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GÊNESIS TEÓRICA DO ESTADO

por Jorge Martínez Barrera


tradução livre por Allan Dos Santos
Como Alessandro Passerin d’Entrèves aponta, desde o momento do nosso nascimento até
a nossa morte, nossa vida está marcada pela influência de várias forças que a
dificultam ou a protegem. Existem forças de um tipo natural, mas existem outras que
foram criadas por nós. Entre estas últimas, há aquelas associadas com uma entidade
misteriosa, mas onipresente, possuindo um poder indefinido, mas ao mesmo tempo
irresistível: o Estado.
O primeiro a usar o termo “Estado” num sentido que é praticamente idêntico ao
contemporâneo, foi Maquiavel na primeira linha do Príncipe: “Todos os Estados,
todos os Domínios que tinham e têm autoridade sobre os homens, eram e são
repúblicas ou principados”. De fato, seria demais fingir exigir de um escritor não-
sistemático como Maquiavel uma definição precisa do Estado; No entanto, já vemos
nele um tratamento do Estado com as características que hoje reconhecemos neste, ou
seja, como uma organização pública dotada da capacidade de exercer e controlar o
uso da força sobre determinada população e em um território definido, de acordo com
um corpo específico de direito soberano.
Entretanto o termo “estado” não é uma invenção de Maquiavel. Ele já é encontrado na
antiga lei romana, embora com o significado de “estado ou condição de uma coisa”,
como quando se diz, por exemplo, “status rei publicae”. O “estado”, na lei romana,
também designava o status legal de uma pessoa ou de uma comunidade: “status
libertatis”, “status familiae” ou “status civitatis”. Na Idade Média, “estado”
servia para indicar também uma certa condição social: o “estado” clerical, o
“estado” de nobreza ou o “estado” popular. De todas essas acepções, a que
provavelmente está na origem do uso contemporâneo é a de “status rei publicae”,
porque é a que está diretamente ligada à comunidade política. Uma república, no
sentido romano, não é um Estado, embora tenha um estado, uma certa condição. O que
acontece, do ponto de vista histórico, é que esta república, ou em qualquer caso a
comunidade política, tende a se transformar, através dos processos de
secularização, em uma nova instituição cuja denominação já não mais tem o caráter
de transitoriedade ou relativa provisionalidade que existe quando se fala em
“status rei publicae”. Agora estamos falando do Estado e não do “estado das coisas
públicas”. Em termos filosóficos e com as devidas ressalvas, eu diria que de
acidente que era o “estado” se transforma em substância, de modo que já não se
trata do “estado da coisa pública”, mas da “coisa pública do Estado”. A república é
o acidente e o Estado a substância.
É bem possível, inclusive, que graças à extraordinária difusão do opúsculo de
Maquiavel, esse conceito de Estado tenha conseguido alcançar o significado que tem
hoje no vocabulário político. Esse uso já é confirmado por Hobbes na introdução ao
Leviatã, onde, com uma intenção explícita, os termos civitas, commonwealth e state
são colocados no mesmo nível de significância. Depois de Hobbes, o conceito começa
a ser definitivamente de uso comum, porque serve admiravelmente bem para designar
esse “novo principado” que Maquiavel conseguiu vislumbrar. O próprio John Locke,
embora não use explicitamente o termo “Estado” como Hobbes, esclarece que ele está
se referindo a uma realidade política cujo nome não importa, mas que é realmente
algo novo:
Deve ficar claro que, sempre que uso a palavra Estado (Commonwealth), não quero
dizer precisamente uma democracia, nem uma forma concreta de governo. Eu entendo
por essa palavra a comunidade independente que os latinos chamam de civitas, que é
o que nossa comunidade inglesa melhor corresponde. Este é o que melhor expressa
esse tipo de sociedade de homens; melhor do que a comunidade [porque dentro de uma
comunidade pode haver comunidades subordinadas], e muito melhor que a cidade. Para
evitar, então, ambiguidades, peço permissão para usar a palavra commonwealth nesse
sentido, que é o mesmo no qual o rei James já a usou e que, na minha opinião, é
dele. Se alguém não gosta e sugere um mais apropriado, estou disposto a admitir
isso.
