessoais. Em sua visão, a Igreja era um obstáculo à salvação, quando
não um inimigo tirânico, instituição ultrapassada que deveria ser substituída por uma
comunidade dos “santos”, concebida como um vaso ou receptáculo para o Espírito Santo.
Observando a autoimagem dos livre-espiritualistas, é possível compreender melhor a
persona do moderno revolucionário ocidental. Como explica Cohn: “O núcleo da heresia do
Espírito Livre está na atitude do adepto para consigo mesmo: ele acredita ter alcançado um
estado tão absoluto de perfeição que passa a se ver como incapaz de pecar. Embora as
consequências práticas dessa crença possam variar, uma delas é certamente o
antinomianismo ou o repúdio a normas morais. O ‘homem perfeito’ pode sempre concluir
que lhe é permitido, ou mesmo mandatório, fazer tudo aquilo comumente proibido aos
demais”.
Cohn nota ainda que, para os heréticos do “Livre Espírito”, não há realmente uma oposição
entre ascese e permissividade, já que ambas as atitudes constituem etapas diferentes de
um contínuo progresso espiritual: a ascese prepara o caminho para a mais completa
permissividade moral. Para os livre-espiritualistas, a fase final de desenvolvimento do
espírito era a união completa do homem com Deus, sendo que, a partir de então, os seus
atos estariam acima de todo juízo humano, tidos por manifestações diretas do princípio
divino. Como escreve o autor: “Essa deificação da alma é possível porque a alma existiu em
Deus por toda a eternidade. A alma é indistinta de Deus, assim como a chama, do fogo. Ela
provém de Deus, e a ele retorna como uma gota d’água vem e retorna ao mar. Com efeito,
Deus é tudo o que há. Assim, ao ser aniquilada em Deus, a alma é reintegrada ao seu ser
verdadeiro e originário”.
A formulação de Cohn sobre os livre-espiritualistas corresponde também à criação
dostoievskiana do “homem-ideia”, pela qual o romancista russo buscava descrever a
autopermissividade dos niilistas e revolucionários do século 19. E remete também, é claro,
àquela sensação quase auto-hipnótica conferida pela posse do pneuma, sobre a qual falava
Hans Jonas ao escrever sobre a moralidade gnóstica.
Uma consequência importante dessa percepção gnóstica deve ser destacada. Como nota
Jonas, há no gnosticismo a ideia de um insight que separa o seu portador (ou portadores)
do resto da humanidade. Trata-se, portanto, de uma percepção da realidade que conduz à
formação de elites ou vanguardas revolucionárias, abrangendo todos os porta-vozes do
futuro transfigurado. A formação de vanguardas é, precisamente, um fenômeno típico dos
movimentos revolucionários, tanto medievais quanto modernos. E, como veremos no
próximo artigo, reside aí a diferença crucial entre a mística gnóstico-milenarista-
revolucionária e a doutrina cristã, que rasgou o véu do templo, desafiou o farisaísmo e
rejeitou o tipo de soteriologia elitista característica do gnosticismo.
“Falei abertamente ao mundo; sempre ensinei nas sinagogas e no templo, onde todos os
judeus se reúnem. Nada disse em segredo” (João 18:20)
Quem já travou contato com a obra do filósofo Eric Voegelin sabe que um dos seus insights
mais interessantes (expresso sobretudo em A nova ciência da política e Ciência, política e
gnosticismo: Dois ensaios) foi a análise dos movimentos de massa do século 20 à luz do
gnosticismo – nome que designa um sem-número de heresias cristãs dos primeiros séculos
de nossa era. Numa proposta ousada, o autor chegou a cunhar o termo “gnosticismo
moderno” para se referir a movimentos políticos tais como comunismo e nazismo, e
também a movimentos intelectuais massificados, tais como psicanálise e marxismo.
Ocorre que o próprio termo “gnosticismo” nunca deixou de suscitar controvérsia entre
especialistas. Muitos argumentam que a palavra não era utilizada antes do século 17, e que
a sua aplicação irrestrita a fenômenos muito antigos seria extemporânea e artificial.
Ademais, e de maneira complementar, outros criticam o emprego abusivo da palavra, sob o
argumento de que, utilizada como foi das maneiras as mais elásticas, tudo o que fez foi
gerar confusão quanto ao seu sentido preciso.
