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Suicídio e hermenêutica

Ulysses Pinheiro
UFRJ/CNPq

Há uma grande distância separando Antonin Artaud de Samuel Beckett – mas,


justamente por isso, o ponto em que seus escritos se tocam desperta imagens de uma
insuspeitada zona de interseção ela mesma impessoal, não pertencente a qualquer obra ou
autor. Não se trata de sugerir que eles compartilhavam ou exprimiam o “espírito de uma
época”, nem muito menos de apontar para improváveis “influências”, mas antes de
circunscrever, nessa interseção anônima, um campo apropriado para refletir sobre o
próprio anonimato. Uma determinada atitude em relação ao suicídio, comum até certo
ponto a ambos, inscreve-se, como veremos, justamente nesse espaço de uma experiência
anônima e das palavras que pretendem exprimi-la.
O tema do suicídio é recorrente em Artaud: em dois textos, ditos um tanto
impropriamente “surrealistas”1, escritos em 1925, ele descreve o suicídio a partir de uma
duplicação entre o “eu” e o “eu de Antonin Artaud”; já em 1947, um ano antes de sua
morte, trata novamente do tema em Van Gogh ou o suicidado da sociedade2, voltando a
caracterizar o suicídio como uma espécie de possessão externa que força o pintor a se
matar. No primeiro dos textos de 1925, ao responder a uma enquete publicada na revista
Révolution surréaliste3, cuja formulação era “O suicídio é uma solução?”, sua resposta é
negativa, não porque a possibilidade do suicídio não traria nenhum conforto, mas, de
modo surpreendente, porque o suicídio é simplesmente impossível; sua possibilidade
suporia que o eu que quer sua própria aniquilação pudesse ser uma instância autônoma de
decisão. Em suas próprias palavras:
... o suicídio é ainda uma hipótese. Eu pretendo ter o direito de duvidar do suicídio
como de todo o resto da realidade [....] E certamente eu já estou morto há muito tempo,
eu já me suicidei. Suicidaram-me, quer dizer. [....] Eu não sinto o apetite para a morte,
eu sinto o apetite de não existir, de não cair jamais nesse passatempo de imbecilidades,

1
Antonin Artaud (1976). Os textos citados são, respectivamente, “Enquête: Le suicide est-il une solution?”
(pp. 20-21) e “Sur le suicide” (pp. 26-28), reproduzidos também em Artaud (2004), pp. 124-126.
2
Antonin Artaud (2004), pp. 1439-1463.
3
No 2, janeiro de 1925; cf. Artaud (2004), p. 124. Para uma análise sobre a presença do tema do suicídio
na literatura francesa do início do século, cf. Leonid Livak (2000). Segundo Évelyne Grossman (In: Artaud
(2004), p. 124), “a resposta de Artaud seguia a de surrealistas e outras personalidades da época, dentre as
quais F. Jammes, M. Jouhandeau, e até mesmo um M. Teste”.
2

de abdicações, de renúncias e de encontros obtusos que é o eu de Antonin Artaud, bem


mais fraco que ele. O eu deste instável errante e que, de tempos em tempos, vem
apresentar sua sombra sobre a qual ele mesmo foi cuspido, e há muito tempo, esse eu de
bengalas e se arrastando, esse eu virtual, impossível, e que se encontra ainda assim na
realidade.

Já no segundo texto de 19254, intitulado “Sobre o suicídio”, a possibilidade desse


último é admitida – para efeitos de argumentação, poder-se-ia dizer –, de tal modo que
ela coincidiria com o retorno de seu eu confiscado a si mesmo, e representaria, pois, ao
invés de uma supressão da realidade, sua conquista decisiva; diz ele aí:

A própria idéia da liberdade do suicídio cai como uma árvore cortada. Eu não criei nem
o tempo, nem o lugar, nem as circunstâncias de meu suicídio. Não invento nem mesmo
o pensamento, sentirei o dilaceramento? [....] até mesmo para chegar ao estado de
suicídio, me é preciso esperar o retorno de meu eu, me é preciso o livre jogo de todas as
articulações de meu ser. Deus colocou-me no desespero como em uma constelação de
impasses cujo raio chega a mim. Eu não posso nem viver, nem morrer, nem não desejar
morrer ou viver. E todos os homens são como eu.

