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ISSN 0104-0073

eISSN 2447-7443
DOI 10.25188/FLT-VoxScript(eISSN2447-7443)vIV.n2.p175-182.JRSP
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Montanismo: uma breve reconstrução história


Júlio R. S. Pinto

Faculdade Luterana de Teologia

Setembro de 1994
VOX SCRIPTURAE 4:2 (setembro de 1994) 175-182

MONTANISMO:
UMA BREVE RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA
Júlio R. S. Pinto*

Estima-se que mais de 80% dos evangélicos brasileiros sejam pentecos-


tais. Sem dúvida, esse é o movimento que mais tem crescido no Brasil e em
muitos outros países.'
Na lamentável disputa entre ditos tradicionais e renovados no seio da
igreja evangélica brasileira, um dos argumentos mais comumente empregados
pelos primeiros contra os segundos tem sido o da suposta ausência de dons
carismáticos em todo o período posterior ao do Novo Testamento.
E, como o montanismo, dentre outros, foi o movimento cristão pré-
moderno que mais enfatizou tais dons, qualquer tentativa de construir sua
história e perfil a partir de uma leitura crítica das fontes primárias certamen-
te trará alguma luz sobre a controvérsia entre tradicionais e renovados que
divide o evangelismo brasileiro. É exatamente o que este artigo se propõe
a fazer.

FONTES LI1ERÁRIAS
Há vasta evidência na literatura cristã primitiva de que o movimento
montanista tenha produzido numerosos tratados.' Porém, todos pereceram,
com exceção daqueles escritos por Tertuliano depois de sua adesão àquele
movimento.3 Portanto, nosso conhecimento do montanismo é totalmente

'Júlio Roberto de Souza Pinto, M.A. N.T., atualmente doutorando em Educação pela
Universidade Mackenzie, São Paulo, é o secretário executivo da AETAL/Brasil e professor
do Seminário Servos de Cristo da América do Sul (pós-graduação).
'Cf Patrick Johnstone, Operation World (R ed., Grand Rapids MI: Zondervan e OM
Publishing, 1993) 128-131, que estima os protestantes no Brasil em 19,2%, os evangélicos
em 17,8% e os carismáticos em 15,6% da população. Ou seja, dos 28.814.710 afiliados de
denominações protestantes, 23.475.000 são pentecostais ou carismáticos (82,4%).
2Entre os mont anistas referidos como autores de algum escrito estão o próprio Montano,

Maximila, Priscila (Eusébio, Historia Ecclesiastica 5.3.4; 5.16; Diálogo entre um montanista
e um cristão ortodoxo), Teódoto (H. E. 5.3.4) e Temiso (ibid., 5.18.5). Hipólito (de Roma)
fala ainda de "incontáveis livros" escritos por montanistas (Refutatio omitiam haeresium
8.19).
'Segundo Jerônimo, De viris illustribus 53, Tertuliano teria produzido vários livros em
defesa do montanismo, dentre os quais ele menciona De pudicitia, De fuga in persecutione,
De jejunio, De monogamia, De testimonio animae (seis volumes) e um outro, escrito contra
Apolônio. Outras obras de Tertuliano pertencentes à sua fase montanista sobrevivem até

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dependente de uns poucos oráculos atribuídos a Montano e suas companhei-


