Você está na página 1de 346

UNIVERSIDADE DE LISBOA

GABINETE DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS


FACULDADE DE DIREITO

Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas


Direito Constitucional

DIREITOS SOCIAIS E VINCULAÇÃO DO LEGISLADOR

A interpretação constitucional em tempo de crise do Estado social


contemporâneo

LEONARDO DAVID QUINTILIANO

Lisboa

2018
LEONARDO DAVID QUINTILIANO

DIREITOS SOCIAIS E VINCULAÇÃO DO LEGISLADOR

A interpretação constitucional em tempo de crise do Estado social


contemporâneo

Dissertação de mestrado apresentada ao


Gabinete de Estudos Pós-Graduados da Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa, como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Direito.

Área de concentração: Ciências Jurídico-Políticas

Perfil: Direito Constitucional

ORIENTADOR: Professor Doutor Carlos Blanco de


Morais

Lisboa

2018
LEONARDO DAVID QUINTILIANO

DIREITOS SOCIAIS E VINCULAÇÃO DO LEGISLADOR:


A interpretação constitucional em tempo de crise do Estado social

Esta dissertação foi julgada adequada para a


obtenção do título de Mestre em Direito e
aprovada em sua forma final pelo Orientador e
pela Banca Examinadora.

Orientador: ____________________________________

Prof. Dr. Carlos Blanco de Morais

Banca Examinadora:

Prof. Dr. ____________________________________________

Prof. Dr. ____________________________________________

Prof. Dr. ____________________________________________

Coordenador do Gabinete de Estudos Pós Graduados:

Prof. Dr. ________________________________________________

Lisboa, ___________________________________.
DEDICATÓRIA

Aos cidadãos brasileiros e aos cidadãos portugueses, que mantêm,


com parte de seu trabalho convertido em impostos, as instituições que me
permitiram desenvolver o presente trabalho.
Que ele contribua - e, assim, lhes retribua - para o
desenvolvimento jurídico do tema em estudo.
AGRADECIMENTOS

Todo título acadêmico comporta dois tipos de agradecimento. Um,


que se apega ao sujeito, ao idealizador da pesquisa, seu produto humano. Outro,
que repousa no objeto da pesquisa, em seu produto formal. O primeiro destina-se a
todos os que participaram do desenvolvimento cognitivo do pesquisador,
porquanto todo sujeito cognoscente é, ao mesmo tempo, produtor e produto,
obreiro e obra. O segundo reserva-se àqueles que tornaram possível a feitura de
seu trabalho.
Inicialmente, cabe o agradecimento à minha mãe, Sandra Cristina
Gomes que, não conhecendo na teoria o que é o dirigismo constitucional ou os
direitos sociais, tampouco os conheceu na prática, o que não a impediu de lhes
suprir a falta por uma vontade mais transformadora que a das normas
programáticas. O mesmo se pode dizer de meu pai, Sebastião José Quintiliano, cuja
efetividade das normas sociais não chegou a tempo de evitar sua partida.
Dentre as inumeráveis pessoas que tiveram importância
fundamental em meu desenvolvimento acadêmico, destaco o Professor Sérgio
Resende de Barros, orientador de meu doutoramento no Brasil, cujos
ensinamentos e caminhos por ele abertos moldaram não apenas um acadêmico,
mas uma visão do mundo e do Direito. Também não posso olvidar o Professor
Carlos Blanco de Morais, cuja seriedade e rigor acadêmico, de que resultaram
posições sempre coerentes e plausíveis, contribuíram decididamente para o
desenvolvimento dessa dissertação.
Na segunda qualidade, agradeço a todos que contribuíram para a
elaboração da presente dissertação e sua apresentação: ao Professor Carlos Blanco
de Morais, pela orientação, e aos demais Professores da FDUL, pelas lições dadas
em suas aulas e palestras; aos colegas do mestrado e doutorado da FDUL, pelos
debates que propiciaram grande parte das reflexões deduzidas no presente
trabalho, em especial e por todos a Raineri Ramalho de Castro, a Stéfano Rezende
Monteiro e a Luis Clovis Machado, com o perdão aos demais cujos nomes a
limitação da memória me permite olvidar neste átimo.
EPÍGRAFES

Para dizermos algo mais sobre a pretensão de se ensinar


como deve ser o mundo, acrescentaremos que a filosofia
chega sempre muito tarde. Como pensamento do mundo,
só aparece quando a realidade efetuou e completou o
processo da sua formação. O que o conceito ensina
mostra-o a história com a mesma necessidade: é na
maturidade dos seres que o ideal se ergue em face do
real, e depois de ter apreendido, o mundo na sua subs-
tância reconstrói-o na forma de um império de ideias.
Quando a filosofia chega com a sua luz crepuscular a um
mundo já a anoitecer, é quando uma manifestação de
vida está prestes a findar. Não vem a filosofia para a reju-
venescer, mas apenas reconhecê-la. Quando as sombras
da noite começaram a cair é que levanta vôo o pássaro
de Minerva.1

(...) a essência de um fenômeno não se manifesta


imediatamente em sua aparência. É necessária a
interpretação. Se a aparência sempre revelasse de imediato
a essência das coisas do mundo, toda a ciência seria
desnecessária. No fundo, ciência é interpretação. Inclusive o
Direito. O conhecimento – e, sobretudo, o conhecimento
científico – não é mera fotografia do objeto pelo sujeito. O
sujeito ao mesmo tempo conhece e interpreta o objeto.
Conhece interpretando e interpretando conhece. Na medida
em que se avança nesse processo, as essências descobertas
tornam-se aparências de essências mais profundas. As
essências interpretadas revelam-se como aparência de
novas essências. Aparência e essência são, portanto,
contrários que se tornam um no outro.2

1 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. trad. O. Vitori. São Paulo:
Martins Fontes, 1997, p. XXXIX.
2 BARROS, Sérgio Resende de. Essência e Aparência. In: BEÇAK, R. (org); QUINTILIANO, L. D. ;

NIMER, B. L. C. (coords.). Princípios constitucionais: contribuições à luz da obra de sérgio resende de


barros. Belo Horizonte: Arraes, 2018, p. 17.
NOTAS DE LEITURA

As referências às obras consultadas encontram-se nas notas de rodapé,


as quais seguem o padrão de formatação previsto pela Associação Brasileira de
Normas Técnicas (ABNT), conforme manual disponível no sítio:
<http://www.teses.usp.br/index.php?option=com_content&view=article&id=52&I
temid=67>.
A escolha do referido método de citação, conquanto seja um trabalho
elaborado em Portugal, dá-se, à falta de outro método obrigatoriamente imposto
pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pela familiaridade do
mestrando com o método e pelo reconhecimento de sua facilidade para o leitor,
uma vez que cumprem as exigências metodológicas de compacidade, clareza,
coerência e completude.
A primeira citação contém nome do autor ou organizador, título em
itálico e subtítulo sem destaque, edição, local, editora, páginas e volumes. A
segunda citação contém apenas o nome do autor, título abreviado, edição (quando
citadas mais de uma edição) e página. Quando a transcrição de trechos de obras,
textos de lei ou de jurisprudência ultrapassa as três linhas, ela é feita em recuo do
texto principal, em fonte tamanho 10, sem o emprego das aspas.
Os acórdãos consultados possuem notas de referência com as
informações essenciais para situação do leitor, nomeadamente o número do
processo, o nome da parte e o Tribunal que proferiu a decisão, salvo quando um
desses dados já foi informado no próprio texto. A informação completa para
localização dos acórdãos encontra-se no Índice das Fontes, no tópico Jurisprudência
Citada.
A legislação foi preferencialmente consultada no sítio da internet dos
respetivos órgãos legiferantes, optando-se pela sua referência apenas no Índice das
Fontes, no tópico Legislação Consultada.
Na ausência de indicação diversa, os destaques e as traduções são de
nossa responsabilidade.
Como recurso de estilo, o itálico é empregado para destacar termos
estrangeiros e nome de obras, bem como para realçar palavras-chave no trabalho.
As aspas são empregadas para demarcar citações que ocupem menos de
três linhas, ou para indicar que a palavra, ideia ou expressão tem sentido
conotativo, não denotativo.
Observam-se as regras contidas no Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa, aprovado em Lisboa, em 12 de outubro de 1990, pela Academia das
Ciências de Lisboa, Academia Brasileira de Letras e delegações de Angola, Cabo
Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
NOTA TERMINOLÓGICA

A compreensão do presente trabalho poderia ser também afetada pelo


uso de palavras com igual grafia, mas sentidos diversos no Brasil e em Portugal, em
razão do que se faz necessário o seguinte apontamento prévio de seu sentido.
Pensão (Portugal): Prestações pecuniárias substitutivas de rendimentos
de trabalho perdido. No Brasil corresponde aos proventos de aposentadoria.
Pensão (Brasil): Benefício previdenciário concedido ao dependente de
segurado, em razão de sua morte. O sistema português não distingue o benefício
previdenciário devido por morte do segurado dos demais benefícios
previdenciários pagos diretamente ao segurado por idade ou invalidez.
Segurança Social: Conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes
públicos e da sociedade, destinado a assegurar direitos sociais previdenciais e
assistenciais. O Brasil adota o termo Seguridade Social, mas com alcance maior,
abrangendo a Saúde, a Previdência Social e a Assistência Social.
Aposentação: Situação do trabalhador que lhe permite parar de
trabalhar, sem deixar de receber uma remuneração. Também se utiliza o termo
pensão.
Reforma: Termo usado para a inatividade definitiva do militar em Brasil
e em Portugal.
Inativo: Gênero que inclui todos os trabalhadores que mantém a
percepção total ou parcial da remuneração sem a necessidade de continuar a
trabalhar. São espécies o aposentado e o reformado.
Segurado: Trabalhador que tem direito à percepção do benefício
previdenciário. Em Portugal se emprega o termo utente.
Servidor (público): Trabalhador da Administração Pública. Em Portugal
corresponderia aos funcionários ou agentes administrativos.
NOTA BIBLIOGRÁFICA

Sobre a temática dos direitos sociais, vinculação do legislador e demais


assuntos tratados em caráter principal ou subsidiário há um número tão vasto de
obras publicadas, seja em Brasil e em Portugal, seja nos demais países, que o
presente trabalho não tem a pretensão de esgotá-las. Nesse sentido, a metodologia
científica contemporânea enfrenta uma revolução – talvez, uma evolução – que
abandona o paradigma da totalidade e o substitui pelo paradigma da seletividade.
Em outras palavras, o desafio do pesquisador em ciências humanas não é mais
esgotar as fontes de consulta sobre o tema (que já se torna impossível), mas
conseguir eleger aquelas que são fundamentais para o desenvolvimento do
trabalho proposto.
Desse modo, pela afinidade histórica, cultura e lingüística, houve uma
proeminência do foco comparativo entre Brasil e Portugal, a justificar um recorte
bibliográfico com preferência por obras publicadas em ambos os países. Esse
recorte foi aprimorado por meio do estudo de obras que podem ser consideradas
essenciais para o desenvolvimento do tema.
Não obstante, a articulação de premissas e pré-compreensões
necessárias ao diálogo proposto com os autores citados, seja para corroborar ou
para infirmar suas teses, exigiu a citação de obras consideradas universais nas
áreas de filosofia, sociologia, economia e outros ramos do direito. Também a
necessidade reflexivo-referencial do direito enquanto ciência social aplicada
justifica o emprego de obras estrangeiras, com a pretensão exemplificativa, não
exaustiva.
Preferiu-se, no caso dos clássicos, a citação direta dos originais - e não
das versões modernas, sejam traduzidas, sejam no respetivo idioma original -,
quando puderem ser encontrados na internet, em fotocópias ou fac-símile nos
sítios de instituições fidedignas voltadas à preservação e divulgação dessas obras.
A citação das obras originais tem o objetivo de reforçar o contexto histórico de sua
publicação, o que contribui para uma melhor compreensão do conceito em análise.
ABREVIATURAS E SIGLAS

ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

ADO - Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão

AgR. – Agravo Regimental (Brasil)

AR – Assembleia da República (de Portugal)

art. – artigo

CDFUE – Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia

CES – Contribuição Extraordinária de Solidariedade (instituída em Portugal pela


Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro (Orçamento de Estado para 2011)

cf. - conferir

CGA – Caixa Geral de Aposentações (de Portugal)

cit. – citado (a)

CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil

CRP – Constituição da República Portuguesa

CS – Contribuição de Sustentabilidade (instituída em Portugal pelo Decreto n.


262/2012 da Assembleia da República)

DF – Distrito Federal

EC – Emenda Constitucional (Brasil)

ed. - Edição

e.g. – exempli gratia (por exemplo)

FADUL - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

FMI – Fundo Monetário Internacional

MC – Medida Cautelar

Min. - Ministro

org. – organizador (a) (s)

p. – página (s)

RE – Recurso Extraordinário
RO - Roraima

SC – Santa Catarina

sep. - Separata

ss. - seguintes

STF – Supremo Tribunal Federal (Brasil)

STJ – Superior Tribunal de Justiça (Brasil)

t. – tomo (s)

TC – Tribunal Constitucional (de Portugal)

TECE – Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa – 2004

Trad. – Tradutor (a) (s)

TUE – Tratado da União Europeia – 1992 e alterações

v. – volume (s)

v.g. - verbi gratia (por exemplo)


RESUMO

QUINTILIANO, L. D. Direitos sociais e vinculação do legislador: a interpretação


constitucional em tempos de crise do estado social contemporâneo. 332 f. Tese
(Mestrado) - Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018.

Em virtude de sua estrutura e de seu conteúdo indefinido, os direitos sociais requerem


uma densificação normativa. Numa conceção clássica do Estado de direito, o poder
densificador é o poder legislativo, a quem compete a função normativa primária. No
entanto, com o desenvolvimento do Estado social e o recurso do poder constituinte às
normas programáticas e às imposições legislativas, o descumprimento constitucional de
tais normas levaram a uma hipertrofia do poder jurisidional. Chamado a “interpretar”
normas que dispõem sobre deveres prestacionais do Estado, o Judiciário, dotado de
maior ou menor poder conforme o sistema constitucional em que se insere – se common
law ou civil law – passa a assumir o protagonismo no cenário estatal. Com menor
legitimidade democrática, o caráter definitivo da função jurisdicional logo se impõe e a
sobrepõe às demais funções estatais, mediante uma série de construções lógico-jurídicas
que buscam autorizar maior interferência na discricionariedade legislativa, bem como
legitimar a atividade criativa do poder jurisdicional. Entre essas construções, destacam-
se a teoria dos critérios de proporcionalidade, a densificação dos critérios da proteção da
confiança pelo Tribunal Constitucional português e a teoria da proibição do retrocesso
social. Nos momentos glórios do Estado de bem estar social, no entanto, o dilema
“custo dos direitos vs. reserva do possível” parece não afetar tal protagonismo
jurisdicional. Mas com a crise do Estado Social, a responsabilidade política
(accountability) passa a expor o déficit democrático das decisões jurisdicionais. Ao ter
que decidir que direitos são mais importantes, a função jurisdicional se confunde com a
função legislativa. Desse modo, a Doutrina jurídica é chamada a reexaminar os limites
da interpretação constitucional. E, em tema de direitos sociais, a limitação da
interpretação constitucional passa pela própria limitação do legislador. Essa tese propõe,
assim, analisar criticamente e delimitar a vinculação do legislador às normas
constitucionais de direitos sociais, com base nos princípios aferíveis das conceções de
Estado de direito e de Estado social, em face das crises contemporâneas do dirigismo
constitucional e da teoria geral do direito e do Estado, circunstâncias que intensificam a
tensão entre as estruturas econômicas, sociais e jurídicas.

Palavras-chave: 1. Estado de direito 2. Estado social 2. Direitos sociais 3. Vinculação


do legislador 4. Crise do Estado social 5. Interpretação constitucional 6. Separação dos
poderes 7. Proporcionalidade 8. Segurança Jurídica 9. Proteção da confiança 10.
Direito Adquirido 11. Retrocesso social 12. Ativismo judicial
ABSTRACT

QUINTILIANO, L. D. Social rights and binding of the legislator: the constitutional


interpretation in times of the crisis of the contemporary social state. 332 f. Tese
(Mestrado) - Faculty of Law, University of Lisbon, Lisbon, 2018.

Because of its structure and its indefinite content, social rights require a normative
densification. In a classical conception of the "rule of law"3, this densifying power is the
legislative power, which has the primary normative function. However, due to the
development of the social State and the use of constituent power to program norms and
legislative impositions, constitutional noncompliance with such rules led to a
hypertrophy of judicial power. Urged to "interpret" norms about State provisional
duties, the Judiciary, endowed with more or less power according to the constitutional
system in which it is inserted - common law or civil law - starts to assume the
protagonism in the set of State. With less democratic legitimacy, the definitive character
of the jurisdictional function soon imposes itself and overrides the other state functions,
through a series of logical-juridical constructions that seek to authorize greater
interference in the legislative discretionariness, as well as to legitimize the creative
activity of the jurisdictional power. Among these constructions, the theory of
proportionality, the densification of the criteria for the protection of legitimate
expectations and the theory of the prohibition of social retrogression stand out. In the
glorious moments of the welfare state, however, the dilemma "cost of rights vs. reserve
of the financially possible" does not seem to affect such jurisdictional protagonism. But
in the crisis of the Social State, the accountability exposes the democratic deficit of
judicial decisions. In having to decide which rights are more important, the
jurisdictional function is confused with the legislative function. Thereby, legal doctrine
is urged to revise the limits of constitutional interpretation. And, on social rights, the
limitation of constitutional interpretation goes through the legislator's own limitation.
This thesis proposes, therefore, to analyze and delimit the binding of the legislator to the
constitutional norms of social rights, based on the presumed principles of the
conceptions of the "rule of law" and social State, in light of contemporary crises of
constitutional dirigisme and the general theory of law and the State, circumstances that
intensify the tension between economic, social and legal structures.

Keywords: 1. Rule of law 2. Social State 3. Binding of the legislator 4. Crisis of the
social State 5. Constitucional interpretation 6. Separation of powers 7. Proportionality
8. Legal certainty 9. Protection of legitimate expectations 10. Vested right 11. Social
retrogression 12. Judicial activism

3 The expression "rechtsstaat" or "Estado de direito" is generally translated into English as "rule of
law." It is important to note that this translation is a conceptual approximation, since there is no
equivalent institute in the common law system and there is substantial differences between the two
institutes.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ___________________________________________________________________________ 11

PRÉ-COMPREENSÕES ______________________________________________________________________30

PARTE 1 - LIBERDADE DO LEGISLADOR E VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL _____63

1.1. A CONSTITUIÇÃO E A LEI _______________________________________________________ 65

1.2. O RESPEITO À VONTADE DO LEGISLADOR: MENS LEGISLATORIS VS. MENS


LEGIS __________________________________________________________________________________ 81

1.3. CONCEITO DE VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL _____________________________ 88

PARTE 2 – À VINCULAÇÃO DO LEGISLADOR À CONSTITUIÇÃO SOCIAL ___________89

2.1. ORIGENS DO ESTADO SOCIAL __________________________________________________ 92

2.2. O CONCEITO DE ESTADO SOCIAL E SUA PRETENSA NORMATIVIDADE A


CONSTITUIÇÃO DO ESTADO SOCIAL E DE DIREITO E SUAS ESPECIFICIDADES 95

2.3. A CONSTITUIÇÃO SOCIAL E A LIBERDADE DO LEGISLADOR _______________ 99

2.4. A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE_________________________________________________ 104

2.5. DAS FORMAS DE VINCULAÇÃO DO LEGISLADOR À CONSTITUIÇÃO SOCIAL


________________________________________________________________________________________ 107

2.6. A VINCULAÇÃO MATERIAL DO LEGISLADOR AOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS SOCIAIS __________________________________________________________ 124

2.7. A VINCULAÇÃO FORMAL DO LEGISLADOR À CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE - A


QUESTÃO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO ______________________________________ 143
PARTE 3 – O PAPEL DOS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DO ESTADO DE DIREITO
NA VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL DO LEGISLADOR EM MATÉRIA DE DIREITOS
SOCIAIS _____________________________________________________________________________________ 180

3.1. PRINCÍPIO DA IGUALDADE ____________________________________________________ 183

3.2. A SEGURANÇA JURÍDICA ______________________________________________________ 190

3.3. PROPORCIONALIDADE ________________________________________________________ 215

PARTE 4 – A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS VINCULANTES DO LEGISLADOR AOS


DIREITOS SOCIAIS EM TEMPOS DE CRISE ECONÔMICO-FINANCEIRA: O CASO DAS
REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS E DO CORTE DE PENSÕES_________________________ 234

4.1. OS SISTEMAS PREVIDENCIÁRIOS NO BRASIL E EM PORTUGAL - UMA


ANÁLISE COMPARADA _____________________________________________________________ 237

4.2. AS REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS NO BRASIL E O POSICIONAMENTO DO


STF ___________________________________________________________________________________ 241

4.3. AS REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS EM PORTUGAL _________________________ 252

4.4. UM EXEMPLO COMPARADO: AS REFORMAS NAS PENSÕES NA ITÁLIA E O


RECENTE POSICIONAMENTO DA CORTE COSTITUZIONALE ____________________ 270

4.5. ANÁLISE COMPARATIVA DOS CRITÉRIOS EMPREGADOS PELAS CORTES


CONSTITUCIONAIS _________________________________________________________________ 275

4.6. MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS CIRCUNSTANCIAIS? _______________________ 284

4.7. ATIVISMO JUDICIAL OU POLÍTICO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL? ___ 289

CONCLUSÕES_______________________________________________________________________________ 294

ÍNDICE DAS FONTES ______________________________________________________________________ 312


ÍNDICE ANALÍTICO

INTRODUÇÃO ___________________________________________________________________________ 11

A - ATUALIDADE E RELEVÂNCIA DO TEMA _____________________________________ 11

B - OBJETIVOS _______________________________________________________________________ 17

C - ESTADO DA ARTE _______________________________________________________________ 17

D - METODOLOGIA__________________________________________________________________ 25

PRÉ-COMPREENSÕES ______________________________________________________________________30

1. INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: ORDEM-MOLDURA OU ORDEM-


FUNDAMENTO? _____________________________________________________________________ 32

2. ESTADO DE DIREITO E SEU CONTEÚDO JURÍDICO __________________________ 37

3. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA _____________________________________________ 47

4. NEOCONSTITUCIONALISMO ____________________________________________________ 52

5. ATIVISMO JUDICIAL _____________________________________________________________ 57

PARTE 1 - LIBERDADE DO LEGISLADOR E VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL _____63

1.1. A CONSTITUIÇÃO E A LEI _______________________________________________________ 65

1.1.1. A legitimação da Constituição _____________________________________________ 65

1.1.2. A função da Constituição e a função da lei ________________________________ 68

1.1.3. A função legislativa nos sistemas civil law e common law _______________ 73

1.1.4. A supremacia da Constituição e a discricionariedade legislativa _______ 76

1.1.5. O paradoxo da vinculação constitucional _________________________________ 78

1.1.6. A proeminência do legislador na interpretação constitucional _________ 80

1.2. O RESPEITO À VONTADE DO LEGISLADOR: MENS LEGISLATORIS VS. MENS


LEGIS __________________________________________________________________________________ 81

1.3. CONCEITO DE VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL _____________________________ 88

PARTE 2 – À VINCULAÇÃO DO LEGISLADOR À CONSTITUIÇÃO SOCIAL ___________89

2.1. ORIGENS DO ESTADO SOCIAL __________________________________________________ 92


2.2. O CONCEITO DE ESTADO SOCIAL E SUA PRETENSA NORMATIVIDADE A
CONSTITUIÇÃO DO ESTADO SOCIAL E DE DIREITO E SUAS ESPECIFICIDADES 95

2.3. A CONSTITUIÇÃO SOCIAL E A LIBERDADE DO LEGISLADOR _______________ 99

2.4. A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE_________________________________________________ 104

2.5. DAS FORMAS DE VINCULAÇÃO DO LEGISLADOR À CONSTITUIÇÃO SOCIAL


________________________________________________________________________________________ 107

2.5.1. Vinculação positiva e vinculação negativa _______________________________ 108

2.5.2. Vinculação formal, direta ou imediata e vinculação material, indireta ou


mediata____________________________________________________________________________ 109

2.5.3. Vinculação do legislador a normas autoaplicáveis e a normas não


autoaplicáveis ____________________________________________________________________ 110

2.5.4. Vinculação a princípios, programas e regras ___________________________ 112

2.5.5. As imposições constitucionais ____________________________________________ 114

2.5.5.1. Imposições legiferantes ______________________________________________ 116

2.5.5.2. Normas programáticas _______________________________________________ 116

2.5.5.3. Proibições _____________________________________________________________ 118

2.5.5.4. Normas precetivas ____________________________________________________ 118

2.5.5.5. Condições explícitas __________________________________________________ 119

2.5.6. As permissões constitucionais ___________________________________________ 120

2.5.7. Direitos garantidos ________________________________________________________ 121

2.5.8. Deveres prescritos_________________________________________________________ 122

2.5.9. Princípios estruturantes __________________________________________________ 122

2.6. A VINCULAÇÃO MATERIAL DO LEGISLADOR AOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS SOCIAIS __________________________________________________________ 124

2.6.1. As diferenças entre as normas de direitos fundamentais sociais e os


direitos e garantias individuais _________________________________________________ 125

2.6.1.1. A questão em Portugal _______________________________________________ 125


2.6.1.2. A questão no Brasil ___________________________________________________ 127

2.6.2. Análise crítica da aplicação do mesmo regime das direitos, liberdades e


garantias aos direitos fundamentais sociais ___________________________________ 129

2.6.2.1. A fundamentalidade dos direitos sociais ___________________________ 129

2.6.2.2. A coincidência material de normas de direitos de liberdade com


normas de direitos sociais ____________________________________________________ 131

2.6.2.3. A igualdade de custos entre direitos de liberdade e direitos sociais


__________________________________________________________________________________ 132

2.6.2.4. A dimensão subjetiva dos direitos sociais __________________________ 132

2.6.2.5. Posição adotada _______________________________________________________ 134

2.6.3. Morfologia das normas de direitos sociais ______________________________ 135

2.6.4. Vinculação positiva do legislador aos direitos fundamentais sociais _ 136

2.7. A VINCULAÇÃO FORMAL DO LEGISLADOR À CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE - A


QUESTÃO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO ______________________________________ 143

2.7.1. O desenvolvimento da aplicação do princípio da proibição do retrocesso


em Portugal _______________________________________________________________________ 155

2.7.1.1. Evolução doutrinária _________________________________________________ 155

2.7.1.2. O acórdão 39/1984 ___________________________________________________ 156

2.7.1.3. A mudança de entendimento do TC e a superação do acórdão


39/1984 ________________________________________________________________________ 158

2.7.1.4. O Acórdão 509/2002 e os parâmetros para aplicação da proibição


do retrocesso___________________________________________________________________ 158

2.7.1.5. A proibição do retrocesso no TC e no STF __________________________ 160

2.7.2. Análise crítica dos fundamentos utilizados na defesa de um princípio


geral de proibição do retrocesso ________________________________________________ 161

2.7.2.1. Dever de progressividade ínsito à conceção de Estado social de


direito? _________________________________________________________________________ 162

2.7.2.2. Regresso ou progresso? ______________________________________________ 162


2.7.2.3. Dever de progressividade expresso ou implícito no texto
constitucional __________________________________________________________________ 164

2.7.2.4. Dever de progressividade como garantia da eficácia ou efetividade


das normas definidoras de direitos fundamentais __________________________ 166

2.7.2.5. Direito subjetivo à ação estatal ______________________________________ 167

2.7.2.6. Direito subjetivo a prestações sociais _______________________________ 168

2.7.2.7. Vedação de criação de uma omissão inconstitucional _____________ 169

2.7.2.7.1. Revogação violadora da dignidade da pessoa humana _______ 170

2.7.2.7.2. Observância dos princípios da proteção da confiança, da


igualdade, da proibição do arbítrio e da razoabilidade __________________ 171

2.7.2.7.3. Afetação do conteúdo essencial do direito _____________________ 171

2.7.2.7.4. Natureza constitucional da lei concretizadora de direitos sociais


________________________________________________________________________________ 172

2.7.2.7.5. Mutação constitucional provocada pela concretização de


direitos sociais ______________________________________________________________ 173

2.7.3. Posição adotada ___________________________________________________________ 176

PARTE 3 – O PAPEL DOS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DO ESTADO DE DIREITO


NA VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL DO LEGISLADOR EM MATÉRIA DE DIREITOS
SOCIAIS _____________________________________________________________________________________ 180

3.1. PRINCÍPIO DA IGUALDADE ____________________________________________________ 183

3.1.1. Funções normativa e social do princípio ________________________________ 183

3.1.2. Igualdade formal e igualdade material (real) ___________________________ 183

3.1.3. Vinculação negativa do legislador pelo princípio da igualdade ________ 185

3.1.4. Vinculação positiva do legislador ao princípio da igualdade ___________ 186

3.1.5. A inconstitucionalidade parcial da lei por violação ao princípio da


igualdade e seus efeitos __________________________________________________________ 188

3.2. A SEGURANÇA JURÍDICA ______________________________________________________ 190

3.2.1. O núcleo da segurança jurídica - a irretroatividade da lei ______________ 193


3.2.1.1. Os tipos de irretroatividade __________________________________________ 194

3.2.1.2. O problema da retroatividade inautêntica e dos direitos em


formação _______________________________________________________________________ 195

3.2.2. O direito adquirido ________________________________________________________ 196

3.2.3. Direitos em formação: expectativa de direito ou direito adquirido? __ 197

3.2.4. A dimensão subjetiva da segurança jurídica - o princípio da confiança


_____________________________________________________________________________________ 202

3.2.4.1. A aplicação do princípio em Portugal _______________________________ 205

3.2.4.2. A aplicação do princípio no Brasil ___________________________________ 210

3.3. PROPORCIONALIDADE ________________________________________________________ 215

3.3.1. Proporcionalidade e razoabilidade ______________________________________ 215

3.3.2. Os subelementos da regra da proporcionalidade _______________________ 216

3.3.3. Subelementos ou princípios autônomos _________________________________ 218

3.3.4. O princípio ou subelemento da adequação ______________________________ 219

3.3.5. O princípio ou subelemento da necessidade ____________________________ 223

3.3.6. A proibição de excesso ou vedação de afetação do núcleo essencial? _ 224

3.3.7. A ausência, inadequação ou ilegitimidade do interesse público ou da


expectativa do particular ________________________________________________________ 231

PARTE 4 – A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS VINCULANTES DO LEGISLADOR AOS


DIREITOS SOCIAIS EM TEMPOS DE CRISE ECONÔMICO-FINANCEIRA: O CASO DAS
REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS E DO CORTE DE PENSÕES_________________________ 234

4.1. OS SISTEMAS PREVIDENCIÁRIOS NO BRASIL E EM PORTUGAL - UMA


ANÁLISE COMPARADA _____________________________________________________________ 237

4.2. AS REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS NO BRASIL E O POSICIONAMENTO DO


STF ___________________________________________________________________________________ 241

4.2.1. A reforma previdenciária de 1998 _______________________________________ 241

4.2.2. A tentativa de tributação das aposentadorias por meio da Lei n.


9.783/99 __________________________________________________________________________ 241
4.2.2.1. Mens legislatoris ______________________________________________________ 241

4.2.2.2. O possível recurso ao princípio da proteção da confiança e ao direito


adquirido _______________________________________________________________________ 242

4.2.3. A segunda reforma: o contorno da vinculação do legislador pela


(des)vinculação do poder constituinte derivado ______________________________ 242

4.2.4. A (des)vinculação do Poder Constituinte derivado aos princípios


vinculantes do legislador ordinário _____________________________________________ 246