Mas, como vimos, a possibilidade do suicídio aqui entrevista já havia sido


eliminada no primeiro texto. O suicídio não é uma solução porque ele é impossível: já fui
suicidado, diz Artaud, e nada pode revogar isso – o que não impede a revolta e a
denúncia estridente contra esse fato primordial. Já em 1947, no texto sobre Van Gogh, a
retomada da comparação do suicidado com uma árvore cortada volta a enfatizar o aspecto
passivo e exterior do ato do suicídio: a “consciência geral da sociedade”, para punir Van
Gogh por ele “ter se arrancado dela”, “o suicidou”: “Ela se introduziu, pois, em seu corpo
[....] apagou nele a consciência sobrenatural que tinha acabado de conquistar e, tal como
uma inundação de corvos negros nas fibras de sua árvore interna, submergiu-o em um
último sobressalto, e tomando seu lugar, o matou”5.
Se o suicídio é impossível, é porque não há o que terminar; a vida, no sentido
estrito, lhe fora roubada antes mesmo do nascimento, ainda no útero, e não pôde ser
começada. Tal roubo é uma ação realizada por um desígnio perverso6; assim, no segundo
texto de 1925, logo em seguida à admissão hipotética da possibilidade do suicídio,

4
Publicado na revista Le Disque vert, 3º ano, no 1, janeiro de 1925, que anunciava em sua capa o tema
geral daquele número: “Sur le suicide”.
5
Artaud (2004), p. 1443.
6
“C’est la pente des hautes natures [....] de croire que rien jamais n’est dû au hasard et que tout ce qui
arrive de mal arrive par l’effet d’une mauvaise volonté consciente, intelligente et concertée. Ce que les
psychiatres ne croient jamais. Ce que les génies croient toujours” (Artaud (2004), p. 1449).
3

Artaud subtrai essa hipótese justamente ao introduzir a pergunta “E esse Deus, o que ele
diz?”, e ao oferecer como resposta uma acusação contra Ele: “eu não sentia a vida, a
circulação de toda idéia moral era para mim como um rio seco. A vida não era para mim
um objeto, uma forma; ela tinha se tornado para mim uma série de raciocínios”7. Ao
invés de sentir a vida (isto é, de viver, no sentido essencial desse termo), ele se limita a
uma existência confiscada por Deus através de si mesmo em seu momento inaugural, sem
que esse “eu” coincida, a rigor, com Antonin Artaud; a partir de então, a existência
apresenta-se como uma série de pensamentos sobre a vida – sobre a vida “de Antonin
Artaud”, bem mais forte do que esse eu. À solução mais fácil de negar ou duvidar da
existência do Deus que criou essa vida partida, Artaud preferiu uma declaração de guerra,
simultânea à constatação de que seu eu o retirou de si mesmo, o desalojou, confirmando
que o suicídio, afinal de contas, é realmente impossível. Se por um lado essa batalha
ocorre entre a alma e o corpo, ela também ocorre entre o corpo sem órgãos e o
organismo. De fato, o que Artaud designa pela expressão “corpo sem órgãos” está
estritamente vinculado ao julgamento de Deus – segundo Gilles Deleuze e Felix Guattari,
“O juízo de Deus, o sistema do juízo de Deus, o sistema teológico, é precisamente a
operação d’Aquele que faz um organismo, uma organização de órgãos que se chama
organismo porque Ele não pode suportar o CsO [corpo sem órgãos], porque Ele o
persegue, aniquila para passar antes e fazer passar antes o organismo” 8. O corpo sem
órgãos é um plano de intensidades, que foi fixado, através do nascimento, ou mesmo da
concepção, em um organismo vilipendiado e classificado dentro de limites estritos, o que
faz com que esse eu orgânico e psíquico seja propriamente o meio pelo qual Deus subtrai
Antonin Artaud de si mesmo. Daí por que não se trata nem de ser assassinado nem de se
suicidar, mas antes de ser suicidado: algo nele (um organismo, um significado ou um

