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POS-
Fernanda Young
Para além do
masculino
e do feminino
Copyright © 2018 by Fernanda Young
Copyright © 2018, Casa da Palavra/LeYa
© desta edição 2019, Casa dos Mundos
isbn: 978-85-441-0716-4
Editoras responsáveis
1. Feminismo - Ensaios I. Título
Eugênia Ribas, Vieira
Izabel Aleixo cdd 305.42
18-0426
Gerente editorial
Índices para catálogo sistemático:
Maria Cristina Antonio Jeronimo 1. Feminismo - Ensaios
Produção editorial
Guilherme Vieira
Revisão
Maria Clara Antonio Jeronimo
Diagramação
Anderson Junqueira
Tratamento de imagens
Anderson Junqueira
Trio Studio
— Virginia Woolf
22 Prefácio
29 CAPÍTULO I
Até que ponto podemos ser livres?
39 CAPÍTULO 2
Eu não admitia o feminino
51 CAPÍTULO 3
Por que você não experimenta
seu corpo antes?
63 CAPÍTULO 4
A sexualidade da mulher é linda
73 CAPÍTULO 5
Tudo agora é assédio
83 CAPÍTULO 6
Uma mulher, para ser boa mãe, precisa
proteger o seu indivíduo
95 CAPÍTULO 7
Acho que me mato a ter que ser dona de casa
107 CAPÍTULO 8
Desejos para um mundo Pós-F.
PREFÁCIO
Não sou especialista em nada. Melhor, não sou
especialista de coisa pronta. Procuro me aprimorar
em mim, entendendo sobre mim – usando, é claro,
tudo que observo nos outros.
N
ão sou especialista em nada. Melhor, não sou especialista PÓS-F. 23
de coisa pronta. Procuro me aprimorar em mim, enten-
dendo sobre mim – usando, é claro, tudo que observo nos
outros. E, com um otimismo ainda juvenil, tento fazer
algo novo. Mesmo que reconheça nisso uma certa inge-
nuidade. E creio que ser ingênuo, depois de uma certa
idade, cai mal. No entanto, esse é um impulso inevitável; se de-
sisto dele, eu me tornaria enfadonha para mim mesma.
Nunca quis ser uma “entendedora” desse ou outro autor,
filósofo, artista. Eu os usufruo, todos, com liberdade. Convivo
como uma igual e não como discípula. Tenho sido bastante obs-
tinada em compreender a mim mesma e o mundo em que habito.
Não me importam os que insistem em me acusar de egocêntrica.
Na verdade, até me divirto, visto que é uma observação tão óbvia
e, nem só por isso, de uma burrice infinita. Há anos venho di-
zendo que a burrice é uma deficiência de caráter. A ignorância,
sua irmã univitelina, é ainda mais sonsa, já que ignorar é uma
espécie de egoísmo que justifica a brutalidade do ato. “Eu não
sabia, então não fiz nada.”
O que tenho tentado fazer é vasculhar internamente meus
ânimos; encarar, com medo mas obstinadamente, os corredo-
res mais escuros da minha alma, criando um diagrama, sempre
inexato e anárquico, de todos os acontecimentos que vivi, para
oferecer essas experiências e conclusões em forma de arte. Se
consigo realizar ou não a minha intenção? Não. Depois de tan-
tos anos insistindo, de maneira quase maníaca, em defender não
a minha opinião, mas o meu direito de tê-la – e tendo me utili-
zado de tantas estruturas para compartilhá-la –, ainda me im-
pressiona ter de me explicar. Pior, constrange-me isso ainda ser
necessário. Em minha arte, parece que devo anexar uma bula,
uma espécie de pedido de desculpas, somente pela coragem de
ser essa que faz o que quer, da maneira que quer, e paga um pre-
ço altíssimo por não se dobrar. Mesmo que inúmeras vezes eu
mude de ideia, porque, é lógico, estou aprendendo e desapren-
dendo, como todos.
Em momento nenhum achei estar absolutamente certa. PÓS-F. 24
Mas, quando estou criando, sou possuída por uma enorme segu-
rança, visto que, se não fosse assim, eu nada teria feito. Lembro
que, quando deixei o programa Saia Justa, fiz a minha despedi-
da com um discurso de formatura. Formei-me em “digo e des-
digo”. Naquela época, fui muito agredida porque nunca estive
nem um pouco interessada em parecer interessante, citando au-
tores e máximas coletivas. Achava que deveria partilhar a minha
liberdade, inclusive a de falar merda – coisa para a qual tenho
uma técnica, e afeto. Eu sou livre! Não tenho rótulos, não te-
nho dono, não tenho patrão, não tenho nada que me impeça de
mandar todo mundo se foder, caso eu queira. E às vezes aconte-
ce, porque devo me proteger.
Mulheres como eu incomodam muito. Não pela beleza, inte-
ligência, posses, amores, mas porque não devem nada a ninguém.
Por isso falo e faço o que quiser. Saiba, você, que agora está lendo
este prefácio, que preferia não ter de escrevê-lo, pois ele acaba
me levando para esse lugar, em que devo, mais uma vez, me ex-
plicar. Mas saiba também, querido(a) leitor(a), que ser livre é
algo bastante trabalhoso. Não raro noto o ódio, a inveja, o nojo
que causo, porque estou pouco me lixando para o que os outros
pensam sobre mim – se estou agradando ou não, se tenho bons
modos ou não, se pareço culta ou não, esperta ou não, engraçada
ou não. Eu apenas decidi, ainda bem cedo, que, já que eu era es-
tranha, geniosa e nada adorável, deveria ser assim. Tinha medo,
sim. Medo por ser “diferente”; mas essa diferença não foi sequer
uma escolha, nem algo que eu deva defender.
Então, fui ficando arredia, defensiva e atenta, mas iria ser
o que eu quisesse. E ainda criança detectei o que queria mais
do que tudo: ser livre. Livre da opinião dos outros, do que a so-
ciedade iria pensar, do que um marido iria exigir, da opressão
de ter que fingir amar a vida doméstica – odeio –, de ter que ir a
reunião de pais, de condomínio, de ser obrigada a votar, de não
poder xingar, trepar, errar, beber. Livre de qualquer coisa que
me tirasse de mim. E esse sonho se realizou. Pode ter certeza
que, de onde eu vim, ser livre era tão improvável quanto ser as- PÓS-F. 25
tronauta da Nasa.
Quando fui convidada pela Editora LeYa para escrever so-
bre o feminismo, primeiramente seria para a coleção “Politica-
mente Incorreto”. Logo notei que esse selo seria inapropria-
do, porque também quero estar livre desse “diagnóstico”. Não
gosto de rótulos, apesar de reconhecer que a minha liberdade
inspira, e não gosto de imaginar que seja somente às mulheres.
Durante muito tempo evitei o termo feminista e, caia para trás,
se o assumo agora é com um certo constrangimento. Porque
me parece ser o “ismo” da moda. E acho muito sério o assunto,
para depois o deixarmos cair no esquecimento, quando o empo-
deramento deixar de ser a palavra da vez. Palavra, essa, com que
implico, porque a acho cafona e reduzida. Aceitei o convite da
LeYa, entenda, porque foi me dada total liberdade. Tanto que
o título Pós-F. contém uma ironia; poderia ser também “Pós-
-FY”. Afinal, falo como entendo ser uma mulher, no mundo
atual, vivendo como uma, que não faz parte de nenhuma maio-
ria, mas que vai com integridade e vigor nesse caminho contrá-
rio ao da fogueira. Sinto o cheiro do fogo, já estive perto dele
muitas vezes, somente por ter sonhado e insistido. E, pasme,
ter dado certo.
Há, nesta obra, inúmeras conversas que tive com Eugênia
Vieira, minha editora pela quarta vez seguida. Fragmentos de
entrevistas, roteiros, crônicas. A opção por essa estrutura se deu
justamente para fugir ao tom acadêmico, recheado de legítimas
citações de pensadoras feministas. Com respeito e gratidão, po-
deria enumerar uma lista enorme dessas pensadoras que me trou-
xe até aqui. Mas como comecei este prefácio, termino: não me
interessa ser especialista no que já foi feito. Acho que todos deve-
mos ler essas libertárias e concluir sobre o feminismo; não cabe
a mim uma análise sobre essa ou outra autora. Mesmo porque o
feminismo não foi feito somente por escritoras, intelectuais. Ele
tem sido recriado por todas que, nos seus ofícios, se negaram a se
especializar em agradar.