4.3. AS REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS EM PORTUGAL _________________________ 252

4.3.1. A instituição da Contribuição Extraordinária de Solidariedade _______ 252

4.3.2. O corte de pensões pelo Decreto nº 187/2012__________________________ 254

4.3.2.1. Desproporcionalidade ________________________________________________ 256

4.3.2.2. Ofensa ao direito adquirido e à proteção da confiança ____________ 256

4.3.3. A tentativa da perpetuação da CES - a criação da CS____________________ 257

4.3.3.1. Princípio da igualdade e proteção da confiança ____________________ 257

4.3.3.2. Os fundamentos do acórdão: proteção da confiança, mínimo social,


dignidade da pessoa humana, igualdade ____________________________________ 258

4.3.3.3. Aplicação do princípio da vedação de retrocesso social ___________ 260

4.3.4. Análise crítica da aplicação do princípio da proteção da confiança pelo


TC __________________________________________________________________________________ 261

4.3.4.1. Expectativas geradas _________________________________________________ 263

4.3.4.2. Legitimidade __________________________________________________________ 264

4.3.4.3. Planejamentos feitos pelos privados ________________________________ 265

4.3.4.4. A proibição do excesso _______________________________________________ 265

4.3.4.5. Proteção da confiança ou proporcionalidade? _____________________ 267

4.3.5. Princípio da justiça intergeracional? _____________________________________ 269

4.4. UM EXEMPLO COMPARADO: AS REFORMAS NAS PENSÕES NA ITÁLIA E O


RECENTE POSICIONAMENTO DA CORTE COSTITUZIONALE ____________________ 270
4.5. ANÁLISE COMPARATIVA DOS CRITÉRIOS EMPREGADOS PELAS CORTES
CONSTITUCIONAIS _________________________________________________________________ 275

4.5.1. A metodologia empregada ________________________________________________ 275

4.5.2. Outra solução seria possível? _____________________________________________ 276

4.5.3. A questão do direito adquirido às pensões e ao seu valor _____________ 277

4.6. MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS CIRCUNSTANCIAIS? _______________________ 284

4.7. ATIVISMO JUDICIAL OU POLÍTICO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL? ___ 289

CONCLUSÕES_______________________________________________________________________________ 294

Conclusões parciais _________________________________________________________________ 294

Conclusão geral _____________________________________________________________________ 309

ÍNDICE DAS FONTES ______________________________________________________________________ 312

OBRAS CITADAS ____________________________________________________________________ 312

JURISPRUDÊNCIA CITADA _________________________________________________________ 326

LEGISLAÇÃO CITADA _______________________________________________________________ 329

OUTROS DOCUMENTOS CITADOS _________________________________________________ 332


11

INTRODUÇÃO

A - ATUALIDADE E RELEVÂNCIA DO TEMA

A partir de 2008, acompanhando a crise econômica mundial


iniciada em 2007, instalou-se em Portugal e em outros Estados europeus uma crise
econômica e financeira, o que levou os respetivos governos à adoção de diversas
medidas de contenção de gastos públicos, afetando especialmente direitos sociais
prestacionais, como salários e pensões.4 O mesmo tipo de crise - conquanto
fundada em razões diversas - começa a afetar o Estado social brasileiro a partir de
2014, após um período de crescimento e aparente estabilidade iniciado em 2004. A
exemplo de Portugal, o governo brasileiro lança uma cartilha de contenção de
despesas públicas, suspensa em grande parte devido à instabilidade político-
institucional e social que deve permanecer presente no país até o advento das
próximas eleições, em 2018.
No caso português, as medidas de contenção dos gastos
públicos, referidas como "medidas de austeridade", foram objeto de interpretação
pelo Tribunal Constitucional de Portugal (TC), o qual recorreu a interpretações
diversas de princípios inerentes ao Estado social e de direito para ora ratificar, ora
invalidar os referidos atos estatais. Esse conjunto de julgamentos ficou conhecido
como "jurisprudência da crise".5
No Brasil, por outro lado, grande parte das medidas de
enfrentamento do déficit público ainda não foi aprovada. Todavia, no ano de 1998,
em meio a outra crise econômica, o governo brasileiro realizou profunda reforma
previdenciária e fiscal, com cortes indiretos nos valores das pensões no serviço
público, bem como com a instituição de sistema previdenciário para o setor
público e alteração das regras para obtenção de aposentação nos setores público e
privado. Parte significativa dessas modificações foi submetida ao Supremo
Tribunal Federal (STF), que, por fundamentos em sua maioria diversos do TC,
julgou-as constitucionais. Com uma mudança significativa na composição do STF

4 Sobre as circunstâncias históricas e razões da crise em Portugal, cf. PEREIRA, Paulo Trigo.
Portugal: dívida pública e défice democrático. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2012.
5 Para um resumo da questão em Portugal, cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito

constitucional: teoria da constituição em tempo de crise do estado social. v. 2. t. 2. Coimbra: Coimbra


Editora, 2014, p. 709 et seq.
12

após mais de dez anos daqueles julgamentos, há grande expetativa de alteração de


sua jurisprudência, especialmente porque a jurisprudência da crise do TC poderá
influenciar a corte brasileira.
Os exemplos brasileiro e português, contudo, não são
exceções entre os chamados Estados sociais.
De fato, em 2017, comemoraram-se os cem anos da
promulgação da considerada primeira Constituição social - a Constituição
mexicana de 1917. Decorrendo da evolução do Estado de direito meramente
garantista, o Estado social surge a partir do ideário de imposição aos governos de
políticas que não apenas garantam aos cidadãos seus direitos de liberdade, mas
também de consagração de direitos que promovam uma igualdade material,
assentados numa noção de justiça distributiva - os direitos sociais. Entre muitas
diferenças que podem ser apontadas entre os direitos assegurados na Constituição
liberal e os direitos sociais incorporados na Constituição social, estaria o alto custo
destes, que implicam em sua maioria obrigações prestacionais do Poder Público. 6
É verdade, como demonstram Holmes e Sunstein, que todos
os direitos têm custos7 e, muitas vezes, os custos não aparentes dos liberty rights
podem até ser superiores aos custos dos welfare rights.8 Analisando o orçamento
dos Estados Unidos em 1996, e.g., alguns custos, como o de manutenção do sistema
prisional, intrinsecamente ligado aos direitos individuais (2,4 bilhões de dólares), é
simplesmente quase o dobro dos gastos federais com educação elementar,
secundária e superior (1,370 milhões de dólares). O exemplo estadunidense, no
entanto, não é a regra dos Estados pós-modernos.
Com efeito, o orçamento federal do Brasil, e.g., para o ano de
2018, prevê números alarmantes. Para uma despesa total fixada de 1 trilhão de

6 Como ilustra o resspetivo debate constituinte mexicano, a adoção de tais imposições foi uma
forma de conter os arroubos dos movimentos sociais que lutavam pela previsão direta no texto
constitucional de alguns direitos sociais prestacionais, contemplando-os indiretamente. Cf. HELÚ,
Jorge Sayeg. El constitucionalismo social mexicano: la integración constitucional de México (1808-
1988). México: Fondo de Cultura Económica, 1991, p. 605 et seq.
7 Cf. SILVA, Vasco Pereira da. Verde cor de direito: lições de direito do ambiente. Coimbra: Almedina,

2002, p. 87.
8 Cf. especialmente a tabela comparativa trazida pelos autores entre os custos do governo

estadunidense em 1996 relativos aos direitos de liberdade e ao funcionamento de outros direitos,


bem como aos direitos sociais. Alguns custos, e.g., como o de manutenção do sistema prisional,
intrinsecamente ligado aos direitos individuais (2,4 bilhões de dólares) é simplesmente quase o
dobro dos gastos federais com educação elementar, secundária e superior (1,370 milhões de
dólares). HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes.
New York, London: W. W. Norron & Company, 1999, p. 233 et seq.
13

dólares, cerca de 300 bilhões de dólares se referem tão somente à segurança social,
ou seja, 30% dos gastos federais são com aposentadorias e pensões.9 A
manutenção de todo o aparato estatal federal, que assegura a observância de todos
os direitos, sejam os individuais, sejam os sociais, é fixada em torno dos 400
bilhões de dólares. Destes, porém, cerca de 30 bilhões de dólares são destinados ao
Ministério da Educação, e outros 40 bilhões de dólares ao Ministério da Saúde.
Considerando que o Brasil é um estado federativo cooperativo, que transfere aos
Estados federados grande parte de sua responsabilidade pela execução de direitos
prestacionais, vê-se mais claramente o impacto de tal categoria de direitos no
orçamento do Estado. No caso do Estado de São Paulo, que responde pelo segundo
maior orçamento do Brasil, para uma despesa fixada de pouco menos do
equivalente a 90 bilhões de dólares, cerca de 10 bilhões de dólares destinam-se à
Educação, 8 bilhões de dólares à Saúde e 10 bilhões de dólares à previdência dos
funcionários públicos.10,11
O orçamento português não é diferente.12 Em franca
recuperação da crise iniciada no fim década passada, para uma despesa total
estimada em 129 bilhões de euros, o orçamento de 2018 prevê cerca de 8 bilhões
de euros para a educação, 8,5 bilhões de euros para a saúde e 13 bilhões de euros
para a segurança social. Ou seja, apenas computados esses gastos diretos com a
prestação direta de direitos sociais e a manutenção de órgãos públicos voltados
unicamente à sua prestação, eles respondem por mais de 10% do orçamento do

9 Cf. Lei federal nº 13.587, de 2 de janeiro de 2018.


10 Cf. Lei estadual nº 16.646, de 11 de janeiro de 2018.
11 Em uma pesquisa simples no site do Superior Tribunal de Justiça no Brasil, que têm a

competência para julgar todos os assuntos infraconstitucionais, a expressão "direito à


aposentadoria" gera o mesmo número de recorrências (cerca de 17 mil) que a expressão "direito à
idenização", pedido frequente em matéria privada. No mesmo sentido, as duas turmas do Tribunal
especializadas em julgar direito previdenciário e público apresentam números próximos de
processos comparadas às duas turmas de direito privado e às outras duas turmas de direito
criminal. Isso demonstra que além dos custos diretos com a prestação dos serviços, há também a
repercussão dos custos dos direitos sociais na sua judicialização e controle administrativo. Cabe
observar que a Constituição brasileira exige que o governo federal aplique 18% e o estadual 25%,
no mínimo, da receita bruta, em educação, bem como 15% e 12% respetivamente. Ou seja,
computados todos os gastos alocados em outras áreas do orçamento, o custo dos direitos sociais no
Brasil se aproxima da metade da receita bruta.
12 A observação é igualmente feita por Carlos Blanco de Morais. Cf. De novo a querela da ‘unidade

dogmática’ entre direitos de liberdade e direitos sociais em tempos de ‘exceção financeira’”. In:
Epública: Revista eletrônica de direito público, n°. 3, 2014. Disponível em: <http://e-publica.pt/>.
Acesso em: 8 mar. 2015, p. 7.
14

Estado, valor esse que pode atingir percentuais muito maiores, a considerar os
custos indiretos diluídos em outras rubricas orçamentais.13
Por essa razão, embora a doutrina usualmente se refira a
"crises do Estado social" pode-se afirmar que o Estado social nasceu em crise e, por
que não dizer, da própria crise.14 Deveras, a par de, em alguns casos, o Estado
social ter sido uma resposta a crises, esta é dialeticamente ínsita ao Estado social,
na medida em que as demandas por direitos sociais são infinitas, mas os recursos
necessários para o seu atendimento são sempre finitos. Isso gera a constante
necessidade de escolhas governamentais, o que por sua vez implica uma tensão
entre os diversos setores da sociedade favorecidos e preteridos por tais escolhas. O
que ocorre ciclicamente é o acirramento dessas tensões, quando, por
desaceleração do crescimento econômico motivado por fatores diversos, os
recursos financeiros tornam-se mais escassos e a prestação dos direitos sociais,
mesmo os contemplados anteriormente, diminui.15
Nos momentos de menor tensão do Estado social e de maior
crescimento econômico estatal, a pressão da infraestrutura social (demandas
sociais) prevalece sobre a econômica e influencia a superestrutura jurídica
(aumento dos direitos sociais). Com a queda no crescimento, a tensão aumenta e a
infraestrutura econômica, que implica a contenção de gastos, passa a prevalecer,
ocupando o protagonismo da influência jurídica. Isso se reflete nas teorias
jurídicas que vão sendo desenvolvidas. 16
Por outro lado, a par das cíclicas crises econômicas e
financeiras do Estado social, enfrenta o Direito uma crise referencial, provocada

13 Cf. Lei n.º 114/2017, de 29/12.


14 É importante divisar bem a origem do Estado social como alternativa à crise instalada, como se
dá nos países nazifascistas, voltada fortemente à produção bélica, ou no New Deal americano, como
uma forma de superação da forte crise econômica de 1929, do Estado social originado a partir de
reivindicações sociais em face de Estados liberais em prosperidade econômica, como se verificam
casos a partir da Segunda Guerra Mundical. Sobre o tema, cf. BOBBIO, Norberto. Dicionário de
política. v. I. 11 ed. trad. C. C. Varriale et al. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 416.
15 Muitas razões podem explicar as chamadas crises do Estado social. Sem prejuízo de nosso

entendimento de que a crise faz parte do Estado social, causas financeiras (os custos dos serviços),
administrativas (a burocracia e a corrupção decorrente) e comerciais (competição internacional)
explicam a oscilação no crescimento econômico e seus reflexos no orçamento dos Estados. Sempre
que o crescimento diminui, as receitas são impactadas e os direitos sociais são diminuídos os
cortados. Têm-se, aí, os momentos denominados "crises" do Estado social. Cf. MIRANDA, Jorge.
Manual de direito constitucional. t. I. Coimbra: 1996, p.98.
16 Cf. PORTALES, Rafael Enrique Aguilera. Las transformaciones del estado contemporáneo:
legitimidad del modelo de estado neoconstitucional. Universitas. Revista de Filosofía, Derecho y Política,
n. 15, jan. 2012, p. 3-4.
15

pela excessiva abertura axiológica dos textos constitucionais, por um lado, e pela
ausência de um marco hermenêutico definido, legitimado constitucional e
democraticamente para interpretação e aplicação das normas constitucionais.17
De fato, a contemplação direta e indireta de normas de
direitos sociais nos textos constitucionais do México, em 1917, e da Alemanha, em
1919, sob a forma de previsão de metas ou programas (normas programáticas),
ordens de legislar e normas principiológicas, ao vincularem positivamente o
legislador, na medida em que a efetividade e concretude de tais normas dependiam
da intermediação do Poder Legislativo.
Esse processo se acentuou, por um lado, com a adoção de
normas com forte carga axiológica nas Constituições pós-Segunda Guerra18,
especialmente no campo dos direitos de liberdade, em conhecida resposta às
atrocidades verificadas no momento anterior, as quais também requeriam a
conformação do legislador para sua aplicabilidade e exequibilidade, 19 e, por outro,
com o reconhecimento definitivo da normatividade dos direitos fundamentais,
superando a conceção liberal de sua natureza meramente declaratória, a qual se
mostrara completamente ineficaz.
Em consequência, doutrina e ciência jurídica passaram a
desenvolver novas teorias, quer para compreensão do novo objeto e de seus
impactos, quer para fornecer sustentação teórica para a aplicação dos novos
princípios, na tentativa de lhes imprimir eficácia.20
O desenvolvimento dessas novas teorias, no entanto,
encontrou dois obstáculos consideráveis: a inércia do poder legislativo na
concretização de direitos fundamentais apenas contemplados em normas
principiológicas, programáticas, ou apenas indicadoras de um conteúdo indefinido,
por um lado, e o alto custo dos direitos sociais, por outro. Juntas, ambas as

17 Para uma explicação detalhada da crise do direito e do Estado, cf. STRECK. Lenio Luiz. Jurisdição
constitucional e decisão jurídica. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 34 et seq.
18 Cf. CARBONELL, Miguel. El Neoconstitucionalismo: significado y niveles de análisis. In:

CARBONELL, Miguel; JARAMILLO, Leonardo García (ed.). El canon neoconstitucional, Madrid: Trotta,
2010, p. 154-155.
19 Cf. BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das

políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, nº 15, jan./fev./mar., 2007, pp. 4-5.
20 Considerando a distinção feita por Guastini entre interpretação e descrição. A interpretação,

segundo Guastini, envolve a atribuição de (novo) significado a um texto normativo, e não sua mera
descrição, o que prevalece na Ciência Jurídca. Cf. GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare.
Milano: Giuffre Editore, 2011, p. 213 et seq.
16

características concorreram para um cenário de incerteza na aplicação do direito,


na medida em que abriram as portas da hermenêutica jurídica para sistemas
metajurídicos, como a Política, a Moral e a Economia.
Tal abertura, somada ao descumprimento constitucional das
referidas normas, contribuiu para uma hipertrofia do poder jurisidional. Chamado
a “interpretar” normas que dispõem sobre deveres prestacionais do Estado, o
Poder Judiciário, dotado de maior ou menor poder conforme o sistema
constitucional em que se insere – se common law ou civil law – passa a assumir o
protagonismo no cenário estatal.
Voltando suas atenções mais ao processo político-eleitoral
que à efetividade de direitos sociais, tarefa confiada ao administrador, o legislador
vai se tornando enfraquecido e alijado de sua liberdade de conformação, à medida
em que seu espaço passa a ser substituído pelo juiz, o qual, na maior parte dos
sistemas ocidentais, não é eleito , o que lhe proporciona maior independência para
decidir sem responsabilidade política (accountability). Empoderado, o juiz
"Hércules" de Dworkin21 converte-se na "Hidra" de princípios, a que se refere
Marcelo Neves,22 e as decisões judiciais passam a aplicar diretamente os princípios,
em relação de concorrência com o legislador. Essa proatividade judicial passa a ser
chamada de ativismo judicial.23
Nos momentos glórios do Estado de bem estar social, no
entanto, o dilema “custo dos direitos vs. reserva do possível” parece não afetar tal
protagonismo jurisdicional. Mas com a crise do Estado Social, a responsabilidade
política (accountability) passa a expor o déficit democrático das decisões
jurisdicionais.
Diante desse estado cíclico de crises do Estado social,
associadas à globalização e à consequente transconstitucionalidade, bem como às
próprias transformações no seio da teoria geral do direito e do Estado,
especialmente a discussão em torno dos limites da interpretação e do papel de

21 Dworkin utiliza a metáfora do juiz Hércules, como aquele juiz conhecedor das leis e princípios
costumeiros em sua amplitude, apto a deduzir desse sistema a resposta correta para a solução de
um caso difícil. Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 182.
22 NEVES, Marcelo. Entre hidra e hércules: princípios e regras constitucionais como diferença

paradoxal do sistema jurídico. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. XVII.
23 Cf. KMIEC, Keenan D. The Origin and Current Meaning of "Judicial Activism". California Law

Review, v. 92, n. 5, 2004, p. 1444 et seq.


17

cada poder constituído, convém revisitar o tema da Constituição dirigente e a


vinculação do legislador às normas programáticas e consagradoras de direitos
sociais.

B - OBJETIVOS

A presente tese pretende analisar criticamente a vinculação


do legislador às normas constitucionais de direitos sociais, com base nos princípios
aferíveis das conceções de Estado de direito e de Estado social, especialmente em
face das crises contemporâneas do Estado social, da teoria geral do direito e do
Estado, circunstâncias que intensificam a tensão entre as estruturas econômicas,
sociais e jurídicas.

C - ESTADO DA ARTE

O desafio que se coloca aos cultores do direito


constitucional não pode ser outro que não o de tentar
compreender as novas lógicas, as novas razões, os novos
mitos.24

O presente trabalho analisa - ou, talvez seja mais correto


dizer, revisita - o tema da vinculação do legislador à Constituição social,
programática, dirigente, especialmente no contexto das crises mais recentes do
direito, do Estado social contemporâneo e da dogmática jurídica.25
Em 1982, José Joaquim Gomes Canotilho escreve talvez a
obra mais relevante e ampla sobre o tema em língua portuguesa e, certamente,
uma das mais referenciadas no mundo ocidental: a "Constituição dirigente e
vinculação do legislador". A referida obra teve como base o texto constitucional
revolucionário de 1976 e influenciou sobremaneira o pensamento jurídico em
torno dos novos paradigmas teóricos e interpretativos aplicáveis às normas
constitucionais programáticas.
Não há, aqui, qualquer pretensão de atualizar a referida
obra, até mesmo devido aos recortes epistemolóticos adotados, mas é
praticamente impossível abordar o estado da arte da vinculação constitucional do

24CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 2001, cit., p. VII.


25Cf. STRECK, Lenio Luis. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013, p. 30 et seq.
18

legislador aos direitos sociais, sem uma consideração mais detalhada do que
passou com a "teoria da Constituição dirigente" de Canotilho.
Com efeito, as Constituições pós-Segunda Guerra, mormente
a Constituição portuguesa de 1976, incorporaram extenso rol de valores
democráticos e sociais. Diante da experiência passada com as primeiras
Constituições sociais do início do século XX, os cidadãos não mais se conformariam
com a mera declaração de direitos em um texto, como uma poesia a se recitar no
plano quimérico. Pelo contrário, desejava-se sua efetivação. Para tanto, era
necessário o desenvolvimento de instrumentos teóricos e dogmáticos que não
apenas justificassem e estruturassem sua normatividade, mas também
oferecessem caminhos para sua exequibilidade.26
Rompendo, assim, com a ideia de mera legitimação formal, a
"Constituição dirigente" introduz a preocupação com a transformação social (real),
o que confere novo sentido às suas normas.27 A questão passa a exigir indagações
sobre a exaustividade dessas normas conformadoras do poder político, voltadas à
concretização de metas pré-definidas pelo poder constituinte.28
Canotilho confronta os dois modelos de Constituição, a
liberal e a programática, problematizando temas como a socialidade
constitucional, as normas inerentes ao novo modelo constitucional, sua
juridicidade, efetividade e acionabilidade judicial, que reclamavam um
posicionamento da filosofia e da ciência do Direito sobre o papel da Constituição
nesse mister transformador.
O rompimento com os paradigmas liberais fica evidenciado a
partir das refutações à proposta garantista de Forsthoff29, à Constituição como
instrumento de governo, de Hennis30 ou como legitimação do poder soberano, de
Burdeau31. A insuficiência do estado da arte, porém, não se limita aos
pressupostos liberais. Canotilho também demonstra que a abertura constitucional
proposta por Häberle32, a aplicação da teoria dos sistemas de Luhmann (apenas na

26 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013, p. 30.
27 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. VIII.
28 Ibid., p. 27-30 e 69-71.
29 Ibid., p. 82 et seq.
30 Ibid., p. 87 et seq.
31 Ibid., p. 122 et seq.
32 Ibid., p. 90 et seq.
19

relação entre Direito e Política)33 e a própria compreensão marxista-leninista34 da


Constituição são inadequadas ou insuficientes para explicar o novo modelo
constitucional. A partir dessa revisitação da teoria geral do direito constitucional, o
autor constrói a "teoria da Constituição dirigente".
A Constituição dirigente de 1982, no entanto, foi analisada
em um cenário diverso da "lógica cultural da pós-modernidade" ou da
contemporaneidade, como preferimos.35 Nos 15 anos que sucederam sua
elaboração, o mundo passaria por transformações substanciais na infraestrutura
econômica, comercial e tecnológica e nas superestruturas jurídica e política.
Nenhuma teoria com a pretensão de transformar a realidade poderia se manter
inalterada diante desse conjunto de modificações. E a “teoria da Constiutição
dirigente” não se manteve.
Com efeito, observou-se, nas três últimas décadas, uma
concentração de transformações tecnológicas em nível até então jamais visto, com
indiscutíveis reflexos na ordem econômica e social, seguidas de seus reflexos na
própria superestrutura do Direito, mediante a profusão de novas teorias jurídicas
em torno do Estado de direito, de suas instituições e poderes, bem como do
próprio papel do Direito e da Constituição, entre as quais, o que se convencionou
chamar de neoconstitucionalismo.36 Além disso, verifica-se atualmente uma
aproximação teórica entre os sistemas common law e civil law, correspondendo a
um movimento também progressivo de interferências recíprocas entre ordens
constitucionais nacionais e entre essas e a ordem internacional.37

33 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 104 et seq.
34 Ibid., p. 125 et seq.
35 Ibid., p. VI.
36 Cf. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional..., cit., p. 30.
37 O que tem sido denominado "transconstitucionalismo" ou "interconstiticionalismo". O

"transconstitucionalismo" pode ser definido como a influência recíproca de ordens estatais,


internacionais, supra-nacionais e locais em um sistema jurídico mundial de níveis múltiplos.
Marcelo Neves distingue "transconstitucionalismo" de "interconstitucionalismo". O primeiro seria o
gênero, que se refere a todo tipo de relação entre ordens constitucionais e anticonstitucionais, ao
passo que o segundo seria espécie do primeiro, abrangendo tão somente as relações entre ordens
constitucionais. Cf. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.
XII, nt. 13. No mesmo sentido, Canotilho reconhece o problema de programar normativamente uma
constituição, pressupondo uma soberania nacional cada vez mais relativizada num mundo em que
as nações tornam-se cada dia mais interdependentes. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas
constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra editora, 2001, p. XI.
20

Esse conjunto de transformações, somado às reformas do


sistema constitucional português, não passou despercebido por Canotilho. Em
1994, em palestras no Brasil, o autor passa a discorrer sobre a necessidade de
revisão da Constituição Dirigente, publicando tais ideias em artigos no Brasil e na
Espanha sob o título “Rever ou Romper com a Constituição Dirigente? Defesa de
um constitucionalismo moralmente reflexivo”.38 O texto fazia uma reflexão sobre o
novo constitucionalismo dirigente, em meio ao desenvolvimento constitucional, às
transformações ocorridas na política, economia e sociedade, bem como à
consagração e fixação de novos paradigmas no constitucionalismo, como as teses
procedimentalistas e democráticas, a descentralização dos mecanismos de
planejamento e decisão, incompatíveis com o dirigismo centralizado e - talvez o
mais decisivo - a "economicização" do Direito. Um pensamento ali contido, no
entanto, provocou polêmica, críticas e um grande debate (a nosso ver
desfundamentado-, especialmente no Brasil, que acolheu a “teoria da Constituição
dirigente”, de Canotilho, como teoria de sua própria ordem constitucional
inaugurada em 1988): a Constituição dirigente estaria morta se não fosse
entendida a partir de então como um “constitucionalismo moralmente reflexivo”.
A expressão “constitucionalismo moralmente reflexivo”
advém da linguagem hermética empregada pelas teorias sistêmicas, como as de
Luhmann39 e Teubner40, que certamente influenciaram o pensamento de Canotilho.
Deveras, já é hoje bastante conhecida a teoria dos sistemas
de Luhmann, que aplicou no campo da sociologia o conceito de autopoiesis
desenvolvido nas ciências biológicas para compreensão dos sistemas vivos.41
Segundo Luhmann, há três grandes sistemas – o biológico, o psíquico e o social. O
sistema social é formado por outros sistemas como o Direito, a Economia, a

38 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Rever ou romper com a constituição dirigente? Defesa de
um constitucionalismo moralmente reflexivo. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política.
São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n.15, 1996.
39 Cf. LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. trad. A. C. A. Nasser. 2. ed. Petrópolis:

Vozes, 2010.
40 Cf. TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. trad. J. E. Antunes. Lisboa: Calouste

Gulbenkian, 1989.
41 A origem da analogia está estreitamente ligada ao “funcionalismo estrutural” de Parsons,

desenvolvido a partir de análises antropológicas de tribos ou clãs que tiveram desenvolvimento


isolado. Cf. LUHMANN, Niklas. Introdução..., cit., p. 36. Parsons contribui decisivamente para a
contribuição luhmanniana ao asseverar que na sociedade, tal como se verifica com os seres vivos, a
ação individual altera o conjunto do sistema. PARSONS, Talcott. El sistema social. Espanha: Ed.
Alianza, 1999, p. 7 et seq.
21

religião, entre outros. Cada sistema é dotado de auto-organização e de


autorreprodução (autopoiesis), ou seja, gerem sua própria ordem pela interação de
seus elementos constitutivos e reproduzem tais elementos, sendo, pois, dotados de
autonomia e independência dos outros sistemas.42
A teoria de Luhmann criava um problema: se o sistema é
autorreprodutivo e auto-organizatório, como ele exerce influência recíproca com
outros sistemas, especialmente os sistemas Econômico e Político? No mesmo
sentido, como se compatibilizar a metanarratividade emancipatória da
Constituição dirigente com a teoria luhmanniana?43
Coube a Gunther Teubner - sociólogo conterrâneo de
Luhmann -, em 1989, a missão de reparar tal incompatibilidade epistêmica.
Teubner percebe que o Direito não é um sistema, mas um subsistema funcional
derivado do Sistema Social, assim como a Economia e a Política. Assim como estes,
o Direito seria um subsistema funcional ou sistema de segundo grau. Segundo ele,
a sociedade seria o sistema de primeiro grau, dela derivando os demais
subsistemas funcionais, como o Direito, que passa a se autoconstituir e a se
autorreproduzir “graças à constituição autorreferencial dos seus componentes
sistêmicos e à articulação destes num hiperciclo”.44 O sistema jurídico seria
constituído de três etapas: auto-observação, autoconstituição e autorreprodução.
Na primeira etapa, o conjunto de normas (jurídicas) derivadas do sistema da
sociedade criaria uma autorreferência e, a exemplo do zigoto, passaria a adquirir
uma autonomia progressiva. O sistema jurídico teria, assim, uma autonomia
relativa, contrariando a conceção luhmanniana de que os sistemas seriam
autopoiéticos ou não.45
Os subsistemas funcionais possuiriam uma abertura
"informacional-cognitiva" através da qual se operaria uma "reflexividade", ou seja,
uma relação circular (influência recíproca).46 Essa "reflexividade" explica as
influências entre o Direito, a Economia e a Política, o que o hermetismo dos
sistemas em Luhmann dificultava e tentava ser resolvido pela ideia de
"acoplamento estrutural". Sendo todos esses subsistemas funcionais dotados de

42 LUHMANN, Niklas. Introdução..., cit., p. 112-3.


43 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 2001, cit., p. VII.
44 Cf. TEUBNER, Gunther. O direito..., cit., p. 53.
45 Ibid., p. 55.
46 Ibid., p. 74.
22

"reflexividade" e de "autopoiese", a consequência é sua autonomização e


resistência à intervenção exógena. A progressividade da autonomia de cada
subsistema cria espaços regulatórios próprios e independentes do Direito. Em
decorrência, se cada subsistema (como o Econômico, o tecnológico, ou o negocial)
cria sua ordem ou regulação própria, não há espaço para a intervenção do
legislador, que vê sua liberdade diminuída.47
Essa ideia de reflexividade influencia Canotilho e sua teoria
do dirigismo constitucional. É curioso notar que a teoria sistêmica de Luhmann já
era considerada por Canotilho em sua obra de 1982. O autor lusitano, no entanto,
apenas focou o aspeto de função luhmanniana da Constituição, segundo o qual ela
seria instrumento de redução da complexidade do sistema jurídico, o que seria
obtido pela predominância do “negativo”, alcançável pela “juridicidade do Estado”,
com a separação entre Direito e Política. A aplicação feita por Canotilho da teoria
sistêmica do sociólogo alemão pressupôs que a Constituição era constituída pelo
sistema político e, não, como asseverava, que o sistema político é constituído pela
Constituição.48 Tendo considerado somente a relação de continência entre os
sistemas do Direito e da Política, a falha da “teoria da Constituição dirigente” – se é
que se pode usar esse termo - reside nesta omissão fulcral: a influência
intersistêmica entre Direito e Economia e os níveis do Direito.49
Deveras, em sua 2ª edição, publicada em 2001, Canotilho dá
uma resposta aos críticos, reiterando os motivos pelos quais a relativização do
dirigismo estatal foi necessária. Em palestra proferida no ano seguinte, no Brasil,
sistematiza oito ilações feitas a tal relativização, ficando clara a influência
intersistêmica e a sobreposição da infraestrutura econômica nesse processo:
A “desmistificação” do Estado Social, mais do que o desfazer de
mitos, significa uma decidida mudança de paradigmas. O
paradigma jurídico‐político, ainda hoje dominante na maior parte
das análises e compreensões do Estado, deverá ser substituído
pelo paradigma económico, hoje dominante nas teorias
económicas mas insuficientemente testado no domínio da teoria
do Estado 50

