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Índice

Aula 1 - Iniciação à Ciência Sagrada

Aula 2 - O Gnosticismo e o Arianismo

Aula 3 -Santo Agostinho

Aula 4 – São Tomás de Aquino

Aula 5 - Duns Escoto e Guilherme de Ockham

Aula 6 – Martinho Lutero

Aula 7 – Conclusão da Parte histórica

Aula 8 – Definição e natureza da Teologia

Aula 9 – O "auditus fidei" e o "intellectus fidei"

Aula 10 – Os Lugares Teológicos

Aula 11 – A Teologia da Libertação e o pobre como lugar teológico

Aula 12 – A vocação eclesial do teólogo

Aula 13 – O relacionamento do teólogo com o Magistério

Aula 14 – Teologia e Mística

Aula 15 – Método de estudo de Hugo de São Vitor

Introdução ao Método Teológico - 1


Aula 1 - Iniciação à Ciência Sagrada

I. Apresentação

1. Objetivo do curso. — Tendo em vista as diretrizes do Magistério e as polêmicas com que hoje em dia se depara todo
fiel cristão, este curso propõe-se apresentar, de modo conciso e sumário, todas as principais disciplinas teológicas, a fim
de que o aluno, adquirida uma cultura teológica básica, possa ulteriormente se orientar e aprofundar na fé desde sempre
professada e ensinada pela Igreja Católica.

2. Estrutura do curso. — O curso compõe-se de duas partes. Na primeira (aulas 2 a 7), sob uma perspectiva diacrônica,
procuraremos situar e enraizar o aluno na Tradição da Igreja mediante uma breve e sintética revista da história da
teologia e das diversas escolas que encontraram na Verdade, que é Cristo, o seu fermento; o nosso intuito, com efeito,
será demonstrar a harmoniosa continuidade do pensamento teológico ao longo da história, a despeito das muitas
disputas e divergências entre autores e correntes. Na segunda parte (aulas 8 a 14), sob um olhar sincrônico, tentaremos
sistematizar as informações fornecidas na primeira e, por meio dum trabalho propriamente teológico, oferecer subsídios
positivos a respeito dos pressupostos da pesquisa em teologia.

Esta primeira aula será dedicada a estabelecer alguns conceitos e distinções elementares, a saber: divisões da teologia
em razão da matéria; semelhanças e diferenças entre teologia, filosofia e fé; pré-requisitos morais e sobrenaturais aos
que desejam aplicar-se ao estudo da sacra doctrina.

II. Introdução ao Método Teológico

3. Divisão da Teologia. — A Teologia, ciência sobrenatural que trata de Deus e de Suas obras na medida em que a Ele
se referem como princípio e fim [1], costuma dividir-se em diversas partes, que nada mais são do que modos específicos
de se perscrutar a Revelação [2]. Os três tratados teológicos capitais, dentre os quais nos ocuparemos nesse curso apenas
do primeiro, são:

1. Teologia Fundamental, ou Apologética, que se ocupa da credibilidade mesma da religião cristã e de seus
artigos. Chama-se, por isso, «ciência dos motivos de credibilidade»; trata-se de uma disciplina preparatória, em
que a inteligência humana, agora em contato com os dados revelados, procura razões para, depois de iluminada
pelo dom gratuito da fé e sob a moção da vontade, crer com fé divina e católica em Deus e, por força de Sua
autoridade, em tudo o que Ele próprio nos quis manifestar.
2. Teologia Dogmática, ou Sistemática, cuja finalidade é (a) teorética, enquanto reflexão sobre os dogmas da fé e
solução das dificuldades por eles suscitadas, e (b) polêmica, na medida em que, ao defender esses mesmos
dogmas, refuta as objeções que se podem aduzir contra a fé da Igreja [3]. É o que costumeiramente se entende
por teologia.
3. Teologia Moral, é dizer, «o estudo científico da atividade humana em relação, mediante os princípios da fé e da
razão, à consecução do fim último sobrenatural do homem.» [4]

Esses são os pilares básicos da teologia, ainda que haja, naturalmente, muitos outros campos de pesquisa, como, por
exemplo, a Teologia Pastoral, a Teologia Bíblica e suas ciências auxiliares, o Direito Canônico etc. À guisa de
introdução, contudo, estudaremos a seguir apenas alguns pontos-chaves de Teologia Fundamental.

4. Natureza científica da Teologia. — A Teologia se nos apresenta, antes de mais, como verdadeira ciência tanto
natural quanto sobrenatural e, portanto, distinta da fé em que se alicerça. Ora, a diferença radical entre filosofia e
teologia consiste no fato de que, embora ambas considerem a realidade dum ponto de vista global—diferentemente das
demais ciências, que se ocupam de determinada classe de entes—, a primeira serve-se tão-só das forças naturais da
razão, ao passo que a segunda utiliza a razão ilustrada pela luz sobrenatural da fé (sub lumine fidei supernaturali); numa
palavra, investiga as coisas na medida em que se podem conhecer à luz da Revelação Divina [5]. Podemos, portanto,
definir o conhecimento teológico como a sabedoria que «procede das verdades reveladas e conhecidas sob a luz
sobrenatural da fé» [6].

Introdução ao Método Teológico - 2


Feita esta precisão, notemos que a teologia atende às três condições que toda verdadeira ciência deve cumprir. De fato,
ela contém [7]:

1. princípios certos em que se possa basear, quer dizer, as verdades por Deus reveladas fazem as vezes de
premissas a partir das quais se podem inferir outras verdades;
2. método adequado a tirar conclusões a partir desses princípios;
3. capacidade de coligir tais conclusões num corpo coeso e unitário.

Além disso, trata-se aqui, como se afirmou acima, de uma ciência tanto natural quanto sobrenatural. Diz-se natural toda
ciência ou hábito que se adquire por um esforço meramente humano; ora, a teologia, enquanto ciência, exige um
empenho por parte do homem em extrair conclusões a partir dos dogmas da fé com apoio da razão e dum método
conveniente [8]. É também ciência sobrenatural sob tríplice título: (a) em razão de seu objeto, pois versa sobre verdades
reveladas; (b) em razão de sua luz, que é a da fé; e (c) em razão de adesão, porquanto, auxiliada pela mesma fé, a
teologia opera com mais segurança e nos ajuda a assentir com mais firmeza aos seus resultados [9].

5. Diferença entre Teologia e Fé. — A fé é uma virtude sobrenatural e infusa por Deus na alma. Com efeito, crer «só é
possível pela graça e pelos auxílios interiores do Espírito Santo» [10]; este dom recebido por Deus nos faz prontos e
dispostos a aquiescer firmemente a tudo quando Ele nos revelou, não porque «as verdades reveladas apareçam como
verdadeiras e inteligíveis à luz de nossa razão» [11], mas antes «por causa da autoridade de Deus que revela e que não
pode nem enganar-Se nem enganar-nos» [12].

Tendo isso presente, podemos distinguir a teologia da fé sob três aspectos: (a) objeto sobre o qual versam; (b) motivo
por que fazem aderir à verdade; (c) modo por que apreendem o seu objeto [13]. Esquematicamente,

 Objeto. A fé se ocupa de verdades divinamente reveladas; a teologia, dessas mesmas verdades e das conclusões
delas inferidas.
 Motivo. A fé crê por força da autoridade de Deus, ao passo que a teologia se baseia no valor e na coerência da
ilação lógica.
 Modo. A fê crê mediante um ato simples do intelecto; a teologia procede por meios discursivos (análise, síntese,
comparação e dedução).

6. Disposições necessárias aos estudos teológicos. — Assim como as práticas desportivas exigem do atleta um corpo
sadio e condicionado à atividade a que ele se quer dedicar, do mesmo modo as ciências pressupõem certos hábitos
intelectuais que predisponham o pesquisador a encontrar e abraçar de modo seguro a verdade; e isso se faz tanto mais
necessário quanto mais nobre é o objeto de que tratam as várias ciências. Ora, a ciência sagrada, por ter por objeto a
Deus mesmo, requer não apenas tais hábitos, mas, sobretudo, a fé sobrenatural e as disposições morais necessárias a
todo estudioso [14]:

I. Unidade de vida: a vida moral não pode divorciar-se da intelectual. A teologia é uma realidade eclesial, quer dizer, é
uma atividade feita na e em consonância com a Igreja, Corpo místico de Cristo. Com efeito, não é possível ser teólogo
sem um sincero e constante esforço por converter-se e configurar-se a Nosso Senhor, por guardar a fé recebida no seio
de Sua Esposa por ocasião do batismo, por buscar aproximar-se de Deus e tornar-se Seu amigo. O Cardeal Ratzinger
lembra-nos que

[...] a conversão é algo muito mais radical do que, digamos, a revisão de algumas opiniões e atitudes, é um processo de
morte. Dito com outras palavras, é uma mudança de sujeito, o eu deixa de ser um sujeito autônomo, um sujeito que
subsiste em si mesmo; ele é arrancado de si próprio e introduzido num novo sujeito. Não que o eu simplesmente
desapareça, mas, de fato, ele tem que deixar-se cair inteiramente para, em seguida, ser concebido novamente num eu
maior e juntamente com este. [15]

Trata-se, ademais, de[...] um processo sacramental, isto é, de Igreja. O passivo de tornar-se cristão exige o ativo da ação
da Igreja, onde a unidade do sujeito do fiel se apresenta corporal e historicamente e só a partir daqui é que pode ser
adequadamente entendida a palavra paulina da Igreja como corpo de Cristo, ela se identifica com o revestir-se de Cristo,
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com o ser revestido de Cristo em que essa nova veste que ao mesmo tempo protege e liberta o cristão é o corpo de
Cristo ressuscitado. Isso só é possível pelo batismo. [16]

A cisão entre vida e pensamento—vício hoje infelizmente alastrado em muitos meios acadêmicos—que hoje
experimentam muitos intelectuais e cientistas deve servir-nos de aviso de que não é possível fazer nem filosofia, nem
Teologia, nem ciência sem virtudes humanas e coerência.

II. Reta intenção: a motivação precípua do teólogo não deve ser outra senão o desejo ardente de promover a glória de
Deus e o zelo pela salvação de todas as almas. Assim resume o comentário ao Cântico dos Cânticos arrolado entre as
obras de São Bernardo: «Há quem deseje saber simplesmente por saber, e isto é vã curiosidade; há os que desejam
conhecer apenas para serem conhecidos, e isto é vaidade; há os que querem aprender a fim de vender sua ciência por
dinheiro ou honrarias, e isto é ganância. Há porém os que desejam conhecer para edificar os outros: é a caridade; há
também os que buscam o conhecimento a fim de se edificarem a si próprios: é a prudência.» [17]

III. Sincero amor pela verdade: ao defrontar-se com argumentos contrários à fé, o teólogo deve compreender e expô-
los conforme o sentido que os seus propugnadores lhes atribuem. Como adverte A. Tanquerey, «não faltam teólogos que
atenuam as objeções de seus contraditores a fim de mais facilmente as poder dirimir; ou que distorcem o sentido de
textos e fatos com o fito de responder sem embaraço; ou mesmo que dão demasiado crédito a argumentos meramente
prováveis. Ora, tudo isso é estranho à perfeita sinceridade [...]. A verdade, para defender-se, não precisa de nossas
mentiras.» [18]

IV. Humildade: fundada sobre a autoridade de Deus, a teologia demanda que obedeçamos docilmente às decisões do
Magistério e aceitemos os seus ensinamentos; exige-nos também reverência ao que sentem e ensinam os Santos e
Doutores da Igreja a respeito de determinado problema ou questão.

V. Perseverança: «a ninguém será possível progredir nos estudos teológicos, se não desejar aplicar-se-lhes constante e
ardentemente. Não se diga que nada há de novo a descobrir em matéria teológica; ainda que as verdades de fé sejam
perenes, podem sempre ser expostas e professadas de modos novos, mais adequados à linguagem dos homens do nosso
tempo.» [19]

Referências

1. Cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ, I, q. 1, a. 3.


2. Cf. A. Tanquerey, Synopsis Theologiæ Fundamentalis. Typis Societatis Sancti Joannis Evangelistæ. Paris: Descleé & Socii, 1943, t. 2, p.
189, n. 331.
3. Cf. A. Knoll, Institutiones Theologiæ Theoreticæ seu Dogmatico-Polemicæ. Augustae Taurinorum, ex Pontificia Typographia, Petri
Marietti, 1865, vol. 1, p. 4, §1.
4. Teodoro da T. Del Greco, Teologia Moral. Trad. port. de Mons. J. Lafayette Álvares e Pe. Estêvão Bêntia. São Paulo: Paulinas, 1959, p.
23.
5. Cf. A. Tanquerey, op. cit., p. 189, n. 332; v. G. Lahousse, Summa Philosophica ad Mentem D. Thomæ in Usum Alumnorum
Seminariorum. Lovanii, Car. Peeters, 1892, vol. 1, p. 2, n. 2.
6. I. Gredt, Elementa Philosophiæ Aristotelico-Thomisticæ. 13.ª ed., Barcelona: Herder, 1961, vol. 1, p. 3, n. 1: «Theologia procedit ex
veritatibus revelatis, sub lumine supernaturali fidei cognitis.»
7. Cf. A. Tanquerey, op. cit., p. 190, n. 333.
8. Cf. Id., p. 191, n. 336.
9. Cf. Id., p. 191, n. 337.
10. Catecismo da Igreja Católica, n. 154
11. Id., n. 156
12. DS 3008.
13. Cf. A. Tanquerey, op. cit., p. 191, n. 338.
14. Cf. Id., pp. 219-221, nn. 379-382.
15. J. Ratzinger, Natureza e Missão da Teologia. Trad. port. de Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p. 44 (grifo nosso).
16. Id., p. 45.
17. Serm. XXXVI in Cantic., 3 (trad. nossa).
18. A. Tanquerey, op. cit., p. 220, n. 380.
19. Id., p. 221, n. 382.

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Aula 2 - O Gnosticismo e o Arianismo

7. Recapitulação. — No fim da primeira aula, relacionamos quais as disposições necessárias ao católico interessado em
se dedicar aos estudos teológicos: unidade de vida, reta intenção, sincero amor pela verdade, humildade e perseverança.
Enfatizamos também o caráter eclesial da teologia, que, por essa razão, se desenvolve em estreita comunhão com o
Cristo total [1], ou seja, dentro da Igreja, Corpo místico cuja Cabeça é Nosso Senhor. Para isso, devemo-nos antes de
tudo associar à vida de Jesus [2], que no-la quis transmitir no seio de Sua Esposa pela regeneração do Batismo e a
frequência aos sacramentos. Ora, a fim de sermos a Ele unidos como ramos à videira (cf. Jo 20, 4-5), precisamos passar
por uma «morte» e revestir-nos d'Ele (cf. Gl 3, 27-28). A essa íntima conversão chama o Cardeal Ratzinger «mudança
de sujeito», processo sacramental de incorporação do fiel à Igreja [3]. Com efeito, o labor teológico implica ou antes
pressupõe sejamos crucificados com Nosso Senhor e possamos dizer com São Paulo: «Já não sou eu que vivo, mas é
Cristo que vive em mim.» (Gl 2, 20)

8. Introdução. — Dando agora início à parte histórica do nosso curso, iremos nesta segunda aula repisar alguns
caracteres dos dois principais erros que perturbaram a vida da Igreja ao longo dos quatro primeiros séculos de sua
peregrinação: (1) o gnosticismo, conjunto algo desordenado de ideias pagãs, e (2) o arianismo, heresia cristológica do
séc. IV d.C. Tanto um como outro nos devem imprimir mais profundamente no coração o que rememoramos há pouco e
será como que o fio condutor desta exposição—a teologia é amor à Verdade integral, tal como o Pai nos deu a conhecer
em Seu Verbo e nos ensina a Igreja Católica, e não a novidades ou preferências pessoais.

Procuraremos, pois, não nos deter em pormenores históricos, mas extrair destes fatos, na medida do possível, alguns
ensinamentos sobre quais tendências o teólogo deve evitar e qual a correta atitude de espírito diante das verdades que a
Igreja nos propõe.

A) O gnosticismo cristão

9. Origens. — Os choques entre a jovem e promissora religião cristã e as concepções pagãs que predominavam em todo
o mundo antigo recrudesciam à medida que a Igreja se expandia e alargava o número de seus fiéis [4]. Gozando de
relativa paz durante o império de Giordano (238-44) e Felipe, o Árabe (244-49), «qui primus de regibus Romanis
Christianus fuit», segundo o elogioso e talvez pouco preciso título que lhe confere São Jerônimo [5], a Igreja do terceiro
século vinha há tempos experimentando uma ebulição intelectual que despertaria a atenção de pensadores pagãos do
mais diverso cariz—neoplatônicos, neopitagóricos etc.—e das mais heterogêneas influências [6].

Se, por um lado, a história nos deixou poucos vestígios de apologias anticristãs anteriores ao reinado de Adriano (117-
138), sabemos, por outro, que é mais precisamente em meio ao governo de Marco Aurélio (161-180) que a filosofia
pagã, num afã de querer renovar-se e fazer frente à nova religião, começa uma «campanha sistemática contra as
doutrinas cristãs, procurando destruí-las ou ao menos desacreditá-las.» [7] Os escritos desdenhosos e depreciativos de
autores como Epiteto, Frontão, Galiano, Élio Aristides e, dentre os mais ferrenhos adversários, Porfírio, Luciano e
Celso, já permitiam entrever o feitio da guerra que preludiavam [8].

É nessa «efervescência de ideias» [9] que aquilo a que a historiografia das religiões—consagrando o apodo cunhado por
Irineu de Lião [10]—chamará, por comodidade e simplificação, «gnosticismo» começa a ganhar corpo e tomar as
feições por que hoje o reconhecemos. Os «gnósticos» (de γνῶσις, conhecimento, ciência) devem seu nome não só ao
espírito fortemente teorético e quase fantasioso em que envolviam suas especulações, mas também ao fato de se
gloriarem, pelo menos alguns deles, de possuir a verdadeira ciência a respeito de Deus e das coisas divinas [11]. Noutras
palavras, o perigo do gnosticismo consistia não tanto no ecletismo de suas fontes quanto no fato de se apresentar como
cristão; é compreensível, pois, a gravidade com que a Igreja teve de defender a fé de princípios que pretendiam
desvirtuá-la em nome da ortodoxia.

10. Características. — Ora, ainda que se não possa com facilidade reduzir a um sistema e determinar com clareza a
linha diretiva que orienta toda a literatura gnóstica [12], que, de resto, abrange obras simonianas, ofito-naassenas,
setianas, valentinianas, além de inúmeros escritos gregos, siríacos e coptas que refletem nalgum grau os ensinamentos
da «gnose majoritária», é-nos contudo possível apreender nesta complexa diversidade de materiais certos núcleos e

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nexos doutrinários essenciais que se podem identificar em quase todos os documentos que chegaram até nós. Em linhas
gerais, os traços comuns aos vários sistemas gnósticos são os seguintes:

1. Dualidade de princípios cosmogônicos: o dualismo gnóstico se expressa pela oposição fundamental e eterna
entre um princípio supremo e transcendental do bem, Deus, e uma suposta matéria primeira e informe (ὕλη),
entendida como causa do mal [13].
2. Emanacionismo: desse princípio do bem, abismo inescrutável e inacessível a nós, emanaria desde a eternidade
«por via de degradação» [14] uma série de entes intermediários, os éones, que participariam mais ou menos da
natureza divina conforme a distância a que se encontrassem de sua fonte primeira. Segundo alguns calculistas
esotéricos, o conjunto completo de éones, o chamado pleroma, compreenderia trezentos e sessenta e cinco graus
[15].
3. O problema do mal e o demiurgo: a explicação gnóstica da existência do mal no mundo decorre dos dois
pontos anteriores. Se, com efeito, Deus é o Bem por essência, Ele não pode ser a causa do mal; deve haver,
portanto, um outro princípio co-eterno que seja a razão de ser da maldade e da corrupção que presenciamos
nesta vida. De fato, ao longo de série de emanações, um éon ter-se-ia rebelado contra Deus e, em sua revolta,
criado o mudo material, «obra má e marcada pelo pecado.» [16]

Pode-se dizer que, em última análise, «o gnosticismo apoiava-se em duas ideias: a da sublime elevação de Deus, ideia
tomada dos judeus dos tempos mais próximos, para quem Javé se tornara infinitamente longínquo e misterioso [...], e a
da miséria infinita do homem e de sua abjeção.» [17] De fato, se bem consideradas, essas ideias, enquanto postura do
homem diante do seu destino e de sua condição mortal, são naturalmente anteriores à vinda de Cristo [18]; quando,
porém, se querem passar por cristãs, não apenas a doutrina mesma da Igreja se vê ameaçada, mas, sobretudo, a ordem
moral por ela ensinada.

Vejamos agora algumas das implicações em que a especulação gnóstica, baseada nesses três princípios fundamentais, se
contrapõe de modo ainda mais explícito à fé cristã:

1. Cristologia. De acordo com o princípio da dualidade, segundo o qual o mundo material é mal em si mesmo, não
se poderia aceitar que Deus tivesse assumido a carne e a condição humana; negando pois o mistério da
Encarnação, os gnósticos recorriam a um sem número de hipóteses para explicar o poder e a missão de Nosso
Senhor. Alguns, tendo em vista o princípio das emanações sucessivas, supunham ter o Messias salvador descido
do pleroma no memento em que Jesus, simples carpinteiro nazareno, era batizado no Jordão e, servindo-se d'Ele
como de um instrumento, operado a redenção dos homens [19]. Manuel Guerra Gomez observa que a cisão
valentiniana entre Cristo (éon) e Jesus (homem) prefigura a dualidade «afirmada em nossos dias entre o Jesus
histórico e o Cristo da fé, se bem que sob orientação diferente.» [20] Nessa mesma linha, os docetas ou
fantasistas do séc. I d.C., «convertidos, em geral, do paganismo, considerando má a matéria, negaram houvesse
em Cristo qualquer elemento humano, ensinando que o Seu corpo era aparente ou ilusório.» [21]
2. Escatologia. A antropologia gnóstica costuma descrever o homem como um composto de três elementos em
grau descendente de excelência: de um lado, espírito (πνεῦμα) e alma (ψυχή); de outro, matéria corpórea (ὕλη).
O espírito seria como uma centelha ou partícula divina que se desprendeu do pleroma e acabou aprisionada num
corpo, ou seja, na matéria [22]. Essa concepção do homem e da origem pleromática do espírito tem alcances
quer soteriológicos, quer escatológicos. Com efeito, o predomínio de um ou outro desses elementos permite,
segundo os gnósticos, agrupar os homens em três classes: os «pneumáticos» (πνευματικοὶ), cujo destino é voltar
ao pleroma apenas em espírito; os «psíquicos» (ψυχικοὶ), que, se se esforçarem por levar uma vida ascética,
podem obter uma salvação incompleta num «mundo intermediário entre o superior [...] e o inferior» [23]; e os
«hílicos» (ὕλικοὶ), irredimíveis e fadados a desaparecer quando da morte física e da corrupção do corpo [24].
Além de pôr o destino pós-morte das almas num retorno espiritual à ordem dos éones, o gnosticismo subtrai a
Cristo o efeito salvífico de Sua paixão, morte e ressurreição.
3. Soteriologia. Cristo, éon superior vindo do pleroma, veio nos ensinar como se emancipar da matéria, o que se
dá mediante a obtenção dum conhecimento de nível superior, isto é, da γνῶσις de que falamos há pouco. Este
éon, contudo, não poderia misturar-se ao mundo material, per se corrompido e pecaminoso, nem portanto sofrer
e merecer a graça divina e a glória eterna aos homens. A atividade de Jesus fica assim reduzida à transmissão
dessa suposta gnose libertadora. Ora, desse caráter exclusivamente intelectual da salvação decorre todo tipo de
desvio e aberração no campo moral: de fato, o gnóstico, crendo-se salvo pelo conhecimento que julga ter, pode
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em princípio «dar-se todas as liberdades, não está atado a nenhuma lei. [...] Mas, além disso, sendo a matéria
essencialmente má, é necessário desprezá-la e martirizá-la. Daí todos os excesso morais, um ascetismo rígido e
sem alma.» [25]

11. Conclusões. — Como se vê, o gnosticismo cristão se apresenta como um projeto de «inculturação da fé cristã na
cultura sócio-religiosa, gnóstica, de seu tempo, com o objetivo de tornar o cristianismo mais atraente e mais
influente entre as classes elevadas: as intelectuais.» [26] O gnóstico é o arquétipo para todas as épocas de quem
deseja fazer parte da Igreja e, muita vez, falar em nome dela, mas não quer morrer para si: à Verdade revelada em Cristo
o gnóstico prefere suas cogitações pessoais; à Tradição, as novidades; à humildade de crer o que creem todos os fiéis de
todos os tempos, o requinte e a vaidade intelectual. Manuel Guerra Gomez, a quem já tivemos oportunidade de nos
referir, faz um resumo didático do que é o gnóstico cristão [27]; eis o que devemos evitar:

1. Espírito de independência: o gnóstico autodenomina-se «cristão», apesar de suas heresias e de seu empenho em
ser visto como ortodoxo;
2. Esoterismo: o gnóstico sobrevaloriza o esoterismo e apela, não raro, a revelações secretas à margem da
hierarquia eclesiástica e da tradição por sucessão apostólica;
3. Exclusivismo: o gnóstico diz-se portador duma revelação especial, fruto dum aprofundamento racional da
teologia, destinada, sobretudo, às classes cultas e eruditas;
4. Alegorismo exegético: o gnóstico, a fim de amoldar os dados bíblicos às suas teorias, cultiva uma interpretação
demasiado alegórica da Escrituras, tendendo sempre para o oculto, o esotérico e o críptico.

B) A controvérsia ariana

12. Precedentes. — A controvérsia cristológica ventilada por Ário [28], sacerdote líbio que se transferiu ainda jovem
para Alexandria, capital cultural da época, foi, nas palavras de Daniel-Rops, «a mais terrível heresia que a Igreja teve de
enfrentar no decorrer dos séculos, porque abalou as próprias bases da fé [...], atacou o próprio mistério de Cristo.» [29]
O arianismo, de fato, é um erro paradigmático, pois mostrou à Igreja em que consiste essencialmente uma heresia: trata-
se duma escolha. Olhemos de mais perto.

Às disputas que a ortodoxia teve de travar no séc. III d.C. contra monarquianistas e sabelianos, para os quais o Verbo
divino não é senão o Pai manifestado sob aspectos ou modos distintos, se somavam os excessos do subordinacionismo,
que, tentando preservar a diferença radical entre o Pai e o Filho, submetia Este Àquele como criatura ao criador [30]. Ao
deparar, pois, com essas duas verdades fundamentais da fé cristã—a absoluta unidade divina e a perfeita
consubstancialidade entres as hipóstases do Pai e do Filho—, o presbítero Ário, em boa medida devido à influência de
seu mestre, Luciano de Antioquia, e possivelmente ao princípio gnóstico de que Deus não pode criar nem governar
diretamente nenhuma criatura material e inferior [31], viu-se diante duma tensão intelectual: como dizer que Deus é uno
e trino, como pode o Pai e o Filho serem Deus, mas haver apenas um só Deus?

13. Definição de heresia. — Ário, portanto, decidiu escolher uma dessas verdades em detrimento da outra. Se Deus é
um, não pode ser três; monoteísmo e Trindade excluir-se-iam mutuamente. A heresia (de αίρεσις, separar) é essa
escolha, essa como que predileção por uma verdade de fé que se choca, apenas em aparência, com outra. Em termos
lógicos, toda «proposição herética se opõe, direta e imediatamente, seja contrária seja contraditoriamente, a uma
verdade de fé católica. Seja, por exemplo, a seguinte proposição: Todos os homens ressuscitarão. São heréticas as
proposições contrária (Nenhum homem ressuscitará) e contraditória (Algum homem não ressuscitará), porque em
ambos os casos se nega direta e imediatamente uma verdade em se que deve crer com fé católica [32].

13. As verdades da Fé. — A reflexão teológica surge desta tentativa da inteligência humana por compreender verdades
num primeiro momento incompatíveis, inconciliáveis, e abarcá-las a todas. É este o caráter distintivo da nossa fé; a sua
catolicidade deve-se não apenas à sua universalidade, pois são as mesmas verdades professadas sempre e em todos os
tempos e por todos os povos que as acolheram, mas também, e sobretudo, porque é conforme a todas elas (de
καθολικός, conforme ao todo), e não só a algumas. Prova disto é o esforço dos Padres da Igreja em defender que (a) há
um só Deus; (b) Pai, Filho e Espírito Santo são três pessoas verdadeiramente distintas; (c) as três hipóstases divinas,
ainda que numericamente distintas, comungam da mesma única e indivisa natureza, e são, por isso, consubstanciais, co-
iguais, coeternas e co-onipotentes [33].
Introdução ao Método Teológico - 7
O gnosticismo cristão é a soberba da vida travestida de teologia (cf. 1 Jo 2, 16); o arianismo é a lição histórica de que
teologia se faz de joelhos, na Igreja e com a Igreja.

Referências

1. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 795.