ras profetisas que têm sido preservados na literatura cristã primitiva, do
testemunho de seus oponentes católicos e dos tratados produzidos por
Tertuliano durante sua fase montanista.
Os escritos de Eusébio de Cesaréia e de Epifânio são as ferramentas
mais importantes na reconstrução da história do montanismo devido às
fontes que eles preservam. A primeira e a mais extensa fonte de Eusébio,
chamada Anônimo, diz ter pregado contra os montanistas na igreja de
Ancira, Galácia, e ter escrito seus relatos sobre eles treze anos depois da
morte da profetisa Maximila.4 A outra fonte de Eusébio, Apolônio, bispo de
Éfeso, também reivindica ter escrito quarenta anos depois de Montano ter
começado a profetizar.5 Epifânio, por sua vez, afirma ter usado tanto fontes
orais como escritas em sua seção sobre o montanismo.' Entretanto, ele não
dá indicações claras sobre a data e as pessoas citadas. Conforme R. E.
Heine, Epifânio teria dependido de uma fonte frigia do final do segundo
século ou início do terceiro.'
Todos os demais escritores que se referem ao montanismo raramente
introduzem informações novas, extraídas de fontes confiáveis. Mais freqüen-
temente, seus relatos ou são ecos de autores anteriores ou são fundamenta-
dos em boatos não incomuns às controvérsias religiosas. Os tratados de
Tertuliano já mencionados são os únicos escritos montanistas que subsistem,
sendo especialmente importantes para a reconstrução do movimento no
Norte da África.'

HISTÓRIA
O montanismo surgiu na Ásia Menor, o cenário de muitos movimentos
da igreja nesse período, porém não em Éfeso ou outra grande cidade, mas
em uma insignificante localidade da Frigia denominada Ardabar.9 O movi-

hoje.
Eusébio, H. E. 5.16.
'Ibid., 5.18.12.
6Epifânio (Constantiensis), Panaria' 48.15.
'R. E. Heine, The Montanist Oracles and Testemonia (Macon, GA: Mercer Univ. Press,
1989) x. Trata-se de uma coleção dos oráculos atribuídos a Montano e suas companheiras
e dos testemunhos dos pais da igreja a respeito do movimento.
'Heine, op. cit., entende que os escritos de Tertuliano não devem ser empregados na
reconstrução do montanismo frigi°, desde que suas posições divergem das do montanismo
conhecido a partir das demais fontes e parecem ser modificações introduzidas por ele
próprio. Douglas Powell, "Tertullianists and Cataphrygians", Vigiliae Christianae 29 (1975)
33-54, por outro lado, defende que Tertuliano nada conheceu do montanismo além da
"Nova Profecia" original e que seu desvio dela foi mínimo.
9Cf Anônimo, apud Eusébio, H. E. 5.16; Teodoreto, Haereticarum fabularum compendi-
um 3.1.
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mento originou-se na metade do segundo século, durante o reinado de


Antonino ou de Marco Aurélio,' com um novo adepto do cristianismo de
nome Montano." Associadas a ele, havia duas profetisas chamadas Priscila
e Maximila que, segundo se diz, teriam abandonado seus maridos.' Tal
movimento frenético logo chegou a Roma, à Gália e ao Norte da África,
agitando toda a igreja e ocasionando os primeiros sínodos de que se tem
notícia depois da era apostólica.
De acordo com o Cânon Muratoriano, o movimento teria sido iniciado
em Roma por um asiático de nome Basílides." Um certo Próculo é tam-
bém referido como tendo sido um dos lideres montanistas em Roma.' Há
evidência de que os montanistas romanos se tenham dividido em pelo menos
dois grupos: um encabeçado pelo mesmo PrOculo e outro liderado por um
certo Ésquinos, que teria seguido a heresia dos noecianos." Conforme
Tertuliano, o bispo de Roma teria reconhecido as profecias de Montano,
Priscila e Maximila, enviando uma carta de paz às igrejas da Ásia e da
Frigia. Porém, sob a instigação de um confessor asiático de nome Práxeas,
o bispo teria posteriormente revogado a carta e desistido de sua intenção de
admitir os dons.'
Eusébio relata que a literatura montanista teria gozado de vasta
aceitação entre os cristãos da Gália e que estes teriam advogado uma atitude
mais simpática para com o movimento.17 Segundo o mesmo relato, eles
teriam intercedido em favor dos montanistas diante do bispo romano Eleuté-
rio, exibindo várias cartas endereçadas por seus mártires aos cristãos da Ásia
e da Frigia.
No Norte da África os montanistas parecem ter encontrado ainda mais
simpatia. Duas de suas mártires mais distintas, Perpétua e Felicidade, teriam
adotado o movimento. Contudo, sua maior conquista foi o "brilhantíssimo
e veemente, mas excêntrico e rigoroso' Tertuliano. Sem dúvida ele foi o
mais enérgico e influente advogado do montanismo. De acordo com Agosti-

