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POS-
Fernanda Young

Para além do masculino e do feminino


POS-
S-F
Fernanda
Young
Textos e desenhos

Para além do
masculino
e do feminino
Copyright © 2018 by Fernanda Young
Copyright © 2018, Casa da Palavra/LeYa
© desta edição 2019, Casa dos Mundos

Todos os direitos reservados e protegidos dados internacionais de catalogação na


publicação ( cip )
pela Lei 9.610, de19.02.1998.
Angélica Ilacqua CRB-8/7057
É proibida a reprodução total ou parcial
sem a expressa anuência da editora e Young, Fernanda
Pós-F. : para além do masculino e do feminino
da autora. / Fernanda Young. – São Paulo : LeYa, 2019.

isbn: 978-85-441-0716-4
Editoras responsáveis
1. Feminismo - Ensaios I. Título
Eugênia Ribas, Vieira
Izabel Aleixo cdd 305.42
18-0426

Gerente editorial
Índices para catálogo sistemático:
Maria Cristina Antonio Jeronimo 1. Feminismo - Ensaios

Produção editorial
Guilherme Vieira

Revisão
Maria Clara Antonio Jeronimo

Capa e projeto gráfico


Victor Burton

Diagramação
Anderson Junqueira

Tratamento de imagens
Anderson Junqueira
Trio Studio

Tratamento das imagens de capa


Gabriel Cicconi

Todos os direitos reservados à


Editora Casa dos Mundos
Rua Avanhandava, 133
Conjunto 21 - Bela Vista
01306-001 - São Paulo - SP
www.leya.com.br
“De fora, existe coisa mais simples do que escrever
livros? De fora, quais os obstáculos para uma
mulher e não para um homem? Por dentro, penso
eu, a questão é muito diferente; ela ainda tem muitos
fantasmas a combater, muitos preconceitos a vencer.
Na verdade, penso eu, ainda vai levar muito tempo
até que uma mulher possa se sentar e escrever um
livro sem um fantasma que precise matar, sem uma
rocha que precise enfrentar.”

— Virginia Woolf
22 Prefácio

29 CAPÍTULO I
Até que ponto podemos ser livres?

39 CAPÍTULO 2
Eu não admitia o feminino

51 CAPÍTULO 3
Por que você não experimenta
seu corpo antes?

63 CAPÍTULO 4
A sexualidade da mulher é linda

73 CAPÍTULO 5
Tudo agora é assédio

83 CAPÍTULO 6
Uma mulher, para ser boa mãe, precisa
proteger o seu indivíduo

95 CAPÍTULO 7
Acho que me mato a ter que ser dona de casa

107 CAPÍTULO 8
Desejos para um mundo Pós-F.
PREFÁCIO
Não sou especialista em nada. Melhor, não sou
especialista de coisa pronta. Procuro me aprimorar
em mim, entendendo sobre mim – usando, é claro,
tudo que observo nos outros.
N
ão sou especialista em nada. Melhor, não sou especialista PÓS-F. 23
de coisa pronta. Procuro me aprimorar em mim, enten-
dendo sobre mim – usando, é claro, tudo que observo nos
outros. E, com um otimismo ainda juvenil, tento fazer
algo novo. Mesmo que reconheça nisso uma certa inge-
nuidade. E creio que ser ingênuo, depois de uma certa
idade, cai mal. No entanto, esse é um impulso inevitável; se de-
sisto dele, eu me tornaria enfadonha para mim mesma.
Nunca quis ser uma “entendedora” desse ou outro autor,
filósofo, artista. Eu os usufruo, todos, com liberdade. Convivo
como uma igual e não como discípula. Tenho sido bastante obs-
tinada em compreender a mim mesma e o mundo em que habito.
Não me importam os que insistem em me acusar de egocêntrica.
Na verdade, até me divirto, visto que é uma observação tão óbvia
e, nem só por isso, de uma burrice infinita. Há anos venho di-
zendo que a burrice é uma deficiência de caráter. A ignorância,
sua irmã univitelina, é ainda mais sonsa, já que ignorar é uma
espécie de egoísmo que justifica a brutalidade do ato. “Eu não
sabia, então não fiz nada.”
O que tenho tentado fazer é vasculhar internamente meus
ânimos; encarar, com medo mas obstinadamente, os corredo-
res mais escuros da minha alma, criando um diagrama, sempre
inexato e anárquico, de todos os acontecimentos que vivi, para
oferecer essas experiências e conclusões em forma de arte. Se
consigo realizar ou não a minha intenção? Não. Depois de tan-
tos anos insistindo, de maneira quase maníaca, em defender não
a minha opinião, mas o meu direito de tê-la – e tendo me utili-
zado de tantas estruturas para compartilhá-la –, ainda me im-
pressiona ter de me explicar. Pior, constrange-me isso ainda ser
necessário. Em minha arte, parece que devo anexar uma bula,
uma espécie de pedido de desculpas, somente pela coragem de
ser essa que faz o que quer, da maneira que quer, e paga um pre-
ço altíssimo por não se dobrar. Mesmo que inúmeras vezes eu
mude de ideia, porque, é lógico, estou aprendendo e desapren-
dendo, como todos.
Em momento nenhum achei estar absolutamente certa. PÓS-F. 24
Mas, quando estou criando, sou possuída por uma enorme segu-
rança, visto que, se não fosse assim, eu nada teria feito. Lembro
que, quando deixei o programa Saia Justa, fiz a minha despedi-
da com um discurso de formatura. Formei-me em “digo e des-
digo”. Naquela época, fui muito agredida porque nunca estive
nem um pouco interessada em parecer interessante, citando au-
tores e máximas coletivas. Achava que deveria partilhar a minha
liberdade, inclusive a de falar merda – coisa para a qual tenho
uma técnica, e afeto. Eu sou livre! Não tenho rótulos, não te-
nho dono, não tenho patrão, não tenho nada que me impeça de
mandar todo mundo se foder, caso eu queira. E às vezes aconte-
ce, porque devo me proteger.
Mulheres como eu incomodam muito. Não pela beleza, inte-
ligência, posses, amores, mas porque não devem nada a ninguém.
Por isso falo e faço o que quiser. Saiba, você, que agora está lendo
este prefácio, que preferia não ter de escrevê-lo, pois ele acaba
me levando para esse lugar, em que devo, mais uma vez, me ex-
plicar. Mas saiba também, querido(a) leitor(a), que ser livre é
algo bastante trabalhoso. Não raro noto o ódio, a inveja, o nojo
que causo, porque estou pouco me lixando para o que os outros
pensam sobre mim – se estou agradando ou não, se tenho bons
modos ou não, se pareço culta ou não, esperta ou não, engraçada
ou não. Eu apenas decidi, ainda bem cedo, que, já que eu era es-
tranha, geniosa e nada adorável, deveria ser assim. Tinha medo,
sim. Medo por ser “diferente”; mas essa diferença não foi sequer
uma escolha, nem algo que eu deva defender.
Então, fui ficando arredia, defensiva e atenta, mas iria ser
o que eu quisesse. E ainda criança detectei o que queria mais
do que tudo: ser livre. Livre da opinião dos outros, do que a so-
ciedade iria pensar, do que um marido iria exigir, da opressão
de ter que fingir amar a vida doméstica – odeio –, de ter que ir a
reunião de pais, de condomínio, de ser obrigada a votar, de não
poder xingar, trepar, errar, beber. Livre de qualquer coisa que
me tirasse de mim. E esse sonho se realizou. Pode ter certeza
que, de onde eu vim, ser livre era tão improvável quanto ser as- PÓS-F. 25
tronauta da Nasa.
Quando fui convidada pela Editora LeYa para escrever so-
bre o feminismo, primeiramente seria para a coleção “Politica-
mente Incorreto”. Logo notei que esse selo seria inapropria-
do, porque também quero estar livre desse “diagnóstico”. Não
gosto de rótulos, apesar de reconhecer que a minha liberdade
inspira, e não gosto de imaginar que seja somente às mulheres.
Durante muito tempo evitei o termo feminista e, caia para trás,
se o assumo agora é com um certo constrangimento. Porque
me parece ser o “ismo” da moda. E acho muito sério o assunto,
para depois o deixarmos cair no esquecimento, quando o empo-
deramento deixar de ser a palavra da vez. Palavra, essa, com que
implico, porque a acho cafona e reduzida. Aceitei o convite da
LeYa, entenda, porque foi me dada total liberdade. Tanto que
o título Pós-F. contém uma ironia; poderia ser também “Pós-
-FY”. Afinal, falo como entendo ser uma mulher, no mundo
atual, vivendo como uma, que não faz parte de nenhuma maio-
ria, mas que vai com integridade e vigor nesse caminho contrá-
rio ao da fogueira. Sinto o cheiro do fogo, já estive perto dele
muitas vezes, somente por ter sonhado e insistido. E, pasme,
ter dado certo.
Há, nesta obra, inúmeras conversas que tive com Eugênia
Vieira, minha editora pela quarta vez seguida. Fragmentos de
entrevistas, roteiros, crônicas. A opção por essa estrutura se deu
justamente para fugir ao tom acadêmico, recheado de legítimas
citações de pensadoras feministas. Com respeito e gratidão, po-
deria enumerar uma lista enorme dessas pensadoras que me trou-
xe até aqui. Mas como comecei este prefácio, termino: não me
interessa ser especialista no que já foi feito. Acho que todos deve-
mos ler essas libertárias e concluir sobre o feminismo; não cabe
a mim uma análise sobre essa ou outra autora. Mesmo porque o
feminismo não foi feito somente por escritoras, intelectuais. Ele
tem sido recriado por todas que, nos seus ofícios, se negaram a se
especializar em agradar.
Por fim, ofereço este livro à minha filha Cecília Madonna. PÓS-F. 26
Não por algum motivo especial, mas porque ela pediu. Agra-
deço também a minha outra filha, Estela May, que, certa feita,
disse que eu deveria, sim, me assumir feminista, mesmo enten-
dendo que poder não ser nada me deixa mais livre. No entanto,
sei que é importante estar atenta e forte, porque muitas mulhe-
res ainda necessitam de ajuda. E eu o farei, da forma que quero,
posso e sei.
No meu braço esquerdo tenho tatuado o verso de Madonna:
“Do you know what it feels like in this world for a girl?” (Você sabe
como se sente uma garota neste mundo?) Essa é a pergunta que
ecoa desde que a tatuei, há muitos anos. Eu sei como me sinto. E,
aqui, conto um pouco.
n ão vou aguentar.
Não, não vou aguentar
mais. Essa vontade de despir-me inteira
e mostrar aquilo que fará de mim apedrejável.
Então vou. Vou. Terei de aguentar.
Sofrer quietinha. Sofrer quietinha.
Deixar para lá essa ideia
PÓS-F. 27

de que o amor é o meu ofício.


De que o meu verso é imprescindível
e de que somente os homens podem amar assim,
tantas vezes e sem pudores.
Sim. Isso. Somente os homens são poetas.
Livres. Metafísicos. Sem compromissos.
Eu sou mulher. Punida sempre. Vagabunda.
Indecente.
Vou. Vou aguentar. Pois o que pulsa é
a língua portuguesa. Não a carne vermelha
– também língua – que guardo entre as pernas.
Nem essa, mais molhada, dentro da boca.
Não. A maldição veio com os grandes
navegadores: carrapatos, impetigos,
escorbutos e piolhos. Saudades. Paixão.
Saliva. Poesia.
A culpa não é sua, nem minha.
Mas serei eu a que irá arder nas chamas,
porque bruxos não existem.
O que há no mundo das paixões e erros
são putas. Putas. Putas. Putas. Sou uma puta.

Serei eu quem morrerá primeiro.


