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Resumo: Até o século XVII a morte de crianças por doenças, acidentes ou outros eventos era
visto com o mesmo valor da morte de um animal. Com diversas mudanças sociais,
econômicas, religiosas e educacionais a criança gradativamente deixa de ser considerada um
adulto em miniatura, ou um ser sem valor e começa a ser entendida como um ser de
necessidades diferentes. No início do século XX, com a chegada das ciências como a
Psicanálise, a Pediatria e a Psicologia a concepção de infância, como coloca Philippe Ariès, se
torna mais complexa, abrindo espaço para estudos sobre o processo de desenvolvimento. Tal
quadro ganhou uma nova dimensão após os anos sessenta quando a figura paterna passa a
participar de forma efetiva e constante na educação dos filhos; papel este reservado
anteriormente a mãe. Neste contexto o proposto artigo vinculado ao programa PIVIC “Faces
da escuridão: o Gótico na contemporaneidade” pretende analisar e apresentar o conceito e o
valor da criança inserida na família moderna por meio da sua representação na Literatura
Contemporânea. Para isso serão feitas breves comparações entre a família de séculos passados
e a contemporânea a partir do imaginário infantil conforme apresentado pelo escritor norte-
americano Stephen King em sua obra O Iluminado. A metodologia utilizada será a pesquisa
bibliográfica.
Palavras-chave: Infância; Stephen King; Literatura Gótica
Algo bastante novo que surgiu em nossa sociedade é a questão da infância, onde em
meados do século XVII a criança inicia a conquista pelo certo destaque na sociedade, no
mesmo século como aponta (ARIÈS, 2006, p. 171) destacava-se a visão social de que, dada a
sua fragilidade, não se deveria perder muito tempo com elas, uma mentalidade chocante na
sociedade contemporânea. Dentro disso, percebe-se que devido aos processos históricos,
diversas mudanças sociais, econômicas, religiosas e educacionais, a criança gradativamente
deixa de ser considerada um adulto em miniatura, ou seja, um individuo valorativamente
menor, passando a ser compreendida de forma diferenciada.
Como sempre, a Arte capturou o seu zeitgeist evidenciado na representação da criança
nas pinturas e na arte plástica. Antes as crianças apareciam juntamente com a sua família, ou
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Graduando do curso de Letras da Universidade Federal de Goiás – Campus Catalão e bolsista do PIVIC: Faces
da escuridão: o Gótico na contemporaneidade. E-mail: mateusdre@hotmail.com
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Professor Adjunto do curso de Letras da Universidade Federal de Goiás – Campus Catalão e orientador do
projeto PIVIC: Faces da escuridão: o Gótico na contemporaneidade. E-mail: prof.alexms@gmail.com
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RUBENS, Petrus Paulus. Siegen, Vestfália, 1577 - Antuérpia 1640, pintor flamengo. Trabalhou para os
Gonzaga, o arquiduque Alberto, Maria de Medici (para quem realizou uma série de quadros, 1622-1625,
atualmente no Louvre), Chefe de um importante ateliê em Antuérpia, afirmou a sua personalidade num estilo
arrebatado e colorido, tão expressivo na plenitude sensual como na violência, o que correspondia ao gosto da
Contra-Reforma. (LAROUSSE, p.1709)
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VAN DYCK ou VAN DIJCK, Antoon ou AnthonieAntuérpia. 1599 - Londres 1641, pintor flamengo. Depois
de trabalhar com Rubens (c.1618-1621) e em Gênova, voltou a Antuérpia (pinturas religiosas, retratos); em
1632, tornou-se pintor de Carlos I e da corte da Inglaterra. Notabilizou-se pelos retratos. (LAROUSSE, p. 1810)
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HALS, Frans. Antuérpia c.1580/1585 - Haarlem 1666, pintor holandês. Autor de retratos e de cenas de gênero,
radicou-se em Haarlem, onde estão conservadas as suas obras-primas (museu Frans Hals), do jovial O banquete
dos oficiais da milícia de são Jorge (1616) até Osregentes do asilo dos idosos, cáustico e vingativo (1664). Sua
audácia técnica e sua pincelada livre influenciaram artistas do séc. XIX, como Manet.Louvre, Paris.
