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O que é o gnosticismo?

(Parte 1)
August 28, 2019

“A ignorância [agnoia] é um escravo. O conhecimento é liberdade. Se conhecemos a


verdade, devemos colher os seus frutos dentro de nós mesmos. Se nos juntamos a ela,
conquistaremos a plenitude” (Evangelho de Felipe, códice 2 da Biblioteca de Nag
Hammadi)
Depois dos meus textos sobre o neo-ateísmo, e porque eu abordasse o movimento segundo
uma tradição intelectual que relaciona fenômenos políticos modernos com o antigo
gnosticismo dos primeiros séculos da Era Cristã, leitores pediram-me mais informações
sobre este último. O que foi, afinal, o gnosticismo, e por que ele nos ajuda a compreender o
espírito revolucionário contemporâneo, calcado naquilo que, em obra por mim citada
anteriormente, Albert Camus definiu como uma “revolta metafísica”? Eis o que pretendo
responder a partir do artigo de hoje.
Uma das mais antigas fontes existentes sobre o gnosticismo é o primeiro volume de Sobre
a Detecção e Derrota da Assim Chamada Gnosis, de Santo Irineu, bispo de Lyon. Redigida
originalmente em grego por volta do ano 185 d.C., a obra é mais conhecida como Contra
Heresias, e nela Irineu utiliza a expressão “falsamente chamadas de conhecimento” em
referência à passagem bíblica na qual São Paulo adverte seu discípulo Timóteo para que
evitasse “conversas vãs e profanas” dos adeptos de um “falso conhecimento” que os teria
“desviado da fé” (Timóteo, 6: 20-21). Adotando a terminologia paulina, Irineu dedica esse
primeiro volume à exposição metódica das principais doutrinas heréticas de sua época,
enquanto os quatro volumes subsequentes tratam de refutá-las.
Convém notar que a palavra “gnosticismo” não aparece na obra de Irineu. O termo só viria
a ser cunhado no século 17 pelo filósofo da religião Henry More (1614–87), que o aplicara
especificamente a uma heresia da região de Tiatira, atual Akhisar (Turquia). Formava-se o
neologismo a partir do adjetivo grego gnōstikos (“conhecedor” ou “aquele que conhece”)
acrescido do sufixo substantivador -ismo. Em sua obra, Irineu empregara apenas a forma
adjetiva: “heresias gnósticas”.
Embora, é claro, fosse um defensor apaixonado da doutrina cristã, Irineu agiu de modo
puramente descritivo e objetivo ao adotar o termo “heresia gnóstica” (gnōstikē haerēsis),
uma vez que a palavra grega haerēsis significa tão somente “escola de pensamento”. Irineu
referia-se a uma escola de pensamento específica, formada por pessoas autodenominada
“gnósticas”, que, em comum, tinham a crença na posse de um tipo determinado de
conhecimento (gnose). Como afirma Hans Jonas em The Gnostic Religion: “A ênfase no
conhecimento como meio de salvação (ou ainda como a própria salvação), e o argumento
da posse desse conhecimento sob a forma de uma doutrina articulada, é uma característica
comum das várias seitas em que o movimento gnóstico se manifestou historicamente”.
Na esteira de Irineu, outros Pais da Igreja como Hipólito de Roma (170 d.C.-236 d.C.),
Tertuliano (160 d.C.-220 d.C.), Clemente (150 d.C.-215 d.C.) e Orígenes de Alexandria (185
d.C.-254 d.C.), Eusébio de Cesareia (265 d.C.-339 d.C.), o próprio Santo Agostinho (354
d.C.-430 d.C.), entre outros, escreveram obras polêmicas contra os heréticos em geral, e
contra os gnósticos em particular. Embora muito úteis para a compreensão do
gnosticismo, todavia, essas primeiras fontes apresentam o inconveniente da parcialidade
de seus autores, que, na condição de críticos, talvez tenham distorcido o sentido original
dessa ou daquela doutrina gnóstica. A dificuldade permaneceu por muito tempo sem
solução, e, até meados do século 20, só conhecíamos o gnosticismo de maneira indireta, via
os textos de seus primeiros opositores, os chamados Pais da Igreja.
Pode-se compreender o gnosticismo como um movimento espiritual parasitário, que
introduziu sutis reinterpretações e graves distorções
Tudo começou a mudar quando, em 1945, num deserto próximo à aldeia de Nag Hammadi,
no Egito, camponeses desenterraram uma jarra de aparência arcaica, dentro da qual
encontraram um conjunto de treze códices de papiro embrulhados em couro. Considerada
uma das mais importantes descobertas arqueológicas do século 20, os manuscritos – que
passaram a ser conhecidos como Biblioteca de Nag Hammadi – totalizavam 52 escritos
originais, incluindo textos do Corpus Hermeticum, uma tradução de A República de Platão
e, o que nos interessa, vários textos gnósticos datados aproximadamente do século 4.
Atualmente guardados no Museu Copta da cidade do Cairo, em 1977 os manuscritos
ganharam uma tradução para o inglês.
Escritos em copta – língua egípcia que utiliza formas alteradas do alfabeto grego e
incorpora em seu vocabulário grande número de palavras gregas –, acredita-se que os
manuscritos sejam traduções de versões originais em grego, mas para sempre perdidas. A
hipótese histórica corrente para a origem dos manuscritos sugere que, quando, em 367,
Santo Atanásio de Alexandria redigiu uma carta condenando livros apócrifos e heréticos,
um grupo de monges de um monastério situado próximo ao local da descoberta teria
escondido os textos dentro de uma jarra, para que não fossem queimados ou atirados no
Nilo.
Várias correntes do gnosticismo estão representadas nos manuscritos de Nag Hammadi e,
de forma geral, o seu conteúdo confirma o testemunho de Irineu e demais heresiólogos.
Alguns escritos gnósticos referidos por Irineu, por exemplo, correspondem quase que
exatamente a partes de um dos textos cópticos chamado Apócrifo de João (códice 2 da
Biblioteca de Nag Hammadi). Mas o estatuto de “gnósticos” pode ser aplicado
perfeitamente a outros textos cópticos, cujo conteúdo mítico e doutrinal é muito
semelhante ao Apócrifo de João. Tomados em conjunto, os textos integram aquilo que os
estudiosos costumam chamar de “gnosticismo clássico” ou “gnosticismo sethiano” (em
referência a Seth, terceiro filho de Adão, que em alguns textos gnósticos assume o papel de
progenitor de uma “raça” de pessoas destinadas à salvação mediante o conhecimento de
sua mensagem).
O “gnosticismo clássico” refere-se à inclinação cristã tomada pelo gnosticismo,