Por fim, ofereço este livro à minha filha Cecília Madonna. PÓS-F. 26
Não por algum motivo especial, mas porque ela pediu. Agra-
deço também a minha outra filha, Estela May, que, certa feita,
disse que eu deveria, sim, me assumir feminista, mesmo enten-
dendo que poder não ser nada me deixa mais livre. No entanto,
sei que é importante estar atenta e forte, porque muitas mulhe-
res ainda necessitam de ajuda. E eu o farei, da forma que quero,
posso e sei.
No meu braço esquerdo tenho tatuado o verso de Madonna:
“Do you know what it feels like in this world for a girl?” (Você sabe
como se sente uma garota neste mundo?) Essa é a pergunta que
ecoa desde que a tatuei, há muitos anos. Eu sei como me sinto. E,
aqui, conto um pouco.
n ão vou aguentar.
Não, não vou aguentar
mais. Essa vontade de despir-me inteira
e mostrar aquilo que fará de mim apedrejável.
Então vou. Vou. Terei de aguentar.
Sofrer quietinha. Sofrer quietinha.
Deixar para lá essa ideia
PÓS-F. 27
Oi, estou bem aqui na sua frente, mas você insiste em não
me ver. Tudo bem, opção sua, cada um enxerga o que quer. O
problema é quando você, sem ter ideia de como sou, resolve dar a
sua visão sobre mim.
Talvez você não se enxergue também, antes de mais
nada – e assim me tire por parecida com você. Errando
completamente. Para começar, faço questão de ver as pessoas ao
meu redor, e isso faz toda a diferença do mundo. Percebo que
todos têm algo de especial, estando aí a graça. Percebo belezas
que não são minhas, estando aí o prazer. Percebo inclusive você,
parado bem na minha frente, desviando seu olhar para lá e para
cá, nervoso com a minha presença, estando aí o ridículo.
Veja bem, não há o que temer em mim. Não quero nada
que seja seu. E não sou nada que você também não seja, pelo
menos um pouquinho.
Você não precisa gostar de mim para me enxergar, mas
precisa me enxergar para não gostar de mim. Ou gostar, e
talvez seja exatamente isso que você tema. Embora isso não faça
sentido, já que a vida é bela, justamente, quando estamos diante
daquilo que gostamos, certo?
Não vou dizer que não me irrita essa sua cegueira
específica com relação a mim, pois faço de tudo para ser
entendida. Por todos. Sempre me esforço ao máximo para que
isso ocorra, aliás; então a sua total ignorância a meu respeito,
após todo esse tempo, nós dois tão perto, mexe, sim, levemente,
com a minha paciência.
Se for essa a sua intenção, porém, mexer com a minha
paciência, aviso que anda perdendo sua energia em besteira,
pois um mosquito zumbindo em meu ouvido tem um efeito
PÓS-F. 37
Beijos,
F.Y.
PÓS-F. 38
2
EU NÃO ADMITIA
O FEMININO
Raspei a cabeça durante onze anos, por pura
punição. Eu não admitia o feminino. Não queria
parecer delicada diante do mundo, porque achava
que o mundo ia me machucar.
R
aspei a cabeça durante onze anos, por pura punição. Eu PÓS-F. 40
não admitia o feminino. Não queria parecer delicada
diante do mundo, porque achava que o mundo ia me ma-
chucar. Hoje vejo que sou uma mulher forte e que faço
diferença na vida dos meus filhos, porque sei que são
crianças que não foram “quebradas” e que vão ser adul-
tos muito mais fortes do que eu. E, aí, falo para mim mesma: deu
tudo certo, querida. Deu tudo certo.
De fato, analisando minha vida, desde pequena, nunca tive a
consciência de minha beleza ou de “ser bela”. Nunca fui bonita
para a minha família – que é uma família de pessoas muito boni-
tas. Minha mãe era muito bonita, minha avó paterna e materna,
ambas, lindas. E a minha beleza sempre esteve ao lado de um con-
dimento de “estranheza” que não era apreciado em minha casa.
Portanto, repito, nunca tive conhecimento da minha beleza, fato
que acho até... bem razoável...
Penso que você não se crer bonita é uma boa medida para não
ficar uma pessoa burra. E digo isso tanto para homens como para
mulheres. Não adianta. Se você se crê bonita, já se coloca numa
condição muito volátil. A beleza sempre será relativa e sempre
dependerá do olhar e da aceitação do outro. E ninguém quer de-
pender sempre do outro que o olha. Sei, contudo, que, para so-
breviver, a beleza, para uma mulher, é uma arma – que deve ser
usada. Para sobreviver, a mulher precisa se esforçar pela própria
beleza, porque vivemos em guerra, e é guerra o tempo todo. Vi-
vemos, na verdade, em busca desse equilíbrio: de reforçar o belo
e, ao mesmo tempo, de nos reforçar como sujeitos – como vozes
– no mundo bélico contemporâneo. Ao mesmo tempo em que
precisamos ser aceitas pela sociedade, também não queremos de-
pender da sociedade. Queremos ser belas, mas não queremos nos
submeter ao que nos impingem que seja belo.
Então esse discurso de que a beleza não precisa estar a
nosso serviço, considero isso uma mentira. Para uma mulher
sobreviver, ela precisa cuidar da beleza, mas não apenas dis-
so. Ela precisa, também, procurar se sustentar como sujeito e,
como qualquer indivíduo em sociedade, ter um discurso que PÓS-F. 41
lhe é próprio, uma história que lhe é própria. É um equilíbrio
necessário que é muito sublime. A guerra da mulher é uma
guerra que é silenciosa e que usa de artifícios muito mais inte-
ligentes do que a dos homens, nas guerras propriamente ditas
de nossa história. Para a mulher, a beleza é uma necessidade.
E isso, para uma mulher, significa estar a serviço da beleza?
Sim. Também. Além, claro, de outras coisas de seu interesse
que venham a fortalecê-la.
Com exceção – sempre – das sonsas. Essa personagem é pró-
pria do feminino. A sonsa é sensacional: jogadora implacável,
que quase sempre ganha todas as partidas do xadrez amoroso!
Observo muito, conheço muito. As sonsas, elas não trabalham,
elas fingem que trabalham, são extremamente sagazes em domi-
nar qualquer conflito; elas não causam qualquer conflito. Elas
jogam a sonsice no conflito e o conflito se esvai. A sonsa viaja
muito. A sonsa ganha carro. A sonsa faz muita ginástica tam-
bém (e usa muito da beleza como arma). As sonsas são livres
e não parecem ser livres, nem sequer reivindicaram isso. Não
estão nem um pouco interessadas em reivindicar nada. Eu, se
me fizer de sonsa no meu “xadrez”, estarei aniquilada. É meio
a meio aqui em casa. Se eu me fizer de sonsa e comprar uma
joia para mim, quem vai pagar a joia sou eu. Tenho um misto de
sentimentos contraditórios sobre essa mulher, que vive da pro-
fissão sonsice; ao mesmo tempo que fico encantada com a sua
inteligência, diplomacia, frieza e “boa vida”. Acabo por consi-
derar a sonsa a mais perigosa das espécies femininas. Eu sou a
antissonsa. Enquanto me exponho em nome da liberdade e, por
isso, pago um preço altíssimo, ela se beneficia da minha luta,
enquanto assegura aos homens uma entidade de “recatada e do
lar”. Eu não teria dom para ser sonsa. É uma questão de capa-
cidade. Não adianta. Tem coisas que você até deseja ser, você
provoca um pouco, atua um pouco, mas tem um limite a sua
atuação. Você não aguenta. É como ser puta, amante, submis-
sa, personagens clássicos femininos, não adianta atuar, deve-se,
apenas, ser. Dá um trabalho danado, porque a sonsa, ainda mais PÓS-F. 42
do que a puta e a submissa – que se submete por masoquismo e
carência –, realmente tem que estar a serviço do outro e só do
outro. E como usa a beleza como arma... Porém depende com-
pletamente da aceitação do outro, principalmente dos homens,
para viver suas sonsices.
Bom, depois dessa explicação sobre as sonsas e de deixar
claro para o(a) leitor(a) que a valorização da beleza é uma das
armas das mulheres, uma arma muito potente, inclusive, de-
vemos reconhecer que o ser humano precisa estar a serviço de
tudo, o tempo inteiro. Tanto a mulher como o homem. Então
pensando agora no homem: você acha que o homem vai sobre-
viver, num contexto social, na sua relação com o mundo, se ele
for mais bem-sucedido? A resposta é sim, e isso lhes é uma co-
brança. Eles estão a serviço disso. Assim como a mulher está,
querendo ou não, a serviço da beleza. Os homens precisam ser
bem-sucedidos? Sim. Quando me casei com Alexandre Macha-
do, assumo que não me casei por dinheiro, nem nunca o faria.