No 19 ano de Antonino (157 A.D.), de acordo com Epifânio,Panarion 48.1.2. Eusébio


data-o no ano 172 A.D. (H. E. 5.16). Teodoro de Heráclia curiosamente afirma que
Montano e Priscila teriam emergido como líderes cerca de duzentos e trinta anos depois do
período da graça apostólica (Fragmenta in Jo. 14.15).
"Cf. Anônimo, apud Eusébio, H. E. 5.16.
'Cf. Apolônio, apud Eusébio, H. E. 5.18.3.
13A Collection of Patristic Teras, fasc. 3, p. 35. O cânon romano também implica que os
montanistas teriam tido um envolvimento literário com os marcionitas.
"Cf. Eusébio, H. E. 2.25.5.
isCf. Hipólito, Refutatio omnium haeresium, 8, 10; e Pseudo-Tertuliano, Adversos
ornnium haeresium, 7.
'Tertuliano, Adversos Prarean, 1. Tertuliano não menciona o nome do bispo, que pode
ter sido Eleutério (177-190) ou Vítor (190-202).
"Eusébio, H. E. 5.3.4.
"Philip Schaff, History of the Christian Church (Edimburgo: T. & T. Clark, 1910) 2:420.
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nho, Tertuliano teria mais tarde abandonado o movimento montanista e


iniciado seu próprio, chamado pelo seu nome.' Isso é posteriormente
confirmado por Predestinato, que se refere aos "tertulianistas" como uma
heresia distinta, condenada pelo papa romano Sotero,2° Conforme o mesmo
Predestinato, os tertulianistas teriam mais tarde sido convertidos por Agosti-
nho e reintegrados à igreja católica."
No tempo de Epifânio o movimento parece ter tido adeptos na Frigia,
Galácia, Capadócia, Cilicia e em Constantinopla.' Há evidência de que os
sucessores de Constantino tenham repetidamente criado leis contra os
montanistas.' O Concilio de Laodicéia (c. 370-390) determinou que todos
os convertidos da "heresia" deveriam ser rebatizados.'
Os montanistas denominavam-se nova profecia e espirituais. Eram
também chamados de frígios , catafrigios, pepuzianos, montanistas , priscilianos,
quintilianos , tertulianistas, tascodrogitas e artitirianos .25

PERFIL
Pelo menos num sentido mais lato, parece que o montanismo concorda-
va com a igreja católica. Tertuliano insistia que "a regra de fé... é única,
inalterável e irreforrnável".' Isso é de certa forma ratificado pelas fontes
de Epifânio,' Hipólite e Pseudo-Tertuliano." Não obstante, há razões
para crer que eles tenham abraçado algum tipo de visão monarquianista e
modalista da Trindade. O próprio Montano teria representado a divindade
como tendo dito: "Eu sou o Pai, eu sou o Filho e eu sou o Parácleto"."
Além disso, Hipólito e Pseudo-Tertuliano relatam que pelo menos uma

"Agostinho, De haeresibus 86.