correspondendo à versão dos Padres da Igreja segundo a qual ele era essencialmente uma
heresia cristã. Esses primeiros heresiólogos restringiram suas investigações e refutações
aos sistemas gnósticos que: ou tivessem brotado diretamente do solo do cristianismo
(como o gnosticismo do místico Valentim, chamado de gnosticismo valentino); ou
incorporado a figura de Jesus Cristo em suas doutrinas (como os Ofitas ou Naassenos,
segundo os denominava Hipólito); ou ainda que, graças a um fundamento judaico comum,
estivessem próximos o bastante para serem percebidos como rivais e deturpadores da
mensagem cristã (como a doutrina de Simão Mago de Samaria, a quem Irineu considerava
o pai do gnosticismo clássico). Atualmente, a literatura especializada vem ampliando esse
escopo, ao sugerir a existência de um gnosticismo judeu pré-cristão e de um gnosticismo
pagão (helenista), dando conhecimento também de fontes sobre os mandeanos (o mais
notável exemplo de gnosticismo oriental fora da órbita helenista) e os maniqueístas,
discípulos do profeta persa Mani.
Há muita especulação e controvérsia sobre as origens históricas do gnosticismo. Na
literatura especializada, duas grandes hipóteses têm se confrontado. Os primeiros Pais da
Igreja – e, de forma independente, o filósofo neoplatônico Plotino (205 d.C.-270 d.C.) –
enfatizaram a influência, sobre um pensamento cristão ainda não plenamente consolidado,
de interpretações supostamente distorcidas da filosofia de Platão. Já a hipótese alternativa,
mais recente, sugere origens helênicas, babilônicas, egípcias e iranianas, que teriam se
combinado, tanto entre si quanto com elementos judaicos e cristãos, para compor a
multiplicidade do gnosticismo.
Estudiosos como Birger A. Pearson, por exemplo, apontam para um solo cultural judaico
de onde teriam brotado o cristianismo e o gnosticismo. Segundo o autor, estudos
comparativos sobre o mito básico contido no manuscrito Apócrifo de João indicam que ele
foi composto a partir de uma interpretação inovadora de tradições bíblicas e judaicas.
Escreve Pearson: “É mais provável que o gnosticismo tenha surgido de um meio judaico, e
só depois entrado em contato com o cristianismo, do que de dentro do cristianismo
primitivo. Se se quiser usar o termo heresia nesse contexto, pode-se dizer que tanto o
cristianismo quanto o gnosticismo surgiram como heresias judaicas”.
Por sua vez, Hans Jonas afirma que as descobertas dos textos cópticos em Nag Hammadi
sugerem influências de um ocultismo judaico heterodoxo, sendo possível, inclusive,
observar certas conexões entre o gnosticismo e os primórdios da Cabala. A hipótese
histórica avançada por Jonas abrange um longo escopo temporal, remontando aos tempos
do império de Alexandre Magno (356 a.C.-323 a.C.), que expandiu a cultura helênica – no
sentido universalista e civilizatório expresso no conceito de Paideia – aos reinos
conquistados do Oriente.
Entre os anos 334 a.C. e 323 a. C., a conquista de Alexandre provocou uma profunda
reviravolta na história do mundo antigo, resultando numa unidade cultural até então
inédita por suas proporções, unidade que durou cerca de mil anos, até ser destruída pela
expansão islâmica, e que vinculou culturalmente o Ocidente (o mundo grego, centralizado
em torno do mar Egeu) ao Oriente (a região das antigas civilizações orientais, do Egito até
as fronteiras da Índia). Nas palavras de Jonas: “A colonização de Alexandre pretendeu
desde o início, e como parte de seu próprio programa político, uma simbiose de um tipo
inteiramente novo, que, embora fosse obviamente uma helenização do Oriente, exigia para
o seu sucesso uma certa reciprocidade”.
Portanto, o grande significado da expansão de Alexandre consiste no sentido mesmo da
“cultura” difundida. A universalização da Paideia implicava a percepção de que era
possível tornar-se helênico via educação, e não necessariamente via nascimento. Essa
fórmula foi imediatamente assimilada por homens do Oriente conquistado. Na geração
imediatamente seguinte à de Aristóteles, encontramos já a atuação desses homens no
coração mesmo do saber grego. A partir de então, e ao longo de muitos séculos, o Oriente
helênico produziu um contínuo fluxo de homens de origem semítica, que, com nomes
gregos, além de linguagem e espírito gregos, contribuíram para a civilização dominante. E,
embora os antigos centros em torno do mar Egeu continuassem a existir, o eixo de
gravidade da cultura grega universalizada deslocara-se para novas regiões.
Foi do interior dessa metade oriental do mundo helênico que, tempos depois, começaram a
surgir diversos movimentos religiosos cuja característica fundamental era um imenso
sincretismo, constituído sobre um fundo cultural grego bastante homogêneo. De certa
forma, esses movimentos eram uma reação de contracultura tomando corpo no interior de
antigas nações conquistadas. Dessa “onda oriental” fariam parte os diversos sistemas
gnósticos vindouros, que representavam a versão mais radical do sincretismo helenista.
Como explica Jonas: “Os sistemas gnósticos incluíam de tudo: mitologias orientais,
doutrinas astrológicas, teologia iraniana, elementos de tradição judaica (fosse bíblica,
rabínica ou ocultista), uma escatologia cristã da salvação, termos e conceitos platônicos”.
Pode-se, pois, compreender o gnosticismo como um movimento espiritual parasitário, que
introduziu sutis reinterpretações e graves distorções – “exegeses de protesto”, como sugere
Kurt Rudolph – em sistemas religiosos ou filosóficos preexistentes. Os três principais
sistemas metafísicos parasitados foram a filosofia platônica, o judaísmo e o cristianismo. A
partir de uma combinação sincrética entre elementos provenientes dos três, acrescidos de
influências iranianas e egípcias, e ultrapassando fronteiras étnicas e doutrinais, o
gnosticismo introduziu um novo princípio espiritual, discernível por baixo da variedade de
suas escolas. Trata-se de um princípio baseado numa concepção específica do
conhecimento como meio de salvação, e sobre ele falaremos mais no artigo da semana que
vem.
O que é o gnosticismo (Parte 2)
September 04, 2019