2. Cf. Id., n. 787.
3. J. Ratzinger, Natureza e Missão da Teologia. Trad. port. de Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p. 44.
4. Cf. Llorca, B.; García-Villoslada, R.; Laboa, J. M., Historia de la Iglesia Católica. 7.ª ed., Madri: BAC, 2009, vol. 1, p. 212.
5. De Viris Illustribus, 54 (PL 23, 700C).
6. Cf. H. Petiot [Daniel-Rops], «A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires», in: História da Igreja de Cristo, vol. 1. Trad. port. de Emérico da
Gama. 3.ª ed., São Paulo: Quadrante, 2014, p. 282.
7. Llorca, B.; García-Villoslada, R.; Laboa, J. M., op. cit., loc. cit.
8. Cf. Id., p. 201.
9. H. Petiot [Daniel-Rops], op. cit., loc. cit.
10. Cf. Adv. haer., I, 29, 1. É difícil precisar a origem de «γνῶσις», ainda mais se se leva em conta a multiplicidade de sentidos em que se
pode empregar o termo: há notícias duma γνῶσις filosófica, doutra teúrgica, há também uma γνῶσις místico-mistagógica etc. V. o estudo
introdutório aos Sancti Iraenei Libri Quinque Adversus Haereses, editados por W. W. Harvey, S.T.B. Cambridge, Typis Academicis,
1857, t. 1, pp. lx-lxiv.
11. H. G. Wouters, Historiæ Ecclesiasticæ Compendium. Neapoli, ex Officina Fibreniana, 1862, t. 1, n. 52, p. 26: «[...] qui [...] veram Dei
rerumque dvinarum scientiam se habere iactabant: [...] que [...] se gloriavam de possuir a verdadeira ciência de Deus e das coisas
divinas» (trad. nossa). Cf. K. C. Tittman, De Vestigiis Gnosticorum in Novo Testamento Frustra Quaesitis. Lipsiae, 1773, p. 1: «Inter
adversarios religionis christianae quosdam fuisse constat qui se ob peculiarem humanarum divinarumque scientiam [...] quam iactabant
splendido nomine Gnosticorum insignire auderent: Sabe-se que, entre os inimigos da religião cristã, alguns houve que, por se julgarem
detentores de uma especial ciência das coisas divinas e humanas, ousaram gloriar-se com o pomposo nome de Gnósticos» (trad. nossa).
12. Cf. M. Simonetti (org.), Dicionário de Literatura Patrística. 2.ª ed., São Paulo: Ave-Maria, 2010, p. 772ss.
13. Cf. Llorca, B.; García-Villoslada, R.; Laboa, J. M., op. cit., p. 217.
14. H. Petiot [Daniel-Rops], op. cit., p. 285.
15. Id., ibid.
16. Id., ibid.
17. Id., pp. 284-5.
18. Cf. Id., p. 284.
19. M. G. Gomez, Los Nuevos Movimientos Religiosos: Las Sectas. 2.ª, Pamplona: EUNSA, 1996, p. 447 (trad. nossa). (Cf. H. Masson,
Manual de Herejías. Trad. esp. De José María León. Madri: Rialp, 1989, p. 334.)
20. Id., ibid.
21. A. Tanquerey, Synopsis Theologiæ Fundamentalis. Typis Societatis Sancti Joannis Evangelistæ. Paris: Descleé & Socii, 1943, t. 2, p.
622 (trad. nossa).
22. Cf. M. G. Gomez, op. cit., loc. cit.
23. Id., p. 448 (trad. nossa).
24. Cf. Id., ibid.
25. Llorca, B.; García-Villoslada, R.; Laboa, J. M., op. cit., p. 218.
26. M. G. Gomez, op. cit., p. 449 (trad. nossa).
27. Fizemos uma adaptação do que se encontra em Id., pp. 449-450.
28. Um resumo da doutrina ariana se encontra em Teodoreto de Ciro, Historia Ecclesiastica, I, 4: «[...] fuit tempus cum non esset Filius Dei;
et qui prius non erat, postea extitit, talis factus, quandocumque demum factus est, qualis quilibet hominum nasci solet. Omnia enim, ut
aiunt, Deus fecit ex nihilo; in creatione omnium rerum tam rationalium quam ratione carentium, etiam Filium Dei comprehendentes.
Quibus etiam consequenter addunt, Eum mutabilis esse naturae virtutisque ac vitii capacem. Positaque semel hac sententia, Filium Dei ex
nihilo esse, divinas litteras de æternitate Eius evertunt, quibus immutabilitas et divinitas Sapientiæ ac Verbi, quae sunt Christus,
ostenditur. — Houve um tempo em que o Filho de Deus não era; e, não sendo antes, começou a existir noutro momento, e, quando enfim
foi criado, fez-se da mesma condição em que costuma nascer qualquer homem. Deus tudo fez, dizem, a partir do nada; ora, <os
gnósticos> incluem o próprio Filho de Deus na criação das coisas tanto visíveis quanto invisíveis. Ao que também acrescentam ser o
Filho de natureza mutável, capaz de fazer o bem e o mal. Ao que também acrescentam, baseados nessa opinião, ter o Filho de Deus sido
criado do nada, e eles assim deturpam as passagens da Escritura Sagrada a respeito de Sua eternidade, por meio das quais se comprova a
divindade da Sabedoria e do Verbo, que são Cristo» (trad. nossa).
29. H. Petiot [Daniel-Rops], op. cit., p. 446.
30. Cf. Llorca, B.; García-Villoslada, R.; Laboa, J. M., op. cit., pp. 384-5.
31. Cf. A. Tanquerey, op. cit., p. 385, n. 636.
32. Id., p. 117, n. 199.
33. Cf. Id., p. 358, n. 600.

Introdução ao Método Teológico - 8


Aula 3 -Santo Agostinho

15. Recapitulação. — Vimos na aula passada os dois erros mais impactantes com que teve de se defrontar a Igreja ao
longo dos quatro primeiros séculos: de uma parte, o gnosticismo, mentalidade parasitária que buscou a todo custo
infiltrar-se no cristianismo e adaptá-lo ao ethos intelectual das elites pagãs; de outra, o arianismo, heresia cristológica
que, ao minar as bases mesmas da fé, quase destruiu a ortodoxia. Procuramos, tanto quanto possível, conjugar esses
dados históricos com o princípio estabelecido no final da primeira aula, a saber: é preciso converter-se e renunciar às
próprias pretensões para fazer teologia; a esta conversão chamamos, servindo-nos das palavras do Cardeal Ratzinger,
«mudança de sujeito», para indicar o caráter eminentemente eclesial da atividade teológica, quer dizer, a necessidade de
integração, comunhão e fidelidade à Igreja.

A fim de ilustrar este princípio com mais vivas cores, dedicaremos esta terceira aula a uma das colunas da teologia
ocidental, Santo Agostinho de Hipona, o mais proeminente dos Padres latinos, cuja influência e inabalável autoridade
fizeram-se presentes às inteligências por mais de um milênio.

16. Vida, perfil e conversão. — Santo Agostinho talvez tenha sido o primeiro a legar à posteridade o que hoje
conhecemos por autobiografia, uma exposição pouco mais ou menos fidedigna do itinerário da própria história pessoal.
Nas Confissões, obra em que se mesclam relatos de viagens e especulações sobre a natureza do tempo e a cosmologia
mosaica, Agostinho quis deixar-nos não tanto uma descrição minuciosa de seus feitos quanto abrir-nos as portas de sua
alma e mostrar os percalços de sua vida interior em busca de Deus. Sua frase agora proverbial « Fecisti nos ad te et
inquietum est cor nostrum donec requiescat in te: Fizeste-nos para Vós, e inquieto está o nosso coração enquanto não
repousar em Vós» [2], ele a põe inclusive já à testa do livro como que a nos indicar o mote que irá seguir ao longo de
suas Confissões.

Nascido em Tagaste, província romana situada na Numídia—porção norte da África que hoje compreende a Argélia—
no ano de 354 d.C., Agostinho foi desde cedo educado com zelo por sua mãe, Mônica, mulher piedosa, mas iletrada, e
que o tempo faria modelo de maternidade cristã [3]; de seu pai, Patrício, pagão infiel e dono duma pequenina
propriedade, não temos muitas informações. Tendo-se instruído em Tagaste nos rudimentos das artes chamadas liberais
[4], mudou-se ainda criança para Madaura, a alguns quilômetros ao sul de casa, e, pouco depois, por falta de recursos,
retornou para o burgo natal [5], entregando-se pelo espaço de um ano aos perigos que o ócio traz consigo. Devia orçar à
época por volta dos quinze anos de idade. Em 370, auxiliado pelo amigo Romaniano, dirige-se à então capital da África,
Cartago, onde complementa sua formação retórica e literária [6]. As nutrizes [7] não poderiam imaginar o que aquele
pequenino, «brutal, indisciplinado e [...] pouco propenso à paciência nos estudos» [8], representaria para as gerações
futuras.

Apesar de seus dotes e de seu gênio penetrante, Agostinho sentiria por boa parte da juventude o peso da escravidão do
pecado; de fato, à medida que progrediam seus estudos e ampliavam-se os seus horizontes, sua alma tornava-se mais e
mais «fogosa e apaixonada pela ânsia de liberdade e prazer.» [9] Somado a essa tendência à intemperança e aos
excessos, o orgulho intelectual de Agostinho foi o vetor determinante de seu desenvolvimento intelectual e posterior
aproximação do cristianismo. Com efeito, além da insatisfação com as respostas maniqueístas ao problema do mal e um
certo despeito pelo que então conhecia da religião cristã por meio da piedade algo «simplória» da mãe, sua dedicação
em aprofundar-se no neoplatonismo plotiniano traduz decerto a inquietação duma inteligência a cujos anseios nenhuma
filosofia pagã poderia plenamente satisfazer. É possível que essa mesma ansiedade pela busca da verdade que sacia seja,
de certo modo, a raiz psicológica do porquê «a sabedoria, objeto da filosofia, sempre é confundida, por ele, com a
beatitude.» [10]

O fato é que as crescentes ambições de seu coração não lhe permitiram permanecer por muito mais tempo em Tagaste.
«Deixar ali Agostinho seria condená-lo a uma vida de comerciante rural ou, quando muito, de modesto funcionário.»
[11] Sua ida para Roma em 383—feita às escondidas enquanto Mônica orava à noite numa capela [12]—a fim de lá
fazer carreira é prova de que a Providência divina sabe muita vez valer-se da cobiça dos homens para reconduzi-los à
via da salvação. Ora, apenas uma década antes Ambrósio fora eleito bispo de Milão e sua eloquência já era notória. O
jovem Agostinho, aliciado pela fama do orador, acudirá por mera curiosidade aos sermões deste santo, cuja fortaleza e
coragem sabiam impor-se à obstinação e à força imperial de um Teodósio I. A harmonia daquelas homilias ficará para
sempre gravada em seu espírito [13].
Introdução ao Método Teológico - 9
Render-se-á enfim à graça senão após uma verdadeira guerra contra a cupidez, «omnium scilicet malorum radix: a raiz
de todos os males» [14], como lhe chamará anos depois, preconceitos sectários e as más inclinações que cultivara
durante a vida e nele formaram uma como segunda natureza [15]. «Fruto sazonado das lágrimas de sua santa mãe» [16],
a conversão de Agostinho, batizado pelas mãos de Ambrósio na Páscoa de 387, juntamente com o filho, Adeodato, e o
amigo Alípio, mudará os rumos da teologia católica e da história eclesiástica: a experiência que terá da graça divina
durante seu processo de amadurecimento na fé condicionará de forma decisiva sua visão sobre a inteligência e a vontade
humanas e influenciará maciçamente os teólogos posteriores.

Tronado bispo auxiliar de Valério, em Hipona, com apenas quarenta e um anos, Agostinho assistirá de perto ao
paulatino crepúsculo do Império Romano do Ocidente; sua morte, ocorrida em 430, quando os vândalos de Genserico
assediaram Hipona [17], sinaliza a aurora de uma nova era, cujas luzes porém ainda se não distinguem com clareza: a
Idade Média.

17. O caminho da humildade. — De acordo com Étienne Gilson, a premissa fundamental do pensamento agostiniano é
a necessidade de a verdadeira filosofia, ou seja, a busca sincera pela verdade, aderir à ordem sobrenatural [19]: a
vontade, sob a moção da graça, consegue desembaraçar-se da concupiscência da carne; a inteligência, iluminada pela
luz da Revelação, pode libertar-se do ceticismo. Essas duas pressuposições são o resultado da experiência pessoal de
Agostinho, que vira de perto a insuficiência dos vários sistemas filosóficos para dar ao homem entregue às próprias
forças aquela «certeza plena sem a qual para ele não há nem repouso, nem felicidade.» [20]

A identificação acenada há pouco entre verdade e beatitude deve-se não só a um traço, digamo-lo assim, biográfico da
especulação de Agostinho, mas também à percepção de que, se a verdade é o bem da inteligência humana [21] e sendo
Deus a suma verdade e o sumo bem, «quid beatius eo qui fruitur inconcussa et incommutabili et excellentissima
veritate? — Que é mais feliz do que aquele que goza da verdade inconcussa e incomutável e excelentíssima ?» [22] Ora,
o caminho que leva à fruição desse bem que não passa [22], Agostinho o resume insistentemente à humildade,
fundamento da religião cristã: «Ea autem est [a via que conduz à verdade] prima, humilitas; secunda, humilitas; tertia,
humilitas: Ela é, pois, primeiro humildade; depois, humildade; e por fim, humildade.» [23] Aquele presunçoso
Agostinho da mocidade que buscava, como que às apalpadelas, a verdade onde ela não se encontrava, dobrará sua
soberba e dirá, quase no fim da vida:

A esta sã humildade, que Nosso Senhor nos quis ensinar humilhando-se a Si mesmo, opõe-se, por assim dizer, uma
inutilíssima ciência, pela qual nos orgulhamos de saber o que disseram Anaxímenes, Anaxágoras, Pitágoras, Demócrito
etc., a fim de parecermos homens doutos e eruditos; ora, isto está muitíssimo longe da verdadeira ciência e erudição.
[24]

A água dessa humildade brota somente de Cristo, fonte perene de todas as virtudes, e não se pode haurir de livros
epicuristas, maniqueus ou platônicos [25]. É n'Ele, por Ele e a Ele—essa a tônica da obra agostiniana—que se devem
ordenar nossos pensamentos, palavras e ações. Cristo é a verdade que alumia a inteligência, é o bem imarcescível que
farta e preenche a alma, é a felicidade perfeita e imperecível: «A Ele, que está todo presente em todo lugar, não é
possível ir a pé, mas por meio duma vida reta. Boas e más ações, não as fazem senão bons e maus amores.» [26] Como
sintetiza Étienne Gilson,

Resumida de uma forma abstrata, pode-se dizer que a experiência de Agostinho volta-se para uma descoberta da
humildade, pois o erro da inteligência está ligado à corrupção do coração pelo orgulho e o homem só encontra a verdade
beatificadora ao curvar sua inteligência à fé e a sua vontade à graça pela humildade. [27]

Santo Agostinho sentiu na carne a força corruptora dos vermes do pecado e a fraqueza de nossa natureza:
reconhecemos, de um lado, a impotência da vontade, que, abandonada a si mesma, é incapaz de libertar-se da sordidez
duma existência pecaminosa; de outro, a debilidade da razão, obscurecida pelo orgulho do pecado original. Aliás, é
justamente a sua doutrina da culpa primeva (ou o que a ele se costuma atribuir) que se mostrará mais polêmica, a ponto
de suscitar reações e reformulações entre teólogos medievais a respeito do influxo do pecado de Adão e Eva na
capacidade e limites da razão humana e seu posterior relacionamento com a fé. Séculos mais tarde, a concepção

Introdução ao Método Teológico - 10


agostiniana do lapso de nossos primeiros pais será, inclusive, um dos mais importantes pontos de dissídio entre a
ortodoxia católica e os desvios teológicos seja de cismáticos, seja de protestantes.

À parte sua monumental obra, pode-se dizer que a grande herança do bispo de Hipona foi sua profunda vivência da
graça de Deus, que mostra ao filho pródigo a miséria em que se pôs, excitando-o a retornar para a casa do Pai [28]. Esse
legado demonstra-nos que vontade, com os auxílios divinos, e inteligência, ancorada na fé, formam em harmonia uma
sinfonia feita para glorificar ao Criador.

Referências

1. Cf. J. Govea, Summa Proverbiorum Sancti Augustini Hypponensis Episcopi et Ecclesiæ Doctoris Eximii Universa Disciplinarum Moralium
Elementa Complectens. Hispali, ex Typograhpia Mariani Caro, 1832, p. 121.
2. Conf. I, 1, com notas de K. von Raumer. 2.ª ed., Gütersloh: Bertelsmann, 1876, p. 1.
3. V. Ricardo da Costa, «Santa Mônica: A Criação do Ideal da Mãe Cristã», in: Grupos de Trabalho III – Antiguidade Tardia. Rio de Janeiro:
UFRJ, 1995, pp. 21-35. Disponível em (sítio): <www.ricardocosta.com/artigo/santa-monica-criacao-do-ideal-da-mae-crista>. Acesso em: 14
abr. 2015.
4. Possídio Epíscopo, Sancti Augustini Vita, c. 1, editada por Herbert T. Weiskotten. Princeton: Princeton University Press, 1919, p. 40.
5. Cf. H. Petiot [Daniel-Rops], «A Igreja dos Tempos Bárbaros», in: História da Igreja de Cristo, vol. 2. Trad. port. de Emérico da Gama. São
Paulo: Quadrante, 1991, p. 13.
6. Cf. Llorca, B.; García-Villoslada, R.; Laboa, J. M., Historia de la Iglesia Católica. 7.ª ed., Madri: BAC, 2009, vol. 1, p. 504.
7. Cf. Conf. I, 7, p. 6 da ed. de Raumer.
8. H. Petiot [Daniel-Rops], op. cit., loc. cit.
9. Llorca, B.; García-Villoslada, R.; Laboa, J. M., op. cit., loc. cit.
10. Étienne Gilson, Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Trad. port. de Cristiane N. A. Ayoub. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2006,
p. 17. Agostinho diz em De Trinit. XIII, 20: «Beatos se esse velle, omens in corde suo vident, tantaque est in hac re humanae naturae
conspiratio, ut non fallatur homo qui hoc ex animo suo de animo conjicit alieno: Todos veem em seu coração que querem ser felizes; ora, é tão
ardente esse desejo pela felicidade, que quem quer que o perceba em seu espírito pode, sem perigo de enganar-se, supô-lo também no espírito
de seu irmão» (trad. nossa).
11. H. Petiot [Daniel-Rops], op. cit., loc. cit.
12. Cf. Id., p. 16, nota 5.
13. Cf. Llorca, B.; García-Villoslada, R.; Laboa, J. M., op. cit., p. 505.
14. Lib. de divers. quaest., 83; v. J. Govea, op. cit., p. 34.
15. Llorca, B.; García-Villoslada, R.; Laboa, J. M., op. cit., loc. cit.
16. Id., ibid. (trad. nossa).
17. Cf. Id., ibid.
18. Encontra-se na p. 269 da ed. de Raumer.
19. Cf. Étienne Gilson, op. cit., p. 450.
20. Id., p. 449. Cf. De Civit. Dei, VIII, 9: «Quandoquidem nulla est homini causa philosophandi, nisi ut beatus sit. Nulla igitur est causa
philosophandi, nisi finis boni: Com efeito, o homem não tem outra razão para filosofar, senão a fim de ser feliz; de fato, não hã outro motivo
para se filosofar do que o fim do Bem» (trad. nossa).
21. Solil. I, 12: «Optimum enim in animo sapientia. Summum bounum hominis sapere: A sabedoria é o ótimo da alma; de fato, saber é o sumo bem
do homem» (trad. nossa).
22. De lib. arb. II, 13; v. A. Martin, Sancti Aurelii Augutini Hipponensis Episcopi Philosophia. Parisiis, 1876, p. 574.
23. Cf. De lib. arb. II, 13: «Nulla enim re fruitur anima cum libertate, nisi qua fruitur cum securitate: De nada goza a alma com liberdade, senão
do que goza com segurança» (trad. nossa); v. A. Martin, op. cit., p. 576.
24. Epist. CXVIII, 3, 22.
25. Epist. CXVIII, 4, 24 (trad. nossa).
26. Cf. En. in Psalm. XXXI.
27. Epist. CLV, 4, 13 (trad. nossa.).
28. Étienne Gilson, op. cit., p. 433.
29.

Aula 4 – São Tomás de Aquino

18. Recapitulação. — Dedicamos a aula anterior ao estudo, ainda que bastante sumário, de alguns aspectos da obra de
Santo Agostinho; quisemos ressaltar, em particular, a necessidade para o pensamento agostiniano de o homem aderir à
ordem sobrenatural, a fim de que a vontade, com o auxílio da graça divina, possa libertar-se das amarras do pecado e a
inteligência, iluminada pela fé e pela Revelação, consiga enfim repousar na verdade perpétua e inesgotável cuja posse,
para o bispo de Hipona, se identifica com a plena felicidade por que todos os homens almejam; ora, essa felicidade não
consiste em outra coisa senão em Deus, fim de toda a criação, no qual, quando afinal O alcançarmos, poderemos então
crer-nos bem-aventurados [1]. Ressalvamos também que essa concepção em certo sentido negativa da vontade e da

Introdução ao Método Teológico - 11


inteligência como essencialmente corrompidas se deve em boa medida à doutrina do pecado original desenvolvida por
Agostinho, para quem é a gratuidade da misericórdia divina que nos eleva, cabendo-nos apenas submeter por humildade
a razão à fé e a vontade à graça.

Tendo pois em vista a importância que essa doutrina agostiniana teve no pensamento teológico posterior e as
dificuldades por ela ocasionadas, na aula de hoje iremos estudar outra grande coluna da teologia ocidental: Santo Tomás
de Aquino, Doutor Comum da Igreja, cuja autoridade tanto em matéria filosófica como em teológica tem sido
reconhecida e confirmada há séculos pelo Magistério [2]. Enfocaremos as precisões e retificações que o Aquinate fez na
obra de seu mestre Agostinho e, mais especificamente, como concebeu o papel da razão e da vontade no ato de fé.

19. Breve notícia biográfica. — Nasceu Tomás, de acordo com as fontes mais confiáveis, no ano de 1225, em
Roccasecca, comuna do reino de Nápoles, hoje situada na província de Frosinone; seu famoso patronímico se deve à
cidade de Aquino, a poucos quilômetros a sudeste da terra natal. Filho de Landolofo, nobre gibelino favorável ao então
imperador Frederico II da Prússia, e de Teodora, normanda de origem, Tomás foi desde cedo destinado à vida
monástica. A ambição de seus pais, mais preocupados com os próprios interesses do que com a glória de Deus e o bem
da Igreja, pretendia fazer dele abade do mosteiro beneditino de Monte Cassino—a que fora entregue aos seis anos como
puer oblatus—, mantendo assim a hegemonia e a influência política da família em toda a região [3]. O jovem Aquinate,
entretanto, vestiu com pouco mais ou menos dezenove anos o hábito branco dos dominicanos, cuja ordem conhecera
numa temporada de estudos em Nápoles. Conquanto tenha frustrado os planos de seus pais, que viram tornar-se
mendicante o próspero filho, o ingresso de Tomás na família de São Domingos representaria, de certo modo, uma
revivescência da teologia e o nascimento do maior luminar do pensamento cristão [4]. Tomás morreu em 1274 a
caminho do Concílio de Lyon, convocado por ordem do papa Gregório IX a fim de se discutir a união da Igreja Católica
com as comunidades cismáticas que se haviam separado do Corpo de Cristo duzentos e vinte anos antes [5].

20. A inteligência da Fé. — Tivemos ocasião de ver na última aula que, conforme o pensamento de Santo Agostinho
(cf. § 17), o pecado original corrompeu de tal modo a natureza humana, que a razão, cegada pelo orgulho, e a vontade,
cingida pela concupiscência, encontram-se impossibilitadas por si sós de, no estado atual, conhecer a verdade e libertar-
se da escravidão do pecado. Ora, se bem que Agostinho atribuísse à inteligência um certo primado sobre a vontade, sem
resvalar para o voluntarismo que na Baixa Idade Média viria a tornar-se quase a tese distintiva de algumas escolas
agostinianas, é própria e primariamente à graça divina que, para ele, competiria a função de dobrar-nos o orgulho e
guiar-nos pela via da humildade que conduz à posse plena da Verdade e do Bem supremos; inteligência e vontade
teriam, a princípio, pouca ou nenhuma participação no ato de fé, por que prestamos a Deus o obséquio de nossa
obediência e aquiescemos às Suas verdades.

Com efeito, a adesão à Revelação torna-se, segundo o bispo de Hipona, o pressuposto indispensável para se
compreender os mistérios por Deus revelados: «Crede, inquam, ut intellegas: Crê, a fim de entenderes» [6], ele diz ao
comentar Is 7, 9. Mas é também preciso compreender para crer: «Intellege, ut credas: Compreende, para creres» [7].
Santo Agostinho não hesita em confessar esse apetite radical da fé, como lhe chama Marie-Joseph Nicolas [8], por
contemplar aquilo em que acredita: «quaesivi Te, desideravi intellectu videre quod credidi: procurei-Te, quis ver com a
inteligência aquilo que pela fé eu cria» [9]. É desse consórcio, desse mútuo benefício entre os anelos da razão pela
Verdade e da fé por aprofundar-se em si mesma que nasce a teologia, cuja essência Santo Anselmo saberá resumir
belamente à «fides quarens intellectum», ou seja, à fé que busca compreender [10]. A ciência teológica, portanto,
encontra a sua justificativa na fé e é à fé que ordena seus esforços, a fim de alimentá-la, defendê-la e fortificá-la [11].

Santo Tomás de Aquino, ao seguir as pegadas dessa tradição anselmiana, para a qual a teologia é antes a «expressão da
vida teologal» [12] do que um exercício de inferir dos dados revelados as conclusões ali virtualmente contidas, verá a fé
como um assentimento integral e vital do homem todo—em corpo e alma—à Revelação, a cujo conteúdo temos acesso
por meio das fórmulas que compõem os articuli fidei, os artigos da fé católica [13]. De fato, Santo Tomás não apenas
não negará que a fé é ponto de partida da teologia, mas, para além disso, afirmará, aperfeiçoando a intuição de
Agostinho, também haver entre elas um vínculo «de origem e de dependência» [14]: a fé é o suplemento de que nossa
inteligência precisa para elevar-se «à altura do real divino» [15], ela é a seiva que dá vida àquilo em que cremos, pois o
«o ato do crente não se reduz ao enunciado [dos artigos da fé], mas dirige-se à realidade mesma [por eles significada].»
[16] Por isso, o Aquinate poderá dizer que o Apóstolo Tomé, por ter professado a verdadeira fé ao ver Cristo
ressuscitado, tornou-se naquele mesmo instante um bom teólogo [17]. Essa fé, no entanto,
Introdução ao Método Teológico - 12
[...] não adere a seu objeto de maneira estática. Animada por um desejo ardente que procede do amor que a atravessa
de um lado ao outro, pela verdade divina desde os seus primeiros balbucios, ela é mais e melhor do que uma simples
aceitação na obediência da revelação [18].

Nesse sentido, a doutrina tomista a respeito das virtudes teologias vem retificar e enlaçar alguns nós que em Agostinho
se haviam desatado: a fé, especificamente, será agora considerada em toda a sua amplitude, é dizer, enquanto um dom
habitual e sobrenatural por cujo intermédio a nossa inteligência, sob o império da vontade e o influxo da graça,
crê, por causa da autoridade de Deus, em tudo o que nos foi divinamente revelado [10]. É o desejo abrasador que
impele o homem a crer e a amar a verdade já crida que requer nos debrucemos sobre a verdades recebidas e as
abracemos segundo as razões que pudermos encontrar [20]. Situada nesse novo horizonte, a fé, segundo o Aquinate, se
pode apresentar sob duplo aspecto: (A) enquanto ato da inteligência que adere à Revelação e (B) enquanto hábito que
nos inclina a tal adesão. Lancemos uma rápida vista d'olhos.

A) Ato de Fé

21. Conceito. — O ato de fé católica consiste no firme assentimento dado pela inteligência, movida pela vontade e pela
graça de Deus, às verdades reveladas, por causa da autoridade do mesmo Deus que no-las revelou [21]. Façamos alguns
apontamentos a respeito dos elementos constitutivos desse conceito:

1. Assentimento da inteligência: assentir, como diz Santo Tomás, é um ato que compete propriamente ao intelecto
[22]. Nesse sentido, o ato de fé se distingue: (i) da ciência, que acede a verdades de ordem natural por foça de
sua evidência intrínseca, ao passo que a fé tem por objeto as verdades sobrenaturais e por motivo a autoridade
divina; (ii) da opinião, não baseada em nenhuma certeza, enquanto o penhor da fé é a absoluta veracidade de
Deus; (iii) do sentimento religioso, que se deixa levar muita vez pela fantasia e pela sensibilidade corporal; (iv)
da fé assim chamada histórica, cujo fundamento é apenas o testemunho humano ou documental; e (v) da visão
beatífica, pois o que a fé crê de modo mediato e obscuro será contemplado imediata e claramente na vida eterna
[23].
2. Império da vontade: o ato de fé, portanto, é escolhido pela inteligência; mas como essa adesão se deve antes à
autoridade de Deus que revela do que à evidência intrínseca das verdades por Ele reveladas, o ato de fé tem de
ser movido ou, como se costuma dizer, imperado pela vontade, que ordena a inteligência a crer [24].
3. Moção da graça: o Concílio Vaticano I adverte que, «embora [...] a adesão da fé absolutamente não seja um
movimento cego da alma, ninguém pode "consentir à pregação evangélica", do modo que convém para
conseguir a salvação, "sem a iluminação e a inspiração do Espírito Santo, que dá a todos suavidade no consentir
e no crer na verdade".» [25] A graça primeira, a que não temos nenhum direito e de que somos incapazes por
nossas próprias forças, é um dom de Deus, que, iluminando-nos a inteligência e movendo-nos a vontade, nos
incita a crer e a prestar-Lhe o obséquio de nossa fiel obediência [26].

B) Hábito da Fé

22. Conceito. — O hábito da fé é uma virtude sobrenatural e teologal que dispõe o homem a crer firmemente, por causa
da autoridade de Deus, em tudo quanto Ele nos revelou. Diz-se:

1. Virtude, isto é, «uma qualidade boa e permanente per se; neste sentido, distingue-se do ato de fé, que em si
mesmo é transitório.» [27]
2. Sobrenatural, na medida em que «supera as forças e exigências de toda a natureza criada em razão: ( i) de seu
objeto, que é a Revelação e compreende os mistérios sobrenaturais; (ii) de seu motivo, que é a autoridade de
Deus que revela [...]; (iii) de sua origem, porquanto é infundido na alma por Deus junto com a graça
santificante.» [28]
3. Teologal, por conta de (i) seu objeto, que é primariamente Deus, e de (ii) seu motivo, que é a autoridade de
Deus [29]. Essa autoridade, que move de modo eficaz o nosso intelecto a crer em Deus, que Se dirige a nós por
Sua Revelação, tem por fundamento (1) a infalibilidade in cognoscendo e (2) a veracidade in dicendo divinas.
Ou seja: Deus, ao revelar-Se-nos, é infalível nas verdades que nos transmite (não pode enganar-Se) e
absolutamente veraz ao transmitir-nos-las (não nos pode enganar) [30].

Introdução ao Método Teológico - 13


4. Que dispõe o homem, quer dizer, induz a inteligência e a vontade a aceitar conjuntamente a Revelação [31].

C) Os princípios cooperantes do ato de Fé

23. Ora, para que haja um ato verdadeiro de Fé católica são necessárias cinco coisas: (i) um motivo por que crer, que
vimos acima ser a autoridade de Deus, em Quem depositamos toda a nossa confiança; (ii) um objeto em que se possa
crer, quer dizer, cada um do artigos que compõem a fé da Igreja; (iii) a graça prévia e auxiliar que instiga à crença e nos
ilumina a inteligência; (iv) vontade imperante que, sob a inspiração do Espírito Santo, leva a crer o intelecto
anteriormente movido pela graça; e (v) inteligência que, sob a moção da graça e o império da vontade, pode então
determinar-se a fazer um ato de fé [32].

Discorreremos em linhas gerais sobre a graça, em primeiro lugar, uma vez que é sob o seu influxo que a vontade e a
inteligência são preparadas para anuir à Revelação; em segundo, trataremos da vontade, que move o intelecto, do qual
falaremos por último, já que lhe cabe propriamente fazer o ato de fé.

24. Graça. — Requer-se para o ato de fé o auxílio prévio de uma graça de iluminação e de inspiração que clarifique a
inteligência e influa na vontade. E isso por duas razões: em virtude da sobrenaturalidade do ato e de sua peculiar
dificuldade. O ato de fé «é o princípio em nós da vida divina, o fundamento de todos os meios que nos conduzem ao
nosso fim sobrenatural, é a prelibação da visão beatífica» [33]. É um ato igualmente difícil, no sentido de que exige da
inteligência uma adesão firme e segura a verdades que superam nossas capacidades (opõe-se, portanto, à soberba
intelectual), além de envolver consequências práticas, como, por exemplo, revisão e emenda de vida, exercício das
virtudes morais, desprezo pelo pecado, o que é contrário a nossas inclinações naturais. É necessária, por conseguinte,
uma graça que ilumine a inteligência e inspire a vontade a abraçar a Fé [34].

25. Vontade. — O ato de fé, malgrado seja realizado pelo intelecto, depende do império de uma vontade livre e bem
disposta. Ora, dado que o que determina a inteligência é a evidência intrínseca, a que, no caso das verdades reveladas,
não temos acesso, a vontade tem de livremente ordenar à inteligência que creia. De fato, a Revelação não nos permite
apreender a razão mesma dessas verdades, mas apenas saber, com base no fidelíssimo testemunho de Deus, que elas
existem e devem ser cridas. Assim, por exemplo, os mistérios da Santíssima Trindade e da Encarnação, embora não
contenham nenhuma contradição que nos impeça de aceitá-los como razoavelmente credíveis, permanecem-nos
intrinsecamente obscuros e impenetráveis [35].