Mas, de qualquer modo, a verdade é que “o novo principado”, no qual “as
dificuldades residem”, segundo a expressão de Maquiavel, é, com toda a
verossimilhança, o Estado moderno. E as dificuldades que Maquiavel vê são as de
como conceber uma nova ciência da política na qual aparece com uma quase completa
autonomia da ética, e com um objetivo quase exclusivamente voltado para a eficácia
da conservação dessa nova instituição. O Capítulo XV de O Príncipe é revelador
porque Maquiavel explicitamente recomenda o abandono de todas as preocupações
éticas para melhor concentrar seus conselhos na realidade efetiva e como aproveitá-
los para a conservação do “novo principado”. O texto a seguir sintetiza uma ideia
de implicações atuais incalculáveis:
[…] tentando descrever coisas úteis para aqueles que as entendem, pareceu-me
preferível ir diretamente à verdade efetiva do assunto, em vez de cuidar do que se
pode imaginar sobre ele. Muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos e
que nunca existiram. É que há tanta coisa a se falar de como você vive ou como você
deveria viver, que quem renuncia ao que está feito pelo que deveria ser feito,
aprende mais o que vai arruiná-lo do que o que o preserva. O homem que quer fazer
uma boa profissão, quando cercado por tantos bandidos, caminhará para a sua
perdição.
O elogio de Francis Bacon a Maquiavel vai ao cerne da questão quando escreveu em
1605 que “temos uma grande dívida com Maquiavel e com alguns outros que descreveram
o que os homens fazem e não o que devem fazer, porque não é possível unir a dupla
característica da serpente e a inocência da pomba, se todos os seus recursos não
são exatamente conhecidos: sua baixeza abjeta, sua agilidade pérfida, o ódio que
aguça seu dardo”.
Nesse sentido, Maquiavel não foi apenas um produto do seu tempo, mas também,
talvez, o melhor intérprete deste, além de ser o criador oficial, indiretamente, do
conceito de “Razão de Estado”, segundo o qual , os atos destinados à conservação
deste não são possíveis de parecer judicial, e muito menos, ético.
Depois de Maquiavel, a ciência política tendeu a evitar cuidadosamente se expressar
como ciência normativa. A preocupação essencial do cientista político contemporâneo
não é de ordem ético-formativa, mas analítica-descritiva, e deixa aos estadistas ou
políticos a responsabilidade de extrair as conclusões práticas do universo de dados
que lhe são fornecidos à maneira de um sistema. O problema político torna-se quase
um problema técnico. O seguinte texto de Kant é muito eloquente a esse respeito:
A constituição republicana (republikanische Verfassung), a única que está em total
conformidade com os direitos do homem, é também a mais difícil de estabelecer e
ainda mais difícil de conservar. É por isso que muitos fingem que isso só é
possível em uma cidade de anjos porque os homens, com suas inclinações egoístas,
são incapazes de uma forma tão sublime de governo. Mas a natureza usa precisamente
dessas inclinações interessadas a vir em auxílio da vontade geral, que é baseada na
razão, mas que, embora respeitada, resulta impotente na prática. De maneira que
para a boa organização do Estado (que está certamente ao alcance do homem) enfrente
umas às outras as forças dessas inclinações para neutralizar os efeitos desastrosos
dos outros ou aniquilá-los.Deste modo, do ponto de vista racional, acontece que
tudo acontece como se essas duas tendências não existissem e o homem fosse forçado
a ser, se não moralmente bom, pelo menos um bom cidadão. O problema da constituição
de um Estado pode até ser resolvido em uma cidade de demônios, por mais estranho
que isso possa parecer (se é que eles têm, pelo menos, entendimento), e eis como
surge tal problema: “ordenar de tal maneira uma multidão de seres racionais, que
desejam preservar suas leis gerais, mas da qual eles estão dispostos, secretamente,
a se eximirem, e lhes dar tal constituição que, apesar do antagonismo produzido por
suas inclinações pessoais, eles são impedidos mutuamente de tal maneira, que na
vida pública dessas pessoas seu comportamento é o mesmo como se essas inclinações
não existissem “. Semelhante problema poder e deve ser resolvido. A questão, então,
não é saber como os homens podem ser moralmente melhorados, mas como podemos usar o
mecanismo da natureza para direcionar o antagonismo de suas disposições hostis de
tal maneira que todos os indivíduos da mesma comunidade são forçados a se submeter
a leis coercitivas e a estabelecer um estado de paz onde as leis estão em vigor.
A propósito, quando falamos do Estado, somos confrontados com uma situação
paradoxal. Por um lado, seria uma ilusão negar sua existência institucional, mas,
por outro lado, enfrentamos enormes dificuldades ao circunscrever sua essência,
defini-la ou ao menos descrevê-la com certa precisão. Mas uma coisa é óbvia. O
Estado, se considerarmos como uma questão de fato, nos é apresentado
fundamentalmente como uma instituição que monopoliza a força. Um de seus rostos
mais visíveis, aquele que talvez esteja mais em contato com os cidadãos, por
exemplo, é a polícia, em qualquer de suas expressões.