No final do artigo da semana passada, afirmei que o fundamento do Gnosticismo é uma


concepção particular de conhecimento, compreendido como meio de salvação. Como
prometido, falarei mais sobre a questão no artigo de hoje.
Antes de tudo, convém notar que o conhecimento gnóstico (gnōsis) não se confunde com
um conhecimento de tipo intelectual ou teorético (episteme) característico da filosofia
grega ou da ciência moderna. Gnose significa, em última instância, conhecimento de Deus,
a quem, por sua natureza transcendente, não se pode apreender naturalmente, ou seja,
com o simples recurso à razão natural humana. O objeto da gnose inclui tudo aquilo que
pertence à esfera divina do ser: a ordem e a história dos mundos superiores, o destino do
homem, e os meios de sua salvação. Portanto, a atitude mental subjacente a essa espécie de
conhecimento é bem distinta da cognição racional ordinária.
Por um lado, a gnose apresenta-se como experiência de revelação, de modo que a recepção
da verdade, via erudição secreta ou iluminação interior, substitui argumentos racionais e
teoréticos. Por outro, o conhecimento gnóstico não é apenas informação sobre a realidade,
mas, porque transforma a condição humana, exerce uma função no processo de salvação.
Daí que a gnose possua um sentido eminentemente prático. O objeto último da gnose é
Deus, e sua presença na alma transforma o conhecedor (isto é, o gnóstico), tornando-o
parte da existência divina. Há, na gnose, algo como uma confusão entre o sujeito e o objeto
de conhecimento.
Como escreve Hans Jonas: “O conhecimento e a conquista do conhecido pela alma são
tidos por coincidentes – esse, aliás, o argumento de todo verdadeiro misticismo. Também
é, decerto, o argumento da theoria grega, mas num sentido diverso. Aí, o objeto do
conhecimento é o universal, e a relação cognitiva é ‘óptica’, isto é, um análogo da relação
visual com a forma objetiva, que resta inalterada pela relação. Já o conhecimento gnóstico
trata do particular (pois a divindade transcendente ainda é particular), e a relação de
conhecimento é mútua, isto é, um ser conhecido ao mesmo tempo, com ativa
autoindulgência por parte do conhecido. Lá, a mente é informada pelas formas que
contempla, e enquanto as contempla (ou as pensa). Aqui, o sujeito é transformado (de
alma para espírito) pela união com uma realidade que, de fato, é ela própria o sujeito
supremo, e, falando estritamente, jamais um objeto”.
De acordo com Kurt Rudolph, o gnosticismo postula um conhecimento redentor que reúne
num mesmo bloco o objeto do conhecimento (a natureza divina), os meios de
conhecimento (a gnose) e o próprio conhecedor (o gnóstico). Sendo assim, a gnose
diferencia-se não apenas do conhecimento teorético da filosofia (episteme), mas também
da fé (pistis) no sentido cristão tradicional. Se a gnose consiste na libertação da centelha
divina (pneuma, ou “Deus interior”) aprisionada dentro do homem – o que implica a
ascensão do gnóstico ao princípio divino extramundano –, a fé cristã depende, ao
contrário, da confiança direta no Deus que se fez carne, partilhando com os homens a
condição mundana. Se, no primeiro caso, o homem quer “subir” a um reino divino
totalmente alheio ao mundo (theiosis) – daí o gnóstico desprezar o mundo material e o seu
próprio corpo como prisões –, no segundo, inversamente, é Deus quem “desce” ao mundo
(kenosis), misturando-se a ele e andando por entre os homens. Se, pois, o sentido
tradicional da fé cristã implica a humanização do Deus, a gnose promove uma
desumanização (no sentido da autodivinização) do homem.
O Deus gnóstico é absolutamente transmundano, sua natureza estranha a este universo,
que ele não criou e nem tampouco governa
O mito central do Gnosticismo parte de uma ideia igualmente central e básica: há, no
homem, a presença de uma “centelha” divina que, oriunda do mundo superior, “caiu” neste
mundo terreno – o mundo do destino –, devendo ser re-despertada por sua contraparte
divina. Essa ideia sustenta-se sobre uma teologia regressiva, que concebe o divino como
algo que, em certo momento, entrou em crise e começou a degenerar, tendo como efeito
colateral a criação deste mundo, não por Deus, mas por um demiurgo maligno e hostil, ele
próprio manifestação suprema da degeneração inicial. Não podendo deixar de se interessar
pelo resultado dessa crise, o Deus extramundano procura recuperar o resquício inviolável
(incorrupto pela matéria) dessa divindade decaída – a “centelha”. Tudo isso,
evidentemente, compõe uma teologia, uma cosmologia, uma antropologia e uma
escatologia específicas.
Um dos atributos principais do pensamento gnóstico é um dualismo radical que informa a
relação de Deus com o mundo e, por derivação, do homem com o mundo. O Deus gnóstico
é absolutamente transmundano, sua natureza estranha a este universo, que ele não criou e
nem tampouco governa, e com o qual mantém uma relação antitética. O reino divino da
luz, autocontido e distante, opõe-se ao cosmos, o domínio da escuridão. O cosmos, por sua
vez, é obra de poderes (ou potestades) inferiores que, embora sejam, de forma mediada,
descendentes do Deus transmundano, não mais o reconhecem e obstruem o seu
conhecimento. As potestades, criaturas mesquinhas e ciumentas que criaram e governam o
mundo, são frequentemente chamadas de Archons. Em alguns sistemas gnósticos, os
Archons são liderados por um demiurgo, que é o verdadeiro criador do cosmos. Os
Archons são também concebidos como carcereiros cósmicos, que bloqueiam a
comunicação entre este mundo e o Além.
O dualismo gnóstico apresenta variações importantes conforme as diferentes escolas.
Grosso modo, dizem respeito à questão da origem do mal, podendo ser agrupadas em dois
grandes “tipos” de dualismo. O primeiro, observado nos sistemas que integram o
Gnosticismo clássico (representados, como vimos, na Biblioteca Nag Hammadi), é
chamado por Hans Jonas de “tipo Sírio-Egípcio”. Trata-se de um dualismo marcado por
uma concepção monística do princípio divino – que, como vimos, gera o cosmos-prisão a
partir de uma crise interna degenerativa. Intrínseca a esse “dualismo sobre fundo
monístico” (como o chama Kurt Rudolph) é a doutrina gnóstica do Deus desconhecido,
situado além de tudo o que é visível e sensível, e habitando um domínio transcendente
chamado Pleroma, onde também vivem anjos e outros seres celestiais (sejam ideias