Mas o que me atraiu na escolha foi o fato de ele ser um profis-
sional bem-sucedido. Nunca quis que ninguém me sustentasse,
mesmo que a princípio isso tenha acontecido. Eu estava à pro-
cura era de alguém que somasse.
Tenho um amigo que me disse uma vez, brincando, algo
que reflete bem o cansaço imposto ao homem de ser o salvador.
Esse amigo afirmou que as mulheres escolhem um homem da
seguinte forma: quando ele come menos do que ela, ao menos
nos primeiros encontros – e jamais pede sobremesa –, e quando
consegue carregá-la no colo por, no mínimo, cinco minutos. Os
homens são, portanto, doutrinados culturalmente e por condi-
ções físicas (não adianta ficarmos fazendo uma análise antropo-
lógica) para socorrer. Socorrer o outro, incluindo as mulheres
e as crianças. Nesse sentido, acho que isso não mudou. Nós,
mulheres, continuamos desejando homens bem-sucedidos, ou
aqueles que estão a serviço de se tornarem bem-sucedidos – o
mundo tem lá suas muitas injustiças. Aqueles homens que se es-
forçam têm um grande mérito. Quando se deixa de estar a servi- PÓS-F. 43
ço de algo é que é a questão. De repente, um gênero empurra ao
outro os seus erros, as suas responsabilidades, suas angústias.
Seus quereres insatisfeitos, suas culpas, suas liberdades repri-
midas, liberdades que, muitas vezes, esbarram no limite do que
é o outro e no respeito ao que é do desejo do outro. Mas, nessa
guerra de conquistas de desejos e de territórios, cada conquista
é mérito de um indivíduo, e não de um gênero. Cada um sabe
melhor de suas armas para entrar na guerra, seja munir-se de
beleza ou de trabalho e de dinheiro; cada um sabe melhor de
suas armas.
E, nessa continuidade infinita das obviedades, dos detalhes,
das sutilezas que regem a humanidade, a mulher continua sendo
algo que a cultura e a moral insistem em querer calar. E a parte
mais perigosa dessa opressão, dessa mordaça que há muito acom-
panha o eu feminino, é a participação efetiva da mulher nessa
causa. Eu diria até que, nos dias atuais, a mais perigosa adver-
sária da mulher é a própria mulher. Não falo das milhões que vi-
vem em total mudez, devido a circunstâncias sociais, religiosas,
políticas etc., mas das mulheres que, por meio de um discurso
dotado de muitas palavras, conseguem, com toda uma retórica,
calar a liberdade. São as que habitam na cultura, que se dizem
feministas, que são versadas em muitas citações, mas que não
aceitam um enorme e eloquente senão na luta que defendem: o
homem não é o nosso inimigo. Somos nós mesmas.
Nesse espetáculo bufo a que estamos assistindo, a mulher
se coloca, conscientemente, como vítima, mesmo tendo condi-
ção de não ser, como aquela que sempre esteve à mercê de um
assediador, quando muitas vezes instigou o assédio ou, me-
lhor ainda, quando muitas vezes assediou, seduzindo aquele
de quem deseja conseguir algo. Dessas mulheres, eu diria ter
medo. Porque elas calam segredos muito mais antigos e obscu-
ros, segredos que foram muito bem guardados, justo para serem
usados em caso de sobrevivência. Dentre eles, o segredo de que
nós seduzimos para alcançar benefícios. Nós usamos a beleza,
a sexualidade, a juventude para conseguir algo. Todas? Não sei. PÓS-F. 44
Sempre? Não. Isso significa que nenhuma conquista tenha sido
feita, por cada uma delas, pelo mérito único de seu talento e ca-
pacidade? Não. Eu jamais ofereci alguma coisa em troca de uma
benesse porque não quis. E o melhor: porque ninguém nunca
me propôs. Seria pelo fato de não ser bela, sensual, atraente?
Não. Foi porque eu nunca estabeleci no jogo essas cartas. Mas é
preciso deixar claro que não falo aqui sobre ser coagida e, muito
menos, estuprada. Existe uma grande diferença. Jamais pode-
mos aceitar, tanto as mulheres quanto os homens, nenhuma si-
tuação que justifique o sexo não consensual, ou até qualquer su-
til indicação ao velho e sabido hábito, de que se utilizam os que
têm poder, da implícita “troca de favores”. O que estou falando
é que, se dermos ao discurso de defesa esse tom de coadjuvantes
frágeis, estaremos sempre “cacarejando” feito galinhas assus-
tadas. Quando, sejamos honestas, mulheres que não estão em
situação de penúria social são muito bem-dotadas de sensores,
vozes e recursos para se protegerem. E não será bancando “as
sonsas” que conseguirão. Há uma equação bem clara para essas,
as privilegiadas: “X+Y = XY”. E sei que falar sobre isso poderá
suscitar problemas com elas. Essa é a mordaça mais perigosa, a
de não se poder discordar.
E essa grande questão que surgiu agora, que investiga o
porquê de as grandes obras de artes serem, em sua maioria, re-
trato ou expressões de mulheres nuas... É claro! Eu, como artis-
ta, não tenho dúvida. Não me interessa desenhar homens nus.
Não me atrai. É uma questão de proporções. A mulher é mais
bela. Definitivamente é a espécie humana mais interessante.
Inevitavelmente. Para qualquer artista, é inevitável. Para uma
escritora, descrever uma mulher é muito mais interessante do
que descrever um homem. A mulher é mais bonita, como tecno-
logia humana mesmo. E até isso se tornou uma reivindicação,
um conflito, por parte das mulheres. E nessas discussões, per-
demos muita energia. Poderíamos estar nos fortalecendo com a
beleza do feminino e ganhando territórios. Mas a beleza pode
atrapalhar? Sim. Tudo pode atrapalhar. Todo e qualquer discur- PÓS-F. 45
so que transforma o outro em coitado é um grande disparador
do que atrapalha, um disparador do problema. Sem sombra de
dúvidas, temos que falar sobre leis Maria da Penha, sobre todo e
qualquer tipo de assédio, de brutalidade, de manipulação profis-
sional e de desrespeito no ambiente de trabalho, mas continuo
insistindo que isso não é uma coisa unilateral. Nós nos manifes-
tamos tanto e, ao mesmo tempo, deixamos de olhar para o lado
do outro, que também é desrespeitado, por motivações outras.
Acho que é da natureza humana esse conflito, independente do
gênero, volto a dizer.
Eis que, de súbito, nunca as mulheres reclamaram tanto. Mas
acredito que tudo isso se deve ao fato de estarmos atravessando
uma época extremamente obscura. Só não creio que seja, cate-
goricamente, uma época contra a mulher. O homem ainda está
a serviço de, assim como a mulher está a serviço de, tanto da be-
leza (homens e mulheres), como de se tornar bem-sucedido ou
bem-sucedida. Isso se faz importante aos dois, e se engana quem
pensa que o homem está contra a mulher, ou vice-versa. A grande
crise começa quando se deixa de “estar a serviço de”.
E
POSSÍVEL QUE ELE TENHA CRUZADO PÓS-F. 46
VÁRIAS VEZES COM AQUELA QUE
DEVERIA SER, OU SERÁ, O AMOR DA
SUA VIDA. TALVEZ ESTIVESSEM NO
MESMO PARQUE UM DIA DESSES,
NUMA HORA POVOADA DE MENDIGOS
OU VELHOS, OU GENTE CANSADA ESPERANDO O TEMPO PASSAR.
ELE ESTARIA SENTADO SOZINHO NUM BANCO – ESPERANDO
AQUELA HORA PASSAR – E ELA VIRIA POR ALI, POSSIVELMENTE
PARA CORTAR CAMINHO. SIM, A MULHER DOS SONHOS DELE
ANDARIA UM POUCO APRESSADA, MAS ATENTA A UMA FLOR
OU OUTRA. A MULHER QUE ELE TANTO AGUARDA NUNCA IRIA
CONTORNAR UMA PRAÇA. PROVAVELMENTE, ATÉ CHOROU AO
PERCEBER QUE A MAIORIA DELAS, DE UNS TEMPOS PARA CÁ,
TORNOU-SE GRADEADA. E QUE AS GRADES ATRAPALHAM SEUS
PASSOS ACELERADOS, IMPEDEM QUE ELES CORTEM CAMINHO
POR ENTRE FLORES. ESSA É A SUA MULHER TÃO SONHADA. MAS
ELE OUVIU DE ALGUÉM, EM ALGUM LUGAR, OU NOTOU, POR
EXPERIÊNCIA PRÓPRIA, QUE A MULHER SONHADA É QUALQUER
UMA QUE ESTEJA À MÃO NO MOMENTO CERTO; E ALGUMAS
SABEM SE MAQUIAR MUITO BEM.