Mas, além disso, há também outro fator que é essencial ao Estado: embora seja uma
instituição monopolizadora de força, não pode ou nunca deve ser arbitrário, mas
sujeito a certas normas, cuja legitimação é, e isso é muito importante, o próprio
Estado. Nesse sentido, Max Weber deu uma definição do Estado que sintetiza
claramente sua essência:
O Estado moderno é uma associação de dominação com um caráter institucional que
tentou com sucesso monopolizar dentro de um território a legítima violência física
como meio de dominação e, para esse fim, reuniu todos os meios materiais nas mãos
de seu líder e expropriou todos os funcionários do estado que anteriormente os
tinham por direito próprio, substituindo-os por suas próprias hierarquias supremas.
O Estado é sempre um Estado de direito, um corpo jurídico. Este é consubstancial ao
Estado, mesmo nos casos em que este é patológico. O estado fascista, por exemplo,
não é tão radicalmente oposto quanto se pode supor à estrutura geral da instituição
estatal. O Estado fascista é também, à sua maneira, um Estado de Direito, na medida
em que seu funcionamento depende do monopólio da força e de um corpo jurídico
específico dele. Isso leva a uma terceira característica do Estado: é uma
instituição soberana. De fato, o conceito de soberania nasce com o Estado. Mas uma
coisa deve ser exposta com clareza suficiente: tudo o que o Estado é, pode sempre,
de uma forma ou de outra, se referir ao campo do direito e da lei. O Estado é uma
instituição jurídica e todas as suas ações são mediadas por sua nova compreensão de
direito. Daí a urgência, fortemente sentida pelo fundador do Estado, Thomas Hobbes,
de uma redefinição da semântica jurídica.
No entanto, embora seja verdade que o surgimento e consolidação do Estado é um
fenômeno exclusivamente moderno que pode ser situado no início do século XVI em
algumas cidades italianas, a ideia de que a comunidade política é uma comunidade na
qual as relações intersubjetivas têm o fato de ser regulada por uma lei não é novo,
não é uma criação do Estado moderno. Já é encontrado formulado em autores
clássicos. Mas, apesar disso, é inegável que o conceito de “Estado” não figura no
vocabulário político pré-moderno, nem no medieval e muito menos no clássico.
É muito interessante ver os esforços feitos pelos escritores políticos da baixa
Idade Média para capturar a essência de uma nova realidade política que já estava
começando a tomar forma diante de seus olhos. E o esboço histórico desta nova
realidade política coincide com a introdução da Política de Aristóteles no Ocidente
latino. Existe, na Política (de Aristóteles), uma ideia que se presta
admiravelmente bem ao que estava começando a tomar forma. De fato, para
Aristóteles, a polis, a cidade, não é apenas a última instância na perfeição das
diferentes possibilidades associativas humanas, mas, acima de tudo, uma perfeita
communitas et sibi sufficiens, isto é, algo que se aproxima muito da noção moderna
do Estado. Obviamente, há aí um interesse em ler Aristóteles de uma maneira
bastante tendenciosa, porque não se pode dizer que a mesma comunidade política é
para o Estagirita a fonte última de validação do sistema normativo. De fato, se a
cidade é a comunidade perfeita e auto-suficiente, qual é o papel da Igreja em tudo
isso? As violentas disputas entre Papas e Imperadores são a evidência de que a nova
realidade política não vê mais com simpatia a interferência eclesiástica em
questões mundanas, essencialmente ético-políticas. Destes tipos de estratégias, uma
é a de Maquiavel, a qual consiste em dizer: “esse homem (neste caso, o papa) é
imoral, portanto, o que ele diz sobre essas questões é desqualificado por sua
própria conduta”. Vejamos o seguinte texto no Discorsi:
Muitos acreditam que o bem-estar das cidades da Itália é devido à Igreja Romana, a
que eu respondo com algumas razões, incluindo duas muito poderosas, que, na minha
opinião, não têm objeção. A primeira coisa que, contemplando os maus exemplos
daquela corte, este país perdeu foi toda a devoção e religião. Isso gera infinitos
inconvenientes e milhares de desordens, porque assim como temos de pressupor o bem
no qual a religião reina, devemos supor o oposto nos lugares onde está faltando.
Nós, italianos, temos que agradecer aos representantes da Igreja por estarem
perdidos e sem fé. Mas ainda há outra razão importante para a nossa ruína, e esta é
a minha segunda razão: a Igreja teve e tem a Itália dividida […]. A razão pela qual
a Itália não está na mesma situação [como a França e a Espanha], nem tem uma
república ou um príncipe que a governa, não é mais que a Igreja. Depois de viver
nele e aproveitar o poder temporário, não tinha força ou valor para ocupar o resto
da Itália como principado; mas tampouco, ao contrário, ela esteve tão fraca que,
com medo de perder sua autoridade em coisas temporárias, pediu ajuda de um homem
poderoso que a protegeria de um poder italiano exagerado […]. Portanto, a Igreja
não teve força para dominar a Itália, nem permitiu que outra a ocupasse […]. Para
ter uma experiência rápida dessa verdade, seria conveniente para um poderoso lorde
enviar a corte romana, com a autoridade que agora possui na Itália, para habitar as
terras dos suíços, as únicas pessoas que hoje vivem como os antigos em relação à
religião e à religião. os costumes militares. Seria visto em um curto espaço de
tempo, muito antes de qualquer chance que pudesse surgir, aquela nação atrapalhar
os maus hábitos daquela corte.