47 Ibid., p. 155.
48 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 107-9.
49 Cf. TEUBNER, Gunther. O direito..., cit., p. 53.
50 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O estado adjetivado e a teoria da constituição. Revista da

Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul (PGE-RS), Imprenta, Porto Alegre, v. 25, n. 56, p.
25-40, dez. 2002, p. 98.
23

No plano da experiência subjetiva situam-se o


amadurecimento intelectual do autor provocado pela reflexão diante das
transformações do mundo, da mudança de conceção dos críticos, bem como de
eventuais desvios provocados pela "subjetividade projetante" do indivídio e
instituições em sentido diverso das projeções utopicas dos idealizadores do
dirigismo constitucional.51
Parte da reflexão de Canotilho deve-se aos desafios
igualmente trazidos pelo advento da Constituição brasileira de 1988, como
reconhece o autor no prefácio à edição de 2001 da obra em comento52.
Curiosamente, o texto constitucional de 1988 foi fortemente influenciado pelas
teorias contidas na "Constituição dirigente", ao mesmo tempo em que os desafios
criados pelo segundo em nova conjuntura levaram a uma reflexão das ideias
contidas no primeiro, também estimuladas pela proliferação de teses brasileiras
com a mesma finalidade.53 Há mais que uma transconstitucionalidade nesse
processo: há, também, o que se pode chamar de "reflexividade" entre a
"Constituição dirigente" de Canotilho e a Constituição brasileira de 1988.
As complexidades do sistema jurídico, muitas das quais
apenas o tempo é capaz de revelar e permitir dominar, também explicam a
evolução doutrinária. A descentralização regulatória, que pode ser considerada
uma virtude contemporânea, não se coaduna perfeitamente com o dirigismo
estatal, algo também considerado pelo autor.54
Do mesmo modo, a globalização também afeta o estado da
arte, na medida em que a internacionalização do direito e o
transconstitucionalismo requerem um condicionamento e relativização do
dirigismo estatal, pensado inicialmente no quadro de uma soberania nacional.55

51 Nesse aspeto, Canotilho admite um dos grandes desafios da praxis socialista: harmonizar os
interesses da sociedade política com o dos indivíduos: "A má utopia do sujeito de progresso
histórico alojou-se em constituições plano e balanço onde a propriedade estatal dos meios de
produção se transmutava em ditadura partidária e coerção moral e psicológica. Alguns — entre os
quais me incluo — só vieram a reconhecer isto tarde e lentamente demais." CANOTILHO, José
Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 2001, cit., p. IX. (grifo nosso)
52 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 2001, cit., p. V.
53 Entre os quais, o artigo de Gilberto Bercovicci. BERCOVICI, Gilberto. A problemática da

constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. Revista de Informação


Legislativa, Brasília, n. 142, abr./jun. 1999.
54 Embora Canotilho não o reconheça, o fortalecimento do princípio da subsidiariedade também

pode oferecer óbice a estrutura piramidal sobre a qual se alicerça a Constituição dirigente.
55 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 2001, cit., p. XII.
24

O "constitucionalismo moralmente reflexivo", marcado


assim pela supra e transconstitucionalidade, descentralização político-regulatória
e economicização do Direito vem alterar os paradigmas do dirigismo
constitucional. Mas teria morrido a ideia de uma Constituição dirigente?
Da publicação da 3. edição da obra de Canotilho, em 2001,
passaram-se já 17 anos. Nesse período, as transformações continuaram ocorrendo
no seio das instituições jurídicas e políticas, destacando-se, a par das já citadas, a
crise da hermenêutica, influenciada pelo "neoconstitucionalismo" e pelo "ativismo
judicial". Seis anos depois, em 2007, o Supremo Tribunal Federal muda seu
entendimento acerca dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade por
omissão, suprindo a inércia do legislador por aplicação analógica de lei.56 O mesmo
se deu posteriormente com a determinação de aplicação aos funcionários públicos,
no que coubesse, do regime de aposentadoria especial prevista para os
trabalhadores privados.57 Neste último caso, as peculiaridades mais complexas do
cálculo das pensões para o regime público levaram a uma dificuldade de execução
do julgado, o que até o presente momento não se encontra resolvida.
Tais censuras às omissões do legislador certamente atestam
que a Constituição dirigente não apenas ainda vive, mas ganhou mais intensidade
no Brasil. É verdade, como defendem alguns, que a teoria do constitucionalismo
reflexivo e a superação hipoteticamente formulada por Canotilho do dirigismo
estatal circunscreva-se às transformações operadas na Constituição portuguesa e
sua inserção no contexto da União Europeia. Portugal encontra-se hoje, de fato,
mais sujeito à reflexividade constitucional. Isso não significa que o dirigismo
estatal se encontra ausente, preservando ainda o texto português cláusulas que
não podem ser entendidas como autonomamente emancipatórias, como se dá com
as tarefas fundamentais previstas no artigo 9º, especialmente a promoção da
igualdade entre homens e mulheres (item "f"), que continua a limitar a
discricionariedade do legislador em caso de omissão relativa, bem como a
autovinculação do legislador na criação de omissões inconstitucionais (proibição
de retroceder na concretização de imposições constitucionais) ou mesmo a

56 Cf. MI 670/ES. Nesse julgado, determinou o STF, ante a inércia do legislador em regulamentar o
direito de greve dos funcionários públicos, a aplicação analógica da lei de greve aplicável aos
trabalhadores privados.
57 Cf. MI 721/DF.
25

vedação excepcional e específica do retrocesso em casos de expressa determinação


de progressividade, como ocorre com o artigo 74.º, "e", que determina o
estabelecimento progressivo da gratuitidade de todos os graus de ensino, norma
similar prevista no artigo 208, II, da Constituição brasileira (embora alcance
apenas o nível médio, não o superior). 58
Como assevera Lenio Streck, que o Brasil não chegou ao
nível de realização do dirigismo constitucional atingido pelo sistema português.
Além disso, mesmo a adesão brasileira aos tratados internacionais ou ao Mercosul
confere proteção significativa à sua eficácia que permita relativizar a o caráter
vinculante da normatividade programática da Constituição de 1988 em prol de um
constitucionalismo reflexivo à brasileira.59 Por tais razões, a Constituição dirigente
ainda vive. Até mesmo para Canotilho.60

D - METODOLOGIA

A investigação se deu no âmbito da linha de pesquisa dos


direitos fundamentais, empregando-se os enfoques zetético e dogmático.61 Adotou-
se o método dialético, a despeito de ligeiro predomínio da dogmática jurídica, eis

58 Embora Canotilho reconheça que esse tipo de previsão não mais se coaduna com sua proposta de
constitucionalismo reflexivo, o fato é que, conveniente ou não nos tempos atuais, tais imposições
ainda povoam os textos constitucionais no Brasil e em Portugal, a exemplo de disposições similares
contidas em pactos internacionais dos quais ambos são signatários. Cf. CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Constituição dirigente..., 2001, cit., p. XXI.
59 Cf. STRECH, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional..., cit., p. 143-9.
60 A despeito de toda polêmica, os escritos mais recentes de Canotilho bem demonstram que a

incorporação do direito reflexivo em seu pensamento não afasta a necessidade de uma Constituição
presente, ainda que como premissa necessária do desenvolvimento da democracia. Cf. CANOTILHO,
Joaquim José Gomes. O direito constitucional como ciência de direcção: o núcleo essencial de
prestações sociais ou a localização incerta da socialidade (contributo para a reabilitação da força
normativa da “constituição social”). In: CANOTILHO, Joaquim José Gomes; CORREIA, Marcus Orione
Gonçalves (coords.). Direitos fundamentais sociais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p.19.
61 O método dogmático busca compreender um objeto jurídico e torná-lo aplicável dentro dos

limites da ordem vigente. Cf. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução..., cit., p. 48. O método
zetético (termo cunhado por Viehweg) preocupa-se em saber sobre o objeto. Tércio simplifica a
distinção, afirmando que na dogmática predomina a resposta e, na zetética, a pergunta. Ibid., p. 40.
Esta última, por sua vez, pode ser classificada quanto ao seu ponto de partida e aplicação prática. Se
a investigação parte de pressupostos lógicos, tem-se uma zetética analítica; se o estudo toma como
base elementos da experiência, pode-se falar em zetética empírica. Conforme a finalidade dos
resultados obtidos na investigação empírica ou analítica, se meramente especulativos ou
potencialmente aplicáveis à realidade, tem-se, respetivamente, uma investigação pura ou aplicada.
Ibid., p. 39-51.
26

que inerente à própria matéria abordada.62 No plano lógico-argumentativo,


recorreu-se aos seguintes métodos:
a) dedutivo, a partir da análise da conceção de Constituição,
da função legislativa, de Estado de direito e de Estado social, de suas estrtuturas e
de seus princípios inerentes;
b) indutivo, mediante o estudo das soluções defendidas e
aplicadas respetivamente pela doutrina e jurisprudência, em especial a brasileira e
a portuguesa, a casos de afetação de direitos sociais pelo legislador em tempos de
crise;
c) dialético, considerando as contradições existentes entre a
superestrutura jurídica e a infraestrutura econômica e social, como forma de
compreender os fatores que determinam a adoção, pela doutrina e jurisprudência,
das construções jurídicas analisadas;
d) hipotético dedutivo, com o qual as hipóteses deduzidas
pela aplicação do método dialético, em especial as influências que determinam a
oscilação jurisprudencial e doutrinária, são confrontados com a aplicação do
direito pelos tribunais e suas inconsistências teóricas, com a finalidade de refutar
as hipóteses formuladas, em especial a aplicação de um suposto método
hermenêutico válido (neoconstitucionalismo);
e) fenomenológico, descrevendo o estado da arte tratado,
especialmente a aplicação do direito pelos tribunais e a interpretação doutrinária
segundo a ótica do investigador.
A seguir, proceder-se-á a uma análise crítica comparativa
dessas soluções, verificando-se sua consistência dogmática à luz do respetivo
ordenamento jurídico e da própria conceção histórico-evolutiva dos institutos
envolvidos deduzidos na parte inicial.
Paralelamente aos enfoques zetéticos e dogmáticos, a análise
do estado da arte recorre, como metanarrativa teórica, em termos bem sintéticos e

62 É o que se infere dos ensinamentos de Georges Politzer: “(...) a lógica da identidade, também
chamada lógica formal ou da não-contradição, é necessária, apesar de não ser suficiente, Ignorá-la
ou ridicularizá-la é dar as costas à realidade.” POLITZER, Georges; BESSE Guy; CAVEING, Maurice.
Princípios fundamentais de filosofia. 2. ed. Trad. J. C. Andrade. São Paulo: Fulgor, 1963, p. 81.
27

sem qualquer intenção de seu desenvolvimento, aos postulados básicos da teoria


dos sistemas, especialmente na proposta de Teubner, voltada ao sistema jurídico.63
Estruturalmente, o trabalho se divide em quatro partes, os
quais tentam promover, senão um macro-silogismo, uma relação de concatenação
lógica de ideias. Assim, cada parte é pressuposto teórico para a parte seguinte.
Antes de iniciar a primeira parte, porém, foi necessário
manifestar previamente, em locus próprio, nossa pré-compreensão acerca de
temas ou institutos jurídicos cujos conceitos, delimitações e conteúdos podem ser
considerados imprescindíveis para a correta leitura e perceção da análise feita ao
longo do trabalho. A despeito de sua importância, o recorte material necessário
não comportaria seu desenvolvimento na estrutura lógico-linear da pesquisa,
razão pela qual optou-se por analisá-los prévia e separadamente, de maneira mais
objetiva, sem, portanto, qualquer pretensão de exaustividade.
Em sede de pré-compreensões, portanto, é analisado
inicialmente o conceito de Constituição, com vistas a saber se estamos diante de
um sistema em que todas as respostas foram dadas, ainda que de forma implícita,
pelo constituinte, ou se este apenas positivou suas escolhas fundamentais,
deixando aos poderes constituídos, especialmente ao legislador, a incumbência das
demais escolhas. A seguir se analisa o Estado de direito, ideia-força cujo alcance e
conceito são inexoráveis para a compreensão do Estado social, que, para alguns, é
inerente ao Estado de direito moderno. A par disso, é mister conhecer os
elementos de seu desenvolvimento para densificação e aplicação de seus
princípios estruturantes, uma vez que limitam a atuação do legislador na
modificação, redução ou supressão de direitos sociais. Um desses princípios
estruturantes do Estado de direito - a dignidade da pessoa humana - é tratado logo
após. Sua abordagem isolada se deve ao seu caráter pré-fundamental, na medida
em que precede e informa não apenas os direitos humanos e fundamentais, mas
também os próprios princípios estruturantes. Finalmente, deduzimos nossa
posição acerca do neoconstitucionalismo e seu parcial efeito - o ativismo judicial.
Ambos serão utilizados como metanarrativa a explicar como a relação entre as

63 Cf. TEUBNER, Gunther. O direito..., cit.


28

normas constitucionais de direitos sociais e a discricionariedade do legislador


podem ser interpretadas sob perspectivas diversas.
A primeira parte pretende desenvolver aspetos mais gerais
da vinculação constitucional de duas maneiras. Inicialmente, recorre-se à zetética
analítica aplicada64, procurando-se demonstrar as relações formais e materiais
entre a Constituição e a lei, o papel do constituinte, do juiz e do legislador, as
especificidades dessa relação nos diferentes sistemas (civil law e common law),
bem como a legitimidade democrática de cada um desses atores político-
institucionais na interpretação e criação do direito.
Na segunda parte, investigam-se as especificidades
normativo-constitucionais do Estado social, a partir de sua compreensão histórico-
teleológica, bem como da própria particularidade estrutural da vinculação
constitucional às normas de direitos sociais. Nos dois últimos capítulos, emprega-
se a dogmática jurídica para conceituação da vinculação e classificação de diversas
formas que pode assumir no seio de uma Constituição social, com a finalidade
precípua de fornecer uma terminologia que possibilite maior facilidade de
comunicação e perceção do leitor ao longo do trabalho. Nos dois últimos capítulos,
analisa-se a vinculação direta do legislador às normas de direitos sociais e
programáticas.
Na terceira parte analisa-se a vinculação mediata do
legislador aos direitos sociais por intermédio dos três princípios estruturantes que
mais têm limitado a atuação do legislador nesse tema: a igualdade, a segurança
jurídica e a proporcionalidade. Cada um desses princípios, sempre invocados na
jurisprudência da crise, é análisado com mais profundidade, recorrendo-se à
dogmática jurídica, à zetética analítica e empírica, pura e aplicada, bem como ao
método dialético para construir, a partir dos pressupostos lógicos e sentido
histórico-constitucional de cada princípio, uma proposta de sua densificação a ser
confrontada criticamente com os correspondentes posicionamentos doutrinários e
jurisprudenciais, objetivando-se uma contribuição ao respetivo estado da arte.
Finalmente, a quarta e última parte utiliza as conclusões
adotadas na segunda e terceira partes para, mediante o emprego dos enfoques

64Na zetética analítica aplicada, procura-se demonstrar como atua o objeto de pesquisa, podendo
seus resultados serem aplicados no aperfeiçoamento dos institutos envolvidos. Cf. FERRAZ JUNIOR,
Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. São Paulo: Editora Atlas, 1994. p. 44-5.
29

zetético aplicado e dogmático, analisar a forma como as cortes constitucionais têm


interpretado os princípios vinculantes do legislador em tempos de crise
econômico-financeira. Pretende-se, nesse tópico, avaliar os impactos da
metanarrativa da crise na aplicação dogmática dos referidos princípios, testar sua
coerência lógica e, ao cabo, oferecer uma síntese conclusiva, que permita a
identificação dos diversos elementos que delimitam a vinculação do legislador às
normas constitucionais de direitos sociais nos momentos de maior tensão do
Estado social.
Em face dos limites do presente trabalho e dos recortes
epistemológico e metodológico adotados, ressalvados os temas a serem abordados
em sede de pré-compreensões, não serão analisados:
a) os demais fundamentos da segurança jurídica não
relacionados à sua dedução a partir do conceito de Estado de direito;
b) as demais manifestações do princípio da segurança
jurídica e da irretroatividade das leis, mormente suas aplicações no Direito Penal,
Tributário, Eleitoral, bem como proteções ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada;
c) os demais princípios inerentes à conceção de Estado de
direito, em especial o princípio estruturante democrático;
d) outras questões paralelas concebidas pelo autor como
não determinantes para as conclusões adotadas.
30

PRÉ-COMPREENSÕES

Diz-me qual o conceito de Constituição que


defendes, logo te direi qual o teu conceito de
Justiça Constitucional. A inversa é igualmente
verdadeira.65

65 QUEIROZ, Cristina. O tribunal constitucional e os direitos sociais. Coimbra: Coimbra Editora, 2014,
p. 103.
31

A despeito de toda a complexidade que cerca a interpretação


jurídica, especialmente pela valoração que se dá a cada elemento da tríade sintaxe,
semântica e pragmática, pelas diversas correntes filosóficas que se debruçaram sobre
o problema da linguagem66, bem como às correntes jusfilosóficas que tratam da
identidade ou dissociação entre texto e norma67, é não apenas possível, mas dever de
todo pesquisador, delimitar o sentido de termos ou conceitos chaves, bem como das
premissas que dão suporte ao pensamento desenvolvido no trabalho.
Se a linguagem é condicionada ao sujeito e - por isso -
indeterminada, em aproximação ao pensamento de Wittgenstein68, pode o emissor
da linguagem diminuir sua ambiguidade, esclarecendo o alcance de seus termos,
facilitando a compreensão de suas conclusões.
Ademais disso, uma boa comunicação depende do
conhecimento, por parte do destinatário, do significado dos significantes empregados
pelo emissor da mensagem. Quer pela polissemia dos termos, quer pela
indeterminação ou imprecisão conceitual e dissenso que possa existir em torno dos
significados, é mister determiná-los, a fim de se compreender as posições tomadas no
presente trabalho.
Na esteira de Canotilho, a pré-compreensão é uma forma de
compreensão hermenêutica que objetiva salientar a "relação do sujeito cognoscente
com o objeto de conhecer".69

66 Lenio Streck sintetiza o movimento de superação do chamado neopositivismo lógico - assentado


na premissa de que a linguagem descreveria um mundo em si e, desse modo, buscar-se-ia a
construção de linguagens ideais, dando proeminência aos elementos sintaxe e semântica - pela
filosofia da linguagem ordinária, que nega a premissa de existência de um mundo em si,
reconhecendo-o como dependente da linguagem e que destaca o elemento pragmática da tríade
apontada. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção do direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 211 et seq.
67 Cf., dentre outros, ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos

princípios jurídicos. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 31.


68 Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. J. A. Giannotti. São Paulo: Cia

Editora Nacional – Universidade de São Paulo, 1968, p. 110.


69 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo

para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra editora, 1994, p.
12, nt. 10.
32

1. INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: ORDEM-MOLDURA OU ORDEM-


FUNDAMENTO?

Sob o aspeto do tema em estudo, a vinculação do legislador a


normas constitucionais também exige uma pré-compreensão acerca da função e
estrutura da Constituição:

A simples afirmação da prevalência da constituição sobre a


lei e a determinação da intensidade da vinculação jurídico-
constitucional do legislador inserem-se num complexo
problemático muito mais vasto, que vai desde a
controvertida conciliabilidade da <<lógica da
constituição>> de um Estado de direito com a <<lógica da
democracia≫ e desde a analise estrutural-material da
≪densidade ≫ e ≪abertura≫ das normas constitucionais
ate a própria ≪compreensão≫ da constituição em si
mesma. Com efeito, perguntar pela ≪forca dirigente≫ e
pelo ≪caráter determinante ≫ de uma lei fundamental
implica, de modo necessário, uma indagação alargada, tanto
no plano teorético-constitucional como no plano teorético-
político, sobre a função e estrutura de uma constituição.70

A Constituição representa a causa de existir do Estado, da


ordem jurídica, bem como seu fundamento de validade, na medida em que nada
existe sem ter sido constituído.71 Ainda que se entenda a Constituição não como
uma norma constituinte anterior ao Estado constituído, mas como o produto de
um processo constituinte permanente, diante da realidade dinâmica que constitui-
desconstitui a sociedade política segundo as constantes alterações das
infraestruturas econômica, social e política, ela é um referencial normativo para
atuação do poder estatal.
Há, nesse sentido, praticamente um consenso de que a
Constituição tem a função de prever os limites negativos da atuação do Estado.
Assim, se a Constituição declara que ninguém será considerado culpado sem o
devido processo legal, não pode o legislador fazê-lo. Por outro lado, se a
Constituição prevê que o Estado perseguirá o fim da justiça social, ou terá como
meta a redução do analfabetismo, haverá uma discussão sobre que medidas
poderá o Estado adotar para perseguir tal fim. Haverá, ainda, a hipótese em que a
Constituição nada pode prever quanto à redução da desigualdade social, ou quanto

70 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 2001, cit., p. 11.


71 BARROS, Sérgio Resende de. Contribuição dialética..., cit. p. 1-2; 204.
33

a questões bioéticas ou mesmo à regulação da internet. Nesse caso, ou se entende


que a Constituição autoriza o poder legislativo constituído a decidir sobre as
questões nela não previstas, ou que é possível dela se retirar as respostas
possíveis, encontrando-se o legislador a elas vinculado.72
De acordo com a posição adotada, Robert Alexy fala em
Constituição ordem-moldura ou Constituição ordem-fundamento. No primeiro caso,
a Constituição seria como uma moldura jurídica onde se encontrariam presentes as
proibições e obrigações dirigidas ao legislador, o qual apresentaria uma liberdade
de conformação representada pelo interior da moldura. Na segunda hipótese, a
Constituição seria uma ordem-fundamento e, nessa condição, encerraria e
ofereceria todas as soluções possíveis ao legislador, ou apenas veicularia decisões
fundamentais, deixando a cargo do poder legislativo constituído a decisão quanto
às demais questões.73
É claro que a alegoria proposta por Alexy se pauta em textos
constitucionais que não definem seus próprios limites e funções, o que poderia ser
feito a priori. No entanto, os textos modernos e contemporâneos, em sua maioria,
pouco diferem entre si, sobretudo nesse aspeto de se autodelimitar ou de se
autoconceituar.74
Isso se dá basicamente por duas razões. Em primeiro lugar,
porque o direito é um sistema ontologicamente estático, que convive em constante
tensão com a realidade sobre a qual atua, que é ontologicamente dinâmica, o que
torna impossível a regulação ou mesmo previsão de todas as situações
juridicizáveis.
Deveras, as decisões constituintes que regulam fatos no
tempo e no espaço são tomadas ao mesmo tempo em que nascem novos fatos
desconhecidos, porém juridicizáveis. Por essa razão, não se pode conceber ao
legislador tão somente o papel de concretizar escolhas constitucionalmente já

72 Nesse sentido, afirma Canotilho que "a constituição não é nem uma reserva total nem um bloco
densamente vinculativo, a ponto de remeter o legislador para simples tarefas de execução,
traduzidas na determinação de efeitos jurídicos ou escolha de opções, cujos pressupostos de facto
encontram uma normação prévia exaustiva nas normas constitucionais." CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 63.
73 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva da 5. ed. alemã.

São Paulo: Malheiros, 2008, p. 584-5.


74 A título de exemplo, a CRFB não delimita o campo de atuação das leis (cf. art. 61 et seq.).
34

feitas, mas também o papel de tomar decisões não previstas na Constituição, desde
que não sejam com ela - de algum modo - incompatíveis. 75
Cabe, assim, ao legislador, o papel de criar, modificar e
extinguir direitos, sem a exigência de autorização expressa ou manifestação prévia
do poder constituinte.
Em segundo lugar, há que se perscrutar os próprios
fundamentos histórico-políticos da Constituição. Desde Sieyés, não se reconhece
aos titulares do poder constituinte a exclusividade na tomada de todas as decisões
presentes e futuras de que resultasse a criação, modificação e extinção de
direitos.76 Essa consciência está presente nos processos constituintes modernos.
Ademais, a metáfora da moldura talvez não represente a
complexidade do Direito, especialmente no que toca à imprevisibilidade de fatos.77
Também a ideia de uma ordem-fundamento material78, com todas as decisões já
tomadas, esbarra na natureza mesma das coisas. Decisões sobre o patrimônio
genético ou sobre o espaço virtual não são irrelevantes e possivelmente estariam
na moldura se preexistissem à Revolução Francesa ou ao Congresso de Filadélfia.79
Assim como essas duas questões, muitas outras soluções dependem do avanço
científico e do progresso da sociedade, não parecendo conveniente, em virtude do
fim de estabilidade que informa qualquer ordem jurídica, que a regulamentação de
novas matérias dependa de um processo constituinte, ainda que derivado.

75 Como reconhece Cristina Queiroz, há ainda um grande espaço onde as soluções não se encontram
pré-determinadas pela Constituição. QUEIROZ, Cristina. O princípio da não reversibilidade dos
direitos fundamentais sociais: princípios dogmáticos e prática jurisprudencial. Coimbra: Coimbra
Editora, 2006, p. 78.
76 Teria sido o abade Sieyès um dos primeiros teóricos do poder constituinte. Às vésperas da

Revolução Francesa, ao responder em seu opúsculo Qu’est-ce que le Tiers État? a questão ali
expressa (“O que é o Terceiro Estado?”), explicou que “em cada parte, a constituição [dada pela
própria nação] não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte”. SIEYÈS, Emmanuel-
Joseph. Qu’est-ce que le tiers état? Édition critique avec une introduction par Ed-me Champion.
Paris: Au Siège de la Société, 1888, p. 159-60. Traduzi. Fotocópia de exemplar da biblioteca de
Stanford disponível em: <http://www.archive.org/details/questce queletie01sieygoog>. Acesso
em: 11.03.15.
77 Como exemplo, pode-se conferir a nota prévia de Vieira de Andrade à 2.ª edição de sua obra“Os

direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, sobre a revisão constitucional


portuguesa que incorporou o direito fundamental à identidade genética. ANDRADE, José Carlos
Vieira de. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. 5. ed. Coimbra: Almedina,
2012, p. 10.
78 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais…cit., p. 581.
79 Não por acaso, na já referida nota prévia à 2.ª edição, Vieira de Andrade é obrigado a incorporar à

sua obra o novo direito fundamental à identidade genética, incorporado ao direito constitucional
português com a revisão constitucional de 1997, de que não cogitava no lançamento de sua
primeira edição em 1982. Cf. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais…, cit., p.10.
35

Os textos constitucionais apontam nesse sentido. Há uma


certa confusão, na verdade, quando as Constituições afirmam residir todo o poder
na soberania no povo, que a exerce nos termos da mesma Constituição. Ao fazer tal
afirmação, os textos constitucionais parece conceberem a Constituição como
ordem-fundamento não exaustiva, deixando ao povo a complementação da obra
constituinte, seja no nível constitucional, seja no nível infraconstitucional,
diretamente ou por meio de seus representantes.80
Por outro lado, ao indicarem matérias que podem ser objeto
de normatização pelos poderes constituídos, os textos constitucionais parece
exaurirem o espectro material de possível intervenção legislativa, assemelhando-
se a uma Constituição ordem-moldura.81 A mesma interpretação pode advir da Lei
Fundamental da Alemanha, em seu artigo 20, (3), quando afirma que o "poder
legislativo está vinculado à ordem constitucional", não restando claro o texto se a
submissão do poder legislativo constituído exclui a possibilidade de o legislador
tratar de questões não tratadas pelo poder constituinte originário. Sem olvidar tais
redações normativas, bem como a discussão teórica levada a cabo por
Böckenförde, Hain e Jestaed, as práticas constitucionais certamente apontam para
uma Constituição ordem-fundamento não exaustiva, na medida em que,
contemplando decisões relevantes, não conseguem prever todas as decisões
possíveis com que o Estado possa se deparar, deixando ao legislador,
inevitavelmente, uma atividade criativa, e não de mera descoberta normativa.82
Por essas razões, cumpre negar a conceção de Constituição
como ordem-moldura, impondo-se reconhecê-la, à luz do caráter democrático que
a informa, como uma ordem-fundamento não exaustiva.
Tal posição, contudo, não desconsidera a possibilidade de
cada ordenação conferir estrutura e função diversa à sua Constituição; quer-se
apenas afirmar que à falta de uma definição na mesma ordem, em se tratando de
uma Constituição que se autodetermina observar os princípios do Estado de
direito, a decorrência é sua consideração como ordem-fundamento não exaustiva.

80 Cf., v.g., art. 3º, 1, e art. 108 da CRP; art. 14 da CRFB; art. 20, (2), da Lei Fundamental da
Alemanha.
81 Cf., v.g., art. 161, "c", da CRP; art. 25 da CRFB; art. 70 da Lei Fundamental da Alemanha.
82 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos..., cit., p. 579 et seq.
36

Isso também não implica afirmar que inexista um campo de


ordem-moldura constitucional. Há, sem dúvida, proibições e autorizações
expressas dirigidas ao legislador, as quais também encerram um campo de
discricionariedade legislativa. Mas a liberdade do legislador não se esgota apenas
no interior dessa moldura, podendo tomar decisões em matérias ali não
delimitadas, ou que não foram objeto das escolhas fundamentais. Nesse sentido, o
legislador assume papel crucial no desenvolvimento e atualização da Constituição
"vivente", havendo uma vinculação dupla, que não se dá apenas em termos de
mera fidelidade ao poder constituinte originário, mas igualmente de uma
fidelidade às transformações da infraestrutura e do povo sujacente. 83
A mesma lógica se aplica às normas programáticas. A
discussão se as tarefas estatais devem ser ordenadas e conformadas pela
Constituição é uma discussão política, preconstituinte. Apenas diante de um texto
aprovado, poderá ser mensurada a extensão das tarefas concretas adotadas pela
Constituição e as tarefas em branco, cuja concretização restará confiada aos
poderes constituídos, em especial ao legislador.84

Espaço de atuação
concorrente (possibilidades infinitas de
escolhas)

Ordem-fundamento / moldura

Discricionariedade legislativa

Fig. 1 - Representação da ordem constitucional e dos espaços de atuação do poder constituinte e do


legislador.