PÓS-F. 47
Prezada Mulherzinha, PÓS-F. 48
se existe alguém que pode falar o que vou falar para você,
sou eu. Então, por favor, tenha a humildade de admitir que sei
do que estou falando. Pois o que eu lhe direi é duro, mas poderá
lhe fazer um bem enorme.
Chega. Chega de se comportar assim. Como se estivesse
lutando pelo posto de rainha da bateria. De Miss Maravilha
do Mundo. Basta de ataques, dessa competitividade suburbana
— eu sou a melhor, eu sou a mais alta, eu sou a mais gostosa
do pedaço. Ninguém está ligando a mínima se você corre dez
quilômetros ou se aplicou Botox nessa sua testa sem expressão.
Ou se você é assim porque ainda não passa de uma menininha
que quer ser mais perfeita do que a mãe, conquistar o amor do
pai e ser a primeira da classe. Esse seu afã psicopata de vencer
todas as paradas só lhe deixa ridícula. E me faz querer usar
uma expressão que odeio: coisa de mulherzinha.
Mulherzinha é que tem essa mania de estar sempre
desconfiada das amigas, porque todas teriam inveja do seu
corpão e do seu cabelão estilo falso-louro-natural-cinco-tons.
Lamento informar, querida, que ninguém sente inveja de
você. Por isso, chega de dizer por aí que, para não atrair olho
grande, é bom ficar de bico fechado sobre a tal possível promoção
que você terá no trabalho. Relaxa, ninguém está a fim de ser
você. Tente, portanto, ser você com mais leveza. E lembre-se:
esse negócio de dizer que não se pode confiar em mulheres só
comprova que você é uma pessoa maliciosa. Sendo que isso está
longe de ser porque você é fêmea.
PÓS-F. 49
Beijos,
F.Y.
3
POR QUE VOCÊ NÃO
EXPERIMENTA SEU
CORPO ANTES?
Eu já fui muito masculina. Mas, quando penso nas
pessoas que se operam para mudar de sexo, acho
uma precipitação. A sexualidade não precisa de
nada disso. Esse discurso de que as pessoas nascem
com uma condição que não é a delas – uns chamam
de condição, outros de bênção – , enfim, acho,
definitivamente, a mudança do corpo algo muito
precipitado.
C
omo disse aqui, eu já fui muito masculina e, por muito PÓS-F. 52
tempo, rejeitei o feminino em mim. Mas, quando penso
nas pessoas que operam seus corpos para mudar de sexo,
acho uma precipitação. A sexualidade não precisa de nada
disso. Esse discurso de que as pessoas nascem com uma
condição que não é a delas – uns chamam de condição, ou-
tros de bênção –, enfim, acho, definitivamente, a mudança do cor-
po algo muito precipitado. Por que não experimentar o seu corpo
antes e descobrir o seu potencial?
O que quero dizer é: seja antes – e apenas depois de ser esse
corpo, mude de opinião. Quer deixar o cabelo crescer? Pode dei-
xar o cabelo crescer, antes de qualquer coisa. Eu, infelizmente,
acabo sempre pensando como mãe. Por mais que tenda a condi-
cionar, inevitavelmente, minhas filhas a algumas coisas, e meu
filho a algumas outras coisas, esse politicamente correto dos
brinquedos assexuados, das cores, pelo amor de deus, é muito
louco não poder brincar de boneca! Eu gosto da ideia de deixar
eles crescerem com liberdade de escolha. Se gosta de laço, põe
laço. Se não gosta, basta tirar a porra do laço. Eu, por exemplo,
nunca fui uma criança que gostasse de brincar de carros. Mas,
também, nunca me impediram de brincar de carro. Hoje adoro
carros. Não se trata de uma condição, e, sim, de vontades.
Todo mundo sabe que eu já tive namorada. Meus filhos têm
padrinhos gays, e eu nunca tive problema nenhum com isso. In-
clusive no meu livro O efeito Urano, falo da questão dessa mulher
que se apaixona por outra e que acha que fez uma grande merda.
O efeito Urano foi uma intenção minha de falar da sexualidade
das mulheres entre elas, que, na época, ainda não era discutida
como hoje em dia é. O que percebo atualmente é que as mulhe-
res, no geral, tendem a assumir a bissexualidade. E isso mostra
que o corpo feminino é tão potente no seu erotismo, que esse é
um caminho natural. Em O efeito Urano, peguei muito bem essa
questão, acho até que fui visionária.
Não vejo, portanto, problema nenhum, nem modernidade,
em se experimentar a sexualidade. Agora, não vou ficar ques-
tionando o estilo da roupa de meus filhos, ou o corte de cabelo, PÓS-F. 53
por exemplo, isso acho que é uma bobagem muito grande. Não
chega nem a ser a negação de um fato. Se uma pessoa não quer
usar um laço, não deve usar o laço – isso não quer dizer abso-
lutamente nada. Mas vira conflito; e pessoas morrem por causa
disso. Muitas vezes, a partir de uma pequena escolha momen-
tânea, a pessoa deve definir se é gay ou se é hétero. E aquele
momento pode, no dia seguinte, não significar mais nada para
aquela pessoa. A vestimenta não é nada. Ou talvez, quando
muito, seja um estado transitório. Visto uma roupa sexy e tal-
vez me sinta dessa forma naquele momento. Posso usar uma
fantasia e atuar nela.
A sexualidade de uma pessoa é tão própria, tão pessoal, mas
estamos numa sociedade em que tudo precisa ser contado – à
família, às redes sociais – e, por fim, julgado. E, incrivelmente,
em pleno século XXI, homossexuais ainda são mortos ou tiram
a própria vida. Daí, voltamos ao ponto, será o feminismo a gran-
de discussão, ou simplesmente o outro? O respeito às escolhas do
outro? Lembrando que o outro é um ser único e a quem devemos
todo o respeito.
A quantidade de meninos que são agredidos por serem
gays... eu me preocupo muitíssimo com eles. As meninas me
preocupam sempre, sempre irão me preocupar. Mas, imagina, o
cara ser gay no lugar mais grosseiro, inóspito e machista do Bra-
sil, sem nenhum acesso à cultura. Imagina o que isso vai causar.
Está vendo a fragilidade do assunto? A discussão não pode ser
mais raspar ou não raspar debaixo do braço. Isso, por acaso, vai
destituir o meu valor como mulher e como potência, se eu deci-
dir raspar, ou não, debaixo do braço? Tenho uma filha que não
raspa. Eu mesma passo temporadas sem raspar. E daí? Não me
diz respeito em nada. Não é algo que vou questionar se é certo
ou se é errado.
Hoje em dia sabemos que é preciso pensar antes de se dizer
“o” fulano, porque ele pode ser “a” fulana. E estamos usando
agora o artigo “e”. O “e” de “fulane”. E, de repente, se tornou
uma exigência que as pessoas acertem o artigo do outro. Eu não PÓS-F. 54
quero ter medo de como me refiro ao outro. Sendo homem, mu-
lher, uma entidade híbrida, ou qualquer outra designação, que,
bem sei, jamais irei decorar. Não quero pensar precisamente so-
bre isso, embora entenda que o artigo “e” compreende as poten-
cialidades sexuais que temos em nós. Posso ter pau. Posso não
ter pau. Posso ter pau num momento específico e não ter pau no
outro. Mas todos temos cu – e considero esse um pensamento
razoável. Todos temos cu, ou seja, em algum ponto, somos to-
dos iguais.
Sobre a minha sexualidade, eu às vezes consigo perceber
que não estou pensando como uma mulher, e acredito que es-
teja apenas exercitando um pensamento puro – noto que al-
canço um descolamento do meu gênero. E isso é bom, porque
é isso que me interessa. Outras vezes realmente noto que a mi-
nha condição feminina está incluída naquele pensamento. Por
motivos específicos, com dores que são minhas, dores do meu
eu feminino e que falam sim em nome do sexo feminino. Mes-
mo assim, eu penso tratar disso, da condição do feminino, sem
excluir o leitor e o espectador masculino. Porque creio que
todos nós temos a potencialidade do feminino e do masculino
que deve ser bem trabalhada. Esse é o grande encontro, você
ter o corpo e a alma feminina e lidar com o masculino, Vênus
com Marte. Conseguir a expressão dos dois, conseguir que
homem e mulher trabalhem juntos num único ser. Isso é muito
sofisticado. Maliciosamente, não é do interesse de ninguém
que isso seja pensado. Em tudo, a grande maldade é a ignorân-
cia. E, sem sombra de dúvidas, concretamente, a ignorância é
proposital.