"Predestinato, Predestinatus 1.26.
"ibid., 86.
'Epifânio, Panarion 48.14.
"Cf. Eusébio, De vira Constantini 3.63-66; Codex Theodosianus.
'Concílio de Laodicéia, Cânon 8. Isso também implica que por esse tempo os monta-
nistas tinham seu próprio clero.
'Cf Epifânio, Panarion 48.14; Jerônimo, Gálatas 2.3; et. al. Às vezes não é claro nas
fontes se tratam-se de diferentes nomes do mesmo movimento ou se dizem respeito a
movimentos relacionados mas distintos.
260 termo "católico" é empregado neste artigo no sentido etimológico de "universal".
27Tertuliano, De virginibus velandis 1.
28 Epifânio, Panarion 8.3-5.
"Hipólito, Refutatio omnizim haeresium 8.19; 10.25-26.
"Pseudo-Tertuliano,Adversus omnium haeresium 7.
'Diálogo entre um montanáta e um cristão ortodoxo. Variações deste oráculo podem ser
encontradas em outros trechos desse mesmo documento e em Didimo, De Trinitate 3.41.1.
Essa afirmação talvez explique a crença posterior de que Montano tenha declarado ser o
próprio Parácleto e/ou o' Pai (cf. Epifânio,Panarion 48.11.5ss; Cirilo de Jerusalém, Cateche-
ses 16.8).
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facção do montanismo romano teria adotado a heresia dos noecianos, que


afirmava que Cristo era Filho e Pai?' Tertuliano, em defesa dos montanis-
tas, atribui ao Parácleto que, segundo cria falava por meio de Montano, as
seguintes palavras: "Deus gerou a Palavra.., assim como a raiz gera a árvore,
a fonte o riacho, e o sol o raio"?' Mas tais palavras obscuras, se não confir-
mam a acusação, de modo nenhum absolvem os montanistas. Jerônimo,
quanto a essa questão, afirma posteriormente: "Discordamos quanto à regra
de fé... eles [os montanistas], seguindo a doutrina de Sabélio, reduzem a
Trindade a uma única pessoa"?'
Diz-se também que os profetas montanistas criam ser os profetas
prometidos por Jesus, de acordo com Mateus 23:34 ("Por isso eis que eu vos
envio profetas, sábios e escribas...")." Hipólito relata que "eles dizem que
aprendem mais por meio deles [seus profetas] do que mediante a Lei, os
Profetas e os Evangelhos. Magnificam essas frágeis fêmeas mais que os
apóstolos e todo dom divino, de maneira que alguns deles ousam dizer que
maiores coisas têm ocorrido a eles do que a Cristo"?' Essa acusação parece
ser confirmada pela obra montanista A paixão das santas Felicidade e Perpé-
tua, onde se lê que "os exemplos mais recentes devem ser considerados
superiores.., de acordo com a decretada superioridade da graça nos períodos
finais do mundo". Os bem conhecidos "quatro estágios do desenvolvimento
da justiça" elaborados por Tertuliano são uma boa ilustração disso' — a
vinda do Parácleto, i.e., o movimento montanista, teria sido a fase final do
processo. Schaff certamente está correto ao observar que "essa é a primeira
instância de uma teoria de desenvolvimento que assume um avanço além do
Novo Testamento e do cristianismo dos apóstolos"?' O próprio Tertuliano
deixa isso ainda mais explícito quando diz que "ele tem agora dissipado
todas as ambigüidades anteriores.., com a clara e nítida proclamação do
mistério por meio da nova profecia que flui do Parácleto"." Ainda em
outro lugar ele declara: "Se Cristo anulou o que Moisés ordenou porque
'não foi assim desde o início' (Mt 19:8)... por que o Parácleto não poderia
revogar aquilo que Paulo permitiu, uma vez que o casamento também não
existia desde o princípio?"' Relacionado com isso, é possível que os mon-

"Cf. Hipólito, Refutatio omnium haeresium 8, 10; Pseudo-Tertuliano, Adversus omnium


haeresium 7.
"Tertuliano, Adversus Prarean 8.
"Jerônimo, Epistula 41, Ad Marcella.
35Anônimo, em Eusébio, H. E. 5.16.