83 Cf. SAGÜÉS, Néstor Pedro. Sobre el concepto de ‘constitución viviente’ (living constitution).
Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte, nº 1, jan./jun. 2003, p. 272.
84 Em sentido contrário, diversos autores apontam para um núcleo material mínimo constitucional

em matéria social, que seria indisponível para os Estados sociais e de direito. Cf. BÖCKENFÖRDE,
Ernst-Wolfgang. Los métodos de la interpretación constitucional - inventario crítico. In: Escritos
sobre derechos fundamentales. trad. J. R. Pagés; I. V. Menéndez. Baden-Baden: Nomos, 1993, p. 13 et
seq.; CANOTILHO, Joaquim José Gomes. "Brancosos" e interconstitucionalidade: itinerários dos
discursos sobre a historicidade constitucional. Coimbra: Almedina, 2006, p. 263 et seq.; BERCOVICI,
Gilberto. Desigualdades regionais, estado e constituição. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 287;
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional..., cit., p. 140 et seq.
37

2. ESTADO DE DIREITO E SEU CONTEÚDO JURÍDICO

A expressão Estado de direito tem sido empregada como


ideia-força para se referir aos Estados que reúnem uma série de características
referenciadas nos ideais iluministas e declarações de direitos que fundamentaram
a superação do absolutismo.85 Presente em diversos textos constitucionais
modernos86 e no próprio ideário pós-moderno87, sua constante recorrência
demonstra sua importância axiológica na construção do Estado moderno, cujos
valores irradiam efeitos na ordem jurídica, produzindo consequências na
interpretação e aplicação do Direito.
Tais consequências decorrem da evoluão do
constitucionalismo, especialmente da assunção do caráter normativo da
Constituição. De fato, a Ciência do Direito, após a utilização mais frequente da
expressão tão somente para se referir a um tipo de Estado, passa a propor um
conteúdo jurídico para o Estado de direito. Resta saber, no entanto, se é possível
logicamente propor um conteúdo universalizável para o pretenso princípio.

85 Cf. GOUVEIA, Jorge Bacelar. Manual de direito constitucional: introdução: parte geral: parte
especial. v. 2. 5. ed. rev. atual. Coimbra: Almedina, 2013, p. 791 et seq.
86 Segundo seu preâmbulo, a Constituição da República Portuguesa – CRP foi promulgada, dentre

outros objetivos, para assegurar o primado do Estado de direito democrático, o que consagra no
seu artigo 2.º. Dispõe o artigo 2.º da CRP: “Artigo 2.º / Estado de direito democrático / A República
Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de
expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos
e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da
democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. Informa
Canotilho, que a expressão apenas passou a ser empregada no constitucionalismo português a
partir da CRP de 1976. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. MOREIRA, Vital. Constituição da república
portuguesa anotada. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, t. I, p. 204. Também convém ressaltar
que a Constituição Portuguesa só inscreveu o princípio do Estado democrático de direito após a
primeira revisão, constando anteriormente apenas do preâmbulo. Não obstante, a Comissão
Constitucional já extraía da conceção de que Portugal era um Estado democrático de direito desde
então. Cf. Processo 22/83. Acórdão 20/83. O mesmo termo pode ser encontrado na Constituição da
República Federativa do Brasil – CRFB. A expressão também está presente no Tratado da União
Europeia, na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como no sepultado Tratado
que estabelece uma Constituição para a Europa. A expressão não aparece em todos os textos
constitucionais, o que não desnatura a forma de um autêntico Estado de direito. A Constituição
italiana, por exemplo, não emprega o termo, fazendo referência apenas à República Democrática (Cf.
artigo 1.º da Constituição Italiana). Também a Constituição Portuguesa só inscreveu o princípio do
Estado democrático de direito após a primeira revisão, constando anteriormente apenas do
preâmbulo. Não obstante, a Comissão Constitucional já extraía da conceção de que Portugal era um
Estado democrático de direito desde então. Cf. Processo 22/83. Acórdão 20/83
87 Como destaca Sérgio Resende de Barros, a expressão, que se internacionalizou a partir de sua

origem germânica (Rechtsstaat), “virou modismo, não havendo Estado que se preze – até mesmo
regimes autoritários - que não se queira apresentar como Estado de direito.” Contribuição dialética
para o constitucionalismo. Campinas – SP: Millennium Editora, 2007, p. 138-9.
38

Como se demonstrará, a expressão "Estado de direito"


encerra um princípio jurídico constitucional, cujo conteúdo pode ser deduzido a
partir de fundamentos políticos e jurídicos.
Os fundamentos políticos residente na necessidade de
superação do Estado Absolutista, caracterizado pela arbitrariedade e
imprevisibilidade do monarca, a qual encontra voz na doutrina política
contratualista, especialmente em Locke, Rousseau e Montesquieu, que, em suas
obras, veiculam ideais convergentes para a construção de um Estado que
garantisse aos indivíduos uma previsibilidade e segurança mínimas, além de
outras aspirações que decorriam do racionalismo iluminista e se ligavam a uma
dignidade do ser humano.
Os fundamentos jurídicos ligam-se a tais fundamentos
políticos, na medida em que estes influenciaram os movimentos políticos que
levaram às revoluções liberais, especialmente a Americana de 1776 e a Francesa
de 1789, e, consequentemente, foram expressamente previstos nas primeiras
Constituições e Declarações de Direitos, especialmente na França e nos Estados
Unidos, as quais inspiraram o conteúdo das Constituições modernas.
Pode-se também afirmar que esses valores se encontram
presentes na conceção da maioria dos indivíduos, bem assim dos seus
representantes constituintes, ao menos no seio das sociedades formadas sob os
valores cristãos, consistindo "verdades evidentes, pré-racionais, que dispensam
uma persuasão política ou demonstração lógico-racional, conferindo, assim,
legitimidade à adoção de um conceito mínimo de Estado de direito". 88
Com efeito, embora alguns autores encontrem vestígios de
sua construção teórica em Platão89, ou mesmo de uma experiência próxima no
Estado Feudal, como defende Max Weber90, a conceção de um Estado de direito vai

88 COUTINHO, Luís Pedro Dias Pereira. A autoridade moral..., cit., p. 210.


89 As teses que buscam em Platão a origem da conceção de um Estado de direito esbarram no
problema de aceitar a ideia de que havia mesmo um Estado grego. A ausência de estatalidade
também se verificava no Feudalismo, pois as relações sucessivas e em cadeias recíprocas de
vassalagem também não poderiam configurar uma relação de poder político coercitivo que
permitisse falar em Estado, quanto mais em Estado de direito. Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo
para uma teoria do estado de direito. Coimbra: Almedina, 2006, p. 31 et seq.
90 Em sua obra Economia e Sociedade, Max Weber chama o Estado feudal de Estado de direito

fundado em direitos subjetivos, não em ordenamentos jurídicos objetivos. O sentido que ele dá ao
Estado de direito é algo próximo da estabilidade jurídica, pela existência de poderes que tutelavam
as relações jurídicas constituídas pelos indivíduos e entre esses e os respetivos suseranos. Mas se a
39

aparecer somente com a superação do Estado de Polícia, a última fase do Estado


absolutista.
Max Weber, no entanto, em sua obra Economia e Sociedade
chama o Estado feudal de Estado de direito fundado em direitos subjetivos, não em
ordenamentos jurídicos objetivos91. O sentido que ele dá ao Estado de direito é algo
próximo da estabilidade jurídica, pela existência de poderes que tutelavam as
relações jurídicas constituídas pelos indivíduos e entre esses e os respetivos
suseranos. Mas se a segurança jurídica pode ser considerada um princípio implícito
do Estado de direito, ela é insuficiente para caracterizar uma sociedade política
como tal. 92
Também se costuma estabelecer um paralelismo entre o
Estado de direito e o rule of law, ou supremacia do direito93, atributo da common
law estabelecido na Inglaterra medieval. Ambos os conceitos, de fato, se
aproximam, mas a origem do rule of law está dissociada da ideia de Estado e até
mesmo antecede a elaboração deste conceito na tradição jurídica continental
europeia.94 Enquanto as formulações teóricas sobre o Estado remontam à Idade

segurança jurídica pode ser considerada um princípio implícito do Estado de direito, ela é
insuficiente para caracterizar uma sociedade política como tal, razão pela qual a conceção de Weber
não pode ser aceita. Cf. WEBER, Max. Economía y sociedade: Esbozo de sociología comprensiva. 2ª
impressão da 2. ed. Trad. da 4.ª ed. alemã por José Medina Echavarria et al. México, Argentina,
Brasil, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, Guatemala, Peru, Venezuela: Madrid: Fondo de
Cultura Econômica de España, p. 837.
91 WEBER, Max. Economía y sociedade..., cit., p. 837.
92 De fato, só há Estado quando há uma relação de poder entre o indivíduo e a sociedade política. Na

Grécia e em Roma, não havia esse sentimento de oposição. O indivíduo, em grande parte
influenciado por suas conceções religiosas e por um direito natural, se enxergava como parte do
Estado e não como algo alheio. A liberdade ali era uma liberdade de participação, não oposição. Daí
a distinção que ficou famosa no texto de Benjamin Constant de 1819: “De la liberté des anciens
comparée à celle des modernes”. Assim, sem propriamente uma relação de poder, o que levava a
ideia de autarquia, não de soberania, não há como buscar na Grécia a ideia de Estado de direito. Cf.
QUINTILIANO, Leonardo David. Autonomia federativa: delimitação no direito constitucional
brasileiro. 2012. Tese (Doutorado em Direito do Estado) - Faculdade de Direito, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/ disponiveis
/2/2134/tde-26082013-162030/>. Acesso em: 5 ago. 2017, p. 34-39.
93 Embora muitos autores traduzam o termo como a “regra da lei” ou a “supremacia da lei”, prefere-

se a tradução “supremacia do direito”, pois exprime mais fielmente a dimensão da ideia que a
expressão pretende transmitir. Cf. NOVAIS, Jorge Reis, Os princípios estruturantes da república
portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 261. AMARAL, Maria Lúcia. A forma da república:
uma introdução ao estudo do direito constitucional. Coimbra: Coimbra editora, 2012, p. 140-1.
94 De fato, como informa Dicey, o rule of law estaria já definido no limiar da Revolução de Cromwell,

caracterizando-se pelos seguintes primados: “a) ninguém pode ser punido sem previsão legal
anterior ao facto imputado (nulla poena sine lege); b) nenhum homem está acima da lei, mas todos
a ela se submetem de igual maneira, independente de sua condição social; c) serem as normas
constitucionais não a causa, mas a conseqüência dos direitos individuais.” DICEY, Albert Venn.
Introdution to the study of the law of the constitution. 10. ed. London: Macmillan, 1962, p. 188-203.
40

Moderna, o desenvolvimento do rule of law tem seu início na Idade Média, ligando-
se diretamente ao surgimento e evolução da common law. Como afirma Albert
Venn Dicey, “a rule, predominance or supremacy of law é, ao lado da centralização
política, uma das duas características das instituições políticas inglesas surgidas
após a conquista dos Normandos.”95 Nada obstante, a noção de supremacia do
direito, enquanto antecedente direto do Rechtsstaat96, acaba por integrar este
último, que incorporou outros elementos no curso de seu desenvolvimento.97
De fato, o Estado feudal foi sucedido pelo Estado absolutista,
que conheceu duas fases: a fase do Estado patrimonial, em que os bens do Estado
se confundiam com o patrimônio do príncipe e uma segunda fase, na qual,
racionalmente, caberia ao príncipe cuidar dos interesses dos súditos. Essa fase, que
teve contribuições de filósofos como Maquiavel, foi chamada de Estado de Polícia.98
O Estado de Polícia se caracterizava por decisões arbitrárias
e imprevisíveis do Monarca. Os cidadãos e a própria burguesia, que antes se
beneficiavam da segurança dada pelo Monarca, começam a se ressentir de uma
menor intervenção estatal e buscar a substituição da ideologia cristã por um
processo racional que vai exigir também maior racionalidade do Estado.
Essa exigência de previsibilidade – segurança jurídica – vai
ser um dos elementos centrais para a superação desse Estado de Polícia, a qual
encontrou eco na doutrina contratualista, que já traçava os contornos do Estado de
direito em suas obras.99 Mesmo tendo uma pretensão político-filosófica, podem ser
encontrados em tais autores elementos jurídicos que serão considerados
essenciais para o Estado de direito. Luis Fleitas de León destaca tais elementos, a
seguir resumidos: a) a ideia de que o Estado não é algo espontâneo, mas é fruto da

Traduzimos.
95 DICEY, Albert Venn. Introdution to the study… cit., p. 183. Traduzimos. Cf. também BARROS,

Sérgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.
325-362.
96 Com efeito, "o conceito de Rechtsstaat a que chegaram é o resultado direto do velho ideal da

supremacia do direito em uma nação em que a principal instituição a ser cerceada era um complexo
aparelho administrativo, e não um monarca ou um Poder Legislativo." FERREIRA FILHO, Manoel
Gonçalves. Estado de direito e constituição. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 9.
97Ademais, noticia o autor que a tradução alemã para supremacia da lei foi frequentemente usada

no lugar de Rechtsstaat. HAYEK, Friedrich August Von. Os fundamentos da liberdade…cit., p. 244.


(destacamos)
98 Cf. NOVAIS, Reis. Contributo para uma teoria…cit., p. 36 et seq.
99 Dentre outros, ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social: ou principes du droit politique, de

1762; LOCKE, John. Two treatises of government, de 1689; e SECONDAT, Charles-Louis, Baron de la
Brède et de MONTESQUIEU. De l´esprit des lois, de 1758.
41

vontade dos indivíduos; b) a soberania, como poder político coercitivo, pertence ao


povo; c) o Estado deve se organizar num sistema de separação das funções
legislativa, executiva e jurisdicional; d) a limitação do poder dos governantes pela
adoção de um sistema de freios e de contrapesos e pela submissão à lei; e) a
garantia dos direitos da pessoa humana.100
Tais ideias influenciaram o conteúdo das primeiras
Constituições e Declarações de Direitos, especialmente na França e nos Estados
Unidos, as quais inspiraram o conteúdo das Constituições modernas.101 Dessas
influências, é relevante destacar o artigo 2.º da Declaração de Direitos do Homem e
do Cidadão de 1789: “Art. 2.º - Le but de toute association politique est la
conservation des droits naturels et imprescriptibles de l'Homme. Ces droits sont la
liberté, la propriété, la sûreté, et la résistance à l'oppression.”.102
Nascia, assim, o Estado de direito, consagrando a segurança
como um direito natural e imprescritível do homem.
Embora algumas características do Estado de direito já se
fizessem presentes na Inglaterra, é possível afirmar que os Estados Unidos da
América foram o primeiro modelo de Estado de direito, seguido pela França pós-
revolucionária, embora nenhum deles empregasse em seus textos constitucionais a
expressão.
O uso da expressão Estado de direito (Rechtsstaat) para
identificar um tipo de Estado teria surgido somente algum tempo depois, na
Alemanha. Quanto ao pioneirismo de seu uso, porém, não há consenso.103

100 LÉON, Luis Fleitas de. A propósito del concepto de “estado de derecho”: un estudio y una
propuesta para volver a su matriz genética. Revista de Derecho de la Universidad de Montevideo, ano
X, n.º 20, 2011, p. 24.
101 Luis Fleitas de León faz uma análise dos documentos políticos referentes à independência das

antigas 13 colônias que formariam os Estados Unidos da América, bem como da Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Cf. LÉON, Luis Fleitas de. A propósito del concepto…cit., p.
24-5.
102 “Artigo 2.º - O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e

imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência


à opressão.”. (Traduzimos e destacamos em itálico o termo sûreté (segurança).
103 Jorge Reis Novais, e.g., afirma que o conceito foi desenvolvido por Von Mohl na obra Die

Polizeiwissenschaft nach den Grundsatzen des Rechtsstates (Ciência policial de acordo com os
princípios dos Estados de Direito), em 1832-3, mas o autor já a haveria empregado em debates
políticos em 1829. Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria..., cit., p. 47. No mesmo
sentido, cf. VERDÚ, Pablo Lucas. La lucha por el estado de derecho. Bolonia: Real Colegio de España,
1975, p. 21. Manoel G. Ferreira Filho, em sua obra "Estado de direito e Constituição" (São Paulo:
Saraiva, 1988, p. 5), filia-se a essa tese. Entretanto, em sua obra "Princípios Fundamentais do
Direito Constitucional" (Saraiva: São Paulo, 2009, p. 176), o autor informa que Luc Heuschling
42

Certamente influenciado pela Revolução Francesa, Kant


escreve em 1793 o artigo "Über den gemeinspruch: das mag in der theorie richtig
sein, taugt aber nicht für die práxis" (Sobre o dito comum: isso pode ser justo em
teoria, mas não vale na prática), onde emprega o termo rechtlicher zustand (estado
jurídico) em oposição ao estado não-jurídico ou de natureza. 104 Naquele, deveriam
se respeitar os direitos de liberdade de buscar a própria felicidade sem prejudicar
a felicidade alheia, de igualdade dos súditos perante a lei (igualdade formal) e de
uma liberdade de participação no processo legislativo apenas para quem
dispusesse de propriedade (cidadania limitada pelo critério censitário).105 Quatro
anos depois, em 1797, Kant publica a obra Princípios metafísicos da doutrina do
direito, desenvolvendo aqueles conceitos. A partir de então ele e seus seguidores
passaram a ser chamados de Escola Crítica ou Doutrina do Estado de direito.106
A simples instauração da monarquia constitucional e a
proclamação do Rechtsstaat, com o fim da justiça administrativa, não garantiram a
almejada liberdade do indivíduo em face da Administração Pública. Isso porque -
defende o autor - o modelo segundo o qual as questões administrativas eram

atribui a Johann Wilhelm Placidus o pioneirismo no uso da expressão Rechtsstaat, a qual teria sido
por ele empregada em 1798, na obra "Literatur der Staatslehre. Ein Versuch", para designar a
Escola de Kant. No mesmo sentido BARROS, Sérgio Resende de. Contribuição dialética…cit., p. 138.
Essa parece a tese mais plausível. Esse facto é confirmado por Gustavo Gozzi, segundo o qual Kant e
seus alunos foram chamados de Escola Crítica ou Doutrina do Estado de direito (Rechts-Staats-
Lehrer). GOZZI, Gustavo. Kant: la concezione dela democrazia sul fondamento dei diritti. In:
BOLOGNESI, Dante; MATTARELLI, Sauro. L’Illuminismo e i suoi critici. Milano: FrancoAngeli, 2011,
p. 85. Também informa que Placidus era um pseudônimo usado por Petersen, a obra foi publicada
em Sttutgart, não em Estrasburgo, mais provavelmente em 1797. BYRD, B . Sharon; HRUSCHKA,
Joachim. Kant’s doctrine of right: a commentary. Cambridge, New York, Melbourne, Madrid, Cape
Town, Singapore, São Paulo, Delhi, Dubai, Tokyo: Cambridge University Press, 2010, p. 27. Friedrich
A. V. Hayek, por sua vez, noticia que a palavra Rechtsstaat teria aparecido pela primeira vez em K. T.
Welcker, em sua obra Die letzten Gründe von Recht, Staat und Strafe (As razões últimas do Direito,
Estado e Punição), publicada em 1813. O significado do termo ali empregado, porém, não
corresponderia ao significado que lhe foi dado posteriormente, cujo movimento teórico apenas
teria iniciado no fim do século XVIII, sob a influência de estudiosos ingleses. HAYEK, Friedrich
August Von. Os fundamentos da liberdade…cit., p. 239, nt. 26. Hayek também afirma que os
escritores alemães costumam associar o movimento que levava ao Rechtsstaat às teorias kantianas.
O imperativo categórico de Kant - a norma pela qual o homem deve se comportar de tal modo que o
motivo que o leva a agir seja universalizável – teria enfatizado o caráter geral e abstrato das
normas, condição necessária ao desenvolvimento da ideia da supremacia da lei. Aqui utilizou-se a
própria tradução do autor para o termo “supremacia da lei”. HAYEK, Friedrich August Von. Os
fundamentos da liberdade…cit., p. 236.
104 BEEVER, Allan. Forgotten justice: forms of justice in the history of legal and political theory.

Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 168.


105 GOZZI, Gustavo. Kant: la concezione dela democrazia…cit., p. 85-6.
106 Ibidem. Sobre a atribuição a Kant da conceção de Estado de direito, cf. ZEPEDA, Jesús Rodrigues.

Estado de derecho y democracia. 2. ed. Mexico: Instituto Federal Electoral, 2001, p. 31-4. Cf. KANT,
Immanuel. Princípios metafísicos da doutrina do direito. Trad. Joãosinho Beckenkamp. São Paulo:
Martins Fontes, 2014, p. 128-129.
43

submetidas à justiça ordinária trazia o problema da especialização necessária em


matéria administrativa, que faltava aos juízes “ordinários”, uma vez que “as
disputas em torno da legalidade de um ato administrativo não poderiam ser
resolvidas como pura matéria jurídica”.107
Por isso foram criados novos tribunais administrativos, que
tratariam unicamente de questões legais, tendo total independência, esperando-se
que, com o passar do tempo, assumissem um controle estritamente judicial de toda
a ação administrativa. Era o fim do judicialism na Alemanha e, para Hayek, a
coroação da realização definitiva do ‘Estado de direito’. 108
Da Alemanha, a teoria do Rechtsstaat demorou a ser aceita
na França, o que somente ocorreu a partir da segunda década do século XX,
sobretudo com a obra "Contribution a la théorie générale de l”État", de Raymond
Carré de Malberg.109 Após sua colhida no direito francês, o termo Estado de direito,
assim como seu conceito, internacionalizou-se. Na França, porém, o conceito sofreu
um desvio, em função do qual o termo Estado de direito passou a ser identificado
com Estado de legalidade.110
O Estado de legalidade representou um paradigma relevante
à conceção de Estado de direito, na medida em que a segurança jurídica era levada
ao extremo, em detrimento de outros valores. Dois fatores explicam essa conceção
mais restrita. Em primeiro lugar, na França, o receio do Poder Judiciário, ainda
identificado como um órgão aristocrático conservador do Antigo Regime, levava a
adoção de conceções que limitavam, de certo modo, o exercício da função

107 HAYEK, Friedrich August Von. Os fundamentos da liberdade…cit., p. 242.


108 Segundo Hayek, a prática verificada nos tribunais administrativos na França e na Alemanha
estavam muito longe de refletir o Estado de direito. Nesse sentido, cita A. V. Dicey, que, em obra
clássica, teria difundido o modelo praticado no continente europeu como sendo forma imperfeita
do Estado de direito, levando ao entendimento quase generalizado de que a ausência do judicial
review na França e na Alemanha estariam diretamente relacionados ao modelo imperfeito de
Estado de direito ali vigente. Ibid., p. 243.
109 MALBERG, Raymond Carré de. Contribution à la théorie générale de l’état: spécialement d’après

les données fournies par le droit constitutionnel français. Paris: Librairie de la Société Du Recueil
Sirey, 1920, p. 162 et seq.
110 Com efeito, com a superação do absolutismo pelo legalismo, consagrou-se na França a lei, e não o

direito, como substitutos do rei. Esse dado histórico talvez justifique a forma como o Rechtsstaat foi
praticado na França: como uma canonização da lei e autorização de condutas individuais. De fato,
com a consagração da lei, ideologicamente equiparada ao antigo poder real que substituira, esta lei
passa a ser cultivada como a causa de todas as coisas. Com isso, a prática da teoria do Rechtsstaat na
França se distancia do que se poderia chamar Estado de direito, o que foi logo percebido pela
doutrina. Cf. MALBERG, Raymond Carré de. Contribution à la théorie générale de l’état…cit., p. 2-3.
44

jurisdicional.111 A esse fator se somava a forte influência do positivismo. Não


obstante, autores como Léon Duguit também reconheciam, em 1923, que o Estado
de direito implicaria a obrigação de o legislador "fazer certas leis e de não fazer
certas leis".112
Entre os diversos autores que se debruçam sobre o tema,
muitas são as propostas de distinções entre Estado de direito e Estado de
legalidade. Uma delas sintetiza a distinção proposta: no Estado de direito, ao
contrário do que se passa no Estado de legalidade, os fins devem prevalecer sobre
os meios.
Há que se aceitar com reservas tal posição doutrinária
acerca da conceção de Estado de direito como prevalência dos fins. Tal conceção
jusnaturalista ou neoconstitucionalista pode, a pretexto de firmar, infirmar o Estado
de direito e, consequentemente, a segurança jurídica, porquanto os fins – porque
são valores - estão sujeitos às vicissitudes da condição humana, da vida social e da
própria sociedade. Desse modo, adaptando-se a proposta de Luhman, o Estado de
direito deve ser concebido como o equilíbrio entre meios e fins.113
Esse trabalho adota, portanto, a pré-compreensão de que o
Estado de direito encerra um princípio de limitação dos poderes constituídos por
normas emanadas do poder que os constitui e por normas que se pressupõem
universalizáveis, por refletirem a proteção presumidamente desejada de todo ser
humano à sua liberdade de autodeterminação, à preservação de sua integridade
física e moral, à garantia de paz social e de previsibilidade e estabilidade das
relações sociais e políticas, sendo tais normas, positivadas ou não, legitimadas
democraticamente.
Ademais, a partir das considerações históricas e de uma
análise teleológica de sua criação, é possível atribuir, com algum consenso ao
menos doutrinário e jurisprudencial, um conteúdo mínimo para o conceito de
Estado de direito, composto dos seguintes elementos: garantia de liberdade,

111 Cf. LAUBADERE, André de et al. Traité de droit administratif. 2. ed, Paris: Libraire Générale de
Droit et de Jurisprudence, 1992, p. 266.
112 DUGUIT, LÉON. Manuel de droit constitutionnel: théorie générale de l’état – le droit et l’état - lês

libertes publiques – l’organisation politique de la france. 4. ed. Paris: E. de Boccard, 1923, p. 31.
113 Segundo Luhman, “os procedimentos jurídicos públicos deveriam servir, numa relação unitária

entre objetivo e meios, para o estabelecimento correto do direito e, simultaneamente, para a


divulgação da opinião jurídica correta.” Cf. LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad.
Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 184.
45

igualdade e segurança, bem como dos demais direitos e liberdades considerados


fundamentais; sujeição do poder ao direito; e divisão dos poderes. Também é
possível estabelecer o seguinte paralelo entre fins e meios:

FINS (valores) MEIOS (princípios)


Divisão dos poderes, proporcionalidade, legalidade,
Proteção do indivíduo contra o
garantia de direitos fundamentais inerentes a uma
abuso do poder
dignidade mínima do ser humano
Igualdade de tratamento aos
Garantia de atos administrativos, legislativos e
membros da mesma coletividade,
jurisdicionais que observem o princípio da igualdade
iguais por natureza
Proteção do indivíduo contra Poder coercitivo
abusos de membros da coletividade
Previsibilidade e estabilidade da Legalidade e segurança jurídica
ordem jurídica
Participação do indivíduo na Regime democrático
formação da vontade estatal114

O quadro acima sintetiza as conceções de um Estado


pretendido pela sociedade, segundo os ideais das Revoluções que conformaram o
constitucionalismo contemporâneo. Como se pode observar, a ideia de Estado de
direito encerra fins e meios, em uma articulação que lhe confere certa unidade
sistemática.115 Tal conceção se legitima democraticamente na medida em que,
como defende Peter Haberle116, a primeira coluna contempla, com uma pequena
margem de dissenso, os fins do Estado contemporâneo aceitos pela sociedade.

114 Embora alguns autores, como Zippelius, reconheçam a existência de um Estado de direito não
democrático, essa não seria a conceção aceita em Portugal e no Brasil, pelas razões a seguir
expostas. Cf. ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do estado. Trad. Krin Praefke-Aires Coutinho. 3. ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 383-4.
115 Há muitos outros elementos presentes em outros autores, os quais não encontram consenso,

como o reconhecimento de uma personalidade jurídica do Estado, a existência de um controle de


constitucionalidade, bem como da responsabilidade do Estado e de seus agentes. Cf. CANOTILHO,
José Joaquim Gomes. MOREIRA, Vital. Constituição da república portuguesa anotada. 4. ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 2007, t. I, p. 205. No mesmo sentido, AMARAL, Maria Lúcia. A forma da
republica…cit., p. 178; NOVAIS, Jorge Reis. Princípios constitucionais estruturantes…cit., p. 261.
VERDÚ, Pablo Lucas. La lucha por el estado de derecho…cit., p. 23-4; ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria
geral do estado…cit., p. 392-3. OTERO, Paulo. Instituições políticas e constitucionais. v. 1. Coimbra:
Almedina, 2009, p. 532. MORAIS, Carlos Blanco de. Segurança jurídica e justiça constitucional.
RFDUL, v. XLI, n° 2, 2000, p. 622 e Curso de direito constitucional: teoria da constituição em tempo
de crise do Estado social. v. 2. t. 2. Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 479; KELSEN, Hans. Teoria
pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 218.
116 Segundo Häberle, o caráter dinâmico da realidade que empresta significado ao texto normativo

exige uma constante conformação da Constituição à realidade sobre a qual ela se projeta, o que só
pode se dar se a interpretação da Constituição se legitimar democraticamente. Cf. HÄBERLE, Peter.
Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta de intérpretes da constituição: contribuição para a
interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto
Alegre, 2002, p. 10 et seq.
46

Para atingir tais fins o Estado precisa de meios próprios,


logicamente adequados, como os presentes na segunda coluna da tabela acima,
correspondentes aos fins previstos na mesma linha.
Dentre esses meios, encontram-se princípios como a
separação dos poderes, a legalidade, a igualdade, os direitos fundamentais e a
segurança jurídica, para citar alguns.
47

3. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A natureza e o próprio conteúdo jurídico da dignidade da


pessoa humana é controvertido na doutrina117, especialmente pelas diferentes
formas como aparecem nas Constituições modernas,118 quase sempre tida como
uma “premissa antropológica”119, sustentada em grande medida na noção kantiana
de que o homem é um fim em si mesmo, dotado de um valor intrínseco, uma
dignidade120. Como observa Habermas, para Kant, a autonomia constituiria o
próprio fundamento da dignidade humana 121. Essa conceção varia e sofre todo
tipo de propostas da vasta doutrina que já se debruçou e ainda se debruça sobre o
tema. 122
De fato, a expressão dignidade da pessoa humana e suas
variantes são consideravelmente abertas e indeterminadas, além de imbuídas de
forte carga axiológica. Tal valor foi incorporado nos textos constitucionais
modernos, especialmente a partir da Constituição de Weimar123, a qual, para

117 Cf., entre outros, ALEXANDRINO, José de Melo. Perfil constitucional da dignidade da pessoa
humana: um esboço traçado a partir da variedade de concepções. Estudos em Honra do Professor
Doutor José de Oliveira Ascensão, v. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 481-511. HABERMAS,
Jürgen. Ensaio sobre a constituição..., cit., p. 37-57. SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da
dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídicoconstitucional necessária e
possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, n. 9, jan./jun. 2007, p. 361-88.
118 Na Itália, informa Luigi D’Andrea, que “tanto a razoabilidade (ragionevolezza) como a dignidade

humana se colocam como expressões - ou, por outro lado, como condições – das razões sistêmicas
que unem valores constitucionais, direitos individuais, deveres irrevogáveis, funções públicas,
institutos jurídicos: enquanto condições de possibilidade no ordenamento jurídico, poderão ser
considerados transcendentais”. D’ANDREA, Luigi. Ragionevolezza e legittimazione del sistema.
Milano: Giuffré, 2005, p. 402. Traduzi. Na Espanha, a doutrina debate o status da dignidade humana,
expressamente consagrada no artigo 10 da Constituição, se como princípio ou valor superior do
ordenamento jurídico. Cf. BATISTA J., Fernando. La dignidad de la persona en la constitución
española: naturaleza juridica y funciones. Cuestiones constitucionales, n. 14, jan./jun. 2006, p. 16.
Disponível em: <http://www. redalyc.org/articulo.oa?id=885014 01>. Acesso em: 24 jun. 2016.
119 HÄBERLE, Peter. Dignita’Dell’Uomo e Diritti Sociali nelle Costituzioni degli Stati di Diritto. In:

BORGHI, Marco. Costituzione e diritti sociali. Fribourg: Éditions Universitaires Fribourg, 1990, p. 99.
120 Dizia Kant que “(...) o respeito que eu tenho pelos outros ou que os outros têm por mim é o

reconhecimento da dignidade nos outros homens, bem como que existe um valor, que não tem
preço ou um equivalente com o qual se possa substituir o objeto da estima”. KANT, Immanuel.
Metafísica dos costumes. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 392.
121 HABERMAS, Jürgen. Ensaio sobre a constituição..., cit., p. 47.
122 Jorge Reis Novais, e.g., deduz da conceção kantiana que o indivíduo "é capaz de produzir o

sentido de sua própria dignidade". NOVAIS, Jorge Reis. Princípios constitucionais estruturantes da
república portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 58. Tal posição é contestada por Luís
Pereira Coutinho, que afirma ser a "autodeterminação" em si o valor protegido pelo princípio e não
seu exercício, posição com a qual concordamos. COUTINHO, Luís Pedro Dias Pereira. A autoridade
moral da constituição: da fundamentação da validade do direito constitucional. Coimbra: Coimbra
Editora, 2009, p. 136.
123 Dispunha o artigo 151 da Constituição de Weimar: “a atividade econômica deve observar os

princípios da justiça, com o fim de garantir uma vida digna para todos”. (Traduzi)
48

alguns, ao mencionar a finalidade de vida digna em seu artigo 151, estaria a limitar
a liberdade econômica individual124. O preceito inspirou as demais constituições,
aparecendo de forma mais desenvolvida no artigo 1º, (1), da atual Lei Fundamental
alemã, o qual dispõe ser intangível a dignidade da pessoa humana, cabendo ao
poder público observá-la e protegê-la.
A razão de sua incorporação nos textos fundamentais
modernos liga-se com mais força à Segunda Guerra, sendo diretamente vinculado
ao conceito de direitos humanos.125 Essa associação com os direitos humanos
desloca para o valor dignidade da pessoa humana grande parte do discurso dos
próprios direitos humanos. Daí porque Habermas afirma ser a dignidade da pessoa
humana o portal através do qual o conteúdo igualitário e universalista da moral é
importado para o direito.”126.
Em decorrência, tal valor passa a consubstanciar um dos
fundamentos do Estado de direito. Para Häberle, sua positivação, como se deu na
Lei Fundamental alemã, implica "reconhecer categoricamente que é o Estado que
existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano
constitui finalidade precípua, e não meio da atividade estatal”.127
Na jurisprudência constitucional, o princípio tem sido
utilizado, por vezes, de forma autônoma. O Tribunal Federal Alemão, v.g., declarou
inconstitucional a lei que descriminalizava o aborto128, bem como a lei de
Segurança da Aviação aprovada pelo parlamento federal alemão, que autorizava o
abatimento de aviões de passageiros, que tivessem sido transformados em
bombas, a exemplo do que ocorreu nos atentados de 11 de setembro.129

124 Cf. HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In:
Dimensões da dignidade, ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. SARLET, Ingo
Wolfgang (Org.).Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 75
125 Cf. HABERMAS, Jürgen. Ensaio sobre a constituição da europa. Trad. Marian Toldy e Terese Toldy.