1
ATÉ QUE PONTO
PODEMOS
SER LIVRES?
É inevitável que eu esteja mais atenta ao sexo
feminino, por ser mulher, por ser mãe de três
mulheres e por entender que sim, que a mulher pode
ser machucada. Acredito que, por ser mais bonita
e mais tátil, ela pode ser manipulada de maneira
indigesta com mais facilidade. Mas, sem sombra de
dúvidas, há um desconforto quando você exclui o
homem desses riscos, só porque ele é homem.
T
enho, ultimamente, duvidado do discurso feminista. PÓS-F. 30
Quem nunca foi sexista? Uma mulher rejeitando o gêne-
ro masculino, assim como somos (ou fomos) rejeitadas?
Nós mulheres somos muito mais inteligentes e sabemos
usar muito bem as nossas fragilidades quando elas nos
interessam. Pessoalmente, não me sinto nem um pouco
desrespeitada, não nos meus relacionamentos com homens.
Mas devo deixar claro que nem sempre foi assim. Já fui muito
machucada. De tal forma que me sinto, ainda hoje, constrangi-
da em contar. Já sofri grosserias efetivas, que causaram gran-
des estragos na minha vida. Algumas são grosserias assexuadas:
ser vilmente traída, covardemente deixada etc. Creio que são
condições sine qua non no aprendizado amoroso, passar por ex-
periências adversas do ideal romântico, aquele em que nos apai-
xonamos pela pessoa certa, não vivemos nenhuma frustração e
somos felizes para sempre. Cometi algumas violências no jogo
amoroso: disse baixarias, humilhei, fui tóxica e, por que não
reconhecer, até abusiva. O amor é mesmo uma trilha minada.
Nele sobressaem qualidades e defeitos dos que ousam pisar seu
território. Mas esses lapsos de bom senso, estética e elegância
não perfazem um monstro. E, infelizmente, por imaturidade,
fui exposta a monstruosidades.
Até o instante em que compreendi que ser respeitada era algo
inegociável. Sofri dores que não acredito serem necessárias. Pelo
contrário, devem ser combatidas. Não tive acesso a uma formação
saudável do meu eu sexual, uma vez que esse assunto foi descarta-
do da planilha educacional de minha família, ou tratado como um
tabu cheio de pecados e proibições. Quando tive o meu primeiro
namorado, por exemplo, fui cuidadosamente alertada pela minha
avó que eu deveria deixá-lo “à vontade para sair”, uma vez que
os homens tinham necessidades que eu não poderia suprir. Ou
seja, ele podia ter casos, já que a minha condição era de não poder
trepar. A culpa foi tão grande, que, somente um ano depois de
iniciar esse relacionamento, comecei a minha vida sexual. De for-
ma errada, sem apoio, sentindo-me culpada, imoral e totalmente
desinformada. Obviamente fui bastante traída. O pacote traição PÓS-F. 31
já veio acoplado à minha condição feminina. Assim foi para mi-
nha avó, para minha mãe – que não se resignou a ele e se separou
quando descobriu que meu pai tinha uma amante há anos. Mas
que, mesmo assim, e de maneira paradoxal, agiu como se isso não
tivesse que ser questionado – deveria ser igual para mim. Mas a
traição não é um bem exclusivo dos homens, graças a Deus. E
esse foi o menor problema nos relacionamentos que tive, apesar
da constância desse “pré-requisito” masculino. Apanhei muito
em dois longos relacionamentos que tive, ambos doentios. Não
sabia que essa violência era inaceitável. Não assisti a nenhuma
mulher da minha família passando por tal situação, não fui criada
num ambiente violento, mas a ausência de autoestima devido à
culpa inserida na minha sexualidade me deixou numa posição de
“merecimento”. Não tive acesso a uma figura masculina constan-
te, assisti a traições consecutivas em minha casa, não era virgem,
nem prendada, nem mesmo “apresentável” para a sociedade, por
conta de minha aparência andrógina, então habitei numa camada
de existência meio sem sentido útil. Talvez fosse mesmo alguém
que merecesse apanhar, era o que talvez eu achasse.
Essa adolescente que fui, e por alguns anos também a adulta,
no início, permitiu brutalidades. Repare no termo permitiu. Ele é
usado por uma mulher livre, que hoje tem 47 anos e é escritora.
Eu deveria cortar essa palavra dessa narrativa, mas a manterei
como sinal de alerta. Porque uma menina não deve ser acusada
de permissiva porque foi agredida e violentada. Uma mulher não
deve ser acusada de ter permitido qualquer agressão. Não per-
miti as brutalidades que sofri. Apenas, durante alguns anos, não
sabia que elas eram indesculpáveis. 
Uma vez que acessei os limites, bastante claros, e através
do amor, do que nunca mais me “permitiria” sofrer, noto que as
minhas relações com os homens, fossem eles amigos, namora-
dos, amantes, chefes, tornaram-se muito saudáveis e amigáveis.
Eu não me “permiti” ser machucada, mas me mantive num pa-
drão doentio de relacionamento, que, mesmo brevemente, me
deixou “acostumada” e normalizou aquilo que é, como já disse, PÓS-F. 32
inaceitável.
Por outro lado, sei que também já sofri grosserias efetivas
por parte de mulheres, e que causaram grandes estragos na mi-
nha vida profissional, porque estava lidando com mulheres que,
pelo visto, não estavam satisfeitas com a minha liberdade e com a
minha felicidade como mulher. Eis a questão: até que ponto, para
uma outra mulher, mais do que para um outro homem, podemos
ser livres? Vislumbro aqui o momento em que isso tudo se des-
faz, quando não há mais necessidade de nenhum dos discursos.
O feminismo alimenta o machismo e vice-versa. E, digo: só vai
existir a necessidade de um feminismo radical enquanto alimen-
tarmos a existência do machismo. Então acredito que a questão
maior que deveria estar sendo discutida, que é o outro, o respeito
ao outro, seja de que sexo for, continua sendo desmerecida em
nome de uma bipolaridade, que é própria da natureza humana.
E isso me choca. Isso é chocante. E isso tem se tornado histérico
nos manifestos feministas atuais. É chocante. É chocante lidar-
mos – ainda – com a contingência primária do ser: se é homem
ou se é mulher. E não pensarmos a partir do secundário, com a
capacidade do ser de se transformar e se transformar; e dos gê-
neros, de se transformarem e se transformarem. É inevitável que
eu esteja mais atenta ao sexo feminino, por ser mulher, por ser
mãe de três mulheres e por entender que sim, que a mulher pode
ser machucada. Acredito que, por ser mais bonita e mais tátil,
ela pode ser manipulada de maneira indigesta com mais facilida-
de. Há, contudo, um desconforto quando você exclui o homem
desses riscos, só porque ele é homem. Como mãe também de um
homem, fico muito preocupada com essa situação.
Sei que, como mulher, posso ser considerada uma minoria
e usufruir disso para fortalecer o meu discurso. Mas sejamos
muito cuidadosas ao nos assumirmos como minoria. Sempre,
em qualquer discurso, é possível haver uma minoria, e uma mi-
noria da minoria... Em qualquer situação, real ou inventada. Tal-
vez seja mais confortável estar no lugar de minoria. E, sob esse
ponto de vista, o homem também pode pertencer a uma minoria. PÓS-F. 33
Quando, por exemplo, ele se assusta frente a esse discurso em
que todo homem se torna imediatamente algo “ruim”, ele já está
sendo colocado à margem. E torna-se pertencente a uma mino-
ria. Hoje percebo muito mais uma enorme cobrança no meu ma-
rido, Alexandre Machado, como homem – eu o vejo mais frágil.
Vejo que está numa circunstância de medo, de medo no que se
refere ao posicionamento dele quanto à família (como pai e ma-
rido) e quanto ao trabalho. E chego à conclusão: ele está mais
assustado do que eu. Observo também meu filho e percebo que
ele é extremamente frágil e que ele está muito confuso dentro
desse papel que a sociedade lhe dá, sendo o menino sensível que
é. Ele tem uma natureza emotiva de chorar e de se ressentir. E
eu já vejo isso como algo prejudicial, que a sociedade não assi-
mila. Como nós educamos esses meninos? Como podemos ser
receptivas quando percebemos também neles uma situação de
inadequação?
Hoje sinto pena do homem. E, afirmo mais uma vez, só vai
perseverar a necessidade de um discurso feminista radical en-
quanto continuarmos alimentando o sexismo – de qualquer ma-
neira que o sexismo possa existir. Vejam bem, não estou pro-
pondo diminuir as necessidades de manifestos feministas nem a
urgência de muitas causas que por eles são defendidas. Muitas
dificuldades e circunstâncias injustas da sociedade contemporâ-
nea têm um histórico sexista e reconheço que o discurso feminis-
ta é por demais verdadeiro, sofisticado e necessário. Mas o fato é:
neste momento, ninguém está pensando no homem. Por isso que
todo o discurso pode vir a ser tenebroso, porque nele uma bipola-
ridade está intrínseca quando, na verdade, somos todos potencia-
lidade pura – e temos total liberdade sexual. Podemos estar numa
hora de um lado e, no momento seguinte, do outro. Por isso, pre-
cisamos de um discurso diferente, um discurso que seja sensível
a essa potencialidade, e que acolha os dois gêneros.
V
ANI E RUI DISCUTEM: PÓS-F. 34
– VANI, ACHO QUE A GENTE
DEVIA DAR UM TEMPO.
– OI?
– A GENTE. DAR UM TEMPO.
ACHO MELHOR.
VANI DÁ UMA RISADINHA, COMO SE ELE TIVESSE FEITO UMA
PIADA.
– TÔ FALANDO SÉRIO.
– RUI, HOMEM NÃO PEDE PRA DAR UM TEMPO. QUEM PEDE PRA
DAR UM TEMPO É MULHER.
– QUEM DISSE?
– TODO MUNDO SABE.
– ISSO É CONTRA A CONSTITUIÇÃO, SABIA?
– VOCÊ JÁ VIU ALGUMA MULHER FALAR “OLHA, TE ADORO, MAS
AINDA NÃO TÔ PRONTA PRA ASSUMIR UM COMPROMISSO”?
– NÃO.
– PORQUE É COISA DE HOMEM. E PEDIR PARA DAR UM TEMPO É
COISA DE MULHER.
– O SÉRGIO E A ANITA DERAM UM TEMPO E FUNCIONOU SUPER
BEM.
– VOCÊ VAI INSISTIR NESSA FRESCURA?
– NÃO É FRESCURA.
TÔ COM A SENSAÇÃO QUE NÓS DOIS PRECISAMOS FICAR UM
POUCO SOZINHOS, PRA PODER AVALIAR O QUE RESTOU DAQUILO
QUE UM DIA FOI.
– É FRESCURA.
PÓS-F. 35
A quem não nos enxerga PÓS-F. 36

Oi, estou bem aqui na sua frente, mas você insiste em não
me ver. Tudo bem, opção sua, cada um enxerga o que quer. O
problema é quando você, sem ter ideia de como sou, resolve dar a
sua visão sobre mim.
Talvez você não se enxergue também, antes de mais
nada – e assim me tire por parecida com você. Errando
completamente. Para começar, faço questão de ver as pessoas ao
meu redor, e isso faz toda a diferença do mundo. Percebo que
todos têm algo de especial, estando aí a graça. Percebo belezas
que não são minhas, estando aí o prazer. Percebo inclusive você,
parado bem na minha frente, desviando seu olhar para lá e para
cá, nervoso com a minha presença, estando aí o ridículo.
Veja bem, não há o que temer em mim. Não quero nada
que seja seu. E não sou nada que você também não seja, pelo
menos um pouquinho.
Você não precisa gostar de mim para me enxergar, mas
precisa me enxergar para não gostar de mim. Ou gostar, e
talvez seja exatamente isso que você tema. Embora isso não faça
sentido, já que a vida é bela, justamente, quando estamos diante
daquilo que gostamos, certo?
Não vou dizer que não me irrita essa sua cegueira
específica com relação a mim, pois faço de tudo para ser
entendida. Por todos. Sempre me esforço ao máximo para que
isso ocorra, aliás; então a sua total ignorância a meu respeito,
após todo esse tempo, nós dois tão perto, mexe, sim, levemente,
com a minha paciência.
Se for essa a sua intenção, porém, mexer com a minha
paciência, aviso que anda perdendo sua energia em besteira,
pois um mosquito zumbindo em meu ouvido tem um efeito
PÓS-F. 37

semelhante. E, se me dou ao trabalho de escrever esta carta para


você, é porque sei que você também não será capaz de enxergar o
que há nela.
Explicando melhor: preferiria que você me esquecesse,
mas, até para poder me esquecer, você vai ter que me enxergar.
Enquanto não me olhar de frente, ao menos uma vez, ao menos
por um segundo, vai continuar assim, para sempre, fugindo
sistematicamente da minha imagem – um escravo de mim, em
fuga constante, portanto.
Pode abrir os olhos, vai ver que não sou um bicho de sete
cabeças. Sou bem diferente de você, como já disse, mas isso é
ótimo. Sou melhor que você em algumas coisas, pior que você
em outras – acontece. No que eu for pior, pode virar para outro
lado; no que eu for melhor, cogite me admirar.
“Olhos nos olhos, quero ver o que você faz...” Sempre quis
cantar essa do Chico para alguém.
“Olhos nos olhos, quero ver o que você diz...”
Pronto, um sonho realizado. Já estou lucrando com a
nossa relação, só falta você. Basta ver o que eu posso lhe mostrar
e enxergar o que eu posso ser para você.