7
Artaud (1976), p. 126.
8
Sobre esses pontos, cf. Deleuze e Guattari (1996), p. 21. Longe de supor uma experiência misteriosa e
transcendente, a referência ao corpo sem órgãos corresponde a uma experiência cotidiana (embora muitas
vezes bloqueada): “Como dizer a que ponto é isto simples, e que nós fazemos todos os dias” (p. 22). Apesar
disso, tal operação de “fazer para si um corpo sem órgãos” envolve riscos: trata-se de uma arte que exige
uma medida precisa, sob o perigo de ultrapassar um ponto de ruptura; ainda assim, não se trata de desejar o
suicídio: “Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um
agenciamento, circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidade,
territórios e desterritorializações medidas à maneira de um agrimensor” (p. 22).
4

sujeito instalados em sua cabeça como em um ninho) toma seu lugar e o destrói 9. O
suicídio, mostram Deleuze e Guattari, pode ser engendrado no nível do próprio corpo
sem órgãos na medida em que ele “cai no vazio da desestratificação brutal, ou bem na
proliferação do estrato canceroso”10 – razão pela qual, dizia o próprio Artaud, o corpo
sem órgãos pode ser uma sombra que nos cerca “com um prolongamento obscuro ou com
uma ameaça segundo o caso”11. Mas mesmo nesse caso, trata-se sempre de uma reação –
desmedida – contra a estratificação. Esse é o motivo por que não pode residir em mim a
iniciativa pelo meu suicídio. Sou eu este sujeito que fala, este é meu organismo, estes são
significados que eu reconheço – mas, por isso mesmo, há algo em mim que me sujeita,
me organiza; sou significado por outro e sempre desde uma perspectiva estranha, que
estratifica meu corpo sem órgãos – na medida restrita em que esse último pode ser dito
propriamente “meu”12.
A impossibilidade de terminar explicada como uma conseqüência do fato de que
nada foi ainda começado parece estruturar de modo semelhante o pensamento de Beckett
– mesmo guardando todas as enormes distâncias que o separam de Artaud e de sua
revolta metafísica contra o Deus usurpador. Mas tampouco aqui se trata de uma atitude
trágica diante do inevitável esmagamento do indivíduo por forças superiores. De fato, se
aceitarmos, como propõe Goethe, que “todo trágico baseia-se em uma oposição
irreconciliável” – de forma que, “assim que surge ou se torna possível uma reconciliação
[Ausgleichung], desaparece o trágico”13, deveremos reconhecer que, no caso de Artaud, a
tragédia nunca pode de fato se instalar, não porque ele aponte para uma conciliação, mas
porque sua revolta indica uma insubmissão de alguém ou de algo que, desterrado de si
mesmo, cria, no entanto, em uma espécie de plano virtual, um embate de morte contra as
forças que tentam dominá-lo, igualando-se por isso mesmo a elas em grau de força (e
podemos suspeitar que Artaud acreditava ter ganhado a batalha – ter acabado de fato com
o julgamento de Deus, naquela emissão radiofônica censurada, mas que pôde ser escutada
por Quem importava de fato). No caso de Beckett, como nota corretamente George

9
Sobre o processo de constituição de uma identidade como um modo de destruição de si, cf. Florence de
Mèredieu (1992), especialmente pp. 115-140.
10
Idem, p. 28
11
Idem, p. 26.
12
Idem, p. 23.
13
Goethe (1956), p. 118, citado por Peter Szondi (2004), p. 48.
5