26. Intelecto. — A fé, enquanto adesão às verdades reveladas, é propriamente um ato do intelecto. Com o auxílio da
graça e sob o império da vontade, «ainda que não perceba a evidência intrínseca das verdades reveladas, o intelecto dá-
lhes o seu assentimento por causa da autoridade de Deus.» [36]

27. Conclusão. — Pode-se perceber que o ato de fé, como diz A. Tanquerey, é, de um lado, um ato que envolve o
homem inteiro, vontade e inteligência, e, de outro, é obra de Deus, cuja graça não somente nos move a crer, mas
também nos ilumina o intelecto, nos inspira e fortifica a vontade para que possamos perseverar e progredir na fé [37].
De fato, a concepção tomista do ato de fé pressupõe razão e vontade capazes, sem bem que manchadas pelo pecado
original, de ouvir a voz de Deus que Se revela e de, com o Seu auxilio, receber a fé com que Ele nos presenteia; donde
se vê a distância a que Santo Tomás de Aquino se pôs de seu mestre Agostinho: a inteligência está no núcleo do actus
fidei—é, na verdade, o agente primário desse ato—e não se apresenta como uma faculdade passiva e subjugada, por
assim dizer, à graça. Em Santo Tomás, Deus inteiro e homem inteiro concorrem para acender a fé, «de modo que os que
entram possam ver a luz» (Lc 8, 16).

D) A analogia

28. Realismo tomista. — Resta-nos saber, por fim, como, de acordo com Santo Tomás, é possível fazer teologia. De
fato, sendo a fé a chave de acesso ao seu objeto e como que o sangue que vivifica a sua pesquisa, o teólogo vê-se
constantemente diante da «obscuridade que envolve a verdade divina» [38] e das limitações que os recursos humanos
lhe podem fornecer para ascender ao Deus a Quem ninguém jamais viu (cf. Jo 1, 18). Ora, sabemos que a essência da
teologia tomista não é senão a continuação e o coroamento da tradição anselmiana da « fides quaerens intellectum», a fé

Introdução ao Método Teológico - 14


que busca compreender. Essa fé, que, como dissemos nos parágrafos anteriores, nos é dada por Deus, mas de cuja
produção participamos com corpo e alma, pressupõe uma inteligência direcionada para o real que existe fora de si e,
quando iluminada por Deus, para além de si; pressupõe igualmente uma inteligência apta a apreender nas coisas aquilo
que nelas é inteligível, ou seja, o que elas são em si mesmas, o seu quid. Para Santo Tomás, tal inteligência não é um
sistema fechado, mas uma faculdade aberta, orientada para o mundo exterior, donde colhe como que o seu alimento.

Ora, a fé, tendo por objeto a Deus mesmo, a realidade por excelência, não se opõe à razão; elas antes se complementam,
pois, se é «da natureza do pensamento visar ao real» [39], como não poderia o espírito humano sob fulgor de Deus
desejar aprofundar-se mais e mais nos mistérios que lhe foram revelados? A teologia, enquanto esforço por
compreender e perscrutar a complexidade dos mistérios divinos, depende dessa cooperação entre as duas luzes sob as
quais o homem conhece a realidade: a razão natural e a fé.

Nesse sentido, «o ato de fé não para nas proposições que lhe exprimem o conteúdo, mas, pra além delas, visa e atinge a
própria realidade.» [40] Não se trata, portanto, de uma fé solipsista, meramente verbal. Como podemos, porém, falar de
Deus e do conteúdo de Sua Revelação se só temos acesso à realidade criada? Como nos remeter à Realidade das
realidades? É ao deparar-se com essa dificuldade que Santo Tomás, reinterpretando Aristóteles em nova chave teórica,
desenvolve a função da analogia no conhecimento teológico [41]. Assim explica M.-J. Nicolas: Chegamos à segunda
condição de possibilidade da teologia e, primeiramente, da fé: a analogia.

Não só o realismo, mas também a analogia de tudo que é real, a analogia do ser.

A analogia é essa correspondência intrínseca entre os seres, que mesmo pertencendo a ordens diferentes têm em comum
o existir, isto é, participar daquele que é. O raciocínio por analogia permite passar de uma verdade à outra que não é da
mesma ordem, e que não é, talvez, imediatamente representável. Oferece ao espírito uma espécie de respiração, uma
ampliação ilimitada de seu poder de conhecer, um acesso ao que não é seu objeto próprio. É ele que possibilita captar
numa realidade sensível algo que a ultrapassa, que pode valer também para outras realidades, para a realidade espiritual,
«mantidas todas as proporções». É pelo jogo da analogia que as palavras das línguas humanas—das quais a etimologia
sempre revela uma experiência sensível original inicialmente traduzida pelas palavras—foram estendidas a outras áreas.
A percepção intuitiva dessas correspondências é feita pelo poeta, por meio da arte de exprimi-las apenas pelo poder da
aproximação e do canto das palavras. Mas é a manifestação de sua inteligibilidade que funda a metafísica [42].

30. A incognoscibilidade da essência divina. — O que seja Deus em Sua essência, o nosso intelecto não pode
conhecê-lo. A nossa cognição natural, contudo, por estender-se às realidade sensíveis, pode inferir das coisas
criadas não o que Deus é (quid sit), mas se Ele existe (an sit); demonstrada a Sua existência, é-nos possível
também um certo conhecimento natural—de forma (i) indireta, por meio das criaturas e (ii) análoga, mediante
certas noções que expressem uma aproximação positiva ou proporcional entre a criação e o Criador—dos
atributos que Lhe convêm: «Deus é o ente cujo ser não tem causa, mas que é a causa do ser de todas as coisas.»
[43] De fato, se Deus é a causa primeira de tudo, entre Ele e as criaturas deve haver uma certa semelhança, uma
vez que todo agente produz algo semelhante a si [44]. Deus é, por consequência, o analogado supremo de todas
as coisas, cujo ser participa do Ser divino. Tudo o que há foi feito por Ele, por causa d'Ele e para Ele: «o
Bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o único que possui a imortalidade, que habita
uma luz inacessível, que nenhum homem viu, nem pode ver. A Ele, honra e poder eterno. Amém» (1Tm 6, 15-
16).

Referências

1. Cf. Agostinho, De Civit. Dei VIII, 3.


2. Um interessantíssimo e bem documentado opúsculo que se pode ler a respeito da autoridade doutrinal de S.to Tomás de Aquino é da lavra do
frade dominicano Santiago Ramírez, De Auctoritate Doctrinali S. Thomæ Aquinatis. Salmanticæ, apud Sanctum Stephanum, 1952.
3. Cf. B. Llorca; R. García-Villoslada; J. M. Laboa, Historia de la Iglesia Católica. 6.ª ed., Madri: BAC, 1999, vol. 2, p. 794.
4. Cf. H. Petiot [Daniel-Rops], «A Igreja das Catedrais e das Cruzadas», in: História da Igreja de Cristo, vol. 3. Trad. port. de Emérico da Gama.
2.ª ed., São Paulo: Quadrante, 2012, p. 368.
5. Cf. B. Llorca; R. García-Villoslada; J. M. Laboa, op. cit., p. 797.
6. Agostinho, Serm. XLIII, 7.
7. Id., ibid., 9.
8. Cf. M.-J. Nicolas, «Introdução à Suma Teológica», in: Suma Teológica. 3.ª ed., São Paulo: Loyola, 2009, vol. 1, p. 132.
Introdução ao Método Teológico - 15
9. Agostinho, De Trinit. XV, 28, 51.
10. Cf. J.-P. Torrel, Santo Tomás de Aquino: Mestre Espiritual. Trad. port. de J. Pereira. 2.ª ed., São Paulo: Loyola, 2008, p. 18.
11. Cf. Agostinho, De Trinit. XIV, 1, 3; v. Paulo F. C. de Andrede, «A Função da Teologia em uma Universidade Católica», in: G. L. B.
Hackmann (org.), Sub Umbris Fideliter: Festschrift em Homenagem a Frei Boaventura Kloppenburg. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, p. 351:
«A teologia, para S. Agostinho, nasce do desejo de ver com a inteligência o que se acreditou [...]. Ela nasce da fé, para alimentar a própria fé.»
12. J.-P. Torrel, op. cit., p. 17.
13. Cf. Id., ibid.
14. Id., p. 17.
15. Id., ibid.
16. Sum. Th. II-II, q. 1, a. 2, ad 2.: «Actus autem credentis non terminatur ad enuntiabile, sed ad rem.»
17. Cf. In Joannem, c. XX, l. 6: «[...] statim factus est bonus theologus Thomas, veram fidem confitendo.»
18. J.-P. Torrel, op. cit., p. 19.
19. Cf. Sum. Th. II-II, q. 2, a. 9; A. Tanquerey, Synopsis Theologiæ Fundamentalis. Typis Societatis Sancti Joannis Evangelistæ. Paris: Descleé &
Socii, 1943, t. 2, p. 81, n. 134.
20. Cf. Sum. Th. II-II, q. 2, a. 10: «Cum enim homo habet promptam voluntatem ad credendum, diligit veritatem creditam, et super ea excogitat et
amplectitur si quas rationes ad hoc invenire potest.» V. J.-P. Torrel, op. cit., loc. cit.
21. Cf. A. Tanquerey, op. cit., loc. cit.
22. De Verit., q. 14, a. 1, ad 3.
23. Estas distinções se encontram todas em A. Tanquerey, op. cit., loc. cit.
24. Cf. Id., ibid.
25. DS 3010.
26. Cf. A. Tanquerey, op. cit., p. 81, n. 135.
27. Id., p. 82, n. 137.
28. Id., ibid.
29. Cf. Id., ibid. (V. Cf. R. Garrigou-Lagrange, La Síntesis Tomista. Trad. esp. de Eugenio S. Melo. Buenos Aires: Dedebec, Desclée, De Brouwer,
1946, p. 374ss.)
30. Cf. R. Garrigou-Lagrange, De Revelatione. 3.ª ed., Romæ: Libreria Editrice Religiosa F. Ferrari, 1950, vol. 1, p. 410.
31. Cf. A. Tanquerey, op. cit., p. 83, n. 137.
32. Cf. . Id., p. 150, n. 258.
33. Id., p. 154, n. 265.
34. Cf. Id., ibid.
35. Cf. Id., p. 159, n. 274.
36. Id., p. 165, n. 288.
37. Cf. Id., p. 166, n. 289.
38. J.-P. Torrel, op. cit., p. 19.
39. M.-J. Nicolas, op. cit., p. 35.
40. Id., ibid.
41. O padre Teixeira-Leite Penido desenvolveu extensamente o tema em sua obra A Função da Analogia em Teologia Dogmática. Rio de Janeiro:
Vozes, 1946.
42. M.-J. Nicolas, op. cit., loc. cit.
43. Cf. Sum. Th. I, q. 2, a. 3; q. 12, a. 12; q. 44, a. 1; cf. N. del Prado, De Veritate Fundamentali Philosophiæ Christianæ. Friburgi Helvetiorum, ex
Typis Consociationis Sancti Pauli, 1911, p. 500.
44. Cf. A. Tanquerey, op. cit., p. 207, n. 403.

Aula 5 - Duns Escoto e Guilherme de Ockham

30. Recapitulação. — Estudamos na última aula as retificações que Santo Tomás de Aquino fez no pensamento
agostiniano a respeito dos papéis exercidos quer pela graça divina, quer pela vontade e inteligência humanas no ato de
fé. Vimos também que é na esteira de Santo Anselmo que pôde o Aquinate vislumbrar a razão como núcleo do actus
fidei e a possibilidade de o homem ascender às realidades divinas por meio da analogia.

É, porém, com o declínio da escolástica do século XIV que a teologia, pela pena subtil do doutor franciscano João Duns
Escoto, começa a afastar-se a pouco e pouco do espírito anselmiano da «fé em busca da inteligência», que até então
alentara e balizara o trabalho especulativo da cristandade medieval. A ruptura se tornará manifesta quando Guilherme de
Ockham enfim proclamar o divórcio entre razão e fé, inteligência e vontade. Rompido, assim, o equilíbrio entre a
natureza e a graça, os esforços por encontrar os nexos entre o criado e o divino, por desvelar os vestígios simbólicos da
Trindade no cosmos se reduzirão às ciências físicas e matemáticas, o mundo espiritual será abandonado, a filosofia
começará a degenerar-se em criticismo e a teologia, em ceticismo [1]. A partir desse momento, estarão abertos os
caminhos para a Reforma, o Renascimento e «para um voluntarismo que, deformado, pervertido, legitimará a vontade
de poder, justificará a tirania do príncipe.» [2]
Introdução ao Método Teológico - 16
31. «Scotia me genuit. Anglia me suscepit». — João Duns Escoto, de origem escocesa, nasceu, ao que tudo indica,
entre 1263 e 1266, embora há quem proponha o ano de 1274 como sua possível data natalícia [3]. Descendente de uma
família de Duns, cidade à costa oriental do Reino Unido, cresceu em Maxton, no condado Roxburgh [4]. tendo sido
enviado ainda moço—orçava então pelos dez anos—para o convento de Dumfries, às margens do rio Nith, a fim de
ingressar na Ordem dos Menores, a que foi definitivamente incorporado em 1281. Ordenado sacerdote em Northampton
em março de 1291 após uma curta temporada de estudos em Oxford, Duns Escoto dirigiu-se para Paris, onde teve a
oportunidade de ser orientado durante um triênio pelo então ministro geral da Ordem, Gonzalo de Balboa, representante
do agostinianismo franciscano e ferrenho adversário de correntes a seu ver demasiado aristotelizantes [5]. Foi uma vez
mais em Oxford, sob a tutela do frade inglês Guilherme de Ware, a quem sucederá em 1300 na cátedra de teologia [6],
que completou sua formação universitária básica. Esses períodos de estudo em Oxford, aliás, «quando a universidade
era um dos focos de reação antitomista» [7], serviram decerto para imprimir-lhe no espírito uma oposição quase
instintiva à obra de Santo Tomás, a quem dirige muitas de suas críticas, ainda que raras vezes o nomeie [8]. É curioso
observar, contudo, que é sob a pena de Escoto que «a escola franciscana, até então mais inclinada à filosofia
agostiniana, se orienta para Aristóteles, sem se unir, entretanto, ao tomismo.» [9]

32. «Gallia me docuit. Colonia me tenet». — O volumoso Opus Oxoniense, quatro livros de comentários às Sentenças
de Pedro Lombardo, é o fruto rapidamente sazonado do bacharelado que há pouco conquistara. Voltaria ainda a
trabalhar nas Sentenças, só que em Paris, aonde retornou em 1302 para obter enfim o doutorado; as anotações das aulas
aí ministradas serão depois coligidas por alguns discípulos e acabarão por compor uma obra à parte: os Reportata
Parisiensia. A obstinação de Felipe, o Belo, todavia, seja em transferir o papado de Roma para Avinhão, seja em depor
Bonifácio VIII, fá-lo-á deixar a França em 1303, «com muitos outros que haviam, como ele, tomado o partido da Santa
Sé» [10] e permanecido fiéis ao Romano Pontífice. Seu antigo preceptor, Gonzalo de Balboa, conseguiu trazê-lo de
volta a Paris já no ano seguinte, permitindo-lhe alcançar, pouco tempo depois, o título de doutor. Mal começara seu
magistério doutoral quando, a mando dos superiores da Ordem (provavelmente, como supõe Alain De Libera, com o
fito de «contrabalancear o quase monopólio intelectual exercido pelos dominicanos na Alemanha») [11], mudou-se
como que às pressas para Colônia em 1307, onde veio a morrer prematuramente aos quarenta e dois anos em novembro
de 1308 [12].

33. Uma nova metafísica. — A fecundidade de Escoto se recente, obviamente, dessa morte prematura e inesperada,
que o impediu de aperfeiçoar a sua obra, de deixar-nos «a expressão completa de seu pensamento» [13] e, talvez, de
elucidar aquelas passagens que hoje nos causam certa estranheza por sua ousadia e liberdade muita vez inquietante em
relação à doutrina tradicional da Igreja, que ora pretende reinterpretar em nova chave—à luz do sistema e da
terminologia que se vai delineando em seus escritos—e de que ora parece desviar-se por sendas que «beiraram
frequentemente o abismo.» [14] Compreende-se, apesar de tudo, o desejo de originalidade que uma inteligência jovem e
audaciosa como a dele terminaria por instigar tendo diante de si as diversas sínteses que a Escolástica vinha produzindo.
Ora, «não há dúvida de que uma geração, para se afirmar, se opõe àquela que a precedeu.» [15] Nada mais natural, pois,
que Escoto se tenha aventurado a construir um sistema próprio, servindo-se do que de melhor sua época lhe podia
oferecer: Agostinho, de cuja doutrina se embebera em boa dose por meio de Boaventura, e Aristóteles, que conhecera
antes sob o viés de Avicena do que de Averróis, que aliás fora condenado em 1277 mais por uma leitura
enviezadamente latina de suas teses do que por uma compreensão adequada de sua filosofia.

Como quer que seja, tudo isso já nos permite divisar a radical diferença de orientação entre o pensamento escotista e o
tomista em ralação a pontos fundamentais, como a natureza mesma do entendimento humano e o estatuto científico da
teologia natural [16], que conduzirão os dois doutores a resultados, se não diametralmente opostos, ao menos
inconciliáveis. Nesse sentido, a obra de Escoto representa uma verdadeira «refundação» da metafísica tradicional [17]—
aquela edificada por Aristóteles, aprimorada por Santo Tomás e vulgarizada por séculos de compêndios e manuais
escolares. De fato, malgrado possa situar-se sem grandes dificuldades «no conjunto das filosofias medievais» [18], a
obra do Doutor Subtil está permeada de concepções de fundo realmente inovadoras, que, levadas às últimas
consequências, implicarão o nominalismo de Guilherme de Ockham [19], a derrocada da teologia, a cisão moderna entre
fé e razão, a Reforma Protestante e, ao fim e ao cabo, a secularização do mundo ocidental [20]. Não se trata, é claro, de
responsabilizá-lo pelos rumos que a intelectualidade europeia tomou nas épocas posteriores, mas apenas de chamar a
atenção para os frutos que sua obra contém pelo menos «em gérmen» e de apontá-lo como um dos principais e mais
expressivos predecessores tardo-medievais do espírito moderno.

Introdução ao Método Teológico - 17


34. Ora, essa ruptura com a tradição que a filosofia e a teologia cristãs vinham desenvolvendo ao longo da história se
deu, grosso modo, em dois níveis principais: de um lado, a teoria escotista da univocação (univocismo) representará um
giro no método teológico, que, sepultado o recurso à analogia, se verá em apuros ao tentar falar racionalmente das
coisas divinas; de outro, o primado atribuído por Escoto à vontade em relação ao intelecto ( voluntarismo) fará de Deus
um legislador arbitrário a nos exigir uma obediência quase cega pela fé; com efeito, as ligas que davam solidez ao seu
edifício «tendiam, quer ele quisesse, quer não, a dissolver a trama que unia a fé a razão, o dogma e a filosofia.» [21]

A partir de agora, tentaremos analisar ligeiramente as linhas mestras desses dois núcleos da obra de Escoto; veremos
entrementes os corolários que Guilherme de Ockham (c. 1298-1347), ao radicalizar os princípios de seu subtil mestre,
deles pôde extrair.

35. Univocismo. — A premissa central da metafísica escotista é o que se costumou designar por univocidade do ente
comum. Essa doutrina, se bem considerada, parece não opor-se de modo direto à concepção analógica do ente
habitualmente defendida pelos escolásticos tomistas, mas os resultados que uma sua leitura precipitada poderia acarretar
já eram bem claras ao seu autor, que, para evitar os excessos de um possível panteísmo algo parmenidiano e o desespero
agnóstico, se viu foçado a redefinir, às vezes em termos um tanto herméticos e discricionários, a noção de unívoco [22].
Ciente das incompreensões que a reconceituação de um vocábulo já consagrado pelo uso sói ocasionar, Escoto procurou
esclarecer-se mais de uma vez. Vejamos, por exemplo, uma célebre passagem de sua Ordinatio:

 Em segundo lugar, digo que Deus pode ser


concebido não somente em um conceito análogo ao
 Secundo dico quod non tantum in conceptu
conceito da criatura, ou seja, Deus é algo
analogo conceptui creaturae concipitur Deus,
completamente diverso daquilo que se predica da
scilicet qui omnino sit alius ab illo qui de creatura
criatura, mas também em um certo conceito
dicitur, sed in conceptu aliquo univoco sibi et
unívoco entre Si e a criatura. Para que não haja
creaturae. Et ne fiat contentio de nomine
desentendimentos em relação ao que chamo
univocationis, univocum conceptum dico, qui ita
univocação, denomino unívoco o conceito que é de
est unus quod eius unitas sufficit ad
tal maneira uno, que a sua unidade é suficiente para
contradictionem, affirmando et negando ipsum de
a contradição, afirmando e negando o mesmo do
eodem; sufficit etiam pro medio syllogistico, ut
mesmo; é também suficiente como termo médio de
extrema unita in medio sic uno sine fallacia
um silogismo, de forma que os extremos por ele
aequivocationis concludantur inter se uniri [23].
unidos possam, sem erro de equivocação, ser
pensados como unidos entre si.

O fato é que, ao tentar salvar a possibilidade da metafísica como ciência do ente enquanto ente, Escoto parte do
pressuposto de que a inteligência humana tem por objeto primário e proporcionado não a quididade do ente material
(ens materiale)—pois então, a seu ver, todo o nosso conhecimento limitar-se-ia à ordem física—mas, sim, o ser comum
e indeterminado das coisas. A via analogiæ, por meio da qual podemos «passar do sensível às noções metafísicas e à
noção proporcionalmente una (e universal) do ser» [24], parecia-lhe insuficiente para fundar uma genuína metafísica, já
que um conceito de ser que não fosse unívoco, ou seja, estritamente uno, não poderia dar unidade e certeza ao
conhecimento que podemos ter das coisas, que atualizam em modos e graus diversos o ser que recebem per
participationem de Deus. No entanto, aplicar às criaturas e a Deus um conceito de ser de tal forma unívoco, isto é,
torná-lo um universal lógico que possa convir, sob uma só e mesma razão, a tudo o que de algum modo é [25],
inviabiliza a possibilidade de qualquer ciência, porquanto o ser assim considerado pode apenas designar algo de
«indeterminado, que significa simplesmente o determinável, quer dizer, o próprio puro sujeito da existência, encarado,
abstratamente, sem nenhuma determinação objetiva.» [26]

Era de se esperar, pois, que a insegurança que essa indeterminação causaria no campo das ciências especulativas tenha
fomentado em grande parte a paixão, sempre mais crescente no seio das universidades, sobretudo das inglesas, pelas
ciências físicas e matemáticas. Para Ockham, aliás, já não haverá mais nada que «possa servir de base ao conhecimento,
a não ser o que é evidente aos sentidos ou deriva necessariamente de suas comparações.» [27]

Introdução ao Método Teológico - 18


36. Voluntarismo. — Ora, de que modo seria possível falar de Deus numa tal situação? Se, com efeito, o próprio ser
participado das coisas criadas se nos torna opaco, vazio, indefinido, como poderemos conceber que se possa falar de
Deus, que é o próprio Ser subsistente (ipsum esse subsistens)? Se entre o ser divino e o ser criado existe uma
univocidade conceitual, como distinguir um do outro? Como admitir, ademais, que o que se diz da criatura convém a
Deus num mesmo sentido? Ele passa, assim, a habitar numa luz absolutamente inacessível: se conhecemos, ou julgamos
conhecer, algo a respeito de Deus, é porque Ele, segundo o seu beneplácito, no-lo quis revelar; a Sua vontade começa a
sobrepor-se à Sua sabedoria. Por isso, o primado da vontade [28] sobre o intelecto decorre em certa medida do que
dissemos a respeito da ontologia escotista e também da psicologia desenvolvida por Escoto, para quem, além de a
vontade poder autodeterminar-se, ela é a única garantia de que Deus não esteja circunscrito por nenhum limite. Ockham
chegará ao extremo de dizer que, sendo Deus infinitamente livre e onipotente, Sua vontade é capaz de fazer qualquer
coisa, até o absurdo, o contraditório: poderia inclusive ter-Se incarnado num burro, num madeiro ou numa pedra [29].

Abrem-se aqui as portas para o irracionalismo teológico; e é a vontade fiducial, como concluirá Ockham, que terá de
fazer as vezes do entendimento. Estão lançados os alicerces sobre os quais se içará o princípio luterano da «sola fide».

Referências

1. Cf. Jacques Le Goff, Os Intelectuais na Idade Média. Trad. port. de Marcos de Castro. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012, pp. 162-5.
2. Id., p. 164.
3. Cf. H. Petiot [Daniel-Rops], «A Igreja das Catedrais e das Cruzadas», in: História da Igreja de Cristo, vol. 3. Trad. port. de Emérico da
Gama. 2.ª ed., São Paulo: Quadrante, 2012, p. 375; Pe. Leonel Franca, Noções de História da Filosofia. 18.ª ed., Rio de Janeiro: Agir, 1965, p.
111; Theobaldo M. Santos, Manual de Filosofia. 12.ª ed., São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1961, p. 414. Thomas Williams (ed.). The Cambridge
Companion to Duns Scotus. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 1-15.
4. Cf. Étienne Gilson, A Filosofia na Idade Média. Trad. port. de Eduardo Brandão. 2.ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 736; B.
Llorca; R. García-Villoslada; J. M. Laboa, Historia de la Iglesia Católica. 6.ª ed., Madri: BAC, 1999, vol. 2, p. 789.
5. Cf. Étienne Gilson, Op. cit., loc. cit.
6. Cf. B. Llorca; R. García-Villoslada; J. M. Laboa, op. cit., loc. cit.
7. Pe. Leonel Franca, op. cit., loc. cit.
8. Cf. B. Llorca; R. García-Villoslada; J. M. Laboa, op. cit., p. 790.
9. Theobaldo M. Santos, op. cit., loc. cit.
10. Étienne Gilsosn, op. cit., loc. cit.
11. Cf. A. De Libera, A Filosofia Medieval. Trad. port. de Nicolás N. Campanário e Yvone M. de Campos T. da Silva. 3.ª ed., São Paulo:
Loyola, 2011, p. 419; Battista Mondin, Curso de Filosofia. Trad. port. de Benôni Lemos. 15.ª ed., São Paulo: Paulus, 2008, p. 212.
12. Cf. Étienne Gilson, op. cit., loc. cit.; García-Villoslada, R.; Laboa, J. M. Op. cit., p. 789.
13. Id., p. 737.
14. H. Petiot [Daniel-Rops], op. cit., p. 376.
15. Id., p. 374.
16. Cf. Étienne Gilsosn, op. cit., pp. 752-5.
17. Cf. Josep-Ignasi Saranyana, A Filosofia Medieval: Das Origens Patrísticas à Escolástica Barroca. Trad. port. de Fernando Salles. São
Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência "Raimundo Lúlio", 2006, pp. 383-5.
18. Étienne Gilson, op. cit., pp. 752-5..
19. Cf. J. M. A. Vacant, Études comparées sur la Philosophie de S. Thomas d'Aquin et sur celle de Duns Scot. Paris, Delhomme et Briguet,
1891, vol. 1, p. 3ss.
20. O excelente livro The Unintended Reformation: How a Religious Revolution Secularized Society, do historiador Brad S. Gregory
(Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2012), se propõe demonstrar que fenômenos tais como o
pluralismo religioso, a limitação da fé a uma questão de âmbito privado, a secularização das instituições sociais, a circunscrição das ciências aos
limites do naturalmente observável, a relativização da moral, a redução do Direito a normas positivas etc. são efeitos remotos dos princípios de que
se abasteciam os reformadores do séc. XV, legatários do nominalismo longamente germinado das sementes de um escotismo radical.
21. Cit. de Émile Bréhier apud H. Petiot [Daniel-Rops]. Op. cit., p. 375.
22. Cf. I. Gredt, Elementa Philosophiæ Aristotelico-Thomisticæ. 13.ª ed., Barcelona: Herder, 1961, vol. 1, p. 156, n. 174, 2; Josep-Ignasi
Saranyana, op. cit., p. 398.
23. Ordinatio, I, dist. 3, q. 2, 26 (trad. nossa).
24. R. Jolivet, «Metafísica», in: Tratado de Filosofia. Trad. port. de Maria da G. P. P. Alcure. Rio de Janeiro: Agir, 1965, vol. 3, p. 206, n.
178. A respeito da analogia, o IV Concílio de Latrão, c. 2, adverte-nos que «entre o criador e a criatura não se pode observar tamanha semelhança
que não se deva observar diferença maior ainda» (DS 806).
25. Cf. I. Gredt, op. cit., loc. cit., n. 175.
26. R. Jolivet, op. cit., loc. cit. Pode-se dizer que, em última análise, o univocismo característico do pensamento de Escoto: (i) depende do
lapso metodológico de considerar o ser apenas do ponto de vista de sua extensão e submetê-lo a um processo de abstractio totalis, o que fornece
tão-somente «um quadro comum, no qual está admitida toda a múltipla variedade de seres» (Id., p. 191), sem considerar os modos de ser que a
cada um convém; (ii) radica na rejeição da distinção tomista entre essência (essentia) e ato de ser (actus essendi).
27. H. Petiot [Daniel-Rops]. Op. cit., p. 624.
28. O Papa Bento XVI apresentou, de forma serena e ponderada, os contornos gerais do voluntarismo de Duns Escoto em uma audiência
geral de 7 de julho e 2010, na Sala Paulo VI. O texto completo se encontra disponível em (sítio): <goo.gl/rQpWOr>.
Introdução ao Método Teológico - 19
29. Cf. Centiloquium, c. 6. A autoria desta obra é controvertida, mas o seu espírito decerto pertence à escola ockhamista. V. M. Eliade,
História das Crenças e Ideias Religiosas. Trad. port. de Roberto C. de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, vol. 3, p. 188.

Aula 6 – Martinho Lutero

37. Recapitulação. — Vimos na última aula como a refundação da metafísica por Duns Escoto deu início a um
movimento de paulatina contraposição ao espírito escolástico do século XIII, cujas sequelas, porém, não se fariam sentir
senão anos mais tarde. Procuramos ressaltar a função que o univocismo escotista, levado às últimas consequências pelo
frade franciscano Guilherme de Ockham, teve no desenvolvimento de uma teologia acentuadamente voluntarista e anti-
intelectualista. É na esteira deste gradativo divórcio entre as ordens natural e sobrenatural que atuará Martinho Lutero.
Se, de um lado, a radicalização por Ockham da obra Escoto representara uma revolução, em tese, estritamente
intelectual e acadêmica, a revolta de Lutero (1483-1546), por outro, acarretará uma verdadeira apostasia em massa.