(LAROUSSE, p. 1425)
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CHAMPAIGNE, Philippe de. Bruxelas 1602 - Paris 1674, pintor francês de origem brabantina. Um dos
grandes expoentes do Classicismo, é autor de retratos (Richelieu; Jansenistas e religiosas de Port Royal) e
quadros religiosos. (LAROUSSE, p.1257)
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Abadia francesa de religiosas cistercienses fundada em 1204 nos arredores de Paris. No séc. XVII, foi
reformada e transferida para Paris (1625) e depois demolida (1710). Foi um foco jansenista e ativo centro cultura
(LAROUSSE, p.1664)
Pascal (1625-1661). Deste modo, inicia-se os cuidados voltado para as crianças, no qual os
adultos tem o dever de vigiá-las, e sendo assim feito com afinidade e dedicação, pois a criança
depende dos cuidados do adultos. Tais recomendações, que seriam de uso geral para
compreendermos este processo, mas a intenção maior era evitar a promiscuidade nos
internatos jesuítas, nas escolas de Port-Royal, colégios da França e na Inglaterra acarretando
má reputação (ARIÈS, 2006, p. 88). Outras circunstancias encontradas se relacionam a
repressão a certas leituras encontrados no livro La Civilité Nouvelle, de Courtin (1622-1685),
de 1671 onde as crianças não eram recomendadas a dormir na mesma cama com adultos,
evitando-se que as mesmas fossem levadas a adquirirem comportamentos inadequados e
alheios a sociedade. Na questão da leitura onde se deveriam ler livros, que trouxesse alguma
pureza na linguagem estimulando assim a mentalidade das crianças da época. Já, São João
Batista de La Salle8 (1651-1719), no início do século XVIII criticava a arte, os espetáculos
como comédias, bailes, era permitido somente jogos educativos. (ARIÈS, p. 89).
Juntamente com os temas levantados, sobre as crianças surgem dois sentimentos da
infância, que seria a “paparicação”, ele surge devido a delicadeza infantil, a beleza, a graça,
todo aquele encantamento que envolvia os adultos. De início esse sentimento era pertencente
às mulheres, encarregadas de cuidarem das crianças, mães ou amas. O outro sentimento é o
oposto a este, é o apego, como Montaigne9 (1533-1592) que não admitia o seu amor pelas
crianças, não gosta de ver os adultos beijarem os recém nascidos, pois sua concepção sobre a
criança é que ela não possuía alma e nem um corpo que possa tornar amável, dizia também
que certos adultos perdem muito tempo com as crianças. (ARIÈS, p. 101-104) Quem se opõe
a essa ideia é a marquesa de Sévigné10 escritora francesa, em uma de suas cartas enviadas a
sua filha Madame de Grignan (1646-1705):
Estou lendo a história da descoberta das Índias por Cristóvão Colombo, que
me diverte imensamente; mas vossa filha me distrai ainda mais. Eu a amo
8
João Batista de la Salle (são), Reims 1651 - Rouen 1719, padre francês. Fundou o Instituto dos Irmãos das
Escolas Cristãs (1682), dedicado à educação de crianças pobres. Foi um dos precursores da pedagogia moderna.
(LAROUSSE, p. 1472)
9
MONTAIGNE, Michel Eyquem de, castelo de Montaigne, hoje comn. de Saint-Michel-de-Montaigne,
Dordonha, 1533 - id. 1592, escritor francês. Desde 1572 consagrou-se à redação dos seus Ensaios, obra que foi
enriquecendo até a morte, em que propunha um equilíbrio moral baseado na prudência e tolerância e com a qual
configurou o gênero ensaístico na Europa. Filosoficamente, professou um ceticismo moderado e crítico.
(LAROUSSE p.1579)
10
SÉVIGNÉ, marquesa de (Marie de Rabutin-Chantal), Paris 1626 - Grignan 1696, escritora francesa. Durante
mais de 30 anos escreveu cartas, em sua maioria destinadas à filha, Madame de Grignan (1646-1705). Escritas
sem o formalismo retórico do gênero, constituem um testemunho pitoresco dos costumes da época.
