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A Burguesia e a Contra-Revolução
Segundo Artigo
Karl Marx
11 de Dezembro de 1848

Colónia, 11 de Dezembro. Quando o dilúvio de Março[N66] — um dilúvio en miniature(1*) —


passou, não deixou à superfície da terra berlinense quaisquer prodígios, quaisquer colossos
revolucionários, mas criaturas do estilo antigo, figuras burguesmente atarracadas — os liberais
da Dieta unida[N67], os representantes da burguesia prussiana consciente. As províncias que
possuíam a burguesia mais desenvolvida, a Província Renana e a Silésia, forneciam o
contingente principal para os novos ministérios. Atrás deles, todo um séquito de juristas
renanos. À medida que a burguesia era empurrada para um plano secundário pelos feudais,
nos ministérios, a Província Renana e a Silésia cediam lugar às primitivas províncias prussianas.
O ministério Brandenburg só ainda tem ligação com a Província Renana através de um
tory[N68] de Elberfeld. Hansemann e von der Heydt! Nestes dois nomes reside, para a
burguesia prussiana, toda a diferença entre Março e Dezembro de 1848!

A burguesia prussiana foi atirada para os píncaros do Estado, porém, não, como tinha desejado,
por meio de uma transacção pacífica com a Coroa, mas por meio de uma revolução. Não eram
os seus próprios interesses, mas os interesses do povo, que devia representar contra a Coroa,
isto é, contra si própria, uma vez que um movimento popular lhe tinha preparado o caminho.
Aos seus olhos, a Coroa era, porém, precisamente apenas o escudo pela graça de Deus por
detrás do qual se deviam ocultar os seus interesses próprios profanos. A inviolabilidade dos
seus interesses próprios e das formas políticas correspondentes ao seu interesse, traduzida na
linguagem constitucional, devia soar [assim]: inviolabilidade da Coroa, Daí o entusiasmo da
burguesia alemã e, especialmente, da prussiana pela monarquia constitucional. Daí que, se a
revolução de Fevereiro com todas as suas sequelas alemãs, foi bem recebida pela burguesia
prussiana, porque por ela o leme do Estado lhe foi posto nas mãos, ela igualmente foi um
golpe nos seus cálculos, porque, deste modo, a sua dominação ficava ligada a condições que
ela não queria cumprir nem podia cumprir.

A burguesia não tinha mexido um dedo. Tinha permitido que o povo se batesse por ela. A
dominação para ela transferida não era, portanto, a dominação do general que vence o seu
adversário, mas a dominação de um comité de segurança a quem o povo vitorioso confia a
defesa dos seus interesses próprios.

Camphausen sentia ainda inteiramente o incómodo desta posição e toda a fraqueza do seu
ministério deriva deste sentimento e das circunstâncias que o condicionaram. Uma espécie de
rubor envergonhado ilumina, portanto, os actos mais desavergonhados do seu governo. A
desvergonha e a impudência descaradas eram o privilégio de Hansemann. A teinte(2*)
vermelha constitui a única diferença entre estes dois pintores.

Não se pode confundir a revolução prussiana de Março, nem com a revolução inglesa de 1648,
nem com a francesa de 1789.

Em 1648, a burguesia estava ligada à nobreza moderna contra a realeza, contra a nobreza
feudal e contra a Igreja dominante.

Em 1789, a burguesia estava ligada ao povo contra realeza, nobreza e Igreja dominante.

A revolução de 1789 tinha por modelo (pelo menos, na Europa) apenas a revolução de 1648, a
revolução de 1648 apenas a insurreição dos Países Baixos contra a Espanha[N69]. Ambas as
revoluções estavam avançadas um século, não apenas pelo tempo, mas também pelo
conteúdo, relativamente aos seus modelos.