38. Vida e formação. — Nascido em novembro de 1483, em Eisleben, cidade localizada no centro-leste da Alemanha,
Martinho Lutero teve uma infância simples e sem luxos. Seu pai, Hans Ludher, mineiro e camponês de rija têmpera,
mudou-se com a família para Mansfield, pequenino burgo às margens do rio Wipper, um ano depois do nascimento do
filho, podendo lhe oferecer ali uma formação no mínimo rudimentar. O futuro reformador cresceria em meio à
atmosfera geral do Seiscentos, que já presenciara o declínio da Escolástica tardia e assistia agora, maravilhado, ao
redescobrimento sob nova luz dos tesouros do paganismo antigo, com que inevitavelmente se mesclavam, sobre os
cascalhos da via antiqua, as superstições da época [1]: de fato, como a muitos de seus contemporâneos, por Lutero não
passariam indiferentes a força sedutora do simbolismo alquímico [2] e o pavor das bruxas. O seu gênio, contudo, parece
não poder reduzir-se ao clima intelectual que produzia o neoplatonismo humanista e a astronomia copernicana; uma
psicologia densa como a dele, talvez a mais densa e complexa dentre os grandes heresiarcas, não pode ser
satisfatoriamente explicada «pelo espírito de seu século.» [3] Como diz Mircea Eliade, foram ao contrário «as
experiências pessoais de Martinho Lutero que contribuíram, em grande parte, para modificar [...] a orientação espiritual
da época.» [4]

A universidade de Erfurt, a partir de 1501, instrui-lo-á no ockhamismo, que já há tempos se tornara o modelo padrão de
ensino escolástico. Obtido o diploma de filósofo em 1505, o pai forçá-lo-á a matricular-se, bem a contragosto, na
faculdade de Direito. Lutero, por conta de seu temperamento um tanto melancólico e propenso à introspecção—traços
cultivados em meio às tristezas e angústias que experimentara seja na casa paterna, seja na escola [5]—sofrerá, em julho
do mesmo ano, um forte choque, quando, assaltado por uma tempestade, for quase prostrado por um raio [6]; o susto o
impelirá, sem a deliberação e serenidade necessárias a uma tal decisão, a abraçar a vida religiosa. Apenas duas semanas
depois entrará para o mosteiro agostiniano de Erfurt.

O ingresso na vida monástica, todavia, não lhe trouxe a paz espiritual de que carecia. Considerado desde cedo uma
«grande esperança para o púlpito e para a cadeira de professor» [7], o inquieto noviço saberia dissimular seu estado de
ânimo; o nervosismo que herdara dos pais passou decerto, ao menos num primeiro momento, despercebido por seus
irmãos de hábito, dos quais aprendeu a amar a clausura e a leitura zelosa da Sagrada Escritura. Ordenado sacerdote em
abril de 1507, alguns meses depois de ter professado, então com pleno discernimento, os votos solenes, são-lhe enfim
abertos os átrios da teologia, que conhecerá, sobretudo, pela ótica ockhamista de Gabriel Biel [8]. Antes de concluir
seus estudos, porém, foi enviado para ensinar ética aristotélica a Wittenberg e depois, como lente sentenciário, à
universidade Erfurt, onde se graduara. Essas primeiras preleções, se bem não permitissem ainda entrever o esgar
buliçoso do futuro pai do Protestantismo, já denunciavam o seu desprezo pela Filosofia clássica e a via antiqua, mundo
com que aliás nunca chegou a ter um contato autêntico [9].

Vai senão quando, em 1510, o vigário geral dos Agostinianos na Alemanha, Johann von Staupitz, planeja fundir os
conventos de sua província com os sete da observância, que, contrários à proposta de fusão, enviam Lutero, na época
um dos mais estrênuos opositores, a Roma, a fim de verem defendida a sua causa perante as autoridades eclesiásticas. A
missão diplomática de Lutero foi embalde, além de o seu pedido, expressão de um certo oportunismo e talvez prenúncio

Introdução ao Método Teológico - 20


do futuro abandono do hábito, de «trocar o cogula regular pela sotaina do clérigo secular» [10] ter sido recusado. Essa
curta temporada junto à Sé de Pedro, onde pôde contemplar até que ponto as vaidades do mundo haviam penetrado a
Igreja, deixar-lhe-á para sempre um profundo desgosto e uma «impressão bastante desfavorável» [11] em relação ao
papado e à hierarquia. O papa, contudo, só se tornará o Anticristo—assim o diz numa de suas Conversas à Mesa—anos
mais tarde [12].

O próprio Staupitz o chamará de volta à Alemanha a fim de doutorar-se em Teologia. Não é de espantar, pois, que tenha
entrementes mudado de posição relativamente à querela por que fora enviado a Roma; para quem lhe conhecia o caráter,
escreve o frei Dagoberto Romag, «a mudança repentina não causa maravilha.»[13] O fato é que já em 1512 Lutero
ministrava aulas sobre os Salmos e as epístolas paulinas e é decerto ao longo desse magistério que o trecho «o justo
viverá pela Fé» (1Rom 1, 17) começará a ferir-lhe os ouvidos. Os escritos agostinianos sobre a graça, a justificação e os
méritos, de cuja leitura se ocupara nos momentos de ócio durante a graduação, não devem tê-lo persuadido e aquietado-
lhe os escrúpulos da consciência; pelo contrário, a todo esforço racional de especulação teológica a que se entregava
tendiam a sobrepor-se inadvertidamente os seus modos irrequietos, as suas opiniões preconcebidas, o seu temperamento
não raras vezes pendente ao subjetivismo [14]. Nesse sentido, os princípios motores da revolução luterana devem, em
última análise, ser procurados na pessoa mesma de Lutero, «e não na sua pretensa vontade de reformar a Igreja, nem na
controvérsia sobre as indulgências. Esta foi apenas ocasião e generalizou o movimento de inovação.» [15] Como diz
Julian Belda Plans,

A reforma luterana (e também a reforma da teologia) parte de uma inquietação religiosa pessoal, e não de uma
investigação intelectual. Por isso, ainda que suas formulações doutrinais tenham raízes na formação filosófico-teológica
de Lutero, apenas a sua postura religiosa pessoal pode explicá-las de todo. Portanto, a única explicação satisfatória sobre
a origem da teologia luterana é a teorização de sua experiência pessoal [...] [16].

É curioso observar, em todo caso, que o desenvolvimento das ideias de Lutero, diferentemente do que se passou com os
heresiarcas que o precederam, ocorreu no curso convencional e burocrático de uma formação acadêmica [17]. O
ockhamismo, de que era em grande parte tributário, e, possivelmente, o pensamento político de Marsílio de Pádua [18]
foram os dois vetores principais que engendraram a revolta que ele estava por inaugurar. Muito embora tenha rompido,
ao que tudo indica, com a escola de Ockham em alguns pontos [19], Lutero permaneceria um ockhamista de fundo até o
fim de sua carreira. De fato,

Ockham ensinara a possibilidade de uma imputação da justiça [...]. Lutero estabelece tal imputação como fundamento
de sua teologia [...], negando a necessidade e até a existência da graça santificante. Os ockhamistas concordam, sim, em
que seja impossível provar todas as verdades reveladas pela luz natural da razão. Mas vão além: acham que possa haver
verdade teológica que filosoficamente seja erro [...]. Lutero estabeleceu uma direta oposição entre a fé e a razão. A
razão, debilitada pelo pecado original, não é, segundo ele, capaz de conhecer as coisas da fé [...] [20].

39. Um drama interior. — Pode-se dizer que é justamente aí, nesta tensão entre razão e fé, que reside o drama interior
que o moveu em seus trinta anos de oposição, deflagrada formalmente em outubro de 1517, à Tradição, à fé da Igreja e
ao papado. O terrível complexo de culpa e a amarga sensação de não poder crer-se perdoado por Deus foram apenas o
pródromo de uma crise que irromperia antes mesmo de as 95 teses serem afixadas à porta da igreja do castelo de
Wittenberg. Ainda em 1515, impedido por várias ocupações de cumprir à risca a disciplina religiosa que se lhe exigia,
Lutero irá perturbar-se gradativamente mais ao meditar sobre o contraste entre a justiça colérica de Deus durante a
Antiga Aliança e o amor por Ele manifestado em Jesus Cristo [21]. Não parece implausível associar a leitura apaixonada
da Theologia Deutsch—da qual concluirá, contrariamente ao que o próprio Tauler quisera ensinar, ser a vontade
humana absolutamente passiva e as boas obras, de todo ineficazes—aos resultados a que chegara no seu curso sobre a
primeira epístola do apóstolo Paulo aos romanos: a justiça divina não é outra coisa senão «o ato pelo qual Deus torna
um homem justo; em outros termos, o ato pelo qual o crente recebe, graças à sua fé, a justiça obtida pelo sacrifício de
Cristo.» [22]

Esse binômio «justificação pela fé» (sola fide) e «passividade da vontade humana» (sola gratia), que constitui o núcleo
básico em torno do qual o luteranismo irá constituir-se, é como que a ressonância teórica de um conflito, que em Lutero
chega às raias do psicótico, entre a razão e as verdades da fé. Ora, ele crerá poder resolvê-lo não pelo apaziguamento de
Introdução ao Método Teológico - 21
ambos os lados, reconhecendo, como o fizera sempre a cristandade, a perfeita sublimidade da Revelação e a
necessidade, por um esforço humildade da inteligência, de defender a verdade integral tal como Deus no-la quis revelar,
mas antes pela crucificação da razão humana—a prostituta diaboli, prostituta do diabo, como significativamente lhe
chama [23]. Dados esses passos, as universidades fautoras da Teologia Escolástica começarão a parecer-lhe antros de
corrupção, lupanários do Anticristo [24]: a filosofia se torna assim não apenas um empreendimento inútil, mas
sobretudo pernicioso, perigoso; a única via aberta é a theologia crucis, por meio da qual o homem, consciente da
essencial corrupção de sua natureza e, portanto, de sua incapacidade de realizar obras boas e meritórias, descobre na
Cruz a misericórdia de Cristo, em Quem fiducialmente confia e por cujos méritos se vê livre da imputação dos próprios
pecados [25].

A partir desse momento, a teologia ver-se-á reduzida à Economia, pois, sendo o seu objeto próprio apenas o homem réu
de pecado em sua relação com a Cruz redentora de Nosso Senhor, Deus será espoliado de sua majestade celeste e se
tornará um Deus ad hominem, isto é, todo voltado a encobrir com «o manto dos méritos do Redentor» [26] os nossos
pecados, sem que possamos nunca jamais despojar-nos do homem velho e revestir-nos de Cristo. Trata-se, ao fim e ao
cabo, de um processo gradual de subjetivação da vida religiosa, que culminará na arbitrarização da hermenêutica
bíblica, na proliferação sem rédeas de incontáveis denominações protestantes e, por vias outras e indiretas, nos assomos
místico-sentimentais do pentecostalismo moderno.

Referências

1. Cf. D. Romag, Compêndio de História da Igreja. 2.ª ed., Rio de Janeiro: Vozes, 1952, vol. 3, p. 20, n.18.
2. Cf. M. Eliade, História das Crenças e Ideias Religiosas. Trad. port. de Roberto C. de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, vol. 3, p. 224. (V. J.
Needham, Science and Civilisation in China. Cambridge: Cambridge University Press, 1983, vol. V:5, p. 1.)
3. Id., ibid.
4. Id., ibid.
5. D. Romag, op. cit., loc. cit., n. 20.
6. Cf. Euan Cameron, The European Reformation. 2.ª ed., Oxford: Oxford University Press, 2012, pp. 114-5; H. G. Wouters, Historiæ Ecclesiasticæ
Compendium. Neapoli, ex Officina Fibreniana, 1862, t. 2, p. 132, n. 1.
7. D. Romag, op. cit., pp. 20-1, n. 21.
8. Cf. Id., p. 21, n. 22.
9. Cf. Id., ibid., n. 23
10. Id., ibid., n. 24.
11. Id., ibid., n. 25.
12. Cf. W. Hazlitt (ed.), The Table Talk of Martin Luther. 2.ª ed., London: Bell & Daldy, York Street, Convent Garde, 1892, p. 193, n. 429.
13. D. Romag, op. cit., p. 22, n. 27.
14. Cf. Id., p. 21, n. 23; p. 23, n. 27.
15. Id., pp. 26-7, n. 35.
16. Juan B. Plans, Historia de la Teología. Madri: Palabra, 2010, p. 153 (trad. nossa).
17. Cf. Euan Cameron, op. cit., p. 114.
18. D. Romag, op. cit., p. 23, n. 28.
19. Cf. Euan Cameron, op. cit., p. 116.
20. D. Romag, op. cit., loc. cit.
21. M. Eliade, op. cit., p. 225.
22. Id., ibid.
23. Cf. Juan B. Plans, op. cit., loc. cit.
24. Cf. Id., ibid.
25. Cf. Id., p. 154. A theologia crucis, enquanto contraponto à theologia gloriæ da Escolástica tradicional, foi primeiramente esboçada por Lutero em 1518,
na vigésima tese da Hidelberg Disputation, segundo a qual «merece ser chamado de teólogo aquele que compreende que as coisas visíveis e manifestas de
Deus são vistas através do sofrimento e da cruz.»
26. D. Romag, op. cit., p. 24, n. 33.

Aula 7 – Conclusão da Parte histórica

40. Fé e razão. — Com as cinco aulas que compuseram esta breve introdução histórica esperamos ter mostrado que, em
linhas gerais, o desenvolvimento do método teológico ao longo dos séculos teve como eixo principal o problema das
relações entre razão e fé. Ora, isso não quer dizer, naturalmente, que esse problema se tenha apresentado às primeiras
gerações cristãs, que não assistiram às grandes cisões da modernidade, nos mesmos termos em que se nos apresenta
hoje; acrescidas, pois, às leituras conflitivas que pulularam na Idade Média, as antropologias iluministas, ao substituírem
a noção genuinamente cristã de «pessoa» pelo primado da razão e, por conseguinte, da dignidade intrínseca à natureza
humana, farão das tensões entre o dado da fé e a razão discursiva expressões sintomáticas de uma esquizofrenia latente.
Como quer que seja, a fé não deixa de ser um dado inerente a todo fiel; ela é aquilo em que e por que todo cristão crê

Introdução ao Método Teológico - 22


nas verdades que Deus nos quis revelar. As dificuldades surgem, pois, quando ele propõe-se explicá-la e expô-la, ou
seja, no momento em que pretende fazer teologia.

41. Momentos da Teologia. — Ora, como teremos ocasião de estudar na nona aula deste curso, a teologia estrutura-se
sobre dois momentos internos: de um lado, (a) a escuta da fé (auditus fidei), em que o crente, atento à pregação
evangélica, recebe a fé da Igreja por meio do Magistério Eclesiástico, das Sagradas Escrituras, da Santa Tradição, dos
Santos Padres etc.; em termos metodológicos, o auditus fidei consiste no trabalho de levantamento dos dados contidos
nas fontes que de alguma maneira expressam e conservam a fé católica a respeito de determinado assunto [1]. De outro
lado, (b) a inteligência ou compreensão da fé (intellectus fidei), mediante a qual o fiel reflete sobre o dado que
anteriormente procurava, busca aprofundar-se nele e descobrir-lhe os nexos com as verdades reveladas.

42. Teologia e Filosofia. — Com efeito, o cristianismo se viu desde cedo compelido a dar a razão de sua esperança (cf.
1Pd, 3, 15): de São Paulo Apóstolo (cuja pregação no Areópago de Atenas, «cidade símbolo da paideia greco-romana»
[2], foi o primeiro choque significativo entre a novidade do Evangelho e a mentalidade e a filosofia pagãs) querem saber
os atenienses, atônitos, que vem ser aquela nova doutrina (cf. At 17, 19-20); e o Apóstolo não se furta a declarar, logo no
início do seu discurso, que lhes anuncia o Deus desconhecido que já adoram (cf. At 17, 23), porque desde a criação do
mundo, as Suas perfeições invisíveis, «o Seu sempiterno poder e divindade, se tornaram visíveis à inteligência, por Suas
obras» (Rm 1, 2). A rejeição dos areopagitas à ressurreição dos mortos (cf. At 17, 32), todavia, indica-nos que receber os
dados da fé não é suficiente para fazer teologia; além de ouvir a fé, que já possui, o cristão, segundo suas possibilidades
e estado particular, é chamado a meditar sobre o que lhe foi entregue: é, portanto, na tentativa de explicar e aprofundar-
se nos mistérios em que se insere que surgem as tensões entre os limites de sua racionalidade e a luz fulgurante da fé.

Nesse sentido, a urgência de evangelizar o universo pagão já fizera sentir aos cristãos dos primeiros séculos a
necessidade de uma certa adequação, por assim dizer, àquele mundo de «vasta e profunda cultura» [3] em que viviam,
não para tornar-lhe palatável o cristianismo, mas para vivificá-lo desde dentro e pô-lo à sombra da Cruz, que alumia;
recorrer aos instrumentos intelectuais que lhes disponibilizava a filosofia que até então se desenvolvera era apenas o
primeiro passo que teria de dar a cristandade não apenas para difundir a Boa Nova e precisar os dogmas que os
primeiros Símbolos da Fé começavam a compendiar, mas sobretudo para poder defender-se das polêmicas mais e mais
organizadas em que se envolvia com pensadores e autoridades anticristãs (cf. § 9) [4]. Aliás,

O fato mesmo de o grego ter-se tornado bem cedo a língua da Igreja favoreceu a contribuição da cultura pagã à
definição do dogma e da catequese cristã: [...] as exigências missionárias impunham a apresentação da mensagem cristã
numa forma que não estivesse muito distante da que tinha o pagão culto, de modo que ele a percebesse como aceitável
[5].

Essa apropriação das categorias conceituais que a cultura greco-romana por tão longo tempo polira e aprimorara, não é
possível entendê-la como uma mera eventualidade, mas, sim, como determinação da Providência divina, a que aprouve
depurar pela filosofia o que no mundo pagão era idolátrico e pervertido, assim como pelos Profetas purificara a religião
de Israel e a preparara para a vinda do Messias. A partir daí, os Santos Padres da Igreja, quer gregos, quer latinos,
operarão uma síntese cada vez mais harmônica e estreita entre a fé perene e imutável que Nosso Senhor confiou a Sua
Esposa e o que a filosofia tinha de verdadeiro a dizer sobre a fFé, fosse para explicá-la, fosse para corroborá-la e
defendê-la; desse modo, ambas—teologia, enquanto exercício racional da fé, e filosofia, na medida em que é o aporte
próprio da razão humana—caminharão juntas, cada uma ocupando o lugar que por direito e dignidade lhe compete, até
que, séculos mais tarde, convencê-las-ão haver sido um erro o seu casamento. «Enquanto esperam a separação, que não
tardará»—em verdade, consumar-se-á definitivamente em Lutero, cristalizando as tendências teológicas inauguradas por
Escoto e radicalizadas por Ockham—«procedem à separação e bens. Cada uma retoma a posse de seus problemas e
proíbe que a outra os toque.» [6]

Portanto, as acusações, vindas muita vez de setores protestantes, de que o «cristianismo constantiniano», pecha com que
se pretende menoscabar a Igreja Católica, teria sido uma paganização da religião cristã por meio duma gradativa
conformação ao mundo helênico, desvinculando-se, assim, de suas raízes semíticas [7], são injustas e infundadas,
porque ignoram que a fé, por si só, já «representa uma afirmação filosófica» [8], ao supor e professar a existência de um
Deus senhor de todo o universo. Evidentemente, uma tal fé, que «ultrapassa a comunidade particular de religião», não

Introdução ao Método Teológico - 23


pode contentar-se em ser «um símbolo do inominável», «mas sim uma afirmação sobre a própria realidade em si.» [9]
De fato, como tivemos ocasião de acenar algumas linhas acima,

Este irromper do pensamento de Deus para uma exigência básica à razão humana é muito clara na crítica à religião dos
profetas de Israel e dos livros sapiências da Bíblia. Quando neles são mordazmente ridicularizados os deuses
autofabricados, e quando a estes se opõe o único Deus verdadeiro e real, estamos diante do mesmo movimento espiritual
que pode ser encontrado nos pré-socráticos do antigo iluminismo grego. Quando os profetas veem no Deus de Israel a
razão criadora de toda realidade, trata-se claramente de crítica religiosa em favor de uma visão correta da realidade.
Aqui a fé de Israel ultrapassa claramente os limites de uma religião do povo; ela representa uma exigência universal,
onde a universalidade está ligada à racionalidade. Sem esta crítica religiosa profética, o universalismo cristão teria
permanecido inimaginável. Nela preparou-se no interior do próprio Israel aquela síntese elementar entre o elemento
grego e o bíblico, pela qual lutaram os Padres da Igreja [10].

O «Deus da fé» e o «Deus dos filósofos», segundo uma distinção que infelizmente já se tornou usual, são para o cristão
uma e só e mesma realidade; o Deus Unitrino que inabita a alma do fiel, que falara a Adão e Eva no Paraíso, que fizera
as promessas à Abraão e a sua descendência, o Deus que enviou Seu Filho Unigênito para vencer a morte e conceder ao
homem a vida divina é o mesmo Deus que tudo dispôs com número, peso e medida (cf. Sab 11, 20) e cujas obras tornam
manifestas ao espírito humano a Sua existência e o Seu poder: Aquele, «a quem todos costumam chamar Deus», como
escrevia Santo Tomás de Aquino, é o primeiro motor e o Pai de todas as coisas, é a fonte de todas as perfeições e a
Beleza infinita, é o regedor da criação e o Dispensador da Graça, é o Ser subsistente e o Deus de Israel. Não é possível
separá-los sem criar dois deuses e pôr abaixo, assim, toda a fé católica. Do mesmo modo, teologia e filosofia estão de tal
sorte interligadas entre si, que, excluída uma delas, ou a se suprime da teologia o chão debaixo dos pés, ou se paralisa a
filosofia [11].

Caberá a Lutero decretar esse divórcio e cindir o espírito humano em dois setores estanques: de uma parte, a razão,
sistemática e cética; de outra, uma fé ingênua e claudicante. Ora, esse processo como que de anquilosamento da
inteligência, que se vinha desenvolvendo desde a Baixa Idade Média, estará enfim plenamente petrificado no século
XVIII; o criticismo e o pietismo característicos do pensamento kantiano acabarão por tornar-se as duas faces de que será
composta a ambígua personalidade do homem moderno: «Tive pois de suprimir o saber para encontrar lugar para a
crença» [12], escreverá Kant no prefácio à edição de 1787 de sua Crítica da Razão Pura. Da aliança entre o fideísmo
protestante e o pensamento iluminista resultará a separação definitiva entres as verdades da fé e da razão, a religião será
expulsa da vida pública e reduzida a um problema pessoal.

Referências

1. Cf. J. B. Libanio; A. Murad, Introdução à Teologia: Perfil, Enfoques, Tarefas. 6.ª ed., São Paulo: Loyola, 2007, p. 94.
2. C. Moreschini, História da Filosofia Patrística. Trad. port. de Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2008, p. 12.
3. Id., p. 17.
4. Cf. Id., ibid. (V. Josep-Ignasi Saranyana, A Filosofia Medieval: Das Origens Patrísticas à Escolástica Barroca. Trad. port.
de Fernando Salles. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência "Raimundo Lúlio", 2006, p. 45.)
5. Id., p. 18.
6. Étienne Gilson, A Filosofia na Idade Média. Trad. port. de Eduardo Brandão. 2.ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.
753.
7. Cf. J. Ratzinger, Natureza e Missão da Teologia. Trad. port. de Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p. 19.
8. Id., p. 22.
9. Id., ibid.
10. Id., ibid.
11. Cf. Id., p. 20.
12. Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura. Trad. port. de Manuela P. dos Santos e Alexandre F. Morujão. 6.ª ed., Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2008, p. 27 (B XXX).

Introdução ao Método Teológico - 24


A Ciência Teológica

Aula 8 – Definição e natureza da Teologia

3. Introdução. — Conforme anunciado na primeira aula (cf. I, § 2), daremos início doravante à última parte do nosso
curso de Introdução ao Método Teológico. Julgamos oportuno, antes de mais, tornar claro para o leitor em que
propriamente consiste, segundo o entendimento tradicional da Igreja Católica, a teologia. Por isso, dividimos a presente
lição em três momentos: nos dois primeiros, procuraremos sistematizar alguns conceitos e noções de que já lançamos
mão na primeira e quarta aulas da seção histórica; por fim, trataremos em breves palavras da ideia de senso ilativo,
desenvolvida pelo Beato John Henry Newman.

A) Preliminares

44. Deus nos fez para Si. — Criado à imagem e semelhança de Deus, o homem tem inscrito em seu coração o desejo de
participar daquela bem-aventurança a que foi desde o princípio destinado por seu Criador, «que não quer que alguém
pereça» (2Pd 3, 9) mas, ao contrário, deseja reunir em um só rebanho todos os filhos que elegeu para Si. De fato, tendo
determinado derivar de um só pai toda a família humana, Deus nos pôs nesta terra a fim de que, não constrangidos senão
pela própria consciência e os mandamentos da Lei eterna, pudéssemos buscá-lO com um amor livre e sincero. Com
efeito, movido em Sua misericórdia pela corrupção da morte a que o pecado subjugou o gênero humano, disperso e
afastado da casa paterna, «aprouve a Deus [...] revelar-Se a Si mesmo e tornar conhecido o mistério de Sua vontade,
pelo qual os homens, por intermédio de Cristo, Verbo feito carne, no Espírito Santo, têm acesso ao Pai e se tornam
participantes da natureza divina.» [1] Era conveniente, pois, que Deus, segundo os mistérios do Seu amor, «depusesse o
Seu poder no limiar da História» [2] e, dirigindo-Se-nos por meio do Filho Unigênito, que assumiu a condição de
escravo e mostrou-Se semelhante a nós (cf. Fl 2, 7), a fim de não nos suprimir a liberdade, mas antes preservá-la, desse
a todos os homens um coração capaz de conhecê-lO [3] e ouvidos abertos às verdades reveladas, pois, de fato,

Mediante a razão natural, o homem pode conhecer a Deus com certeza a partir de Suas obras [cf. At 17, 27]. Mas existe
outra ordem de conhecimento que o homem de modo algum pode atingir por suas próprias forças, a da Revelação
divina. Por uma decisão totalmente livre, Deus Se revela e Se doa ao homem. Fá-lo revelando Seu mistério, Seu projeto
benevolente, que concebeu desde toda a eternidade em prol de todos os homens [4].

45. Deus nos chama à Verdade em Cristo. — Ora, de nada adiantaria Deus revelar-Se à humanidade, se Ele nos
houvesse criado absolutamente moucos ao Seu chamado. Por isso, como nos quisesse elevar à intimidade da vida divina
e à sublimidade de Sua verdade superabundante, apresentando sinais credíveis e proporcionados do Seu apelo [5], fez-
nos aptos a reconhecer, nas obras que operaria pelo Filho, a veracidade do Seu testemunho e a segurança de Sua
doutrina, cujo aroma excede o odor de toda e qualquer sabedoria humana (cf. Ct 4, 10). Sob a condição de
permanecermos na Sua palavra, que ouvira do Pai, Nosso Senhor Jesus Cristo veio trazer-nos a liberdade mediante a
verdade (cf. Jo 8, 32) por que todo espírito ardentemente almeja. Ao corresponder, pois, às mais profundas exigências
do coração humano, a verdade cristã, que se traduz e expressa por meio do tesouro da fé confiado pelo mesmo Cristo à

Introdução ao Método Teológico - 25


Sua Igreja, pode dizer-se verdadeiramente libertadora, pois, não podendo o homem ser livre «se não é iluminado quanto
às questões centrais de sua existência» [6], ela clarifica o horizonte da nossa peregrinação terrena e confere-lhe um
sentido último para além de toda medida: a posse eterna de Deus, fonte e término de todo o ser.

46. A fé é um ato da inteligência e da vontade. — Com efeito, essa verdade, comunica-a Cristo no Evangelho como
uma doutrina a ser ensinada e transmitida pela pregação confiada aos seus discípulos (cf. Mc 14, 15-6; Mt 28, 18-20).
Ora, a adesão ao magistério evangélico se presta, em sentido próprio, pela virtude da fé. Quando as Sagradas Escrituras
nos remetem, pois, a episódios referentes ao ato de crer [7], quer dizer, à «atitude de resposta a uma verdade proposta»
[8], este ato é sempre apresentado «como um ato da inteligência que admite uma doutrina, um fato, uma verdade, sob o
testemunho de outro que afirma.» [9] Tivemos a oportunidade de nos aprofundar um pouco neste tema na aula 4 (cf. §§
24-6), em que detalhamos o papel: (i) da inteligência, que, em contato com motivos e indícios de credibilidade, admite
como verdadeiro um ensinamento não por causa de sua evidência intrínseca, mas porque atestado e testificado pela
autoridade do próprio Deus revelante; e (ii) da vontade livre e reta, que, apreendendo como desejável e apetecível o que
à inteligência se manifesta como credível e verdadeiro, ordena a esta que creia e ofereça a Deus, pelo ato de fé, o
obséquio de sua obediência [10].

Amparadas, assim, pela graça divina e os auxílios interiores do Espírito Santo, que move à crença (cf. II, § 5), a
inteligência e a vontade fazem da fé uma atitude de um lado «personalíssima de um espírito que livremente se abre à
verdade divina, por confiar n'Aquele que dá testemunho de Si» [11], e, de outro, radicalmente teândrica, no sentido de
que Deus e homem participam de sua produção. Dom de Nosso Senhor, princípio de nossa justificação e salvação, sem
o qual é impossível agradar a Deus (cf. Hb 11, 6): eis que o é a fé e eis a razão por que nos devemos esforçar
habitualmente (cf. V, b, § 22) por levá-la à perfeição e ao heroísmo [12]. Vale a pena consignar a definição de fé
elaborada com perfeita precisão filosófica pelo Magistério Eclesiástico:

Visto que o homem depende inteiramente de Deus como seu Criador e Senhor, e que a razão criada está inteiramente
sujeita à Verdade incriada, somos obrigados a prestar, pela fé, à revelação de Deus, plena adesão do intelecto e da
vontade. Esta fé, porém, que é o início da salvação humana, a Igreja a define como uma virtude sobrenatural pela qual,
inspirados e ajudados pela graça, cremos ser verdade o que Deus revelou, não devido à verdade intrínseca das coisas,
conhecida pela luz natural da razão, mas em virtude da autoridade do próprio Deus, autor da revelação, que não pode
enganar-se nem enganar. Pois, segundo o testemunho do Apóstolo, a fé é o fundamento firme das coisas esperadas, uma
prova das coisas que não se veem (Hb 11,1) [13].

B) Que é a teologia?

47. A fé busca aprofundar-se em si mesma. — A nossa inteligência, todavia, busca constantemente compreender as
verdades de que pode tomar posse. Por isso, iluminado pela luz sobrenatural da fé e como que informado pelas verdades
da Revelação, o homem é solicitado por sua própria natureza a conhecer mais intimamente Aquele em quem depositou
sua confiança e perscrutar o que Ele nos revelou por Sua Palavra [14]. A Igreja, nesse sentido, querendo servir à
doutrina que lhe foi entregue por Cristo «à guisa de um depósito de grande preço encerrado em um vaso precioso» [15],
se dedica sem medir esforços a essa «crente busca» [16] pela intelecção da fé e de seu conteúdo, a fim de tornar mais
nítido aos «olhos do coração» (Ef 1, 18) de todos os fiéis «o conjunto do projeto de Deus e dos mistérios da fé, do nexo
deles entre si e com Cristo, centro do Mistério revelado.» [17] Empenhada desse modo em cumprir os desígnios de Deus
e levar a todas as gentes a luz do Evangelho, a Igreja Católica, vivificada pelo Espírito Santo, tem-se entregado em todas
as épocas a esse fiel empreendimento de compreensão da fé a que chamamos teologia, isto é, uma procura amorosa
pelos motivos e razões por que pomos a nossa fé n'Aquele a Quem amamos [18].