Beijos,
F.Y.
PÓS-F. 38
2
EU NÃO ADMITIA
O FEMININO
Raspei a cabeça durante onze anos, por pura
punição. Eu não admitia o feminino. Não queria
parecer delicada diante do mundo, porque achava
que o mundo ia me machucar.
R
aspei a cabeça durante onze anos, por pura punição. Eu PÓS-F. 40
não admitia o feminino. Não queria parecer delicada
diante do mundo, porque achava que o mundo ia me ma-
chucar. Hoje vejo que sou uma mulher forte e que faço
diferença na vida dos meus filhos, porque sei que são
crianças que não foram “quebradas” e que vão ser adul-
tos muito mais fortes do que eu. E, aí, falo para mim mesma: deu
tudo certo, querida. Deu tudo certo.
De fato, analisando minha vida, desde pequena, nunca tive a
consciência de minha beleza ou de “ser bela”. Nunca fui bonita
para a minha família – que é uma família de pessoas muito boni-
tas. Minha mãe era muito bonita, minha avó paterna e materna,
ambas, lindas. E a minha beleza sempre esteve ao lado de um con-
dimento de “estranheza” que não era apreciado em minha casa.
Portanto, repito, nunca tive conhecimento da minha beleza, fato
que acho até... bem razoável...
Penso que você não se crer bonita é uma boa medida para não
ficar uma pessoa burra. E digo isso tanto para homens como para
mulheres. Não adianta. Se você se crê bonita, já se coloca numa
condição muito volátil. A beleza sempre será relativa e sempre
dependerá do olhar e da aceitação do outro. E ninguém quer de-
pender sempre do outro que o olha. Sei, contudo, que, para so-
breviver, a beleza, para uma mulher, é uma arma – que deve ser
usada. Para sobreviver, a mulher precisa se esforçar pela própria
beleza, porque vivemos em guerra, e é guerra o tempo todo. Vi-
vemos, na verdade, em busca desse equilíbrio: de reforçar o belo
e, ao mesmo tempo, de nos reforçar como sujeitos – como vozes
– no mundo bélico contemporâneo. Ao mesmo tempo em que
precisamos ser aceitas pela sociedade, também não queremos de-
pender da sociedade. Queremos ser belas, mas não queremos nos
submeter ao que nos impingem que seja belo.
Então esse discurso de que a beleza não precisa estar a
nosso serviço, considero isso uma mentira. Para uma mulher
sobreviver, ela precisa cuidar da beleza, mas não apenas dis-
so. Ela precisa, também, procurar se sustentar como sujeito e,
como qualquer indivíduo em sociedade, ter um discurso que PÓS-F. 41
lhe é próprio, uma história que lhe é própria. É um equilíbrio
necessário que é muito sublime. A guerra da mulher é uma
guerra que é silenciosa e que usa de artifícios muito mais inte-
ligentes do que a dos homens, nas guerras propriamente ditas
de nossa história. Para a mulher, a beleza é uma necessidade.
E isso, para uma mulher, significa estar a serviço da beleza?
Sim. Também. Além, claro, de outras coisas de seu interesse
que venham a fortalecê-la.
Com exceção – sempre – das sonsas. Essa personagem é pró-
pria do feminino. A sonsa é sensacional: jogadora implacável,
que quase sempre ganha todas as partidas do xadrez amoroso!
Observo muito, conheço muito. As sonsas, elas não trabalham,
elas fingem que trabalham, são extremamente sagazes em domi-
nar qualquer conflito; elas não causam qualquer conflito. Elas
jogam a sonsice no conflito e o conflito se esvai. A sonsa viaja
muito. A sonsa ganha carro. A sonsa faz muita ginástica tam-
bém (e usa muito da beleza como arma). As sonsas são livres
e não parecem ser livres, nem sequer reivindicaram isso. Não
estão nem um pouco interessadas em reivindicar nada. Eu, se
me fizer de sonsa no meu “xadrez”, estarei aniquilada. É meio
a meio aqui em casa. Se eu me fizer de sonsa e comprar uma
joia para mim, quem vai pagar a joia sou eu. Tenho um misto de
sentimentos contraditórios sobre essa mulher, que vive da pro-
fissão sonsice; ao mesmo tempo que fico encantada com a sua
inteligência, diplomacia, frieza e “boa vida”. Acabo por consi-
derar a sonsa a mais perigosa das espécies femininas. Eu sou a
antissonsa. Enquanto me exponho em nome da liberdade e, por
isso, pago um preço altíssimo, ela se beneficia da minha luta,
enquanto assegura aos homens uma entidade de “recatada e do
lar”. Eu não teria dom para ser sonsa. É uma questão de capa-
cidade. Não adianta. Tem coisas que você até deseja ser, você
provoca um pouco, atua um pouco, mas tem um limite a sua
atuação. Você não aguenta. É como ser puta, amante, submis-
sa, personagens clássicos femininos, não adianta atuar, deve-se,
apenas, ser. Dá um trabalho danado, porque a sonsa, ainda mais PÓS-F. 42
do que a puta e a submissa – que se submete por masoquismo e
carência –, realmente tem que estar a serviço do outro e só do
outro. E como usa a beleza como arma... Porém depende com-
pletamente da aceitação do outro, principalmente dos homens,
para viver suas sonsices.
Bom, depois dessa explicação sobre as sonsas e de deixar
claro para o(a) leitor(a) que a valorização da beleza é uma das
armas das mulheres, uma arma muito potente, inclusive, de-
vemos reconhecer que o ser humano precisa estar a serviço de
tudo, o tempo inteiro. Tanto a mulher como o homem. Então
pensando agora no homem: você acha que o homem vai sobre-
viver, num contexto social, na sua relação com o mundo, se ele
for mais bem-sucedido? A resposta é sim, e isso lhes é uma co-
brança. Eles estão a serviço disso. Assim como a mulher está,
querendo ou não, a serviço da beleza. Os homens precisam ser
bem-sucedidos? Sim. Quando me casei com Alexandre Macha-
do, assumo que não me casei por dinheiro, nem nunca o faria.
Mas o que me atraiu na escolha foi o fato de ele ser um profis-
sional bem-sucedido. Nunca quis que ninguém me sustentasse,
mesmo que a princípio isso tenha acontecido. Eu estava à pro-
cura era de alguém que somasse.
Tenho um amigo que me disse uma vez, brincando, algo
que reflete bem o cansaço imposto ao homem de ser o salvador.
Esse amigo afirmou que as mulheres escolhem um homem da
seguinte forma: quando ele come menos do que ela, ao menos
nos primeiros encontros – e jamais pede sobremesa –, e quando
consegue carregá-la no colo por, no mínimo, cinco minutos. Os
homens são, portanto, doutrinados culturalmente e por condi-
ções físicas (não adianta ficarmos fazendo uma análise antropo-
lógica) para socorrer. Socorrer o outro, incluindo as mulheres
e as crianças. Nesse sentido, acho que isso não mudou. Nós,
mulheres, continuamos desejando homens bem-sucedidos, ou
aqueles que estão a serviço de se tornarem bem-sucedidos – o
mundo tem lá suas muitas injustiças. Aqueles homens que se es-
forçam têm um grande mérito. Quando se deixa de estar a servi- PÓS-F. 43
ço de algo é que é a questão. De repente, um gênero empurra ao
outro os seus erros, as suas responsabilidades, suas angústias.
Seus quereres insatisfeitos, suas culpas, suas liberdades repri-
midas, liberdades que, muitas vezes, esbarram no limite do que
é o outro e no respeito ao que é do desejo do outro. Mas, nessa
guerra de conquistas de desejos e de territórios, cada conquista
é mérito de um indivíduo, e não de um gênero. Cada um sabe
melhor de suas armas para entrar na guerra, seja munir-se de
beleza ou de trabalho e de dinheiro; cada um sabe melhor de
suas armas.
E, nessa continuidade infinita das obviedades, dos detalhes,
das sutilezas que regem a humanidade, a mulher continua sendo
algo que a cultura e a moral insistem em querer calar. E a parte
mais perigosa dessa opressão, dessa mordaça que há muito acom-
panha o eu feminino, é a participação efetiva da mulher nessa
causa. Eu diria até que, nos dias atuais, a mais perigosa adver-
sária da mulher é a própria mulher. Não falo das milhões que vi-
vem em total mudez, devido a circunstâncias sociais, religiosas,
políticas etc., mas das mulheres que, por meio de um discurso
dotado de muitas palavras, conseguem, com toda uma retórica,
calar a liberdade. São as que habitam na cultura, que se dizem
feministas, que são versadas em muitas citações, mas que não
aceitam um enorme e eloquente senão na luta que defendem: o
homem não é o nosso inimigo. Somos nós mesmas.
Nesse espetáculo bufo a que estamos assistindo, a mulher
se coloca, conscientemente, como vítima, mesmo tendo condi-
ção de não ser, como aquela que sempre esteve à mercê de um
assediador, quando muitas vezes instigou o assédio ou, me-
lhor ainda, quando muitas vezes assediou, seduzindo aquele
de quem deseja conseguir algo. Dessas mulheres, eu diria ter
medo. Porque elas calam segredos muito mais antigos e obscu-
ros, segredos que foram muito bem guardados, justo para serem
usados em caso de sobrevivência. Dentre eles, o segredo de que
nós seduzimos para alcançar benefícios. Nós usamos a beleza,
a sexualidade, a juventude para conseguir algo. Todas? Não sei. PÓS-F. 44
Sempre? Não. Isso significa que nenhuma conquista tenha sido
feita, por cada uma delas, pelo mérito único de seu talento e ca-
pacidade? Não. Eu jamais ofereci alguma coisa em troca de uma
benesse porque não quis. E o melhor: porque ninguém nunca
me propôs. Seria pelo fato de não ser bela, sensual, atraente?
Não. Foi porque eu nunca estabeleci no jogo essas cartas. Mas é
preciso deixar claro que não falo aqui sobre ser coagida e, muito
menos, estuprada. Existe uma grande diferença. Jamais pode-
mos aceitar, tanto as mulheres quanto os homens, nenhuma si-
tuação que justifique o sexo não consensual, ou até qualquer su-
til indicação ao velho e sabido hábito, de que se utilizam os que
têm poder, da implícita “troca de favores”. O que estou falando
é que, se dermos ao discurso de defesa esse tom de coadjuvantes
frágeis, estaremos sempre “cacarejando” feito galinhas assus-
tadas. Quando, sejamos honestas, mulheres que não estão em
situação de penúria social são muito bem-dotadas de sensores,
vozes e recursos para se protegerem. E não será bancando “as
sonsas” que conseguirão. Há uma equação bem clara para essas,
as privilegiadas: “X+Y = XY”. E sei que falar sobre isso poderá
suscitar problemas com elas. Essa é a mordaça mais perigosa, a
de não se poder discordar.
E essa grande questão que surgiu agora, que investiga o
porquê de as grandes obras de artes serem, em sua maioria, re-
trato ou expressões de mulheres nuas... É claro! Eu, como artis-
ta, não tenho dúvida. Não me interessa desenhar homens nus.
Não me atrai. É uma questão de proporções. A mulher é mais
bela. Definitivamente é a espécie humana mais interessante.
Inevitavelmente. Para qualquer artista, é inevitável. Para uma
escritora, descrever uma mulher é muito mais interessante do
que descrever um homem. A mulher é mais bonita, como tecno-
logia humana mesmo. E até isso se tornou uma reivindicação,
um conflito, por parte das mulheres. E nessas discussões, per-
demos muita energia. Poderíamos estar nos fortalecendo com a
beleza do feminino e ganhando territórios. Mas a beleza pode
atrapalhar? Sim. Tudo pode atrapalhar. Todo e qualquer discur- PÓS-F. 45
so que transforma o outro em coitado é um grande disparador
do que atrapalha, um disparador do problema. Sem sombra de
dúvidas, temos que falar sobre leis Maria da Penha, sobre todo e
qualquer tipo de assédio, de brutalidade, de manipulação profis-
sional e de desrespeito no ambiente de trabalho, mas continuo
insistindo que isso não é uma coisa unilateral. Nós nos manifes-
tamos tanto e, ao mesmo tempo, deixamos de olhar para o lado
do outro, que também é desrespeitado, por motivações outras.
Acho que é da natureza humana esse conflito, independente do
gênero, volto a dizer.
Eis que, de súbito, nunca as mulheres reclamaram tanto. Mas
acredito que tudo isso se deve ao fato de estarmos atravessando
uma época extremamente obscura. Só não creio que seja, cate-
goricamente, uma época contra a mulher. O homem ainda está
a serviço de, assim como a mulher está a serviço de, tanto da be-
leza (homens e mulheres), como de se tornar bem-sucedido ou
bem-sucedida. Isso se faz importante aos dois, e se engana quem
pensa que o homem está contra a mulher, ou vice-versa. A grande
crise começa quando se deixa de “estar a serviço de”.
E
POSSÍVEL QUE ELE TENHA CRUZADO PÓS-F. 46
VÁRIAS VEZES COM AQUELA QUE
DEVERIA SER, OU SERÁ, O AMOR DA
SUA VIDA. TALVEZ ESTIVESSEM NO
MESMO PARQUE UM DIA DESSES,
NUMA HORA POVOADA DE MENDIGOS
OU VELHOS, OU GENTE CANSADA ESPERANDO O TEMPO PASSAR.
ELE ESTARIA SENTADO SOZINHO NUM BANCO – ESPERANDO
AQUELA HORA PASSAR – E ELA VIRIA POR ALI, POSSIVELMENTE
PARA CORTAR CAMINHO. SIM, A MULHER DOS SONHOS DELE
ANDARIA UM POUCO APRESSADA, MAS ATENTA A UMA FLOR
OU OUTRA. A MULHER QUE ELE TANTO AGUARDA NUNCA IRIA
CONTORNAR UMA PRAÇA. PROVAVELMENTE, ATÉ CHOROU AO
PERCEBER QUE A MAIORIA DELAS, DE UNS TEMPOS PARA CÁ,
TORNOU-SE GRADEADA. E QUE AS GRADES ATRAPALHAM SEUS
PASSOS ACELERADOS, IMPEDEM QUE ELES CORTEM CAMINHO
POR ENTRE FLORES. ESSA É A SUA MULHER TÃO SONHADA. MAS
ELE OUVIU DE ALGUÉM, EM ALGUM LUGAR, OU NOTOU, POR
EXPERIÊNCIA PRÓPRIA, QUE A MULHER SONHADA É QUALQUER
UMA QUE ESTEJA À MÃO NO MOMENTO CERTO; E ALGUMAS
SABEM SE MAQUIAR MUITO BEM.
PÓS-F. 47
Prezada Mulherzinha, PÓS-F. 48

se existe alguém que pode falar o que vou falar para você,
sou eu. Então, por favor, tenha a humildade de admitir que sei
do que estou falando. Pois o que eu lhe direi é duro, mas poderá
lhe fazer um bem enorme.
Chega. Chega de se comportar assim. Como se estivesse
lutando pelo posto de rainha da bateria. De Miss Maravilha
do Mundo. Basta de ataques, dessa competitividade suburbana
— eu sou a melhor, eu sou a mais alta, eu sou a mais gostosa
do pedaço. Ninguém está ligando a mínima se você corre dez
quilômetros ou se aplicou Botox nessa sua testa sem expressão.
Ou se você é assim porque ainda não passa de uma menininha
que quer ser mais perfeita do que a mãe, conquistar o amor do
pai e ser a primeira da classe. Esse seu afã psicopata de vencer
todas as paradas só lhe deixa ridícula. E me faz querer usar
uma expressão que odeio: coisa de mulherzinha.
Mulherzinha é que tem essa mania de estar sempre
desconfiada das amigas, porque todas teriam inveja do seu
corpão e do seu cabelão estilo falso-louro-natural-cinco-tons.
Lamento informar, querida, que ninguém sente inveja de
você. Por isso, chega de dizer por aí que, para não atrair olho
grande, é bom ficar de bico fechado sobre a tal possível promoção
que você terá no trabalho. Relaxa, ninguém está a fim de ser
você. Tente, portanto, ser você com mais leveza. E lembre-se:
esse negócio de dizer que não se pode confiar em mulheres só
comprova que você é uma pessoa maliciosa. Sendo que isso está
longe de ser porque você é fêmea.
PÓS-F. 49

Quando vejo você tagarelando sobre seus feitos sexuais,


me sinto num filme ruim com ginasianas americanas. Todas
fanhas e excitadas. Chega, tá? De azucrinar os outros com essa
sua boca-genital lambuzada de gloss, cuspindo baixos clichês,
simulando uma modernidade que você não tem. Nunca mais
caia no ridículo de fazer “sexo casual” com nenhum tipo de
homem, mais velho ou mais novo, casado ou solteiro, porque
todo mundo já sabe que você finge tudo. Que goza, que não se
sente fácil, que não liga quando os caras não telefonam no dia
seguinte. Seja honesta uma vez na vida: confesse. Que você não
é nada tão wild quanto se vende. Que não sabe falar tão bem
inglês assim. Que fez escova progressiva. Que tem dermatite.
E aí, enfim, você terá alguma paz, pois se reconhecerá
humana, e não a Barbie boba que procura ser. Acredite: idiotice
só faz você ser charmosa para os cafajestes. Se continuar assim,
nunca vai aparecer aquele cara bacana que você gostaria que
aparecesse; para lutar por você, até lhe conquistar, e destruir
essa sua linda silhueta com uma gestação de 15 quilos.
É triste, amiga Mulherzinha, mas você terá que abrir
mão da máscara de rímel que cobre a sua verdade.