"Hipólito, Refutatio omnium haeresium 8.19. Cf também Pseudo-Tertuliano, Adversus


omnium haeresium 7.
"Tertuliano, De virginibus velandis 1.
"Schaff, History of the Christian Church 2:422.
"Tertuliano, De resurrectiOne carnis 11.
'Tertuliano, De monogamia 14.3s.
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tanistas também acreditassem que o Espírito prometido por Jesus havia sido
dado a eles e não aos apóstolos, e que o teleion referido em 1 Coríntios
13:10 havia chegado com Montano."
De acordo com Apolônio, Montano teria renomeado de "Jerusalém"
as pequenas cidades frigias de Pepuza e Tímion." Porém, talvez Weizsãcher
esteja correto em afirmar que "essas duas cidades foram assim denominadas
não no contexto da Jerusalém celeste, mas sim no da Jerusalém de Atos —
da recriação de uma igreja primitiva altamente organizada mas espiritual-
mente orientada"." Isso pode explicar a crença montanista posteriormente
desenvolvida de que a Jerusalém celeste desceria em Papuza." Tertuliano
esperava a descida escatológica da Nova Jerusalém, porém na Judéia, e
indica que a Nova Profecia teria partilhado dessa mesma esperança."
Parece que os montanistas também insistiam que o verdadeiro profeta
teria de falar em êxtase, possivelmente negando a presença do dom profético
entre os católicos ou "psíquicos"." Tertuliano, tudo indica, partilhava da
mesma posição.' Na realidade, era exatamente esse o ponto em que o
montanismo era criticado com maior freqüência."
Outro alvo de constantes críticas era sua comprovada e rigorosa
disciplina." Segundo Hipólito, os montanistas teriam instituído um jejum
no sábado e outro no domingo, como também uma dieta especial baseado
em alimentos secos e repolho.' Tertuliano acrescenta que eles não bebiam
nada que tivesse sabor de vinho, e que também costumavam abster-se de

'Cf. Teodoro de Heráclia, Fragmenta in Jo. 14.15; Diálogo entre um montanista e um


cristão ortodoxo; Dídimo, De Trinitate 3.41.2; Jerônimo, Epistula 41. Na verdade, alguns
montanistas admitiam que os apóstolos tivessem possuído o Espírito, pelo menos parcial-
mente (cf. Diálogo entre um montanista e um cristão ortodoxo; Filástrio de Bréscia, Diver-
sarum haereseon liber 49).
42Eusébio, H. E. 5.18.2.

'Apud Powell, "Tertullianists and Cataphrygians" 44.


"Cf. Epifânio, Panárion 48.14. Na verdade Epitáfio não está certo se isso foi profetizado
por Priscila ou pela desconhecida Quintila. Powell opta por Quintila, que supõe ter sido
uma profetisa posterior (cf. op. cit.).
'Tertuliano, Adversus Marcionem 3.24. Tertuliano inclusive alude a uma profecia
montanista de que uma imagem da cidade apareceria como um sinal antes da manifestação
de sua presença.
"Anônimo, em Eusébio, H. E. 5.16-17; e Epifânio, Panárion 48.4. É provável que os
montanistas tenham tentado estabelecer uma espécie de sucessão profética.
e.g., Tertuliano,Adversus Marcionem 4.22.
"Cf. Anônimo, apud. Eusébio, H. E. 5.16-17; Epifânio, Panárion 48.4; e Didimo, 2
Corintios 5.12.
49Na opinião de Tertuliano, De jejunio, essa era a verdadeira razão por que a Nova

Profecia era rejeitada: "somos rejeitados simplesmente porque nossos jejuns são mais
numerosos que nossos casamentos".
"Hipólito, Commentarium in Daniel 4.20.
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tomar banho." Em outro lugar afirma que os montanistas proibiam segun-


do casamento e até recomendavam abstinência sexual no matrimônio.'
Tertuliano declara ainda que eles costumavam encorajar seus seguidores a
buscar o martírio segundo o ensinamento de Montano, estigmatizando os
desertores." Todo esse extremismo levou Jerônimo a concluir que os mon-
tanistas "fechavam as portas da Igreja diante de quase qualquer ofensa."'