48. A teologia é uma realidade essencialmente mística. — Se bem escapasse aos propósitos do Bem-aventurado S.
Anselmo de Aosta deixar à posteridade uma conceituação formal do que seja a ciência teológica, a sua sucinta fórmula,
«Fides quaerens intellectum» [19], exprime, no entanto, a natureza mesma do trabalho do teólogo: aquele que crê,
enquanto crê com fé católica, busca a intelecção daquilo em que crê. Ora, por tratar-se de uma realidade eclesial (cf. II,
§ 6, 1), é dizer, exercida em conformidade com a fé e em comunhão com toda a Igreja, a teologia não se reduz a um
trabalho de investigação acadêmica feita à margem do que pensa e sente o Corpo de Cristo, mas, para além da simples
pesquisa científica, se manifesta no teólogo—ao longo dum esforçado trabalho de purificação de sua vida e potências

Introdução ao Método Teológico - 26


interiores—como um estado de vigília espiritual e oração incessante [20] pela qual é alçado o espírito a uma
participação cada vez mais íntima e consciente do próprio conhecimento de Deus. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que,
em virtude de tal vínculo entre teologia e oração, todo verdadeiro teólogo é também um verdadeiro místico, de modo
que ao seu grau de assimilação a Cristo, «máximo modelo de vida segundo a virtude» [21], corresponde uma percepção
proporcionalmente mais acurada das realidades divinas, não porque imediatamente se tornem objeto de um
conhecimento sistemático, mas enquanto santificam a vida e a inteligência do teólogo, confirmando-o, assim, à senda da
salvação [22].

C) O senso ilativo

49. Natureza. — O conceito de senso ilativo é talvez uma das mais célebres e controvertidas noções que John Henry
Newman, beatificado em 2009 pelo então Papa Bento XVI, desenvolveu em sua Gramática do Assentimento [23].
Embora não se tenha preocupado em dar uma definição técnica do que seja esse senso, de que fala aliás de modo
bastante sinóptico, no nono capítulo de sua Gramática Newman parece deixar claro que chama senso ilativo à
capacidade da inteligência humana de fazer e avaliar suas próprias inferências [24]: «A este poder de julgar e inferir,
quando na sua perfeição, chamo o Senso Ilativo» [25], escreve em termos breves. Não se trata, porém, como se poderia
pensar numa primeira leitura, de uma simples perícia argumentativa, mas da própria faculdade raciocinativa da
inteligência [26], que, levada ao seu ótimo, permite-nos chegar a verdades para além de qualquer processo lógico-formal
de inferência [27]. Prova disso é que, ao refletirmos «sobre qualquer tema concreto, progredimos, tanto quanto
podemos, pela lógica da linguagem, mas somos obrigado a suplementá-la com a lógica mais subtil e elástica do
pensamento; pois as formas por si mesmas nada demonstram.» [28] Newman procura demonstrá-lo, de resto, pela
comparação dos profundos e às vezes colidentes resultados a que a investigação histórica pode chegar a respeito de um
só e mesmo fato. Ora, nem o domínio factual puro e simples, diz, nem mesmo a instrução lógica e argumentativa, por
mais refinada que seja, são suficientes para que os historiadores levem a cabo a sua pesquisa, pois eles contam sempre
«com subsídios colaterais, formalmente não demonstrados, mais ou menos pressupostos» [29], quer dizer, à sua
investigação, desde o ponto de partida, subjaz uma série de pressuposições, explícitas ou não, oriundas «do estado de
pensamento que, respectivamente, pertence a cada um deles» [30].

Todavia, dessa diferença de perspectiva sob a qual cada homem encara e interpreta a realidade não se pode deduzir que

[...] não haja verdade objetiva [...] ou que sejamos responsáveis pelas associações que anexamos, e pelas relações que
atribuímos, aos objetos do intelecto. Mas sugere-nos, de facto, que há algo de mais profundo nas nossas diferenças do
que o acidente das circunstâncias externas; e que necessitamos da interposição de um Poder, maior do que o
ensinamento e o argumento humanos, para tornar verdadeiras as nossas crenças e uma só as nossas mentes [31].

Como quer que seja, Newman concebe a inteligência humana como um organismo vivo cuja dinâmica interna não pode
ser reduzida, por meio da análise de seus processos, a um sistema mecânico; ela é dotada, por assim dizer, de uma
plasticidade que a torna capaz—como sucede nas artes [32]—de uma certa intuição intelectual [33], isto é, de chegar ao
termo natural de suas operações sem se ver constrangida pelas leis que lhe regem o funcionamento [34]; por isso, ele
poderá dizer que os «os processos sucessivos de raciocínio minúsculo são superintendidos e dirigidos por um
instrumento intelectual demasiado subtil e espiritual para ser científico.» [35] Não é, portanto, por meio de «qualquer
aparelho técnico de palavras e proposições» que a «mente raciocina e supervisiona os seus próprios raciocínios» [36],
mas enquanto conjunto de faculdades psíquicas postas harmoniosamente em funcionamento [37]. Newman chega
mesmo a comparar esse senso a uma faculdade arquitetônica ou órgão vital sob cuja direção a nossa inteligência se torna
apta, para usar uma expressão corrente, a enxergar além do óbvio [38].

50. Características. — O senso ilativo apresenta, em suma, as seguintes propriedades [39]: (a) ele é um só e mesmo em
qualquer matéria concreta, «embora nela empregue em medidas diferentes»; isso porque «não raciocinamos de um
modo na química ou no direito e de outro na moral ou na religião» [40]. (b) O seu exercício por cada pessoa, no entanto,
está restrito a campos específicos e definidos, «pelo que um dado indivíduo o pode possuir num departamento do
pensamento, por exemplo na história, e não noutro, por exemplo na filosofia.» [41] (c) O senso ilativo, para chegar às
suas conclusões, «prossegue sempre de modo idêntico, por um método de raciocínio que [...] é o princípio elementar do
cálculo matemático» [42]. (d) Newman também o considera o critério último de validade de nossas conclusões, uma vez

Introdução ao Método Teológico - 27


que «em nenhuma classe de raciocínios concretos, na ciência experimental, na investigação histórica ou na teologia,
existe qualquer teste derradeiro da verdade e do erro das nossas inferências, além da fiabilidade do senso ilativo, que
lhes dá a sua sanção.» [43]

51. Senso ilativo, fé e teologia. — Como dissemos acima, o senso ilativo não é, para Newman, senão a própria
capacidade raciocinativa por cuja operação a nossa inteligência pode chegar à verdade em matérias concretas. Não
sendo, pois, uma espécie de sentimento ou percepção moral, o senso ilativo diz-nos que aquela evidência ou dado a que
temos acesso nos é suficiente para chegar segura e certamente a uma conclusão [44]. Mas qual é a função do senso
ilativo em relação a matérias de ordem religiosa? Newman parte da premissa, comumente aceita pela tradição
escolástica, de que certas verdades fundamentais da fé, os denominados preambula fidei (preâmbulos da Fé), podem ser
demonstradas por argumentos racionais, mas não deixa de reconhecer que o assentimento a essas verdades se dá antes
por um ato do senso ilativo do que por um processo de inferência e persuasão lógica [45]. A intervenção do senso ilativo
—sem excluir o papel da graça e da vontade [46]—faz da fé um verdadeiro assentimento às realidades da Revelação, e
não somente uma concordância nocional à formulação abstrata e proposicional dessas verdades [47]. Newman, sem
embargo do quanto tenha divergido de Santo Tomás relativamente à psicologia da fé, mostra-se, ao final, perfeitamente
tomista, porque a fé, para ambos, não se reduz aos seus enunciados, mas, para além deles, chega à própria Realidade por
eles expressa [48]. Içada assim pela fé ao nível do conhecimento de Deus, a inteligência, seguindo seus movimentos
naturais, deseja penetrar os mistérios divinos; é, portanto,

[...] no interior da fé que a teologia nasce. Ela é como o desenvolvimento, a explicação da Revelação divina. A fé não é
apenas a luz que ilumina toda a sequência, todo o conjunto oriundo dela. É a alma dessa arquitetura intelectual, desse
movimento de busca sempre insatisfeita [por conhecer mais profundamente os mistérios de Deus] [49].
Referências

1. Concílio Vaticano II, const. dogm. Dei Verbum, n. 2; cf. CIC, § 51.
2. M. Schmaus, A Essência do Cristianismo. Trad. port. de Maria G. Hamrol. 2.ª ed., Lisboa: Aster, 1966, p. 54.
3. Cf. CIC, §§ 33-5.
4. CIC, § 50.
5. Cf. Tomás de Aquino, Sum. Th. II-II, q. 2, a. 1, ad 1.
6. Congregação para a Doutrina da Fé, «Instrução Donum Veritatis sobre a Vocação Eclesial do Teólogo», n. 1.
7. V., por exemplo, Jo 5, 46-7; 7, 46; 10, 37-38; 11, 26ss; Lc 1, 20 etc.
8. Pe. Leonel Franca, A Psicologia da Fé e O Problema de Deus. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Loyola, 2001, p. 15.
9. Id., ibid.
10. Cf. Id., p. 18; CIC, §§ 144, 156 e 160; Tomás de Aquino, De Verit., q. 14, a. 2, resp.
11. Pe. M. Teixeira-Leita Penido. O Mistério da Igreja, in: «Iniciação Teológica», vol. 1. 2.ª ed., Rio de Janeiro: Vozes, 1956, p.22
12. Cf. D. Schram, Institutiones Theologiæ Mysticæ ad Usum Directorum Animarum. Leodii, 1840, vol. 1, § CXVIII, pp. 206 e 208, schol. 2.
13. Concílio Vaticano I, const. dogm. Dei Filius, de 24 de abril de 1870, c. 3, § 1789 (DH 3008).
14. Cf. CIC, § 158.
15. Irineu de Lião, Adv. Haer., III, 24, 1 (PG 7, 966); cf. CIC, § 175.
16. Instr. Donum Veritatis, loc. cit.
17. CIC, loc. cit.
18. Cf. Boaventura, Prooem. in I Sent., q. 2, ad 6: «quando fides non assentit propter rationem, sed propter amorem eius cui assentit, desiderat habere
rationes: quando o a fé dá o seu assentimento não por causa da razão, mas por causa do amor d'Aquele ao qual consente, deseja encontrar razões.»
19. Anselmo de Cantuária, Proslogion, proem. (PL 153, 255A).
20. Cf. Evágrio Pôntico, Περι προσευχῆς [Sobre a Oração], 61: «Εἰ θεολόγος εἶ, προσεύξῃ ἀληθῶς, καὶ εἰ άληθῶς προσεύξῃ, θεολόγος εἶ: Se tu és um teólogo,
então oras verdadeiramente; se oras verdadeiramente, então és um teólogo.» V. G. E. H. Palmer; P. Sherrad; K. Ware (trad.). The Philokalia: The
Complete Text. London: Faber and Faber, 1979, vol. 1, p. 62.
21. C. Moreschini, História da Filosofia Patrística. Trad. port. de Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2008, p. 636.
22. Cf. Agostinho, Enchir. I, 4: «Hæc omnia quæ requiris procul dubio sices, diligenter sciendo quid credi, quid sperari debeat, quid amari. Hæc enim
maxime, immo vero sola in religiona sequenda sunt: Compreenderás tudo isto [os mistérios e conteúdos da Fé católica] sabendo em que se deve crer, o
que se deve esperar e amar. Ora, tais coisas se descobrem sobretudo, ou melhor, exclusivamente na religião [cristã]» (PL 40, 232-233).
23. Cf. J. Newman, The Mental Philosophy of John Henry Newman. Ontario, Canadá: Wilfird Laurier University Press, 1986, p. 164.
24. Martin X. Moleski, Personal Catholicism: The Theological Epistemologies of John Henry Newman and Michael Polanyi. Washington: Catholic
University of America Press, 2000, p 1.
25. John H. Newman, «O Senso Ilativo», in: Ensaio a Favor de uma Gramática do Assentimento, c. 9, § 2. Trad. port. de Artur Morão. Lisboa: Assírio e
Alvim (coleção «Teofanias»), 2005, pp. 339-375. Disponível em (sítio): <goo.gl/eHxuee>, p. 21 (grifo nosso). Acesso em: 15 mai. 2015.
26. Cf. E. Goodheart, Culture and the Radical Conscience. 2.ª ed., New Jersey, Transaction Publishers, 2001 (1.ª ed., Harvard University Press, 1979), p. 60.
27. Cf. Martin X. Moleski, op. cit., p. 103.
28. John H. Newman, op. cit., p. 26.
29. Id., p. 36.
30. Id., p. 32.
31. Id., p. 39.
32. Cf. Id., p. 25.
33. Cf. Martin X. Moleski, op. cit., p. 100.

Introdução ao Método Teológico - 28


34. Cf. Id., Op. cit., p. 5.
35. John H. Newman, op. cit., p. 30.
36. Id., p. 21.
37. Cf. E. Goodheart, op. cit., loc. cit.
38. Cf. John R. Connolly, John Henry Newman: A View of Catholic Faith for the New Millennium. Oxford: Rowman & Littlefield, 2005, p. 68. (V. Ormond
Rush, The Eyes of Faith: The Sense of the Faithful and the Church's Reception of Revelation . Washington: Catholic University of America Press, 2009, p.
68.)
39. Cf. Id., ibid.
40. John H. Newman, op. cit., p. 25.
41. Id., p. 26.
42. Id., ibid.
43. Id., ibid.; cf. Thomas J. Norris, Newman and His Theological Method: A Guide for the Theologian Today. Leiden: E. J. Brill, 1977, p. 42s.
44. Cf. John R. Connolly, op. cit., p. 69.
45. John Hick, Faith and Knowledge: A Modern Introduction to the Problem of Religious Knowledge. 2.ª ed., Wipf and Stock Publishers, 1966, p. 87 (1.ª ed.,
Cornell University Press, 1957).
46. Cf. John R. Connolly, op. cit., p. 87.
47. Cf. Id., p. 82.
48. Cf. Sum. Th. II-II, q. 1, a. 2, sol 2.
49. M.-J. Nicolas, «Introdução à Suma Teológica», in: Suma Teológica. 3.ª ed., São Paulo: Loyola, 2009, vol. 1, p. 35.

Aula 9 – O "auditus fidei" e o "intellectus fidei"

52. Recapitulação. — Vimos na aula passada que a teologia nasce no interior da fé, na qual encontra o seu alimento e
sob cuja luz orienta os seus passos (cf. VIII, B, § 47). Tendo em vista essa mútua dependência entre o labor teológico e a
ortodoxia, definimos a teologia como um esforço da inteligência humana por compreender os mistérios que a fé lhe
desvenda; nesse sentido, podemos dizer, por apropriação, que é a fé mesma que busca a inteligência, «Fides quaerens
intellectum». Quisemos ressaltar ainda que, além deste caráter especulativo, a teologia, enquanto participação do
conhecimento de Deus pela graça divina e pela fé, é também uma realidade mística e, por isso, deve vir acompanhada
não apenas de estudo, mas principalmente de oração e quietude [1]. Ora, sendo a fé o princípio e a fonte da reflexão
teológica, dedicaremos esta nona aula ao estudo dos dois momentos constitutivos do método teológico: a escuta da fé
(auditus fidei) e a inteligência da fé (intellectus fidei), às quais fizemos rápida menção na penúltima aula (cf. § 41).

53. A escuta da fé. — O método teológico decorre da própria natureza da teologia, que, conforme uma classificação
convencional e didática, se articula em dois momentos principais: o positivo, em que, pela contemplação do depósito da
fé, toma-se consciência daquilo que a Igreja crê; e o reflexivo, em que há um esforço de sistematização dos dados
colhidos na etapa anterior, uma busca pela hierarquia em que se dispõem, seus nexos e os corolários que deles se podem
deduzir [2].

No primeiro momento, portanto, o teólogo procura a fé cristã nas diversas fontes que a contêm e expressam (as Sagras
Escrituras, a Santa Tradição, o Magistério Eclesiástico etc.), ou seja, nos chamados lugares teológicos (loci theologici),
que estudaremos na próxima aula. Pois bem, esse trabalho de consulta às fontes é o que ordinariamente se entende por
auditus fidei, quer dizer, ouvir a fé tal como o Espírito da Igreja tem-no-la comunicado ao longo dos séculos. O teólogo
é nesta fase o herdeiro de um longa tradição, «de um significado já transmitido à humanidade.» [3] Ora, a exigência de
uma escuta da fé é imprescindível não somente porque a especulação teológica tem por premissa fundamental os dados
da mesma fé, os quais não pode renunciar, senão também porque ao próprio Cristo aprouve fosse a pregação o
instrumento primário de transmissão do Seu Evangelho: «Os Apóstolos, com efeito, transmitiram primeiro de viva voz
aos judeus e às gentes a doutrina do Senhor. Não lhes dissera Cristo: Ide, ponde por escrito os dogmas que vos
comuniquei e, assim exarados, ensinai-os aos homens; mas Ide, disse o Senhor, pregai o Evangelho a toda criatura [cf.
Mc 16, 15].» [4] Nesse sentido, Juliano Pomério, sacerdote mauritano do quinto século, ensina em seu pequeno tratado
Sobre a Vida Contemplativa que a recepção da pregação evangélica é o início da fé e esta, do entendimento e das obras
meritórias:

Diz o Apóstolo: "Se não crerdes, não entendereis" [cf. Is 7, 9, trad. LXX]. Donde se deduz que não é da inteligência que
nasce a fé, senão da fé é que nasce a inteligência; nem se compreende para crer, mas, pelo contrário, se crê a fim de
compreender e, havendo compreendido, agir bem. De fato, está escrito algures: "Não quis entender para fazer o bem"
[cf. Sl 35, 4]. Não se diz: "Não pôde", mas "Não quis": ora, recusar-se a entender nada mais é do que não querer crer.
Com efeito, se alguém deseja fazer o bem, que se empenhe em compreender, e, a fim de compreender, convém antes de
tudo crer. Por isso, como diz o mesmo Apóstolo: "A fé provém da pregação e a pregação se exerce em razão da palavra

Introdução ao Método Teológico - 29


de Cristo" [cf. Rm 10, 17], deve o doutor da Igreja pregar para que possa ouvir aquele que vai crer, porque não há escuta
se não há pregação. E o mesmo Apóstolo atesta: "Como invocarão aquele em quem não têm fé?" [cf. Rm 10, 14]. Ora,
se pela falta de pregador a alguém não é dado escutar a pregação, esse também, por falta de Fé, não pode compreender
e, não compreendendo, não pode fazer o bem. A palavra da fé deve, portanto, ser pregada, a fim de que o ouvinte,
ouvindo, creia; crendo, compreenda; e compreendendo, entregue-se às boas obras, porque nem as obras sem fé, nem a fé
sem obras justifica quem pode servir-se do arbítrio duma vontade livre. Se, pois, com o coração se crê em vista da
justiça, que a profissão oral <da fé> se faça com vistas à salvação: quem não crer, por não ter fé, não alcançará nem a
justiça do coração nem a salvação <eterna> [5].

De fato, a necessidade de se escutar a pregação do Evangelho e, por conseguinte, a fé cristã se torna mais candente se se
leva em conta, como dissemos acima, que «a teologia pressupõe a fé e a luz da fé, e surge de um movimento de
assimilação espiritual e de reflexão mediante o qual a fé avança até o conhecimento da coisas em que crê ( fides
quaerens intellectum) sem deixar, contudo, de ser fé.» [6] A teologia, nesse sentido, exige que nós aniquilemos «todo
raciocínio e todo orgulho que se levanta contra o conhecimento de Deus» (2Cor 10, 5) e façamos obedientes à Cristo
todos os nossos pensamentos. Ora, sendo a fé um ato integral do homem, segundo sua inteligência e vontade, com o
auxílio da graça, a teologia requer também uma total subordinação do homem à Palavra de Deus [7]. Esta primeira fase
de coleta positiva de informações, portanto, deve (1) estar balizada pelas fontes autênticas da fé de Igreja e (2) extrair,
quanto for possível, o significado genuíno destes testemunhos. Evidentemente, nesse processo «não se podem assumir
quaisquer categorias filosóficas ou de outras ciências. Pois existem aquelas cujos pressupostos básicos são
incompatíveis com a revelação cristã.» [8]

54. A inteligência da fé. — O segundo momento em torno do qual a pesquisa teológica se desenvolve é o que se
costuma denominar intellectus fidei: a «inteligência da fé». Esse momento consiste, basicamente, no trabalho de
reflexão e especulação sobre os dados recebidos e coletados no momento positivo, é dizer, de escuta das fontes da nossa
fé. A busca pela compreensão daquilo que foi ouvido é para a Igreja um imperativo que se faz presente desde pelo
menos os séculos III e IV, quando, como vimos ao longo da segunda aula do curso, a cristandade, pelo trabalho dos
Santos Padres, teve de defrontar-se com as primeiras grandes heresias e, para combatê-las, «recorrer continuamente a
explicações lógicas e a argumentos filosóficos não constantes do depostium fidei.» [9]

Costumam-se atribuir a essa etapa reflexiva três grandes funções:

1. Função explicativa. Trata-se de um trabalho de explicitação das ideias contidas e expressas quer nas Sagradas Escrituras,
quer na Santa Tradição. O teólogo conta para essa tarefa de precisão técnica com os recursos que a filosofia, por exemplo,
lhe pode fornecer, «de modo particular, o método de comparação, cujo pressuposto é o nexo existente entre os mistérios
revelados e o fim último da pessoa; o princípio epistemológico da analogia da fé cujo propósito é o de descobrir e dar
realce à multiplicidade de ligações existentes entre os dados da fé» [10], além dos instrumentos teóricos de análise e
interpretação das demais ciências [11].
2. Função sintética. É o trabalho de ordenação e sistematização dos dados da fé ou, noutras palavras, a tentativa de apreender
a estrutura orgânica da Revelação e as relações de subordinação dos mistérios entre si.
3. Função atualizadora. Um dos maiores encargos do teólogo é o de expor de modo fidedigno e inteligível o tesouro perene
da fé aos homens seus contemporâneos, uma vez que «não se pode explicitar e sistematizar o patrimônio da Revelação sem
estar atento à linguagem e às sensibilidades culturais do momento.» [12] As problemáticas atuais exigem, pois, uma
resposta compreensível, mas sempre conforme ao espírito eterno do Evangelho e às coordenadas da doutrina da Igreja [13].

55. Conclusão. — A ciência teológica oscila ritmicamente entre esses dois momentos; à escuta da fé sucede «a
elaboração ativa e construtiva do que se escutou»; em seguida, o teólogo recua uma vez mais para a consulta às fontes,
«para se certificar da mensagem ali contida» [14] e, por fim, da validade das conclusões a que pôde chegar. «A teologia,
portanto», escreve Jared Wicks, «consiste na escuta atenta dos testemunhos e na consideração crítica da palavra
revelada. Ela é tudo isso porque a fé é, em primeiro lugar, a escuta de uma mensagem que contém uma boa nova e
profissão de fé na obra do Pai, do Filho e do Espírito Santo; uma obra salvífica que envolve e ilumina aquele que crê.»
[15]

Introdução ao Método Teológico - 30


56. Ensinamento conciliar. — O decreto Optatam totius, de 28 de outubro de 1965, ao trazer uma sóbria instrução a
respeito da formação de futuros sacerdotes, expõe de modo tangencial os dois momentos internos que compõem o
método teológico, cujas linhas mestres convém trazer à lume:

As disciplinas teológicas sejam ensinadas à luz da fé e sob a direcção do magistério da Igreja, de tal forma que os alunos
possam encontrar com exactidão a doutrina católica na Revelação divina, a penetrem profundamente, façam dela
alimento da vida espiritual e se tornem capazes de a anunciar, expor e defender no ministério sacerdotal.

Os alunos sejam formados com particular empenho no estudo da Sagrada Escritura, que deve ser como que a alma de
toda a teologia. Depois da conveniente introdução, iniciem-se cuidadosamente no método da exegese, estudem os temas
de maior importância da Revelação divina e encontrem na leitura e meditação dos Livros sagrados estímulo e alimento.

A teologia dogmática ordene-se de tal forma que os temas bíblicos se proponham em primeiro lugar. Exponha-se aos
alunos o contributo dos Padres da Igreja oriental e ocidental para a Interpretação e transmissão fiel de cada uma das
verdades da Revelação, bem como a história posterior do Dogma tendo em conta a sua relação com a história geral da
Igreja. Depois, para aclarar, quanto for possível, os mistérios da salvação de forma perfeita, aprendam a penetra-los
mais profundamente pela especulação, tendo por guia Santo Tomás, e a ver o nexo existente entre eles. Aprendam a vê-
los presentes e operantes nas acções litúrgicas e em toda a vida da Igreja. Saibam buscar, à luz da Revelação, a solução
dos problemas humanos, aplicar as verdades eternas à condição mutável das coisas humanas e anuncia-las de modo
conveniente aos homens seus contemporâneos.
De igual modo, renovem-se as restantes disciplinas teológicas por meio dum contacto mais vivo com o mistério de
Cristo e a história da salvação. Ponha-se especial cuidado em aperfeiçoar a teologia moral, cuja exposição científica,
mais alimentada pela Sagrada Escritura, deve revelar a grandeza da vocação dos fiéis em Cristo e a sua obrigação de dar
frutos na caridade para vida do mundo. Na exposição do direito canónico e da história eclesiástica, atenda-se ao mistério
da Igreja, segundo a Constituição dogmática «De Ecclesia» promulgada por este sagrado Concílio. A sagrada Liturgia,
que deve ser tida como a primeira e necessária fonte do espírito verdadeiramente cristão, ensine-se segundo o espírito
dos artigos 15 e 16 da Constituição «De sacra liturgia».

Tendo em consideração as condições locais, sejam os alunos levados a conhecer mais perfeitamente as igrejas e
comunidades eclesiais separadas da Sé Apostólica de Roma, para que possam concorrer para a restauração da unidade
de todos os cristãos, segundo as normas deste sagrado Concílio [16].
Referências

1. Cf. Diádoco de Foticéia, Sobre o Conhecimento Espiritual e a Discriminação, c. 1: «Toda contemplação espiritual deve ser
governada por três coisas: pela fé, pela esperança e pelo amor, e acima de tudo por este último.» V. G. E. H. Palmer; P.
Sherrad; K. Ware (trad.), The Philokalia: The Complete Text. London: Faber and Faber, 1979, vol. 1, p. 253.
2. Cf. M. Semeraro, «Método Teológico», verbete in: AA.VV. Lexicon: Dicionário Teológico Enciclopédico. São Paulo:
Loyola, 2003, p. 490.
3. J. Wicks, Introdução ao Método Teológico. 2.ª ed., São Paulo: Loyola, 2004, p. 35; cf. Bernard Lonergan, «Early Works on
Theological Method 1», in: Collected Works of Bernard Lonergan, vol. 22. Toronto: Toronto University Press, 2010, p.
258.
4. N.-J. Laforet, Dissertatio Historico-Dogmatica de Methodo Theologiæ. Lovanii, apud Vanlinthout et Vandenzande, 1849,
p. 17.
5. Juliano Pomério, De Vita Contemplativa, l. 1, c. 19 (PL 59, 433B-434A; trad. nossa).
6. J. Feiner; M. Löher (orgs.), Mysterium Salutis: Manual de Teologia como Historia de la Salvacion. Trad. esp. de Marciano
Villanueva Salas. Madri: Cristandad, 1969, vol. 1, p. 28 (trad. nossa).
7. Cf. Id., ibid.
8. J. B. Libanio; A. Murad, Introdução à Teologia: Perfil, Enfoques, Tarefas. 6.ª ed., São Paulo: Loyola, 2007, p. 96.
9. G. Occhipinti, «Inteligência da Fé», verbete in: AA.VV. Lexicon: Dicionário Teológico Enciclopédico. São Paulo: Loyola,
2003, p. 400.
10. Id., ibid.
11. Cf. J. B. Libanio; A. Murad, op. cit., loc. cit.
12. G. Occhipinti, op. cit., loc. cit.

Introdução ao Método Teológico - 31


13. Cf. Id., ibid. e J. B. Libanio; A. Murad, op. cit., loc. cit.
14. J. Wicks, op. cit., p. 35.
15. Id., p. 37.
16. Concílio Vaticano II, decrt. Optatam totius, de 28 de outubro de 1965, n. 16.

Aula 10 – Os Lugares Teológicos

57. Recapitulação. — Vimos na aula anterior que o método teológico se estrutura sobre dois momentos fundamentais,
quais sejam: (i) a escuta da fé (auditus fidei), em que se procura descobrir o que, positivamente, crê a Igreja Católica e
(ii) a inteligência da fé (intellectus fidei), isto é, o esforço de especulação sobre os dados da fé. A teologia, apresentada
de forma bastante esquemática, transita ritmicamente entres esses dois polos internos, ora voltando às fontes de que
brota a esperança cristã, ora refletindo a respeito dos conteúdos que ali encontra.

Iremos na aula de hoje dar continuidade a nossa exposição do método em teologia; em particular, dedicaremos este
espaço a um tema que trouxe novas luzes tanto para a metodologia quanto para a gnosiologia teológicas: trata-se dos
assim chamados lugares teológicos, ampla e profundamente desenvolvidos pelo frade dominicano Melchior Cano (c.
1509-1560), professor por longo tempo na Universidade de Salamanca e participante, entre os anos de 1551 e 1552, do
Concílio de Trento [1].

58. O locus como sede argumentativa. — O termo «lugar» (locus, τόπος), na acepção de princípio ou fonte de
argumentos para uma disputa dialética, parece ter sido empregado pela primeira vez por Aristóteles em sua obra
Tópicos [2], cujo objetivo é, nas palavras do próprio Estagirita, «encontrar um método mediante o qual ( a) possamos
argumentar, a partir de opiniões prováveis, a respeito de qualquer assunto que nos seja proposto e ( b), ao longo de nossa
argumentação, nada digamos de contraditório.» [3] A tópica aristotélica, com efeito, serviu de base para o
desenvolvimento de toda a tradição retórica posterior; Cícero mesmo, um dos mais engenhosos oradores romanos, fez
dela o princípio de sua arte de conceber e ordenar uma grande variedade de argumentos ( ars inveniendi): «quando
desejamos, pois, elaborar um argumento, devemos conhecer os lugares, quer dizer, essas como que fontes, no dizer de
Aristóteles, das quais promanam argumentos.» [4] Quintiliano não se expressa doutra maneira: «chamo lugar [...] à
moradia onde residem e devem ser procurados os argumentos.» [5] Os retóricos e dialéticos, sobretudo renascentistas,
comprazer-se-ão em organizar longas e elaboradas listas desses «lugares-comuns», como diríamos hoje; Rodolfo
Agrícola (c. 1443-1485), grande humanista pré-erasmiano, enumera nada menos do que trinta [6]. De um modo geral,
tudo quanto possa servir de ponto de partida provável para a elaboração duma linha argumentativa pode ser considerado
um locus: certas opiniões correntes, ditos e feitos exemplares, provérbios e apotegmas, axiomas filosóficos e frases de
impacto, citações úteis e «figuras de discurso [...] que o orador especializado deveria aprender a ter ao alcance da mão.»
[7]

59. Sistematização do método teológico. — Ora, a noção e o próprio termo locus, enquanto categoria discursiva
análoga aos tópicos de que fala Aristóteles, não são estranhos à metodologia teológica e encontram-se, inclusive, numa
célebre passagem da Suma Teológica em que S. Tomás de Aquino defende o direito e a conveniência de a teologia
servir-se de argumentos baseados na autoridade da revelação divina (locus ab auctoritate divinæ revelationis) [8].
Entretanto, será apenas no século XVI, mais de trezentos anos após a morte do Aquinate, que os teólogos, diante das
novidades do humanismo renascentista [9] e da urgência de uma resposta à revolução protestante, sentirão a necessidade
de sistematizar as balizas dentro das quais a teologia pode respirar e desenvolver-se. Coube a Melchior Cano ser, aliás
com plena consciência, o primeiro a abordar formalmente a questão das fontes e referências da doutrina cristã. Cano
explica-se, quanto aos motivos que o levaram a redigir seu tratado De Locis Theologicis, logo no proêmio:

 Id autem eo libentius feci, quod nemo theologorum  Decidi-me a escrever esta obra, pois, pelo que me
adhuc, quod equidem sciam, genus hoc argumenti consta, nenhum teólogo até hoje versou sobre este
tractandum sumpsit: cum praeter communem illam gênero de problema: ora, o teólogo deve possuir,
artem disserendi, quam a Dialecticis accepimus, além da que ensinam os dialéticos, uma outra
aliam theologus habeat necesse sit, aliosque item ciência argumentativa e, com vistas à discussão,
ad disputandum locos, unde argumenta non quasi necessita também de outros lugares donde possa
Introdução ao Método Teológico - 32
haurir argumentos, não como comuns e estranhos
communia et aliena, sed tamquam propria ducat, et
<a sua doutrina>, mas como próprios <dela>, a fim
suis dogmatis confirmandis, et adversariorum
de confirmar os dogmas e refutar a opinião de seus
sententiis refellendis.
adversários [10].