Steiner em seu livro A morte da tragédia, sua “poética minimalista [....] pertence, apesar
de ela expressar desolação e até niilismo, mais às esferas da ironia, da farsa lógica e
semântica, do que da tragédia”14. Pensemos, por contraste, em um exemplo clássico de
tragédia, a Fedra de Racine (autor muito admirado por Beckett): a realização do elemento
trágico acontece precisamente com o suicídio de Fedra (precedido – ou melhor,
anunciado pela morte de Hipólito), cuja fala final se dá na agonia lenta do veneno que
toma conta de seu corpo. O valor exemplar de Fedra reside, pelo menos no contexto da
presente discussão, no fato de ela mostrar claramente que o suicídio pode ser um
elemento do trágico – e, se aceitarmos a interpretação que Roland Barthes propõe para
essa peça teatral15, esse valor exemplar mostra-se particularmente adequado para pensar a
relação entre a possibilidade da tragédia e a enunciação de uma palavra que pode pôr um
fim à ação, na medida em que a tragédia se realiza como palavra dita, um ato irreversível
cujo tempo de enunciação coincide exatamente com o ato de morrer: “o que está em jogo
no trágico é aqui muito menos o sentido da palavra do que sua aparição, muito menos o
amor de Fedra do que sua confissão”16. A confissão identifica ato e conteúdo, pois
importa menos o que é confessado do que o ato de confessar, realizando o tempo trágico
na união do falado e do real17. Às personagens de Beckett está vedado esse tipo de
enunciação: encontrando-se em uma situação sem saída, suas personagens geralmente
nem ao menos contemplam a possibilidade do suicídio18 – ou, quando o fazem, parecem
abandoná-la como a imagem impossível, e por isso mesmo real, de um acontecimento
simultaneamente aguardado e indiferente. Nessa impossibilidade, a dissolução do sentido
da linguagem desempenha um papel importante. “O fim está no começo e, no entanto, se
continua”, diz Hamm em Fim de partida19: ao final dessa peça teatral, a situação inicial
de Hamm e Clov mantém-se a mesma, precisamente porque, desde o início, já se partira
do fim. O silêncio do fim é antecipado e desejado ansiosamente, mas não há nada que ele

14
Steiner (2006), p. XIX. Para uma opinião oposta, cf. Jean-Marie Domenach (1967), citado por Alain
Virmaux (2000), p.228.
15
Barthes (1963), pp. 109-115.
16
Idem, pp. 109.
17
Idem, pp. 110 e 116.
18
Foi o Prof. Paulo Faria quem me chamou a atenção para esse fato, durante a apresentação de um outro
texto meu sobre Beckett, intitulado “Beckett, Leibniz”, na aula de abertura do Programa de Pós-Graduação
em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em março de 2010.
19
Beckett (1971), p. 201.
6

venha de fato terminar que já não esteja terminado desde sempre. Há outro trecho de Fim
de partida que ilustra esse ponto exemplarmente:
HAMM: Eu, eu me sinto um pouco esquisito. (Um tempo) Clov. CLOV: Sim.
HAMM: Você não já não teve o bastante disso? CLOV: Sim! (Um tempo) De
que? HAMM: Desse… dessa… coisa. CLOV: Mas desde sempre. (Um tempo)
Você não? HAMM (melancólico): Então não há razão para que isso mude20.