Esses conflitos todos da luta dos sexos, esses conflitos da
luta entre homem e mulher, ainda sim poderiam ser evitados se
tivéssemos uma consciência muito mais sofisticada, tanto da psi-
canálise quanto espiritual. Não por meio do que pregam as reli-
giões, mas da noção de que somos de fato todos iguais. Porque
somos manifestações únicas de um jogo lindo de consciência,
quer você chame de Deus ou não. Mas isso não interessa. Não PÓS-F. 55
seria rentável pensar assim. E tudo o que não interessa é o tempo
inteiro descartado ou considerado balela. E os discursos que são
muito mais lucrativos e que são considerados mais interessantes,
eles surgem e sempre apresentam uma grande briga, seja entre
os sexos, ou mesmo entre religiões.
Sofisticado seria, simplesmente, experimentarmos, sem pré-
-requisitos.
E
, FAZER SEXO COM OUTRA MULHER PÓS-F. 56
NÃO É NADA MAU. NADA MAU.
E É CANALHICE FICAR FALANDO
SOBRE ESSAS COISAS, EU SEI,
AINDA QUE ALGUÉM TIVESSE ME
PERGUNTADO, E NINGUÉM ME
PERGUNTOU. MAS EU DIGO ASSIM MESMO: NÃO É MAU.
SENDO QUASE TERRÍVEL, PARA MIM, AFIRMAR ISSO, NÃO
POSSO NEGAR, É BOM. FOI ASSIM QUE OS ACONTECIMENTOS
SE CONSUMARAM. EMBORA NÃO VENHA CONSEGUINDO
IMPRIMIR O MÍNIMO GRAU DE LÓGICA NESSA NARRATIVA,
PRINCIPALMENTE NOS DETALHES DELA, INCLUSIVE OS
QUE CONSIDERO IMPORTANTES, COMO SE ALGO FOI BOM
OU FOI RUIM, POSSO CONFIRMAR: É BOM. E, DESCULPA,
EM SEXO A QUESTÃO SE RESUME CAFAJESTICAMENTE NA
RESPOSTA A UMA ÚNICA PERGUNTA: FOI BOM OU NÃO FOI?
PEÇO DESCULPAS PORQUE SEI QUE HÁ MUITOS PUDORES
INTELECTUAIS COM RELAÇÃO A CLICHÊS COMO ESSE. A ESSE,
EM ESPECIAL. EXISTE, PORÉM, COISA MAIS CLICHÊ DO QUE
SEXO? NÃO CONHEÇO. SÃO AS MESMAS CARAS, OS MESMOS
RESPIROS, OS MESMOS LUGARES, OS MESMOS EFEITOS.
SEXO É A MEDIOCRIDADE POR DEFINIÇÃO, POIS QUALQUER
UM O FAZ, E IGUALZINHO, DESDE O MAIS BRILHANTE GÊNIO
AO MAIS ESTÚPIDO IGNORANTE. SOMOS, PORTANTO, TODOS
MEDÍOCRES QUANDO TREPAMOS – NADA SERÁ FEITO QUE
ALGUÉM JÁ NÃO TENHA FEITO ANTES, NADA VAI ACONTECER
QUE NÃO SE REPETIRÁ UM MILHÃO DE VEZES. ESTAMOS,
ENTÃO, PRESOS À MEDIOCRIDADE PELO RESTO DA VIDA. A PÓS-F. 57
LAMENTÁVEL MEDIOCRIDADE, QUE SE APROVEITA DESSES
MOMENTOS CONSIDERADOS FUNDAMENTAIS – O ATO
SEXUAL, A CERIMÔNIA DE CASAMENTO, O NASCIMENTO DE
BEBÊS, A MORTE – PARA SE APOSSAR DE NÓS. PORQUE ESSES
SÃO OS EVENTOS MASSACRADOS PELA IDEOLOGIA DO IGUAL,
DO SE SENTIR IGUAL, DA REPETIÇÃO ANCESTRAL CHAMADA
DE TRADIÇÃO. FICA TODO MUNDO NERVOSO E FELIZ NO DIA
DO CASAMENTO, FICA TODO MUNDO OTÁRIO E FELIZ QUANDO
NASCE UM NENÊ, FICA TODO MUNDO RIDICULAMENTE IGUAL
QUANDO ESTÁ APAIXONADO – QUE É O ÚNICO MOTIVO PARA
SE ENVOLVER NUM ATO SEXUAL, A MENOS QUE VOCÊ O FAÇA
POR DINHEIRO. A PAIXÃO – CONCLUINDO – IMPREGNA-SE
DO COMUM COMO UM PAPEL JOGADO NA ÁGUA. SOU CAPAZ
DE UM CHUTE: 75% DAS PESSOAS MANDARAM UMA LETRA
DE MÚSICA PARA QUEM SE ACHAVAM APAIXONADAS. E 80%
JURARAM QUE JAMAIS SENTIRAM ALGO PARECIDO NA VIDA.
E 90% AGIRAM IMPENSADAMENTE, DEIXANDO RECADOS
TOLOS EM SECRETÁRIAS ELETRÔNICAS. E 99% QUISERAM
MORRER QUANDO O TELEFONE NÃO TOCOU. SENDO ASSIM,
PARA QUE PUDORES? EU DIGO CLARAMENTE: FOI BOM PARA
MIM. ALGUÉM AINDA DUVIDA? PODERÁ SER DESIGNADO
COMO BOM O QUE TEM A TEXTURA METAFÓRICA DE UMA
ESPONJA ENSEBADA? O QUE TEM O SABOR METAFÓRICO
DAS OSTRAS? O QUE TEM CABELOS PIXAINS POR TODA E
QUALQUER PARTE? O QUE NOS EXIGE TANTO DOS MÚSCULOS,
DESDE O PESCOÇO ATÉ A LÍNGUA, PARA QUE MANTENHAMOS
A CADÊNCIA CORRETA? OCASIÃO DIFÍCIL COMO ESSA, NA PÓS-F. 58
QUAL SE LUTA PELO FÔLEGO E SE MERGULHA EM MUCOSAS,
PODE SER AGRADÁVEL? BOM, QUANDO VI UM PAU PELA
PRIMEIRA VEZ NÃO FOI PRECISAMENTE MARAVILHOSO.
PODEREI EU, ENTRETANTO, COMPARAR PAU, PERLA E BOCETA?
POIS EU DIGO QUE OS TRÊS ME SÃO IDÊNTICOS, QUANDO O
ASSUNTO É MUDAR DE OPINIÃO. HOJE GOSTO DE PAU E PERLA.
HOJE GOSTO DE BOCETA. E QUE ME CRUCIFIQUEM. QUE ME
AMORDACEM. QUE CUSPAM EM MIM. QUE TAQUEM OVOS
PODRES EM MIM. TRANSFORMEI-ME EM GENI POR HAVER
GOSTADO. SOU, NESSE INSTANTE, UMA DEVASSA. PORQUE,
SE ME SOBRASSE ALGUMA DIGNIDADE, ALGUM ORGULHO, EU
NÃO CHUPARIA NOVAMENTE A SÓSIA DE UM MOLUSCO. O QUE
RESTAVA A MIM, PARA SER MENOS DESPREZÍVEL, MENOS
NOCIVA, MENOS NOJENTA, ERA NÃO TER GOSTADO. MAS EU
ADOREI. ADOREI.
PÓS-F. 59
Aos vendedores de ilusão PÓS-F. 60
Abraços,
F.Y.
4
A SEXUALIDADE DA
MULHER E LINDA
`
A ideia de castração é uma grande mentira.
Um dos livros que vale a pena toda mulher ler
é O relatório Hite, de Shere Hite. Nesse livro
tem perguntas muito específicas, que foram
enviadas com uma metodologia, e foi a primeira
grande pesquisa sobre a sexualidade feminina.
Nele, as mulheres reconhecem que é a primeira
vez que alguém está interessado em saber como
é a sexualidade feminina, e não sob o verniz
do olhar do homem.
A
ideia de castração é uma grande mentira. Um dos livros PÓS-F. 64
que vale a pena toda mulher ler é O relatório Hite, de She-
re Hite. Nesse livro tem perguntas muito específicas, que
foram enviadas com uma metodologia, e foi a primeira
grande pesquisa sobre a sexualidade feminina. Nele, as
mulheres reconhecem que é a primeira vez que alguém
está interessado em saber como é a sexualidade feminina, e não
sob o verniz do olhar do homem. Ou seja, a sexualidade da mulher
descrita pela própria mulher e avaliada por mulheres.