Numa obra em que propõe nada menos que o abandono do termo, por exemplo, o
estudioso de religião comparada Michael Allen Williams cita os comentários sarcásticos do
historiador romeno Ioan Culianu, grande estudioso de religiões antigas: “Acreditei outrora
que o gnosticismo fosse um fenômeno bem definido, pertencente à história religiosa da
Antiguidade... No entanto, logo descobriria estar sendo ingênuo... De intérpretes
autorizados da gnose, soube mais tarde que a ciência é gnóstica, assim como a superstição;
o poder, o contrapoder e a ausência de poder são gnósticos; a esquerda é gnóstica e a
direita é gnóstica. Hegel é gnóstico, tal qual Marx. Freud é gnóstico, e também Jung. Todas
as coisas e os seus contrários são igualmente gnósticos”.
Foi por essas e outras que, desde o início, a associação proposta por Voegelin entre
fenômenos tão distantes no tempo, além de aparentemente tão díspares, gerou muitas
críticas. Um grande número de intelectuais não conseguiu ver qualquer conexão evidente
entre uma série de antigas especulações teológicas e místicas, mal acomodadas sob um
mesmo nome, e um mundo moderno progressivamente secularizado. Sob esse ponto de
vista, a tese voegeliana afigurava-se como arbitrária e forçada. Alguns críticos mais afoitos
– como, por exemplo, o teólogo Thomas Altizer – não hesitaram em afirmar
grosseiramente que “o professor Voegelin acha que tudo é gnóstico”.
Uma crítica menos pueril à interpretação voegeliniana foi redigida pelo filósofo político
John Gray, para quem “a política moderna é um capítulo na história da religião” –
afirmação não muito distante da posição do próprio Voegelin. Ocorre que, para Gray, é o
milenarismo medieval, antes que o gnosticismo, o pai das modernas religiões políticas de
nossa história (entre as quais o autor inclui a Revolução Francesa). O milenarismo – que,
segundo o autor, seria uma decorrência direta da escatologia cristã (tese, essa sim, com a
qual Voegelin dificilmente concordaria) – consiste na projeção de um paraíso terreno no
qual as imperfeições humanas e os males sociais serão para sempre corrigidos por
intermédio de Deus, do Espírito Santo e, sobretudo, da própria ação humana. Trata-se da
ideia do fim da história e da instauração do reino de Cristo, que, segundo a tradição
milenarista, retornaria à Terra e “reinaria por mil anos” (daí a origem do termo). O
fenômeno teria recrudescido entre os séculos 11 e 16, quando vários movimentos de massa
eclodiram por toda a Europa, baseados, de um modo ou de outro, na expectativa de
apressar o Juízo Final (ver, sobre isso, The pursuit of the millennium, de Norman Cohn).
A partir da Reforma, prossegue Gray, o fenômeno intensificou-se, quando líderes radicais e
messiânicos como John de Leiden (1509-1536), John Knox (1514-1572) e Thomas Münzer
(1490-1525) lideraram grupos de camponeses revoltosos em conflitos sangrentos, naquilo
que se pode considerar como uma espécie de antecipação do projeto comunista.
Para o autor, a escatologia fatalista típica do milenarismo cristão, raiz dos milenarismos
políticos modernos, está ausente no gnosticismo. Ao contrário dos milenaristas medievais,
os gnósticos jamais projetaram uma utopia. A salvação que buscavam era de tipo ascética
(em certo sentido, epicurista), consistindo na fuga do mundo cruel em que se percebiam
aprisionados, mediante um conhecimento esotérico sobre sua verdadeira condição.
Gray afirma não haver no gnosticismo nenhuma proposta de acelerar ou instaurar o fim
dos tempos. Os gnósticos entendiam a salvação como aquisição individual (e não coletiva,
como no milenarismo), que envolveria mais uma libertação do mundo (ou do tempo) do
que propriamente o seu fim.
Embora, no geral, seja um autor muito perspicaz, Gray parece-me equivocado nesse ponto.