personificadas ou hipóstases). O Pleroma opõe-se ao cosmos-prisão como a luz à
escuridão, o corpo (que inclui a ‘alma’, ou psyche) ao espírito (pneuma), a gnose à
ignorância.
O outro tipo de dualismo, apelidado por Hans Jonas de “Iraniano”, é ilustrado pelos
sistemas gnósticos identificados como de origem persa (daí o nome), tais como o
Maniqueísmo e o Mandeanismo. Há neles dois princípios básicos e opostos existindo
desde sempre, descritos mitologicamente como o reino da luz e o reino da escuridão, ou o
Bem e o Mal. São herdeiros de uma antiga metafísica persa, cujo representante mais
notável é o pensamento dualista do profeta Zoroastro (ou Zaratustra). Se, para o dualismo
“Sírio-Egípcio”, o Mal corresponde a um nível decaído do Ser, um elemento degradado da
divindade, para o dualismo “Iraniano”, ele é um princípio permanente.
De todo modo, apesar de suas diferenças, há algo de comum nos dualismos gnósticos que
os distinguem de outros sistemas dualistas tradicionais, incluindo o próprio Zoroastrismo.
Segundo este, a oposição entre Bem e Mal não coincide com uma dicotomia entre
espiritual e corporal (ou material), uma vez que os polos opostos se acham misturados no
mundo material e corpóreo. Não há uma disjunção absoluta entre o Bem e o mundo. Da
mesma forma, no dualismo platônico entre o mundo das ideias e o mundo sensível, não
encontramos nada parecido com a hostilidade gnóstica à realidade mundana. Como
mostra Voegelin em Science, Politics and Gnosticism, o mundo de Platão era um cosmos
bem-ordenado, onde o homem helênico sentia-se em casa. Assim também, o dualismo
judaico-cristão entre Bem e Mal, ou entre Deus e Diabo, não implica nenhuma associação
inequívoca do mundo (ou do corpo) com o Mal. Ao contrário, o mundo judaico-cristão é
aquele que, como diz o Gênese, Deus criou e achou bom.
Diferente dos anteriores, o dualismo gnóstico tem como característica predominante um
radical anticosmismo, ou seja, uma avaliação radicalmente negativa do mundo visível e de
seu criador, agrupados, ambos, num campo semântico que inclui noções como as de
“escuridão”, “crueldade”, “ignorância”, “envenenamento”, esquecimento”, “desespero”,
“solidão”. O mundo criado pelo demiurgo maligno é completamente apartado do
“verdadeiro” Deus.
Esse desprezo gnóstico pelo mundo, decorrente da associação do material com o maligno,
chamou a atenção de Plotino, filósofo neoplatônico que notou aí uma deturpação das ideias
originais de Platão. Em seu tratado contra os Gnósticos – ou “aqueles que afirmam que o
Criador do Cosmos e o próprio Cosmos são malignos” (Enéadas II, 9) –, o filósofo elabora
uma crítica contundente ao anticosmismo, afirmando que a gradação descendente da
ordem do Ser (das formas puras às coisas sensíveis) não justificaria em hipótese alguma a
rejeição dos níveis ontológicos inferiores. Em suas palavras: “Os que reprovam a
constituição do cosmos não compreendem o que fazem, ou para onde os levará a sua
audácia. Não entendem haver uma ordem sucessiva de primários, secundários, terciários, e
assim continuamente até as origens. Não percebem que nada pode receber a culpa de ser
inferior aos fundamentos primeiros; que só podemos aceitar, humildemente, a
constituição do todo, e seguir o melhor possível até a causa primeira, recusando o
espetáculo trágico, tal como os gnósticos o enxergam, das esferas cósmicas – que, na
verdade, são em tudo suaves e graciosas. E o que, afinal, há de tão terrível nessas esferas a
ponto de assustar pessoas pouco acostumadas a pensar?... Não temos o direito de pedir
que todos os homens sejam bons, ou lamentar que essa virtude universal seja impossível:
isso seria repetir o erro de confundir a nossa esfera de existência com o Ser Supremo, e
tratar o mal como uma espécie de fracasso do conhecimento”.
Plotino faz aí um alerta prévio contra a imaginação utópica. Sua polêmica com os gnósticos
é tão mais significativa na medida em que os elementos da cosmologia gnóstica são muito
semelhantes à nova cosmologia platônica, esboçada no Timeu, e mais tarde desenvolvida
por Ptolomeu em Almagesto. Trata-se do famoso modelo geocêntrico – mais tarde
superado pelo heliocentrismo copernicano – que colocava a Terra no centro do universo,
sendo circundada por sete esferas, ocupadas por Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter
e Saturno (daí a alusão de Plotino ao mencionar o terror que elas infligiam aos gnósticos).
Acima da sétima esfera, havia ainda uma oitava, a das estrelas fixas. Foi sobre esse fundo
cosmológico comum a toda a antiguidade pré-copernicana que os gnósticos propuseram a
sua interpretação particular.
Na visão tradicional de Platão, o cosmos era uma totalidade perfeitamente ordenada.
Segundo a célebre expressão de Leibniz – que, nesse aspecto, escrevendo séculos mais
tarde, manteve-se fiel ao espírito platônico –, o cosmos atual seria “o melhor dos mundos
possíveis”. Para os gnósticos, ao contrário, as esferas planetárias são habitadas por
criaturas demoníacas (os Archons), que, governando o cosmos de forma tirânica,
impediriam a sua transição para o domínio supracósmico e divino (o Pleroma). O universo
gnóstico, o domínio dos Archons, é concebido como uma vasta prisão, cuja masmorra
central é a Terra, cenário onde se desenrola o drama da existência humana. Nesse
esquema, portanto, o homem vê-se encarcerado no mais profundo interior do cosmos. Ao
redor e acima da Terra estão as esferas cósmicas, dispostas em círculos concêntricos cada
vez mais inclusivos.
Usualmente, como dito acima, as esferas são em número de oito (os sete planetas do
sistema solar (hebdomas) mais a camada das estrelas fixas), mas em muitos sistemas
gnósticos há uma tendência a multiplicar essa estrutura, fazendo o esquema expandir-se
notavelmente, até o ponto em que as esferas, ou “céus”, são contados em centenas.
Independentemente do número de esferas, todavia, o panorama geral é a de uma imensa
vastidão que separa o homem do Outro Mundo e de sua verdadeira natureza divina. Essa
vastidão não se mede apenas por uma distância espacial, mas, sobretudo, pela atuação
constante de forças demoníacas. A vastidão e a multiplicidade do sistema cósmico
expressam o quão distante de Deus, e de sua própria essência, está o homem. Daí decorre
toda uma antropologia filosófica e um sistema moral que merecem ser mais bem
examinados no próximo artigo.