A estratégia argumentativa de Hobbes, por outro lado, vai diretamente ao núcleo
dogmático e pode ser resumida da seguinte forma: “Os dogmas católicos não podem ser
comprovados cientificamente, portanto, o que a Igreja diz não é mais que uma
fantasia destinada a subjugar as consciências”. Há um propósito manifesto em Hobbes
de romper com a tradição e, especialmente, com tudo o que tem a ver com a Igreja de
Roma. Lembremos que se trata, para Hobbes, de refundar o direito, excessivamente
configurado, ao seu gosto, de uma dependência de um sistema de moralidade cujo
representante mais visível é o pensamento da Igreja de Roma. Isso teria produzido
um monstro intolerável chamado “escolástica”, da qual Aristóteles seria a eminência
cinzenta. Esses ataques atingem uma virulência particular em Leviatã. Vejamos, a
título de exemplos, algumas passagens em que o filósofo não salva as diatribes
contra a Igreja e tudo o que seu julgamento sustenta. Da filosofia aristotélica à
teologia sacramental, nada deve permanecer em pé: “[…] creio que poucas coisas
podem ser ditas mais absurdamente em filosofia natural do que a atualmente chamada
de metafísica aristotélica, ou algo mais repugnante para o governo do que o que
Aristóteles disse em sua Política, ou mais ignorantemente do que uma grande parte
de sua Ética” (Capítulo XLVI).
Cap. XLVII:
Antes de tudo [pretendo examinar] o erro que a atual Igreja hoje militante na terra
é o reino de Deus […]. A este erro, adicionem-se os seguintes benefícios terrenos:
Primeiro, pastores e professores da escola possuem, como ministros públicos de
Deus, o direito de governar a Igreja e, portanto, (uma vez que a Igreja e a
República são a mesma pessoa), para ser reitores e governantes da república. Por
meio desse título, o papa prevaleceu sobre os súditos de todos os príncipes
cristãos no momento de acreditar que desobedecê-lo era desobedecer a Cristo; e ele
conseguiu fazer com que todas as diferenças entre ele e outros príncipes
(enfeitiçadas com a palavra poder espiritual) as pessoas abandonam seu soberano
legítimo, que é de fato uma monarquia universal sobre toda a cristandade […]. Desde
que o bispo de Roma conseguiu ser reconhecido como o bispo universal pretendendo
suceder a São Pedro, toda a sua hierarquia ou reino das trevas pode ser comparada
sem violência ao reino das fadas, isto é, às fábulas das velhas na Inglaterra sobre
fantasmas e espíritos e os atos que eles executam à noite. E se um homem considera
a origem deste grande domínio eclesiástico, ele facilmente perceberá que o papado é
apenas o fantasma do falecido Império Romano, que se senta coroado em seu túmulo.
Porque é assim que o papado de repente emergiu das ruínas daquele poder pagão […].
Os anciãos não determinaram em que tenda ou lugar as fadas fazem seus
encantamentos. Mas os lugares do clero sabem muito bem que são as universidades,
cuja disciplina vem da autoridade pontifícia.
Cap. XLIV:
[Não é mais do que um feitiço e um encantamento] quando o padre finge que ao dizer
as palavras do nosso Salvador este é o meu corpo e este é o meu sangue, a natureza
do pão já não está lá e é o seu próprio corpo, quando não há não aparece nem para a
visão nem para qualquer outro sentido do receptor qualquer coisa que não estivesse
presente antes da consagração. Os magos egípcios, que dizem ter transformado suas
varas em serpentes e água em sangue, devem ter enganado os sentidos dos
espectadores por meio de uma exibição falsa das coisas, e só assim conseguiram ser
considerados encantadores. No entanto, o que nós pensamos deles se em suas varas
não tivesse aparecido nada parecido a uma serpente e nada na água encantada tivesse
aparecido semelhante ao sangue, ou qualquer outra coisa além da própria água, e
virando seus rostos para o rei eles dissessem que era como cobras parecendo varas e
sangue parecendo água. Teríamos pensado que ali havia encantamento tanto quanto
embuste. No entanto, os sacerdotes fazem a mesma coisa em seus atos diários,
transformando as palavras sagradas em um encantamento que nada de novo produz para
os sentidos. Mas eles mantém que eles transformam o pão em um homem ou, ainda mais,
em um Deus, e exigem que os homens o adorassem, como se fosse nosso próprio
Salvador, em sua forma de Deus e homem, cometendo assim um pecado, a mais grosseira
das idolatrias […]. As palavras ISTO É O MEU CORPO são equivalentes a ISTO
SIGNIFICA OU REPRESENTA O MEU CORPO, e constituem uma figura de linguagem comum.