Contrariamente a Artaud, Beckett não deixa espaço nem ao menos para a hipótese
quimérica de um suicídio que promoveria o reencontro do eu usurpado consigo mesmo.
A idéia de um “eu” puro localizado aquém da linguagem e que poderia, em um último
ato, pôr fim às vozes que narram histórias é quimérica, pois também o eu é um efeito da
linguagem, uma invenção: a linguagem apóia-se sobre nada. Mas, e agora de modo
semelhante ao que ocorre na obra de Artaud, o estabelecimento da impossibilidade real
do suicídio é derivado, também no caso de Beckett, da constatação de que o que não
começou não pode terminar. Maurice Blanchot mostra que a linguagem é um movimento
que não pode terminar porque começou no fim – é essa a “descoberta terrível” de
Beckett: “quando ela não fala, ela fala ainda, quando ela cessa, ela persevera, não
silenciosa, pois nela o silêncio eternamente se fala”21. O inominável está condenado a
esgotar o infinito, diz Blanchot22. A repetição do mesmo (das mesmas ações, dos mesmos
gestos, das mesmas falas), acrescida ou não de variações, é ela mesma uma das
possibilidades das séries de acontecimentos a serem esgotados, constituindo, portanto,
mais um de seus signos. É a repetição que explicita, simultaneamente, tanto a
impossibilidade de uma narrativa que articule elementos distintos em uma ordem
progressiva quanto a inesgotabilidade da própria narrativa, ainda que ela não avance um
só milímetro do começo ao fim. A visão dessa paisagem desértica não seria suficiente
para despertar nas personagens beckettianas o pensamento do suicídio, ainda que ele seja
impossível? Notemos, porém, que a desolação da paisagem não vem acompanhada por
uma espécie de sentimento de “angústia” derivado da percepção da arbitrariedade das
escolhas, o que faria de Beckett apenas mais um existencialista. Ao contrário, suas

20
Idem, p. 147.
21
Blanchot (1959), p. 286.
22
Idem, p. 291. Blanchot cita aí um trecho de O inominável: “Não sabendo falar, não querendo falar, devo
falar. Ninguém me obriga a tal, não há ninguém, é um acidente, é um fato. Nada poderá nunca me
dispensar disso, não há nada, nada a descobrir, nada que diminua o que resta a dizer...”.
7

personagens parecem sempre contemplar com certa indiferença e até mesmo humor a
situação na qual se encontram – e seria um erro fatal de leitura negligenciar o senso de
humor de Beckett. Há um riso perturbador, um tanto malévolo, mas também inocente,
circulando de forma audível entre as linhas de seus textos.
A progressão ao infinito em direção ao nada é um elemento central da obra de
Beckett: por exemplo, na seqüência dos romances Molloy - Malone morre - O
inominável, as etapas da desagregação organizam-se em uma gradação contínua: um
corpo semiparalisado andando em círculos; um homem morrendo confinado a uma cama,
movendo objetos com o auxílio de bastões; a voz que fala de dentro do nada que é a
(quase) morte, no paradoxo de uma experiência impessoal23. É particularmente ilustrativa
a involução inesgotável de Malone/MacMann: a linguagem reproduz em si mesma o
movimento de desaparecimento até a morte, calando-se em um processo de perpetuação,
na medida em que se trata precisamente de capturar, na linguagem, seu fim. O título do
romance já o diz: Malone morre, com o verbo no presente; a morte não é um evento
separado da escrita, a ser narrado por ela, mas seu elemento próprio, co-presente24. Em
sua primeira frase, Malone anuncia: “Em breve estarei bem morto finalmente apesar de
tudo”; a seqüência do texto acompanha esse declínio, até suas últimas palavras, que
adiam elas mesmas seu próprio término, sem poder nomeá-lo: “ou com ele ou com seu
martelo ou com seu bastão ou com seu punho ou em pensamento ou em sonho eu digo
nunca ele nunca/ ou com seu lápis ou com seu bastão ou/ou luz luz eu digo/nunca lá ele
irá nunca/nunca nada/lá/não mais”25. Ao invés de descrever o fim, a linguagem ela
mesma agoniza26.
A impossibilidade do suicídio elucida, a meu ver, um ponto importante para a
compreensão adequada da leitura de Beckett (e a partir deste ponto nos afastamos
bastante de Artaud – mas talvez não para sempre, como veremos no final deste texto).
Toda interpretação de sua obra, quer seja ela formulada a partir da filosofia ou da crítica
literária, apresenta uma dificuldade central, uma espécie de risco intrínseco, pois a
filosofia, como também a própria literatura e a tradição teatral, aparecem nela sempre