Primeiro, por desconsiderar que tanto a fuga do mundo quanto a sua eliminação (ou a sua
transformação, como preferem os milenaristas seculares da modernidade) dependem de
uma mesma atitude existencial: a hostilidade diante do mundo, ou – na expressão cunhada
por Albert Camus em O homem revoltado – “revolta metafísica”. Essa revolta está na raiz
dos movimentos revolucionários da modernidade, passando pelo milenarismo medieval, e
começa com o anticosmismo dos antigos gnósticos (um fenômeno há muito notado, entre
outros, por Plotino).
Foi esse anticosmismo que Voegelin destacou como o elemento contínuo subjacente à
imensa variedade de manifestações gnósticas ao longo da história. Sim, é fato que, já no
tempo dos primeiros Pais da Igreja, as seitas gnósticas eram tidas por “tão numerosas
quanto as cabeças da Hidra de Lerna” (na formulação de Santo Irineu). Contudo, se de um
ponto de vista estritamente ideológico e doutrinal seria impraticável discernir qualquer
unidade significativa por baixo de tamanha diversidade, é possível abordar o fenômeno a
partir de um nível mais profundo que o das formulações explícitas, crenças e práticas
gnósticas. E foi o que fez Voegelin. Em lugar de uma história das ideias, o filósofo alemão
propôs foi uma fenomenologia do gnosticismo, uma vez que, em suas próprias palavras, “a
substância da história deve ser buscada ao nível das experiências, não ao nível das ideias”.
Voegelin percebeu muito bem que, se há algo de constante nos movimentos gnósticos dos
primeiros séculos de nossa era até os dias de hoje, esse algo está presente na própria
percepção gnóstica da estrutura do real, e não em exegeses ou simbolismos específicos, que
não passam de elaborações a posteriori – doutrinas abstratas passíveis de formulação
racional – de uma percepção pré-racional da realidade.
Mais equivocada ainda é a opinião de Gray segundo a qual “nenhum pensador gnóstico
vislumbrava um mundo no qual a vida humana já não seria sujeita ao mal”. O retorno
gnóstico ao reino primevo da luz significa precisamente um retorno a esse universo idílico,
livre de todo o mal – identificado, no caso, à condição de agnoia (ignorância mundana).
Esse retorno é possibilitado pela gnose, a mensagem de salvação, que informa ao homem
sobre sua condição de prisioneiro neste mundo, bem como sobre os meios de sua
libertação. Como escreveu o sociólogo italiano Luciano Pellicani: “O gnosticismo é a
tradição de pensamento soteriológico surgida inicialmente no Cristianismo primitivo,
reemergindo periodicamente, tal qual um fluxo subterrâneo, do subsolo da civilização
ocidental”.
Sentindo-se infeliz e angustiado neste mundo, o gnóstico acredita que o seu destino
verdadeiro é a felicidade e a plenitude que o aguardam no outro mundo, um lugar em que
jamais esteve, mas do qual, mesmo assim, acredita ter sido injustamente expulso. Pouco
importa que esse outro mundo seja um domínio transcendente e fora do tempo (tal qual o
Pleroma do gnosticismo clássico), ou um futuro glorioso (como nas modernas filosofias da
história). Importa é que, para o gnóstico, a infelicidade, mesmo sendo uma condição atual,
não é a condição real e essencial do homem. O gnóstico não aceita o mal com naturalidade:
escandaliza-se. E, como sugere o filósofo húngaro Thomas Molnar, o escândalo com a
presença do mal no mundo – ou, em outras palavras, com a própria estrutura da realidade
– é um dos traços distintivos das utopias. Para o gnóstico, a realidade é apenas um
momento de angustiante espera, um terrível local de passagem que o separa de sua
verdadeira natureza divina.
Portanto, Gray equivoca-se ao desprezar as dimensões utópica e política do gnosticismo.
Em que pese a sua afirmação de que a salvação gnóstica é individual e não coletiva, resta
claro que todo gnóstico é impelido a passar sua experiência adiante, com uma
consequência política inevitável: a atração de seguidores que, frustrados com a “primeira
realidade” pelos mais variados motivos, e ansiosos por uma “segunda realidade” (na
expressão do romancista Robert Musil), prostram-se como que hipnotizados diante da
dominação carismática dos profetas gnósticos. Foi exatamente o que aconteceu com os
mestres gnósticos Simão de Samaria, Valentim de Alexandria e Basílides de Alexandria,
que, nos primeiros séculos da era cristã, atraíram multidões de seguidores.