CONCLUSÃO
Este trabalho, que se propôs a reconstruir a história e o perfil do
movimento montanista, começou tratando da questão das fontes. Notou-se
que toda a evidência documental de que se dispõe hoje, com exceção dos
escritos de Tertuliano, foi produzida pelos adversários do movimento.
Observou-se também que grande parte desses documentos nada mais é que
uma reprodução de escritos anteriores, muitos dos quais de origem pouco
confiável. E o que é ainda mais grave, verificou-se que tais fontes apresen-
tam inúmeras e sérias contradições.
O artigo continua fazendo uma rápida reconstrução da expansão do
montanismo, reunindo evidências do movimento na Asia Menor, Roma,
Gália, Norte da África e outros lugares do mundo de então. Apresenta
indícios de aceitação do montanismo, especialmente no Norte da África,
onde chegou a conquistar um dos maiores teólogos cristãos de todos os
tempos, Tertuliano, até ser condenado como "heresia" nos primeiros sínodos
convocados pela Igreja.
O opúsculo passa em seguida a reconstruir o perfil do movimento. A
despeito das evidências de que tenham abraçado uma posição um tanto
monarquiana da Trindade — o que não era nada incomum à época — os
montanistas em linha geral concordavam com a fé católica. Afinal, não se
pode esquecer que Tertuliano, um de seus mais ardorosos defensores, foi o
primeiro formulador da teologia trinitária ortodoxa.
Como explicar, pois, sua condenação? Teria sido ela ocasionada pela
então emergente teologia canônica, como insistem alguns historiadores? Ou
teria sido ela antes forçada pelo desenvolvimento organizacional e episcopal
da igreja que o montanismo atacava?

"Tertuliano,De jejunio 1.
'Tertuliano, De exhortatione castitatis 10; e De pudicitia 1. Isso talve a acusação feita
posteriormente de que os montanistas ordenavam a dissolução de casamentos (Cf também
De monogamia 15.2).
"Tertuliano, De fuga in persecutione 9.4; 11.3.
54Jerônimo,Epistula 41. A luz de toda essa evidência é no mínimo curioso que Apolônio
tenha acusado os montanistas de gula, suborno e imoralidade (cf. Eusébio, H. E. 5.6; 5.18).
O montanismo foi objeto de muitas outras calúnias, tais como sacrifício de crianças e servir
pão e queijo em seus "mistérios" (cf Epifânio, Panárion 49.2).
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Diante de toda a evidência apresentada, parece não restar outra saída


senão concluir que o movimento montanista tem sido mal-entendido e mal-
falado ao longo dos séculos. É verdade que houve excessos e deturpações
doutrinárias cometidas por muitos de seus seguidores. Mas pode ter sido a
forte rejeição das outras igrejas cristãs, por parte de um montanismo super-
espiritual e ascético, que teria provocado uma reação igualmente negativa
na corrente principal do cristianismo. No entanto, o fato de que Tertuliano
e outros entendiam o montanismo como pneumático e reformador, dissemi-
nado em quase todo o mundo cristão da época, parece implicar que o
montanismo foi recebido como uma renovação e continuação da piedade
neotestamentária.
Finalmente, que entendimentos esta tentativa de reconstruir o movi-
mento pode trazer sobre a disputa entre os ditos tradicionais e renovados no
seio da igreja evangélica brasileira? Primeiro, é preciso conhecer um movi-
mento de modo mais amplo e profundo possível antes de julgá-lo. Segundo,
até os grupos considerados exagerados podem ter algo com que contribuir
à igreja. Terceiro, quando qualquer igreja se eleva, considerando-se espiri-
tualmente superior às outras com base em externalismos (ascetismo, legalis-
mo) ou experiências pneumáticas, a Igreja é dividida e seu testemunho no
mundo é enfraquecido.

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