Lisboa: Edições 70, p. 30.


126 Cf. HABERMAS, Jürgen. Ensaio sobre a constituição..., cit., p. 28.
127 HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In : Dimensões

da dignidade, ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. SARLET, Ingo Wolfgang (Org.).
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 49
128 BVerfGE 39:1. German Constitutional Court Abortion Decision. Translation by Robert E. Jonas

and John D. Gorby. The John Marshall Journal of Practice and Procedure, (v. 9:605). Disponível em: <
http://groups.csail.mit.edu/mac/users/rauch/nvp/german/german_abortion_decision2.html>.
Acesso em: 16 jun. 2016.
129 BVerfG, Judgment of the First Senate of 15 February 2006 - 1 BvR 357/05 - paras. (1-156).

ECLI:DE:BVerfG:2006:rs20060215.1bvr035705
49

Em Portugal, o Tribunal Constitucional também empregou


autonomamente o princípio, no caso em que se discutia a constitucionalidade de lei
que aumentava de 18 para 25 anos o requisito etário mínimo para percepção do
rendimento mínimo garantido. Para o TC, a lei atingia “o conteúdo mínimo do
direito a um mínimo de existência condigna, postulado, em primeira linha,
pelo princípio do respeito pela dignidade humana [...], princípio esse consagrado
pelo artigo 1º da Constituição e decorrente, igualmente, da ideia de Estado de
direito democrático, consignado no seu artigo 2º, e ainda aflorado no artigo 63º,
nºs 1 e 3, da mesma CRP”. 130
Mesmo nos Estados Unidos, cuja Constituição não traz
expressamente a cláusula da dignidade humana, o princípio é – sob polêmica
jurídica e política – invocado pela jurisprudência, como se deu nos casos Atkins v.
Virginia131 e Roper v. Simmons132 que tratavam, respetivamente, da execução de
mentally retarded persons (deficientes mentais) e de menores de 18 anos. Mesmo
no caso Obergefell v. Hodges, a dignidade humana aparece indiretamente
(enquanto intrinsecamente relacionada à autonomia individual, em termos
kantianos) como um dos quatro fundamentos empregados pela Suprema Corte
para considerar o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo protegido
pela Constituição.133
Com efeito, é inquestionável a dificuldade em densificar o
princípio da dignidade da pessoa humana. Sua importância, porém, exige um
esforço na busca de uma definição e uma classificação em cada ordem jurídica que
reflita o núcleo essencial e o conteúdo134 perseguido pelas aspirações

130 Processo n.º 768/02. Acórdão n.º 509, de 19 de dezembro de 2002.


131 Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Atkins v. Virginia. 536 U.S. 304 (2002).
132 Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Roper v. Simmons. 543 U.S. 551 (2005).
133 “Quatro princípios e tradições demonstram que as razões pelas quais o casamento é

fundamental na Constituição se aplicam com igual força aos casais do mesmo sexo. A primeira
premissa dos precedentes relevantes deste Tribunal é que o direito à escolha pessoal em relação ao
casamento é inerente ao conceito de autonomia individual. Esta eterna relação entre o casamento e
a liberdade foi a razão pela qual a proibição do casamento inter-racial foi considerada
inconstitucional diante da Cláusula do Devido Processo. [...]. As decisões sobre o casamento estão
entre as coisas mais íntimas para qualquer indivíduo. [....] Isto é verdade para todas as pessoas,
independentemente da sua orientação sexual.”. Suprema Corte dos Estados Unidos da América.
Obergefell v. Hodges. 576 US ___ (2015).
134 Cf. OTERO, Paulo. Instituições políticas e constitucionais. v. I. Coimbra: Edições Almedina, 2007. p.

572.
50

representadas especialmente pelos filósofos políticos a partir do século XVII,


muitas das quais consagradas nas declarações de direitos.135
Para José Alexandrino, após proceder à sistematização das
aproximações jurídicas ao conceito de dignidade da pessoa humana, conceitua
dignidade da pessoa humana como a "referência da representação do valor do ser
humano". Concordando com o autor, só se pode universalizar um princípio se seu
conteúdo for universalizável. Para que isso ocorra, é necessária a adesão da
comunidade política organizada (suprema e incondicionada) à conceção do mundo
dominante em torno do sentido representado pelo valor "dignidade".136
Essa tese se aproximada da adotada pelo STF, segundo o
qual tal princípio apenas pode ser invocado de modo autônomo se houver um
consenso radicado na consciência geral acerca de seu conteúdo, e não apenas
mediante uma formulação retórica doutrinária ou jurisprudencial, sob pena de
banalização do princípio:
Creio ser indispensável enaltecer a circunstância da
desnecessidade da invocação da dignidade humana como
fundamento decisório da causa. Tenho refletido bastante sobre
essa questão, e considero haver certo abuso retórico em sua
invocação nas decisões pretorianas, o que influencia certa
doutrina, especialmente de Direito Privado, transformando a
conspícua dignidade humana, esse conceito tão tributário das
Encíclicas papais e do Concílio Vaticano II, em verdadeira
panacéia de todos os males. Dito de outro modo, se para tudo se
há de fazer emprego desse princípio, em última análise, ele para
nada servirá. [...]” 137
Assim, o conceito de dignidade da pessoa humana só pode
ser utilizado autonomamente contra o legislador, fora das demais garantias e
direitos fundamentais expressamente previstas e que lhe delimitam um conteúdo
de acordo com a ordem jurídico-constitucional, se - mediante uma argumentação
lógico-jurídica - for demonstrado de modo inequívoco que certo conteúdo inerente
a tal princípio se encontra implícito no texto constitucional. 138

135 Cf. LÉON, Luis Fleitas de. A propósito del concepto de “estado de derecho”: un estudio y una
propuesta para volver a su matriz genética. Revista de Derecho de la Universidad de Montevideo, ano
X, n.º 20, 2011, p. 24; HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade
estatal. In: Dimensões da dignidade, ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. SARLET,
Ingo Wolfgang (Org.).Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 75.
136 ALEXANDRINO, José de Melo. Perfil constitucional..., cit., p. 511.
137 Cf. STF. RE 363889/DF. Pleno, Rel. Ministro Dias Toffoli, J. 2.6.2011.
138 Afinal “a compreensão do alcance da dignidade da pessoa humana em cada comunidade política

historicamente situada não é a-histórica e intemporal. Ela não pode ser deduzida mecanicamente
de qualquer apriorismo, devendo antes atender à compreensão fundamental-originária do homem
numa determinada cultura num certo momento histórico”. MEDEIROS, Rui. Direitos, liberdades e
51

Na ordem constitucional brasileira, assim como na


portuguesa, o princípio da dignidade humana não possui um conteúdo autônomo;
seu conteúdo encontra-se delimitado pelas demais normas constitucionalmente
previstas, que aclaram seu conteúdo. Nesse sentido, a autonomização do princípio
na Lei Fundamental de Bona e as soluções jurisprudenciais e doutrinárias ali
adotadas devem ser interpretadas e recepcionadas com ressalva nas demais
ordens jurídico-constitucionais, especialmente a brasileira e a portuguesa.
Discordamos, portanto, de Jorge Reis Novais, segundo o qual não compete
exclusivamente ao legislador a densificação do princípio da dignidade da pessoa
humana.139 Ora, o poder constituinte originário tem o dever de, como conclui José
Alexandrino, positivar o valor colhido do plano cultural acerca de seu conteúdo. No
caso de incertezas, deve-se conferir ao legislador a margem de discricionariedade
para conformar tal princípio, o que pode ser feito indiretamente, em sede de
ponderação ou sopesamento, quando da elaboração de um ato legislativo.140

garantias…cit., p. 659.
139 Cf. ALEXANDRINO, José de Melo. Perfil constitucional..., cit., p. 512.
140 NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais...., cit., p. 58.
52

4. NEOCONSTITUCIONALISMO

A positivação de valores nos textos constitucionais que


passa a se intensificar a partir da Segunda Guerra Mundial, influenciada pelas
correntes jusnaturalistas, comunistas e socialistas, em reação, sobretudo, aos
horrores do nazismo, que teria encontrado no positivismo clássico um ambiente
favorável para seu crescimento e justificação, inseriu no constitucionalismo forte
vertente axiológica, acarretando certa necessidade de adequação, especialmente
no plano hermenêutico, na aplicação de tais normas.141
Em decorrência, a antiga dicotomia direito e justiça, bem
assim o direito e a moral, assumiram uma forma sincretista no constitucionalismo
contemporâneo, trazendo para a interpretação jurídica, notadamente a
constitucional, as divergências antes verificadas na filosofia do direito.
Sob esse influxo, surgem manifestações que reivindicam
uma conceção de interpretação constitucional não mais assentada na dicotomia
direito e justiça, mas, pelo contrário, buscando a convergência entre ambos, sob o
ideário de que o direito deve buscar a realização da justiça social, mediante uma
interpretação da norma que confira maior importância aos aspetos concretos que a
circundam, por empréstimo da metodologia fenomenológica, nos moldes
propostos por Heidegger.142 A essa - que alguns pretendem reconhecer como
"nova hermenêutica" – embora não veicule propriamente uma novidade
hermenêutica143 - alguns autores passaram a designar pelo termo
neoconstitucionalismo.
O neoconstitucionalismo (e suas variações gramaticais)
designa, portanto, toda interpretação constitucional que se utiliza de elementos
não positivados explícita ou implicitamente, mas que seriam inferidos histórica e
racionalmente, e cuja legitimidade dar-se-ia pelo seu conteúdo destinado ao

141 Muitas são as razões políticas, sociais e econômicas que o determinam. Manoel Gonçalves
Ferreira Filho, a partir de Chevallier, aponta algumas. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Notas
sobre o direito constitucional pós-moderno, em particular sobre certo neoconstitucionalismo à
brasileira. Revista de Direito Administrativo, FGV, v. 250, 2009. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ ojs/index.php/rda/ issue/view/354>. Acesso em: 3 jun. 2017, p. 3
et seq.
142 HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os Pensadores. Trad. Ernildo

Stein: São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 81.


143 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Notas sobre o direito constitucional…cit., p. 156.
53

reconhecimento de direitos inerentes a qualquer indivíduo em virtude de sua


condição humana, ou a partir de postulados morais ou de justiça.144
Ocorre que esse neoconstitucionalismo não encerra
propriamente um método, mas uma ausência de método, porquanto prestigia os
fins em detrimento dos meios. Qualquer método será correto, desde que conduza
aos ideais de justiça “perseguidos” pelo ordenamento.145
Essa ausência de método impede que se afira a legitimidade
da argumentação neoconstitucional, criando uma tensão “legitimidade versus
justiça”, tendo em vista que, se o direito positivo se assenta no postulado da
legitimidade, o direito natural se afirma no postulado da justiça. Nesse sentido, a
positivação de valores tende a aproximar o direito do justo. Mas a justiça –
enquanto valor – também pode se converter em tirania, como já previa Carl
Schimitt.146
Por outro lado, desde os ideais que inspiraram as
Revoluções Francesa e Americana, o valor democrático se acha presente no ideário

144 Cf., dentre muitos, BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15.ed. São Paulo:
Malheiros, 2004. p. 476. CARBONELL, Miguel. El neoconstitucionalismo: significado y nível de
análisis. In: CARBONELL, Miguel; JARAMILLO, Leonardo García. El canon neoconstitucional. Madrid:
Editorial Trotta, 2010, p. 153-154. COMANDUCCI, Paolo et. al. Positivismo juridico y
neoconstitucionalismo. Madrid: Fundación Coloquio Jurídico Europeu, 2009; AVILA, Humberto.
“Neoconstitucionalismo”: entre a “Ciência do Direito” e o “Direito da Ciência”. Revista Eletrônica de
Direito do Estado, Salvador, Bahia, Brasil, n.º 17, jan./fev./mar. 2009. Disponível em:
<http://www.direitodoestado.com/revista/ rede-17-janeiro-2009-humberto%20avila.pdf>. Acesso
em: 4 abr. 2016. BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito
constitucional brasileiro: Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. Revista de Direito
Administrativo, Rio de Janeiro, n. 225, p. 5-37, jul./set. 2001; BARBERIS, Mauro. In: CARBONELL,
Miguel Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Editorial Trotta, 2003, p. 259-278. ALEXANDRINO, José
Melo. Lições de direito constitucional. v. I. Lisboa: AAFDL, 2015, p. 18. MORAIS, Carlos Blanco de.
Curso de direito constitucional: a lei e os actos normativos no ordenamento jurídico português. t. I.
Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p.129-31 e 149-52 e Curso de direito constitucional: teoria da
constituição em tempo de crise do Estado social. v. 2. t. 2. Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 368.
Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o neoconstitucionalismo não é, “essencialmente, senão
uma ideologia, uma roupagem pretensamente científica, para coonestar um ativismo de operadores
do direito. Ele serve de instrumento para implantar o politicamente correto, “reformar” o mundo e,
de passagem, o país, num arremedo de socialismo utópico (para lembrar a lição de Marx)”.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Notas sobre o direito constitucional..., cit., p. 165.
145 Nesse sentido, confirma Paulo Bonavides: “Descortina-se assim um campo de imprevisível

extensão para o florescimento de distintas posições interpretativas no domínio da hermenêutica


constitucional. Perde porém essa hermenêutica a firmeza do modelo clássico, que se assentava
numa lógica confiante, sólida, imbatível. Sua plasticidade é fraqueza. A manipulação dos fins e do
sentido faz deveras fácil o tráfego a soluções de conveniência, a conclusões preconcebidas, a
subjetivismos, em que o aspeto jurídico sacrificado cede complacente a solicitações do aspeto
político, avassalador da norma e produtor exuberante de perplexidades e incertezas inibidoras.”
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 477.
146 SCHMITT, Carl. La tirania de los valores. Trad. Anima Schimitt de Otero. Revista de Estudios

Politicos, Madrid, 115, jan./fev. 1961, p. 75-79.


54

do indivíduo minimamente politizado. A partir do abandono do fatalismo religioso


pelo determinismo racional, o ser humano reivindica sua autodeterminação, que se
manifesta inclusive no poder de influenciar a vontade da sociedade política
organizada.
Essa influência se dá pela democracia, que – não obstante
assuma diversas formas no constitucionalismo moderno – atua como instrumento
de transfiguração das vontades individuais numa vontade geral. De nada adianta,
porém, que uma vontade manifestada não seja observada, seguida, tampouco que
não seja amplamente conhecida pela sociedade. Daí porque o direito requer
objetividade, único atributo capaz de conferir-lhe tais garantias.
O caráter estático do direito objetivo apresenta contradições
com o caráter dinâmico dos valores, o que gera inevitáveis conflitos. Um deles se dá
quando duas normas abrigam valores147 entre si conflitantes. Como os valores
abrigam conteúdos subjetivos indecifráveis, a interpretação ametódica de normas
de conteúdo axiológico pode velar interesses contrários aos fins que levaram à sua
positivação e, mediante o emprego de sofismas, impor uma vontade contra-
majoritária ou mesmo criar um engodo ideológico.148
Ademais, uma ordem jurídica axiológica corre o risco de
deixar de ser uma
decisão, para se transformar num campo de disputa
filosófica, religiosa ou ideológica onde é possível extrair um
critério normativo e o seu inverso, tudo dependendo da
forca jurídico-filosófica das argumentações e das maiorias
dos juízes, os quais se transformam em oráculos. Trata-se
do húmus de uma normação espinhosa com carater volátil,
onde tudo pode ser potencialmente inconstitucional,
gerando-se uma insegurança jurídica crítica para o Estado
(cujas politicas publicas vivem sob uma espada de
Damodes); para os cidadãos (incapazes de calcular o
desfecho dos processos onde são parte); e para a
democracia (face a possibilidade de os órgãos diretamente
eleitos se sujeitarem ao veto jurisdicional absoluto de um
órgão não eleito).149

147 SCHMITT, Carl. La tirania..., cit., p. 75-79.


148 O termo engodo ideológico é adotado por Sérgio Resende de Barros, para se opor ao termo
ideologia. Esta seria um equívoco inconsciente, ao passo que o primeiro seria um engano
consciente. BARROS, Sérgio Resende de. Contribuição dialética para o constitucionalismo. Campinas:
Millenium, 2007, p. 164-6.
149 MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional: teoria da constituição..., cit., p. 459. Cf.

também MORAIS, Carlos Blanco de. Algumas reflexões sobre o valor jurídico de normas
55

Não obstante, a positivação de valores é inevitável150 e este


fenômeno não é o problema per si, mas a falta de igual positivação de critérios
interpretativos151, deixando um espaço para o fértil campo da interpretação
criativa.152
Tal campo fértil é explorado não apenas pelos juízes,
gerando o fenômeno do ativismo judicial, mas igualmente pela doutrina, que
abandona o método científico não para interpretar a realidade mediante o
emprego de enunciados suscetíveis de testes lógicos de veracidade, 153 mas para
tentar modificar o próprio dever-ser, como ocorre nas tentativas de densificação de
normas desprovidas de conteúdos normativos aferíveis no plano jurídico, como a
já mencionada dignidade da pessoa humana.154 Trata-se de um verdadeiro ativismo
doutrinário, que apresenta o problema, identificado por Riccardo Guastini, de, “sob

parasitárias presentes em leis reforçadas pelo procedimento. Sep. de: Nos 25 anos da Constituição
da República Portuguesa de 1976. Lisboa: AAFDL, 2001, p. 8
150 Não se pode esquecer que a própria origem do direito antigo está na positivação de valores

morais, não sendo apenas regras simples de convivência. Segundo Fustel de Coulanges: "A cidade
havia sido fundada como uma religião e constituída como uma igreja. Daí sua força; daí também a
sua onipotência e império absoluto que exercia sobre seus membros. (...). A religião, que dera
origem ao Estado, e o Estado, que sustentava a religião, apoiavam-se mutuamente e formavam um
só corpo; esses dois poderes associados e vinculados constituíam um poder quase sobre-humano,
ao qual a alma e o corpo se achavam igualmente submetidos. (...)." COULANGES, Fustel de. A cidade
antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Trad. Jonas Camargo
Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 182. Ademais, não se pode olvidar o papel dos
valores religiosos na construção do direito medieval e dos próprios valores revolucionários em
França que inspiraram o direito constitucional moderno.
151 Deveras, se valores são subjetivos, a positivação deve indicar, literal ou sistematicamente, a

extensão e o conteúdo essencial do valor acolhido. Se isso não for possível, cabe ao legislador fazê-
lo e, supletivamente, se o sistema constitucional assim o admitir, como faz o brasileiro, cabe a
providência ao Judiciário em situações excepcionais. Não pode, porém, o Supremo Tribunal Federal
brasileiro, criar, por exemplo, uma Súmula Vinculante a partir do princípio da moralidade,
densificando-o no sentido de que nomear parente até o terceiro grau ofende a Constituição.
Tampouco parece razoável que o cientista jurídico tenha condições de densificar princípios tão
abertos como o da moralidade, como se pudesse realizar uma prova lógica de experimentação
social sobre o que a maioria dos indivíduos da sociedade entende como zona limítrofe do que é
moral e do que é imoral.
152 Cf. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p.

281.
153 Repetindo-se as palavras de Sampaio Dória, "não há, na ciência, enigmas indecifráveis, desde que

sejam suscetíveis de uma prova lógica." DÓRIA, Antonio de Sampaio. Principios constitucionaes. São
Paulo: São Paulo Editora, 1926, p. 16.
154 Como faz, dentre outros, Jorge Reis Novais. Cf., do autor, v.g., Direitos fundamentais e justiça

constitucional em estado de direito democrático. Coimbra: Coimbra Editora, 2012. p. 21. Admitindo a
dignidade humana como um valor autônomo passível de densificação doutrinária, cf., dentre outros:
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. MOREIRA, Vital. Constituição da república portuguesa anotada. 4.
ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, t. I, p. 197-9.
56

a aparência de um estudo científico e descritivo, encobrir-se uma ideologia


política.” 155
Desse modo, há que se concordar com Carlos Blanco de
Morais, no sentido de que o método científico, de matriz savignyana, ainda não foi
superado e continua a ser aplicado pelos Tribunais, com a complementaridade,
para a interpretação específica das normas constitucionais,156 das técnicas de
ponderação, tendo em vista a forte carga axiológica inerente a grande parte de
suas normas.157
Uma das grandes dificuldades na aceitação das teorias
jusnaturalistas ou neoconstitucionalistas (qualquer que seja o nome que se lhes
dêem) repousa justamente no facto de que elas abrem uma porta direta entre o
político e o jurídico, sem a mediação da interpretação jurídica.
Assim, não se pode conceber o neoconstitucionalismo como
uma manifestação ilegítima, mas poderá incorrer em uma ilegitimidade
constitucional se o método empregado afastar completamente o método científico,
abandonando a interpretação gramatical, sistemática e teleológica do dispositivo,
para alcançar diretamente “fins” de justiça, muitas vezes contra legem, bem como
se não observar, em sede de ponderação, os rigores da lógica jurídica, bem como os
deveres de enunciação de premissas, clareza, coerência e completude
imprescindíveis para o controle da argumentação jurídica formulada. 158

155 Cf. GUASTINI, Riccardo. Dalle fonti alle norme. Torino: Giappichelli, 1990, p. 133. Traduzimos.
Por isso, o jurista italiano Ricardo Guasttini diferencia as atividades de interpretação da atividade
doutrinária. A primeira seria científica, por buscar formular enunciados com a pretensão de
veracidade, ao passo que na segunda prevaleceriam os enunciados valorativos em detrimento dos
enunciados descritivos.
156 Considerando as peculiaridades da interpretação constitucional, e as situações de duvidosidade,

conforme identifica Konrad Hesse. HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da república
federal da alemanha. Tradução da 20.ª ed. alemã de Dr. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris Editor, 1998, p. 57.
157 MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional…cit., p. 437.
158 No mesmo sentido, observa Canotilho: "O combate ao positivismo através da radicalização

hermenêutica (na linha heideggeriana-gadameriana) conduziu, no seio da metódica constitucional,


a uma inversão metodológica e a uma transposição de planos em relação aos quais se fará um breve
alerta. Inversão metodológica: o intérprete, o problema e os topoi substituem-se à norma; a
«actividade produtiva » da jurisprudência quase que se coloca no mesmo plano da actividade
«produtiva» da legiferação; a interpretação é mais um «veículo da liberdade judicial» do que um
instrumento de aplicação jurídico-normativo. A posição que norteará o trabalho já foi atrás
sugerida: colocar a cabeça hermenêutica dos juristas sobre os pés juridico-constitucionais e firmar
o processo concretizador da lei fundamental sob uma metódica estruturante que, sendo pós-
positivista, não deixe de vincar bem a sua dimensão normativa." CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas
57

5. ATIVISMO JUDICIAL

A interpretação aberta estimulada pelo novo


constitucionalismo associada a outros elementos de ordem política e econômica,
provocaram a hipertrofia do Poder Judiciário, a partir do empoderamento do juiz e
da intensificação de sua atividade criativa, inovando o direito mediante a dedução
de regras a partir de princípios, muitas vezes vagos, indeterminados e pouco
delimitados.
Tal hipertrofia se mostra intrinsecamente ligada a seis
fatores pós-modernos: à axiologização constitucional, marcada pela incorporação
nos textos constitucionas de normas de conteúdo vago, indeterminado, que
veiculam valores a serem delimitados e explicitados pelos poderes constituídos; à
recepção de teorias que propõe, em algum grau, a superação do positivismo,
fortemente influenciadas por jusfilósofos e juristas que se debruçam sobre tais
normas predominantemente axiológicas, em especial os direitos fundamentais; e à
incapacidade de os demais poderes e, talvez, do próprio Estado social pós-
moderno, atenderem às sempre crescentes demandas pela realização de direitos e
efetivação da justiça social; uma perda de referencial do princípio clássico da
separação de Poderes e dos papéis historicamente atribuídos aos signatários das
funções legislativa, administrativa e jurisdicional, especialmente nos sistemas civil
law; a uma série de construções lógico-jurídicas que buscam autorizar maior
interferência na discricionariedade legislativa, bem como legitimar a atividade
criativa do poder jurisdicional; e, finalmente, a confortável e poderosa condição de
deter a última palavra sobre a interpretação e a aplicação do Direito.
Com efeito, a interpretação aberta propiciada e exigida pelo
conteúdo axiológico dos novos textos constitucionais e legais, os quais exigem do
aplicador do direito certa densificação, atraem para este último o ônus de fazer
escolhas de cunho subjetivo, 159 o que inclui a prática ilegítima, que passou a se
observar no Brasil, de decisões contra a Constituição.160

constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra editora, 2001, p. 60.


159 Cf. BACHOF, Otto. Estado de direito e poder político. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra.

Coimbra, Coimbra ed., v. 1, LVI, 1996, p. 10.


160 Gilberto Bercovicci já previa tais riscos. Cf. BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estado

e constituição. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 309-10.


58

Exemplo de um criacionismo perigoso se deu com a edição


da Súmula Vinculante nº 13161 pelo STF. No debate de sua aprovação162, restou
clara a intenção do Tribunal em extrair um conteúdo dos princípios da moralidade
e da impessoalidade previstos no artigo 37 da CRFB-88.163 Segundo a
interpretação adotada, a nomeação de parentes para ocupar cargos de confiança
ofenderia os princípios da moralidade e da impessoalidade. O texto da Súmula vai
além do nepotismo: veda igualmente que dois parentes sejam contratados para
trabalhar no mesmo órgão, ainda que inexista relação de subordinação entre eles.
No entanto, a adoção pelo Poder Judiciário de um recorte
objetivo de princípios subjetivos, como a moralidade e a impessoalidade, esbarra
na usurpação de competência dos demais Poderes e em seu déficit de legitimidade
democrática. Deveras, ao estabelecer que apenas parentes até o terceiro grau da
autoridade nomeante ou de outro servidor comissionado do órgão, pressupõe o
julgador que todas essas hipóteses decorrem de um ato de imoralidade ou de
impessoalidade. Em sentido contrário, todas as demais hipóteses de nomeação
(por amizade ou por interesse sexual, por exemplo) seriam presumidamente
possíveis. Ao assim proceder, abandona o tribunal seu papel de julgar casos
concretos em que deva sindicar a existência de uma situação de moralidade, para
fazer um recorte, por meio de generalização, fundado na moral comum, não na
moralidade administrativa, de conteúdo e âmbito de incidência mais delimitado.164
Além do criacionismo, o ativismo judicial chega a contrariar
o próprio texto da Constituição. No julgamento da ADPF 132, o STF reconheceu a
união estável entre duas pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, em
afronta expressa ao artigo 226, §3º, da CRFB-88, imprimindo ao artigo 1723 do

161 Eis o teor da súmula: "A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral
ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma
pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo
em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e
indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal."
162 Cf. Debate de aprovação da Súmula Vinculante nº 13. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/

arquivo/cms/jurisprudenciaSumulaVinculante/anexo/SUV_11_12_13__Debates.pdf>. Acesso em:


22 out. 2017.
163 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,


impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)
164 Cf. NIMER, Beatriz Lameira Carrico. Ação popular como instrumento de defesa da moralidade

administrativa: por uma nova cidadania. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 110.
59

Código Civil brasileiro interpretação conforme à Constituição.165 Já no julgamento


do HC 124306/RJ, a Primeira Turma do STF, conduzidos pelo voto do Min. Roberto
Barroso (conhecido pela sua adesão extrema ao "neoconstitucionalismo") declarou
que os artigos 124 a 126 do Código Penal, que criminalizam o aborto, são
inconstitucionais se alcançarem a gestação até o terceiro mês (interpretação
conforme), posição contrária e inovadora mesmo no âmbito do STF. Em matéria
administrativa, chamou à atenção o julgamento do RE 612975/MT, em que a corte,
negando a interpretação literal e sistemática do texto constitucional, que prevê a
aplicação do limite remuneratório previsto no art. 37, XI, da Constituição à soma
dos cargos acumuláveis, determinou sua incidência isolada por aplicação de
princípios pretensamente implícitos.166
É verdade, como afirma José de Melo Alexandrino, que a
“Ciência do Direito ainda não dispõe de um modo seguro para saber o que é julgar
em Direito Constitucional”.167 No entanto, isso não permite ao julgador negar o
texto escrito da norma, ou, num sistema constitucional que oferece múltiplas
escolhas ao legislador, afastar aquela que lhe parece mais apropriada em
detrimento de outra, retirada diretamente a partir de um princípio.168
E isso não é possível porque, na maioria dos modelos
ocidentais, a função legislativa é confiada ao Parlamento, não ao juiz. Mesmo nos
Estados Unidos, onde os juízes podem ser eleitos em alguns Estados, há
legitimidade democrática para o exercício da função jurisdicional, não para o
exercício da função legislativa. Não obstante, a existência de uma legitimidade
democrática somada ao poder do stare decisis, típico da common law, não isenta
aquele sistema das discussões em torno da proatividade judicial.169

165 Ocorre que tanto o artigo 1723 do Código Civil quanto o artigo 226, §3º, da CRFB-88, possuem
praticamente a mesma redação: "É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o
homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com
o objetivo de constituição de família." (grifo nosso)
166 Curioso é notar que quase todos os 11 Ministros acumulam as funções da magistrutura com o

magistério, expondo o perigoso risco de o ativismo implicar na "legislação em causa própria".