Beijos,
F.Y.
3
POR QUE VOCÊ NÃO
EXPERIMENTA SEU
CORPO ANTES?
Eu já fui muito masculina. Mas, quando penso nas
pessoas que se operam para mudar de sexo, acho
uma precipitação. A sexualidade não precisa de
nada disso. Esse discurso de que as pessoas nascem
com uma condição que não é a delas – uns chamam
de condição, outros de bênção – , enfim, acho,
definitivamente, a mudança do corpo algo muito
precipitado.
C
omo disse aqui, eu já fui muito masculina e, por muito PÓS-F. 52
tempo, rejeitei o feminino em mim. Mas, quando penso
nas pessoas que operam seus corpos para mudar de sexo,
acho uma precipitação. A sexualidade não precisa de nada
disso. Esse discurso de que as pessoas nascem com uma
condição que não é a delas – uns chamam de condição, ou-
tros de bênção –, enfim, acho, definitivamente, a mudança do cor-
po algo muito precipitado. Por que não experimentar o seu corpo
antes e descobrir o seu potencial?
O que quero dizer é: seja antes – e apenas depois de ser esse
corpo, mude de opinião. Quer deixar o cabelo crescer? Pode dei-
xar o cabelo crescer, antes de qualquer coisa. Eu, infelizmente,
acabo sempre pensando como mãe. Por mais que tenda a condi-
cionar, inevitavelmente, minhas filhas a algumas coisas, e meu
filho a algumas outras coisas, esse politicamente correto dos
brinquedos assexuados, das cores, pelo amor de deus, é muito
louco não poder brincar de boneca! Eu gosto da ideia de deixar
eles crescerem com liberdade de escolha. Se gosta de laço, põe
laço. Se não gosta, basta tirar a porra do laço. Eu, por exemplo,
nunca fui uma criança que gostasse de brincar de carros. Mas,
também, nunca me impediram de brincar de carro. Hoje adoro
carros. Não se trata de uma condição, e, sim, de vontades.
Todo mundo sabe que eu já tive namorada. Meus filhos têm
padrinhos gays, e eu nunca tive problema nenhum com isso. In-
clusive no meu livro O efeito Urano, falo da questão dessa mulher
que se apaixona por outra e que acha que fez uma grande merda.
O efeito Urano foi uma intenção minha de falar da sexualidade
das mulheres entre elas, que, na época, ainda não era discutida
como hoje em dia é. O que percebo atualmente é que as mulhe-
res, no geral, tendem a assumir a bissexualidade. E isso mostra
que o corpo feminino é tão potente no seu erotismo, que esse é
um caminho natural. Em O efeito Urano, peguei muito bem essa
questão, acho até que fui visionária.
Não vejo, portanto, problema nenhum, nem modernidade,
em se experimentar a sexualidade. Agora, não vou ficar ques-
tionando o estilo da roupa de meus filhos, ou o corte de cabelo, PÓS-F. 53
por exemplo, isso acho que é uma bobagem muito grande. Não
chega nem a ser a negação de um fato. Se uma pessoa não quer
usar um laço, não deve usar o laço – isso não quer dizer abso-
lutamente nada. Mas vira conflito; e pessoas morrem por causa
disso. Muitas vezes, a partir de uma pequena escolha momen-
tânea, a pessoa deve definir se é gay ou se é hétero. E aquele
momento pode, no dia seguinte, não significar mais nada para
aquela pessoa. A vestimenta não é nada. Ou talvez, quando
muito, seja um estado transitório. Visto uma roupa sexy e tal-
vez me sinta dessa forma naquele momento. Posso usar uma
fantasia e atuar nela.
A sexualidade de uma pessoa é tão própria, tão pessoal, mas
estamos numa sociedade em que tudo precisa ser contado – à
família, às redes sociais – e, por fim, julgado. E, incrivelmente,
em pleno século XXI, homossexuais ainda são mortos ou tiram
a própria vida. Daí, voltamos ao ponto, será o feminismo a gran-
de discussão, ou simplesmente o outro? O respeito às escolhas do
outro? Lembrando que o outro é um ser único e a quem devemos
todo o respeito.
A quantidade de meninos que são agredidos por serem
gays... eu me preocupo muitíssimo com eles. As meninas me
preocupam sempre, sempre irão me preocupar. Mas, imagina, o
cara ser gay no lugar mais grosseiro, inóspito e machista do Bra-
sil, sem nenhum acesso à cultura. Imagina o que isso vai causar.
Está vendo a fragilidade do assunto? A discussão não pode ser
mais raspar ou não raspar debaixo do braço. Isso, por acaso, vai
destituir o meu valor como mulher e como potência, se eu deci-
dir raspar, ou não, debaixo do braço? Tenho uma filha que não
raspa. Eu mesma passo temporadas sem raspar. E daí? Não me
diz respeito em nada. Não é algo que vou questionar se é certo
ou se é errado.
Hoje em dia sabemos que é preciso pensar antes de se dizer
“o” fulano, porque ele pode ser “a” fulana. E estamos usando
agora o artigo “e”. O “e” de “fulane”. E, de repente, se tornou
uma exigência que as pessoas acertem o artigo do outro. Eu não PÓS-F. 54
quero ter medo de como me refiro ao outro. Sendo homem, mu-
lher, uma entidade híbrida, ou qualquer outra designação, que,
bem sei, jamais irei decorar. Não quero pensar precisamente so-
bre isso, embora entenda que o artigo “e” compreende as poten-
cialidades sexuais que temos em nós. Posso ter pau. Posso não
ter pau. Posso ter pau num momento específico e não ter pau no
outro. Mas todos temos cu – e considero esse um pensamento
razoável. Todos temos cu, ou seja, em algum ponto, somos to-
dos iguais.
Sobre a minha sexualidade, eu às vezes consigo perceber
que não estou pensando como uma mulher, e acredito que es-
teja apenas exercitando um pensamento puro – noto que al-
canço um descolamento do meu gênero. E isso é bom, porque
é isso que me interessa. Outras vezes realmente noto que a mi-
nha condição feminina está incluída naquele pensamento. Por
motivos específicos, com dores que são minhas, dores do meu
eu feminino e que falam sim em nome do sexo feminino. Mes-
mo assim, eu penso tratar disso, da condição do feminino, sem
excluir o leitor e o espectador masculino. Porque creio que
todos nós temos a potencialidade do feminino e do masculino
que deve ser bem trabalhada. Esse é o grande encontro, você
ter o corpo e a alma feminina e lidar com o masculino, Vênus
com Marte. Conseguir a expressão dos dois, conseguir que
homem e mulher trabalhem juntos num único ser. Isso é muito
sofisticado. Maliciosamente, não é do interesse de ninguém
que isso seja pensado. Em tudo, a grande maldade é a ignorân-
cia. E, sem sombra de dúvidas, concretamente, a ignorância é
proposital.
Esses conflitos todos da luta dos sexos, esses conflitos da
luta entre homem e mulher, ainda sim poderiam ser evitados se
tivéssemos uma consciência muito mais sofisticada, tanto da psi-
canálise quanto espiritual. Não por meio do que pregam as reli-
giões, mas da noção de que somos de fato todos iguais. Porque
somos manifestações únicas de um jogo lindo de consciência,
quer você chame de Deus ou não. Mas isso não interessa. Não PÓS-F. 55
seria rentável pensar assim. E tudo o que não interessa é o tempo
inteiro descartado ou considerado balela. E os discursos que são
muito mais lucrativos e que são considerados mais interessantes,
eles surgem e sempre apresentam uma grande briga, seja entre
os sexos, ou mesmo entre religiões.
Sofisticado seria, simplesmente, experimentarmos, sem pré-
-requisitos.
E
, FAZER SEXO COM OUTRA MULHER PÓS-F. 56
NÃO É NADA MAU. NADA MAU.
E É CANALHICE FICAR FALANDO
SOBRE ESSAS COISAS, EU SEI,
AINDA QUE ALGUÉM TIVESSE ME
PERGUNTADO, E NINGUÉM ME
PERGUNTOU. MAS EU DIGO ASSIM MESMO: NÃO É MAU.
SENDO QUASE TERRÍVEL, PARA MIM, AFIRMAR ISSO, NÃO
POSSO NEGAR, É BOM. FOI ASSIM QUE OS ACONTECIMENTOS
SE CONSUMARAM. EMBORA NÃO VENHA CONSEGUINDO
IMPRIMIR O MÍNIMO GRAU DE LÓGICA NESSA NARRATIVA,
PRINCIPALMENTE NOS DETALHES DELA, INCLUSIVE OS
QUE CONSIDERO IMPORTANTES, COMO SE ALGO FOI BOM
OU FOI RUIM, POSSO CONFIRMAR: É BOM. E, DESCULPA,
EM SEXO A QUESTÃO SE RESUME CAFAJESTICAMENTE NA
RESPOSTA A UMA ÚNICA PERGUNTA: FOI BOM OU NÃO FOI?
PEÇO DESCULPAS PORQUE SEI QUE HÁ MUITOS PUDORES
INTELECTUAIS COM RELAÇÃO A CLICHÊS COMO ESSE. A ESSE,
EM ESPECIAL. EXISTE, PORÉM, COISA MAIS CLICHÊ DO QUE
SEXO? NÃO CONHEÇO. SÃO AS MESMAS CARAS, OS MESMOS
RESPIROS, OS MESMOS LUGARES, OS MESMOS EFEITOS.
SEXO É A MEDIOCRIDADE POR DEFINIÇÃO, POIS QUALQUER
UM O FAZ, E IGUALZINHO, DESDE O MAIS BRILHANTE GÊNIO
AO MAIS ESTÚPIDO IGNORANTE. SOMOS, PORTANTO, TODOS
MEDÍOCRES QUANDO TREPAMOS – NADA SERÁ FEITO QUE
ALGUÉM JÁ NÃO TENHA FEITO ANTES, NADA VAI ACONTECER
QUE NÃO SE REPETIRÁ UM MILHÃO DE VEZES. ESTAMOS,
ENTÃO, PRESOS À MEDIOCRIDADE PELO RESTO DA VIDA. A PÓS-F. 57
LAMENTÁVEL MEDIOCRIDADE, QUE SE APROVEITA DESSES
MOMENTOS CONSIDERADOS FUNDAMENTAIS – O ATO
SEXUAL, A CERIMÔNIA DE CASAMENTO, O NASCIMENTO DE
BEBÊS, A MORTE – PARA SE APOSSAR DE NÓS. PORQUE ESSES
SÃO OS EVENTOS MASSACRADOS PELA IDEOLOGIA DO IGUAL,
DO SE SENTIR IGUAL, DA REPETIÇÃO ANCESTRAL CHAMADA
DE TRADIÇÃO. FICA TODO MUNDO NERVOSO E FELIZ NO DIA
DO CASAMENTO, FICA TODO MUNDO OTÁRIO E FELIZ QUANDO
NASCE UM NENÊ, FICA TODO MUNDO RIDICULAMENTE IGUAL
QUANDO ESTÁ APAIXONADO – QUE É O ÚNICO MOTIVO PARA
SE ENVOLVER NUM ATO SEXUAL, A MENOS QUE VOCÊ O FAÇA
POR DINHEIRO. A PAIXÃO – CONCLUINDO – IMPREGNA-SE
DO COMUM COMO UM PAPEL JOGADO NA ÁGUA. SOU CAPAZ
DE UM CHUTE: 75% DAS PESSOAS MANDARAM UMA LETRA
DE MÚSICA PARA QUEM SE ACHAVAM APAIXONADAS. E 80%
JURARAM QUE JAMAIS SENTIRAM ALGO PARECIDO NA VIDA.
E 90% AGIRAM IMPENSADAMENTE, DEIXANDO RECADOS
TOLOS EM SECRETÁRIAS ELETRÔNICAS. E 99% QUISERAM
MORRER QUANDO O TELEFONE NÃO TOCOU. SENDO ASSIM,
PARA QUE PUDORES? EU DIGO CLARAMENTE: FOI BOM PARA
MIM. ALGUÉM AINDA DUVIDA? PODERÁ SER DESIGNADO
COMO BOM O QUE TEM A TEXTURA METAFÓRICA DE UMA
ESPONJA ENSEBADA? O QUE TEM O SABOR METAFÓRICO
DAS OSTRAS? O QUE TEM CABELOS PIXAINS POR TODA E
QUALQUER PARTE? O QUE NOS EXIGE TANTO DOS MÚSCULOS,
DESDE O PESCOÇO ATÉ A LÍNGUA, PARA QUE MANTENHAMOS
A CADÊNCIA CORRETA? OCASIÃO DIFÍCIL COMO ESSA, NA PÓS-F. 58
QUAL SE LUTA PELO FÔLEGO E SE MERGULHA EM MUCOSAS,
PODE SER AGRADÁVEL? BOM, QUANDO VI UM PAU PELA
PRIMEIRA VEZ NÃO FOI PRECISAMENTE MARAVILHOSO.
PODEREI EU, ENTRETANTO, COMPARAR PAU, PERLA E BOCETA?
POIS EU DIGO QUE OS TRÊS ME SÃO IDÊNTICOS, QUANDO O
ASSUNTO É MUDAR DE OPINIÃO. HOJE GOSTO DE PAU E PERLA.
HOJE GOSTO DE BOCETA. E QUE ME CRUCIFIQUEM. QUE ME
AMORDACEM. QUE CUSPAM EM MIM. QUE TAQUEM OVOS
PODRES EM MIM. TRANSFORMEI-ME EM GENI POR HAVER
GOSTADO. SOU, NESSE INSTANTE, UMA DEVASSA. PORQUE,
SE ME SOBRASSE ALGUMA DIGNIDADE, ALGUM ORGULHO, EU
NÃO CHUPARIA NOVAMENTE A SÓSIA DE UM MOLUSCO. O QUE
RESTAVA A MIM, PARA SER MENOS DESPREZÍVEL, MENOS
NOCIVA, MENOS NOJENTA, ERA NÃO TER GOSTADO. MAS EU
ADOREI. ADOREI.
PÓS-F. 59
Aos vendedores de ilusão PÓS-F. 60

Lamentamos informar que estamos terrivelmente


decepcionadas com os seus produtos. Primeiro, vocês nos
venderam a ilusão de um Príncipe Encantado, mas ele nunca
chegou. Depois, nós compramos a ideia de um Novo Milênio,
que chegou todo estragado. Mais recentemente, fomos levadas
a acreditar que Seios Maiores nos trariam a felicidade. Porém
nada mudou.
Até quando vocês vão continuar assim, nos enganando
dessa maneira? Nossa paciência tem limite. E não foram essas
as únicas ilusões que alimentamos ao longo dos anos e deram
problemas. Vejam a lista:
Orgasmo vaginal – Fomos convencidas por especialistas
de que poderíamos obter o orgasmo através da simples
penetração, sem a estimulação do clitóris. Não apenas
terminamos, todas, frustradas em nossos investimentos nesse
sentido, como também tivemos de forjar falsos resultados para os
nossos parceiros no negócio, a fim de evitar maiores danos.
Brasil, o país do futuro – Venderam-nos essa ideia por
anos seguidos, através de fartos investimentos publicitários. Pois
bem, o futuro chegou e continua a mesma porcaria. Disseram
também que o grande problema do país era a dívida externa,
algo sem solução ou remédio. Agora, de repente, essa dívida
deixou de existir e ninguém toca mais no assunto.
Novidades contra celulite – Todo dia, vocês nos
empurram uma nova solução definitiva para as celulites em
nosso corpo, uma mais sensacional que a outra. Se juntassem
todo o dinheiro já gasto pelas mulheres nessa luta inglória, daria
para acabar com a fome no mundo.
PÓS-F. 61

Homem fiel – Nesse caso, venderam-nos algo que


simplesmente não existe. Não há um só fato científico que
comprove a existência de um ser humano masculino adepto da
fidelidade – ao contrário, todas as experiências indicam que tal
fenômeno é realmente impossível. Com um agravante: não é a
primeira vez que somos levadas a crer numa coisa inexistente.
Há quem compre, até hoje, as ilusões da Família Unida, do
Político Honesto e da Amizade Colorida.
Lábios carnudos e naturais – Lábios carnudos só ficam
naturais nas mulheres que nasceram com eles – as sortudas. No
resto de nós, o mais natural é quando fica parecendo picada
de abelha. Resultado: milhões de mulheres com a mesma boca
equivocada. Nos dias de hoje, não conseguimos mais diferenciar
quem apanhou do marido ou quem passou no dermatologista.
Assim sendo, como estamos dentro do prazo para
reclamações, e constatando que essa série de defeitos compromete
seriamente o bom funcionamento de nossas vidas, solicitamos
imediata solução de nossos problemas através da substituição
dos referidos produtos por outros da mesma espécie, em perfeitas
condições de uso.
Ou seja: nós exigimos novas ilusões, o mais rápido
possível. Senão, seremos obrigadas a tomar uma medida
extremamente desagradável: encarar a dura realidade.

Abraços,
F.Y.
4
A SEXUALIDADE DA
MULHER E LINDA
`
A ideia de castração é uma grande mentira.
Um dos livros que vale a pena toda mulher ler
é O relatório Hite, de Shere Hite. Nesse livro
tem perguntas muito específicas, que foram
enviadas com uma metodologia, e foi a primeira
grande pesquisa sobre a sexualidade feminina.
Nele, as mulheres reconhecem que é a primeira
vez que alguém está interessado em saber como
é a sexualidade feminina, e não sob o verniz
do olhar do homem.
A
ideia de castração é uma grande mentira. Um dos livros PÓS-F. 64
que vale a pena toda mulher ler é O relatório Hite, de She-
re Hite. Nesse livro tem perguntas muito específicas, que
foram enviadas com uma metodologia, e foi a primeira
grande pesquisa sobre a sexualidade feminina. Nele, as
mulheres reconhecem que é a primeira vez que alguém
está interessado em saber como é a sexualidade feminina, e não
sob o verniz do olhar do homem. Ou seja, a sexualidade da mulher
descrita pela própria mulher e avaliada por mulheres.
Uma das perguntas é sobre o orgasmo, como é o orgasmo na
penetração, na masturbação e no clitóris. E o livro revela algo
que não é comumente dito: que não existe nenhum tipo de orgas-
mo que exclua o clitóris. Porque, por mais que você não o tenha
manipulado com a sua mão, ou que alguém o tenha manipulado
no ato sexual, o clitóris faz parte da vagina tanto quanto a glande,
que é a parte de maior sensibilidade do órgão sexual masculino,
faz parte do pau. Então é a mesma coisa. Não é possível excluir
nem um nem outro. Outra coisa também que ninguém fala é que
a mulher também fica rija, assim como o homem. Ela endurece,
cresce, fica ereta, tanto quanto o pau do homem. Só que é inter-
no, não está facilmente visível. E daí podemos concluir: não so-
mos castradas. Nós, talvez, tenhamos sido castradas na repressão
do olhar do outro, no olhar da cultura, porque nosso órgão não é
visto. Mas, na verdade, nós ficamos duras e ejaculamos, só que
em outra proporção.
Outro dia, um dia chato até, andei pensando sobre a ereção
feminina. Ninguém fala sobre isso; ninguém conta que fica super-
dura – quando na verdade, a total intumescência, a nossa, pode
vir a ser bem maior do que o pau mais rijo que você já viu. Como
esse dia estava realmente enfadonho, tive uma ideia dessas que
só me trazem problemas, mas que é impossível de esquecer: a de
desenhar uma buceta e fazer disso um panfleto. Acontece que a
ereção do homem ocorre para fora do corpo. E é linda, temos que
reconhecer. A nossa, ela existe, só que ocorre sob a superfície do
corpo, na bainha, e também é muito linda! Mas, nesse dia chato,
como seguem os tempos atuais, não desenhei nem fiz o panfleto PÓS-F. 65
que jogaria aos milhares pela janela, em plena avenida Paulista.
Nesse panfleto, eu sugeriria: “Nos ensinaram a buscar os objetos
fálicos; o masculino. Busque nas dobras o feminino!”
Sobretudo, o que mais me impressiona é que no discurso
do ponto G, que a maioria das pessoas conhece, parece que as
mulheres têm um orgasmo interno errático, como se o orgasmo
clitoriano fosse uma fragilidade de alguém que não conseguisse
gozar efetivamente com a penetração. Então, nesse discurso está
intrínseco que a mulher sem um pau não goza efetivamente. O
pau, claro, é um objeto de fantasia e mentalmente funciona, mas
a satisfação sexual da mulher não necessariamente depende dele.
Essa pesquisa Hite é bonita por mostrar que a mulher não é um
ser incapaz por precisar do clitóris para gozar. E ninguém fala
disso, e muitas mulheres se sentem constrangidas ao manipula-
rem o clitóris. Mas a sexualidade da mulher não é castrada. Ela
é apenas mais misteriosa e sofreu pela demora em ser entendida,
principalmente, porque fisiologicamente é mais interna. Quando
Lacan diz que “a mulher não tem sexo”, acho que ele quer dizer
que ela é, na verdade, toda sexual. É simplesmente lindo! O que
ela não tem é gênero. A mulher é puramente erógena.
UANDO DESCOBRIU SENTIR- PÓS-F. 66
-SE EXCITADA COM AS CENAS
DE AMOR DOS FILMES QUE
ASSISTIA NA TEVÊ, PERCEBEU
QUE ERA A MESMA SENSAÇÃO
DE QUANDO SE TOCAVA NA
VAGINA. NOTOU, PELOS BEIJOS FALSOS DOS ATORES, QUE
EXISTIA NO SEU CORPO UMA EXCITAÇÃO AINDA SEM NOME.
ESSA AÇÃO INGÊNUA, MAS JÁ SEXUAL, COM O TEMPO –
TALVEZ POR REPRESSÕES FAMILIARES OU POR SUA PRÓPRIA
PERSONALIDADE – PASSOU A PARECER COISA DO MAL. NÃO
SE CONTINHA EM SE TOCAR, MAS, LOGO QUE TERMINAVA DE
FAZÊ-LO, SE ARREPENDIA A PONTO DE ADOECER. UMA NOITE,
SONHOU COM O DEMÔNIO, EXATAMENTE COMO ELES SÃO
NOS FILMES DE MÁ QUALIDADE: COM CHIFRE, VESTIDOS
DE VERMELHO CETIM E COM UM TRIDENTE NA MÃO. TUDO
PARECEU MUITO CLARO E VERDADEIRO. NO SONHO, ESTAVA
SENTADA NO HALL DO PRÉDIO ONDE MORAVA, QUANDO ELE
SE APROXIMAVA LENTAMENTE E DIZIA COISAS. NÃO DE
FORMA ATERRORIZANTE – SIMPLESMENTE FALAVA COMO SE
ESTIVESSE CONVERSANDO COM ALGUÉM ÍNTIMO. ANA NÃO
ESCUTAVA O QUE O DEMÔNIO LHE DIZIA, APENAS VIA A CENA,
DE FORA. QUANDO ACORDOU, ESTAVA TRANSTORNADA, COMO
FICA A MAIORIA DAS PESSOAS QUANDO TEM PESADELOS.
MAS ACABOU ESQUECENDO O OCORRIDO. ATÉ QUE MAIS
UMA VEZ SONHOU COM ELE, E TAMBÉM MAIS UMA VEZ
NÃO ESCUTOU O QUE ELE DIZIA. ASSUSTOU-SE, ACORDOU
APAVORADA. TINHA CERTEZA DE QUE AQUILO ESTAVA LIGADO
À EXCITAÇÃO QUE SENTIA QUANDO SE TOCAVA. ERA DAQUELA
FORMA QUE O EXÉRCITO ESTAVA LUTANDO PARA DESTRUÍ-
-LA E CONDUZIR SEUS ATOS PARA O CAMINHO DO MAL E DA
DESGRAÇA. TUDO PARECIA MUITO CLARO PARA ANA. SÓ NÃO
ENTENDIA POR QUE LOGO O DIABO É QUE ESTAVA AVISANDO A
ELA QUE O QUE FAZIA ERA ERRADO. NÃO DEVERIA SER DEUS?
OU, AO MENOS, O SEU ANJO DA GUARDA?
PÓS-F. 68
PÓS-F. 69
Ao clitóris, querido companheiro PÓS-F. 70