Mas tomá-los literalmente é um abuso. E embora se tomem assim, em nenhum caso podem
estender-se além do pão que o próprio Cristo consagrou com suas próprias mãos.
Porque ele nunca disse que nenhum pão do qual um padre disse que este é o meu corpo
ou este é o corpo de Cristo seria efetivamente transubstanciado.
Cap. XII:
[…] a semente natural da religião consiste nessas quatro coisas: crença em
fantasmas, ignorância de causas secundárias, devoção ao que é temido pelos homens e
assunção de coisas casuais como previsões […]. Essas sementes foram cultivadas por
dois tipos de homens. Alguns as alimentaram e ordenaram de acordo com sua própria
invenção. Outros fizeram isso pelo comando e direção de Deus. Mas ambos fizeram
isso com o propósito de retornar aos seus fiéis mais aptos para a obediência, as
leis, a paz, a caridade e a sociedade civil. […] Alguém será incapaz de ver quem se
beneficia acreditando que um rei não recebe sua autoridade de Cristo se ele não for
coroado por um bispo? […] Que os assuntos podem ser desconectados de seu juramento
de obediência se a corte de Roma considerar o rei herético? Que um rei (como
Quilperico da França) pode ser deposto sem causa por um papa (como o papa Zacarias)
e entregar seu reino a um de seus súditos? […] Ou ele não vê ninguém que se
beneficie dos preços das missas privadas e dos vales do purgatório, junto com
outros sinais de interesse privado suficientes para mortificar a fé mais vívida se
eles não fossem mantidos pela magistratura civil e costume antes da opinião sobre a
santidade, sabedoria ou probidade de seus professores? Da mesma forma, posso
atribuir todas as mudanças de religião no mundo a uma única causa: padres que não
agradam.
Também é curioso que nos casos em que essas disputas atingiram seus pontos mais
altos, o argumento dos imperadores ou reis contra a supremacia espiritual do papa
costumava ser baseado na crítica da conduta pessoal dos papas, e não em argumentos
racionais sobre por que não era admissível a jurisdição da Igreja nos assuntos
mundanos. Era como se os Imperadores dissessem, com Maquiavel, “não podemos aceitar
a jurisdição em matéria moral de uma instituição cujos próprios membros estão
corrompidos”.
Na luta contra a instituição eclesiástica, ou o que é o mesmo que dizer, no
processo de fortalecimento do espírito secular, Aristóteles foi uma grande ajuda,
mas é necessário notar que a leitura foi feita de maneira bastante tendenciosa,
como eu disse mais acima. Isso é visto da seguinte maneira.
Para Aristóteles, embora seja verdade que a polis perfeita é autossuficiente em
questões ético-políticas, não se pode dizer que seja autônoma, no sentido de que é,
sem mais delongas, o referente último da validação da ordem normativa ético-
política. Auto-suficiência não é autonomia. É evidente que no pensamento
aristotélico, em favor de uma tradição antiga e venerável, tudo relacionado à ordem
da justiça na cidade está aberto a uma legitimação extra política. Por essa razão,
embora em Aristóteles, e mesmo em Platão, já tenhamos um sério precedente da ideia
de que a vida política requer formas de regulação jurídica, existe um mundo de
diferença em relação ao que esses autores entendem por lei e o que a moderna teoria
do Estado entende.
Apesar de tudo, não se pode duvidar que, com Cícero, haja uma mudança de matiz em
relação a Aristóteles. De fato, para o Estagirita, embora seja verdade que o
sujeito da lei ocupa uma posição privilegiada em seu pensamento político, seu
interesse primordial em questões políticas continua sendo o da eupraxia, a da boa
ação e a da boa sociedade, objetivo ao qual se subordina o assunto da legislação.
Para Cícero, porém, e insisto que se trata ainda de uma matiz e não uma diferença
substancial, esse interesse muda para a legislação, digamos, a estrutura jurídica
que oferece uma espécie de plano geral de convivência. Para Cícero, devemos a ideia
da importância capital do direito na organização da convivência política, embora,
certamente, se nos atemos ao seu conceito de lei, é claro que seria muito difícil
acusá-lo de ser “juridicista” no sentido em que falamos hoje desse termo. A lei,
para Cícero, tem uma conexão essencial com o sistema da moralidade:
Se os direitos fossem baseados na vontade do povo, as decisões dos príncipes e os
julgamentos dos juízes, seria legal o roubo, legal a falsificação, legal a
suplantação dos testamentos, desde que tivessem em seu favor os votos ou que
agradasse a massa. E se o poder da opinião e a vontade dos estúpidos é tal que eles
podem, com seus votos, perverter a natureza das coisas, por que eles não sancionam
que o que é ruim e pernicioso considerado que é bom e saudável? E por que, se a lei
pode transformar a injustiça em algo justo, ela também não pode transformar o mal
em bem? É que para distinguir o bem do mal não temos outra norma que a da natureza
[…]. A natureza nos deu assim um senso comum, que delineava em nosso espírito, para
que identificássemos o honesto com a virtude e o desonesto com o vício. Pensar que
isso depende da opinião de cada um e não da natureza, é uma coisa louca (demência
est).