167 ALEXANDRINO, José de Melo. Jurisprudência da crise. Das questões prévias às perplexidades. In:

O tribunal constitucional e a crise: ensaios críticos. RIBEIRO, G. A.; COUTINHO, L. P. (orgs.). Coimbra:
Almedina, 2014, p. 67.
168 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional…cit., p. 436, nt. 968.
169 Cf. KMIEC, Keenan D. The Origin and Current Meaning of "Judicial Activism". California Law

Review, v. 92, n. 5, 2004, p. 1444 et seq.


60

Contudo, como assevera Conrado Hübner Mendes, a


legitimação democrática não se esgota na eleição e na ideia de maioria, podendo a
democracia também ser entendida como
um conjunto variado de princípios concorrentes de tomada de
decisão, que podem se inter-relacionar de múltiplas maneiras. O
quadro monolítico da supremacia parlamentar não esgotaria as
alternativas democráticas igualmente válidas de
institucionalização.170
Isso também não exclui a possibilidade de os Estados
conferirem legitimidade para os juízes exercerem a função legislativa. Kelsen já
admitia essa possibilidade, embora reconhecesse que quantos maiores poderes
forem conferidos aos juízes, menor será a segurança jurídica.171
Em um ou outro caso, porém, tal legitimação deve estar
radicada na consciência geral da sociedade política, e não pode ser uma decisão
construída unilateralmente pelos tribunais. Portugal e Brasil, por exemplo,
compartilham do mesmo sistema civil law que não confere ao juiz um papel tão
acentuado na criação do direito, bem como compartilham a mesma estrutura
político-organizacional de escolha dos membros do Poder Judiciário, que se dá
mediante um procedimento complexo de indicações e nomeações efetivadas
diretamente pelos órgãos formados por membros eleitos diretamente pelo
sufrágio popular. Logo, há uma legitimidade democrática indireta, conferida tão
somente para o exercício da função jurisdicional, não legislativa.

170 MENDES, Conrado Hübner. Constitutional courts and deliberative democracy. Oxford: Oxford
University Press, 2013, p. 224.
171 Segundo Kelsen, Se aos tribunais é conferido o poder de criar não só normas individuais, mas

também normas jurídicas gerais, eles entrarão em concorrência com o órgão legislativo instituído
pela Constituição e isso significará uma descentralização da função legislativa. Sob este aspeto, isto
é, com respeito à relação entre o órgão legislativo e os tribunais, podem distinguir-se dois tipos de
sistemas jurídicos tecnicamente diferentes. Segundo um destes tipos, a produção de normas
jurídicas gerais está completamente centralizada, quer dizer, é reservada a um órgão legislativo
central e os tribunais limitam-se a aplicar aos casos concretos, nas normas individuais a produzir
por eles, as normas gerais produzidas por esse órgão legislativo. Como o processo legislativo,
especialmente nas democracias parlamentares, tem de vencer numerosas resistências para
funcionar, o Direito só dificilmente se pode adaptar, num tal sistema, às circunstâncias da vida em
constante mutação. Este sistema tem a desvantagem da falta de flexibilidade. Tem, em
contrapartida, a vantagem da segurança jurídica, que consiste no facto de a decisão dos tribunais
ser até certo ponto previsível e calculável, em os indivíduos submetidos ao Direito se poderem
orientar na sua conduta pelas previsíveis decisões dos tribunais. O princípio que se traduz em
vincular a decisão dos casos concretos a normas gerais, que hão de ser criadas de antemão por um
órgão legislativo central, também pode ser estendido, por modo conseqüente, à função dos órgãos
administrativos. Ele traduz, neste seu aspeto geral, o princípio do Estado-de-Direito que, no
essencial, é o princípio da segurança jurídica.”. (sublinhou-se)KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.
Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 175-6.
61

Assim, em ambos os sistemas, situações como a Súmula


Vinculante n.º 13, do Supremo Tribunal Federal brasileiro, que extrai do conteúdo
do princípio da moralidade a regra de que não se pode nomear para cargo público
parente até o terceiro grau, são manifestações de um ativismo judicial.
De fato, determinações desse tipo assumem o caráter de
norma geral e abstrata, a qual, diversamente da norma especial e concreta - como
as decisões judiciais - demanda interpretação e subsunção fática. E, no sistema
judicial brasileiro, assim como em diversos sistemas constitucionais da civil law,
somente o titular da função legislativa pode editar normas gerais e abstratas. No
caso brasileiro, o poder constituinte incumbiu apenas os Poderes Legislativo e
Executivo do exercício da função legislativa.
Em segundo lugar, a densificação de princípios abertos, tais
como a moralidade e a impessoalidade, requerem inexoravelmente a
intermediação do legislador, pois demandam escolhas de natureza política.
Apenas admitir-se-iam decisões judiciais aplicando-se diretamente princípios
abertos, caso houvesse um consenso geral radicado na consciência da coletividade.
Não é o que ocorre em torno da conceção sobre a moralidade ou não de se nomear
parentes para cargo de confiança. Observe-se que o próprio qualificativo "de
confiança" excepciona e relativiza o princípio da pessoalidade, uma vez que tal
requisito pressupõe a escolha de pessoa específica, em quem se confia. Essa
natureza peculiar da nomeação para cargo de confiança aponta, para parte da
sociedade, como hipótese moral de nomeação de parentes, com a ressalva - para
alguns -, de que a contratação não tenha sido exclusivamente pela condição de
parentesco, mas pelas características e aptidão do nomeado para o cargo. Certa ou
errada, o facto é que há divergência no âmbito da sociedade acerca do alcance do
conteúdo de certo princípio, cabendo sua escolha à própria sociedade, por meio
dos representantes eleitos justamente para expressá-la.
Feitas essas considerações, a despeito de outras
conceituações doutrinárias acerca do fenômeno172, a expressão ativismo judicial173

172 A doutrina também se refere a juristocracy. Cf. HIRSCHL, Ran. The political origins of the new
constitutionalism. Indiana Journal of Global Legal Studies, v. 11, n.º 1, art. 4º. Disponível em:
<http://www.repository.law.indiana.edu/ijgls/vol11/iss1/4>. Acesso em: 11 jun. 2017, p. 286. Cf.
KMIEC, Keenan D. The Origin and Current Meaning of "Judicial Activism". California Law Review, v.
92, n. 5, 2004, p. 1463 et seq.
173 A expressão ter-se-ia adotada em 1947, pelo historiador americano Arthur Schlesinger Jr., numa
62

que será empregada refere-se exclusivamente à invasão inconstitucional pelo


Poder Judiciário do campo reservado à função legislativa que não seja
excepcionalmente a ele atribuída dentro do quadro das chamadas funções atípicas.
174, 175

matéria em que criticava a atuação de juízes americanos na promoção do bem-estar social. Cf.
KMIEC, Keenan D. The Origin and Current Meaning of "Judicial Activism". California Law Review, v.
92, n. 5, 2004, p. 1446. No mesmo sentido, Elival da Silva Ramos o conceitua como o “exercício da
função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe,
institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas
(conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Há,
como visto, uma sinalização claramente negativa no tocante à práticas ativistas, por importarem na
desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes.” RAMOS,
Elival da Silva. Ativismo judicial…cit., p. 129.
174 No mesmo sentido, Elival da Silva Ramos o conceitua como o “exercício da função jurisdicional

para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao
Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e
controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Há, como visto, uma sinalização
claramente negativa no tocante à práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade
típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes.” RAMOS, Elival da Silva. Ativismo
judicial…cit., p. 129.
175 Afinal, uma separação rígida das funções estatais seria logicamente impossível, pois isso

implicaria que o Executivo administrasse o Legislativo, e o Legislativo impusesse normas que


afetassem a estrutura organizacional dos demais Poderes. Por isso, a separação dos poderes
assume um equilíbrio com uma separação de Poderes (órgãos) que requer a atribuição a cada um
deles de funções atípicas. Em virtude de tais funções – as quais, como regra, devem ser
expressamente previstas no texto constitucional – o Poder Judiciário pode legislar e administrar, o
Poder Legislativo pode julgar e administrar, e o Poder Executivo pode legislar e julgar (embora não
se tenha notícia de experiência de atribuição de um efetivo poder jurisdicional ao Poder Executivo
no direito comparado, em situações de normalidade do Estado de direito).
63

PARTE 1 - LIBERDADE DO LEGISLADOR E VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL

A vinculação dos órgãos legislativos significa também o


dever de estes conformarem as relações da vida, as relações
entre o Estado e os cidadãos e as relações entre os
indivíduos, segundo as medidas e directivas materiais
consubstanciadas nas normas garantidoras de direitos,
liberdades e garantias. Neste sentido, o legislador deve
“realizar” os direitos, liberdades e garantias, optimizando a
sua normatividade e actualidade. Muitos direitos, liberdades
e garantias carecem de uma ordenação legal [...]; outros
pressupõem dimensões institucionais, procedimentais e
organizatórias “criadas” pelo legislador [...].176

176CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra:
Almedina, 2003, p. 432.
64

A origem dos direitos fundamentais, à época concebidos na


clássica fórmula de declaração de direitos do homem, esteve relacionada à proteção
dos indivíduos em face do poder estatal. Nesse sentido, seu reconhecimento pelo
Estado moderno deu-se especialmente de forma negativa, como vedações impostas
ao referido poder, o qual, no Estado absolutista, apresentava-se concentrado nas
mãos do monarca.
Em situação de tal monopólio, as diversas funções do Estado,
como já havia teorizado Aristóteles e outros pensadores que o sucederam,
apresentavam-se confusas, especialmente as funções administrativa e legislativa,
porquanto o Chefe do Estado não fazia qualquer distinção entre normas de efeitos
concretos ou normas gerais e abstratas, bastando sua vontade de que algo se
efetivasse.
Com o desenvolvimento do constitucionalismo, especialmente
sob a influência dos iluministas, a que seguem as revoluções americana e francesa,
vai-se consolidando a prática de adoção, pelos Estados modernos, de uma
Constituição escrita, onde se declarem os direitos dos indivíduos face ao poder que,
em tese, legitimaram e os condicionam, bem como uma divisão das funções estatais
entre órgãos compostos por pessoas distintas.
Dentre elas, a função legislativa apresenta certa
proeminência, pois lhe cabe o papel de "continuar" a criação iniciada pela
Constituição. Produzida por órgãos dotados de legitimidade, a lei – em sua acepção
de norma geral e abstrata -, é tida como único instrumento jurídico-formal apto a
criar, modificar e extinguir direitos, até o reconhecimento da força normativa da
Constituição.
O reconhecimento dessa normatividade das disposições
constitucionais criou o problema da incompatibilidade da lei com a norma
constitucional, dotada de hierarquia superior.
Diante disso, o órgão encarregado da função legislativa pela
ordem constitucional vê-se obrigado a se abster de editar leis contrárias às normas
constitucionais. Surge, aí, o problema da vinculação do órgão produtor da lei à
Constituição.
65

1.1. A CONSTITUIÇÃO E A LEI

O tema da vinculação do legislador à Constituição envolve


conhecer as relações entre a Constituição e a lei. Podem-se apontar ao menos dois
tipos de relações: de legitimação e de hierarquia.
A legitimação da Constituição envolve o questionamento
acerca da identidade entre a vontade dos destinatários das normas constitucionais
e seu conteúdo. Já a prevalência das normas constitucionais diante de normas
emanadas pelos poderes constituídos, ainda que estas guardem maior relação de
legitimação que aquelas, é problema a ser perscrutado sob o aspeto da hierarquia
de normas, como se verá a seguir.

1.1.1. A legitimação da Constituição

Canotilho apresenta diversas formas de legitimação


constitucional, convergindo sua análise para a solução destas questões centrais:
O problema nuclear da legitimação de uma ordem
constitucional deriva do facto de a constituição, como
complexo normativo, consagrar um "domínio" e apontar
"fins" políticos. Como se justifica e conserva esse domínio?
Pelo "poder"? Pelo "consenso? Uma "ordem constitucional"
deve "construir-se" através de uma práxis comum,
conscientemente escolhida, ou deve "reconstruir-se"
mediante o estabelecimento de regras e pressupostos de
comunicação, de modo a atingir-se um "consenso" entre
participantes livres e iguais? E qual o "contexto" para a
realização deste consenso? O statu quo social? O "sistema"?
Uma "práxis revolucionária"?177

Adotando a conceção de Habermas acerca da legitimidade


como "a dignidade de reconhecimento de uma ordem constitucional", Canotilho
ressalta ainda seus dois aspetos centrais: a legitimidade processual e a
legitimidade normativo-material. Com isso, defende o autor que uma Constituição
programática representa uma mudança de paradigma na própria interpretação
constitucional, mediante a qual não apenas a justiça ou correção procedimental
deve ser observada, mas igualmente os fundamentos normativos materiais da
Constituição.178

177 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 1994, cit., p. 18.
178 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 1994, cit., p. 21.
66

Com efeito, essa característica é o que difere o Estado social


e democrático de direito do mero Estado legalista, no qual a justiça estaria
assegurada, garantindo-se tão somente uma "justiça procedimental".
Se uma das diferenças apontadas pela doutrina entre Estado de direito e Estado de
legalidade está no equilíbrio entre meios e fins, um Estado que adota uma
Constituição programática - com normas indicadoras dos fins a serem perseguidos
- subleva a importância dos fins, acentuando a preocupação com o resultado justo,
em detrimento do mero procedimento justo, aproximando-se da ideia de justiça da
Constituição proposta por Rawls.179
Destarte, no Estado de direito social e democrático, fins e
meios, justiça material e justiça procedimental devem concorrer como aspetos de
legitimidade a serem perseguidos e considerados pelo legislador e intérpretes
constitucionais. Não se trata, porém, de colocá-los em uma balança, para se atingir
o equilíbrio, pois cada um desses aspetos deve ser buscado em sua totalidade. Não
é correto pensar que maior justiça material signifique necessariamente maior
justiça procedimental. Esse tem sido, talvez, o grande equívoco do "decisionismo
neoconstitucional", segundo o qual, a busca pela justiça material autoriza o
abandono da justiça procedimental. Tal prática se assemelha a um "Estado sem
direito", e não a um "Estado de direito". Neste, ambos são perseguidos
concomitantemente - justiça material e justiça procedimental -, como forma de
controle recíproco da atividade do aplicador da norma. Naquele, cada intérprete
aplica as leis segundo seus valores e sua própria conceção de justiça, sem qualquer
controle procedimental.
A par do material e procedimental, enquanto perspectivas
estrito jurídicas, a legitimação constitucional pode ser aferida sob outros aspetos,
como a política, filosófica e sociológica.
Sob a ótica eminentemente política, a legitimação da
Constituição consiste na existência de um poder do Estado sobre os cidadãos por
estes aceitos. Esse aspeto da legitimação constitucional, porém, não prescinde da
consideração dos demais, pois o poder de a Constituição sujeitar os órgãos de

179Segundo John Rawls, uma constituição "justa" deve assegurar um procedimento justo que
garanta o exercício da liberdade individual em termos igualitários, bem como deve ser o
ordenamento mais idôneo a assegurar um "sistema de legislação justa e eficaz". RAWLS, John. A
theory of justice. rev. ed. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1999, p. 194.
67

soberania na execução de imposições constitucionais, o alcance do sentido dos


direitos fundamentais, a constitucionalização e normatividade dos direitos a
prestações, bem como das normas programáticas, exige considerar as demais
perspectivas filosófico e sociológico-jurídicas da legitimação. Isso se torna
especialmente visível no exemplo de contradições e conflitos entre essas próprias
manifestações.
De fato, o mesmo fenômeno de legitimação se observa
relativamente aos poderes constituídos, igualmente legitimados. O poder
constituinte e os poderes constituídos atuam mediante implícita autorização de
seus destinatários, que compõem a mesma sociedade subjacente à circunscrição
alcançada pelas esferas de poder.
É o que ocorre, v.g., quando o Poder Legislativo pretende
promover um corte nas pensões, mas esbarra em uma determinação constitucional
que a limite. O poder legislativo, assim como o constituinte, são democraticamente
legitimados para promover tais alterações. Mesmo, porém, havendo identidade
entre a sociedade que legitima a ambos, como explicar a existência de uma
contradição entre a vontade do poder legislativo e a vontade do poder
constituinte?
Isso sucede por duas ordens de fatores. Primeiro, porque
tanto um quanto outro poder apresenta certa autonomia de vontade em relação
aos seus mandatários,180 visto que a legitimação-representação na sociedade
política moderna não decorre do modelo imperativo de mandato. Destarte, a
vontade do representante não coincide com a do representado, ainda que aquele
persiga os interesses deste. Em segundo lugar, a decisão política tomada pelo
representante constituinte positiva-se no mais das vezes de maneira estática, mas
a vontade do representado é dinâmica e condicionada às conjunturas políticas,
sociais e econômicas. Ou seja, o povo representado pode mudar seu entendimento
que embasou uma decisão política tomada na forma de ato constituinte.181

180 Cf. PITKIN, Hanna Fenichel. The concept of representation. Berkley: University of California Press,
1967.
181 Como afirma Canotilho, "poderá haver conflitos entre a legitimidade normativo-consititucional e

a legitimidade mediada do legislador, quer porque a intervenção legislativa se orienta por padrões
materiais diferentes dos plasmados na constituição, quer porque o legislador não toma a iniciativa
de dinamizar as 'imposições directivas' da lei fundamental. As 'fraquezas' da constituição dirigente
(e do direito constitucional) aparecem neste contexto: a directividade normativo-material da lei
fundamental pode não ser 'actualizada' ou pode ser mesmo contrariada pelo órgão (ou órgãos) de
68

Se ambas, portanto - Constituição e leis - gozam de igual


legitimidade, a relação de contradição entre si não pode ser resolvida pescrutando-
se apenas o aspeto político da legitimação.
Tal conflito denota a contradição existente entre democracia
e maioria, na medida em que o mesmo povo que "aprovou" a Constituição por
vezes aprova medidas contra ela própria. Daí porque o elemento político da
legitimação deve servir ao intérprete com ressalvas.

1.1.2. A função da Constituição e a função da lei

Em sede de pré-compreensões, reconhecemos a Constituição


fundada no Estado de direito e suas variantes como uma ordem-fundamento não
exaustiva, na medida em que, contemplando decisões relevantes, não consegue
prever todas as decisões possíveis com que o Estado possa se deparar, deixando ao
legislador, inevitavelmente, uma atividade criativa, e não de mera descoberta
normativa.
É claro que o princípio do Estado de direito comporta
variantes diversas, e sua moldura contempla diversas funções e estruturas
constitucionais. O facto é que uma breve análise superficial das Constituições
ocidentais continentais vai apontar mais semelhanças que diferenças em ambos os
aspetos. Explicitações e conformações de caráter social ou democrático do Estado
certamente agregam ou sublevam funções a algumas constituições em detrimento
de outras, mas em linhas gerais, considerando que o movimento constitucional
possui forte inclinação globalizante, poucas são as diferenças funcionais e
estruturais verificáveis.
Já nos sistemas de tradição common law, como se analisará
adiante, a função e estrutura da Constituição e dos poderes constituídos
apresentam nuances distintas, em que pese ao movimento tendente à
desconsideração de tais diferenças e aproximação de ambos os sistemas.
A Constituição possui, assim, uma função normativa
inaugurante e não exaustiva, na medida em que: a) reconhece a vinculatividade de
preceitos morais ou constantes de ordenação anterior ou supraestatal; b) organiza

direcção política que invocam a seu favor a 'legitimidade renovada' do apoio popular." CANOTILHO,
José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 1994, cit., p. 26-7.
69

as competências, formas e processos de exercício do poder;182 c) impõe limites à


atuação dos poderes constituídos; d) estabelece diretrizes de atuação e fins a
serem perseguidos pelos poderes constituídos; e) prescreve direitos e deveres
dirigidos aos poderes constituídos, ao seu povo, organizações coletivas e
população.
Por outro lado, embora não se tenha adentrado o debate
proposto por Canotilho acerca dos dois modelos de Constituição (jurídica e
política), igualmente resta implícita a pré-compreensão da normatividade plena da
Constituição, mesmo quanto às suas normas programáticas.183
Já a função da lei, conquanto igualmente possa apresentar
variações em cada sistema constitucional, em termos clássicos apresenta uma zona
de intersecção com a função da Constituição, pois ambas destinam-se a criar
direitos e obrigações, impondo comportamentos omissivos ou comissivos. 184
O termo lei deriva do latim lex, legis, de legere (escrever).
Etimologicamente significa o que está escrito. Seu sentido histórico incorpora as
ideias de informação e de prescrição. Assim, toda lei é uma proposição (conjunto de
palavras com um significado) que objetiva a informação de outrem (informação) e
a modificação de seu comportamento (prescrição).185
Na qualidade de “estrutura proposicional que enuncia uma
forma de organização ou de conduta”,186 ou simplesmente de um conjunto de
palavras que exprime que algo deve ser ou acontecer187, o uso consagrado do termo
se confunde - talvez por influência inglesa, que emprega o mesmo termo (law) para
se referir à norma abstrata e ao ordenamento jurídico - com as noções de direito
(conjunto de normas) e de norma jurídica.188

182 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., 1994, p. 151.
183 Ibid., 1994, p. 14.
184 É sempre oportuno citar a definição dada por Locke, acerda do poder legislativo, segundo o qual

teria a função e direito “de estabelecer como se deverá utilizar a força da comunidade no sentido da
preservação dela própria e dos seus membros. É, portanto, o poder supremo de editar leis,
consistente na delegação de poderes pelo povo a seus representantes, através da renúncia da
liberdade de seu estado de natureza em troca de regras que possam lhe garantir a propriedade, a
paz e a tranqüilidade. Legislar é produzir leis."LOCKE, John. Two treatises of government... cit. p.
313. Traduzimos.
185 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica.trad. Fernando P. Baptista e Ariani B. Sudatti. Bauru:

Edipro, 2001, p. 80.


186 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 95.
187 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. trad. J. B. Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes,

1999. p. 4-10 e BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica... cit. p. 72-5.


188 Segundo Otto Mayer, a função da lei seria o estabelecimento de regras gerais e obrigatórias.
70

Sem prejuízo de seu uso vulgar, a expressão pode assumir


diferentes e específicos significados em cada ordenamento. No Brasil, v.g., a par de
seu sentido comum, o termo lei pode expressar dois sentidos técnico-jurídicos.
Pelo primeiro, lei seria “toda espécie normativa primária produzida no nível
legislativo, diretamente vinculada às normas constitucionais e vinculante das
normas regulamentares, sendo estas e aquelas excluídas do conceito”. Pelo
segundo, ainda mais estrito, o termo lei se refere a três das seis espécies
normativas primárias previstas no artigo 59 da CRFB-88: as leis ordinárias, as leis
complementares e as leis delegadas. 189
Mas, se há tantos significados para o termo lei, como
delimitar semanticamente sua função? Segundo uma primeira corrente, o elemento
característico da lei seria a generalidade. A lei seria toda norma com destinatários
diversos, todo comando dirigido não a um caso específico, mas a quaisquer casos
que se enquadrem em sua descrição, projetando-se, inclusive, para o futuro.190
Uma segunda corrente, porém, não considera a generalidade
como caráter essencial das leis, com base, resumidamente, nos seguintes
fundamentos: a lei pressuporia uma força protetora dos cidadãos, o que não é
garantido pela generalidade das leis, mas pelo facto de emanarem de uma
autoridade superior. Além disso, o caráter geral das leis deve-se à finalidade do
Estado de regular as relações sociais, o que não impede que o Estado edite leis
específicas ou concretas (no Brasil, chamadas de “leis de efeitos concretos”).191

MAYER, Otto. Le droit administratif allemand. v. 1. Paris: Giard & Briére, 1906, p. 114. Traduzimos.
Já Jellinek enfatiza o caráter abstrato da lei: “[legislação] é o poder de editar uma norma jurídica
abstrata que regula uma pluralidade de casos ou um direito individual”. JELLINEK, Georg. Teoria
general del estado. trad. Fernando de Los Rios. Mexico, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2004, p.
595. Traduzimos.
189 Sérgio Resende de Barros define como espécies normativas primárias todas as normas

imediatamente subordinadas à Constituição. Cf. BARROS, Sérgio Resende de. Noções sobre espécies
normativas. Disponível em: <http://www.srbarros.com.br/pt/nocoes-sobre-especies-
normativas.cont>. Acesso em: 10 jul. 2017.
190 Carré de Malberg explica que a teoria da generalidade da lei deita suas raízes na antiguidade

grega, sendo concebida por Aristóteles (“a lei sempre dispõe por via geral e não prevê os casos
acidentais”), depois por Ulpiano (“Jura non in singulas personas, sed generaliter constituuntur”) e
também por Rousseau (“a lei é expressão da vontade geral”). CARRÉ DE MALBERG, Raymond.
Contribution à la théorie générale... cit. t. 1. p. 290. Traduzimos. Tal fundamento, explica o autor,
apresenta duas justificativas: para alguns, por uma analogia das leis jurídicas com as leis naturais
(estas, sempre dotadas do caráter de constância e de generalidade); para outros, uma superação da
arbitrariedade dos mandamentos individuais dos antigos governantes. Ibid., p. 292-3.
191 Essa corrente é seguida por Paul Laband, Georg Jellinek e Carré de Malberg. Cf. CARRÉ DE

MALBERG, Raymond. Contribution à la théorie générale... cit. t. 1., p. 294-300.


71

Dessa discussão exsurge a distinção entre lei formal e lei


material, refutada por Carré de Malberg e por outros autores. Lei formal seria a
norma emanada do Poder Legislativo, editada segundo o procedimento legislativo
previsto. Já lei material seria toda norma jurídica instituída que veicula “matéria
de lei”.192 Tal definição é passível de críticas, pois, para que tenha sentido, há a
necessidade de se estabelecer o que vem a ser “matéria de lei”. A propósito, Carré
de Malberg observava que tal distinção não era possível na França, tendo sido
abandonada pelas Constituições francesas. Nesse sentido, conclui: “Lei, no sentido
constitucional da palavra, é, pois, toda decisão que se toma em forma legislativa pelo
órgão legislativo".193
Em outros ordenamentos, porém, tal qual no português, no
brasileiro e no italiano, a distinção é relevante, ao contrário do que afirmam alguns
autores.194 De fato, seguindo o pensamento de Carré de Malberg, a generalidade e a
abstração não são suficientes para se reconhecer a lei em sentido material. Há que
se fazer presente outro requisito: la potenzialità innovativa normativa (potencial
inovador normativo), ou seja, a capacidade de inovar o ordenamento jurídico
vigente. Esse é, tal como ocorre no direito italiano, o conteúdo que define, no
direito brasileiro, o que vem a ser “matéria de lei”.195
Assim, a lei formal e a lei material acentuam, cada uma,
aspetos presentes no que se deveria conceber como lei típica ou lei total: a
legitimidade democrática, presente apenas na lei formal, e o potencial inovador
normativo, presente na lei material.196

192 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional... cit., p. 189.
193 CARRÉ DE MALBERG, Raymond. Contribution à la théorie générale... cit. t. 1. p. 377. Traduzimos.
194 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional... cit., p. 189.
195 Cf. CELSO, M. Mazziotti di; SALERNO, G. M. Manuale di diritto costituzionale. 4. ed. Padova:

CEDAM, 2007, p. 109. Deveras, o facto de um ordenamento não prever expressamente quais
matérias são reservadas a cada esfera de poder (matérias jurisdicionais, legislativas e
administrativas) não impede seu reconhecimento implícito ou a construção de uma noção
universalizável de função legislativa. No caso brasileiro, ela é demarcada no artigo 5º, inciso II, da
CRFB-88, que prevê a exigência de lei para constituição, modificação e extinção de direitos.
196 Com efeito, os conceitos de lei material e de lei formal devem ser entendidos como anomalias

jurídicas, pois divisam o indivisível: a lei, definível como o comando inovador da ordem jurídica,
emanado do Poder Legislativo, segundo o processo legislativo, é decomposta em seus dois
elementos essenciais e complementares, recebendo cada qual vida própria, o que apenas o
artificialismo das proposições normativas é capaz de admitir. Em regra, toda lei é, ao mesmo tempo,
lei formal e lei material. Admitindo-se uma sem a outra, impõe-se reconhecer que uma é o que a
outra não é, e que uma tem o que a outra precisa ter para ser o que parece ser. Em outras palavras,
a lei formal é a lei material sem seu potencial normativo inovador. Ao mesmo tempo em que
apresenta a legitimidade democrática, falta-lhe o conteúdo de lei. Do mesmo modo, a lei material é a
72

A CRFB-88 reconhece essa dualidade ao prever, e.g., atos


normativos que, embora não sejam “lei em sentido formal”, têm “força de lei”.197
Afinal, qual seria a “força da lei” senão o poder de criar e de extinguir direitos?
Constituindo esse conteúdo - o potencial inovador normativo – a força da lei, há
que se concluir que imprimir “força de lei” ao que lei não é, é o mesmo que
reconhecê-lo como lei em sentido material.
Considerando o termo lei como referente à lei formal e
material, a generalidade e a abstração lhe são inerentes, pois espelham
respetivamente os aspetos essenciais da lei: a legitimidade democrática e o
potencial normativo inovador. O caráter democrático que legitima a lei é
incompatível com a ideia de lei individual, o que afrontaria a isonomia ínsita à
democracia. Já a abstração reflete o potencial normativo inovador, pois a lei deve
preceder o caso concreto. Embora as leis possam retroagir, a regra geral é seu
caráter proativo. Se inovar implica criar, extinguir ou modificar direitos, é forçoso
concluir que apenas os comandos abstratos são aptos a produzir tais efeitos no
ordenamento jurídico. A sentença proferida pelo juiz, mesmo nos países da
common law, como se melhor analisará no tópico a seguir, não cria propriamente
um direito, mas o extrai do ordenamento vigente, dos princípios gerais do direito,
da equidade e dos costumes.198
Pode-se dizer, portanto, que a lei tem a função de inovar a
ordem jurídica, mediante comandos gerais e abstratos expedidos pelo órgão
representativo da coletividade investido de tal poder.199

lei formal despida de legitimidade.