60. Os dez loci theologici. — Apesar do caráter inovador de sua obra, cujo propósito, de resto, parece fugir às
finalidades de uma simples apologética da fé cristã [11], Cano sabe que sua teorização sobre os lugares teológicos lança
raízes em toda a tradição dialética precedente, e são sobretudo os Tópicos aristotélicos que servir-lhe-ão de modelo:

 [...] do mesmo modo como Aristóteles propôs em


 [...] quemadmodum Aristoteles in Topicis proposuit seus Tópicos certos "lugares-comuns", ou seja,
communes locos, quasi argumentorum sedes et postulados básicos dos quais se podem extrair
notas, ex quibus omnis argumentatio ad omnem argumentos para qualquer discussão, assim
disputationem inveniretur, sic nos peculiares também nós apresentamos determinados "lugares
quosdam theologiæ locos proponimus, tamquam teológicos", isto é, como que domicílios em que
domicilia omnium argumentorum theologicorum, ex os teólogos encontrarão todos os argumentos
quibus theologi omnes suas argumentationes, sive ad teológicos seja para corroborar <a doutrina
confirmandum sive ad refelendum inveniant. cristã>, seja para refutar os erros <a ela>
contrários [12].

Ora, para Cano, toda argumentação parte (i) ou da razão humana, (ii) ou de alguma autoridade, uma vez que a
inteligência não adere à verdade senão pela evidência de seu objeto ou em virtude da autoridade de quem a proclama:
nas disciplinas profanas, é à razão que compete conduzir as discussões; na teologia, porém, é à autoridade,
especificamente à autoridade divina, que cabe o lugar de destaque, pois, como diz o Apóstolo Paulo, deve o doutor da
Igreja estar «firmemente apegado à doutrina da fé, tal como foi ensinada, para poder exortar segundo a sã doutrina e
rebater os que a contradizem» (Tt 1, 9). Com efeito, «o lugar baseado na autoridade lhe é de tal modo próprio, que as
razões são por ela [pela teologia] recebidas como hóspedes ou peregrinas» [13]. Os lugares teológicos são, portanto,
referências autorizadas para a definição e defesa da doutrina cristã [14].

Cano distingue, assim, dez loci principais com base no grau de autoridade que cada um deles possui relativamente à
Revelação. Cano os divide em dois grandes grupos: lugares teológicos próprios e lugares teológicos impróprios ou
adscritos. O primeiro grupo subdivide-se em duas classes: as fontes fundamentais ou primárias da Revelação, isto é, as
Sagradas Escrituras e a Santa Tradição; e as fontes interpretativas da Revelação, a saber, a autoridade do Magistério
Eclesiástico, os Concílios Ecumênicos, a autoridade do Romano Pontífice, os Santos Padres e, por fim, os teólogos e
canonistas. Os lugares teológicos impróprios ou adscritos compreendem a autoridade da razão humana, dos filósofos e
da história [15]. Esquematicamente [16]:

1. Lugares teológicos próprios: (A) Fontes fundamentais da Revelação: 1) Sagradas Escrituras; 2) Tradição. (B)
Fontes interpretativas da Revelação: 3) Magistério Eclesiástico; 4) Concílios Ecumênicos; 5) autoridade papal;
6) Santos Padres; 7) magistério dos teólogos e canonistas.
2. Lugares teológicos impróprios ou adscritos: 8) razão humana; 9) autoridade dos filósofos; 10) autoridade da
história.

Muito embora nem todos os loci tenham o mesmo peso e valor [17], não é possível, como se pretende fazer de quando
em vez, dispô-los numa hierarquia, dada, por um lado, a natureza diversa de cada um deles, e, por outro, a mútua
dependência que mantêm entre si. Nesse sentido, por exemplo, se bem que as Sagradas Escrituras e a Tradição
componham o núcleo da Revelação divina, elas não podem, ao menos na vida da Igreja, existir independentemente de
um magistério que as guarde e interprete. Do mesmo modo, ainda que a autoridade da Igreja prevaleça sobre a dos
Santos Padres e dos teólogos, não se pode esquecer que esses mesmos Santos e teólogos pertencem à Igreja e é muita
vez estribado nos ensinamentos deles que o Magistério Eclesiástico se pronuncia em defesa da doutrina que lhe foi
confiada por Nosso Senhor. Assim como dizemos conhecer melhor um objeto quando, pela aplicação de nossos vários

Introdução ao Método Teológico - 33


sentidos, apreendemos o maior número possível de suas propriedades e características, da mesma maneira os lugares
teológicos servem como «sentidos» ou perspectivas sob as quais a Igreja custodia e se aprofunda no tesouro da fé.

61. A catolicidade das fontes teológicas. — A riqueza e diversidade desses lugares elencados por Cano contrastam de
modo flagrante com o monismo bíblico (princípio da sola Scriptura) típico do protestantismo. Bem conforme ao espírito
tridentino, Cano busca valorizar, por exemplo, as sagradas tradições apostólicas, esse «oráculo de viva voz» [18], com
base em três fundamentos centrais: a antiguidade da Igreja em relação às Escrituras e, por conseguinte, a independência
da fé e religião cristãs relativamente a elas; o fato de os livros canônicos não exaurirem nem se referirem, seja explícita,
seja implicitamente, a todos os conteúdos que compõem o depósito da fé; e a pregação oral dos Apóstolos [19]. Cano
consegue mostrar, pois, «como é possível conseguir testemunhos específicos sobre a verdade revelada de Deus, de
modo adequado ao lugar ou à fonte» [20] onde o teólogo os vai buscar, sem ter de restringir-se a apenas alguns deles.
Ora, da mesma forma que num corpo orgânico é à manutenção da vida que se ordenam as funções exercidas pelos
diversos órgãos que o constituem, do mesmo modo é à luz da fé católica que os distintos lugares teológicos podem
estruturar a ciência única que é a teologia. Por essa razão, a teologia católica, longe de se tornar um amálgama de
ciências e disciplinas desconexas, pode-se apresentar como uma sinfonia em que cada lugar teológico ilumina e é
iluminado pelo outro:

Ignorar o lugar teológico conduz a uma tentativa de ler e interpretar diretamente as fontes a partir de si mesmas. Os
textos se absolutizam, hipostasiam-se, são obrigados a falar por si mesmos, sem contar com o fato hermenêutico de que
todo texto lido é um texto relido e interpretado dentro do contexto do leitor. Uma tal teologia tem mais sabor de exegese
—interpretação do texto original—do que de teologia—atualização do texto. O lugar teológico tem uma implicação
decisiva na leitura, interpretação e atualização das fontes da teologia [21].
Referências

1. V. J. Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia. 2.ª ed., São Paulo: Loyola, 2004, vol. 1, pp. 393-4.
2. Cf. G. Occhipinti, «Lugares Teológicos», verbete in: AA.VV. Lexicon: Dicionário Teológico Enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003, p.
450.
3. Aristóteles, Tópicos, I, 1 (100ª20); cf. I. Bekker; C. A. Brandis (org.). «Organon», trad. lat. de Giulio Pace de Beriga (1550-1635), in:
Aristoteles Latine Interpretibus Variis. Edidit Academia Regia Borussica, Berolini, apud G. Reimerium, 1831, p. 55 (trad. nossa).
4. CíceroO, Topica, c. II. In: RINN, J. W. (ed.). M. T. Ciceronis Opera Rethorica et Oratoria, Parisiis, 1831, vol. 1, p. 518 (trad. nossa).
5. Quintiliano, Institutio Oratoria, l. V, c. 10, § 20. Disponível em (sítio): <goo.gl/ZnfOWV>. Acesso em: 25 mai. 2015 (trad. nossa).
6. Cf. G. Occhipinti, op. cit., loc. cit.
7. Id., ibid.
8. V. Sum. Th. I, q. 1, a. 8, ad 2: «Quanto ao segundo, deve-se dizer que argumentar com base na autoridade é próprio desta doutrina [i.e., à
sacra doctrina], porque os seus princípios derivam da revelação; ora, convém que se creia na autoridade daqueles a quem se fez a
revelação. Isso, porém, não lhe subtrai a dignidade, pois, embora o lugar [locus] baseado na autoridade da razão humana seja o mais
frágil de todos, o lugar [locus] que se baseia na autoridade da revelação divina é o mais eficaz» (trad. nossa); cf. B. Sesboüé (dir.); C.
Theobald, História dos Dogmas: A Palavra da Salvação. Trad. port. de Aldo Vannuchi. São Paulo: Loyola, 2006, vol. 4, p. 142.
9. A. Nichols, The Shape of Catholic Theology: An Introduction to Its Sources, Principles, and History. Collegeville: Liturgical Press,
1991, p. 317.
10. Melchior Cano, «De locis theologicis», proem. In: J.-P. Migne (ed.), Theologiæ Cursus Completus, vol. 1. Parisiis, ex typis Migne, au
Petit-Montrouge, 1853, col. 60 (trad. nossa).
11. Cf. B. Sesboüé (dir.); C. Theobald, op. cit., p. 143.
12. Melchior Cano, op. cit., l. 1, c. 3 [col. 62] (trad. nossa).
13. Id., l. 1, c. 2 [col. 61] (trad. nossa); cf. Brevis Tractatus de Locis Theologicis, Gerundæ, apud Augustinum Figaro [sem indicação de
autor], 1829, p. 2.
14. Cf. B. Sesboüé (dir.); C. Theobald, op. cit., p. 142
15. Cf. Melchior Cano, op. cit., l. 1, c. 3 [col. 63].
16. V. P. Parente et al, Diccionario de Teología Dogmática. Trad. esp. de Francisco Navarro. Barcelona: Editorial Litúrgica Espanõla, 1955,
p. 220.
17. Cf. Institutiones de Locis Theologicis, Romae, 1771 [sem indicação de autor], p. 2.
18. Melchior Cano, op. cit., l. 1, c. 3 [col. 62] (trad. nossa).
19. Cf. Id., l. 3, c. 3 [cols. 191-7].
20. J. Wicks, Introdução ao Método Teológico. 2.ª ed., São Paulo: Loyola, 2004, p. 20.
21. F. M. Díez, Teología Fundamental: Dar Razón de la Fe Cristiana. Madrid: EDIBESA, 1997, p. 233 (trad. nossa).
22.

Aula 11 – A Teologia da Libertação e o pobre como lugar teológico

Introdução ao Método Teológico - 34


2. Um novo lugar teológico. — Tratamos na aula passada dos dez lugares teológicos que Melchior Cano propôs como
domicílios da grande habitação que é a teologia católica. O próprio Cano, entretanto, pressentira já no século XVI que
haveria no futuro tanto quem desejasse fossem menos os lugares elencados quanto quem os julgasse muito poucos e
quisesse acrescentar outros à dezena original [1]. Na América Latina, a Teologia da Libertação, de que falaremos na
aula de hoje, apresenta uma nova espécie de lugar teológico a partir do qual pretende desenvolver a sua reflexão: o
«pobre». Pode-se dizer que a premissa escriturística em que se apoiam os teólogos partidários dessa corrente é Mt 25,
31-46, em que Nosso Senhor evidencia, em termos fortes e adequados ao discurso escatológico relatado pelo
Evangelista Mateus, o modo especial por que está presente nos pequeninos Seus irmãos. Ora, não poderia essa presença
de Cristo nos carentes e desvalidos servir como orientação para «uma interpretação da fé cristã através do sofrimento, da
luta e da esperança dos pobres»? [2] Da mesma forma, não poderia o pobre ser também ele elevado à categoria de lugar
teológico sob cujo ponto de vista se poderia realizar «uma crítica da atividade da Igreja e dos cristãos»? [3]

A) O problema

63. Erro metodológico. — A principal dificuldade de que padece a Teologia Libertação é que a metodologia por ela
adotada não parte de um dado básico da fé (auditus fidei) sobre o qual se possa ulteriormente refletir (intellectus fidei).
Ocorre aqui uma ruptura com o modo tradicional de se fazer teologia, segundo o qual à escuta da palavra de Deus
sucede um esforço de intelecção de Sua mensagem; noutras palavras, só é possível especular sobre os mistérios da fé
após nos termos certificado de que o objeto de nossa especulação é, de fato, a fé da Igreja. A Teologia da Libertação, no
entanto, parte não de um dado objetivo da Revelação, mas antes de uma escolha prévia: de uma opção preferencial pelo
pobre. Na verdade, são compreensíveis, até certo ponto, os motivos que levaram, especialmente na situação atual da
América Latina, ao surgimento de uma tal corrente teológica de matiz acentuadamente político; o problema fundamental
que se mantém no horizonte, escreve o Cardeal Ratzinger, é sempre o mesmo: a presença do mal e da injustiça no
mundo e, por assim dizer, o silêncio de Deus. Ora, diante de realidades duras como a exploração do trabalhador e as
condições de miséria em que muitos vivem, a Teologia da Libertação se posiciona nestes termos:

[...] tal situação, que não pode perdurar, só pode ser superada com uma mudança radical das estruturas do nosso mundo,
que são estruturas de pecado, estruturas do mal. Se, portanto, o pecado exerce a sua força sobre as estruturas e destas
deriva, necessariamente, uma situação de miséria, esta pode ser vencida, não com uma conversão pessoal, mas só
lutando contra as estruturas da injustiça [4].

Inserida neste quadro, a opção pelo pobre de que falamos há pouco apresenta-se, sob a perspectiva ideológica da luta de
classes, como mecanismo de reforma quer sócio-política, com vistas a um ideal escatológico de paraíso terreno (e aqui a
Teologia da Libertação é bastante fiel à tônica milenarista do comunismo marxista) [5], quer eclesiástica, na medida em
que busca instaurar uma «Igreja dos Pobres» na qual a função sacerdotal tende a fundir-se com a de assistente social [6].
Baseada nesse pressuposto metodológico, a Teologia da Libertação, incapaz de uma inteligência mais profunda da fé
eclesial, ver-se-á obrigada a recorrer a outros expedientes que lhe permitam desenvolver, ao menos em aparência, uma
reflexão teológica que dê conta dos sofrimentos deste mundo. João Sobrino, nesse sentido, propôs assentar a teologia
sobre novos princípios que, ao final, acabariam por reduzi-la de ciência da fé a uma práxis social e espiritualmente
libertadora, a uma tentativa, enfim, de fazer da Redenção um processo político cuja responsabilidade está ela toda nas
mãos do homem [7]. Um dos principais vetores dessa nova teologia é o que Sobrino denomina intellectus amoris, quer
dizer, o trabalho teológico deve ser encarado, acima de tudo, «como reação da misericórdia frente a povos crucificados»
[8]. Com efeito, esse princípio, sem o qual, diz Sobrinho, não pode haver «compreensão de Deus, nem de Jesus, nem do
homem» [9], deve-se transformar numa «ação concreta de libertação [...] do marginalizado pela sociedade moderna.»
[10]

64. A epistemologia do amor. — Algumas das críticas a essa concepção de Sobrino, formulada pela primeira vez em
1988 [11], surgiram dentro da própria Teologia da Libertação. Clodovis Boff fez, em 1998, um esforço, admirável por
sua sobriedade e sinceridade, por preservar o perfil tradicional do método teológico e, ao mesmo tempo, inserir as novas
propostas da Teologia da Libertação no contexto geral da teologia clássica. No quinto capítulo da primeira seção de sua
Teoria do Método Teológico, Boff apresenta uma série de interessantes considerações a respeito da epistemologia do
amor elaborada por Sobrino. Boff aponta, com efeito, para as dificuldades de se construir um sistema teológico sobre
um suposto intellectus amoris. Não se trata de uma impossibilidade de a teologia encofar os seus problemas sob a

Introdução ao Método Teológico - 35


perspectiva da misericórdia e da justiça, mas sim de tentar fazê-lo prescindindo do intellectus fidei: «Pois o intellectus
amoris supõe e só pode supor o intellectus fidei. E é dentro dele que deve se situar, a título de uma sua especificação ou
destaque.» [12] Por isso, uma epistemologia do amor que se queira apresentar como modalidade de reflexão teológica
deve, antes de mais, perguntar-se qual a natureza do amor por que é inspirada:

[...] corresponde ao "ágape" do Novo Testamento? É animando por ele? Ora, essa pergunta não é tão óbvia assim. Se
fosse claro para todos em que consiste o amor, Jesus não precisaria ter insistido tanto nele a ponto de selar essa lição
com o seu próprio sangue [...]. Portanto, para conhecermos o conteúdo do amor, para ele ser verdadeiramente libertador
no espírito de Jesus, somos obrigados a recorrer à luz da fé e aos Evangelhos; sem isso, pode-se produzir qualquer teoria
humanitária, marxista ou liberal que seja, mas nunca teologia realmente cristã [13].

Na verdade, segundo Boff, não há nenhuma contraposição entre fé e amor como dois princípios distintos a partir dos
quais se poderia fazer teologia, pois a fé cristã se baseia na Revelação, que, por sua vez, «reporta antes de tudo o amor
de Deus pelo seu povo» [14]. A crítica de Boff, assim, põe a nu a inversão no princípio formal da teologia operada por
Sobrino: «não se trata em primeiro lugar do nosso amor a Deus, mas do Seu amor mesmo, testemunhado pela Palavra da
fé» [15]. O sacrífico de Nosso Senhor na cruz mostrou que o amor é uma realidade de tais proporções, que só pode ser
plenamente compreendido e vivenciado à luz da fé. Não é o amor humano, portanto, que deve motivar a teologia, mas o
amor, revelado em Cristo, com que Deus nos ama. Por essa razão, é teologicamente insustentável querer reduzir o
mundo de Deus, infinito, aos limites do poço da realidade humana, que é sempre finita [16].

B) Raízes do problema

65. Viragem antropocêntrica. — A Teologia da Libertação, bem como muitas outras correntes teológicas atuais que,
em maior ou menor grau, tendem a afastar-se do ensinamento tradicional da Igreja Católica, nasce da viragem
antropocêntrica inaugurada pela modernidade. Ou seja: Deus deixa de ser a chave de compreensão da realidade e cede o
lugar para o homem, que passa a ser, sobretudo a partir do humanismo renascentista, o centro no qual todas coisas
encontram a sua explicação e justificação: a natureza, antes obra de Deus e cristalização simbólica de Sua bondade e
sabedoria, torna-se objeto de investigação e domínio técnico; a sociedade, de comunhão humana ordenada à santificação
pessoal e à vida eterna, reduz-se a um campo de choque entre vontades autônomas e atomicamente despersonalizadas;
no «Século das Luzes», o próprio Deus Se verá intimado a sentar no banco dos réus do inapelável tribunal da razão
humana [17].

66. Neognosticismo. — Sob o ponto de vista do seu método de trabalho, a Teologia da Libertação poderia ser
comparada, de um modo geral, às diversas manifestações do gnosticismo que pulularam nos primeiros séculos de vida
da Igreja e, como vimos na segunda aula do curso (cf. § 11), pretenderam, pela apropriação da linguagem em que fé
cristã começava a expressar-se, inculturar sub-repticiamente o cristianismo numa atmosfera sócio-religiosa pagã e,
portanto, contrária à mensagem evangélica. De fato, à semelhança do gnosticismo, a Teologia da Libertação propõe uma
releitura tanto dos conteúdos da fé da Igreja quanto da finalidade da existência cristã, a ponto de constituir-se numa
negação prática da mesma fé [18]. A novidade está agora no material de trabalho disponível: se, de um lado, aos
gnósticos se apresentava todo um rico corpo de conceitos tomados por empréstimo às mais distintas escolas filosóficas e
esotéricas, aos teólogos da libertação, de outro, se insinuam hoje os instrumentos de análise histórica, política e social
próprios da ideologia marxista, aos quais se soma, de maneira acrítica, «o recurso a teses de uma hermenêutica bíblica
marcada pelo racionalismo» [19] e por um viés forçadamente político.

67. Imanentismo. — Fiando-se, assim, nos esquemas interpretativos que o marxismo lhe pode fornecer, a Teologia da
Libertação, se quer ser coerente consigo mesma, é obrigada a aceitar «um conjunto de posições incompatíveis com a
visão cristã do homem» [20]. Ao colocar, pois, a luta de classes como lei objetiva e necessária por que até hoje têm sido
regidas as relações sociais, fundadas, nestes termos, radicalmente sobre a violência e a opressão dos ricos sobre os
pobres, a Teologia da Libertação, leal à tendência marxista de reduzir a realidade a concepções totalizantes e unilaterais,
acaba por fazer da história

[...] uma noção central. Afirmar-se-á que Deus se fez história. Acrescentar-se-á que não existe senão uma única história,
na qual já não é preciso distinguir entre história da salvação e história profana. Manter a distinção seria cair no

Introdução ao Método Teológico - 36


"dualismo". Semelhantes afirmações refletem um imanentismo historicista. Tende-se deste modo a identificar o Reino
de Deus e o seu advento com o movimento de libertação humana e a fazer da mesma história o sujeito de seu próprio
desenvolvimento como processo da auto-redenção do homem por meio de luta de classes. Esta identificação está em
oposição com a fé da Igreja [...] [21].

Ora, neste movimento de fechamento do homem para realidades transcendentes,

[...] alguns chegam até ao extremo de identificar o próprio Deus com a história e a definir a fé como "fidelidade à
história", o que significa fidelidade comprometida com uma prática política, afinada com a concepção do devir da
humanidade concebido no sentido de um messianismo puramente temporal [22].

C) Algumas consequências

68. Partidarismo e ortopráxis. — Dessa visão da história humana como constante embate entre as classes proletária e
opressora decorre logicamente uma concepção partidarista da verdade [23]. A Teologia da Libertação se apresenta,
nesse sentido, como uma teologia de classe [24]: com efeito, se o único critério admissível de verdade é e só pode ser,
para alguns teólogos da libertação, o ponto de vista da classe oprimida, por cujos interesses eles dizem lutar, toda
verdade teológica deve ser lida à luz dos interesses dessa classe e, por essa razão, subordinar-se aos imperativos da
práxis revolucionária [25]. Deste modo, toda manifestação contrária às teses da Teologia da Libertação é rejeitada a
priori e desacreditada como reflexo dos interesses da classe opressora, cujos «argumentos e ensinamentos não merecem,
pois, ser examinados em si mesmos» [26]. A relativização da verdade—derivada, como vimos, desse pressuposto
classista—opera uma substituição da ortodoxia, entendida como modo correto por que devemos glorificar a Deus e, por
conseguinte, viver à maneira que Ele nos pede [27], por uma ortopráxis político-social, quer dizer, por um projeto
moderno que pretende transformar o mundo, mas que, em virtude de seus próprios pressupostos teóricos, não pode
chegar compreender «[...] o que é bom para o mundo e aquilo que não o é», nem tampouco «saber em que direção ele
deve ser mudado, a fim de se tornar melhor.» [28]

Por ser luz do mundo e o sal da terra (cf. Mt 5, 13-16), todo cristão é chamado, de um modo particular, a «trabalhar pela
instauração [da] "civilização do amor"» [29], para que Cristo reine no mundo e no coração de cada um de nós. Por isso,
são legítimos todos os empreendimentos que buscam combater, dentro dos limites da atividade humana, quaisquer
formas de escravidão política, econômica ou social que impeçam a plena comunhão do gênero humano e dificultem a
seu modo o rumo de cada homem resgatado pelo sangue de Cristo à perfeição da vida divina e à felicidade no Reino de
Deus. O cristão deve ter presente, todavia, que a verdadeira libertação, aquela que o Redentor nos veio trazer, é a
libertação de um «mal mais radical, do pecado e do poder da morte», sem a qual não pode haver genuína liberdade [30].
Guiada, pois, pelo mandamento do amor, a Igreja ensina que o Reino de Cristo, embora já iniciado aqui, não é, por sua
natureza mesma, deste mundo,

[...] cuja figura passa, e que seu crescimento próprio não se pode confundir com o progresso da civilização, da ciência
ou da técnica humanas, mas consiste em conhecer cada vez mais profundamente as insondáveis riquezas de Cristo, em
esperar cada vez mais corajosamente os bens eternos, em responder cada vez mais ardentemente ao amor de Deus e em
difundir cada vez mais amplamente a graça e a santidade entre os homens. Mas é este mesmo amor que leva a Igreja a
preocupar-se constantemente com o bem temporal dos homens. Não cessando de lembrar a seus filhos que eles não têm
aqui na terra uma morada permanente, anima-os também a contribuir, cada qual segundo a sua vocação e os meios de
que dispõem, para o bem de sua cidade terrestre, a promover a justiça, a paz e a fraternidade entre os homens, a
prodigalizar-se na ajuda aos irmãos, sobretudo aos mais pobres e mais infelizes. A intensa solicitude da Igreja, esposa de
Cristo, pelas necessidades dos homens, suas alegrias e esperanças, seus sofrimentos e seus esforços, nada mais é do que
seu grande desejo de lhes estar presente para os iluminar com a luz de Cristo e reuni-los todos nele, seu único Salvador.
Esta solicitude não pode, em hipótese alguma, comportar que a própria Igreja se conforme às coisas deste mundo, nem
que diminua o ardor da espera pelo seu Senhor e pelo Reino eterno [31].

Introdução ao Método Teológico - 37


Referências

1. Melchior Cano, «De locis theologicis», l. 1, c. 3: «Locorum ergo theologorum elenchum denario nos quidem numero complectimur, non ignari, futuros
aliquos, qui eosdem hos locos in minorem numerum redigant, alios, qui velint etiam esse maiorem : Reduzimos, pois, os lugares teológicos a dez; mas não
ignoramos haver futuramente quem os restrinja a menor número ou lhes deseje aumentar a lista». In: J.-P. Migne (ed.), Theologiæ Cursus Completus,
vol. 1. Parisiis, ex typis Migne, au Petit-Montrouge, 1853, col. 62 (trad. nossa).
2. P. Berryman, Teología de la Liberación. México: Siglo Veinteuno Editores, 1989, p. 11 (trad. nossa).
3. Id., ibid. (trad. nossa).
4. J. Ratzinger, «A Fé e Teologia nos Nossos Dias», conferência aos presidentes das Comissões Episcopais da América Latina para a Doutrina da Fé,
Guadalajara (México), nov. de 1996. Disponível em: <http://bit.ly/1RZOuA4>, p. 1. A este respeito, é muito esclarecedora a «Instrução sobre Alguns
Aspectos da "Teologia da Libertação"», IV, n. 15, da Congregação para a Doutrina da Fé: «Não se pode [...] situar o mal unicamente ou principalmente
nas "estruturas" econômicas, sociais ou políticas, como se todos os outros males derivassem destas estruturas como de sua causa [...]. Há, certamente,
estruturas iníquas e geradoras de iniquidades, e é preciso ter a coragem de mudá-las. Fruto da ação do homem, as estruturas boas ou más são
consequências antes de serem causas. A raiz do mal se encontra pois nas pessoas livres e responsáveis, que devem ser convertidas pela graça de Jesus
Cristo, para viverem e agirem como criaturas novas, no amor ao próximo, na busca eficaz da justiça, do autodomínio e do exercício das virtudes.»
Disponível em (sítio): <goo.gl/OLfTrX>. Acesso em: 3 de jun. de 2015.
5. V., por exemplo, Mircea Eliade, Mito e Realidade. Trad. port. de Pola Civelli. 5.ª ed., São Paulo: Perspectiva (col. "Debates", n. 52), 2013, p. 158: «[...]
Marx retomou um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático-mediterrâneo: o papel redentor do Justo (hoje, o proletariado), cujos sofrimentos
são invocados para modificar o status ontológico do mundo. [...] Marx enriqueceu esse mito venerável de toda uma ideologia messiânica judeu-cristã: de
um lado, o papel profético e a função soteriológica que atribui ao proletariado; de outro lado, a luta final entre o bem e o mal, que pode ser facilmente
comparada ao conflito apocalíptico entre Cristo e o Anticristo».
6. Cf. C. F. Zanini; M. Baccega; R. B. Zappia, «A Teologia da Libertação e a Opção Preferencial pelos Pobres na América Latina», p. 66, in: História e
Perspectiva, Uberlândia, v. 24, n. 44 (jan./jun.), 2011. Disponível em (sítio): <goo.gl/P2PDCP>. Acesso em: 29 de maio de 2015. V. Congregação para
a Doutrina da Fé, «Notificação sobre as Obras do P. João Sobrino, S.J.», de 26 de nov. de 2006, n. 3. Disponível em (sítio): <goo.gl/VHc88p>. Acesso
em: 29 de maio de 2015.
7. J. Ratzinger, op. cit., loc. cit.
8. João Sobrino, «Como Fazer Teologia: Proposta Metodológica...», p. 285, in: Perspectiva Teológica, v. 21, n. 55, FAJE, 1989. Disponível em (sítio):
<goo.gl/fNrwhJ>. Acesso em: 29 de maio de 2015.
9. Id., p. 292.
10. M. N. Gabriel, Deus e os Pobres: De Jó à Teologia da Libertação... Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Teologia da FAJE, Belo
Horizonte, 2006, p. 10. Disponível em (sítio): <goo.gl/jbrx5U>. Acesso em: 29 de maio de 2015.
11. Cf. Fábio C. Junges, Método da Teologia da Libertação em Debate: A Perspectiva de Clodovis Boff. Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa
de Pós-Graduação em Teologia da Faculdade EST. São Leopoldo, 2011, p. 114. Disponível em (sítio): <goo.gl/6FnNwF>. Acesso em: 2 de jun. de 2015.
12. Clodovis Boff, Teoria do Método Teológico. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 122.
13. Id., ibid.
14. Id., p. 123.
15. Fábio C. Junges, op. cit., p. 115.
16. Cf. Clodovis Boff, op. cit., loc. cit.
17. Cf. J. M. Vegas, «Antipersonalismo y Antihumanismo», verbete in: AA.VV. Diccionario de Pensamiento Contemporáneo. Versão on-line disponível em
(sítio): <goo.gl/5IFWjD>. Acesso em: 2 de jun. de 2015.
18. Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, «Instrução sobre Alguns Aspectos da "Teologia da Libertação"», VI, n. 9.
19. Id., VI, n. 10.
20. Id., VIII, n. 1.
21. Id., IX, n. 3.
22. Id., ibid., n. 4.
23. Cf. Id., X, n. 1.
24. Cf. Id., ibid.
25. Id., ibid., nn. 1 e 3.
26. Id., ibid., n. 1.
27. J. Ratzinger, op. cit., p. 6.
28. Id., ibid.
29. Congregação para a Doutrina da Fé, «Instrução sobre a Liberdade Cristã e a Libertação», n. 99.
30. Id., ibid.
31. Paulo VI, «Profissão de Fé do Povo de Deus», 30 de jun. de 1968 (AAS 60 443-4).