A primazia do direito é um tema recorrente no pensamento político medieval, embora
seja verdade que este está associado a uma legalidade de um tipo muito diferente da
do Estado moderno. As concepções políticas medievais, ainda que de modo especial a
do próprio São Tomás de Aquino, oferecem um amplo espaço ao direito, como provam as
citações permanentes dos juristas romanos. São Tomás, como seus antecessores,
enfatiza o vínculo substancial entre ética e direito.
Também neste caso e à maneira do estoicismo ciceroniano, a inegável importância do
direito e do jurídico na estruturação do pensamento político anda de mãos dadas com
uma insistência paralela na noção de lei natural, a tal ponto que ela, cuja origem
divina última é, não obstante, mediada pelo intelecto humano, é a garantia
definitiva da legitimidade da mesma ordem jurídica. Ainda mais, São Tomás parece
ter sido o primeiro a empregar sistematicamente uma nova noção de lei: a lex
aeterna, entendida como a razão de Deus em sua função governante. Esta é, em seu
pensamento, a lei suprema e absoluta da qual todos os sistemas jurídicos
particulares dependem. De qualquer forma, a ideia de praticamente igualar a
existência de uma comunidade política com um sistema legal, até certo ponto, já
está instalada. Toda a diferença está no que deve ser entendido por lei e direito.
Thomas Hobbes está perfeitamente ciente disso. Enquanto a separação conceitual
entre lei e direito e seus referentes “metafísicos” não ocorrer, a reformulação do
vocabulário jurídico, essencial para a consolidação teórica do Estado, não será
possível.
No Direito Romano havia uma norma famosa com uma história frondosa que dizia: “quod
omnes tangit ab omnibus approbetur”, isto é, o que diz respeito a todos, por todos
deve ser aprovado. Um pequeno deslocamento em relação à origem última da validação
de um sistema jurídico será suficiente, de modo que uma nova teoria apareça que
caracterizará, juntamente com o aparato legal, o estado moderno: a soberania.
A soberania não é o equivalente exato da “Summa potestas” ou das “majestas” do
poder político, já que essas noções se referem, em geral, a um fundamento
transcendente da ordem jurídico-normativa. Mas, se essa legitimação cede seu lugar
ao fechamento do sistema jurídico sobre si mesmo, a fim de torná-la uma totalidade
autorreguladora e auto-legitimadora, obtém-se com ela uma das características
essenciais que sustentarão o Estado. De fato, por se expressar, sobretudo, como um
sistema jurídico, quando esse sistema interrompe sua comunicação ou participação em
um sistema hierarquicamente superior de legalidade, como o oferecido pela teoria da
lei natural, o próprio Estado é a consequência direto dessa auto-justificação. Em
outras palavras, quando o sistema jurídico se torna auto-suficiente com relação à
sua própria validação, esse é o momento teórico do nascimento do Estado. Seria,
portanto, extremamente complicado articular a essência do Estado acerca de uma lei
que não reconhece a si mesma, de fato e no uso prático, como instância suprema de
legitimidade, ainda que, por direito ou no estado puramente teórico, os sistemas
normativos declarem sua dependência e respeito pela razão divina.
É perfeitamente compreensível que o primeiro detentor histórico da soberania seja
um monarca. Mas o que importa aqui não é o detentor da soberania, porque ela mudará
com o tempo; o que é verdadeiramente significativo nesta questão é que o sistema
legal que sustenta a comunidade política não precisa mais se referir a um nível
extra-legal para se justificar. E é esse sistema legal que está indissoluvelmente
ligado ao nascimento do Estado.
O primeiro teórico a usar explícita e sistematicamente a expressão “poder soberano”
é Jean Bodin em seus Seis Livros sobre a República (1576). Isso ele sabe e
reivindica sua descoberta de soberania. Sua definição de República introduz o
conceito que não será mais abandonado pelo Estado: “República é um direito do
governo de várias famílias e do que é comum a elas, com poder soberano”.