197 É o caso das medidas provisórias no Brasil, previstas no artigo 62: “Em caso de relevância e

urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo
submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.”
198 Como demonstra Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em precioso incurso na evolução do conceito

de lei, esta era considerada expressão da razão pelo pensamento revolucionário do séc. XVIII.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 21-
56. Na conceção liberal, era eminentemente apolítica. Ibid., p. 54. Para Rousseau, a lei não seria
qualquer decisão arbitrária do soberano, já que a finalidade da lei seria a justiça. A lei, portanto,
deveria expressar a vontade geral. Distingue a vontade geral, fruto dos ditames da razão que resulta
das vontades individuais, da vontade de todos, soma das vontades dos particulares sobre seus
interesses. No séc. XX, contudo, o racionalismo liberal exacerbado dá lugar a um descortinamento
da realidade. Com a própria evolução do conceito de democracia e a idéia de representatividade,
torna-se cada vez mais difícil a rejeição de que a lei é a vontade de poucos, de uma minoria que
representa a maioria. Ibid., p. 79-128.
199 O termo comando é definido por Bobbio como a proposição que pretende influir no

comportamento alheio para modificá-lo. BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica... cit. p. 75.
73

1.1.3. A função legislativa nos sistemas civil law e common law

Como é sabido, o sistema civil law se caracteriza por uma


mais delineada separação entre as funções legislativa e jurisdicional, corolário da
teoria clássica da separação de poderes de Montesquieu. Em tal ordem, a função de
inovação da ordem jurídica, em atividade complementar ao poder constituinte
originário, subordinada à Constituição, é função exclusiva do poder legislativo
constituído.
É sempre oportuno citar a definição dada por Locke, acerca
do poder legislativo, segundo o qual seria o órgão com a função e direito
de estabelecer como se deverá utilizar a força da
comunidade no sentido da preservação dela própria e dos
seus membros. É, portanto, o poder supremo de editar leis,
consistente na delegação de poderes pelo povo a seus
representantes, através da renúncia da liberdade de seu
estado de natureza em troca de regras que possam lhe
garantir a propriedade, a paz e a tranqüilidade. 200

Tal "poder" constituído de criar leis (normas gerais,


abstratas e inovadoras) - o poder legislativo - é comumente atribuído ao órgão
formado por representantes eleitos diretamente pelo povo, também designado por
Poder Legislativo, conquanto receba designações e composições diversas em cada
Estado.
Mas "poder legislativo" e "Poder Legislativo" não
necessariamente caminham juntos. Embora o poder legislativo constitua função
típica do Poder Legislativo - a par de outras funções, como a de controle e de
fiscalização -, a legiferação pode ser atribuída a outros Poderes (órgãos), inclusive
ao próprio Poder Judiciário, encarregado do exercício da função jurisdicional.
Isso significa que mesmo no sistema civil law o Poder
Judiciário pode exercer o poder legislativo. 201 Aqui talvez resida a grande confusão
feita na discussão acerca do ativismo judicial. Um juiz que legisla não é
necessariamente ativista; apenas o será se tal faculdade não lhe for conferida pelo
sistema jurídico que atua.
Há outro aspeto de nuclear relevo no sistema civil law: nele,
o paradigma normativo é fruto de decisão política. Mesmo as normas de direitos

200 LOCKE, John. Two treatises of government... cit. p. 313. Traduzimos.


201 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito..., cit., p. 175-6.
74

humanos só se incorporam ao sistema se uma decisão política as reputarem


normas de direitos humanos e, portanto, fundamentais para o sistema político-
constitucional daquele Estado.
Já a common law é o sistema de leis formado pelo contínuo
trabalho de magistrados na Inglaterra e País de Gales especialmente entre os
séculos XII e XIII. Ao contrário do sistema civil law, o paradigma normativo na
common law é a "descoberta" do direito, com base em princípios morais e de
justiça latentes na respetiva sociedade.202 Também não é correto dizer que no
sistema common law o juiz "cria" o direito. Ele apenas atua um direito radicado no
ordenamento moral e social, aplicando tais princípios ao caso concreto.203 Nesse
sistema, pode um juiz decidir se a união entre pessoas do mesmo sexo é possível
de acordo com a moral e costumes daquela sociedade, ou mesmo da humanidade
(direitos humanos), mas não pode editar um decreto fixando prazos e condições
para o exercício de tal direito.
Deveras, no sistema de common law, o consentimento com a
atividade criativa do juiz e a importância histórica de seu papel na construção do
direito integra a cultura política - o que pressupõe sua aceitação social -
conferindo-lhe substancial legitimidade democrática. Isso fica transparente nas
palavras de John P. Dawson, a respeito do direito americano:
O Direito Inglês, de onde é derivado o nosso Direito, foi
durante muito tempo criado pelos juízes. Os primeiros
colonizadores deste país, que eram, em sua grande maioria,
ingleses, já estavam acostumados a esta ideia, além do que
as novas condições de vida, encontradas neste grande
continente, tornavam difícil uma adaptação do Direito Inglês
ao meio ambiente americano. Teve por esta razão muita
importância a função dos juízes, tendo ainda as nossas
constituições escritas legado às nossas Cortes de Justiça
grandes e novas responsabilidades.204

É bem verdade que alguns institutos aproximam ambos os


sistemas, como a figura dos precedentes e a exigência de fundamentação das
decisões judiciais. No entanto, como reconhece o autor:205

202 Cf. BELL, John. Judiciaries within europe: a comparative review. Nova Iorque: Cambridge
University Press, 2006, p. 40 et seq.
203 Cf. LLOYD, Dennis. A ideia de lei. trad. Á. Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 308.
204 DAWSON, John P. As funções do juiz. In: Aspetos do direito americano.Trad. Janine Yvonne Ramos

Péres e Arlette Pastor Centurion. Rio de Janeiro: Forense, 1963, p. 22-3.


205 Cf. DAWSON, John P. As funções do juiz..., cit., p. 25.
75

É justamente sob este aspeto que o nosso direito difere do


direito de outros países, como a França e a Russia (...).
Nestes países, a justiça é praticada, tomando-se por base a
premissa de que o dever da Corte, ao dar as suas decisões
judiciais, consiste não só em expor as suas razões, mas, na
medida do possível, interpretar e associar o caso que está
sendo julgado, adaptando-o, livremente, aos padrões de
justiça já existentes. Os nossos juízes, em resumo, têm como
tarefa a manutenção racional e firme da lei, ao lado da
interpretação e da criação de novas leis. São
legisferantes.206

Apesar de reconhecer o papel significativamente mais


criativo dos juízes no sistema do Direito Comum, Dawson reconhece uma
tendência de aproximação entre os dois sistemas. Contudo, em resposta a uma
possível proeminência do Judiciário americano em relação aos demais Poderes, o
autor esclarece que, no modelo americano, os juízes cedem à vontade do Poder
Legislativo, sempre que suas intenções legítimas podem ser verificadas facilmente.
A atividade criativa do juiz dar-se-ia além da sinalização conferida pelo Poder
Legislativo e em espaços de má redação legislativa ou de lacunas. A atuação dos
juízes, afastando as decisões legislativas, limitar-se-ia àquelas situações em que o
Legislativo, como os demais Poderes, também está vinculado - no respeito às
normas constitucionais, hierarquicamente superiores. 207
Outro aspeto narrado por Dawson diz respeito a uma
possível vantagem - em termos de respeito à legitimidade democrática - que a
atuação jurisprudencial nos sistemas codificados apresentaria. Segundo ele,
embora possa parecer que o juiz, na Europa Ocidental, aja de forma diversa que o
juiz americano ou inglês, sua atividade criativa tem sido crescente. Ademais,
costuma-se distinguir os sistemas pelo uso de uma lógica dedutiva que seria
empregada pelo juiz ocidental para encontrar as respostas diante de um caso
concreto. Segundo Dawson, porém, "o simples método de dedução pelo qual as
decisões judiciais são explicadas pela citação de algum artigo do código, pode
parecer simples, mas serve para disfarçar os verdadeiros motivos que influenciam
o juiz em suas decisões".208

206 DAWSON, John P. As funções do juiz..., cit., p. 26. Grifei.


207 DAWSON, John P. As funções do juiz..., cit., p. 28.
208 DAWSON, John P. As funções do juiz..., cit., p. 29. Grifei.
76

Mas, se o juiz disfarça suas intenções empregando uma


lógica dedutiva a partir da norma legal, pode-se afirmar que sua interpretação
contempla uma das respostas admitidas por aquele Direito, não podendo - com
isso - afirmar-se que a liberdade criativa do juiz em ambos os sistemas é a mesma.
A necessidade de o juiz, no sistema codificado, encontrar uma resposta no sistema,
empregando técnicas de interpretação validadas logicamente, como o método
clássico savignyano, não infirma a diferença em ambos os sistemas, antes a
corrobora e a comprova. Um juiz americano, debruçado sobre a
constitucionalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo tem certamente
mais liberdade de buscar respostas no costume para tomar sua decisão que um
juiz num sistema codificado. Neste, é preciso reconhecer a existência de lacunas
normativas puras, que não podem ser preenchidas pelo Poder Judiciário.
Dois exemplos podem ilustrar esse posicionamento.
Recentemente, no Brasil, um cidadão pediu ao Estado o custeio de tratamento com
seu cão. Não há norma no direito brasileiro que preveja o dever de o Estado
fornecer tratamento para animais que são criados por particulares. Em situações
tais, não pode o juiz deduzir uma norma do sistema Moral para construir essa
regra, pois se entende, no sistema codificado - no caso, o brasileiro - que apenas o
legislador pode criar tais direitos. Se a questão, porém, chegasse a um juiz
americano, não teria ele mais liberdade para integrar a lacuna normativa e deduzir,
com base em valores morais da sociedade, uma regra a ser aplicada ao caso?
Parece-nos que sim. É importante, no entanto, relacionar tal
poder criativo do juiz no sistema common law com a noção de constituição invisível,
proposta pelo constitucionalista americano Laurence H. Tribe.209

1.1.4. A supremacia da Constituição e a discricionariedade legislativa

Historicamente, o homem conheceu primeiro a lei, depois a


Constituição.210 Esta nasceu, no entanto, para limitar o poder absoluto, inclusive
aquele de editar normas gerais e abstratas, quer fosse ele representado pelo

209Cf. TRIBE, Laurence H. The invisible constitution. Oxford: Oxford University Press, 2008.
210De fato, na cidade antiga, a lei surgiu como parte da religião. COULANGES, Fustel de, Numa
Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. Trad.
Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 150. Somente no século XVI é
que tem desenvolvimento a doutrina da supremacia da Constituição. Sobre a evolução da tese da
Constituição como lex fundamentalis, cf. JELLINEK, Georg. Teoria general del estado. Trad. Fernando
de Los Rios. Mexico, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2004, p. 457 et seq.
77

monarca, quer pelos próprios representantes do povo democraticamente


eleitos211.
Por esse motivo, a lei e, por conseguinte, o poder de editá-la,
criando, modificando e extinguindo direitos, mesmo precedendo a Constituição,
deve-lhe obediência. Dito de outro modo, a Constituição possui uma supremacia
sobre os poderes constituídos, em especial o legislativo, em virtude de que este
apenas pode inovar no ordenamento jurídico se observados os condicionamentos e
limites impostos pelo poder constituinte originário.212
Dois fatores modernos, porém, justificam a necessidade de
se reestabelecer o equilíbrio entre a supremacia constitucional e a liberdade do
legislador: a constitucionalização de matérias que não integram o conceito
material de norma constitucional (que tem a finalidade de organizar os Poderes e
as funções do Estado, fixar-lhes limites, bem como garantir uma proteção aos
direitos e liberdades fundamentais); e o aumento do catálogo de direitos
fundamentais, acompanhados de imposições constitucionais de densificação
normativa dirigidas especialmente ao legislador, a partir de conceitos genéricos e
sem limites delimitados, muitas vezes dependentes de uma pré-compreensão de
ordem moral ou política.213
Deveras, a primeira limitação aos poderes constituídos
advém implicitamente do próprio texto constitucional, que também cria direitos,
constitui poderes e órgãos, bem como estabelece as regras de seu funcionamento.
Aquilo que a Constituição já disciplinou, não pode o legislador disciplinar de forma
diversa, salvo se essa permissão estiver explícita no texto constitucional.
Fala-se, assim, não em uma liberdade plena, mas em
discricionariedade legislativa, entendida esta como o âmbito de liberdade da
função legislativa, que permite aos legisladores determinar o peso específico que

211 Referimo-nos à Constituição na aceção moderna, enquanto produto do poder constituinte


destinado, especialmente, a limitar os poderes constituídos. Cf. CARRÉ DE MALBERG, Raymond.
Teoria general del estado. Trad. José Lión Depetre. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2001,
p. 1192.
212 Cf. SARLET, Ingo. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos

fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p.
453.
213 É o que Canotilho chama de “retórica holística”. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição

dirigente..., cit., p. 269.


78

os princípios e valores constitucionais devem ter em um caso concreto e


estabelecer regras gerais inspiradas nessa opção. 214
O advento do Estado social e da programaticidade
constitucional, porém, expõe a distinção entre normas-fins e normas-meios,
promovendo uma redefinição da moldura normativa, do papel da Constituição e do
espaço de discricionariedade legislativa. Teria o legislador, diante de normas
programáticas, liberdade para escolha dos fins, ou apenas dos meios? No cenário
democrático-constitucional de então, parecia descabido limitar a atuação do
legislador. Como harmonizar, porém, sua liberdade plena em face de possíveis
omissões de imposições constitucionais a ele dirigidas e o caráter cogente das
normas jurídicas?215
Finalmente, cabe destacar que a responsabilidade em
garantir a supremacia da Constituição não é tarefa exclusiva do Poder Judiciário.
Visto sob uma ótica substancial, todos os poderes constituídos foram incumbidos
desse mister.216

1.1.5. O paradoxo da vinculação constitucional

O Estado constitucional pressupõe a legitimidade


democrática dos órgãos de soberania, dentre os quais o Poder Legislativo, imbuído
da missão de “mediação legislativa”, que nada mais é que a escolha política de
positivação de interesses do povo representado, titular da soberania.
Tal construção, a princípio, esbarra em um grande paradoxo:
se o povo, em sua maioria, deseja algo que contraria a Constituição (sendo esta

214 Robert Alexy distingue discricionariedade estrutural de discricionariedade epistêmica. Para o


autor, a discricionariedade estrutural é aquela que decorre dos limites do que a Constituição proíbe
ou obriga ao passo que a discricionariedade epistêmica decorreria da possibilidade de
reconhecimento do que a Constituição obriga ou faculta. A discricionariedade estrutural pode ser
de fins, como prevê o art. 114, IX, da CRFB, quando atribui à Justiça do Trabalho a competência
para julgar outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei. Também pode
ser de meios, como se dá com as normas de direitos e deveres sociais da CRP, tidas como meios
para se alcançar fins, especialmente o fim de igualdade material. Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos
direitos..., cit., p. 584 et seq.
215 Como informa Canotilho, a discussão assumiu maior relevo com a publicação da obra "Excesso e

Direito Constitucional — sobre a vinculação do legislador aos princípios da proporcionalidade e da


exigibilidade" (Übermaß und Verfassungsrecht: Zur Bindung des Gesetzgebers na die Grundsätze
der Verhältnismäßigkeit und der Erforderlichkeit”) do constitucionalista alemão Peter Lerche, em
1961. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 2001, cit., p. XII.
216 Cf. MENDES, Conrado Hübner. Constitutional courts..., cit., p. 78.
79

fruto da decisão da maioria do mesmo povo), não pode o legislador, representante


igualmente majoritário, contrariá-la?
Essa e outras questões já formuladas por Canotilho
despertam interessante questionamento sobre os dilemas impostos pelo
paradigma da supremacia da Constituição, especialmente: a diversidade de
poderes da soberania popular e do poder constituinte derivado, a autovinculação
da soberania e sua renovação constante, a “ânsia de validade permanente” da
Constituição, o problema intergeracional e as revisões constitucionais.217
Também a Suprema Corte dos Estados Unidos, no conhecido
caso "Marbury contra Madison", deparou-se com esse dilema, sendo os
argumentos de Marbury, no sentido de que a Constituição apenas era uma "base"
que orientava o Congresso na edição de leis posteriores, rejeitados pelo juiz
Marshall, o qual assentou que o Congresso não tinha o poder de editar leis
ordinárias que pudessem modificar a Constituição:
Assim, a fraseologia particular da Constituição dos Estados
Unidos confirma e reforça o princípio, suposto ser essencial
para todas as Constituições escritas, de que uma lei
repugnante à Constituição é nula e que os tribunais, assim
como outros departamentos, estão a ela vinculados.218

A solução desse paradoxo se dá pela compreensão de que no


mesmo Estado Constitucional o exercício da soberania democrática se dá mediante
processos com a finalidade de garantir a participação popular de acordo com as
normas constitucionais. É um poder exercido dentro da Constituição e não fora
dela.219 Como propõe Canotilho, não há discricionariedade contra a Constituição, a
qual, por outro lado, não é um "bloco densamente vinculativo".220
De fato, desde que se superou o positivismo weimariano, que
concebia o legislador como poder não necessariamente vinculado à Constituição,
nos sistemas de normas constitucionais rígidas ou semirrígidas o poder legislativo
constituído subordina-se ao poder constituinte originário e ao poder constituinte
derivado. Essa subordinação se efetiva de dois modos, que entre si parece

217 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador:
contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra
editora, 2001, p. 25.
218 Cf. Suprema Corte dos Estados Unidos. Caso Marbury v. Madison. 5 US 137 (1803), p. 5 US 180.
219 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 25.
220 Idem. Direito Constitucional..., cit., p. 63.
80

apresentarem uma relação de contradição: pela vinculação à Constituição, sem


espaço de liberdade; ou pela liberdade na Constituição, podendo complementá-la,
atualizá-la e concretizá-la.

1.1.6. A proeminência do legislador na interpretação constitucional

As teorias que negam a proeminência do legislador no papel


central de concretização da Constituição, e acentuam desproporcionalmente a
prevalência do juiz - que detém a palavra final sobre qual direito deve ser aplicado
ao caso concreto ou sobre a validez ou não de determinada norma - pouco fazem a
distinção entre os diferentes papeis dos juízes nos sistemas civil law e common law,
a despeito de buscarem, em fundamentos teóricos de autores influenciados por um
desses sistemas apenas, ou que, mesmo filiado ao direito continental (civil law),
justifica sua teoria na práxis jurídica do sistema de direito comum (common law).
Mas será possível tomar como paradigma um
comportamento jurisprudencial americano e generalizá-lo para construção de um
teoria aplicável a ambos os sistemas? Parece-nos que não, pelas razões extraídas
do item 1.1.3., que bem analisa as diferenças entre ambos os sistemas.
Com efeito, a intensidade da vinculação do legislador a
normas constitucionais será sensivelmente alterada a partir da pré-compreensão
de quem detém, no sistema constitucional, a função de concretização da
Constituição. Tendo o legislador, v.g., a função de expedir normas de modo
vinculado, compete-lhe o poder decisivo na interpretação da norma constitucional
que se pretende concretizar, não aos demais poderes.221

221 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 61.


81

1.2. O RESPEITO À VONTADE DO LEGISLADOR: MENS LEGISLATORIS VS. MENS


LEGIS

A discricionariedade ou liberdade de conformação do


legislador são diretamente afetados pelo reconhecimento, no processo legislativo,
dos fins expressamente indicados pelo legislador para a edição do ato legislativo.
Nesse sentido, embora se conceda ao legislador certa
proeminência nas escolhas políticas quando da concretização legislativa, também
se reconhece ao juiz certo campo discricionário para identificar defeitos ou lacunas
do produto desejado pelo legislador.222
É certo que, como a experiência já demonstrou, muitas
vezes, o direito legislado é insuficiente para atender às necessidades de um caso
concreto, abrindo espaço para a atividade criativo-jurisdicional.223
Quando, todavia, o ato legislativo possui redação ambígua ou
vaga, mas é possível aferir a real teleologia da norma, seja pela justificativa
apresentada para a apresentação do projeto de lei, seja pelos debates
parlamentares, não pode o julgador, sobretudo em um ambiente civil law, donde se
inserem os sistemas brasileiro e português, desconsiderá-la para fazer atuar, quase
de forma autônoma, a subjetividade criativo-normativa jurisdicional.
Desde a superação da escola da exegese, a teoria geral do
direito se mostrou relutante em conferir papel proeminente à mens legislatoris,
privilegiando a intenção abstrata da norma, justificada por um caminho lógico
similar ao empregado por Rousseau, quando distinguiu a vontade geral da nação,
em detrimento dos interesses reais do povo.224
Na construção rousseaniana, porém, a identificação dessa
vontade geral ainda caberia a um órgão representativo dotado de mínima
legitimidade democrática, ao passo que a aferição da mens legis, prestigiada pela
doutrina majoritária, caberia ao Poder Judiciário, órgão de provimento
aristocrático, com déficit, portanto, de legitimidade de representação.

222 Nesse sentido, Canotilho afirma que "o <grande triunfo da hermenêutica> tem sido considerado
o da demonstração de a lei poder <ser mais inteligente que o legislador>. Idem. Direito
Constitucional..., cit., p. 62.
223Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 62.
224 Rousseau, no contrato social, não defende a ideia de vontade do povo a pautar a atuação do

Estado, mas uma vontade abstrata – a vontade geral. Essa conceção de Rousseau teria influenciado
os revolucionários de 1789. Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 7. ed.
São Paulo: Saraiva, 2012, p. 51 et seq.
82

A despeito da manifesta violação ao princípio democrático,


na dimensão da legitimidade político-representativa dos membros do Poder
Legislativo, o desprezo à mens legislatoris, também conhecida como interpretação
genética,225 encontra relevante defesa doutrinária e, não por acaso,
jurisprudencial.226 No Brasil, vale citar o pensamento de Geraldo Ataliba:
Em primeiro lugar, o jurista sabe que a eventual intenção do
legislador nada vale (ou não vale nada) para a interpretação
jurídica. A Constituição não é o que os constituintes
quiseram fazer; é muito mais que isso: é o que eles fizeram.
A lei é mais sábia que o legislador. Como pauta objetiva de
comportamento, a lei é o que nela está escrito (e a
Constituição é lei, a lei das leis, a lei máxima e suprema). Se
um grupo maior ou menor de legisladores quis isto ou
aquilo, é irrelevante, para fins de interpretação. Importa
somente o que foi efetivamente feito pela maioria e que se
traduziu na redação final do texto, entendido
sistematicamente (no seu conjunto, como um todo solidário
e incindível).227

Na Alemanha, o BVerfG (Tribunal Constitucional Federal da


Alemanha) adota a mesma tese:
Decisivo para a interpretação de uma prescrição legal é a
vontade objetivada do legislador que se expressa nela, assim
como ela resulta do texto da determinação legal e da
conexão de sentido na qual aquela está colocada. Não
decisivo é, ao contrário, a ideia subjetiva dos órgãos
participantes no procedimento legislativo ou de alguns de
seus membros sobre o significado da determinação.228

Na esteira do BVerfG, para Hesse, a mens legislatoris seria


apenas o limite para a atividade criativa do jurista.229 É o que Luhman considera
como aceitação da decisão (no caso, legislativa) com a recusa de suas premissas. 230

225 Carlos Blanco de Morais emprega o termo dimensão genética ou interpretação genética. Cf.
MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional: teoria da constituição…cit., p. 146.
226 Cf. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2011, p. 20-5.
227ATALIBA, Geraldo. Revisão constitucional. Revista de informação legislativa, Brasília, v. 28, n. 110,

p. 87-90, abr./jun. 1991, p. 87.


228 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da república federal da Alemanha. Trad. 20.

ed. alemã Luís Afonso. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. p. 56-7. Do mesmo autor, cf. ainda
Escritos de derecho constitucional. Madrid: Centro de Estúdios Constítucionales, 1983, p. 38.
229 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional..., cit., p. 60.
230 Luhman distingue a aceitação das premissas da decisão da aceitação da própria decisão.

Segundo o autor: “À positivação do direito, isto é, a tese de que todo o direito é posto por decisão,
corresponde a estabelecer o conceito de legitimidade sobre o reconhecimento das decisões como
obrigatórias (13). Este é o conceito mais amplo. Compreende, também, o reconhecimento das
premissas de decisão, contanto que se decida sobre elas (noutro tempo e através doutras
passagens). Igualmente, leis, atos administrativos, sentenças etc. são, pois, legítimos como decisões,
83

Não obstante reconheça essa doutrina algum “norte” ou


limite trazido pela mens legislatoris, sua relativização proposta, ao conferir
proeminência à mens legis, transforma a vontade popular representada na vontade
política do legislador constitucional em “meras palavras”. Se for admitida a
interpretação do texto legislado contrária à vontade política que decidiu seu
conteúdo, as teorias da representação política devem ser relegadas ao plano
meramente especulativo.
Deveras, se o constitucionalismo moderno consagra o
postulado de que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus
representantes e se o direito que a todos vincula é legitimado por essa lógica que
subjaz no consciente de cada cidadão, admitir que os juízes, que são aceitos nos
regimes democráticos como guardiões da vontade política positivada, possam
contrariá-la, é admitir uma fraude à democracia.
No mesmo sentido, afirma Carlos Blanco de Morais que
admitir que tal entendimento significa
colocar a Constituição à mercê do intérprete, desvalorizar a
legitimidade democrática do programa político do
legislador constitucional e, no limite, converter o poder
constituinte numa fonte de meras palavras, cuja
imperatividade ficaria dependente de intérpretes
convertidos em pitonisas. E o facto é que os tribunais
constitucionais não deixam de recorrer, sempre que o
entendem por necessário, ao elemento histórico-
intencional. 231

É verdade que as condições que justificaram a feitura da lei


podem se alterar, mantendo-se o texto original. Nessa hipótese, obviamente, o
intérprete deve fazer a devida adequação, na medida em que se entende a norma
numa dimensão trina, sendo ela a aplicação do texto à realidade subjacente. O que
não se pode admitir é a simples desconsideração da vontade do legislador, como se

quando e enquanto se reconhecer que são obrigatoriamente válidos e devem fundamentar o


próprio comportamento.”. LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da
Conceição Côrte-Real. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 32.
231 Prossegue o autor, dizendo que “Não sendo o legislador o senhor absoluto da norma, a sua

intenção, se clara e precisa, não pode deixar de limitar o poder do intérprete cuja vontade não pode
ser colocada acima da do decisor da Constituição ou das suas leis de revisão, desfigurando os
objetivos que presidiram à decisão, capturando a "mens legis” e fazendo a norma dizer o contrário
do que foi a expressão da vontade democrática do autor da lei.” MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de
direito constitucional..., cit., p. 647.
84

ela não fosse importante e, muitas vezes, negá-la completamente e adotar uma
interpretação totalmente oposta. 232
Mas se a construção lógica que une a representação política,
a teoria da legislação e interpretação jurisprudencial em torno do princípio
democrático e do Estado de direito não confere uma liberdade ao juiz de negar a
mens legislatoris, porque há tanta resistência em aceitá-la e tanta disposição em
qualificá-la? Muitas razões podem ser apontadas.
Uma delas diz respeito à necessidade de o indivíduo político,
qualquer que seja seu campo de atuação, ter maior propensão ao respeito a uma
ordem, quando participa de sua elaboração.
Ademais, sendo igualmente destinatários da norma, na
qualidade de cidadãos ou mesmo em razão do vínculo de trabalho que possuem
com o Estado, sua discordância em relação à interpretação mais lógica do texto
normativo, muitas vezes abre o caminho para o atendimento de interesses
pessoais, a atuação de seus princípios morais, ou mesmo para promover a justiça
“com as próprias mãos”. Já se demonstrou, em sede de pré-compreensões, que esse
comportamento ativista traz sérios riscos para a democracia, pois da mesma forma
que ideais nobres podem afastar o tripé da legitimidade democrática, ideais
mesquinhos, contornados por uma retórica que atrai o apelo popular, também têm
o condão de fazê-lo.
No plano da vaidade do julgador, que em virtude de
processos meritocráticos de escolha, assentados numa premissa sofismática de

232 Essa teoria leva a absurdos. No Brasil, o art. 33 do ADCT previa o parcelamento das dívidas
judiciais, ressalvados os créditos de natureza alimentar. Em regra, as dívidas judiciais ordinárias são
pagas após sua inclusão no orçamento, o que pode levar mais de dois anos, no mínimo. O
constituinte pretendeu que os créditos alimentares fossem pagos imediatamente, como fica claro no
debate constituinte:
O Sr. Constituinte Plínio de Arruda Sampaio – Como disciplina os casos de crédito de natureza
alimentícia? O Sr. Constituinte Nelsom Jobim – É por execução fiscal comum. Aí V. Exa. entra na regra
dos executivos fiscais e tem condição de executar. Não entra na regra do precatório. Entra na
execução e é satisfeito desde logo, por determinação do Juiz de Direito que requisita o pagamento,
ao passo que aqui os créditos alimentares, de urgência vão entrar na fila dos precatórios, o que é
um absurdo.” Cf. QUINTILIANO, Leonardo David. Políticas públicas e endividamento: como os
precatórios financiam os entes federativos. Observatório da Jurisdição Constitucional. Brasília: IDP,
Ano 5, Vol. 2, ago./dez. 2012, p. 22. Pois o absurdo ocorreu. Sendo debatido o tema pelo STF,
entendeu por maioria, contrariamente à decisão constituinte. Os Ministros analisaram a história do
instituto dos precatórios, citaram doutrina diversa, mas nenhum deles, nem mesmo os que votaram
em sentido contrário (Ministro Carlos Velloso e Ministro Sepúlveda Pertence), deram-se ao
trabalho de analisar os debates parlamentares. Cf. STF.ADI 571 MC/DF. Tribunal Pleno. Rel. Min.
Néri da Silveira. J. 28/11/1991.
85

que o melhor juiz é o que demonstra maior capacidade de memorização de artigos


e ementas de teorias - critério esse de seleção adotado em muitos países, como no
Brasil - é igualmente difícil pensar como esse julgador respeitará a decisão
legislativa em detrimento da sua própria. Ao invés de, nesse sentido, o julgador
manifestar sua “livre convicção” em artigos doutrinários, muitas vezes ele –
abdicando do seu papel constitucional de aplicador da norma – nega-a
explicitamente no exercício da jurisdição, expressando – e demonstrando – sua
revolta com as amarras impostas pela vontade do legislador.
Historicamente, a mens legislatoris também sofre o
preconceito criado pela atuação da Escola da Exegese. Esta, de fato,
instrumentalizava o ideal da segurança jurídica, também componente do Estado de
direito, na medida em que a segurança jurídica estaria assegurada por um
processo uniforme de interpretação, que se daria pelo respeito à vontade do
legislador. A proeminência da vontade do legislador, no entanto, pode ser vista de
duas formas: ou como mecanismo de afirmação de um regime autoritário, ou como
mecanismo de afirmação de um regime democrático. Ou seja, a segurança jurídica,
enquanto instrumento sensível do regime adotado, é diretamente dele dependente.
Por essa razão, se uma democracia não estiver fortemente consolidada, não é a
segurança jurídica, de que a mens legislatoris é um dos vários aspetos, que vai
garantir a efetiva legitimidade democrática dos atos dos poderes constituídos.
Nesse sentido, à época da Escola da Exegese foi feita uma associação entre a
prevalência da vontade do legislador e a intenção centralizadora de Napoleão. O
mesmo discurso retórico, porém, é utilizado para negar uma maior democratização
no papel de construção do Direito, resgatando a tese que vigia até a construção da
Escola da Exegese, que remonta à conceção da nomos grega ou da lex romana.233

233Na antiguidade, a ideia que se tinha da lei era de que ela já existia e caberia aos homens, por
meio de pessoas iluminadas, revelá-la. Como afirmava Fustel de Coulanges, “O antigo direito não é
obra do legislador; o direito, pelo contrário, impôs-se ao legislador. Teve sua origem na família.
Nasceu ali espontânea e inteiramente elaborado nos antigos princípios que a constituíram.”. Cf.
COULANGES, Fustel. COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as
instituições da Grécia e de Roma. Trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus,
1975, p. 32. Essa tendência, na Idade Media, foi também mantida no processo de interpretação
bíblico. E mesmo com o iluminismo, a ideia de se buscar a descoberta das leis não foi totalmente
abandonada, mas volta mediante um processo racional. As leis deveriam ser descobertas pela
razão, mas também já preexistiriam ou deveriam ser intuídas a partir de uma conceção de vontade
geral, como defendia Rousseau. Rousseau, no contrato social, não defende a ideia de vontade do
povo a pautar a atuação do Estado, mas uma vontade abstrata – a vontade geral. Essa conceção de
Rousseau teria influenciado os revolucionários de 1789. Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do
86

Essa resistência dos juízes em aceitar a mens legislatoris


como critério nuclear no processo de interpretação sofreu um revés com a
necessidade de empregá-la comparativamente para efetuar testes lógicos de
aferição da constitucionalidade da lei, que exigem a ponderação entre o interesse
público envolvido, que poderá estar expresso na lei, e os demais interesses, valores
e bens por ele afetados com a medida impugnada. Assim, seja no teste de
proporcionalidade, teorizado por, dentre outros, Robert Alexy234, seja no teste da
proteção de confiança, nos termos propostos pelo Tribunal Constitucional
português235, a análise da razoabilidade (especialmente a proibição do excesso)
dependerá do exame dos fins pretendidos pelo legislador (mens legislatoris) com a
adoção das medidas normativas em avaliação.
Dado o caráter concreto de situações como essa, o
conhecimento dos reais fins pretendidos pelo legislador não podem ser aferidos
abstratamente, ou seja, por uma dedução racional formulada a partir de um texto
normativo (mens legis), mas requer, inexoravelmente, a sindicância da justificativa
apresentada pelo legislador para a aprovação daquela norma.
Com efeito, ao ponderar entre o interesse público contido na
norma impugnada e os demais interesses, deve o julgador, assim como tem feito o
Tribunal Constitucional português,236 considerar a vontade real do legislador
contida na justificativa do projeto de lei, que acompanha o processo legislativo e
que pode ser apresentada ao Tribunal pelo interessado na defesa da
constitucionalidade da lei.
Desse modo, o respeito à mens legislatoris na aplicação de
técnicas de ponderação pode ser considerada condição sine qua non para o efetivo
controle de constitucionalidade dos atos normativos estatais, sem a qual estará
aberto o caminho para o arbítrio judicial.
Ressalte-se que, em julgamento do STF no Brasil acerca da
inconstitucionalidade da instituição de uma contribuição sobre os proventos de
aposentadoria, promovida pela Lei federal n. 9.783/99, o acórdão foi parcialmente

processo legislativo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 51 et seq.