(LAROUSSE, p.1741)
muito... Ela acaricia vosso retrato e o paparica de um jeito tão engraçado que
tenho de correr a beijá-la.". "Há uma hora que me distraio com vossa filha,
ela é encantadora." "Mandei cortar seus cabelos. Ela agora usa um penteado
solto. Esse penteado foi feito para ela. Sua tez, seu colo e seu corpinho são
admiráveis. Ela faz cem gracinhas, fala, faz carinho, faz o sinal da cruz, pede
desculpas, faz reverência, beija a mão, sacode os ombros, dança, agrada,
segura o queixo: enfim, ela é linda em tudo que faz. Divirto-me com ela
horas a fio". (ARIÈS apud Mme Sevigné, Lettres, 1671, p.101)
Fica claro que Stephen King é um escritor de “Literatura de Massa,” pela sua grande
receptividade de suas obras, pelos recordes de vendas, mas nada que comprometa a sua
qualidade de seus trabalhos, novamente entrando na ideia de Muniz Sodré:
O romance inicia-se com Jack em uma entrevista de emprego concorrendo uma vaga
temporária em um hotel afastado da cidade. “...disse Jack. — Para um empregado de
temporada de inverno, esta é a área mais importante de todas. Ir onde se concentra o
movimento, por assim dizer” (KING, 2005 p. 11). Esse hotel se chama Overlook, a fala que
segue abaixo é do entrevistador de Jack, o gerente do hotel (Ullman):
Danny, um menino de cinco anos de idade: “...Só estava sentado ali, esperando o
Volkswagen sujo, os cotovelos enterrados nas coxas, e o queixo apoiado nas mãos, um
menino de cinco anos à espera do pai.” (KING, p.16). Uma criança que carrega marcas
psicológicas consigo, devido a conflitos:
manter a calma, conter a ira, quando agride um aluno no colégio onde lecionava, George
Hatfield, segue a fala de Wendy para Danny:
...— Como nesse caso, meu bem. Papai bateu em George para fazê-lo parar
de cortar os pneus, e George bateu-lhe na cabeça. Então, os homens que
tomam conta da escola disseram que George não poderia mais voltar às aulas
e seu pai não poderia mais voltar a ensinar. (p.19)
Outra passagem de forte impacto sobre o leitor é a cena na qual Jack quebra o braço
do seu próprio filho, quando ele entra em seu escritório, pega a lata de cerveja que o pai havia
esquecido e derrama nos papéis:
Nessa passagem King aborda a parte branda de seu texto, dá a evidencia de que Jack é
um pai presente, tem seus defeitos, mas o autor apresenta também as suas qualidades, a
proximidade do ser humano, bem visível na narrativa.
O que vem a ser Iluminado para King? Na obra esse elemento cabe inicialmente ao
personagem Hallorann o cozinheiro do hotel Overlook. Na chegada da família ao hotel,
Hallorann, percebe que Danny possui o seu mesmo dom, Iluminado. Hallorann descobre o
apelido do menino, que somente a família conhece: “— Gosta de carneiro, doutor? —
perguntou Hallorann, sorrindo malicioso. [...] Por trás deles, Jack disse curioso: — Como
sabia que o chamávamos doutor?” (p. 58) Hallorann tenta definir essa luz:
Segue a parte mais importante da obra na qual em poucas palavras Hallorann define o
que vem a ser Iluminado: “— O que você tem, filho, eu chamo de luz interior, a Bíblia chama
de visões, e há cientistas que chamam de premonição. Já li sobre isso, filho. Já estudei. Tudo
isso significa ver o futuro. Entende?” (p. 66) Essa luz é capaz de enxergar o futuro, passado e
presente, prever acontecimentos trágicos, o perigo, através de enigmas, visões, audições,
ocorre também a comunicação simultânea, telepática, Mas essa tal luz tem as suas
delimitações, Hallorann diz: “...às vezes estas sensações não dão em nada. [...] Ninguém
acerta o tempo todo, com exceção talvez de Deus, lá no céu.” (p. 67)
Ser um Iluminado seria uma dádiva ou um peso a se carregar? Novamente abordando
essas questões pontuo, novamente com a frase de Hallorann: “— Sua mãe é um pouquinho
iluminada. Acho que todas as mães têm um pouco de luz, sabe? Pelo menos até os filhos já
estarem crescidos e responsáveis. Seu pai...” (p. 68) Fica em aberto a questão do perigo do pai
para essa família, Jack é corrompido pelas forças malignas do hotel, já tem uma tendência
para tal característica, isso foi evidenciado em seu caráter no início da obra, a questão de
quebrar o braço de seu filho de três anos de idade, de agredir um aluno no colégio, trabalhava
como professor. Podemos afirmar que o valor da criança O Iluminado de King é um fator
mais importante, pois a criança além de dialogar com os personagens ela dialoga com
elementos externos, ela tem uma capacidade imensa de prever o perigo, como se ela estivesse
sintonizada em frequências que os adultos tem dificuldades de adentrar, isso que Danny fez,
ele sabia de todos os perigos a serem enfrentados no hotel, pois o seu “amigo invisível” disse:
“...Às vezes, Tony me mostra placas e dificilmente consigo ler qualquer uma
delas.