O que é o gnosticismo? (Parte 3)


September 11, 2019

“A soteriologia gnóstica é elitista: ela presume que a salvação só está disponível a um


segmento privilegiado da humanidade” (Luciano Pellicani, Revolutionary Apocalypse:
Ideological Roots of Terrorism)

Vimos, no artigo anterior, que a antiga cosmologia gnóstica era geocêntrica, concebendo a
Terra como o centro do universo, rodeada por esferas governadas pelos Archons –
potestades mesquinhas e ciumentas que criaram e governam o mundo. Ao fim do artigo,
prometemos extrair as consequências antropológicas e morais dessa cosmologia, e é o que
faremos a seguir.
As esferas são, portanto, os tronos dos Archons, que dominam o mundo de forma coletiva
(e cada um, individualmente, em sua própria esfera), atuando como carcereiros cósmicos.
Seu regime tirânico (e, por vezes, o cosmos-prisão como um todo) é frequentemente
designado como heimarmenē, palavra grega para “destino”, compreendido
especificamente como sujeição humana a forças incontroláveis e caprichosas. Na condição
de guardião de sua esfera, cada Archon bloqueia a passagem da alma que procura ascender
após a morte, assim evitando a sua fuga do mundo, e o consequente retorno a Deus.
Os Archons são também os criadores do mundo, ainda que, em algumas correntes do
gnosticismo, essa prerrogativa seja reservada a uma liderança única, o demiurgo – artífice
do universo, segundo o Timeu de Platão. No gnosticismo clássico, o demiurgo costuma ser
retratado de forma negativa, com as características pretensamente implacáveis de Javé, o
Deus do Antigo Testamento, com quem os homens mantêm uma relação de rivalidade e
hostilidade.
A cosmologia gnóstica é inseparável de uma antropologia para a qual o homem é um
prisioneiro por excelência, primeiro do cosmos, mas também do seu próprio corpo.
Segundo essa antropologia, o homem é feito de carne/matéria corporal (hyle), alma
(psyche) e espírito (pneuma). As suas carne e alma respondem por sua natureza mundana,
enquanto o seu espírito é um resquício de sua origem extramundana, ou, mais
precisamente, divina. Assim, tanto o corpo quanto a alma são tidos por frutos decaídos das
potestades cósmicas. E é graças a eles, corpo e alma, que o homem se mantém preso ao
mundo, restando sujeito às forças imprevisíveis do destino.
Encapsulado no corpo e na alma está o espírito (pneuma), também chamado de “centelha”
– uma porção da substância divina que, originária do além, despencou no mundo atual.
Foi para nele manter aprisionada a centelha divina que os Archons criaram o homem. Se,
no plano macrocósmico, o homem acha-se enclausurado pelas esferas celestes, no plano
microcósmico, o pneuma está encarcerado dentro do corpo e alma humanos. Em seu
estado não-redimido, o pneuma está imerso na alma e na carne, inconsciente de si próprio,
amortecido, adormecido ou intoxicado pelo veneno do mundo – em suma, ignorante. O
seu despertar e a sua redenção dependem da gnose, pois o gnóstico só se liberta do
cosmos-prisão quando compreende o pneuma como a essência do seu verdadeiro ser.
A formação de vanguardas é, precisamente, um fenômeno típico dos movimentos
revolucionários, tanto medievais quanto modernos
A natureza radical do dualismo gnóstico também determina a sua escatologia. Se o Deus
transcendente é estranho a este mundo, o pneuma também o é, e todo o esforço gnóstico
consiste em libertar a essência humana das grades do mundo hostil, fazendo-a retornar ao
reino originário da luz. A condição necessária para tanto é que o gnóstico adquira
conhecimento do Deus transmundano e da sua própria situação. O que impede essa
tomada de consciência – ou insight gnóstico – é a ignorância (agnoia), a essência mesma
da existência mundana. O Deus transcendente é desconhecido neste mundo, sendo
impossível conhecê-lo por meio deste. Exige-se, para tanto, alguma forma de revelação,
necessidade fundada na própria condição humana perante o cosmos. A revelação altera
essa situação em seu aspecto central – a ignorância. Portanto, já é, ela mesma, parte
decisiva no processo de salvação.
Quem carrega a mensagem de salvação é um mensageiro do reino transcendente da luz,
que atravessa as esferas cósmicas, sobrepuja os Archons, desperta o pneuma de sua
letargia mundana e lhe transmite a gnose sobre o caminho de volta a Deus. Equipada com
essa gnose esotérica, e após a extinção da carne, a alma inicia a sua ascensão, deixando
para trás, a cada esfera cósmica ultrapassada, as “vestimentas” psíquicas responsáveis por
seu aprisionamento. Com isso, despido de todas as amarras mundanas, o pneuma alcança
o Deus transmundano, reunindo-se novamente à substância divina original. De um ponto
de vista teológico, o processo faz parte da restauração de uma totalidade divina perdida, e é
a fim de recuperar a “centelha divina” decaída que os mensageiros supracósmicos intervêm
na história.
Como nota Hans Jonas, a cosmovisão gnóstica tem implicações profundas sobre o campo
da moralidade. Em sua vida mundana, o pneumático (ou seja, o portador da gnose) vê-se
como um ser apartado do conjunto da humanidade. A moralidade gnóstica é marcada pela
hostilidade ao mundo, bem como por um profundo desprezo por todo vínculo mundano.
Desse princípio geral costumam derivar duas atitudes existenciais opostas, mas no fundo
complementares: o ascetismo e a permissividade.
O gnóstico ascético deduz da posse da gnose a necessidade de evitar a contaminação pelo
mundo, procurando reduzir ao mínimo o seu contato com a realidade atual. Do mesmo
princípio, o gnóstico permissivo deriva o privilégio autoconcedido da liberdade absoluta.
Não é mero acaso que, no decorrer da história, diversas correntes gnósticas tenham
lançado ataques frontais aos mandamentos mosaicos, com suas conhecidas fórmulas
imperativas do tipo “Farás” e “Não farás”, compreendidas, nessa perspectiva, como
manifestações da tirania cósmica. Para o gnóstico, as sanções associadas à transgressão
desses mandamentos só podem afetar o corpo e a alma, ou seja, os elementos mundanos
da natureza humana. Todavia, uma vez que o pneumático não está submetido ao
heimarmenē (o “destino”), ele se sente liberto do jugo da lei moral. A ele, diria Dostoievski,
tudo é permitido, pois o pneuma desperto torna-o imune aos cruéis desígnios dos Archons.
É o tipo permissivo, mais que o ascético, quem revela com nitidez o aspecto niilístico
presente na negação gnóstica do mundo. De todo modo, ascese e permissividade são duas
faces de uma mesma moeda, cunhada na forja do anticosmismo. Odiando o mundo atual, o
ascético pretende fugir para um outro; odiando-o não menos, o permissivo só é mais
impaciente, pretendendo transformá-lo por completo, à imagem de uma realidade futura
que ele imaginar conhecer, e à qual crê pertencer de antemão.
Em The Pursuit of the Millennium, Norman Cohn – que não trata diretamente do
gnosticismo, mas do milenarismo medieval – parece dar razão a Hans Jonas. Escrevendo
sobre uma heresia cristã dos séculos 13 e 14 conhecida como “Espírito Livre”, o autor
ressalta o seu caráter gnóstico, conferindo-lhe um lugar de destaque no conjunto das
escatologias revolucionárias que, dali em diante, viriam a se alastrar por toda a Europa.
Os heréticos do “Espírito Livre” eram místicos anárquicos, propondo uma afirmação tão
impetuosa da liberdade que, nas palavras de Cohn, acabou resultando na “negação total de
qualquer tipo de comedimento ou limitação”. De certa forma, podem ser considerados
precursores remotos de Bakunin e Nietzsche. Nas palavras de Cohn: “Individualistas
extremos como esses podem facilmente se converter em revolucionários sociais – e assaz
efetivos – quando em face de uma situação potencialmente revolucionária. O Super-
Homem de Nietzsche, não importa o quão vulgarizado, certamente povoou a imaginação
de muitos dos ‘boêmios armados’ que fizeram a revolução nacional-socialista; e vários dos
expoentes da revolução mundial contemporânea devem mais a Bakunin do que a Marx. Na
baixa Idade Média, foram os adeptos do Espírito Livre que conservaram, como parte de
seu credo na emancipação total, a única doutrina revolucionária então existente. E foi a
partir de suas ideias que surgiram doutrinários para inspirar a tentativa mais ambiciosa de
revolução social que a Europa medieval já havia testemunhado”.
A descrição dos livre-espiritualistas oferecida por Cohn ilustra exemplarmente o tipo
permissivo de gnóstico descrito por Jonas. Os adeptos do “Espírito Livre” eram
extremamente subjetivistas, não reconhecendo outra autoridade que não a de suas
próprias experiências pessoais. Em sua visão, a Igreja era um obstáculo à salvação, quando
não um inimigo tirânico, instituição ultrapassada que deveria ser substituída por uma
comunidade dos “santos”, concebida como um vaso ou receptáculo para o Espírito Santo.
Observando a autoimagem dos livre-espiritualistas, é possível compreender melhor a
persona do moderno revolucionário ocidental. Como explica Cohn: “O núcleo da heresia do
Espírito Livre está na atitude do adepto para consigo mesmo: ele acredita ter alcançado um
estado tão absoluto de perfeição que passa a se ver como incapaz de pecar. Embora as
consequências práticas dessa crença possam variar, uma delas é certamente o
antinomianismo ou o repúdio a normas morais. O ‘homem perfeito’ pode sempre concluir
que lhe é permitido, ou mesmo mandatório, fazer tudo aquilo comumente proibido aos
demais”.
Cohn nota ainda que, para os heréticos do “Livre Espírito”, não há realmente uma oposição
entre ascese e permissividade, já que ambas as atitudes constituem etapas diferentes de
um contínuo progresso espiritual: a ascese prepara o caminho para a mais completa
permissividade moral. Para os livre-espiritualistas, a fase final de desenvolvimento do
espírito era a união completa do homem com Deus, sendo que, a partir de então, os seus
atos estariam acima de todo juízo humano, tidos por manifestações diretas do princípio
divino. Como escreve o autor: “Essa deificação da alma é possível porque a alma existiu em
Deus por toda a eternidade. A alma é indistinta de Deus, assim como a chama, do fogo. Ela
provém de Deus, e a ele retorna como uma gota d’água vem e retorna ao mar. Com efeito,
Deus é tudo o que há. Assim, ao ser aniquilada em Deus, a alma é reintegrada ao seu ser
verdadeiro e originário”.
A formulação de Cohn sobre os livre-espiritualistas corresponde também à criação
dostoievskiana do “homem-ideia”, pela qual o romancista russo buscava descrever a
autopermissividade dos niilistas e revolucionários do século 19. E remete também, é claro,
àquela sensação quase auto-hipnótica conferida pela posse do pneuma, sobre a qual falava
Hans Jonas ao escrever sobre a moralidade gnóstica.
Uma consequência importante dessa percepção gnóstica deve ser destacada. Como nota
Jonas, há no gnosticismo a ideia de um insight que separa o seu portador (ou portadores)
do resto da humanidade. Trata-se, portanto, de uma percepção da realidade que conduz à
formação de elites ou vanguardas revolucionárias, abrangendo todos os porta-vozes do
futuro transfigurado. A formação de vanguardas é, precisamente, um fenômeno típico dos
movimentos revolucionários, tanto medievais quanto modernos. E, como veremos no
próximo artigo, reside aí a diferença crucial entre a mística gnóstico-milenarista-
revolucionária e a doutrina cristã, que rasgou o véu do templo, desafiou o farisaísmo e
rejeitou o tipo de soteriologia elitista característica do gnosticismo.

O que é o gnosticismo? (parte final)


September 18, 2019

“Falei abertamente ao mundo; sempre ensinei nas sinagogas e no templo, onde todos os
judeus se reúnem. Nada disse em segredo” (João 18:20)

Terminamos o artigo da semana passada apontando para o caráter essencialmente elitista