Uma das perguntas é sobre o orgasmo, como é o orgasmo na
penetração, na masturbação e no clitóris. E o livro revela algo
que não é comumente dito: que não existe nenhum tipo de orgas-
mo que exclua o clitóris. Porque, por mais que você não o tenha
manipulado com a sua mão, ou que alguém o tenha manipulado
no ato sexual, o clitóris faz parte da vagina tanto quanto a glande,
que é a parte de maior sensibilidade do órgão sexual masculino,
faz parte do pau. Então é a mesma coisa. Não é possível excluir
nem um nem outro. Outra coisa também que ninguém fala é que
a mulher também fica rija, assim como o homem. Ela endurece,
cresce, fica ereta, tanto quanto o pau do homem. Só que é inter-
no, não está facilmente visível. E daí podemos concluir: não so-
mos castradas. Nós, talvez, tenhamos sido castradas na repressão
do olhar do outro, no olhar da cultura, porque nosso órgão não é
visto. Mas, na verdade, nós ficamos duras e ejaculamos, só que
em outra proporção.
Outro dia, um dia chato até, andei pensando sobre a ereção
feminina. Ninguém fala sobre isso; ninguém conta que fica super-
dura – quando na verdade, a total intumescência, a nossa, pode
vir a ser bem maior do que o pau mais rijo que você já viu. Como
esse dia estava realmente enfadonho, tive uma ideia dessas que
só me trazem problemas, mas que é impossível de esquecer: a de
desenhar uma buceta e fazer disso um panfleto. Acontece que a
ereção do homem ocorre para fora do corpo. E é linda, temos que
reconhecer. A nossa, ela existe, só que ocorre sob a superfície do
corpo, na bainha, e também é muito linda! Mas, nesse dia chato,
como seguem os tempos atuais, não desenhei nem fiz o panfleto PÓS-F. 65
que jogaria aos milhares pela janela, em plena avenida Paulista.
Nesse panfleto, eu sugeriria: “Nos ensinaram a buscar os objetos
fálicos; o masculino. Busque nas dobras o feminino!”
Sobretudo, o que mais me impressiona é que no discurso
do ponto G, que a maioria das pessoas conhece, parece que as
mulheres têm um orgasmo interno errático, como se o orgasmo
clitoriano fosse uma fragilidade de alguém que não conseguisse
gozar efetivamente com a penetração. Então, nesse discurso está
intrínseco que a mulher sem um pau não goza efetivamente. O
pau, claro, é um objeto de fantasia e mentalmente funciona, mas
a satisfação sexual da mulher não necessariamente depende dele.
Essa pesquisa Hite é bonita por mostrar que a mulher não é um
ser incapaz por precisar do clitóris para gozar. E ninguém fala
disso, e muitas mulheres se sentem constrangidas ao manipula-
rem o clitóris. Mas a sexualidade da mulher não é castrada. Ela
é apenas mais misteriosa e sofreu pela demora em ser entendida,
principalmente, porque fisiologicamente é mais interna. Quando
Lacan diz que “a mulher não tem sexo”, acho que ele quer dizer
que ela é, na verdade, toda sexual. É simplesmente lindo! O que
ela não tem é gênero. A mulher é puramente erógena.
UANDO DESCOBRIU SENTIR- PÓS-F. 66
-SE EXCITADA COM AS CENAS
DE AMOR DOS FILMES QUE
ASSISTIA NA TEVÊ, PERCEBEU
QUE ERA A MESMA SENSAÇÃO
DE QUANDO SE TOCAVA NA
VAGINA. NOTOU, PELOS BEIJOS FALSOS DOS ATORES, QUE
EXISTIA NO SEU CORPO UMA EXCITAÇÃO AINDA SEM NOME.
ESSA AÇÃO INGÊNUA, MAS JÁ SEXUAL, COM O TEMPO –
TALVEZ POR REPRESSÕES FAMILIARES OU POR SUA PRÓPRIA
PERSONALIDADE – PASSOU A PARECER COISA DO MAL. NÃO
SE CONTINHA EM SE TOCAR, MAS, LOGO QUE TERMINAVA DE
FAZÊ-LO, SE ARREPENDIA A PONTO DE ADOECER. UMA NOITE,
SONHOU COM O DEMÔNIO, EXATAMENTE COMO ELES SÃO
NOS FILMES DE MÁ QUALIDADE: COM CHIFRE, VESTIDOS
DE VERMELHO CETIM E COM UM TRIDENTE NA MÃO. TUDO
PARECEU MUITO CLARO E VERDADEIRO. NO SONHO, ESTAVA
SENTADA NO HALL DO PRÉDIO ONDE MORAVA, QUANDO ELE
SE APROXIMAVA LENTAMENTE E DIZIA COISAS. NÃO DE
FORMA ATERRORIZANTE – SIMPLESMENTE FALAVA COMO SE
ESTIVESSE CONVERSANDO COM ALGUÉM ÍNTIMO. ANA NÃO
ESCUTAVA O QUE O DEMÔNIO LHE DIZIA, APENAS VIA A CENA,
DE FORA. QUANDO ACORDOU, ESTAVA TRANSTORNADA, COMO
FICA A MAIORIA DAS PESSOAS QUANDO TEM PESADELOS.
MAS ACABOU ESQUECENDO O OCORRIDO. ATÉ QUE MAIS
UMA VEZ SONHOU COM ELE, E TAMBÉM MAIS UMA VEZ
NÃO ESCUTOU O QUE ELE DIZIA. ASSUSTOU-SE, ACORDOU
APAVORADA. TINHA CERTEZA DE QUE AQUILO ESTAVA LIGADO
À EXCITAÇÃO QUE SENTIA QUANDO SE TOCAVA. ERA DAQUELA
FORMA QUE O EXÉRCITO ESTAVA LUTANDO PARA DESTRUÍ-
-LA E CONDUZIR SEUS ATOS PARA O CAMINHO DO MAL E DA
DESGRAÇA. TUDO PARECIA MUITO CLARO PARA ANA. SÓ NÃO
ENTENDIA POR QUE LOGO O DIABO É QUE ESTAVA AVISANDO A
ELA QUE O QUE FAZIA ERA ERRADO. NÃO DEVERIA SER DEUS?
OU, AO MENOS, O SEU ANJO DA GUARDA?
PÓS-F. 68
PÓS-F. 69
Ao clitóris, querido companheiro PÓS-F. 70
Saudações,
F.Y.
PÓS-F. 72
5
TUDO AGORA E
ASSEDIO `
`
Duplamente decepcionada,
F.Y.
PÓS-F. 82
6
UMA MULHER,PARA
˜
SER BOA MAE,
PRECISA PROTEGER
O SEU INDIVIDUO
`
Com carinho,
F.Y.
PÓS-F. 94
7
ACHO QUE ME
MATO A TER
QUE SER DONA
DE CASA
Estou achando que agora, inclusive, tem muitas
mulheres decidindo voltarem a ser donas de casa
e estou estarrecida. Esse discurso do feminismo
é muito bom, muito produtivo até que a mulher
decida que não quer mais trabalhar. Quer parar e
cuidar dos filhos. A quantidade de mulheres que hoje
querem viver a maternidade em sua intensidade
e que não vão negar esse princípio é também um
discurso que reconheço e que respeito. Mas eu, na
minha experiência de vida, e como mulher, acho que
me mato a ter que ser dona de casa.
E
stou achando que agora, inclusive, tem muitas mulheres PÓS-F. 96
decidindo voltarem a ser donas de casa e estou estarre-
cida. Esse discurso do feminismo é muito bom, muito
produtivo até que a mulher decida que não quer mais tra-
balhar. Quer parar e cuidar dos filhos. A quantidade de
mulheres que hoje querem viver a maternidade em sua
intensidade e que não vão negar esse princípio é também um
discurso que reconheço e que respeito. Mas eu, na minha expe-
riência de vida, e como mulher, acho que me mato a ter que ser
dona de casa. Prefiro carregar saco de cimento numa obra, o dia
inteiro, do que ser dona de casa. Porque o fato concreto é: nós
nunca deixamos de ser dona de casa. Então imagine o pesadelo
que é ter que ser dona de casa integralmente. Ora, quando não
estou trabalhando na rua, estou trabalhando em casa ou estou
o tempo inteiro lidando com assuntos chatos de casa. O tempo
inteiro. Tenho pavor. Tenho pavor, por exemplo, de comprar
um objeto doméstico. De gastar o dinheiro, que eu ganhei, para
algo para casa. No Brasil é mesmo um horror, tudo caríssimo e
de má qualidade. Fico puta da vida.