Em ambas as revoluções, a burguesia era a classe que realmente se encontrava à cabeça do


movimento. O proletariado e as fracções da população urbana não pertencentes à burguesia
não tinham ainda quaisquer interesses separados da burguesia ou não constituíam ainda
quaisquer classes, ou sectores de classes, autonomamente desenvolvidas. Portanto, ali onde se
opuseram à burguesia, como, por exemplo, de 1793 até 1794, em França, apenas lutaram pela
prossecução dos interesses da burguesia, ainda que não à maneira da burguesia. Todo o
terrorismo francês não foi mais do que uma maneira plebeia de se desfazer dos inimigos da
burguesia, do absolutismo, do feudalismo e da tacanhez pequeno-burguesa.

As revoluções de 1648 e de 1789 de modo algum foram revoluções inglesas ou francesas,


foram revoluções de estilo europeu. Não foram a vitória de uma classe determinada da
sociedade sobre a velha ordem política; foram a proclamação da ordem política para a nova
sociedade europeia. Nelas, a burguesia venceu; mas a vitória da burguesia foi então a vitória
de uma nova ordem social, a vitória da propriedade burguesa sobre a feudal, da nacionalidade
sobre o provincianismo, da concorrência sobre a corporação, da divisão [da propriedade] sobre
o morgadio, da dominação do proprietário da terra sobre o domínio do proprietário pela terra,
das luzes sobre a superstição, da família sobre o nome de família, da indústria sobre a preguiça
heróica, do direito burguês sobre os privilégios medievais. A revolução de 1648 foi a vitória(3*)
do século XVII sobre o século XVI, a revolução de 1789 a vitória do século XVIII sobre o século
XVII. Estas revoluções exprimem mais ainda as necessidades do mundo de então do que das
regiões do mundo em que se deram, a Inglaterra e a França.

Na revolução prussiana de Março nada disto [se dá].

A revolução de Fevereiro tinha abolido a monarquia constitucional, na realidade, e a


dominação burguesa, na ideia. A revolução prussiana de Março devia instituir a monarquia
constitucional, na ideia, e a dominação burguesa, na realidade. Muito longe de ser uma
revolução europeia, foi apenas a repercussão atrofiada de uma revolução europeia num país
atrasado. Em vez de estar avançada em relação ao seu século, estava mais de meio século
atrasada em relação ao seu século. Era desde o princípio secundária, mas é sabido que as
doenças secundárias são mais difíceis de curar e simultaneamente desgastam mais o corpo do
que as primitivas. Não se tratava do estabelecimento de uma nova sociedade, mas da
ressurreição berlinense da sociedade falecida em Paris. A revolução prussiana de Março nem
sequer era nacional, alemã; desde o princípio, era provincial-prussiana. As insurreições de
Viena, de Kassel, de München, toda a espécie de insurreições provinciais, se deram nas
proximidades dela e disputaram-lhe o primado.

Enquanto 1648 e 1789 tinham o infinito orgulho de estarem no cume da criação, a ambição de
1848 berlinense era constituir um anacronismo. O seu brilho assemelhava-se ao brilho das
estrelas que só chega até nós, habitantes da Terra, 100.000 anos depois de os corpos que o
irradiavam estarem extintos. A revolução prussiana de Março era, em ponto pequeno — aliás,
era tudo em ponto pequeno —, uma dessas estrelas para a Europa. O seu brilho era o brilho de
um cadáver de sociedade, há muito apodrecido.

A burguesia alemã tinha-se desenvolvido tão indolente, cobarde e lentamente que, no