A distância entre nós impede que nos vejamos frente a


frente, então resolvi lhe escrever uma carta. Não tenho certeza
do CEP da sua localidade, mas espero que estas linhas cheguem
até você. Primeiramente, gostaria de lhe agradecer pelos grandes
momentos que passamos juntos, todos de tirar o fôlego. Espero
poder repeti-­los assim que tivermos a oportunidade. Nós nos
encontraremos lá, no nosso lugar. Eu, sempre sem tempo; você,
sempre um pouco atrasado. Gosto da nossa relação. Sem grilos
nem cobranças. Sem falsas ilusões. Respeito mútuo é o que eu
diria que temos em nosso longo convívio, e isso não é pouco.
Talvez devêssemos manter um contato maior, não sei,
mas, mesmo assim, não sinto qualquer culpa com relação a
isso. Você, aliás, é o mais calado. E não estou reclamando,
ao contrário. Falo demais às vezes, e você, nesse seu discreto
silêncio, diz tudo o que eu queria dizer. Ou seja, acho que nós
temos personalidades opostas complementares, estando aí o
segredo do nosso relacionamento estável.
Talvez devêssemos, sei lá, ter viajado mais. Ou, quem
sabe, ousado mais. Cansa-me, porém, o excesso de conjecturas, sabe?
Muitos “talvez...” Tivemos bons tempos e maus bocados, mas
sobrevivemos. E é isso o que interessa. Restando-me apenas o
segundo motivo desta carta, que é lhe dar boas notícias. Nós
vencemos. É, vencemos. O machismo opressor perdeu a sua longa
hegemonia sobre a sociedade. Em alguns lugares do mundo, sim,
muitas mulheres seguem em suas batalhas contra a brutalidade
masculina, mas são focos de ignorância que deverão ser apagados.
O fato é que, sem dúvida, hoje, podemos dizer que vencemos. Uma
luta ancestral, cuja vitória merece ser comemorada. Sendo essa a
razão principal desta carta: dividir com você essa conquista.
PÓS-F. 71

O sangue derramado não foi em vão. Desfrutamos,


enfim, da liberdade de fazermos o que quisermos. Claro,
burrices é o que fazemos por vezes, porque é o que queremos
fazer; porém até a burrice é bem-vinda, já que é mesmo a partir
do erro que acertamos. Somos assim e parece que os homens
finalmente entenderam isso. Ou fingem que entenderam. Mas
nós dois, mais do que ninguém, sabemos que fingir funciona
quase da mesma forma, para efeitos práticos. Além do mais, os
machos e as suas glandes também não têm demonstrado grandes
inteligências, através dos tempos, têm?
Pois bem, é isso. Acho que temos o que comemorar. Nossa
revolução foi completada, mas novas lutas é o que não faltam.
Diversas mulheres estão se saindo bem em suas trincheiras,
outras seguem vítimas de injustiças. Estamos aqui para isso,
porém, não é? Digo lutar. E, ainda movida pelo mesmo calor
revolucionário, permito-me soar repetitiva: unidos venceremos.

Saudações,
F.Y.
PÓS-F. 72
5
TUDO AGORA E
ASSEDIO `
`

Acho que as pessoas estão pirando. Tudo agora é


assédio. É uma loucura. Tem assédio, sim, mas
temos que saber discernir. Obviamente existem
muitas camadas: se alguém me agride, com termos
chulos, falando de minha sexualidade na internet,
obviamente isso é sério. Mas se passo na rua, hoje
em dia bem menos, porque os homens, acho, estão
mais educados e sabem que não podem olhar para
uma mulher e falar “gostosa”... Isso é assédio?
A
cho que as pessoas estão pirando. Tudo agora é assé- PÓS-F. 74
dio. É uma loucura. Tem assédio, sim, mas temos que
saber discernir. Obviamente existem muitas camadas:
se alguém me agride, com termos chulos, falando de
minha sexualidade na internet, obviamente isso é sério.
Mas se passo na rua, hoje em dia bem menos, porque
os homens, acho, estão mais educados e sabem que não podem
olhar para uma mulher e falar “gostosa”… Isso é assédio? Não
é assédio, é falta de educação. Acho grosseria, não gosto, não
quero, e por isso posso sempre me virar e dizer: vá para a puta
que o pariu!
E isso acontece, ainda hoje, em vários lugares, e em alguns
lugares mais, porque é uma questão cultural, e a cultura é o que
educa. E, por isso mesmo, temos, por uma questão social, um
desnível imenso em relação à cultura, desnível proposital inclu-
sive. Mas o fato é que os homens realmente têm um histórico
enorme de abuso e de assédio, e nós temos que saber distinguir. E
entre distinguir o assédio e todas as suas camadas e crer que você
ser galanteada, ser elogiada, é um desrespeito, há uma grande di-
ferença. Porque essa proibição inibe qualquer motivação para o
outro. Acredito que teremos um mundo extremamente compli-
cado se continuarmos a pensar assim.
O que hoje pode ser considerado assédio era simplesmente
parte do que sempre foi um jogo erótico, entre homens e mu-
lheres, homens e homens, mulheres e mulheres. São tramas
eróticas de sedução que, de um dia para o outro, deixarão de
existir? Que pena. Sentirei muito essa perda. Eu, por exemplo,
sou muito mais assediada por mulheres do que por homens.
Mas muito mais... E eu não as instigo, elas apenas se empode-
raram de tal forma, que agem de maneira mais descarada do
que os homens. São muito mais incisivas. Muito mais teimosas.
Dependendo do comportamento, respondo igual a com os ho-
mens e mando tomar no cu. Mas, na maioria irrestrita das vezes,
considero que sejam galanteios e não me fazem mal, mesmo eu
não sendo gay.
Mas é um fato, as mulheres me assediam muito mais do que PÓS-F. 75
os homens. E aí? Vamos dizer o quê? É machismo, feminismo,
qual o “ismo” usamos para essa condição? Creio que exista uma
dinâmica dramatúrgica em que a sedução faz parte. Para algu-
mas pessoas mais, para outras, menos, mas umas suscitam mais
ideias do que outras, não importa. Agora, outra coisa completa-
mente diferente é: se vem um homem ou uma mulher, com quem
estou trabalhando, coloca o pau para fora, ou me oferece algo
em troca de “favores”, coloca a mão em mim, faz um comentá-
rio desrespeitoso ao meu trabalho, à minha condição física... aí é
uma outra história. Só acho importante marcar o que é uma coisa
e o que é a outra. A questão é que as pessoas estão alucinando.
Alucinaram totalmente.
Eu adoro, por exemplo, o exercício da nudez no meu traba-
lho. A nudez é uma comunicação humana e artística genuína, e
deve ser utilizada. Ao mesmo tempo, nunca usei roupas vulga-
res. Não gosto. Não suporto. Nem o meu biquíni chega a ser vul-
gar... Quando vou à praia, fico por um triz de apanhar por causa
do tamanho do biquíni que estou usando. Após postar fotos com
os meus biquínis, já fui bastante sacaneada. Como se a absur-
da fosse eu, que não quero pedaços ínfimos de lycra, cobrindo
meus orifícios e mamilos. Esse é um grande conflito na minha
compreensão do Brasil. Sim, o Brasil, que é matéria-prima pura
para qualquer observador – melhor até para o observador exter-
no, que nos observa sem sofrer. Digo isso porque o brasileiro
consegue ser muito evidente nos seus erros. Somos, realmente,
brilhantes no quesito erros. Ninguém erra como a gente. Somos
o país do carnaval, da bunda, do peito, e que exporta a bunda,
essa estética da bunda que sacoleja, e da qual agora o pop se uti-
liza. Hoje em dia é bem claro que isso é uma coisa brasileira, nós
somos os donos da bunda. E, de repente, no país, vejo discursos
alucinados só porque alguém foi chamada de gostosa. Não que
uma coisa justifique a outra; não justifica. Mas, gente, alto lá!
Não quer ser chamada de gostosa, tudo bem, não quer. A pes-
soa finca um elástico na bunda e acha que aquilo é apenas uma
expressão de seu desejo de ser daquela forma. Mas será que não PÓS-F. 76
está querendo instigar excitação no outro? Não existe aí o dese-
jo de atrair por meio dessa condição? Desconfio que sim. Pode
querer não escutar “gostosa” de qualquer um. Mas uma vez que
estamos num país sem educação, onde, de uma maneira geral, se
desrespeita o outro nos mínimos detalhes, seja esse outro mu-
lher, homem, gay, trans, velho, criança etc., acreditar que não
sofrerá alguma investida grosseira é compactuar com a ignorân-
cia. Se a mulher está de topless em Cannes, pode ter certeza de
que não ocorrerá uma cena desagradável. Porque lá trata-se de
um ato cultural. Mas voltemos ao biquíni: acho muito mais eró-
tico um biquíni do que a nudez. A nudez é a nudez, está destituí-
da de maldade. Agora se você finca, no local certo, um elástico,
acho que isso traz uma malícia de esconder algo que é muito mais
erótico. E é nessa malícia que vejo provocação. Não concordo
em evitar o biquíni. Mas, como já disse, acho que ainda estamos
muito distante de uma época e de uma sociedade em que sere-
mos educados. Sei que falar sobre isso é por demais sofisticado,
para uma nação que foi destituída de toda e qualquer autoestima,
que assiste, há muito, à ausência de ética ser estimulada em todos
os setores da sociedade.
Neste momento, no Brasil, exige-se da conduta masculina
algo que não condiz com a formação ética nacional. O que de-
vemos, sim, é usar o biquíni enfiado na bunda, mesmo sabendo
que podemos ser alvo de frases chulas, e aproveitar isso para
mudar a educação que é dada aos homens. Porque, sim, eles são
educados numa cultura que valoriza o “garanhão”. Caso um
menino seja mais delicado, sensível, a sociedade trata de avisá-
-lo de que homem deve ser macho. Quando digo educar, quero
dizer não somente dentro de casa, mas ressignificar toda uma
conduta histórica, alimentada em milênios de patriarcado. Du-
rante alguns anos, por exemplo, dei aula de literatura para me-
ninas na FEBEM, aqui em São Paulo. Depois dessa experiên-
cia, que considero tão esclarecedora quanto a de ser mãe, noto
que, quando você está exposto às mais vis humilhações sociais
como mulher, é muito difícil acessar códigos morais. Aquelas PÓS-F. 77
meninas não tinham sequer a noção do que sofreram, e muito
menos, de seus direitos que as protegeriam de não sofrer. E
aqueles discursos refletem o histórico de patriarcado no Brasil,
e hoje percebo como eles são esclarecedores dos limites entre os
assédios e abusos que alguém pode vir a sofrer.
V
ANI E AMIGA DIVIDINDO O PÓS-F. 78
LAVABO:
– VOCÊ VAI DAR?
– ACHO QUE VOU. E VOCÊ?
– TÔ NA MAIOR DÚVIDA.
– SE VOCÊ DER, EU DOU.
– QUERER DAR EU QUERO.
– ENTÃO DÁ, BOBA.
– VOU ACABAR DANDO.
– EU DARIA.
– MAS EU NÃO TOPO CERTAS COISAS.
– NEM EU. TEM UMAS QUE “ATÉ TALVEZ”, OUTRAS “SEM
CHANCE”.
– ENGRAÇADO, EU TENHO MAIS PROBLEMAS COM AS
“ATÉ TALVEZ” QUE COM AS “SEM CHANCE”.
PÓS-F. 79
À bunda PÓS-F. 80

Olha, dessa vez você passou das medidas. Só não boto


você para fora agora, porque é a sua cara dar escândalo.
Estou cheia de você atrás de mim o tempo todo. Fica se
fazendo de fofa, enquanto, pelas minhas costas, chama a atenção
de todo mundo para meus defeitos.
Você está redondamente enganada se pensa que eu vou me
rebaixar ao seu nível – o que vem de baixo não me atinge. Mas
faço questão de desancar essa sua pose empinada.
Você é, e sempre foi, um peso na minha existência – cada
papel que me fez passar... Diz-se sensível e profunda, mas está
sempre voltada para aquilo que já aconteceu. Tenho vergonha
de apresentar você às pessoas, sabia?
Por que você nunca encara as coisas de frente, bunda?
Fica parecendo que, no fundo, tem algo a esconder. Por acaso,
faz alguma coisa que ninguém pode saber? O que há por trás de
todo esse silêncio?
Você diz que está dividida e que eu preciso ver os dois
lados da questão. Ora, seja mais firme, deixe de balançar nas
suas posições.
Longe de mim querer me meter na sua vida privada, mas
a impressão que dá é que você não se enxerga. Porque está longe
de ter nascido virada para a lua e costuma se comportar como se
fosse o centro das atenções.
Bunda, você mora de fundos, num lugar abafado. Nunca
sai para dar uma volta, nunca toma um sol, nunca respira
um ar puro. Vive enfurnada, sem o mínimo contato com a
natureza. O máximo que se permite é aparecer numa praia de
vez em quando, toda branquela.
PÓS-F. 81

Não é de admirar que esteja sempre por baixo. Tentei


levar você para fazer ginástica, querendo deixar você mais
para cima, mas fingiu que não escutou. Saiba que você não
é mais aquela, diria até que anda meio caída. E vai ter que
rebolar para mexer comigo de novo, da maneira que mexia.
Lembro do tempo em que eu, desbundada, sonhava em ter
um pouquinho mais de você. Agora acho que o que temos já está
de bom tamanho. E, pensando bem, é melhor pararmos por aqui
antes que uma de nós acabe machucada.
Sei que qualquer coisinha deixa você balançada, então
não vou expor suas duas faces em público. Mas fique sabendo
que, se você aparecer, constrangendo-me diante de outras
pessoas, levarei seu caso ao doutor Albuquerque.
Lamento, isso dói mais em mim do que em você, mas você
merece o chute que estou lhe dando.