Essa definição teve uma imensa fortuna na gênese intelectual do Estado. Segundo
Bodin, o que distingue o Estado (neste caso, ele chama de “República”) de qualquer
outro tipo de associação, é nada menos que a soberania. Um Estado, por menor que
seja, continuará sendo enquanto for soberano. Por sua vez, o cidadão é um homem
livre, mas ao mesmo tempo igual, em termos quase absolutos, a todos os outros
sujeitos da soberania. Quaisquer que sejam as diferenças na classificação social, a
soberania é igual a todos aqueles que a ela estão submetidos. Diante dela, o
cidadão perde sua condição de mestre, chefe ou senhor, diz Bodin, e depende de uma
regra geral que é a mesma para todos. Quando Bodin fala de um direito do governo,
ele se refere, sim, a um governo moral, mas essa moralidade depende em grande
medida do fato de que o Estado não aceita pessoas na aplicação da soberania.
E finalmente, a soberania tem para Bodin o caráter de perpétua e absoluta. A
perpetuidade está ligada ao próprio fato da existência do Estado: sem ela, não há
Estado. E é absoluta, no sentido de que não pode ser limitada por nenhum poder
superior a ela, nem mesmo pelas leis, porque elas mesmas são produto da soberania.
E é precisamente isso que leva Bodin a colocar a soberania na função legislativa.
Esta é uma marca de soberania, que chega até ao poder, não só para dar a lei, mas
até para quebrá-la: “Sob esse mesmo poder de dar e violar a lei, todos os outros
direitos e marcas de soberania são entendidos, de modo que, para falar
corretamente, pode-se dizer que não há outra marca de soberania que esta, e todos
os outros direitos eles estão incluídos nele”.
É desnecessário dizer que todo o esforço intelectual de Bodin se concentra quase
exclusivamente no direito positivo: esse é o campo específico da soberania. O risco
de arbitrariedade, no entanto, é mitigado porque a soberania, com o ser absoluto,
ainda mantém sua relação com um certo número de cadeias, como as leis de Deus ou da
natureza, por exemplo. Mas, nisto, Bodin parece fazer uma concessão à tradição, em
vez de estar completamente convencido de uma suposta dependência direta do sistema
jurídico positivo sobre a lei natural ou eterna, por exemplo. Em qualquer caso, o
termo “soberania” é um neologismo cuja elaboração obedece a uma exigência e uma
intenção muito específica, e embora seja verdade que este termo cunhado por Bodin
sofra de certa ambiguidade, não é menos verdade que graças a ele faz sua
apresentação oficial na teoria política, da mesma maneira que o termo “Estado” fez
com Maquiavel.
Em todo caso, Thomas Hobbes tem o mérito de ter elaborado a sistematização do
conceito de soberania. Todos os termos latinos que abordaram este conceito são
reunidos por Hobbes sob o mesmo significado. Summa potestas, summum imperium,
dominium, é traduzido diretamente para o inglês por sovereignty. É em Hobbes que
encontramos realmente toda uma teoria política, todo um sistema supostamente
científico de pensamento sobre o Estado moderno. Pois bem, a soberania, já na
“Introdução” ao Leviatã, é tratada como a própria alma do corpo político. Essa
soberania, que obviamente inclui o uso da força, está ligada, segundo Hobbes, a um
corpo de leis cujas características são claramente modernas, como o próprio autor
nos lembra em suas definições de direito e lei.
Um fato importante que deve ser sublinhado no pensamento hobbesiano é que nele
também temos a introdução da noção de “representação” associada à soberania. O
soberano é o “representante” das partes contratantes. Mas esses limites de
soberania que tornaram seu tratamento um tanto ambíguo em Bodin, em Hobbes,
desaparecem diretamente. Não existem leis naturais ou leis divinas, no sentido
tradicional do termo, que possam limitar o exercício da soberania. Se existe uma
lei fundamental, é aquela que impõe aos sujeitos o dever de obediência.
É no Leviatã que encontramos, pela primeira vez, um tratamento sistemático e
explícito de duas das características do Estado, como hoje o conhecemos: o uso da
força associada a um sistema legal soberano que não reconhece, de fato, instâncias
supra-legais de legitimação. Que Hobbes tenha sido capaz de ver as características
essenciais do Estado, é algo que dificilmente pode ser discutido hoje. Com efeito,
quem diria que uma lei sancionada pelo Estado não é válida, por mais imoral que
possa parecer? E quem diria que o uso da força é uma prerrogativa exclusiva do
Estado?
Em qualquer caso, nessa quase obsessão em garantir conceitualmente o conteúdo da
soberania, Hobbes talvez estivesse longe demais ao deduzir que, dadas as
características dela, o governo deve ser necessariamente monárquico e reunir em sua
mão a totalidade do poder. Hobbes não parece ter entendido uma distinção sutil
feita por Bodin no sentido de que uma coisa é a forma do Estado e outra do governo.