23
Sobre essa involução inesgotável em direção ao nada presente na trilogia, cf. o ensaio de Dieter
Wellershoff (1976).
24
Compare com as palavras definitivas, finais, da Fedra de Racine, enunciadas no elemento da morte.
25
Beckett (1958), p. 179 e p. 288.
26
Segundo a expressão de Domenach, (1967), p. 277.
8

como paródia, como restos destroçados de um discurso que já foi um dia significativo.
Theodor Adorno, em seu ensaio sobre Fim de partida, propõe que a especificidade do
drama é a expressão de um sentido metafísico; diante da constatação da ausência de
sentido, o drama não pode reagir negativamente, fazendo dessa ausência seu novo
sentido; isso equivaleria a “transformar a essência do drama em seu oposto”27. Logo,
continua ele, “a interpretação de Fim de partida não pode perseguir a quimera de
expressar o sentido da peça através da mediação filosófica. Entender Fim de partida só
pode ser entender por que ela não pode ser entendida, reconstruindo concretamente o
sentido coerente de sua incoerência”28. E Adorno conclui: “A palavra interpretativa
inevitavelmente não alcança Beckett, embora seus dramas, precisamente em virtude de
serem restritos à faticidade isolada e abstrata, se contorçam convulsivamente para além
dos meros fatos e enigmaticamente demandem interpretação”29. Segundo Adorno, a
capacidade para lidar com esse enigma pode bem ser o critério para determinar o que
significa fazer filosofia hoje. Ou seja, não são somente as personagens de Beckett que
fracassam em suas tentativas de expressar algo: sua própria escrita só pode ser
corretamente compreendida se ela mesma for uma instância desse fracasso, e se ela não
for confundida com a expressão trágica da ausência de sentido do mundo.
A dificuldade para o intérprete da obra de Beckett não é pequena: como iluminar
seu texto a partir de uma metalinguagem qualquer mantendo ao mesmo tempo sua
opacidade? A resistência interpretativa de seus textos força a uma reelaboração da própria
atividade de interpretação: eles não pretendem, como vimos, exprimir a ausência de
sentido do mundo; tampouco se trata de exprimir o abandono da pretensão de dar um
sentido ao mundo, numa espécie de silenciamento místico confortador – lembremos da
advertência de Hamm: “O fim está no começo e, no entanto, se continua”. É preciso
entender essa frase em sua radicalidade: não se trata de continuar apesar de saber que não
há o que ser continuado, mas, ao contrário, de continuar porque não há o que continuar.
A desesperança nunca pode ser convertida em salvação, ao contrário do que poderiam
propor os últimos gestos desesperados dos que desejam resgatar um sentido qualquer para
a vida, ou para a arte ao menos. O que Beckett diz não pode ser sistematizado em uma

27
Adorno (1969), p. 83.
28
Idem, p. 84.
29
Idem, p. 85.
9

espécie de visão de mundo qualquer, simplesmente porque a dissolução da linguagem,


que é seu elemento próprio, é opaca a qualquer sistematização – ela é um lugar onde
podemos nos instalar, onde talvez já estejamos desde sempre instalados, mas sobre o qual
não podemos falar de forma sistemática, através da enunciação de teses, pois nossa
própria linguagem, quando chega a esse ponto, como diz Deleuze, gagueja30. Ouçamos
com atenção o que ele nos diz a cada passo na trilogia de romances; ele não nos fala em
uma língua estranha, povoada por neologismos: Malone morre, Molloy arrasta-se em
direção à casa de sua mãe. Entendemos claramente os princípios que fazem com que a
linguagem se dobre sobre si mesma para acompanhá-los até a morte, ou até o leito no
quarto da mãe. Mas, nessa dobra, o que se perde é a paz tranqüilizadora de qualquer
referência objetiva ao mundo, denotado por palavras, bem como a ilusória contrapartida
pacificadora de um abandono dessa busca. Ficamos apenas com a linguagem? Isso
tampouco é possível: ao perder de vista o mundo, também a perdemos. Mas ela ainda está
lá, falando sons e produzindo sentidos locais mais ou menos discerníveis. Máxima
beckettiana: “Melhor mal dizer para dizer menos”31 – mas há sempre um resto, é sempre
uma desarticulação que se mostra, e o intérprete deve resistir a incluir aí uma unificação
abstrata qualquer.
Talvez Artaud reencontre-se com Beckett, por vias diversas, no que diz respeito à
dissolução de um esquema interpretativo unificador: se for verdade, como afirmam
Deleuze e Guattari, que, para Artaud, o organismo é “o ângulo de significância e de
interpretação”32, então o corpo sem órgãos propõe “a desarticulação [....] como
propriedade do plano de consistência” e “a experimentação como operação sobre esse
plano”; daí eles retiram uma máxima: “nada de significante, não interprete nunca!”33 – ou
antes: é preciso que algo do organismo seja preservado, para que esse processo de
desterritorialização continue, e, juntamente com o organismo, é também necessário
conservar “pequenas provisões de significância e de interpretação [....], inclusive para
opô-las a seu próprio sistema, quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as