Duplamente decepcionada,
F.Y.
PÓS-F. 82
6
UMA MULHER,PARA
˜
SER BOA MAE,
PRECISA PROTEGER
O SEU INDIVIDUO
`

Nesse mundo de hoje, o maior tabu ainda é a maternidade.


Não tem assunto mais sério, mais grave e perigoso do que
a maternidade. As pessoas, elas acham que é esse romance,
essa sabedoria, essa bondade. E ter filhos é uma coisa
difícil demais. É um exercício constante e que requer,
principalmente, extrema honestidade.
N
esse mundo de hoje, o maior tabu ainda é a maternidade. PÓS-F. 84
Não tem assunto mais sério, mais grave e perigoso do
que a maternidade. As pessoas, elas acham que é esse ro-
mance, essa sabedoria, essa bondade. E ter filhos é uma
coisa difícil demais. É um exercício constante e que re-
quer, principalmente, extrema honestidade. Acho que,
em geral, as pessoas não estão a fim de entrar em contato com as
suas fragilidades de maneira honesta. Elas não estão querendo
entrar em contato consigo mesmas no papel de mãe. Acho que
o discurso comum que afirma de maneira viciada: “Ah, é ótima
mãe!” é perigosíssimo. Estou o tempo inteiro questionando o
meu “eu-materno”. E, para tal, e para sobreviver ao grande pe-
rigo de me tornar uma mãe ineficiente, umas das coisas que mais
defendo é a minha felicidade. E felicidade, para alguém como
eu, que não é esfuziante ou eufórica, significa definir quem eu
sou, o meu indivíduo.
Uma mulher, para ser boa mãe, ela precisa, fortemente, pro-
teger o seu indivíduo. De todas, essa é a questão mais cruel. E o
homem não sabe o que é isso. É uma cicatriz que não volta. É uma
felicidade que vem com uma amputação. É a inversão da vida que
vem com o tempo, ainda mais quando se tem filha mulher. Vem o
tempo, a decadência com a primavera do outro. É o canto do cis-
ne. É bonito, mitológico, mas pode ser doloroso. A maternidade
é um exercício constante e deve ser observado o tempo inteiro.
Você pode ser uma grande mãe de criança e uma péssima mãe du-
rante a adolescência, por exemplo. Por motivos vários, mas, prin-
cipalmente, porque você não entrou em contato com o disgusting,
ou tudo aquilo que não foi visto, percebido, falado. A começar
com a mutilação do corpo. A gravidez é uma coisa indigesta. Mas
posso afirmar que fui uma grávida felicíssima. Vocês estão diante
de uma pessoa que realmente foi feliz grávida.
Engordei 30kg, estourei o corpo inteiro – eu que nunca tinha
tido uma estria, uma celulite. Aí, com certeza eu digo, depois de
toda essa devastação, fiquei mais bonita. Mas isso eu acredito que
seja por causa da minha decisão de visitar, dentro daquele proces-
so, todo o meu “morrer” e o meu “renascer”, pelos quais estava PÓS-F. 85
passando durante o processo de gestação. Porque, na hora que
tive filho, eu morri.
Eu já me arrependi de muitas coisas na minha vida, inclusi-
ve da maternidade. Esse arrependimento não significa desamor.
Não significa que vou ser uma péssima mãe, que vou abandonar
os meus filhos com a babá. O arrepender-se é parte da sanidade
e até mesmo do exercício amoroso. É o momento em que você
consegue elaborar que houve uma amputação. Já falei isso para
pessoas que ficaram estarrecidas: “Como assim?”, “O quê?”. Eu
me arrependi desde o primeiro momento, mas amei tão mais do
que o arrependimento que decidi continuar tendo filhos. Então
o arrependimento não se trata da exclusão da decisão. É apenas
pensar assim: Bom, e se eu não tivesse tido? Tudo que se conquista
vem com uma grande dose de decepção. Você nunca consegue
nada sem frustração. Imagine filhos, que é, efetivamente, a única
coisa de que você não pode se desvencilhar?
É algo paradoxal, mas que convive em unidade. Eu posso, hoje,
na hora do almoço, não estar aguentando aquilo e pensar “puta que
pariu”, e logo depois pode vir um sorriso, uma história. Mesmo
para mim, que sou uma pessoa que tem uma existência complicada e
que, individualmente, solitariamente, sou uma pessoa que estou em
conflito, boa parte da exclusão desse conflito e da perseverança
em continuar se dá porque tenho essa responsabilidade belíssima
que é fazer essas pessoas ficarem firmes, fortes e ver o processo de
crescimento delas. E isso diz respeito à minha necessidade de cres-
cer com esse exercício e de me fortalecer vendo essa potência que
existe em mim de poder fazer algo efetivamente por alguém e esse
alguém, esses filhos, frutificar. Isso me serve, isso está a serviço de
minha necessidade. Não sou mártir. Eu preciso. Talvez eu tenha
quatro filhos para ter essa obrigação absoluta para com eles, e não
me perder nessas reflexões que só, muitas vezes, me conduzem a
crer que é tudo uma grande porcaria. Porque é. É. Lamento.
Os homens podem lidar muito melhor com o arrependimento
da paternidade do que as mulheres. Porque eles se ausentam com
muito mais facilidade. Ou estão presentes e, ao mesmo tempo, PÓS-F. 86
ausentes com muito mais facilidade. Quantas e quantas famílias
têm mulheres como “chefes” de família porque os homens foram
embora? Quando eu digo que a tecnologia humana é mal-acaba-
da, reconheço que o homem e a mulher têm ônus e bônus nas suas
condições. Basta ver o mundo e reconhecer que ele é ruim em sua
totalidade. A gente sobrevive porque tem a noção do coletivo, do
familiar, do outro. Os sentimentos, eles são educáveis. O amor
é um sentimento que se educa. A compaixão é um sentimento
que se educa. Agora a natureza, na sua pulsão bárbara, ela é sim-
plesmente competitiva e desagradável. Então o fato é: o homem
tem, em sua natureza, uma capacidade incrível de não encarar o
problema. Nada mais indigesto para o homem do que uma mu-
lher com problema. Uma mulher que tem um filho doente, por
exemplo, quantos são os pais que conseguem conviver com isso?
Que conseguem permanecer ao lado de uma mulher quando uma
criança adoece? Essa é a natureza da fuga masculina. A mulher
é muito mais resistente à dor. Não passei por isso porque esperei
sete anos para ter um filho do Alexandre porque o observei muito
bem. Muito bem.
Essa é a questão, por exemplo, com engravidar. É um negó-
cio que é da responsabilidade dos dois; mas muito mais da mu-
lher. Por outro lado também, quando a gente quer engravidar, a
gente engravida e fodam-se eles, né? O homem não tem o menor
domínio sobre isso. A não ser que use camisinha, ou faça uma va-
sectomia, o homem está sob o domínio da fertilidade, está sub-
metido a ela. E nós sabemos usar isso muito bem. Por isso que o
direito ao aborto é fundamental: ninguém pode decidir o resulta-
do de uma gravidez indesejada, a não ser a própria mulher. Mas
isso não a isenta da responsabilidade sobre a gravidez e a decisão
de interrompê-la.
Um homem que não programou uma gravidez tem a sua par-
cela de culpa, e muitas vezes a paga tendo que se casar, o chamado
“golpe de bucho”. A falta de uma decisão pensada, debatida, de
ter ou não ter um filho, é uma constante na formação das famílias.
Muitas vezes, a “gravidez acidental”, por mais que seja disfarça- PÓS-F. 87
da, está fadada a resultar numa trama malsucedida. Mas esse é
um dos assuntos que são sofisticados demais para um país com
bases éticas decrépitas. Controle de natalidade. Um homem no
Brasil só pode recorrer à vasectomia pelo serviço público, caso
tenha mais de dois filhos e após os 30 anos. Em países civiliza-
dos, homem e mulher podem ser esterilizados depois da maiori-
dade, mesmo sem filhos. Uma nação “religiosa” nem sequer faz a
campanha de prevenção da gravidez. Somos um país de crianças
abandonadas, descritas, após uma certa idade, em que já não são
atraentes para a adoção, como “crianças de ninguém”.
Quando engravidei das gêmeas, foi realmente muito con-
fuso, porque foi uma decisão abrupta, porque ser mãe era uma
coisa que eu nunca quis, e, de repente, eu quis. Então eu estava
com uma fome muito grande de ser mãe, e foi tudo muito rápido.
Eu tive um “não” muito grande dentro de mim, a vida inteira, e,
de repente, quando elas nasceram, aquela era uma novidade tão
grande para mim, que, no surto, tentei ser igual. Foi a única vez,
na minha vida, que tentei me adequar. E foi horrível. Tentei real-
mente fazer tudo direitinho, não do direitinho normal – isso eu
sempre faço, sou superdisciplinada, me alimento bem, faço exer-
cícios, vou a médicos –, era um direitinho do medíocre absoluto.
Eu achava que tinha que ir para o parquinho e estender o paninho
todos os dias. E, no fim de semana, eu tinha que ir ao clube. E ir a
todas as festinhas. Mas desde quando o clube fez parte da minha
vida? Comecei a fazer coisas estranhíssimas, que nunca tinha fei-
to antes, e que não são imprescindíveis para a sobrevivência da
criança. Mas eu achava que era o lindo. O lindo absoluto.
Dois anos indo ao parquinho, dois anos sem beber, sem tre-
par... não sei onde eu estava com a cabeça. Talvez na mediocri-
dade. Dizem que a mediocridade é a atuação do ser. Não é o ser
em si. É quando você se descola; é Brecht, você atuando em cima
do personagem. E cismei que era assim que deveria ser mãe. Foi
um momento em que percebi que estava, realmente, muito depri-
mida. Fui a um médico na época que disse: “Você precisa trepar
de qualquer maneira.” E eu dizia: “Eu não quero.” E eu não que- PÓS-F. 88
ria. E aquilo não estava me ferindo nem estava amargurada. Foi
simplesmente a total exclusão da ideia. Engraçado é que, nesse
mesmo período, escrevi um livro extremamente erótico, O efeito
Urano, e me era de um indigesto absoluto pensar em fazer sexo.
Talvez porque eu estava me sentindo, finalmente, acompanhada,
acredito. Porque ninguém nunca está sozinho com duas gêmeas.
Estava me sentindo uma rainha. Tive uma autoestima que nunca
tive. E o amor foi se dando no convívio. Ao mesmo tempo, eu já
não era mais ninguém. E daí veio a necessidade de ter mais fi-
lho, justamente para exercitar melhor a maternidade, sem a igno-
rância dessa primeira experiência. Mas, como as coisas comigo
sempre são muito peculiares, não consegui engravidar de novo.
Então decidimos por uma gestação de outra ordem, que é a ado-
ção, que também é muito mágica e muito interessante. É uma ges-
tação que você não sabe quanto tempo vai durar e é uma gestação
que não é mais só sua, ela é da casa. Você não é mais detentora
dessa nave-mãe.
Eu queria ter engravidado de novo, mas, infelizmente, não
consegui. Queria ter de novo essa experiência de “estar acompa-
nhada”.
A
NA SE APROXIMOU DE JAIME PÓS-F. 89
E BEIJOU-LHE A BOCA. NÃO
HAVIA POR QUE SE CONTROLAR,
COMO TINHA FEITO ANTES.
ESTAVA TÃO EXCITADA, NÃO
QUERIA OUVIR NADA, DIZER
NADA, APENAS BEIJAR E BEIJAR E BEIJAR. PODERIA FICAR
UMA HORA BEIJANDO, FEITO UMA ADOLESCENTE. QUERIA
SE LEVANTAR, BEIJAR DE PÉ, SENTIR O PÊNIS RIJO DAQUELE
HOMEM. ERA COMO SE TIVESSE QUINZE ANOS E DESSE
O SEU PRIMEIRO “AMASSO”. O PÊNIS, DURO DENTRO DA
CALÇA JEANS, ERA O MESMO DE ANOS ATRÁS. NAQUELE
INSTANTE, SENTIA-SE PODEROSA. O PAU DE JAIME ERA O
PRÊMIO MERECIDO POR TER SEIOS, NÁDEGAS, VAGINA E,
POR ISSO, MENSTRUAR, USAR SUTIÃ E LUTAR CONTRA A
FORÇA DA GRAVIDADE QUE TUDO IMPULSIONA PARA BAIXO,
PRINCIPALMENTE AS BUNDAS FEMININAS. ERA O TROFÉU,
POR TODAS AS CENTENAS DE ANOS SENDO DISCRIMINADA,
PELO SALÁRIO MENOR QUE SEMPRE RECEBERIA, POR TER
QUE TOMAR PÍLULA OU TER UM SER EM TRANSFORMAÇÃO
DURANTE NOVE MESES DENTRO DA BARRIGA. ESSE PAU ERA A
GRATIFICAÇÃO QUE METERIA ENTRE AS PERNAS, COLOCARIA
NA BOCA, COMANDARIA O SEU TAMANHO.
PÓS-F. 90
PÓS-F. 91
Cara Lata de Leite, PÓS-F. 92

desculpe a intimidade de escrever uma carta assim,


tão sincera, mas sinto como se fôssemos parentes. Minha mãe
é Leite, e meu nome de solteira é Fernanda Maria Leite
Young. Além disso, convivo com você há mais tempo do que
com qualquer outra coisa, vendo-a todo dia, desde pequena,
sempre igual, em minha mesa de café da manhã. Ajo, portanto,
movida pelo coração. Temendo, por isso mesmo, ser mal
compreendida.
O motivo desta carta é que notei, outro dia, algo diferente
em você. Um retângulo. Com um texto em que o Ministério
da Saúde adverte que você não é boa para crianças. E que as
mães devem amamentar seus filhos até os dois anos de idade,
no mínimo, se possível até mais. Confesso, fiquei confusa. Sei
que você deve ter sido obrigada a concordar em colocar aquilo
ali, mas por acaso você conhece as crianças de dois anos de
hoje em dia? São bastante diferentes daquelas do nosso tempo,
querida Lata. Boa parte delas já está frequentando colégios.
Algumas, com três anos, fazem cursos de inglês, natação, balé e
até computação. Claro, estou falando das crianças de famílias
da classe média urbana. Mas é para essas famílias que vocês,
latas de leite, são destinadas, correto? Então, imagine comigo:
o garotinho chega do curso de computação, joga um pouco de
video game; aí a mãe volta do trabalho e ele vai chupar os peitos
dela. Ou: a garotinha chega do balé e telefona para uma amiga
marcando de ir ver um filme na casa dela assim que acabar de
mamar na mãe.
PÓS-F. 93

Será que isso é realmente melhor para a saúde dessas


crianças? Será que ter uma mente sã não é tão importante
quanto ter um corpo são? Será que as deficiências do leite em
pó com relação ao leite materno não seriam menos perigosas que
os riscos de trauma psicológico? Não sei responder. Mas sei que
amamentei minhas filhas até os três meses e me senti um traste
quando parei. Porque todos me diziam que era melhor continuar
– apesar de eu estar exaurida, com os peitos estuporados e
a mente desnorteada pelas transformações trazidas pela
maternidade. Todos, menos o meu marido, que me apoiou na
decisão, dizendo que achava muito mais importante, para as
meninas, ter uma mãe segura e feliz do que qualquer benefício
que o aleitamento pudesse trazer.
Sei que muita gente me execraria pelo conteúdo desta
carta, por isso mando-a só para você, amiga Lata, contando
com a sua discrição. Tenho certeza de que você entenderá o que
estou tentando dizer. Que não estou fazendo campanha contra o
leite materno nem a favor das multinacionais. Que estou apenas
tentando propor uma nova visão sobre uma antiga verdade.
Para que outras mães não venham a sofrer com tanta culpa. E
para que outras crianças não venham a sofrer com tantas mães
que, depois de passarem 20 ou 30 anos de sua vida consumindo
porcarias, são levadas a crer que seus seios são fontes de pureza.