O Estado deve ser único ou unitário, monárquico se quiser, pois monopoliza a força,
a lei e a soberania. O Estado deve ser único ou unitário, monárquico se quiser,
pois monopoliza a força, a lei e a soberania. Mas a forma de governo do Estado pode
ser de outra natureza; é suficiente que ela não prejudique o princípio da unidade
do Estado. Mas a forma de governo do Estado pode ser de outra natureza; basta com
que esta não prejudique o princípio da unidade do Estado.
O problema que surge com Hobbes é o seguinte: a soberania, com as características
com as quais foi descrita, poderia tolerar o estabelecimento de outro tipo de
governo, além do monarquista? Essa é a questão tacitamente colocada por John Locke,
para quem o problema político agora não é mais o da sistematização da soberania.
Foi isso que Hobbes fez magnificamente bem. O problema agora é bastante
constitucional.
Com Locke, pela primeira vez, começa a questão da divisão ou distribuição do poder,
que para Hobbes teria sido a ruína de um sistema político. Mas, na realidade, essa
doutrina não afetou em nada a própria essência do Estado, que ainda mantém sua
soberania absoluta.
De modo algum a divisão do poder pode ser interpretada como um “poder” executivo,
um “poder” legislativo e um “poder” judicial, segundo a famosa doutrina de
Montesquieu em O Espírito das Leis (1748–1750), livro XI, c. 16, 17 e 18, ou a
divisão de Locke em um “poder” legislativo e outro “poder” executivo-judicial-
federativo implica uma divisão de soberania. O soberano é sempre um apenas: o
Estado. O que existe, em qualquer caso, é uma confiança, de modo que um dos
poderes, no caso de Locke, o legislador, é o principal depositário da soberania.
Não se trata, tal como Madison observou em suas reflexões sobre Montesquieu no
livro O Federalista, de uma divisão de poderes, senão uma divisão do poder.
A novidade fornecida por Locke e Montesquieu é precisamente que o poder pode ser
dividido sem prejuízo da soberania do Estado e, inclusive, mostram como isso pode
ser feito. Essa contribuição é, de fato, a última expressão do Estado contemporâneo
como um sistema jurídico. Este é o momento do deslocamento da questão da soberania,
que já não representa praticamente nenhum problema teórico, da constituição. Assim,
uma vez que o sujeito do Estado soberano se consolidou e, de maneira especial, o
conceito de soberania foi especificado como intrinsecamente ligado ao Estado como
estrutura jurídica, o grande tema da teoria política moderna e contemporânea é o da
divisão de poder e a constituição. Estas são, por sua vez, as grandes questões em
jogo sempre que a “reforma do Estado” aparece como uma discussão política
prioritária.
O tema da divisão do poder e da constituição faz a sua aparição ao mesmo tempo em
que se define o fim da vida política como o gozo definido como o gozo de tanta
liberdade possível para se articular com a dos demais para preservar a propriedade.
Isso faz com que o Estado, embora seja soberano, sua soberania está essencialmente
orientada para o serviço da propriedade privada dos cidadãos. Até a cidadania
depende em grande parte da propriedade. Não é coincidência que o grande tema do
Segundo Tratado do Governo Civil de Locke esteja no Capítulo 5, o mais extenso de
todos, cujo título é, precisamente, “Sobre a Propriedade”. Locke está perfeitamente
ciente da necessidade de argumentar a favor da propriedade privada, particularmente
sobre certas formas de posse, já que isso nada mais constitui e nada menos que a
ocupação principal do governo.
Supõe-se que, ao ingressar na sociedade civil, os homens não buscam um modo de vida
em que sejam piores do que antes, para que o governo ou o Estado, por mais soberano
que seja, tenha seu sentido a serviço de algo que os homens , em um estado de
natureza, eles não podem preservar, isto é, a propriedade. De modo que em Locke
vemos esboçar-se a idéia de que a soberania absoluta, embora de fato ela resida no
Estado, que pode até mesmo tomar diferentes formas organizacionais através das
várias constituições, em essência, essa soberania não tem outra origem última que o
povo (proprietários de aldeia, é claro). Em outras palavras, a análise de Locke
distingue claramente dois problemas: 1) o do atual exercício da soberania; e 2) da
origem última desta. Em relação ao primeiro, não há dúvida de que este exercício
corresponde ao Estado. E em relação ao segundo, o povo é a primeira fonte da qual a
soberania emana. E se é assim, é claro que o chefe do Estado é um representante do
povo ou um representante (mandatário). A soberania do que preside o Estado é uma
soberania pela confiança (fideicomiso).
O caminho está, assim, definitivamente aberto à teoria da soberania popular, a qual
não implica de modo algum um questionamento da soberania do Estado. Ambos são
perfeitamente complementares e, inclusive, não se pode expressar sem a outra.
Texto original com as notas: http://www.scielo.org.ar/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S1666-485X2008000100007

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