— Quem é Tony? - perguntou Hallorann novamente.
— Mamãe e Papai dizem que ele é meu "amigo invisível" respondeu Danny,
recitando as palavras com cuidado. — Mas ele é verdadeiro mesmo. Pelo
menos, eu acho que é. Às vezes, quando me esforço para entender as coisas,
ele vem. E diz: "Danny, quero mostrar-lhe uma coisa. "E é como se eu
desmaiasse. Só que... tenho sonhos, como você disse. — Olhou para
Hallorann e engoliu. — Costumavam ser bons. Mas agora... não me lembro
da palavra que se usa para os sonhos que apavoram e fazem a gente chorar.
— Pesadelos? — perguntou Hallorann.
— Sim. Isso mesmo. Pesadelos.
— Com este lugar? Com o Overlook?
Danny olhou para o dedo novamente.
— Sim — sussurrou. Depois, começou a filar com voz estridente, olhando
para o rosto de Hallorann: — Mas não posso contar para meu pai, e você
também não pode! Ele precisa do emprego, pois foi o único que Tio AI
conseguiu para ele, e precisa terminar a peça, ou então pode começar a fazer
a Coisa Feia de novo, e eu sei o que é isto, é ficar embriagado, é exatamente
isso, é quando ele costumava se embriagar, e isto era uma Coisa Feia. —
Parou, quase chorando. (p. 65-66)
Em passagens anteriores Tony aparece para Danny e apresenta os perigos que irão
ocorrer no hotel Overlook, e mesmo assim há uma esperança por parte da criança, ele quer dar
uma outra chance ao seu genitor, como se fosse uma espécie de remissão. Acontece o inverso,
com a entrada da família nesse hotel, só há sofrimento, Jack volta a beber, Danny passa a ser
atormentado pelas forças malignas, Wendy a sua mãe fica em fora de sintonia com tais forças,
mas mesmo assim em busca da paz. A luta da Luz (Danny, Wendy, Halloran) contra a
Escuridão (Jack, seres malignos do hotel, fantasmas, almas perdidas, topiarias que criam vida
e entre outra criaturas). Jack tenta matar a sua família, a qualquer custo dominado pelas forças
ocultas, Danny pede ajuda de Hallorann através da telepatia, ele está de férias em outra
cidade, em Flórida, Hallorann consegue chegar ao Overlook.
O narrador também passa a chamar Jack de “a coisa” dá de perceber a transformação
do personagem através do ambiente:
— E se ele voltar?
— Seu marido?
— Ele não é Jack — murmurou Wendy. -— Jack está morto. Este lugar o
matou. Este maldito lugar. (p. 302-303)
Fica a marca na criança, e uma certa culpa da morte de seu pai, por ter falhado e não
ter ouvido Tony, o diálogo é de Hallorann e Danny pescando no lago:
Considerações finais:
Referências bibliográficas:
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2ed. Rio de
Janeiro: LTC, 2006.
CARA, Salete de Almeida. Cap. 2 Poietké: Duas visões estéticas. In: ______A poesia lírica.
3ed. São Paulo: Ática, 1989. (Série Princípios 20).
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a sexualidade. In: ______ Obras completas. Vol. VII.
Rio de Janeiro: Imago, 1996.
KING, Stephen. O iluminado. Trad. Betty Ramos de Albuquerque. Rio de Janeiro: Objetiva,
2005.
SODRÉ, Muniz. Best-Seller: A literatura de mercado. São Paulo: Ática, 1985. (Série
Princípios; 14)