Com carinho,
F.Y.
PÓS-F. 94
7
ACHO QUE ME
MATO A TER
QUE SER DONA
DE CASA
Estou achando que agora, inclusive, tem muitas
mulheres decidindo voltarem a ser donas de casa
e estou estarrecida. Esse discurso do feminismo
é muito bom, muito produtivo até que a mulher
decida que não quer mais trabalhar. Quer parar e
cuidar dos filhos. A quantidade de mulheres que hoje
querem viver a maternidade em sua intensidade
e que não vão negar esse princípio é também um
discurso que reconheço e que respeito. Mas eu, na
minha experiência de vida, e como mulher, acho que
me mato a ter que ser dona de casa.
E
stou achando que agora, inclusive, tem muitas mulheres PÓS-F. 96
decidindo voltarem a ser donas de casa e estou estarre-
cida. Esse discurso do feminismo é muito bom, muito
produtivo até que a mulher decida que não quer mais tra-
balhar. Quer parar e cuidar dos filhos. A quantidade de
mulheres que hoje querem viver a maternidade em sua
intensidade e que não vão negar esse princípio é também um
discurso que reconheço e que respeito. Mas eu, na minha expe-
riência de vida, e como mulher, acho que me mato a ter que ser
dona de casa. Prefiro carregar saco de cimento numa obra, o dia
inteiro, do que ser dona de casa. Porque o fato concreto é: nós
nunca deixamos de ser dona de casa. Então imagine o pesadelo
que é ter que ser dona de casa integralmente. Ora, quando não
estou trabalhando na rua, estou trabalhando em casa ou estou
o tempo inteiro lidando com assuntos chatos de casa. O tempo
inteiro. Tenho pavor. Tenho pavor, por exemplo, de comprar
um objeto doméstico. De gastar o dinheiro, que eu ganhei, para
algo para casa. No Brasil é mesmo um horror, tudo caríssimo e
de má qualidade. Fico puta da vida.
O mais interessante de tudo é que nós não excluímos nada.
A gente só acumulou. Fico puta com esse papo de conquista de
direitos. Eu estou é me fodendo com as minhas conquistas
de direitos. Conheço um monte de mulher sonsa, que faz a de-
pendente, mas é muito mais livre do que eu. Eu, com os meus
compromissos, estou exausta. Sou financeiramente importante
na minha casa, e estamos lidando com uma história muito espe-
cífica, estamos falando de um homem que nunca olhou para o
café da manhã na mesa e falou “não tem bolo?”. Ai dele! Se tem
cream cracker, que ele abra esse cream cracker e agradeça. Eu
nunca coloquei uma mesa para ninguém na minha vida, mas sei
o quanto conquistei de funções e nunca descartei nenhuma. E
não dá para descartar. Bem fez a Yoko Ono, que decidiu, junto
com o John, que ele cuidaria do filho, enquanto ela ia trabalhar.
E ele parou, se voltou para o exercício doméstico e ela, que é
uma grande empresária, fez o dinheiro deles aumentar incrivel-
mente. E ela sempre foi considerada uma escrota. Mas é uma PÓS-F. 97
visionária.
O fato inevitável é que, na maioria dos casos em que o homem
ajuda, e agora tem todo esse discurso que o homem também tem
que trocar a fralda, a grande trabalheira e a grande exaustão, elas
são femininas. E a mulher continua trabalhando, e, se decide ter
filhos, continua com afazeres que são enjoativos. Quantas vezes
o Alexandre foi ao pediatra? Essa conquista de direitos foi, na
verdade, um grande acúmulo de funções. Eu me arrependi o
tempo inteiro disso tudo. De certa forma, por não ser de uma
família abastada, que não é de artistas, e ter sonhado tão alto, fui
sempre muito persistente em alcançar as minhas metas. Eram
metas improváveis. Recentemente assisti ao filme Lady Bird e
chorei copiosamente. Eu me dei conta de que fui uma adolescen-
te muito corajosa. Sempre penso num poema de Walt Whitman:
“Ó! Como sonhei coisas impossíveis!” Na época, eu não me dava
conta de que o mais provável seria eu não conseguir realizar nem
um décimo do que sonhava. Chorei também porque agora, aos
47 anos, vejo as minhas filhas mais velhas sonhando em realizar
tantas coisas, e mesmo que eu as incentive, existe o temor que
ronda a juventude.
Quando digo que me arrependi o tempo todo, não signi-
fica que faria tudo diferente, mas que admito o preço das mi-
nhas decisões, e que sempre soube que nada seria fácil, mas
agia tomada pelo resoluto frescor da juventude. Logo no iní-
cio do meu adultecer, eu estava casada, morando numa cidade
nova, escrevendo o meu primeiro romance. Eu o publiquei na
sequência. Fui reconhecida e criticada. Assumi, nessa época,
a minha condição depressiva e soube lidar com o diagnóstico
com maturidade, mas ainda romantizava a questão, afinal era
quase um pré-requisito para o meu status. Lancei muitos livros
em poucos anos. Tive as gêmeas aos trinta. Aconselhada por
um pediatra, tomei a decisão perigosa e burra de parar com a
medicação que tomo para a depressão. Tive uma crise nos pri-
meiros meses do pós-parto, que culminou num quadro grave
depressivo. Eu tinha 33 anos, as pessoas me agrediam por eu PÓS-F. 98
falar o que penso, fazer o que quero. E, no imaginário, essa
liberdade é muito mais afrontosa e imoral do que é. Não me
justifico. De fato defendo ferozmente o direito de fazer o que
eu quiser. E se não realizo o que o outro pensa de mim, é por
puro tédio. Sou uma pessoa de hábitos prosaicos, extremamen-
te recolhida, que tem a idade emocional que varia dos 6 aos 17
anos. Mas, quando me comprometo com algo, não arredo o pé
da obrigação de realizar com qualidade. Principalmente se isso
diz respeito aos meus filhos, minha família e ao meu trabalho.
Ou seja, sou uma pessoa exausta. Faria tudo igual, porque te-
nho sido Eu com muita honestidade, mas me arrependo de ter
sonhado tão alto. Ou melhor, talvez quisesse ser menos idea-
lista, um pouco dissimulada, me refestelando na condição de
“mulher/minoria” que precisa ser cuidada.
À beira dos 50 anos, após ser tão criticada por ter sido
uma autora jovem, penso que o tempo não está me trazendo
nenhum conforto. Aos 40 posei nua, com o intuito de mostrar
que Ele, o Tempo, não é indigesto para a mulher, como a nossa
cultura atesta. Acho-me mais bela a cada ano, sinto-me mais
anárquica também. Afinal, nem sempre tem sido fácil e se fui
uma adolescente dita rebelde, sem ter a menor infraestrutura,
imagine agora. Entrei na temporada do “fi-lo porque qui-lo”.
Não tenho paciência para a maioria das relações sociais, mas
sou boa amiga e ótima profissional. Quando sou convidada –
cada vez menos, já que sou mesmo bem reclusa – para eventos,
shows, festas, nem cogito que estou perdendo oportunidades
“incríveis” de me divertir, ou conhecer pessoas. Cada dia que
passa, e há muito, sei que o melhor lugar em que posso estar
é em mim. Essa é uma lição que aprendi que deixo com mui-
to amor, neste livro, e todas as vezes em que dou entrevistas:
tenham autoestima. Espero que eu possa inspirar meninas,
mulheres, e também meninos, homens, a habitarem em si, ja-
mais no outro. Com o(a) outro(a) nós exercitamos inúmeros
estágios do crescimento. Aprendemos mesmo quando erra-
mos. Mas somente você estará o tempo inteiro aí, seja PÓS-F. 99
na festa, no esplendor de grandes ocasiões, nas dores,
principalmente nas dores…
Acho que devo retificar a informação de que não me
arrependo de nada: gostaria de não ter vivido algumas
coisas. Talvez, talvez, eu apenas quisesse ter feito outros
caminhos, só para comprovar que não é necessária a
dor para se alcançar algo. Não suporto quando dizem
que eu não seria quem sou se não tivesse sofrido.
Penso que esse discurso é grosseiro. E se me
ocupo em instigar artes das pessoas, devo
defender que qualquer estereótipo para o
artista é uma burrice. Caso eu consiga ajudar
uma pessoa, fazê-la crer que irá conseguir, ao
menos poderei aceitar que não foi em vão.
L
EMBRA DA ALEX FORREST, A PÓS-F. 100
PERSONAGEM DA GLEEN CLOSE,
NAQUELE FILME ATRAÇÃO FATAL?
ELA FAZ UM MONTE DE COISAS
HORRÍVEIS, PORÉM TUDO FICA
EXPLICADO. TANTO QUE, CONFESSO,
VEJO E REVEJO A HISTÓRIA, E SEMPRE SINTO UMA PUTA
COMPAIXÃO POR ELA. CHEGANDO A TORCER POR ALEX, EM
DIVERSOS INSTANTES, MESMO SABENDO DE COR AQUELE
FINAL. RECONHEÇO QUE É PORQUE EU SOU MAIS SENSÍVEL
QUE A MAIORIA DAS PESSOAS, E TAMBÉM MAIS EXPERIENTE
NESSE TIPO DE ÓDIO, QUE ÀS VEZES DÁ, PODENDO FAZER
UMA LEITURA MAIS DELICADA DA PERSONALIDADE DELA.
CALCADA EM CONJECTURAS, É CLARO, POIS O FILME NÃO
NOS OFERECE MUITO. NÃO ACHO O FILME RUIM, SOMENTE
UM TANTO SUPERFICIAL NO QUE SE REFERE À APRESENTAÇÃO
DA MOTIVAÇÃO DA PERSONAGEM MALUCA. VEJA BEM: DAN, O
CARINHA, FEITO MAGISTRALMENTE PELO MICHAEL DOUGLAS,
É UM CÍNICO. NÃO POR HAVER TRAÍDO A ESPOSA COM ALEX –
ISSO ELE DEVE TER FEITO VÁRIAS VEZES ANTES, COM MUITAS
OUTRAS, NA SUA VIDINHA DE GARANHÃO BEM-CASADO.
DAN É CÍNICO PORQUE É O PERFEITO HOMEM DE HOJE, QUE
EVOLUIU DO HOMEM DE ANTIGAMENTE, PARA MANTER-SE O
HOMEM DE SEMPRE. ELE É GENTIL COM SUA MULHER, AINDA
DÁ UMAS TREPADAS COM ELA, MESMO QUE ELA NÃO NOS
ACENE COM NENHUM ATRATIVO; POIS NO FILME VIVE PARA
O LAR, NO LAR, ENTREGUE AO GÊNERO “NATURAL, MEIGA
E COMPREENSIVA”. ELE SE MOSTRA GRATO POR ELA SER PÓS-F. 101
ASSIM E SE DEDICAR COM AMOR ÀQUELA PARTE DA VIDA DE
UM HOMEM QUE PRECISA ESTAR ORGANIZADA, PARA QUE ELE
POSSA TRAZER MUITO DINHEIRO PARA CASA. TALVEZ ANN.
VAMOS CHAMÁ-LA DE ANN, AQUI. ENTÃO, É ANN QUEM CUIDA
DAQUELES DETALHES TODOS QUE OS HOMENS, POR MAIS
LEGAIS QUE SEJAM, NÃO GOSTAM DE CUIDAR: CRIANÇAS,
COMIDAS, SUPERMERCADOS, LOUÇAS, ROUPAS, ROUPAS DE
CAMA, PANOS DE PRATO, POEIRAS, ÁCAROS, RETROVÍRUS.
ANN É DO LAR, COM MUITA SATISFAÇÃO E EFICIÊNCIA. NAS
FÉRIAS, ELA VIAJA COM O MARIDO PARA LUGARES EXÓTICOS
BACANAS, ONDE PODEM RELAXAR DO RESTANTE DO ANO, E,
NOS ANIVERSÁRIOS, ELA GANHA UMA JOIA LINDA, COM UM
TOCANTE BILHETINHO. ALGUÉM PODE QUESTIONAR SE ANN É
FELIZ? LÓGICO QUE É – QUEM NÃO SERIA FELIZ TENDO UMA
VIDA CRETINA DESSA? BONS APARELHOS DOMÉSTICOS E BOA
CONVIVÊNCIA FAMILIAR – EXISTE ALGO A DESEJAR ALÉM
DISSO? ENTÃO A ANN DO DAN É DOCE E PARTICIPANTE, E FOI
GRAÇAS À ESTABILIDADE DELA QUE O MARIDO CONSEGUIU
SE TORNAR O ADVOGADO PROMISSOR QUE É, QUASE COM
DIREITO ÀQUELA TÃO ESPERADA PROMOÇÃO, QUE O LEVARÁ
A SÓCIO-JÚNIOR DA FIRMA. AÍ APARECE ALEX. QUE FODE
LOUCAMENTE COM DAN. ELE FICA TÃO CULPADO COM
AQUELA FODELANÇA QUE DÁ SINAL VERDE PARA A ESPOSA
COMPRAR A CASA DOS SONHOS DELA, NO SUBÚRBIO. OU
SEJA, FOI A ALEX QUE PROPORCIONOU ESSE UPGRADE NA
VIDA DO CASAL. SE AQUELA VAGINA LOIRA DESCABELADA NÃO
TIVESSE SE ENFIADO NA HISTÓRIA, TALVEZ DAN NÃO TIVESSE PÓS-F. 102
A CORAGEM PARA ARRISCAR UM TANTO NUMA HIPOTECA.
NISSO A HISTÓRIA É BASTANTE CLARA: O MARIDO ESTAVA
RETICENTE, ATÉ A CHEGADA DA CULPA. E VEJO QUE É ASSIM
MESMO; SEI DE VÁRIOS OUTROS CASOS EM QUE SITUAÇÃO
SEMELHANTE OCORREU. O QUE NOS LEVA À NOSSA PRIMEIRA
GRANDE CONCLUSÃO: É COM A CULPA QUE SE MOVEM OS
HOMENS. HOMENS SE CASAM POR SE SENTIREM CULPADOS,
TOPAM TER FILHOS POR SE SENTIREM CULPADOS. AS ANNS,
PORTANTO, PRECISAM DAS ALEX. DANS TAMBÉM PRECISAM
DAS ALEXS, PORQUE NÃO QUEREM MAIS TRANSAR COM SUAS
ESPOSAS, MAS NECESSITAM DELAS CUIDANDO DA CASA. E O
MERCADO IMOBILIÁRIO TAMBÉM PRECISA DAS ALEXS, PARA
VENDER CASAS MELHORES – OU SIMPLESMENTE MAIORES,
JÁ QUE DEVEM DAR CADA VEZ MAIS TRABALHO DOMÉSTICO
ÀS ANNS. ÓBVIO, ISSO SE TRATA DE UM OLHAR DA MINHA
PARTE; NÃO ESTOU TENTANDO SUGERIR QUE ESSE FILME,
DE VINTE ANOS ATRÁS, AINDA SEJA UM TRATADO EXATO
SOBRE O QUE ACONTECE. TODOS SABEMOS DA EVOLUÇÃO
DO PAPEL DA MULHER NA SOCIEDADE, TODOS CONHECEMOS
MUITAS MULHERES QUE VIVEM SOZINHAS E SÃO DONAS
DE SEUS NARIZES. E MULHERES QUE ATÉ SUSTENTAM OS
HOMENS, ENQUANTO ELES ARRUMAM A CASA. MAS O QUE
HÁ DE MAIS TRÁGICO NAQUELA TRAMA NÃO SE MODIFICOU.
NE SE MODIFICARÁ JAMAIS, TEMO. NÃO ESTOU FALANDO DE
TRAIÇÃO, ESTOU FALANDO DA INJUSTIÇA COM QUE É TRATADA
A MULHER QUE SURTA, QUANDO CANSA DE SER ÚTIL AOS
OUTROS. SE EU FOSSE PRESUNÇOSA, DIRIA QUE ESTAMOS PÓS-F. 103
DESVENDANDO, AQUI, UM MITO. O MITO ALEX FORREST.
TÃO FORTE, QUE CONSEGUE ATRAIR SEU JÁ ARREPENDIDO
AMANTE PARA UM SEGUNDO ENCONTRO. EM QUE TREPAM
COMO NUNCA: NA PIA, NO CHÃO, NAS MESAS, PELAS
PAREDES. E ELE, EXAUSTO DE TANTA TREPAÇÃO, RESOLVE
DORMIR LÁ, NA CAMA COM ELA, APROVEITANDO QUE
ANN ESTÁ FORA ATÉ SEGUNDA. SE NÃO ME ENGANO,
ESTÁ JUSTAMENTE VISITANDO A TAL CASA QUE
ELA SONHA EM COMPRAR, QUE – DETALHE – FICA
VIZINHA À CASA DOS PAIS DELA. POIS SIM,
NESSA PROVIDENCIAL AUSÊNCIA DE ANN,
DAN, SENTINDO-SE CULPADO POR TRATAR
ALEX MAL, RESOLVE DAR UMA SEGUNDA
TRANSADA COM ELA. DE ONDE CHEGA,
DOMINGO DE MANHÃ, CULPADÍSSIMO. E
A PRIMEIRA COISA QUE ELE FAZ É
LIGAR PARA A CASA DOS PAIS
DE ANN, QUERENDO FALAR
COM ELA, SOBRE ESTAR MAIS
FAVORÁVEL À COMPRA DO
IMÓVEL. COMO É SÓRDIDO
TUDO ISSO.
Ao pequeno sabotador interno PÓS-F. 104