Aula 12 – A vocação eclesial do teólogo

69. Introdução. — Queremos dedicar estes últimos momentos do curso a um tema que desde a década de 1960 tem
merecido a atenção dos Pastores de toda a Igreja Católica: trata-se da vocação eclesial do teólogo e suas relações com o
Magistério, assunto a que já tivemos ocasião de nos referir vez por outra ao longo de nossas primeiras aulas (cf., por
exemplo, §§ 6, 11, 15 e 53). A Congregação para a Doutrina da Fé publicou, em 24 de maio de 1990, vinte e cinco anos
após o encerramento do Concílio Vaticano II, uma «Instrução» [1] cuja finalidade é esclarecer qual o papel da teologia
na vida da Igreja; para isso, a Congregação julgou oportuno orientar os bispos a respeito da função e dos limites
específicos do teólogo e do magistério pastoral dentro da Igreja e estabelecer, assim, alguns parâmetros para o reto
relacionamento entre eles. Baseados nessa «Instrução» e nalguns apontamentos que o Cardeal Ratzinger fez sobre ela
[2], abordaremos hoje, a fim de circunscrever o assunto às finalidades do curso, apenas alguns aspectos da vocação

Introdução ao Método Teológico - 38


eclesial do teólogo e deixaremos para a próxima aula o que concerne à relação entre ele e o Magistério. Desse modo, o
conjunto destas duas aulas nos permitirá ter um olhar mais concreto sobre o caráter eclesial da teologia.

70. O problema da teologia moderna. — Talvez a mais expressiva dificuldade em que se vêem enredados muitos
teólogos modernos é o fato de esquecerem que pertencem a uma comunidade mística cujos interesses não podem
submeter-se às modas do tempo nem às novas correntes de espírito: a Igreja. Com efeito, desde o início da modernidade
até o Concílio Vaticano II—e de modo mais intenso e cristalizado durante o século XIX—o trabalho teológico foi
considerado uma ocupação reservada a um restrito número de clérigos capacitados cuja voz «quase não conseguia
despertar nenhum interesse para a opinião pública na Igreja.» [3] Esse como que encastelamento do teólogo sofreu um
forte abalo quando, após a Primeira Guerra Mundial, a Igreja Católica começou a presenciar um gradativo processo de
reorientação teológica que, soçobrada nos destroços da guerra a esperança de se conformar o cristianismo a uma
cosmovisão liberal do mundo, levaria o Concílio a tomar em consideração novos modos de expressar e transmitir a fé
cristã [4]. Os movimentos bíblicos, litúrgicos, ecumênicos e marianos, nesse sentido, serviram, ao longo da primeira
metade do século XX, para criar dentro da comunidade dos crentes «um novo clima espiritual» do qual, naturalmente,
veio a nascer uma nova maneira de fazer teologia «que no Concílio Vaticano II tornou-se fecunda para toda a Igreja.»
[5]

71. A eclesialidade da teologia. — Encerrado o Concílio, muitos teólogos deram continuidade às tendências que então
surgiam e, como não estivessem ainda bastante claros e definidos os limites em que essa evolução se poderia
desenvolver, «passaram a sentir-se mais e mais como os verdadeiros mestres da Igreja» [6], inclusive dos Pastores,
assaltados esses, de resto, «por um teologia que em parte ainda lhes era pouco familiar.» [7] Os meios de comunicação
tiveram neste período o impactante papel de transformar alguns teólogos em novos formadores de opinião e
desacreditar, perante o público geral, o magistério eclesiástico «como o último resquício de um fracassado
autoritarismo.» [8] De fato, a imagem veiculada da Santa Sé dava, pois, a impressão de que a só existência de uma
«instância extracientifica» que se arrogasse o poder e a autoridade de imiscuir-se em matérias de pesquisa era, de
qualquer jeito, uma forma de «controlar o pensamento» e opor-se à livre investigação [9]. Devido a este estado de
coisas, a Igreja passou a sentir a necessidade de reanalisar o lugar que o teólogo e o magistério pastoral ocupam no
Corpo de Cristo, a fim de que «não haja dissensões [...] e os membros tenham o mesmo cuidado uns para com os
outros» (1Cor 12, 25). À tarefa de compreender a relação entre teólogo e Magistério, segundo a lógica interna e função
próprias a cada um deles [10], buscou servir a «Instrução Donum veritatis», contribuindo, assim, também para a paz na
Igreja e para «uma reta forma de ligação entre fé e razão.» [11] Concretamente, a «Instrução» nos veio recordar de que a
cientificidade da teologia é diretamente proporcional à sua eclesialidade, ou seja: a teologia será tanto mais
rigorosamente científica quanto mais fiel for à Igreja.

72. A capacidade do homem para a verdade. — Procuramos demonstrar na primeira parte do curso como o
desenvolvimento da teologia e seu método teve por problema de fundo os encontros e desencontros entre razão e fé,
cujo relacionamento, em dados momentos da história da Igreja, oscilou entre a paz nupcial e a discórdia dum divórcio.
Esse descompasso entre religião e racionalidade manifestou-se, como vimos nas aulas 1 e 2, no gnosticismo, em que
razão e fé justapõem-se e perdem, assim, seus traços distintivos, e, emblematicamente, no arianismo, em que as
limitações da primeira impõem-se à segunda e pervertem-lhe, deste modo, o seu autêntico sentido. Vimos em seguida,
na quinta aula, como Guilherme de Ockham, ao tentar salvaguardar uma equivocada concepção de onipotência divina,
iniciou um processo de cisão entre razão e fé que Immanuel Kant, no século XVIII, enfim levaria a cabo. Em Kant, com
efeito, a razão humana tem de ver-se limitada ao campo da experiência sensível e, mesmo em tão estreitos limites, ela
não pode chegar a saber o que são as coisas em si mesmas, o seu quid, mas tão-somente como se apresentam aos nossos
sentidos e são acomodadas à estrutura racional por que a nossa mente as pode compreender. Fechados, assim, quaisquer
canais de comunicação entre o homem e o transcendente, descartada a metafísica como uma impossibilidade pura e
simples, a fé não pode ser senão uma convicção pessoal, ou, como escreve Kant, uma crença subjetivamente suficiente
(para mim), mas objetivamente insuficiente (para os outros) [12]. A consequência desta antropologia kantiana é a
desagregação da unidade íntima que deve haver no homem entre a sua racionalidade e a fé com que é presenteado por
Deus, porque

Quando a religião e a razão não conseguem retamente encontrar-se, a vida espiritual do [h]omem se desfaz, seja em um
acanhado racionalismo tecnicista, seja em um sombrio irracionalismo. A onda de esoterismo que observamos hoje

Introdução ao Método Teológico - 39


mostra que no racionalismo positivista dominante as camadas mais profundas da condição humana não conseguem mais
ser integradas, e por isso as formas atávicas de superstição voltam a ganhar ascendência sobre o [h]omem [13].

Diversamente do que ensinam muitas correntes filosóficas atuais que, de um modo ou de outro, fazem seus os resultados
de Kant, A Igreja Católica, «em consonância com um reto modo de pensar confirmado pela Escritura» [14], sustenta que
o homem é capaz de chegar à verdade com as forças da razão, sob cuja luz, a partir das coisas criadas, pode inclusive,
segundo um conhecimento metafísico proporcionado às limitações do seu intelecto, conhecer com certeza a existência
de Deus (cf. § 29), «pois o invisível Dele é divisado, sendo compreendido desde a criação do mundo, por meio do que
foi feito» (Rm 1, 20) [15]. Nesse sentido, a Igreja, atribuindo à razão o seu devido valor e confiando firmemente na
possibilidade de se falar de Deus a todos os homens, crentes e não-crentes, dedica-se desde sempre ao serviço da
doutrina que, por mandato divino, é chamada a anunciar a todas as gentes. «Ao defender», deste modo, «a capacidade da
razão humana de conhecer a Deus» [16], a Igreja aponta para o fato de que a fé, longe de ser um movimento irracional
do espírito, tem por base a própria Razão divina, o Logos, que é, eternamente, princípio e fundamento de todas as
coisas, em Quem são, por isso mesmo, razoáveis desde a origem [17].

73. A Verdade, dom de Deus. — A mesma santa Igreja ensina, por outro lado, que Deus, impelido por Seu imenso
amor aos homens, determinou revelar-Se a Si mesmo ao gênero humano e manifestar, assim, o mistério de Sua vontade
(cf. Ef 1, 9), pela qual nos ordenou, em Sua infinita bondade, à participação dos bens divinos, preparados desde todos os
séculos para aqueles que O amam (cf. 1 Cor 2, 9). Esta revelação sobrenatural, com efeito, chegou à plenitude em
Cristo, Verbo feito carne, pelo qual temos, no Espírito Santo, acesso ao Pai e, participantes da natureza divina, nos
associamos à comunhão da aliança e à promessa que Deus fizera ao Seu Povo (cf. Ef 2, 12-14) [18]. Por isso, desejando
tornar-nos «capazes de responder-Lhe, de conhecê-lO e de amá-lO bem além» do que seríamos capazes por nós mesmos
[19], Deus vem ao nosso encontro e Se nos dirige como a amigos muito queridos (cf. Ex 33, 11; Jo 15, 14s) e nos
convida a entrar em Sua intimidade, a fim de que ali encontremos a «plena verdade e verdadeira liberdade» [20]. Este
projeto benevolente, como recorda a Congregação para a Doutrina da Fé, Deus o realizou perfeitamente pelo Filho
vencedor da morte (cf. Jo 8, 36) e constantemente o atualiza, durante a peregrinação terrena da Igreja, pela ação de Seu
Espírito, que, fazendo pela mesma fé um só o Povo de Deus, nos conduz «à verdade plena» (Jo 16, 13) [21].

Por essa razão, Cristo, tendo completado e promulgado a Boa Nova prometida pelos Profetas, atribuiu à Igreja a missão
de conservar inalterado e transmitir às gerações futuras, «como fonte de toda verdade salvífica», o Seu Evangelho [22].
Desta verdade evangélica, dom de Deus, todo o povo santo, enquanto «sal da terra» e «luz do mundo» (cf. Mt 5, 13s),
deve dar testemunho, segundo as vocações e carismas próprios a cada um de seus membros. Aderindo, pois, fielmente
ao sagrado depósito, escrito ou transmitido, que lhe foi entregue, a «totalidade dos fiéis» ungidos no Espírito (cf. 1Jo 2,
20, 27), tanto da parte dos Antístites quanto da dos crentes comuns, experimentam, com a assistência do mesmo
Espírito, «uma singular convergência no conservar, praticar e professar a fé transmitida.» [23] Ora,

Para exercitar a sua função profética no mundo, o Povo de Deus deve continuamente despertar ou «reavivar» a própria
vida de fé (cf. 2 Tm 1, 6), particularmente por meio de uma reflexão sempre mais aprofundada, guiada pelo Espírito
Santo, sobre o conteúdo da própria fé e através do esforço de mostrar a sua racionabilidade àqueles que lhe perguntam
pelas razões (cf. 1 Pd 3, 15). Em vista desta missão o Espírito de verdade dispensa, entre os fiéis de toda ordem, graças
especiais dadas «para a utilidade comum» (1 Cor 12, 7-11) [24].

74. A vocação do teólogo. — A fim de fazer crescer na vida da Igreja a compreensão das realidades contidas no
depósito da fé, Deus suscita, de modo particular, a vocação do teólogo, que é especialmente chamado, pela
contemplação e pelo estudo, a aprofundar-se, em benefício de todos os fiéis, no conhecimento da verdade revelada [25].
Ora, se bem que essa verdade transcenda as limitações dos conceitos e linguagem humanos e desafie todo conhecimento
(cf. Ef 3, 9), ela, não obstante, como que impele a razão, em consonância com as aspirações naturais desta, a «entrar na
sua luz, tornando-se [...] capaz de compreender, em certa medida, aquilo em que crê.» [26] A ciência teológica surge
então como resposta ao convite da verdade divina e busca, naturalmente, a razão dessa fé sob cuja luz o cristão
antegoza, de modo limitado e imperfeito, as delícias do conhecimento de Deus. Para dispensar a todo o Povo um
ensinamento que, em comunhão com o Magistério, ao qual exclusivamente foi confiada a interpretação autêntica da
Palavra de Deus, lhes corrobore a esperança, conforme o mandamento do Apóstolo (cf. 1Pd 3, 14) [27], e não lese a
doutrina da fé, o teólogo, como servidor da Palavra, tem por tarefa principal auscultar e compreender o sentido da

Introdução ao Método Teológico - 40


Revelação. É, portanto, dentro dos limites desta Revelação que o teólogo, sem se esquecer de que também ele é membro
do Povo de Deus, pode retamente desenvolver sua pesquisa, que só pode respirar com verdadeira liberdade «no interior
da fé da Igreja» [28].

O teólogo tem inscrita no interior da vida a Igreja a sua vocação, pela qual é chamado, segundo os carismas que lhe são
próprios, a associar-se à herança eclesial que é a doutrina católica e a auxiliar os Pastores a manter viva e íntegra a
sagrada fé da Igreja de Cristo.

Referências

1. Congregação para a Doutrina da Fé, «Instrução Donum Veritatis sobre a Vocação Eclesial do Teólogo», de 24 mai. 1990. Disponível em
(sítio): <goo.gl/mPl8R>.
2. V. J. Ratzinger, Natureza e Missão da Teologia. Trad. port. de Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, c. 3, pp. 85-104.
3. Id., p. 87.
4. Cf. Id., ibid.
5. Id., p. 88.
6. Id., ibid.
7. Id., ibid.
8. Id., ibid.
9. Cf. Id., ibid.
10. Cf. Id., ibid.
11. Id., ibid.
12. Cf. Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura. Trad. port. de Manuela P. dos Santos e Alexandre F. Morujão. 6.ª ed., Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2008, p. 650 (A DCCCXXII; B DCCCL); v. também, mais à frente, p. 653 (A DCCCXXVII; B DCCCLV): «[...] a palavra
fé diz respeito unicamente à direção que me é dada por uma ideia e à influência subjetiva que exerce sobre o desenvolvimento dos atos
da minha razão e que me confirma nessa ideia, embora não me encontre no estado de a justificar do ponto de vista especulativo.»
13. J. Ratzinger, op. cit., loc. cit.
14. Congregação para a Doutrina da Fé, instr. Donum Veritatis, n. 10.
15. Cf. Concílio Vaticano I, const. dogm. Dei Filius, de 24 abr. 1870, c. 2 (DS 3004).
16. CIC, n. 39.
17. Cf. J. Ratzinger, op. cit., p. 89.
18. Cf. Id., ibid.; Concílio Vatiano II, const. dogm. Dei Verbum, de 18 nov. 1965, c. 1 (DS 4202); Congregação para a Doutrina da Fé, op.
cit., n. 3.
19. CIC, n. 52.
20. Congregação para a Doutrina da Fé, op. cit., n. 2; cf. Cf. Concílio Vaticano II, op. cit., loc. cit.
21. Cf. Id., ibid.
22. Concílio Vaticano II, op. cit., c. 2 (DS 4206).
23. Id., ibid.; cf. CIC, nn. 91-3.
24. Congregação paea a Doutrina da Fé, op. cit., n. 5.
25. Cf. Id., const. past. Gaudium et spes, de 7 dez. 1965, n. 62; CIC, 94; Congregação para a Doutrina da Fé, op. cit., n. 6.
26. Congregação paea a Doutrina da Fé, op. cit., loc. cit.
27. Cf. Concílio Vaticano II, Dei Verbum, c. 2 (DS 4213).
28. Congregação paea a Doutrina da Fé, op. cit., n. 11.

Aula 13 – O relacionamento do teólogo com o Magistério

5. Recapitulação. — Abordamos na última aula os três capítulos iniciais da instrução Donum Veritatis. Seguindo as
diretivas do próprio documento, vimos que a verdade, enquanto dom de Deus, é dada comunitariamente a todo o Povo,
isto é, à Igreja, encarregada de auscultar, conservar e transmitir religiosamente o tesouro da fé, conforme os diversos
carismas e funções dos membros que a compõem (cf. § 73). Tratamos em seguida da missão eclesial do teólogo, cujo
trabalho se desenvolve não numa tensão entre Magistério pastoral e teologia, como se fossem dois polos antagônicos,
mas antes no que Ratzinger denomina «relação triangular»: de um lado, o Povo de Deus, lugar comum da fé; de outro, o
próprio teólogo, que encontra o espaço vital de suas reflexões na Igreja, a qual, preservando ao longo da história a vida
da fé, garante a possibilidade mesma da teologia; e, enfim, o Magistério, incumbido de ensinar o Evangelho e interpretar
autenticamente a Palavra de Deus (cf. § 74) [1]. A fim de rematar esse tema, falaremos na aula de hoje, como
prometêramos, das relações entre o Magistério da Igreja Católica e os teólogos. Procuraremos dar maior destaque ao que
a instrução chama «relações de colaboração», quer dizer, o auxílio recíproco que ambos devem prestar à comunidade

Introdução ao Método Teológico - 41


eclesial, tendo em vista o fim último que, de modo geral, lhes é comum: «conservar o Povo de Deus na verdade que
liberta» [2].

A) Início dos conflitos

76. Um «magistério teologal»? — Apresentamos nos números 71 e 72 da aula passada um breve resumo de como, a
partir da década de 1960, o papel da teologia e do teólogo na Igreja tornou-se objeto de acalorados e, não raro, violentos
debates. O Concílio Vaticano II, com efeito, fora convocado pelo então Papa João XXIII com o claro objetivo de expor
aos homens de hoje, «tendo em conta os desvios, as exigências e as possibilidades deste nosso tempo» [3], o depósito
perene da fé cristã e a continuidade harmoniosa do que Magistério Eclesiástico tem ensinado ao longo de seus dois mil
anos de serviço. Para cumprir, pois, a missão de transmitir às novas gerações as verdades contidas nesse sagrado
depósito, «conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance» [4], de forma a responder às inquietações
dos tempos modernos, os bispos conciliares contaram com o apoio valioso de peritos—alguns deles imbuídos de uma
teologia que, fruto do novo clima espiritual que se vinha formando por todo o mundo católico, tomou de assalto os
Pastores. Joseph Ratzinger, que, atendendo ao pedido do Cardeal Joseph Frings, participou também como perito das
sessões do Concílio, testemunha que os bispos, surpreendidos por tendências teológicas novas e ainda pouco familiares,
«de boa vontade deixaram-se conduzir pelos teólogos, como seus mestres em um terreno que eles até então
desconheciam» [5]. As palavras finais do que depois viria a ser o posicionamento do Vaticano II, no entanto, continuava
a cargo dos Pastores. Ora, este confessado despreparo técnico e a condição subalterna de «aluno» em que não poucos
Padres se colocaram, invertendo, assim, a relação entre magistério pastoral e teólogo durante o Concílio, levaram muitos
teólogos a se sentirem «mais e mais como os verdadeiros mestres da Igreja, mestres inclusive dos bispos.» [6]

77. Uma luta pelo poder. — Mesmo encerradas as sessões conciliares, escreve Ratzinger, «o dinamismo desta
evolução teve continuidade» [7]. Os meios de comunicação, como dissemos anteriormente (cf. § 71), descobriram com
inusitado interesse a figura desses teólogos peritos e, alimentado uma certa expectativa popular de que a Igreja enfim
abrir-se-ia ao mundo (pressão que ainda persiste), fomentaram, baseados, de resto, numa péssima compreensão do
aggiornamento que o Concílio intentara, o surgimento do que hoje se conhece por hermenêutica da ruptura, ou seja: os
documentos do Concílio Vaticano II, apresentado como o marco da fundação de uma «nova Igreja», deveriam ser lidos
independentemente da doutrina católica tradicional. Tal chave de leitura, muito simpática aos mass media e a alguns
setores da teologia moderna, levou à percepção de que, em virtude dessa aparente solução de continuidade entre o que o
Magistério até então ensinara e o que agora se atribuía ao recém-celebrado Concílio, havia-se instaurado uma cisão
entre duas supostas igrejas, pré e pós-conciliares [8]. O Vaticano II, desta forma, deixava de ser o 21.º Concílio
Ecumênico da Igreja, em harmonia com dois milênios de doutrina, para se transformar, aos olhos de muitos, numa
espécie de revolução eclesial em que o espírito do tempo (Zeitgeist) traveste-se de Espírito Santo.

É natural, pois, que, neste quadro, tenha surgido o problema de saber quais os rumos que a Barca de Pedro agora deveria
tomar e a quem caberia, afinal, a função de timoneiro. Ora, como o Magistério da Santa Sé passasse «a ser visivelmente
considerado como o último resquício de um fracasso autoritarismo» e o «caminho do conhecimento», pensava-se, «não
pudesse ser estabelecido pela autoridade, mas dependesse unicamente da força dos argumentos» [9], quer dizer, não
coubesse mais ao munus pascendi dos bispos [10], senão ao labor teológico, a teologia passou a degenerar-se em uma
luta pelo poder dentro da Igreja, conflito em que, deste momento em diante, teólogos e Magistério vir-se-ão obrigados a
tomar parte.

78. Ideologias a serviço do poder. — Nesse sentido, o que se pôde presenciar, ainda nos anos de 1960, sobretudo nos
Estados Unidos e depois, de forma mais generalizada, no Velho Mundo e na América Latina, foi que muitas correntes
teológicas, organizadas pelo que Ratzinger denomina «princípio da maioria» [11], isto é, inspiradas por um modelo
político democrático em que o vetor determinante deve ser a vontade comum, criaram como que um magistério paralelo
à Santa Sé. Essas novas teologias, com efeito, afastando-se «do terreno do pensamento para o jogo do poder» [12],
começaram a reduzir-se a ideologias políticas constituídas muitas vezes em grupos organizados cuja agenda não era
outra senão opor-se pública e sistematicamente ao «despotismo da teologia romana» e ao Magistério da Igreja [13]. A
propósito, a instrução Donum Veritatis, sob o título «O Problema da Dissensão», arrola de modo bastante criterioso e
sereno os fatores que remota ou indiretamente podem influenciar esses comportamentos e movimentos tão nocivos à
comunhão da Igreja. À guisa de ilustração, vejamos apenas dois deles:

Introdução ao Método Teológico - 42


1. Liberalismo filosófico: desta ideologia, de que a mentalidade moderna, aliás, está contaminada em larga escala,
deriva a tendência a considerar que um juízo possui tanto mais peso e valor quanto mais provenha de um
indivíduo que, apoiando-se sobre as próprias forças, pense, na medida em que isso é possível,
independentemente de qualquer influência externa. É o que se consubstancia, por assim dizer, numa certa mania
de independência e originalidade que leva a opor forçadamente a «liberdade de pensamento à autoridade da
tradição, considerada causa de escravidão.» [14] Ora, tal forma de liberdade de juízo, pondo a priori sob
suspeita toda doutrina que de um modo geral nos é transmitida e aceita, acaba por sobrepor-se à própria verdade
e impor-se como valor absoluto.
2. Normatização da opinião pública: outro fator que exerce também sua influência, aponta a instrução, é «o peso
de uma opinião pública artificiosamente orientada e dos seus conformismos» [15]. Os modelos sociais
difundidos e propagandeados pelos meios de comunicação, ao assumirem um valor normativo, tendem com
infeliz frequência a transformar-se num padrão de vida ao qual as pessoas se sentem compelidas a ajustar-se;
trata-se, portanto, de uma forma sub-reptícia de reengenharia social. Surge daí a convicção de que a Igreja, por
não se adequar a estes modelos, não deveria ter voz, «a não ser sobre problemas considerados importantes pela
opinião pública, e no sentido que convenha a esta.» [16] Ao Magistério caberia, por exemplo, pronunciar-se a
respeito das injustiças e desigualdades sociais, ainda que sem indicar os elementos responsáveis, mas deveria
calar-se quanto à moral conjugal e familiar.

A instrução adverte, ao final, que «um discernimento crítico bem ponderado e um real domínio dos problemas são
necessários ao teólogo, se ele quiser cumprir a sua missão eclesial e não perder, conformando-se ao mundo presente (cf.
Rm 12, 2; Ef 4, 23), a independência de juízo que deve ser a dos discípulos de Cristo.» [17]

B) Relações de colaboração

79. Fim comum. — Ao abordar as relações entre Magistério e teólogo, a Donum Veritatis põe em realce que, embora a
um e outro caibam dons e funções diferentes, ambos se ordenam a um mesmo fim comum, qual seja: «conservar o povo
de Deus na verdade que liberta fazendo dele, assim, "a luz das nações".» [18] Trata-se, nesse sentido, de um serviço a
toda a comunidade eclesial, o que implica, naturalmente, uma relação recíproca entre eles. De um lado, o Magistério
Eclesiástico, enquanto participação no próprio magistério de Cristo, interpreta e ensina de modo autêntico a doutrina
apostólica e, servindo-se dos instrumentos que a ciência teológica pode fornecer, defende a fé cristã, refutado as
objeções que contra ela se possam levantar; ainda baseado no trabalho teológico, o Magistério, em virtude da autoridade
que lhe foi conferida por Nosso Senhor, pode propor «novos aprofundamentos, explicitações e aplicações da doutrina
revelada» [19], contribuindo, assim, para o crescimento na compreensão do depósito da fé [20]. À reflexão teológica,
por outro lado, compete buscar uma intelecção cada vez mais profunda e completa das realidades contidas na Sagrada
Escritura e religiosamente transmitidas pela Tradição da Igreja; a teologia pode também oferecer, com grande proveito
para todos os fiéis, maiores esclarecimentos a respeito dos mistérios revelados e responder às questões que a Revelação
muitas vezes propõe à razão humana. O trabalho teológico, por fim, presta um grande serviço ao Magistério ao conferir
à doutrina católica uma forma orgânica e sistemática, destacando os nexos de subordinação e interdependência que os
mistérios têm entre si.

Além do mais, a mútua colaboração entre Magistério e teólogo se concretiza de modo especial, aponta instrução,
quando este «recebe a missão canônica ou o mandato de ensinar.» [21] A vinculação jurídica entre eles, com efeito, faz
do ensinamento do teólogo uma forma de participação, em certo sentido, da obra magistral. O teólogo assim investido
contrai, por conseguinte, o dever de «apresentar e ilustrar, com toda a exatidão e na sua integridade, a doutrina da fé.»
[22]

80. A adesão devida ao Magistério. — Ora, o teólogo, por se membro da Igreja, tem de aderir ao Magistério quando
este se pronuncia infalivelmente, quer dizer, ao declarar, sob a prerrogativa da infalibilidade (derivada do magistério
autêntico e infalível de Jesus Cristo), que determinada doutrina está contida na Revelação Divina. «Esta adesão se
estende ao ensinamento do Magistério ordinário e universal quando propõe que se creia uma doutrina de fé como sendo
divinamente revelada.» [23] Ora, quando o Magistério se expressa em um grau menor de autoridade, seja ou não de
modo definitivo, há necessidade de tal adesão? A instrução é bastante calara a este respeito:

Introdução ao Método Teológico - 43


Quando ele [o Magistério da Igreja] propõe «em modo definitivo» verdades que tocam questões de fé ou de costumes
que, mesmo não sendo divinamente reveladas, são porém estreita e intimamente conexas com a Revelação, estas devem
ser firmemente aceitas e conservadas. Quando o Magistério, mesmo sem a intenção de emitir um ato «definitivo»,
ensina uma doutrina para ajudar a uma compreensão mais profunda da Revelação e daquilo que melhor explicita o seu
conteúdo, ou para evocar a conformidade de uma doutrina com as verdades de fé, ou enfim para prevenir contra
concepções incompatíveis com estas mesmas verdades, é exigida uma religiosa submissão da vontade e da inteligência.
Esta não pode ser puramente exterior e disciplinar, mas deve colocar-se na lógica e sob o estímulo da obediência da fé
[24].

Joseph Ratzinger traz uma interessante discussão sobre este ponto. Há, segundo ele, uma tendência a considerar que as
decisões magisteriais derivam sua autoridade e força vinculante só e tão-somente da infalibilidade da Igreja. Isto quer
dizer, em outras palavras, que só pode haver decisões do Magistério «quando a Igreja puder apelar para a infalibilidade»
[25]. Em todos os demais casos, a decisão dependeria apenas da força dos argumentos, «portanto uma certeza comum da
Igreja tornar-se-ia impossível.» [26] Uma tal tendência, escreve Ratzinger, expressa certo mal vezo juridicista—típico
da mentalidade ocidental—que veio, ao fim e ao cabo, desaguar numa forma de essencialismo desvinculado da vida
mesma da fé. Ratzinger procura esclarecer este problema estabelecendo um paralelo entre a teologia sacramental que, a
partir do século XIII, foi-se impondo como canônica e a realidade concreta da liturgia:

Lá pelo século 13 começa a sobrepor-se a tudo a questão do que é necessário para a validade dos sacramentos.
Visivelmente, o que passa a contar agora é exclusivamente a alternativa válido ou inválido. O que não afeta a validade
aparece, em última análise, como não tendo grande importância e como podendo ser substituído. Na Eucaristia, por
exemplo, chega-se dessa forma a uma fixação sempre mais rígida nas palavras da consagração; o que é realmente
constitutivo para a validade trona-se cada vez mais restrito. Com isso vai-se perdendo cada vez mais a visão para a
estrutura viva do serviço divino. [A]fora as palavras da consagração, tudo mais termina sendo considerado apenas como
cerimônia, que assumiu essa forma, mas que em princípio também poderia não existir. Deixa-se de ver a natureza
própria e o sentido insubstituível para a liturgia, porque o pensamento concentrou-se sobre um minimalismo
juridicamente circunscrito. [...] a crise litúrgica do presente só pode ser entendida a partir daqui. Quando hoje toda a
liturgia passou a ser para muitas pessoas o terreno de uma "criatividade" privada, podendo manifestar-se da maneira
como se achar melhor, nós continuamos diante da mesma restrição surgida de um desenvolvimento errôneo, tipicamente
ocidental, que na Igreja oriental seria totalmente impensável [27].