Como explica o filósofo alemão Hans Jonas no clássico The gnostic religion: “Em sua vida,
os pneumáticos, que é como chamam a si próprios os portadores da gnose, estão apartados
da grande massa da humanidade. A iluminação imediata não apenas torna o indivíduo
soberano na esfera do conhecimento (daí a ilimitada variedade de doutrinas gnósticas)
como também determina a esfera da ação”.
Se a análise de Gray despolitiza o gnosticismo, percebe-se que, na visão de Jonas, a gnose
não pode deixar de conduzir à ação humana de salvação e, portanto, à política. Portanto,
creio que o núcleo do messianismo político moderno, como precisamente sugere Voegelin,
encontra-se já no gnosticismo. Tanto os milenarismos medievais quanto os milenarismos
seculares (comunismo e nazismo, em particular) são desdobramentos de uma mentalidade
gnóstica, que pode ser compreendida como uma “experiência fundamental”, um “modo de
sentir”, uma “visão da realidade distintivamente característica” (como se exprime Hans
Jonas). O conceito de mentalidade gnóstica sugere um nível mais profundo de expressão
do que a diferenciação doutrinal e circunstancial poderia deixar entrever.
Mais do que um corpo doutrinal e simbólico, o gnosticismo parece ser uma disposição
existencial plena, que inclina o espírito a adotar uma postura sui generis em relação à
realidade. O gnóstico é dominado por um verdadeiro horror à existência, que o envolve em
perpétua sensação de angústia e incômodo. Para ele, o mundo atual é o domínio do
absurdo e da indiferença. O gnóstico está no mundo, mas não se sente pertencendo ao
mundo. Sua experiência é de abandono, solidão, impotência – em suma, alienação. “Sou
um estranho para a ordem existente das coisas” – dizia o jovem niilista russo Dimitri
Pisarev, como que saindo das páginas de Dostoievski –, “não devo misturar-me a elas”.
Dessa mentalidade que se escandaliza com o real nasce um sentimento inevitável de
autopermissividade, a tal ponto que escândalo e autopermissividade formam um
mecanismo de retroalimentação. Baseando-se no clássico Das leis da política eclesiástica,
do teólogo Richard Hooker (1554-1600), Voegelin mostra como o referido mecanismo
esteve presente de modo significativo no movimento puritano inglês durante os séculos 16
e 17. A obra de Hooker sobre o puritanismo na Inglaterra consiste num magistral estudo de
caso sobre a estrutura da mentalidade gnóstica, já em seu formato moderno e tipicamente
revolucionário.
Como sugere Voegelin, é possível especular que, com o movimento puritano, surge pela
primeira vez na história uma das armas mais eficazes utilizadas pelos revolucionários
gnósticos de ontem e de hoje: a noção de causa política. Para se iniciar qualquer
movimento político de tipo revolucionário, é preciso, antes de tudo, a presença imponente
de uma causa que tudo justifica. Nas palavra do filósofo: “De modo a avançar a sua ‘causa’,
o homem que a sustenta irá, diante da multidão, entregar-se a uma crítica severa dos males
sociais e, em particular, da conduta das classes altas. A repetição constante da performance
induzirá entre os ouvintes a opinião de que ele deve ser alguém de singular integridade,
zelo e santidade, pois apenas homens singularmente bons seriam capazes de se ofender tão
profundamente com o mal”.
Para o estudioso brasileiro, o insight de Voegelin deve ser sempre revisitado, sobretudo
porque a mentalidade gnóstica está mais viva do que nunca no Brasil contemporâneo. O
mecanismo escândalo-autopermissividade tem gerado todo tipo de “causa” (direitos dos
animais, direitos das minorias, feminismo, anticapitalismo, anarquismo, justiça social etc.)
utilizada como justificativa para a violência revolucionária e a reinvindicação do direito ao
crime. As ruas e as redes sociais estão coalhadas de jovens auto-hipnotizados por uma
crença cega na própria bondade e senso de justiça. Como ironizou certa vez o filósofo
canadense Charles Taylor: “Asseguramo-nos de nossa própria bondade por meio de uma
apaixonada atitude contra o mal. Combato a poluição, logo, sou puro”.