30
Cf. Deleuze (1997).
31
Segundo expressão de (2008)Fábio de Souza Andrade, p. XVII.
32
Deleuze e Guattari (1996), p. 22.
33
Idem, ibidem.
10

pessoas, inclusive as situações nos obrigam”34. A falência da interpretação é não


propriamente anunciada ou descrita, mas incorporada à linguagem de forma positiva: ela
passa a ser a própria forma do pensamento e o elemento no qual se pensa. “Dez anos que
a linguagem partiu...”, escreve Artaud em abril de 1947; desde então nunca mais foi
possível para ele escrever sem ao mesmo tempo desenhar – muitas vezes um desenho
propositalmente “mal feito” (e que faz mal, como nota Jacques Derrida35), de tal modo a
mostrar nessa malfeição a maldição que porta sobre o ser desenhado (“afin de mépriser
l’idée prise”, diz Artaud36), e, do mesmo golpe, atingir a arte e suas instituições: “é o fim
da Arte, da História da Arte, com A maiúsculo, da Arte pela Arte [....] aquela cujo culto
terminamos por celebrar nos museus”, diz Derrida37 – “e isso quer dizer que é tempo para
um escritor de fechar as portas, e de abandonar a letra escrita pela letra”38. A arte surge
de um inacabamento: a “idéia do mundo” foi interrompida, diz Artaud (“Cela vient de ce
que l’homme,/un beau jour,/a arrêté/l’idée du monde”)39. A possibilidade humana de
sentidos unívocos – dentre eles a Arte como repositório da idéia interrompida do mundo
– perdeu-se, então, de modo definitivo quando essa idéia foi posta em marcha novamente
por ele. De qualquer maneira, quando foi pronunciada a fórmula, o encantamento ou a
maldição que acabou de vez com o julgamento de Deus, a arte tampouco era mais
necessária40.

Bibliografia:

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Interpretations of Endgame. Editado por Bell Gale Chevigny. New Jersey: Prentice-Hall,
1969, pp. 82-114.

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Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. VII-XXVII.

34
Idem, p. 23.
35
Derrida (2002), p. 33.
36
Idem, p. 25.
37
Idem, p. 39.
38
Idem, p. 40. É preciso atentar para a ambigüidade da palavra “lettre” em francês, e especialmente nos
textos de Derrida, para o que seria útil consultar as análises sobre Jacques Lacan (especialmente o
Séminaire sur La lettre volée (de 26 de abril de 1955), em torno da obra de Edgar Allan Poe) desenvolvidas
por Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe (1973). O próprio Derrida chama a atenção, nessa
passagem, para uma outra ambigüidade, a da frase como um todo citada acima.
39
Artaud (2004), p. 1645.
40
Agradeço a Josefina Neves Mello pela cuidadosa revisão deste texto.
11

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Paulo: Perspectiva, 2000.

WELLERSHOFF, Dieter –“Toujours moins, presque rien”. In: Cahier de L’Herne Samuel
Beckett. Paris: Éditions de l’Herne, 1976, pp. 123-147.

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