Retornando à questão, Ratzinger assinala que, apesar de a noção jurídica de infalibilidade magisterial ter-se firmado e
delimitado com clareza apenas na Idade Média, seria um equívoco considerar que, até meados do século XIII, a Igreja
se tenha despido de sua autoridade em propor um ensino autêntico e delegado suas funções à livre disputa dos doutores
[28]. O que ocorre é que, até o medievo, a Igreja como um todo não sentira a necessidade de reduzir «a estrutura viva da
fé ao esqueleto do infalível» [29], uma vez que o que se julgava essencial estava justamente na própria vida da fé, que,
tanto doutrinal quando liturgicamente, se empobrece ao ver-se reduzida a um «mínimo jurídico» suficiente, ficando tudo
o mais entregue à vontade dos ministros e da comunidade [30]. A infalibilidade é decerto um dom concedido por Deus à
Sua Igreja, à qual cabe, dentro de condições específicas, ensinar autenticamente em nome de Jesus Cristo e, portanto,
emitir ex officio juízos doutrinais. A fixação, porém, destes limites, por meio dos quais o Magistério testemunha e
explica fielmente o Evangelho, conduzindo, assim, o rebanho de Cristo, só tem sentido «se permanece protegida por um
limite na estrutura viva da certeza comum da fé.» [31] A infalibilidade magisterial, portanto, não pode substituir a
autoridade eclesiástica e esta, por sua vez, não pode reduzir-se àquela. Nesse sentido, «em uma comunidade que se
baseia substancialmente na convicção comum [da fé]», como é a Igreja, «não se pode prescindir da autoridade no
tocante ao conteúdo, sobretudo quando se trata de uma autoridade cuja palavra pode continuar crescendo e se
purificando num desenvolvimento vital.» [32] Por isso, a «vontade de submissão leal» [33] aos ensinamentos do
Magistério mesmo em casos de matérias em si mesmas não irreformáveis, como se disse no início deste parágrafo, deve
ser a regra. A «obrigatoriedade», conclui Ratzinger, «não pode ser atribuída unicamente ao que é "infalível"», pois

[...] ela está presente no conjunto da estrutura viva da fé, que como tal deve sempre de novo poder ser proclamada, para
que não desapareça na confusão de sempre novas hipóteses. Que a autoridade conhece graus muito diferentes, isto é
claramente afirmado no documento da Congregação para a Doutrina da Fé, e para a teologia isto a rigor não deveria ser

Introdução ao Método Teológico - 44


considerado um empecilho, mas sim um estímulo. Mas o fato de um grau não ser igual ao outro não significa que a
autoridade que se considere menor não seja autoridade nenhuma, ou que possa ser considerada apenas como uma
hipótese entre outras. Aqui haveria a necessidade de mais uma vez ser formada uma consciência nova e mais
diferenciada, e esta foi a contribuição que a Instrução quis oferecer [34].
Referências

1. Cf. J. Ratzinger, Natureza e Missão da Teologia. Trad. port. de Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, c. 3, pp. 90-1.
2. Congregação para a Doutrina da Fé, «Instrução Donum Veritatis sobre a Vocação Eclesial do Teólogo», de 24 de maio de 1990, c. 4, n.
21. Disponível em (sítio): <goo.gl/mPl8R>.
3. Discurso de Sua Santidade Papa João XXIII na abertura solene do SS. Concílio [Vaticano II], de 11 de out. de 1962. I Sessão, II, n. 2.
Disponível em (sítio): <goo.gl/kj65az>. Acesso em: 29 jun. 2015.
4. Id., I Sessão, VI, n. 5.
5. J. Ratzinger, op. cit., p. 88.
6. Id., ibid.
7. Id., ibid.
8. Cf. Bento XVI, «Discurso aos cardeais, arcebispos e prelados da Cúria Romana na apresentação dos votos de Natal», de 22 de dez. de
2005. Disponível em (sítio): <goo.gl/FWkRCJ>. Acesso em: 30 jun. 2015. (V. Juliano A Dias, Sacrificium Laudis: A Hermenêutica da
Continuidade de Bento XVI e o Retorno do Catolicismo Tradicional (1969-2009). São Paulo: Cultura Acadêmica [UNESP], 2010, pp. 96-8.)
9. J. Ratzinger, op. cit., loc. cit.
10. Cf. Bento XVI, «Discurso aos participantes no Congresso dos Novos Bispos», de 21 de set. de 2006, na Sala dos Suíços do Palácio
Pontifício de Castel Gandolfo. Disponível em (sítio): <goo.gl/2ayxX0>. Acesso em: 30 jun. 2015.
11. Cf. J. Ratzinger, op. cit., p. 92.
12. Id., ibid.
13. Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, op. cit., IV, B, n. 32.
14. Id., ibid.
15. Id., ibid.
16. Id., ibid.
17. Id., ibid.
18. Id., IV, A, n. 21.
19. Id., ibid.
20. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 94.
21. Congregação para a Doutrina da Fé, op. cit., IV, A, n. 22.
22. Id., ibid.
23. Id., n. 23.
24. Id., ibid.
25. J. Ratzinger, op. cit., p. 96.
26. Id., ibid.
27. Id., ibid.
28. Cf. Id., p. 97.
29. Id., ibid.
30. Cf. Id., ibid.
31. Id., ibid.
32. Id., pp. 97-8.
33. Congregação para a Doutrina da Fé, op. cit., IV, A, n. 24.
34. J. Ratzinger, op. cit., p. 98.

Aula 14 – Teologia e Mística

81. Introdução. — Limitando-nos ao ponto de vista metodológico, procuramos mostrar ao longo de nossas aulas como
a teologia cristã veio a constituir-se em verdadeira ciência, com método e objeto próprios de estudo. Não pudemos, por
razões óbvias, tratar de todas as questões que de alguma maneira dizem respeito ao tema deste curso; procuramos, no
entanto, estabelecer os conceitos fundamentais daquilo que é a abordagem cristã do conhecimento teológico. A fim de
concluir este itinerário, dedicaremos esta última aula a um assunto que, embora já visto de passagem (cf. § 48), sintetiza
o essencial do que até agora estudamos: o relacionamento entre teologia e mística.

A) Teologia e fé

82. O estatuto epistemológico da teologia. — Talvez a mais importante e valiosa conclusão que se possa tirar de tudo
quanto vimos nesta Introdução é que a teologia, relativamente a todas as demais ciências, possui um estatuto
epistemológico único: sendo, por meio da Revelação, uma certa impressão em nós da ciência divina [1], não há abaixo
Introdução ao Método Teológico - 45
dela nenhuma ocupação, nenhuma disciplina do intelecto humano que dependa tão profunda e intimamente da estatura
moral do estudioso. De fato, se nas outras ciências, por um lado, o êxito das investigações está condicionado antes pelo
preparo técnico, pela cultura mais ou menos perfeita da inteligência, por uma argúcia, enfim, até certo ponto
independente do valor humano do profissional [2], o conhecimento teológico, por outro, está estreitamente vinculado à
vida do indivíduo e à sinceridade com ele busca adequar-se às exigências da vida cristã [3]: «Aquele que exerce a
justiça», diz o Eclesiástico, «possuirá a sabedoria» e o Senhor o alimentará «com o pão da vida e da inteligência» (Eclo
15, 1 e 3). Isso porque a teologia, como esperamos ter deixado claro até aqui, pressupõe a fé teologal: «Crer», diz Santo
Agostinho, «nada mais é do que pensar com assentimento [...] todo o que pensa crê; pois ao crer, pensa e, pensando,
crê» [4]. Detenhamo-nos um pouco neste «cum assensione cogitare» e vejamos de mais perto o porquê de a teologia
não ser uma atividade moralmente indiferente.

83. A teologia supõe a fé. — Como vimos em mais de uma oportunidade, a fé é necessária a quem deseja fazer
teologia; não é possível, noutras palavras, uma teologia independente dos dados revelados. Disto decorre que todo e
qualquer conhecimento teológico depende, em última análise, do modo com que correspondemos à graça divina e nos
conformamos às verdades que Deus nos dá a conhecer. Por essa razão, dissemos acima que a teologia católica, enquanto
ciência, difere de todas as demais formas de conhecimento. Se um matemático, após longos e pacientes esforços, é
capaz de demonstrar um determinado teorema, ele o faz independentemente de, em seus momentos de lazer, entregar-se
à oração ou a desregramentos. Por este ângulo, as forças naturais da inteligência são o bastante para se chegar à verdade
matemática; daí dizer Santo Tomás de Aquino que nas ciências meramente humanas é suficiente que sejamos perfeitos
segundo o intelecto, mas não segundo a virtude [5].

84. A teologia supõe a Revelação. — Com efeito, a fé necessariamente pressuposta pela teologia é como que um sim
amoroso à Palavra de Deus que Se revela; trata-se, nesse sentido, de uma ciência que parte (1) de um assentimento livre
às verdades reveladas, dado mediante o ato de fé (cf. § 21), e implica (2) não somente certa relação entre o pesquisador
e seu objeto de pesquisa, mas, para além disso, um relacionamento entre duas pessoas: o fiel e Deus, que Se dá a
conhecer e nos convida a participar de Sua bem-aventurança. É Deus, portanto, quem nos fala primeiro; o nosso papel,
diante da comunicação que Ele deseja fazer de Si mesmo, é responder sim a tudo o que essa Revelação nos propõe. Ora,
devido à absoluta veracidade de Deus, que não pode enganar-Se nem nos enganar (cf. § 22, 3), do assentimento que Lhe
prestamos surge para nós uma certeza—a firme certeza da fé num Deus sumamente veraz e infalível. A fé, no entanto,
de modo algum é um movimento cego do espírito nem tampouco um arroubo sentimental e histérico, mas um ato da
inteligência que, sob o império da vontade, adere firmemente às verdades divinas.

85. O «cogitare cum assensione». — Daí já se percebe que toda a reflexão teológica é guiada por um princípio distinto
do das outras ciências, pois é a razão, iluminada pela luz sobrenatural da fé, que adere, que dá o seu assentimento à
Palavra de Deus; por isso, pode-se dizer que a especulação teológica é sempre, como dissemos há pouco, um «pensar
com assentimento» (cogitare cum assensione).

Ao estudar o que denomina ato interior da fé, Santo Tomás de Aquino busca demonstrar como o assentimento por ela
prestado é, de fato, um ato da inteligência e de que maneira este ato se diferencia das demais formas por que o intelecto
humano pode relacionar-se com a verdade. Há, de um modo geral, quatro graus principais de firmeza com o que a nossa
inteligência é capaz de assentir a determinada proposição. Num primeiro momento, dizemos estar em (a) dúvida a
inteligência que parece flutuar entra duas proposições contrárias, sem se inclinar, de modo determinante, nem a uma
nem à outra. Não há neste estado um assentimento em sentido próprio, visto que a inteligência se comporta, por assim
dizer, de maneira meramente negativa, quer tendendo a ambas as partes, quando as razões apresentadas dos dois lados
parecem ter igual peso, quer suspendendo todo e qualquer juízo, quando as razões alegadas são igualmente fracas ou
insuficientes. Ainda no âmbito da dúvida, mas já com algum avanço, pode surgir a (b) suspeita, quer dizer, certa
inclinação ou propensão a uma daquelas proposições devido a uma leve desconfiança ou indícios de verdade. É possível
perceber aqui uma forma, se bem que imperfeita e bastante frágil, de assentimento; a inteligência, em todo caso, se
restringe a simples possibilidades. Há, em seguida, o que se costuma entender por (c) opinião: um assentimento, por
causa dum motivo ou razão provável, com algum temor de que a posição contrária possa ser a verdadeira (cum
formidine partis oppositae) [6]. A inteligência, embora receie estar enganada, toma aqui uma decisão provisória, feita
sob a condição, quase sempre tácita e inconsciente, de retratar-se, caso novas e melhores razões surjam no futuro. Por
fim, a inteligência pode ter a chamada (d) certeza, por força da qual aderimos firmemente a determinada proposição

Introdução ao Método Teológico - 46


sem nenhum temor de estarmos errados [7]. É, pois, no âmbito campo da certeza que nasce e se desenvolve a fé, que
exclui toda forma de temor.

86. A certeza da fé. — Ora, apesar de ser certíssima, a fé exige um ato de vontade, porque, em virtude da limitação de
nosso espírito, as verdades reveladas não são intrinsecamente evidentes para nós, mas exigem nossa adesão por causa da
autoridade de Deus que no-las revelou (cf. § 21, 2). A fim de esclarecer um pouco mais este ponto, façamos algumas
distinções. A certeza, como vimos acima, diz respeito à firmeza com que a inteligência adere a certa proposição e, sem
temores, reconhece-a como verdadeira. Trata-se, portanto, de um estado psicológico em que não há dúvidas nem medo
de erro. Enquanto expressa um estado mental, a certeza, deste ângulo, é algo de subjetivo; na medida, porém, em que
possui um fundamento real capaz de remover qualquer receio de erro, tornar-se também algo objetivo. Quando a nossa
certeza carece de qualquer fundamento para além de si mesma, chama-se certeza meramente subjetiva, pois representa
só e tão-somente um estado psíquico; quando, ao contrário, esta mesma certeza tem um fundamento real e objetivo, diz-
se certeza formal. Ora, para que a certeza seja formal, é necessário que se tenha por fundamento ou (a) uma evidência,
quando o objeto a que o intelecto se aplica lhe é, de fato, evidente e de certo modo conatural, ou (b) uma testemunha
autorizada que nos revele, mediante motivos de credibilidade, a veracidade daquele objeto, que é, por isso mesmo,
credível.

No primeiro caso, a inteligência é movida por um dado que, eficaz e infalivelmente, fá-la dar o seu assentimento (por
exemplo, o intelecto é naturalmente levado reconhecer que «dois e dois são quatro»); a evidência, nesse sentido, é não
apenas o fundamento suficiente de qualquer certeza, mas é também capaz, por si só, de obrigar a inteligência a assentir
a tal ou qual proposição. No segundo caso, o objeto ou a verdade não nos são evidentes em si mesmos, mas a sua
credibilidade o é, porque o testemunho da autoridade (sua ciência e veracidade) que nos testifica aquela verdade é
evidente. Por isso, na falta de evidência objetiva, o intelecto humano não pode mover-se senão pelo império da vontade:
quando ela o move a reconhecer uma verdade para qual só podem encontrar-se evidências de credibilidade, nasce a
certeza da fé; quando, ao contrário, ela o impele a dar um assentimento na ausência absoluta de evidências, inclusive de
credibilidade, a certeza daí proveniente é meramente subjetiva ou imaginária, pois a inteligência voluntariamente
desconsidera as razões que a levariam à dúvida; por conseguinte, a segurança e a ausência de temor características desta
certeza são aqui algo de artificioso [8].

87. A dinâmica teológica da fé. — Do que foi dito se percebe que, embora não seja evidente em si mesmo, tudo o que
pela fé cremos é, todavia, consentâneo à razão, porque, ainda que a fé careça daquela visão da verdade que apenas a
evidência pode fornecer, permanece no intelecto do crente um certo movimento de intelecção destas verdades credíveis
(motus cogitationis in mente credentis). Ora, a fé divina, tendo por fundamento a autoridade infalível do próprio Deus
que Se revela, é mais certa do que todas as demais formas de conhecimento, pois, como diz o Aquinate, «a verdade
primeira, que motiva o assentimento da fé, é mais forte do que a luz da razão, que leva ao assentimento da ciência» [9].
Daí decorre a dinâmica interna da fé que, enquanto ato do intelecto, deseja continuar inteligindo e se aprofundando nas
verdades às quais deu o seu sim. A teologia é essa fé que permanece a pensar e deseja compreender cada vez mais.

B) Teologia e vida

88. Cisão entre vida e pensamento. — Ora, como vimos na parte histórica, o ponto de inflexão entre a especulação
teológica e a santidade de vida por ela pressuposta deu-se ainda na Alta Idade Média, quando a institucionalização do
ensino por meio do sistema universitário começou a reduzir a teologia a um campo de pesquisa acadêmica e
estritamente intelectual. A «complexa rede de prestações e contraprestações reguladas por usos fixados pelos estatutos»
[10] universitários, engessando, em parte, a vida espiritual de alunos pouco comprometidos com a prática viva da fé e
cada vez menos vinculados a uma escola de espiritualidade ou a um «programa» de amadurecimento nas virtudes
acarretou não somente a progressiva racionalização da teologia, mas, sobretudo, um processo de cisão paulatinamente
mais crítico entre fé e razão, entre filosofia e teologia, entre ciência, enfim, e a vida pessoal do estudioso. Não à toa, o
nominalismo e os germes nele contidos começariam, poucas gerações após Santo Alberto Magno e Santo Tomás de
Aquino, a fazer da Escolástica uma inquisição—aridamente minuciosa e permeada de distinções desnecessariamente
subtis—sobre palavras, e não mais sobre a realidade mesma. Não é de estranhar, pois, que este movimento de ruptura
tenha vindo desembocar, séculos mais tarde, numa oposição entre os aspectos especulativo (identificado com o
racionalismo científico e suas consequências práticas) e contemplativo, (associado, por sua vez, ao sentimentalismo
vaporoso das religiosidades modernas) da teologia.
Introdução ao Método Teológico - 47
89. O caráter místico da teologia. — Como quer que seja, é preciso ter presente que, ao longo da história, foram
atribuídos diversos significados ao termo «teologia». Além da riquíssima tradição que até hoje se preserva nas igrejas
orientais, inúmeros Padres e escritores gregos, como, por exemplo, Evágrio Pôntico, Pseudo-Dionísio Areopagita, os
Padres Capadócios etc., entendem por «teologia» um conhecimento místico (portanto, pessoal) de Deus e uma certa
participação das realidades espirituais mediante a purificação das paixões e do intelecto. No ocidente, sob outra
perspectiva, passou a reservar-se ao termo «teologia» o sentido de um logos, isto é, de um conhecimento racional e
discursivo sobre Deus e as criaturas, na medida em que a Ele se referem como princípio e fim de todas coisas. O início
deste saber teológico, no entanto, se deve à graça—à graça, em primeiro lufar, da fé [11], pois é o próprio Deus quem
toma a iniciativa de comunicar-nos Sua Palavra; a fé é apenas a graça divina que nos inspira e nos leva a corresponder-
Lhe do modo devido. Apesar de ser um esforço da inteligência iluminada pela fé, a teologia, nesse último sentido, só
existe porque Deus, em vista da natureza racional que lhe compete, chama o homem a entendê-lO e compreendê-lO.
Ora, como a toda verdade, também à Palavra viva de Deus corresponde uma certa energia que estimula o intelecto; no
caso da fé, a inteligência do fiel não consegue permanecer «ociosa e indolente; não pode deixar de pensar após ter
assentido.» [12] Por isso, a teologia só pode desenvolver-se numa atmosfera de relação confiante e amorosa entre Deus,
que revela, e teólogo, que consente e põe humildemente sua inteligência a serviço da Revelação. É esta relação
amorosa que se chama mística.

Sob este ângulo, a sagrada doutrina envolve e penetra a vida do teólogo, pois ela é (1) disciplina da inteligência que,
iluminada pela fé, busca, segundo seu dinamismo próprio, penetrar cada vez mais nos mistérios da Revelação e,
sobretudo, (2) o reflexo de como esta inteligência se conforma à vontade de Deus. A teologia e, portanto, o método
teológico mesmo só podem nascer na medida em que o teólogo é capaz de escutar (fides ex auditu), acolher e
conformar-se à Palavra de Deus.

Referências

1. Cf. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ I, q. 1, a. 3, ad 2.


2. Cf. Pe. Leonel, "A Responsabilidade do Educador", in: A Formação da Personalidade (Obras Completas, vol. 15). Rio de
Janeiro: Agir, 1954, p. 194.
3. R. P. Tomás de Vallgornera, Mystica Theologia Divi Thomæ. Augustæ Taurinorum, Typographia Pontificia, Eq. Petri
Marietti, 1911, vol. 1, p. 2, n. 2.
4. Agostinho, De pread. sanct. C. 2, n. 5 (PL 44, 963).
5. Cf. Tomás de Aquino, Super Epistolam ad Haebreos, c. 5, l. 2: «In aliis ergo scientiis sufficit quod homo sit perfectus
secundum intelectum».
6. Cf. I. Gredt, Elementa Philosophiæ Aristotelico-Thomisticæ. 13.ª ed., Barcelona: Herder, 1961, vol. 2, p. 59, n. 665.
7. Cf. De Vries, J. De Vries, «Critica», in: Institutiones Philosophiæ Scholasticæ. 2.ª ed., Friburgi Brisgorviæ, Barcinone:
Herder, 1954, vol. 2, pp. 157-8, n. 241.
8. Cf. I. Gredt, op. cit., p. 61, n. 668.
9. Cf. De Ver., q. XIV, a. 1 ad. 5; v. N. Signioriello, Lexicon Peripateticum Philosophico-Theologicum. 2.ª ed., Neapoli, 1872,
p. 61.
10. A. De Libera, A Filosofia Medieval. Trad. port. de Nicolás N. Campanário e Yvone M. de Campos T. da Silva. 3.ª ed., São
Paulo: Loyola, 2011, p. 374;
11. Cf. I. Biffi, «La Mistica Anima della Teologia», artigo pulicado em Osservatore Romano, 25 nov. 2012. Disponível em
(sítio): <goo.gl/xsfYqP>. Aceso em: 31 jul. 2015.
12. Id., ibid.

15 – Método de estudo de Hugo de São Vitor

A humildade é necessária ao que deseja aprender

A humildade é o princípio do aprendizado, e sobre ela, muita coisa tendo sido escrita, as três seguintes, de modo
principal, dizem respeito ao estudante.

1. A primeira é que não tenha como vil nenhuma ciência e nenhuma escritura.

Introdução ao Método Teológico - 48


2. A segunda é que não se envergonhe de aprender de ninguém.
3. A terceira é que, quando tiver alcançado a ciência, não despreze aos demais.

Muitos se enganaram por quererem parecer sábios antes do tempo, pois com isto envergonharam-se de aprender dos
demais o que ignoravam. Tu, porém meu filho, aprende de todos de boa vontade aquilo que desconheces. Serás mais
sábio do que todos, se quiseres aprender de todos. Nenhuma ciência, portanto, tenhas como vil, porque toda ciência é
boa. Nenhuma Escritura, ou pelo menos, nenhuma Lei desprezes, se estiver à disposição. Se nada lucrares, também nada
terás perdido. Diz, de fato, o Apóstolo (cf. 1 Tess 5):

Omnia legentes, quae bona sunt tenentes.

O bom estudante deve ser humilde e manso, inteiramente alheio aos cuidados do mundo e às tentações dos prazeres, e
solícito em aprender de boa vontade de todos. Nunca presuma de sua ciência; não queira parecer douto, mas sê-lo;
busque os ditos dos sábios, e procure ardentemente ter sempre os seus vultos diante dos olhos da mente, como um
espelho.

Três coisas necessárias ao estudante

Três coisas são necessárias ao estudante: a natureza, o exercício e a disciplina.

1. Na natureza, que facilmente perceba o que foi ouvido e firmemente retenha o percebido.
2. No exercício, que cultive o senso natural pelo trabalho e diligência.
3. Na disciplina, que vivendo louvavelmente, componha os costumes com a ciência.

Prime pelo engenho e pela memória

Os que se dedicam ao estudo devem primar simultaneamente pelo engenho e pela memória, ambos os quais em todo
estudo estão de tal modo unidos entre si que, faltando um, o outro não poderá conduzir ninguém à perfeição, assim
como de nada aproveitam os lucros onde faltam os vigilantes, e em vão se fortificam os tesouros quando não se tem o
que neles guardar.

O engenho é um certo vigor naturalmente existente na alma, importante em si mesmo.

A memória é a firmíssima percepção das coisas, das palavras, das sentenças e dos significados por parte da alma ou da
mente.

O que o engenho encontra, a memória custodia.

O engenho provém da natureza, é auxiliado pelo uso, é embotado pelo trabalho imoderado e aguçado pelo exercício
moderado.

A memória é principalmente ajudada e fortificada pelo exercício de reter e de meditar assiduamente.

A leitura e a meditação

Duas coisas há que exercitam o engenho: a leitura e a meditação.

Na leitura, mediante regras e preceitos, somos instruídos pelas coisas que estão escritas. A leitura é também uma
investigação do sentido por uma alma disciplinada.

Há três gêneros de leitura: a do docente, a do discípulo e a do que examina por si mesmo. Dizemos, de fato: "Leio o
livro para o discípulo", "leio o livro pelo mestre", ou simplesmente "leio o livro".

Introdução ao Método Teológico - 49


A meditação

A meditação é uma cogitação frequente com conselho, que investiga prudentemente a causa e a origem, o modo e a
utilidade de cada coisa.

A meditação toma o seu princípio da leitura, todavia não se realiza por nenhuma das regras ou dos preceitos da leitura.
Na meditação, de fato, nos deleitamos discorrendo como que por um espaço aberto, no qual dirigimos a vista para a
verdade a ser contemplada, admirando ora esta, ora aquelas causas das coisas, ora também penetrando no que nelas há
de profundo, nada deixando de duvidoso ou de obscuro.

O princípio da doutrina, portanto, está na leitura; a sua consumação, na meditação.

Quem aprender a amá-la com familiaridade e a ela se dedicar frequentemente tornará a vida imensamente agradável e
terá na tribulação a maior das consolações. A meditação é o que mais do que todas as coisas segrega a alma do estrépito
dos atos terrenos; pela doçura de sua tranquilidade já nesta vida nos oferece de algum modo um gosto antecipado da
eterna; fazendo-nos buscar e inteligir, pelas coisas que foram feitas, àquele que as fez, ensina a alma pela ciência e a
aprofunda na alegria, fazendo com que nela encontre o maior dos deleites.

Três gêneros de meditação

Três são os gêneros de meditação. O primeiro consiste no exame dos costumes, o segundo na indagação dos
mandamentos, o terceiro na investigação das obras divinas.

Nos costumes a meditação examina os vícios e as virtudes. Nos mandamentos divinos, os que preceituam, os que
prometem, os que ameaçam.

Nas obras de Deus, as em que Ele cria pela potência, as em que modera pela sabedoria, as em que coopera pela graça, as
quais todas tanto mais alguém conhecerá o quanto sejam dignas de admiração quanto mais atentamente tiver se
habituado em meditar as maravilhas de Deus.

Do confiar à memória aquilo que aprendemos

A memória custodia, recolhendo-as, as coisas que o engenho investiga e encontra.

Importa que as coisas que dividimos ao aprender as recolhamos confiando-as à memória: recolher é reduzir a uma certa
breve e suscinta suma as coisas das quais mais extensamente se escreveu ou se disputou, o que foi chamado pelos
antigos de epílogo, isto é, uma breve recapitulação do que foi dito.

A memória do homem se regozija na brevidade, e se se divide em muitas coisas, torna-se menor em cada uma delas.

Devemos, portanto, em todo estudo ou doutrina recolher algo certo e breve, que guardemos na arca da memória, de onde
posteriormente, sendo necessário, as possamos retirar. Será também necessário revolvê-las frequentemente chamando-
as, para que não envelheçam pela longa interrupção, do ventre da memória ao paladar.

As três visões da alma racional. Diferença entre meditação e contemplação

Três são as visões da alma racional: o pensamento, a meditação e a contemplação.

O pensamento ocorre quando a mente é tocada transitoriamente pela noção das coisas, quando a própria coisa se
apresenta subitamente à alma pela sua imagem, seja entrando pelo sentido, seja surgindo da memória.

Introdução ao Método Teológico - 50


A meditação é um assíduo e sagaz reconduzir do pensamento em que nos esforçamos por explicar algo obscuro ou
procuramos penetrar no que é oculto.

A contemplação é uma visão livre e perspicaz da alma de coisas amplamente esparsas.

Entre a meditação e a contemplação o que parece ser relevante é que a meditação é sempre das coisas ocultas à nossa
inteligência; a contemplação, porém é de coisas que segundo a sua natureza ou segundo a nossa capacidade são
manifestas; e que a meditação sempre se ocupa em buscar alguma coisa única, enquanto que a contemplação se estende
à compreensão de muitas ou também de todas as coisas.

A meditação é, portanto, um certo vagar curioso da mente, um investigar sagaz do obscuro, um desatar do que é
intrincado. A contemplação é aquela vivacidade da inteligência que, possuindo todas as coisas, as abarca em uma visão
plenamente manifesta, e isto de tal maneira que aquilo que a meditação busca, a contemplação possui.

Dois gêneros de contemplação

Há, porém, dois gêneros de contemplação. Um deles, que é o primeiro e que pertence aos principiantes, consiste na
consideração das criaturas. O outro, que é o último e que pertence aos perfeitos, consiste na contemplação do Criador.

No livro dos Provérbios, Salomão principiou como que meditando; no Eclesiastes elevou-se ao primeiro grau da
contemplação; finalmente, no Cântico dos Cânticos transportou-se ao supremo.

Para que, portanto, possamos distinguir estas três coisas pelos seus próprios nomes, diremos que a primeira é meditação;
a segunda, especulação; a terceira, contemplação.

Na meditação a perturbação das paixões carnais, surgindo importunamente, obscurece a mente inflamada por uma
piedosa devoção; na especulação a novidade da insólita visão a levanta à admiração; na contemplação o gosto de uma
extraordinária doçura a transforma toda em alegria e contentamento.

Portanto, na meditação temos solicitude; na especulação, admiração; na contemplação, doçura.

Três partes da exposição

A exposição contém três partes: a letra, o sentido e a sentença. A letra é a correta ordenação das palavras, a qual também
chamamos de construção. O sentido é um delineamento simples e adequado que a letra tem diante de si como um
primeiro semblante. A sentença é uma mais profunda inteligência, a qual não pode ser encontrada senão pela exposição
ou interpretação. Para que uma exposição se torne perfeita requerem-se, nesta ordem, primeiro a letra, depois o sentido e
posteriormente a sentença.

Os três gêneros de vaidades.

Três são os gêneros de vaidades. O primeiro é a vaidade da mutabilidade, que está em todas as coisas caducas por sua
condição. O segundo é a vaidade da curiosidade ou da cobiça, que está na mente dos homens pelo amor desordenado
das coisas transitórias e vãs. O terceiro é a vaidade da mortalidade, que está nos corpos humanos pela penalidade.

As obrigações da eloquência

Disse Agostinho, famoso por sua eloquência, e o disse com verdade, que o homem eloquente deve aprender a falar de
tal modo que ensine, que deleite e que submeta. A isto acrescentou que o ensinar pertence à necessidade, o deleitar à
suavidade e o submeter à vitória.

Destas três coisas, a que foi colocada em primeiro lugar, isto é, a necessidade de ensinar, é constituída pelas coisas que
dizemos, as outras duas pelo modo como as dizemos.
Introdução ao Método Teológico - 51
Quem, portanto, se esforça no falar em persuadir o que é bom, não despreze nenhuma destas coisas: ensine, deleite e
submeta, orando e agindo para que seja ouvido inteligentemente, de boa vontade e obedientemente. Se assim o fizer,
ainda que o assentimento do ouvinte não o siga, se o fizer apropriada e convenientemente, não sem mérito poderá ser
dito eloquente.

O mesmo Agostinho parece ter querido que ao ensino, ao deleite e à submissão também pertençam outras três coisas, ao
dizer, de modo semelhante:

Será eloqüente aquele que puder dizer o pequeno com humildade, o moderado com moderação, o grande com elevação.

Quem deseja conhecer e ensinar aprenda, portanto, quanto há para se ensinar e adquira a faculdade de dizê-las como
convém a um homem de Igreja. Quem, na verdade, querendo ensinar, às vezes não é entendido, não julgue ainda ter dito
o que deseja àquele a quem quer ensinar, porque, mesmo que tenha dito o que ele próprio entendeu, ainda não foi
considerado como tendo-o dito àquele por quem não foi entendido. Se, porém, foi entendido, de qualquer modo que o
tenha dito, o disse.

Deve, portanto, o doutor das divinas Escrituras ser defensor da reta fé, debelador do erro, e ensinar o bem; e neste
trabalho de pregação conciliar os adversos, levantar os indolentes, declarar aos ignorantes o que devem agir e o que
devem esperar. Onde tiver encontrado, ou ele próprio os tiver feito, homens benévolos, atentos e dóceis, há de completar
o restante conforme a causa o exija. Se os que ouvem devem ser ensinados, seja-o feito por meio de narração; se,
todavia, necessitar que aquilo de que trata seja claramente conhecido, para que as coisas que são duvidosas se tornem
certas, raciocine através dos documentos utilizados.

Introdução ao Método Teológico - 52

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