Venho por meio desta manifestar o meu repúdio pelo seu


recente comportamento. Você estragou tudo, mais uma vez.
Quando me aprontava para sair, disse que eu estava feia.
Quando experimentei outra roupa, insinuou que eu já não tinha
idade para usar aquilo. Quando cheguei ao meu compromisso,
não me deixou falar o que eu havia pensado. E, no fim, ainda
conseguiu me fazer ser grossa, apressando as despedidas.
Ora, quando você irá crescer? Cansei da sua
irresponsabilidade. Compreenda, de uma vez por todas, que
estamos no mesmo barco. Se afundo, você vai junto – será que
essa metáfora não está óbvia o suficiente?
Não me venha, portanto, com argumentos de homem­-
-bomba. Se você discorda de mim tanto assim, por que não vai
embora daqui de dentro? Abaixe esse punhal, apontado para as
minhas costas, e cave com ele um túnel de fuga se for necessário.
Não podemos continuar desse jeito, nessa burra relação
autodestrutiva, em que o conteúdo fura a própria embalagem.
Até quando você me elogia é com o intuito de me
derrubar, já percebeu? Faz com que me acredite linda e sagaz
para, no instante seguinte, rir dos meus tropeços. Dizendo “não
falei?”, com aquela sua cara de madrasta. Torpedeando minhas
forças ainda durante os planos de ataque. Minando meus passos
ao pisá-­los comigo.
Chega, então. Paremos com isso, antes que acabe em
tragédia. Antes que, na falta de um gesto meu, por você evitado,
eu desabe em escombros. Quero, mais do que nunca, me arrepender
depois do que digo e do que faço. Abro mão, com alegria, de todos
os seus péssimos sábios conselhos. A vida é curta demais para
tamanha precaução e longa demais para se repetir os mesmos erros.
PÓS-F. 105

Sim, cheguei a me divertir em sua companhia, quando


ainda conseguia ver algum charme no insucesso. Tempos
passados. Hoje, luto com unhas e dentes para que tudo dê certo.
E das suas ideias, sempre cheias de lógico pessimismo, preciso
distância.
Não pretendo, porém, uma separação litigiosa, pois sei
que você conhece todos os meus pontos fracos e aguarda apenas
uma boa oportunidade para atingi-los. Com suas observações
de última hora, mortalmente precisas. Proponho, isso sim, um
cessar-fogo: você deixa de me dar conselhos e eu imediatamente
deixo de segui-los. Parece-me uma trégua justa.
Não lhe desejo mal — entendo que você fez o que tinha
de fazer, muitas vezes com a minha velada cumplicidade.
Mas estou pronta a ir até o fim nessa luta, a tirar você de
mim quanto antes. Saiba que, a partir de hoje, você está como
imigrante ilegal aí dentro. E pode até conseguir fugir por um
tempo, escondendo-se em subterfúgios. Seus dias de impunidade,
entretanto, estão contados.
Se você não me atrapalhar, é claro.

Abraço,
F.Y.
PÓS-F. 106
8
DESEJOS PARA UM
MUNDO POS-F.
`

Que não mais precisemos usar o #feminismo.


A
s pessoas não podem ouvir falar de morte no Ocidente. Eu, PÓS-F. 108
no episódio que vivi recentemente da doença de Alexan-
dre Machado, considero que morri e nasci de novo. Assim
como me senti quando tive filhos. Morri e nasci de novo.
Nesse momento agora me sinto num pós-parto que, mais
uma vez, estou achando estranhíssimo. Apesar de não es-
tar numa crise depressiva, como antes, volto a uma mesma ques-
tão: quem é essa pessoa aqui? Aquela não existe mais. Ao mesmo
tempo, as mortes pelas quais passamos em vida, são espetaculares.
Tem mais de um ano que essa jornada se iniciou, que entrei em
contato com essa circunstância, e hoje eu simplesmente me sinto
extremamente feliz, extremamente grata, extremamente excitada
com as conquistas e, ao mesmo tempo, extremamente cansada, às
vezes muito magoada, muitas vezes me sinto vilipendiada. Ou-
tras, me vejo alimentando uma espécie de rancor, porque me sinto
roubada. Então é um negócio que você fica em estado perplexo,
simplesmente, não existe mais aquela. E aquela estava num ponto
que lutei bastante para alcançar. Havia entrado “em velocidade
de cruzeiro” a caminho da velhice. Mas como eu não tenho medo
da morte, vejo como incrível poder renascer de novo. Com toda a
certeza, me sinto melhor, me sinto mais sábia. Mas, com certeza,
a tal velocidade que iria me conduzir a um pouso sereno na tercei-
ra idade foi arrebatada por turbulências. Talvez assim, aos trancos
e barrancos, renascendo, seja de novo, para mim, reviver o arreba-
tamento de minha complicada adolescência. Só que agora, agora
eu sou mesmo apaixonada por mim, e não admito desaforo.
E, se me contradigo em alguns momentos desta jornada, não
é por fraqueza, mas porque a vida é inexata e segue me espantan-
do. Humildemente questiono a cada instante o instante anterior.
O que não desacredito nunca é na potência do amor, que cura,
que recupera. Amar é um exercício. Aprendemos a amar, caso
estejamos atentos, mesmo nas situações mais adversas. Por isso,
amamos. Porque ninguém disse que era fácil, e não será. Hoje,
por me sentir estranhíssima, fiz uma lista de desejos para esta
nova vida, para este mundo que desejo, o Pós-F.:
- Que não mais precisemos usar #feminismo. PÓS-F. 109
- Que falemos da ereção da mulher, como se fala da ereção
do homem.
- Que a palavra look seja extinta do vocabulário.
- Que a cafonice também seja extinta.
- Que a ignorância, o maior problema do século XXI, tam-
bém seja extinta.
- Que tenhamos a liberdade de mostrar os seios, assim como
temos de mostrar a bunda.
- Que eu seja menos irascível.
- Que eu seja menos crítica – comigo e com os outros.
- Que, num último dia nesse mundo, eu me abrace muito e me
jogue muito para o alto, porque eu consegui fazer coisas incríveis
nessa vida.
- Que, numa próxima vida, eu me encontre de novo com Ale-
xandre Machado. Mas dessa vez, eu quero que ele seja mulher.
A
CONCLUSÃO É: TODOS TÊM O PÓS-F. 110
MUNDO AOS SEUS PÉS. TÊM.
PISA-SE E NO QUE SE PISA, É
MUNDO. POUCOS, SIM, SÃO
OS QUE TÊM ESSA NOÇÃO;
OS POUCOS QUE PODERÃO SE
TORNAR OS ETERNOS. QUE VÃO DEIXAR MARCAS DAS SUAS
PASSAGENS NA CALÇADA. MAS TODOS, ATÉ OS DA MAIS
BAIXA AUTOESTIMA, DORMEM O SONHO INDIVIDUAL DO SER.
SER ALGUMA COISA NO MUNDO – POR QUE ALGUNS NÃO
CONSEGUEM? NÃO, TODOS CONSEGUEM. SER É FÁCIL. NÃO
EXISTE QUEM DEIXE DE TER A SUA LINHAZINHA TRAÇADA
NO GRÁFICO DO SIMPLESMENTE EXISTIR, TORNANDO-SE
ALGUÉM, MESMO QUE SENDO NINGUÉM. E A VIDA, ORA
PORRAS, É TÃO SOMENTE ISSO, SER UMA COISA, QUALQUER
COISA, UM MERDA, UM MERDINHA. UM OTÁRIO QUALQUER
QUE SE ACREDITA SEDUTOR. QUE SE SABE UM NADA E SE
DIZ BOM DE CAMA. POIS INCLUSIVE ESSE OTÁRIO PISA NO
MUNDO. A TERRA É TÃO LINDA E TÃO AZUL E REDONDA E
BRILHANTE, E ESSE CONQUISTADOR BARATO ESFREGA AS
SOLAS DOS SAPATOS EM SUA PELE. SUAVE PELE DE CIMENTO,
DE PEDRAS PORTUGUESAS, DE BARRO, DE PICHE.
NEM TODO MUNDO MERECIA TER AOS PÉS O MUNDO.
PÓS-F. 111
PÓS-F. 114
PÓS-F. 115
À Culpa PÓS-F. 116

O que é isso, companheira? Sei que prometi mandar


notícias o quanto antes e andava cheia de remorsos por não tê-lo
feito ainda, mas nada justifica as acusações que você me faz.
Você diz que eu não me importo com você, quando todos
sabem que pagar tudo que lhe devo é uma das minhas principais
preocupações. Pergunte às minhas amigas: falo de você quase
todo dia. De como sinto o coração apertar sempre que me lembro
do que você significou em minha vida.
Curioso que, desde que nos conhecemos, você causa
em mim essa sensação de estar deixando de cumprir algum
compromisso que assumi. Acho que é a maneira como você
franze as sobrancelhas quando olha para as pessoas; parece
que está constantemente querendo nos lembrar de alguma coisa
importante que esquecemos.
Desculpas, Culpa, mas fiquei magoada com sua ideia a
meu respeito e gostaria de, mais uma vez, deixar claro que não
quero me eximir de você. Mesmo que quisesse, seria impossível,
psicologicamente falando. Estamos ligadas para sempre, eu e
você, por mil motivos: passamos a infância juntas, fomos colegas
no colégio católico, éramos inseparáveis na adolescência.
Enfim, sou incapaz de esquecê-la, mesmo quando tento.
Tudo me lembra você: as frutas que não como, as ligações que
não faço, o remédio que não tomo, a saudade que não sinto.
Tem um livro, Culpa, que me recorda bastante você:
O pequeno príncipe. É lá que está escrito que nós nos tornamos
responsáveis por aquilo que cativamos. Acredite, jamais negaria
a minha responsabilidade sobre o nosso relacionamento. E fico
penalizada de saber que você está assim, tão terrivelmente
decepcionada comigo. Faço o que posso, você precisa entender.
PÓS-F. 117

Jurei que ia visitá-la e vou, assim que for possível. Parece


mentira esfarrapada, mas, com o passar dos anos, tenho estado
com menos tempo disponível para eventos familiares. E você,
Culpa, eu já considero da família.
Com certeza, vamos nos ver durante o Natal. Que, para
mim, é quase um sinônimo da sua chegada. Senão fica para o
réveillon, quando provavelmente nos encontraremos na hora dos
fogos. No máximo, depois do Carnaval – adoro dividir com você
as besteiras que faço quando bebo, e me fazem falta seus sábios
conselhos.
Calma, não me esqueço do seu aniversário, que se
aproxima – é que não sei se poderei ir. Ausência que doerá mais
em mim do que em você, pode acreditar. Mas é que estou de dieta,
e suas festas, cheias de tentações deliciosas, engorda-me quilos.
Culpa, sei que parece que estou fugindo de você, mas se
há um pecado que não cometo é o da injustiça. Carregaria você
nos ombros, se você sobrasse para mim, somente. Mas nunca
faltarão consciências, por aí, para arcar com você, se isso for
necessário.
Tivemos nosso tempo juntas, e agora os anos colocaram
distância entre nós.
Sinto você aqui comigo, entretanto, neste exato momento.
Só que você não é minha nem eu sou sua.

Melhoras,
F.Y.
CITAÇÕES DOS LIVROS DE
FERNANDA YOUNG:
– P. 27
Dores do amor romântico. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

– P. 34
Os melhores momentos de Os Normais. (Com Alexandre Machado)
Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

– P. 46
A sombra das vossas asas. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

– P. 56
Versículo vigésimo sexto. In: O efeito Urano. Rio de Janeiro:
Rocco, 2011.

– P. 66
Vergonha dos pés. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

– P. 78
Os melhores momentos de Os Normais. (Com Alexandre Machado)
Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

– P. 89
Vergonha dos pés. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

– P. 100
Tudo o que você não soube. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

– P. 110
As pessoas dos livros. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

As cartas publicadas neste livro são de autoria de


Fernanda Young e foram originalmente publicadas na
revista Cláudia, da Editora Abril.
ESTE LIVRO FOI EDITADO NO RIO DE JANEIRO
NO OUTONO DE 2018.
FORAM USADAS AS FONTES FLEISCHMAN,
CRIADA EM 1730, E CHAMPION, DE 2012.
Vislumbro aqui o momento em que isso tudo se desfaz, quando não há mais

9 788544 107164
necessidade de nenhum dos discursos. O feminismo alimenta o machismo e vice-versa.
E digo: só vai existir a necessidade de um feminismo radical enquanto alimentarmos
a existência do machismo. Então acredito que a questão maior que deveria estar
sendo discutida, que é o outro, o respeito ao outro, seja de que sexo for, continua
sendo desmerecida em nome de uma bipolaridade, que é própria da natureza

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