e antropocêntrico da soteriologia (isto é, a doutrina da salvação) gnóstica, uma
característica que, de alguma maneira, foi herdada pelo milenarismo medieval e, mais
tarde, secularizada, pelas religiões políticas revolucionárias da modernidade. Trata-se de
uma soteriologia fundamentalmente distinta da tradicional doutrina cristã da salvação,
essencialmente teofânica e universalista. Como explica, em obra clássica, o historiador
judeu J. L. Talmon: “Neste respeito, todas as tendências messiânicas consideraram o
cristianismo, e por vezes a religião como tal, mas sempre a forma histórica do cristianismo,
como seu arqui-inimigo. De fato, sempre se proclamaram seus substitutos. Suas próprias
mensagens de salvação eram agudamente incompatíveis com a doutrina básica cristã, a do
pecado original, com sua visão da História como a história da queda e a negação do poder
humano de obter salvação por seu próprio esforço”.
A diferença entre o conhecimento (gnosis) e a fé (pistis), que havíamos visto de passagem
anteriormente, ajuda-nos a perceber a distinção. A gnosis é sempre um conhecimento
iniciático, secreto, restrito a um grupo seleto de pessoas: os gnósticos, ou pneumáticos. A
pistis, ao contrário, representa a experiência do senso comum, a fé na verdade revelada,
em forma carnal, aos homens de “todas as nações, tribos, povos e línguas” (Apocalipse
7:9).
Comentando sobre a oposição, oriunda dos primórdios do cristianismo, quando a nova
religião começava a se definir doutrinariamente, o filósofo Jerry S. Clegg explica: “Todos os
participantes nas disputas teológicas nos primeiros séculos da era cristã concordavam
sobre quem era Jesus… Não concordavam, todavia, sobre o modo como a salvação seria
alcançada. Com efeito, o debate da época girava em torno da questão sobre que tipo de
religião era o cristianismo. O caminho percorrido pelo cristão devoto seria o dá fé (pistis)
ou o do conhecimento (gnosis)? No primeiro caso, o cristão teria de ser um bom crente –
alguém convicto de que a lealdade devocional a uma divindade pessoal capaz de responder
à prece, ouvir a confissão e garantir o perdão dos pecados é a chave para a salvação. No
segundo, o cristão deveria ser um bom conhecedor – alguém com a fórmula correta de
como salvar a si mesmo. Naquele, é Jesus quem salva. Neste, é o conhecimento da
verdade”.
A negação da fé em nome de um conhecimento de Deus que se confunde, no fim das
contas, com um autoconhecimento (afinal, no gnosticismo, se autoconhecer é descobrir a
existência de um Deus interior, a “centelha” ou pneuma) constitui o trajeto que liga, num
primeiro momento, o gnosticismo ascético ao gnosticismo político e, num segundo
momento, o gnosticismo como um todo aos milenarismos medieval e moderno. E é justo
essa negação que diferencia o gnosticismo e o milenarismo do cristianismo, do qual são, no
sentido mais técnico do termo, heresias.
A disjunção absoluta entre a imanência e a transcendência, entre o tempo e a eternidade
(tal como proposta pelos sistemas gnósticos mais radicalmente dualistas), é a
contrapartida da conjunção absoluta entre o tempo e a eternidade (tal como proposta pelo
milenarismo). Ambos os casos representam extremos opostos à escatologia cristã, que,
nesse sentido, propõe uma tensão permanente entre o tempo e a eternidade, mantendo a
matéria e o espírito, por assim dizer, a uma boa distância: nem irremediavelmente
apartados, nem absolutamente confundidos. O cristianismo não propõe uma fuga do
tempo em direção à eternidade, nem tampouco uma realização da eternidade no tempo.
Em lugar disso, sugere uma relativização do tempo a partir da eternidade. Como na
célebre fórmula latina, trata-se de encarar o tempo sub specie aeternitatis, ou da
perspectiva da eternidade.
Ao contrário do dualismo gnóstico-milenarista-revolucionário, o dualismo cristão não é
radical, mas, por assim dizer, paradoxal. A antropologia daí resultante é realista, não
utópica. A encarnação de Cristo é a materialização dessa tensão cristã entre a
transcendência e a imanência. Como explica o teólogo Joe E. Morris: “A heresia implica
uma falta de tensão dialética. O dualismo, ou heresia, destrói a tensão. Nesse sentido, é
irrealista e dado à fantasia. O dualismo reflete uma simplificação extrema da realidade.
Fala do bem sem falar do mal, do divino sem falar do humano, da alma sem o corpo, do
espírito sem a matéria. A encarnação significa, e mantém, a tensão dialética. Rejeita a
fantasia, o sentimentalismo, a superficialidade e o wishful thinking. Aceitar a encarnação
significa deixar de ver o mundo como gostaríamos que fosse, e passar e vê-lo como é.
Significa ser capaz de balancear ou pesar o bem e o mal, o espírito e a carne, a luz e a
escuridão, a alma e o corpo. Com a encarnação, podemos falar das polaridades normais da
vida, porque fazem parte do todo. A demanda definitiva dessa unidade de contrários, o
desafio último da fé, é o Deus feito homem, Jesus Cristo. Porque se baseia no
conhecimento e na ausência de tensão dialética, o dualismo não requer um salto de fé. Já a
encarnação, sim. Com ela, já não temos respostas claras. Eis a demanda e o desafio da
encarnação, da fé. É uma aventura arriscada, uma peregrinação pelo mundo, cuja única
garantia é Emanuel, Deus conosco. Trata-se de um envolvimento com o mundo, e não de
uma fuga fantasmagórica do mundo”.
Como nota Norman Cohn em obra já citada por mim, o milenarismo pode assumir as mais
diferentes feições, que variam do ascetismo pacifista e absolutamente espiritualizado ao
militantismo mais agressivo e materialista. A despeito de suas diferenças, contudo, todas
estão enraizadas numa percepção essencialmente negativa do mundo e,
consequentemente, num conceito particular de salvação. Segundo Cohn, a salvação
milenarista deve ser: 1) coletiva, destinada à comunidade dos “eleitos” ou “ungidos”; 2)
mundana, prevista para se realizar neste mundo, e não no outro; 3) iminente, uma vez que
se dará num tempo próximo e de forma súbita; 4) total, na medida em que promoverá uma
transformação completa da vida na terra, visando não apenas ao aperfeiçoamento do
presente, mas nada menos que à própria perfeição; e, por último, 5) miraculosa, no sentido
de ser realizada com o auxílio de agentes sobrenaturais.
Segundo Eric Voegelin, uma tensão entre duas visões antagônicas surge já nos primórdios
do cristianismo, ainda indefinido entre uma nova religião e um movimento messiânico
judeu. As primeiras comunidades cristãs oscilavam entre a expectativa escatológica da
Parousia – a “segunda vinda de Cristo”, que instauraria o Reino de Deus na terra – e a
concepção da Igreja como a realização histórica do Apocalipse. Uma vez que a Parousia
não ocorreu naquele momento, a Igreja evoluiu de uma escatologia do Reino de Deus na
história para uma escatologia fundamentalmente transmundana e trans-histórica. Para
Voegelin, essa evolução significou a separação entre a essência religiosa do cristianismo e a
sua origem histórica
O grande problema do cristianismo primitivo foi o de como conciliar os movimentos
quiliastas com a ideia de uma existência permanente da Igreja. Afinal, se o cristianismo
fosse assentado sobre o desejo de libertação desse mundo, se os cristãos vivessem na
expectativa constante do fim da história e da instauração iminente do Reino de Deus sobre
a terra, a Igreja estaria reduzida a uma comunidade efêmera de homens eternamente à
espera, aguardando ansiosos que o grande evento pudesse ocorrer durante o curso de suas
vidas.
A principal solução teórica para a questão foi proposta por Santo Agostinho em A Cidade
de Deus, obra que representa um verdadeiro tour de force na história da exegese cristã. No
capítulo 7 do Livro 20, Agostinho escreve sobre as “duas ressurreições” referidas nas
Sagradas Escrituras: a da alma, que tem lugar no tempo histórico; e a do corpo, que
ocorrerá no Fim dos Tempos, com o Juízo Final. Diz o filho de Santa Mônica: “No livro do
Apocalipse, João, o evangelista, também falava dessas duas ressurreições; mas falava de tal
modo que a primeira delas foi mal compreendida por algumas pessoas, sendo, ademais,
convertida em fábulas ridículas… A partir dessa passagem, alguns entenderam que a
primeira seria uma ressurreição corporal. Ficaram particularmente excitados, entre outras
razões, pela referência aos mil anos”.
Agostinho tinha em mente a passagem no livro do Apocalipse em que o apóstolo João cita
os homens (em especial, os mártires) cujas almas reinariam com Jesus “durante mil anos”.
O bispo de Hipona propõe, então, uma interpretação perspicaz para o sentido da expressão
“mil anos”. Agostinho sugere que o número deve ser entendido como representando a
totalidade do tempo histórico, simbolizada, como é usual nas Sagradas Escrituras, por um
número inteiro. Portanto, ao falar em “mil anos”, João estaria se referindo ao reino de
Cristo em sua Igreja no presente saeculum, que duraria até o Juízo Final.
Agostinho formulava o sentido especificamente cristão da relação entre tempo e
eternidade, pois, ao contrário do que postula a escatologia gnóstico-milenarista-
revolucionária, o Juízo Final cristão não é concebido como um evento do tempo histórico,
mas como a contemplação da temporalidade inteira (os “mil anos”) pela Eternidade. Mais
tarde, no século 4, essa interpretação seria elaborada por Boécio, que definiu a eternidade
como “a posse plena e simultânea de todos os momentos do tempo”. Ou seja, a eternidade
é a estrutura da possibilidade universal do tempo. Quando São Paulo diz que “n’Ele
vivemos, nos movemos e somos” (Atos, 17: 28), está descrevendo precisamente a relação
metafísica entre tempo e eternidade, na qual Deus aparece como moldura das ações
humanas na história.
Diante disso, percebe-se o quão distante a escatologia cristã está das heresias que o
parasitaram, cujas manifestações intelectuais modernas são exemplificadas pelas mais
variadas filosofias da história – seja a de Hegel, a de Comte, a de Marx, ou a de Fukuyama
–, que, independente de suas orientações ideológicas e teóricas específicas, buscam
apreender um sentido da história imanente a essa mesma história. Mas como uma criatura
histórica, para quem a história é totalmente aberta e indefinida, poderia apreender, de
dentro dela, o seu sentido integral? A única resposta possível é: projetando uma Utopia e
julgando-a mais real do que a realidade atual. Nada mais gnóstico: incerteza e angústia em
relação ao estado presente de coisas, convicção e júbilo em relação ao outro mundo, seja
ele metafísico e permanente (como nos dualismos gnósticos clássicos), ou localizado num
futuro histórico iminente (como nas utopias milenaristas e revolucionárias).
Se o Juízo Final bíblico sinaliza a passagem do tempo à Eternidade, o Apocalipse
revolucionário é descrito como um momento do tempo histórico, momento singular, sem
dúvida, pois considerado o ponto culminante de toda a história passada. Se, na escatologia
cristã tradicional, os homens são iguais nesse mundo e serão separados apenas na
Eternidade, na escatologia gnóstico-milenarista-revolucionária, os homens são separados
aqui e agora, pois os “eleitos” agem de antemão como juízes da história, em razão de terem
vislumbrado, por sobre os ombros do restante da humanidade impura, a luz que vem de
Utopia.
Revisitando Eric Voegelin e o gnosticismo
June 12, 2019