momento em que se contrapôs ameaçadoramente ao feudalismo e ao absolutismo, avistou
frente a si própria, ameaçadores, o proletariado e todas as fracções da população urbana cujos
interesses e ideias se aparentam com o proletariado. E viu como inimiga não apenas uma
classe atrás de si, mas toda a Europa diante de si. A burguesia prussiana não era, como a
francesa de 1789, a classe que defendia toda a sociedade moderna face aos representantes da
velha sociedade, a realeza e a nobreza. Tinha descido a uma espécie de estado [ou ordem
social — Stand], tão marcadamente contra a Coroa como contra o povo, desejosa de opor-se a
ambos, indecisa face a cada um dos seus adversários tomado isoladamente, uma vez que os via
sempre atrás ou diante de si; inclinada desde o princípio para a traição contra o povo e para o
compromisso com o representante coroado da velha sociedade, uma vez que já ela própria
pertencia à velha sociedade; representando não os interesses de uma nova sociedade contra
uma velha, mas interesses renovados dentro de uma sociedade envelhecida; ao leme da
revolução não porque o povo estivesse atrás de si, mas porque o povo a empurrava para diante
de si; à cabeça não porque representasse a iniciativa de uma nova época da sociedade, mas o
rancor de uma velha; um estrato do velho Estado, que não conseguiu vir ao de cima, atirado
por um tremor de terra para a superfície do novo Estado; sem fé em si própria, sem fé no povo,
resmungando contra os de cima, tremendo perante os de baixo, egoísta para com os dois lados
e consciente do seu egoísmo, revolucionária contra os conservadores, conservadora contra os
revolucionários, desconfiando das suas próprias palavras de ordem, com frases em vez de
ideias, intimidada pela tempestade mundial, explorando a tempestade mundial — energia em
nenhuma direcção, plágio em todas as direcções, vulgar, porque não era original, original na
vulgaridade — traficando com os seus próprios desejos, sem iniciativa, sem fé em si própria,
sem fé no povo, sem vocação histórica universal — um velho amaldiçoado que se viu
condenado a dirigir e a desviar no seu próprio interesse senil os primeiros arroubos juvenis de
um povo robusto — sem olhos, sem ouvidos, sem dentes, sem nada(4*) — assim se encontrava
a burguesia prussiana depois da revolução de Março ao leme do Estado prussiano.

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Notas de Rodapé:

(1*) Em francês no texto: em miniatura. (Nota da edição portuguesa.)

(2*) Em francês no texto: tom. (Nota da edição portuguesa.)

(3*) O texto da Neue Rheinische Zeitung refere: "a revolução". Seguimos aqui a versão da
generalidade das edições posteriores. (Nota da edição Portuguesa.)

(4*) Cf. Shakespeare, As You Like It (Como lhe Aprouver), acto II, cena 7. (Nota da edição
portuguesa.)

Notas de Fim de Tomo:

[N65] O presente artigo constitui uma parte do trabalho de Marx A Burguesia e a Contra-
Revolução, escrito em Dezembro de 1848. Neste trabalho Marx analisa as causas da vitória da
contra-revolução na Prússia do ponto de vista do materialismo histórico e revela o carácter e as
particularidades da revolução de Março na Alemanha.

[N66] Trata-se da revolução de Março de 1848 na Alemanha.

[N67] Trata-se do órgão constituído na base de estados sociais e composto por representantes
de todas as dietas provinciais da Prússia. Neste caso Marx refere-se à Segunda Dieta Unida, que
se reuniu em 2 de Abril de 1848, sob o governo de Camphausen. Aprovou a lei sobre as
eleições para a Assembleia Nacional prussiana e manifestou o seu acordo sobre o empréstimo
que a Dieta Unida recusara ao governo em 1847. Depois, em 10 de Abril de 1848, a dieta foi
dissolvida.

[N68] Tories: partido político da Inglaterra que surgiu em fins do século XVIII. Exprimia os
interesses da aristocracia fundiária e do alto clero, defendia as tradições do passado feudal. Em
meados do século XIX, na base do partido dos tories, foi criado o Partido Conservador.

[N69] Trata-se da revolução burguesa de 1566-1609 nos Países Baixos (actualmente Bélgica e
Holanda), que faziam parte do Estado espanhol; a revolução combinou a luta da burguesia e
das massas populares contra o feudalismo com a guerra de libertação nacional contra o
domínio espanhol. Em 1609, após uma série de derrotas, a Espanha foi obrigada a reconhecer
a independência da República Holandesa burguesa. A revolução burguesa dos Países Baixos no
século XVI abriu a época das revoluções burguesas vitoriosas na Europa. O território da Bélgica
actual permaneceu nas mãos dos espanhóis até 1714.

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