O mais interessante de tudo é que nós não excluímos nada.
A gente só acumulou. Fico puta com esse papo de conquista de
direitos. Eu estou é me fodendo com as minhas conquistas
de direitos. Conheço um monte de mulher sonsa, que faz a de-
pendente, mas é muito mais livre do que eu. Eu, com os meus
compromissos, estou exausta. Sou financeiramente importante
na minha casa, e estamos lidando com uma história muito espe-
cífica, estamos falando de um homem que nunca olhou para o
café da manhã na mesa e falou “não tem bolo?”. Ai dele! Se tem
cream cracker, que ele abra esse cream cracker e agradeça. Eu
nunca coloquei uma mesa para ninguém na minha vida, mas sei
o quanto conquistei de funções e nunca descartei nenhuma. E
não dá para descartar. Bem fez a Yoko Ono, que decidiu, junto
com o John, que ele cuidaria do filho, enquanto ela ia trabalhar.
E ele parou, se voltou para o exercício doméstico e ela, que é
uma grande empresária, fez o dinheiro deles aumentar incrivel-
mente. E ela sempre foi considerada uma escrota. Mas é uma PÓS-F. 97
visionária.
O fato inevitável é que, na maioria dos casos em que o homem
ajuda, e agora tem todo esse discurso que o homem também tem
que trocar a fralda, a grande trabalheira e a grande exaustão, elas
são femininas. E a mulher continua trabalhando, e, se decide ter
filhos, continua com afazeres que são enjoativos. Quantas vezes
o Alexandre foi ao pediatra? Essa conquista de direitos foi, na
verdade, um grande acúmulo de funções. Eu me arrependi o
tempo inteiro disso tudo. De certa forma, por não ser de uma
família abastada, que não é de artistas, e ter sonhado tão alto, fui
sempre muito persistente em alcançar as minhas metas. Eram
metas improváveis. Recentemente assisti ao filme Lady Bird e
chorei copiosamente. Eu me dei conta de que fui uma adolescen-
te muito corajosa. Sempre penso num poema de Walt Whitman:
“Ó! Como sonhei coisas impossíveis!” Na época, eu não me dava
conta de que o mais provável seria eu não conseguir realizar nem
um décimo do que sonhava. Chorei também porque agora, aos
47 anos, vejo as minhas filhas mais velhas sonhando em realizar
tantas coisas, e mesmo que eu as incentive, existe o temor que
ronda a juventude.
Quando digo que me arrependi o tempo todo, não signi-
fica que faria tudo diferente, mas que admito o preço das mi-
nhas decisões, e que sempre soube que nada seria fácil, mas
agia tomada pelo resoluto frescor da juventude. Logo no iní-
cio do meu adultecer, eu estava casada, morando numa cidade
nova, escrevendo o meu primeiro romance. Eu o publiquei na
sequência. Fui reconhecida e criticada. Assumi, nessa época,
a minha condição depressiva e soube lidar com o diagnóstico
com maturidade, mas ainda romantizava a questão, afinal era
quase um pré-requisito para o meu status. Lancei muitos livros
em poucos anos. Tive as gêmeas aos trinta. Aconselhada por
um pediatra, tomei a decisão perigosa e burra de parar com a
medicação que tomo para a depressão. Tive uma crise nos pri-
meiros meses do pós-parto, que culminou num quadro grave
depressivo. Eu tinha 33 anos, as pessoas me agrediam por eu PÓS-F. 98
falar o que penso, fazer o que quero. E, no imaginário, essa
liberdade é muito mais afrontosa e imoral do que é. Não me
justifico. De fato defendo ferozmente o direito de fazer o que
eu quiser. E se não realizo o que o outro pensa de mim, é por
puro tédio. Sou uma pessoa de hábitos prosaicos, extremamen-
te recolhida, que tem a idade emocional que varia dos 6 aos 17
anos. Mas, quando me comprometo com algo, não arredo o pé
da obrigação de realizar com qualidade. Principalmente se isso
diz respeito aos meus filhos, minha família e ao meu trabalho.
Ou seja, sou uma pessoa exausta. Faria tudo igual, porque te-
nho sido Eu com muita honestidade, mas me arrependo de ter
sonhado tão alto. Ou melhor, talvez quisesse ser menos idea-
lista, um pouco dissimulada, me refestelando na condição de
“mulher/minoria” que precisa ser cuidada.
À beira dos 50 anos, após ser tão criticada por ter sido
uma autora jovem, penso que o tempo não está me trazendo
nenhum conforto. Aos 40 posei nua, com o intuito de mostrar
que Ele, o Tempo, não é indigesto para a mulher, como a nossa
cultura atesta. Acho-me mais bela a cada ano, sinto-me mais
anárquica também. Afinal, nem sempre tem sido fácil e se fui
uma adolescente dita rebelde, sem ter a menor infraestrutura,
imagine agora. Entrei na temporada do “fi-lo porque qui-lo”.
Não tenho paciência para a maioria das relações sociais, mas
sou boa amiga e ótima profissional. Quando sou convidada –
cada vez menos, já que sou mesmo bem reclusa – para eventos,
shows, festas, nem cogito que estou perdendo oportunidades
“incríveis” de me divertir, ou conhecer pessoas. Cada dia que
passa, e há muito, sei que o melhor lugar em que posso estar
é em mim. Essa é uma lição que aprendi que deixo com mui-
to amor, neste livro, e todas as vezes em que dou entrevistas:
tenham autoestima. Espero que eu possa inspirar meninas,
mulheres, e também meninos, homens, a habitarem em si, ja-
mais no outro. Com o(a) outro(a) nós exercitamos inúmeros
estágios do crescimento. Aprendemos mesmo quando erra-
mos. Mas somente você estará o tempo inteiro aí, seja PÓS-F. 99
na festa, no esplendor de grandes ocasiões, nas dores,
principalmente nas dores…
Acho que devo retificar a informação de que não me
arrependo de nada: gostaria de não ter vivido algumas
coisas. Talvez, talvez, eu apenas quisesse ter feito outros
caminhos, só para comprovar que não é necessária a
dor para se alcançar algo. Não suporto quando dizem
que eu não seria quem sou se não tivesse sofrido.
Penso que esse discurso é grosseiro. E se me
ocupo em instigar artes das pessoas, devo
defender que qualquer estereótipo para o
artista é uma burrice. Caso eu consiga ajudar
uma pessoa, fazê-la crer que irá conseguir, ao
menos poderei aceitar que não foi em vão.
L
EMBRA DA ALEX FORREST, A PÓS-F. 100
PERSONAGEM DA GLEEN CLOSE,
NAQUELE FILME ATRAÇÃO FATAL?
ELA FAZ UM MONTE DE COISAS
HORRÍVEIS, PORÉM TUDO FICA
EXPLICADO. TANTO QUE, CONFESSO,
VEJO E REVEJO A HISTÓRIA, E SEMPRE SINTO UMA PUTA
COMPAIXÃO POR ELA. CHEGANDO A TORCER POR ALEX, EM
DIVERSOS INSTANTES, MESMO SABENDO DE COR AQUELE
FINAL. RECONHEÇO QUE É PORQUE EU SOU MAIS SENSÍVEL
QUE A MAIORIA DAS PESSOAS, E TAMBÉM MAIS EXPERIENTE
NESSE TIPO DE ÓDIO, QUE ÀS VEZES DÁ, PODENDO FAZER
UMA LEITURA MAIS DELICADA DA PERSONALIDADE DELA.
CALCADA EM CONJECTURAS, É CLARO, POIS O FILME NÃO
NOS OFERECE MUITO. NÃO ACHO O FILME RUIM, SOMENTE
UM TANTO SUPERFICIAL NO QUE SE REFERE À APRESENTAÇÃO
DA MOTIVAÇÃO DA PERSONAGEM MALUCA. VEJA BEM: DAN, O
CARINHA, FEITO MAGISTRALMENTE PELO MICHAEL DOUGLAS,
É UM CÍNICO. NÃO POR HAVER TRAÍDO A ESPOSA COM ALEX –
ISSO ELE DEVE TER FEITO VÁRIAS VEZES ANTES, COM MUITAS
OUTRAS, NA SUA VIDINHA DE GARANHÃO BEM-CASADO.