Quem já travou contato com a obra do filósofo Eric Voegelin sabe que um dos seus insights
mais interessantes (expresso sobretudo em A nova ciência da política e Ciência, política e
gnosticismo: Dois ensaios) foi a análise dos movimentos de massa do século 20 à luz do
gnosticismo – nome que designa um sem-número de heresias cristãs dos primeiros séculos
de nossa era. Numa proposta ousada, o autor chegou a cunhar o termo “gnosticismo
moderno” para se referir a movimentos políticos tais como comunismo e nazismo, e
também a movimentos intelectuais massificados, tais como psicanálise e marxismo.
Ocorre que o próprio termo “gnosticismo” nunca deixou de suscitar controvérsia entre
especialistas. Muitos argumentam que a palavra não era utilizada antes do século 17, e que
a sua aplicação irrestrita a fenômenos muito antigos seria extemporânea e artificial.
Ademais, e de maneira complementar, outros criticam o emprego abusivo da palavra, sob o
argumento de que, utilizada como foi das maneiras as mais elásticas, tudo o que fez foi
gerar confusão quanto ao seu sentido preciso.
Numa obra em que propõe nada menos que o abandono do termo, por exemplo, o
estudioso de religião comparada Michael Allen Williams cita os comentários sarcásticos do
historiador romeno Ioan Culianu, grande estudioso de religiões antigas: “Acreditei outrora
que o gnosticismo fosse um fenômeno bem definido, pertencente à história religiosa da
Antiguidade... No entanto, logo descobriria estar sendo ingênuo... De intérpretes
autorizados da gnose, soube mais tarde que a ciência é gnóstica, assim como a superstição;
o poder, o contrapoder e a ausência de poder são gnósticos; a esquerda é gnóstica e a
direita é gnóstica. Hegel é gnóstico, tal qual Marx. Freud é gnóstico, e também Jung. Todas
as coisas e os seus contrários são igualmente gnósticos”.
Foi por essas e outras que, desde o início, a associação proposta por Voegelin entre
fenômenos tão distantes no tempo, além de aparentemente tão díspares, gerou muitas
críticas. Um grande número de intelectuais não conseguiu ver qualquer conexão evidente
entre uma série de antigas especulações teológicas e místicas, mal acomodadas sob um
mesmo nome, e um mundo moderno progressivamente secularizado. Sob esse ponto de
vista, a tese voegeliana afigurava-se como arbitrária e forçada. Alguns críticos mais afoitos
– como, por exemplo, o teólogo Thomas Altizer – não hesitaram em afirmar
grosseiramente que “o professor Voegelin acha que tudo é gnóstico”.
Uma crítica menos pueril à interpretação voegeliniana foi redigida pelo filósofo político
John Gray, para quem “a política moderna é um capítulo na história da religião” –
afirmação não muito distante da posição do próprio Voegelin. Ocorre que, para Gray, é o
milenarismo medieval, antes que o gnosticismo, o pai das modernas religiões políticas de
nossa história (entre as quais o autor inclui a Revolução Francesa). O milenarismo – que,
segundo o autor, seria uma decorrência direta da escatologia cristã (tese, essa sim, com a
qual Voegelin dificilmente concordaria) – consiste na projeção de um paraíso terreno no
qual as imperfeições humanas e os males sociais serão para sempre corrigidos por
intermédio de Deus, do Espírito Santo e, sobretudo, da própria ação humana. Trata-se da
ideia do fim da história e da instauração do reino de Cristo, que, segundo a tradição
milenarista, retornaria à Terra e “reinaria por mil anos” (daí a origem do termo). O
fenômeno teria recrudescido entre os séculos 11 e 16, quando vários movimentos de massa
eclodiram por toda a Europa, baseados, de um modo ou de outro, na expectativa de
apressar o Juízo Final (ver, sobre isso, The pursuit of the millennium, de Norman Cohn).
A partir da Reforma, prossegue Gray, o fenômeno intensificou-se, quando líderes radicais e
messiânicos como John de Leiden (1509-1536), John Knox (1514-1572) e Thomas Münzer
(1490-1525) lideraram grupos de camponeses revoltosos em conflitos sangrentos, naquilo
que se pode considerar como uma espécie de antecipação do projeto comunista.
Para o autor, a escatologia fatalista típica do milenarismo cristão, raiz dos milenarismos
políticos modernos, está ausente no gnosticismo. Ao contrário dos milenaristas medievais,
os gnósticos jamais projetaram uma utopia. A salvação que buscavam era de tipo ascética
(em certo sentido, epicurista), consistindo na fuga do mundo cruel em que se percebiam
aprisionados, mediante um conhecimento esotérico sobre sua verdadeira condição.
Gray afirma não haver no gnosticismo nenhuma proposta de acelerar ou instaurar o fim
dos tempos. Os gnósticos entendiam a salvação como aquisição individual (e não coletiva,
como no milenarismo), que envolveria mais uma libertação do mundo (ou do tempo) do
que propriamente o seu fim.
Embora, no geral, seja um autor muito perspicaz, Gray parece-me equivocado nesse ponto.
Primeiro, por desconsiderar que tanto a fuga do mundo quanto a sua eliminação (ou a sua
transformação, como preferem os milenaristas seculares da modernidade) dependem de
uma mesma atitude existencial: a hostilidade diante do mundo, ou – na expressão cunhada
por Albert Camus em O homem revoltado – “revolta metafísica”. Essa revolta está na raiz
dos movimentos revolucionários da modernidade, passando pelo milenarismo medieval, e
começa com o anticosmismo dos antigos gnósticos (um fenômeno há muito notado, entre
outros, por Plotino).
Foi esse anticosmismo que Voegelin destacou como o elemento contínuo subjacente à
imensa variedade de manifestações gnósticas ao longo da história. Sim, é fato que, já no
tempo dos primeiros Pais da Igreja, as seitas gnósticas eram tidas por “tão numerosas
quanto as cabeças da Hidra de Lerna” (na formulação de Santo Irineu). Contudo, se de um
ponto de vista estritamente ideológico e doutrinal seria impraticável discernir qualquer
unidade significativa por baixo de tamanha diversidade, é possível abordar o fenômeno a
partir de um nível mais profundo que o das formulações explícitas, crenças e práticas
gnósticas. E foi o que fez Voegelin. Em lugar de uma história das ideias, o filósofo alemão
propôs foi uma fenomenologia do gnosticismo, uma vez que, em suas próprias palavras, “a
substância da história deve ser buscada ao nível das experiências, não ao nível das ideias”.
Voegelin percebeu muito bem que, se há algo de constante nos movimentos gnósticos dos
primeiros séculos de nossa era até os dias de hoje, esse algo está presente na própria
percepção gnóstica da estrutura do real, e não em exegeses ou simbolismos específicos, que
não passam de elaborações a posteriori – doutrinas abstratas passíveis de formulação
racional – de uma percepção pré-racional da realidade.
Mais equivocada ainda é a opinião de Gray segundo a qual “nenhum pensador gnóstico
vislumbrava um mundo no qual a vida humana já não seria sujeita ao mal”. O retorno
gnóstico ao reino primevo da luz significa precisamente um retorno a esse universo idílico,
livre de todo o mal – identificado, no caso, à condição de agnoia (ignorância mundana).
Esse retorno é possibilitado pela gnose, a mensagem de salvação, que informa ao homem
sobre sua condição de prisioneiro neste mundo, bem como sobre os meios de sua
libertação. Como escreveu o sociólogo italiano Luciano Pellicani: “O gnosticismo é a
tradição de pensamento soteriológico surgida inicialmente no Cristianismo primitivo,
reemergindo periodicamente, tal qual um fluxo subterrâneo, do subsolo da civilização
ocidental”.
Sentindo-se infeliz e angustiado neste mundo, o gnóstico acredita que o seu destino
verdadeiro é a felicidade e a plenitude que o aguardam no outro mundo, um lugar em que
jamais esteve, mas do qual, mesmo assim, acredita ter sido injustamente expulso. Pouco
importa que esse outro mundo seja um domínio transcendente e fora do tempo (tal qual o
Pleroma do gnosticismo clássico), ou um futuro glorioso (como nas modernas filosofias da
história). Importa é que, para o gnóstico, a infelicidade, mesmo sendo uma condição atual,
não é a condição real e essencial do homem. O gnóstico não aceita o mal com naturalidade:
escandaliza-se. E, como sugere o filósofo húngaro Thomas Molnar, o escândalo com a
presença do mal no mundo – ou, em outras palavras, com a própria estrutura da realidade
– é um dos traços distintivos das utopias. Para o gnóstico, a realidade é apenas um
momento de angustiante espera, um terrível local de passagem que o separa de sua
verdadeira natureza divina.
Portanto, Gray equivoca-se ao desprezar as dimensões utópica e política do gnosticismo.
Em que pese a sua afirmação de que a salvação gnóstica é individual e não coletiva, resta
claro que todo gnóstico é impelido a passar sua experiência adiante, com uma
consequência política inevitável: a atração de seguidores que, frustrados com a “primeira
realidade” pelos mais variados motivos, e ansiosos por uma “segunda realidade” (na
expressão do romancista Robert Musil), prostram-se como que hipnotizados diante da
dominação carismática dos profetas gnósticos. Foi exatamente o que aconteceu com os
mestres gnósticos Simão de Samaria, Valentim de Alexandria e Basílides de Alexandria,
que, nos primeiros séculos da era cristã, atraíram multidões de seguidores.
Como explica o filósofo alemão Hans Jonas no clássico The gnostic religion: “Em sua vida,
os pneumáticos, que é como chamam a si próprios os portadores da gnose, estão apartados
da grande massa da humanidade. A iluminação imediata não apenas torna o indivíduo
soberano na esfera do conhecimento (daí a ilimitada variedade de doutrinas gnósticas)
como também determina a esfera da ação”.
Se a análise de Gray despolitiza o gnosticismo, percebe-se que, na visão de Jonas, a gnose
não pode deixar de conduzir à ação humana de salvação e, portanto, à política. Portanto,
creio que o núcleo do messianismo político moderno, como precisamente sugere Voegelin,
encontra-se já no gnosticismo. Tanto os milenarismos medievais quanto os milenarismos
seculares (comunismo e nazismo, em particular) são desdobramentos de uma mentalidade
gnóstica, que pode ser compreendida como uma “experiência fundamental”, um “modo de
sentir”, uma “visão da realidade distintivamente característica” (como se exprime Hans
Jonas). O conceito de mentalidade gnóstica sugere um nível mais profundo de expressão
do que a diferenciação doutrinal e circunstancial poderia deixar entrever.
Mais do que um corpo doutrinal e simbólico, o gnosticismo parece ser uma disposição
existencial plena, que inclina o espírito a adotar uma postura sui generis em relação à
realidade. O gnóstico é dominado por um verdadeiro horror à existência, que o envolve em
perpétua sensação de angústia e incômodo. Para ele, o mundo atual é o domínio do
absurdo e da indiferença. O gnóstico está no mundo, mas não se sente pertencendo ao
mundo. Sua experiência é de abandono, solidão, impotência – em suma, alienação. “Sou
um estranho para a ordem existente das coisas” – dizia o jovem niilista russo Dimitri
Pisarev, como que saindo das páginas de Dostoievski –, “não devo misturar-me a elas”.
Dessa mentalidade que se escandaliza com o real nasce um sentimento inevitável de
autopermissividade, a tal ponto que escândalo e autopermissividade formam um
mecanismo de retroalimentação. Baseando-se no clássico Das leis da política eclesiástica,
do teólogo Richard Hooker (1554-1600), Voegelin mostra como o referido mecanismo
esteve presente de modo significativo no movimento puritano inglês durante os séculos 16
e 17. A obra de Hooker sobre o puritanismo na Inglaterra consiste num magistral estudo de
caso sobre a estrutura da mentalidade gnóstica, já em seu formato moderno e tipicamente
revolucionário.
Como sugere Voegelin, é possível especular que, com o movimento puritano, surge pela
primeira vez na história uma das armas mais eficazes utilizadas pelos revolucionários
gnósticos de ontem e de hoje: a noção de causa política. Para se iniciar qualquer
movimento político de tipo revolucionário, é preciso, antes de tudo, a presença imponente
de uma causa que tudo justifica. Nas palavra do filósofo: “De modo a avançar a sua ‘causa’,
o homem que a sustenta irá, diante da multidão, entregar-se a uma crítica severa dos males
sociais e, em particular, da conduta das classes altas. A repetição constante da performance
induzirá entre os ouvintes a opinião de que ele deve ser alguém de singular integridade,
zelo e santidade, pois apenas homens singularmente bons seriam capazes de se ofender tão
profundamente com o mal”.
Para o estudioso brasileiro, o insight de Voegelin deve ser sempre revisitado, sobretudo
porque a mentalidade gnóstica está mais viva do que nunca no Brasil contemporâneo. O
mecanismo escândalo-autopermissividade tem gerado todo tipo de “causa” (direitos dos
animais, direitos das minorias, feminismo, anticapitalismo, anarquismo, justiça social etc.)
utilizada como justificativa para a violência revolucionária e a reinvindicação do direito ao
crime. As ruas e as redes sociais estão coalhadas de jovens auto-hipnotizados por uma
crença cega na própria bondade e senso de justiça. Como ironizou certa vez o filósofo
canadense Charles Taylor: “Asseguramo-nos de nossa própria bondade por meio de uma
apaixonada atitude contra o mal. Combato a poluição, logo, sou puro”.

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