DAN É CÍNICO PORQUE É O PERFEITO HOMEM DE HOJE, QUE
EVOLUIU DO HOMEM DE ANTIGAMENTE, PARA MANTER-SE O
HOMEM DE SEMPRE. ELE É GENTIL COM SUA MULHER, AINDA
DÁ UMAS TREPADAS COM ELA, MESMO QUE ELA NÃO NOS
ACENE COM NENHUM ATRATIVO; POIS NO FILME VIVE PARA
O LAR, NO LAR, ENTREGUE AO GÊNERO “NATURAL, MEIGA
E COMPREENSIVA”. ELE SE MOSTRA GRATO POR ELA SER PÓS-F. 101
ASSIM E SE DEDICAR COM AMOR ÀQUELA PARTE DA VIDA DE
UM HOMEM QUE PRECISA ESTAR ORGANIZADA, PARA QUE ELE
POSSA TRAZER MUITO DINHEIRO PARA CASA. TALVEZ ANN.
VAMOS CHAMÁ-LA DE ANN, AQUI. ENTÃO, É ANN QUEM CUIDA
DAQUELES DETALHES TODOS QUE OS HOMENS, POR MAIS
LEGAIS QUE SEJAM, NÃO GOSTAM DE CUIDAR: CRIANÇAS,
COMIDAS, SUPERMERCADOS, LOUÇAS, ROUPAS, ROUPAS DE
CAMA, PANOS DE PRATO, POEIRAS, ÁCAROS, RETROVÍRUS.
ANN É DO LAR, COM MUITA SATISFAÇÃO E EFICIÊNCIA. NAS
FÉRIAS, ELA VIAJA COM O MARIDO PARA LUGARES EXÓTICOS
BACANAS, ONDE PODEM RELAXAR DO RESTANTE DO ANO, E,
NOS ANIVERSÁRIOS, ELA GANHA UMA JOIA LINDA, COM UM
TOCANTE BILHETINHO. ALGUÉM PODE QUESTIONAR SE ANN É
FELIZ? LÓGICO QUE É – QUEM NÃO SERIA FELIZ TENDO UMA
VIDA CRETINA DESSA? BONS APARELHOS DOMÉSTICOS E BOA
CONVIVÊNCIA FAMILIAR – EXISTE ALGO A DESEJAR ALÉM
DISSO? ENTÃO A ANN DO DAN É DOCE E PARTICIPANTE, E FOI
GRAÇAS À ESTABILIDADE DELA QUE O MARIDO CONSEGUIU
SE TORNAR O ADVOGADO PROMISSOR QUE É, QUASE COM
DIREITO ÀQUELA TÃO ESPERADA PROMOÇÃO, QUE O LEVARÁ
A SÓCIO-JÚNIOR DA FIRMA. AÍ APARECE ALEX. QUE FODE
LOUCAMENTE COM DAN. ELE FICA TÃO CULPADO COM
AQUELA FODELANÇA QUE DÁ SINAL VERDE PARA A ESPOSA
COMPRAR A CASA DOS SONHOS DELA, NO SUBÚRBIO. OU
SEJA, FOI A ALEX QUE PROPORCIONOU ESSE UPGRADE NA
VIDA DO CASAL. SE AQUELA VAGINA LOIRA DESCABELADA NÃO
TIVESSE SE ENFIADO NA HISTÓRIA, TALVEZ DAN NÃO TIVESSE PÓS-F. 102
A CORAGEM PARA ARRISCAR UM TANTO NUMA HIPOTECA.
NISSO A HISTÓRIA É BASTANTE CLARA: O MARIDO ESTAVA
RETICENTE, ATÉ A CHEGADA DA CULPA. E VEJO QUE É ASSIM
MESMO; SEI DE VÁRIOS OUTROS CASOS EM QUE SITUAÇÃO
SEMELHANTE OCORREU. O QUE NOS LEVA À NOSSA PRIMEIRA
GRANDE CONCLUSÃO: É COM A CULPA QUE SE MOVEM OS
HOMENS. HOMENS SE CASAM POR SE SENTIREM CULPADOS,
TOPAM TER FILHOS POR SE SENTIREM CULPADOS. AS ANNS,
PORTANTO, PRECISAM DAS ALEX. DANS TAMBÉM PRECISAM
DAS ALEXS, PORQUE NÃO QUEREM MAIS TRANSAR COM SUAS
ESPOSAS, MAS NECESSITAM DELAS CUIDANDO DA CASA. E O
MERCADO IMOBILIÁRIO TAMBÉM PRECISA DAS ALEXS, PARA
VENDER CASAS MELHORES – OU SIMPLESMENTE MAIORES,
JÁ QUE DEVEM DAR CADA VEZ MAIS TRABALHO DOMÉSTICO
ÀS ANNS. ÓBVIO, ISSO SE TRATA DE UM OLHAR DA MINHA
PARTE; NÃO ESTOU TENTANDO SUGERIR QUE ESSE FILME,
DE VINTE ANOS ATRÁS, AINDA SEJA UM TRATADO EXATO
SOBRE O QUE ACONTECE. TODOS SABEMOS DA EVOLUÇÃO
DO PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE, TODOS CONHECEMOS
MUITAS MULHERES QUE VIVEM SOZINHAS E SÃO DONAS
DE SEUS NARIZES. E MULHERES QUE ATÉ SUSTENTAM OS
HOMENS, ENQUANTO ELES ARRUMAM A CASA. MAS O QUE
HÁ DE MAIS TRÁGICO NAQUELA TRAMA NÃO SE MODIFICOU.
NE SE MODIFICARÁ JAMAIS, TEMO. NÃO ESTOU FALANDO DE
TRAIÇÃO, ESTOU FALANDO DA INJUSTIÇA COM QUE É TRATADA
A MULHER QUE SURTA, QUANDO CANSA DE SER ÚTIL AOS
OUTROS. SE EU FOSSE PRESUNÇOSA, DIRIA QUE ESTAMOS PÓS-F. 103
DESVENDANDO, AQUI, UM MITO. O MITO ALEX FORREST.
TÃO FORTE, QUE CONSEGUE ATRAIR SEU JÁ ARREPENDIDO
AMANTE PARA UM SEGUNDO ENCONTRO. EM QUE TREPAM
COMO NUNCA: NA PIA, NO CHÃO, NAS MESAS, PELAS
PAREDES. E ELE, EXAUSTO DE TANTA TREPAÇÃO, RESOLVE
DORMIR LÁ, NA CAMA COM ELA, APROVEITANDO QUE
ANN ESTÁ FORA ATÉ SEGUNDA. SE NÃO ME ENGANO,
ESTÁ JUSTAMENTE VISITANDO A TAL CASA QUE
ELA SONHA EM COMPRAR, QUE – DETALHE – FICA
VIZINHA À CASA DOS PAIS DELA. POIS SIM,
NESSA PROVIDENCIAL AUSÊNCIA DE ANN,
DAN, SENTINDO-SE CULPADO POR TRATAR
ALEX MAL, RESOLVE DAR UMA SEGUNDA
TRANSADA COM ELA. DE ONDE CHEGA,
DOMINGO DE MANHÃ, CULPADÍSSIMO. E
A PRIMEIRA COISA QUE ELE FAZ É
LIGAR PARA A CASA DOS PAIS
DE ANN, QUERENDO FALAR
COM ELA, SOBRE ESTAR MAIS
FAVORÁVEL À COMPRA DO
IMÓVEL. COMO É SÓRDIDO
TUDO ISSO.
Ao pequeno sabotador interno PÓS-F. 104
Abraço,
F.Y.
PÓS-F. 106
8
DESEJOS PARA UM
MUNDO POS-F.
`
Melhoras,
F.Y.
CITAÇÕES DOS LIVROS DE
FERNANDA YOUNG:
– P. 27
Dores do amor romântico. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
– P. 34
Os melhores momentos de Os Normais. (Com Alexandre Machado)
Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
– P. 46
A sombra das vossas asas. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
– P. 56
Versículo vigésimo sexto. In: O efeito Urano. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011.
– P. 66
Vergonha dos pés. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
– P. 78
Os melhores momentos de Os Normais. (Com Alexandre Machado)
Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
– P. 89
Vergonha dos pés. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
– P. 100
Tudo o que você não soube. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
– P. 110
As pessoas dos livros. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
9 788544 107164
necessidade de nenhum dos discursos. O feminismo alimenta o machismo e vice-versa.
E digo: só vai existir a necessidade de um feminismo radical enquanto alimentarmos
a existência do machismo. Então acredito que a questão maior que deveria estar
sendo discutida, que é o outro, o respeito ao outro, seja de que sexo for, continua
sendo desmerecida em nome de uma bipolaridade, que é própria da natureza