234 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos..., cit., p. 587 et seq.
235 Cf. TC. Processo n.º 772/07. Acórdão n.º 128/09.
236 Cf., dentre outros, os últimos acórdãos proferidos nos processos n.º 1260/13 (Acórdão 862, de

19 de dezembro de 2013) e n.º 819/2014 (Acórdão 575, de 14 de agosto de 2014).


87

fundado na mens legislatoris contrária à referida instituição237, o que demonstra


que o resgate da interpretação genética passa a ser inexorável quando da
utilização de técnicas de ponderação, em observância ao próprio princípio da
segurança jurídica.

237 De fato, consta da ementa do referido julgamento: “DEBATES PARLAMENTARES E


INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO. - O argumento histórico, no processo de interpretação
constitucional, não se reveste de caráter absoluto. Qualifica-se, no entanto, como expressivo
elemento de útil indagação das circunstâncias que motivaram a elaboração de determinada norma
inscrita na Constituição, permitindo o conhecimento das razões que levaram o constituinte a
acolher ou a rejeitar as propostas que lhe foram submetidas. Doutrina. - O registro histórico dos
debates parlamentares, em torno da proposta que resultou na Emenda Constitucional nº 20/98
(PEC nº 33/95), revela-se extremamente importante na constatação de que a única base
constitucional - que poderia viabilizar a cobrança, relativamente aos inativos e aos pensionistas da
União, da contribuição de seguridade social - foi conscientemente excluída do texto, por iniciativa
dos próprios Líderes dos Partidos Políticos que dão sustentação parlamentar ao Governo, na
Câmara dos Deputados (Comunicado Parlamentar publicado no Diário da Câmara dos Deputados, p.
04110, edição de 12/2/98). O destaque supressivo, patrocinado por esses Líderes partidários,
excluiu, do Substitutivo aprovado pelo Senado Federal (PEC nº 33/95), a cláusula destinada a
introduzir, no texto da Constituição, a necessária previsão de cobrança, aos pensionistas e aos
servidores inativos, da contribuição de seguridade social. Cf. STF. ADI 2010/DF. Tribunal Pleno. Rel.
Min. Celso de Mello. J. 30/09/1999.
88

1.3. CONCEITO DE VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL

A vinculação, em termos gerais, é uma exigência de


conformidade.238 Dizer que o legislador está vinculado à Constituição é reconhecer
que a discricionariedade legislativa, ou a liberdade de conformação do legislador,
deve estar em conformidade com a Constituição.
A conceção é simples, mas sua aplicação é complexa. Como
explica Canotilho, a vinculação dos órgãos legislativos vai além: ela também
implica o dever regramento de relações essenciais para a vida da sociedade, como
as relações entre os indivíduos e entre estes e o Estado segundo os mandamentos
constitucionais, que podem ser negativos, ou seja, impondo dever de abstenção de
conduta ao Estado, ou positivos, quando impõe ao Estado-legislador um dever de
atuação concreta, editando normas essenciais para efetivação dos direitos,
liberdades e garantias e de outras normas e garantias constitucionais. 239
Segundo Jorge Miranda, a vinculação do legislador deve ser
entendida da seguinte forma, em três situações distintas:
conformidade da regulamentação legislativa com as normas
constitucionais; normas constitucionais não autoexequíveis
devem ser regulamentadas nos limites previstos pelo
constituinte e, quando dependerem de implementação de
circunstâncias fáticas, de natureza econômica, social e
cultural, devem sê-lo a partir da sua ocorrência.

Assim, v.g., a norma prevista no artigo 34, 2, da Constituição


da República Portuguesa, que trata da inviolabilidade do domicílio, não
comportaria, por parte do legislador português, regulamentação que contrariasse
o disposto no número 3 ou no número 4 do mesmo artigo. Nesse sentido, seria
inconstitucional uma lei que, a pretexto de regulamentar o indigitado n. 2,
permitisse a entrada no domicílio, no período noturno, de fiscais da Administração,
ainda que amparados por autorização judicial.
Robert Alexy introduz outra perspetiva: "uma norma
constitucional deve ser considerada "vinculante", se for possível a análise de sua
violação pelo Tribunal Constitucional."240

238 Ou, nas palavras de Canotilho, a exigência de conformidade material com a constituição dos
actos dos poderes públicos. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional..., cit., p. 479.
239 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional..., cit., p. 432.
240 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos..., cit., p. 501.
89

PARTE 2 – À VINCULAÇÃO DO LEGISLADOR À CONSTITUIÇÃO SOCIAL

Mucho confió Carranza en el acierto de los


legisladores ordinários, al pretender dejar a su
cuidado el dictar las leyes reclamadas por el pueblo
en los campos de batalla; por fortuna, empero,
quienes acertaron fueron los legisladores
constituyentes, al haber dado el paso decisivo,
logrando romper aquel tabú que les impedia dar
cabida dentro de la Constitución a las fórmulas
sociales que una depurada técnica constitucional les
aconsejaba a no incorporar a ella.241

241HELÚ, Jorge Sayeg. El constitucionalismo social mexicano: la integración constitucional de México


(1808-1988). México: Fondo de Cultura Económica, 1991, p. 607.
90

As expressões Estado de direito ou Estado social não veiculam


conceitos delimitados juridicamente. Sua densificação axiológica é construída com o
auxílio das demais ciências e, no plano jurídico, aparecem como ideias-força donde
emergem teorias que pretendem conferir normatividade a valores morais e
ideológicos associados, mediante uma argumentação pretensamente lógica, à origem
dessas variantes do Estado contemporâneo.
Tal associação justificaria a irradiação de efeitos de tais
valores na ordem jurídica, produzindo consequências na interpretação e aplicação
do Direito.
Nesse sentido, aparecem a segurança jurídica, a proteção da
confiança, a vedação ao retrocesso social, a igualdade e a própria proporcionalidade,
como formulações teóricas que passam a assumir a natureza de princípios jurídicos
vinculantes da atuação dos poderes constituídos, em especial o poder legislativo.
O Estado social e de direito é, assim, um Estado cujos
princípios inerentes informam e conformam a interpretação constitucional,
encerrando valores políticos, um conceito indeterminado, porém determinável e, por
conseguinte, um ideal de Estado ou um Estado ideal.
Por outro lado, a indeterminação dos conceitos
constitucionais empregados em normas principiológicas dotadas de alto conteúdo
axiológico provocou uma hipertrofia do Poder Judiciário, o qual, diante da inércia,
ineficiência ou arbitrariedade do legislador, passou a assumir um protagonismo na
determinação do conteúdo dessas normas constitucionais e, a partir delas, a fixação
de limites à função legislativa, criando uma tensão interinstitucional que ainda deve
apresentar muitos desdobramentos.
No centro dessa tensão, encontram-se os princípios
constitucionais que atuam paralelamente garantindo direitos às minorias e direitos
à maioria institucionalizada.242

242É bem verdade, porém, que os conceitos de maioria e de minoria não refletem a realidade social.
Praticamente reduzidas ao ato de “votar”, as democracias contemporâneas podem ser consideradas
democracias meramente eleitorais, embora uma conceção substancial de democracia vá além da
escolha dos representantes. Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais e justiça constitucional...,
91

Diante desse estado de coisas, não é difícil imaginar o


surgimento de conflitos entre a vontade da maioria de otimização de seu bem-estar
individual – mediante, muitas vezes, prestações do Estado -, e a “vontade” desse
mesmo Estado de autopreservação financeira, dado que os recursos são escassos, e de
atendimento de outros anseios ou interesses.

cit., p. 28. Em consequência, os mandatários políticos recebem pelo voto uma autorização para
exercer os poderes constituídos pelo poder soberano, mas, uma vez eleitos pela maioria, eles
passam a representar a vontade do aparato estatal e de interesses próprios, os quais muitas vezes
não correspondem aos interesses individuais. Segundo Ferreira Filho, o povo escolheria, em tese,
não apenas os representantes, mas um programa de governo. Cf. FERREIRA FILHO, Manoel
Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 56 et
seq.
92

2.1. ORIGENS DO ESTADO SOCIAL

Como visto, o Estado de direito surge no esplendor do


liberalismo, em reação ao absolutismo. A infraestrutura econômica e social dos
séculos XVIII e XIX, onde se forjou a conceção de Estado de direito, no entanto, logo
foi alvo de revoluções, tensionando essa superestrutura jurídica, que passou a
“testar” novos modelos estatais, como o Estado fascista, o Estado ético, o Estado
nacional-socialista, o Estado soviético, o Estado socialista e suas respetivas
variantes, como antíteses ao capitalismo e ao Estado liberal decorrente.243
Como bem observa Jorge Reis Novais, porém, todos esses
modelos tinham como característica afetar, direta ou indiretamente, devido à sua
radicalidade, a subsistência não apenas do Estado liberal, mas também do próprio
Estado de direito. Suas experiências fracassadas demonstraram a importância dos
princípios decorrentes do Estado de direito na manutenção da estabilidade das
instituições políticas e sociais. Por outro lado, os pilares do Estado liberal,
assentado na ideia central de separação Estado-sociedade, verificaram-se falhos
em propiciar a manutenção de um equilíbrio econômico e social, nos moldes da
“mão invisível” a que se referia Adam Smith244.
Mais uma vez em uma perspectiva dialética, a contradição
entre Estado liberal (tese) e Estados anti-capitalistas (antitese) resolve-se na busca
de uma forma nova, que carregue os elementos de ambos. Surge, assim, o Estado
social.245

243 Sobre esses modelos, cf. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria..., cit., p. 130 et seq.
244 Segundo o economista Adam Smith, num mercado sob condições ideais, a interação dos
indivíduos com seus interesses privados levaria a um equilíbrio econômico. O indivíduo,
perseguindo seu próprio objetivo, acaba, de maneira inconsciente, atingindo os objetivos da
sociedade. É esse resultado não tencionado pelo indivíduo de que resulta um equilíbrio de forças
que Smith chama de "mão invisível". A mesma ideia pode ser transposta para a forma como o
liberalismo defendia o equilíbrio de forças sociais, havendo uma "mão invisível" a estabelecer a
justiça social. Cf. SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas.
v. I. introd. E. Cannan. trad. L. J. Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 438.
245 Como explica Sérgio Resende de Barros, o Estado social e o Estado liberal se converterão um no

outro, na medida em que se transformem um ao outro no terceiro em que serão um só: o Estado
democrático de direito. (...) Um é tese, o outro é antítese e, pela própria força da contradição, ambos
tendem a evoluir para sua síntese. BARROS, Sérgio Resende de. Contribuição dialética..., cit., p. 261
(itálico no original).
93

Costuma-se fixar o marco inicial do Estado social nas


Constituições mexicana de 1917 e de Weimar de 1919, notabilizadas pela
incorporação, em seus textos, de disposições que assegurariam, direta ou
indiretamente, a interferência do Estado na sociedade, com a finalidade de
promover maior justiça social, inclusive com a prestação direta de serviços aos
cidadãos.
Essa ideia comum leva, muitas vezes, a acreditar que os
direitos sociais apenas apareceram com essas constituições, inexistindo a
contemplação constitucional de direitos dessa natureza nas constituições liberais.
Jorge Reis Novais, porém, demonstra com exemplos que essa visão absolutista do
Estado liberal, como um Estado que nada intervinha na sociedade, bem como que
só há que se falar em direitos sociais a partir das citadas constituições, não é
verdadeira.246
Tal associação, contudo, deve-se à causa efetiva que nelas
resultou: a primeira guerra mundial. O mesmo autor, citando Harold Laski,
identifica duas razões pelas quais o Estado liberal se tornou inviável no pós-
guerra: "a possibilidade de continuar a produzir lucros que garantissem um fundo
permanente de excedente social de riqueza e um consenso das forças
intervenientes na vida política em torno das questões fundamentais".247
Além desses dois fatores que exigiam a revisitação dos
postulados liberais, a guerra per si exigia uma intervenção do Estado nas diversas
esferas da vida privada, especialmente, em muitos casos, pela necessidade de
reconstrução e de estímulo à recuperação econômica e social, destruídas ou
afetadas sensivelmente pelos conflitos.
Assim, a necessidade de reestruturação desses diversos
setores não compatíveis com o ideário do Estado liberal resulta na adoção de um
modelo capaz de absorver essa demanda histórica - o Estado social.
Outros termos e formas estatais representaram, de algum
modo, essa socialização do Estado no século XX, como “Estado assistencial”,

246 Entre os exemplos, o autor cita os precedentes de assistência social na Grâ-Bretanha, a política
social da monarquia alemã sob a égide de Bismark, as próprias previsões de obrigações positivas do
Estado contidas nas Declarações de Direitos da Revolução Francesa. Cf. NOVAIS, Jorge Reis.
Contributo para uma teoria..., cit., p. 181 et seq.
247 NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria..., cit., p. 182 et seq.
94

“Estado- Providência”, “Estado de bem-estar social”, entre outros.248 Tais variantes,


porém, enquanto igualmente busquem a aproximação entre Estado e sociedade,
não apresentam a mesma dimensão que o Estado social. Pode-se dizer que o
Estado social agrega esses diferentes conceitos, acrescentando, porém, como
elemento essencial e distintivo, o efetivo controle democrático do Estado pela
sociedade.249
A “estadualização da sociedade” e “socialização do Estado”,
como precisamente se refere Jorge Reis Novais, marcada pela necessidade de
negação do Estado liberal, com maior intervencionismo do Estado na Economia e
busca do bem-estar dos indivíduos e da própria sociedade vai apresentar as
seguintes características: a) intervenção estatal na economia e outros ambientes
privados; b) busca do bem-estar; c) institucionalização dos partidos e grupos
privados de interesse; d) reconhecimento constitucional dos direitos sociais.250
No mesmo sentido, Jorge Miranda explica o Estado social a
partir de como devem suportadas as despesas para a satisfação das necessidades
coletivas. No Estado mínimo, tais despesas deveriam ser suportadas pelos
privados; no Estado marxista, pelo Estado; e, no Estado social, este
assume os custos de satisfação de necessidades básicas, embora
não os das demais necessidades a não ser na medida do
indispensável para assegurar aos que não possam pagar as
prestações os mesmos direitos a que têm acesso aqueles que as
podem pagar. 251

248 Para explicação dos matizes de cada uma dessas terminologias, a distinção entre elas e o termo
“Estado social”, bem como mais exemplos, cf. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria..., cit.,
p. 187-8.
249 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria..., cit., p. 191 et seq.
250 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria..., cit., p. 191 et seq.
251 Cf. MIRANDA, Jorge. Os novos paradigmas do Estado social. Texto da conferência proferida em 28

de Setembro de 2011, em Belo Horizonte, no XXXVII Congresso Nacional de Procuradores de


Estado. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/1116-2433.pdf>. Acesso
em: 24 jul. 2017.
95

2.2. O CONCEITO DE ESTADO SOCIAL E SUA PRETENSA NORMATIVIDADE A


CONSTITUIÇÃO DO ESTADO SOCIAL E DE DIREITO E SUAS ESPECIFICIDADES

A rigor, as expressões ”Estado liberal” e “Estado social”


preocupam-se com o grau de interferência do Estado na Economia. A par desses
conceitos, encontra-se a noção já analisada de “Estado de direito”, caracterizada
pela presença de elementos como limitação do poder político, existência de
controle recíproco entre os Poderes, o império da lei e o direito subjetivo público.
A ideia em torno do Estado de direito encerra também
variantes. Concebido formalmente, como analisado no capítulo anterior, o Estado
de direito se transformava no Estado de mera legalidade - o Estado legal-, bastando
que se garantisse a submissão de todos à lei, qualquer que fosse seu conteúdo. Em
contraposição, desenvolveu-se outra ideia de Estado de direito, que considerava
sua perspectiva material. Assim, não bastava a mera observância da lei, mas uma
observância e conformação da lei e sua interpretação aos princípios norteadores
do Estado de direito. Ter-se-ia um Estado de direito substancial. À medida em que
se reconheceu a normatividade da Constituição e sua supremacia, o Estado de
direito, formal ou substancialmente considerado, passou a ser concebido como
Estado constitucional.
Por outro lado, se o Estado social foi a antítese do Estado
liberal, a antítese do Estado de direito foi o Estado de não-direito preexistente, em
que poder político era ilimitado e pouca ou nenhuma proteção era conferida aos
indivíduos pelo direito, como o Estado absoluto. É impreciso, portanto, afirmar que
o Estado autoritário seja oposto ao Estado de direito, pois o que caracteriza o
primeiro é a origem do poder. Seu correlato antitético é, portanto, o Estado
democrático (origem popular do poder).
Essa profusão de termos e conceitos gera controvérsia
doutrinária, com maior ou menor repercussão prática. A primeira delas implica
saber se o termo Estado social, que qualifica um tipo de Estado quanto ao grau de
sua intervenção na Economia, pode ser sinônimo de Estado de direito.
Em primeiro lugar, convém reforçar a distinção entre Estado
social e Estado socialista. Neste, especialmente numa perspectiva marxista e sob o
viés meramente econômico, as necessidades básicas da coletividade são
suportadas universalmente pelo Estado, como já referido algures, ao passo que no
96

Estado social a intensidade da intervenção estatal é menor, visando especialmente


garantir o mínimo necessário à vida digna do indivíduo e à correção de
desigualdades sociais. Numa perspectiva democrática, porém, pode-se estabelecer
uma relação antitética também entre o Estado socialista e o Estado de direito, na
medida em que este implicaria a democracia política, ao passo que o primeiro
representaria também uma democracia econômica.252
No mesmo sentido, pode-se até empregar o termo "Estado
democrático" isoladamente, para se contrapor à noção de "Estado autoritário",
pois ambos de opõem quanto à origem do poder. Todavia, se a noção de Estado de
direito encerra o princípio democrático, como resultado dos anseios iluministas e
da consagração expressa nas declarações de direitos de participação do indivíduo
na formação de vontade estatal, há um pleonasmo no uso da fórmula "Estado
democrático de direito" ou "Estado de direito democrático".
Mas será que o mesmo se pode dizer em relação ao Estado
social?
Uma posição mais radical, apegada à conceção formal de
Estado de direito, encontra-se em Forsthoff, segundo o qual a expressão Estado
social de direito encerraria uma contradição em termos, uma vez que o autor não
admitiria a compatibilidade entre a noção meramente garantista do Estado de
direito com a natureza prestacional (material) e perseguição da justiça social que
caracterizaria o Estado social.253 Essa teoria, porém, acaba prejudicada na medida
em que se encontra superada a noção meramente formal de Estado de direito.
Com efeito, verifica-se atualmente um consenso mínimo em
torno da ideia de que o Estado de direito apresenta um conteúdo substancial, que
corresponde, em grande síntese, à limitação jurídica do Estado e à garantia de
tutela dos direitos fundamentais e respeito a princípios estruturantes desse Estado
de direito, como a segurança jurídica, a proporcionalidade e a democracia,

252 Cf. BERCOVICI, Gilberto. Entre o estado total e o estado social: atualidade do debate sobre direito,
estado e economia na República de Weimar. 2003. Tese (Livre Docência em Direito Econômico) -
Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/2/tde-22092009-150501/>. Acesso
em: 2017-05-09, p. 111.
253 Cf. FORSTHOFF, Ernst. Stato di diritto in transformazione. trad. L. Riegert e C. Amirante. Milano,

1973, p. 322 et seq.


97

atributos cuja natureza axiológica impede a adoção de uma conceção meramente


formal.
Uma segunda teoria - que igualmente refuta, sob outro
aspeto, a posição de Forsthoff - não vê o Estado social como uma oposição ao
Estado de direito, mas como sua própria consequência. Seu argumento nuclear é o
de que o princípio da dignidade da pessoa humana, que está no bojo da noção e
fundação do Estado de direito, evolui paralelamente com a dinâmica social e
econômica da sociedade. No Estado liberal de cerca de duzentos anos atrás, as
necessidades mínimas de sobrevivência com dignidade eram certamente bem
diferentes do Estado pós-guerra do século XX. Em decorrência, o princípio da
dignidade da pessoa humana não alterou sua forma básica, mas sim seu conteúdo,
incorporando direitos sociais. O constituinte francês do início do século XIX
certamente não estava preocupado em assegurar aos camponeses ensino superior
de qualidade, ou mesmo condições de acesso à internet ou participação em óperas
e outros eventos culturais ou esportivos. Tais direitos, naquele momento, não
representavam uma condição mínima de sobrevivência com dignidade. Em alguns
Estados modernos, porém, a sociedade pode considerar que a privação de alguns
desses direitos ofende a garantia de um minimo existencial.254
Tal posição está correta, em parte, quando considera que
alguns direitos sociais integram o rol de direitos fundamentais corolários do
princípio da dignidade da pessoa humana. Vale dizer, se um direito social é
reconhecido como inerente à dignidade da pessoa humana, ele se incorpora à
própria noção de Estado de direito aplicada a tal ordenamento. Ocorre, porém, que
nem todos os direitos sociais decorrem necessariamente de um mínimo
existencial, não sendo inerentes, portanto, ao princípio da dignidade da pessoa
humana. Ainda que equiparados a direitos fundamentais, tais direitos não o são
substancialmente, em que pese ao facto de indiretamente contribuirem para o
progresso social. A instituição de uma renda mínima na Finlândia, v.g., é um direito
social cuja inexistência não necessariamente retire o mínimo existencial de um
cidadão finlandês.
O uso do adjetivo "social" serve para indicar o Estado que
intervém na Economia. Fora dessa conceção, é impossível estabelecer um grau ou

254 Cf., por todos, NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para um estado..., cit., p. 199 et seq.
98

mesmo um conteúdo jurídico inerente a todo Estado social, como se dá com o


Estado de direito. Cada ordenamento constitucional estabelecerá normas próprias,
que vincularão os poderes constituídos de maneira diferente. 255
Assim, o "Estado social de direito", o "Estado social e
democrático de direito", tal como o "Estado constitucional, democrático e social de
direito" são Estados de direito e, como tal, em nada diferem em seus princípios
estruturantes.256
Como alerta Bobbio, o Estado social é tão complexo e
distante das instituições que o precederam, que qualquer esquema conceitual
fundado nas teorias clássicas é inadequado para se lhe aplicar.257

255 Em sentido contrário, acerca da Constituição espanhola, que adota a fórmula Estado social y
democrático de derecho, Manuel García-Pelayo defende que a referida noção não “constitui uma
simples agregação ou justaposição dos termos componentes, mas sua articulação em uma
totalidade conceitual". GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones del estado contemporâneo. 2.
ed. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 92-104. Também em referência ao artigo 20, (1), da Lei
Fundamental de Bona, que prevê expressamente a Alemanha como um Estado social, Peter Häberle
enxerga algum valor diferenciado decorrente da afirmação desse conceito em unidade com o
Estado de direito. HÄBERLE, Peter. El contenido esencial de los derechos fundamentales: una
contribución a la concepción institucional de los derechos fundamentales y a la teoría de la reserva
de la ley. trad. J. B. Camazano. Madrid: Dykinson, 2003, p. 18.
256 Nesse sentido, Jorge Reis Novais aquiesce com a ideia de que a adjetivação do Estado de direito é

pleonástica, cumprindo mera função de elucidar as novas dimensões desse princípios. Cf. NOVAIS,
Jorge Reis. Contributo para uma teoria..., cit., p. 210 et seq. Sobre os conceitos de Estado de direito,
Estado social e Estado Democrático, cf. ALEXANDRINO, José Melo. Liçoes de direito constitucional. V.
1. Lisboa: AAFDL, 2015, p. 82 et seq.
257 Cf. BOBBIO, Norberto. Dicionário de política..., cit., p. 419.
99

2.3. A CONSTITUIÇÃO SOCIAL E A LIBERDADE DO LEGISLADOR

Os limites e condicionamentos impostos ao legislador


podem advir de diversas formas. As primeiras Constituições, porém, devido à
ideologia liberal que as permearam, caracterizada por uma menor intervenção
estatal, não continham comandos condicionando ou limitando a atuação material
do legislador e praticamente se resumiam à declaração de direitos fundamentais e
às normas organizacionais.258 Por tal razão, eram vistas apenas em seu sentido de
determinações negativas (estabelecimento de limites), cumprindo uma função
garantista nos moldes “foshthoffianos”. 259
Devido sobretudo ao movimento sócio-político que, diante
do desenvolvimento econômico, passou a exigir do Estado maior atuação
“prestacional” como forma de realização da justiça social260, as ordens
constitucionais passaram a incorporar, especialmente a partir do fim da segunda
guerra mundial, normas de direitos sociais. Esse novo constitucionalismo
converteu parte da liberdade do legislador em “dirigismo”, relegando a ele um
papel complementar.261
Tais "Constituições sociais", por sua vez, ao incorporarem
direitos sociais, normas de estruturas diversas daquelas que apenas estabelecem
limites, pois exigem não apenas uma conduta omissiva, mas também ou apenas
comissiva de seu destinatário, passam a exigir uma nova estrutura, como condição
de eficácia de sua própria normatividade.
Devido à necessidade de garantir efetividade às normas de
direitos sociais, as Constituições sociais passaram a criar imposições legislativas ou
condicionamentos positivos para atuação do legislador, voltados à concretização
desses direitos. Em alguns casos, a adoção de tais imposições foi uma forma de
conter os arroubos dos movimentos sociais que lutavam pela previsão direta no
texto constitucional de alguns direitos sociais prestacionais, contemplando-os

258 Observe-se que a tese corrente de que tais Constituições seriam extremamente sintéticas e que,
por tal razão, não conteriam tais comandos não se universaliza. A Constituição francesa de 1795,
v.g., possuía mais de 400 artigos. Além disso, a síntese da Constituição federal americana, sempre
apontada como exemplo da característica abreviada das Constituições liberais, também se deve ao
seu contexto federal, e às poucas atribuições conferidas à União.
259 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., 1994, p. 82 et seq.
260 Cf. AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo, 11.ed. São Paulo: Malheiros,

1996, pp. 116-7.


261 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional: teoria da constituição em tempo de

crise do Estado social. v. 2. t. 2. Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 603 et seq.


100

indiretamente, como se deu com as Constituições mexicana de 1917 e de Weimar


de 1919,262 bem como com a posterior Constituição italiana de 1947.263
Nesse novo constitucionalismo, que se inicia, sobretudo, a
partir do início do século XX, a incorporação dos direitos sociais no texto
constitucional se fez de duas formas: pela inserção de normas-garantia, com o
conteúdo necessário para sua autoexecutabilidade pelos poderes constituídos e
consagradoras de direitos subjetivos, por um lado, e, por outro, mediante
imposições constitucionais ao legislador para regulamentação de direitos sociais,
em especial os de caráter prestacional.
Tais imposições constitucionais criam ao legislador um
campo de atuação discricionária e um campo de atuação vinculada. Neste, o
legislador deve respeitar o núcleo essencial do direito constitucionalmente
consagrado. Essencial é aquele elemento ou conjunto de elementos absolutamente
necessários para a existência do direito em si. Quando a Constituição assegura o
direito à saúde, impondo ao legislador a criação de um sistema universal de saúde,
a existência desse sistema é o núcleo essencial. A mera previsão de existência do
sistema per si não tem o condão de atender a tal imposição, razão pela qual a
existência de recursos financeiros e dotação orçamentária para manutenção do
sistema também constitui o núcleo essencial. A forma, estrutura, quantidade e
qualidade do sistema criado, por outro lado, não integram esse núcleo essencial,
mas pertencem ao que pode ser chamado de "campo discricionário do legislador".
A par disso, a incorporação de direitos sociais detalhados no
texto constitucional enfrentaria óbices - já previsíveis - decorrentes da rigidez
constitucional. Mais flexível e, portanto, em melhor condição de dar resposta
rápida às necessidades impostas pela dinâmica social e econômica, o poder
legislativo se mostra tanto quanto ou mais importante para manutenção do
equilíbrio político-constitucional num Estado social que num Estado liberal.
Nesse aspeto, o legislador assume um papel complementar
do constituinte. Por essa razão, observa Jorge Reis Novais que a supremacia
constitucional no Estado contemporâneo não pode desconsiderar tal função do

262 Cf. HELÚ, Jorge Sayeg. El constitucionalismo social mexicano: la integración constitucional de
México (1808-1988). México: Fondo de Cultura Económica, 1991, p. 605 et seq.
263 Cf. CRISAFULLI, Vezio. La costituzione e le sue disposizioni di principio. MIlano: Dott. A. Giuffrè

Editore, 1952, p. 32.


101

legislador, sobretudo em realidades constitucionais como a brasileira e a


portuguesa, que possuem tais normas de direitos sociais dotadas de alto grau de
indeterminabilidade, hipótese em que a efetividade da proteção jusfundamental
depende decisivamente do poder legislativo.264
Na mesma linha do que defende Canotilho, a Constituição
dirigente, ou a Constituição social, requer, sim, um novo paradigma teórico para
sua compreensão.265
Deveras, as técnicas utilizadas para se interpretar a
Constituição, mesmo as mais recentes, como as que propõem formas de atuar um
processo de ponderação de valores que conferem substrato a normas em conflito,
não foram desenvolvidas - e sequer são aplicáveis - a hipóteses de normas
programáticas, que caracteriza parte das normas de direitos sociais.
As teorias clássicas da tripartição de poderes, inclusive,
foram formuladas com a preocupação em dar equilíbrio aos poderes legislativo,
administrativo e jurisdicional, mas não se preocuparam com a existência de um
poder que lhes fosse superior - como o poder constituinte.
Não por acaso, os Estados Unidos, cerca de apenas 20 anos
depois da promulgação de sua Constituição, deparou-se com um problema que
decorreria dessa "omissão histórica dos teorizadores da separação dos poderes" -
o caso "Marbury contra Madison", em que se reconheceu a supremacia da
Constituição sobre os atos dos poderes constituídos.
Embora essa Constituição liberal garantista tenha sido
substituída pela Constituição social programática e a despeito da prevalência da
tese do caráter normativo da Constituição, não houve, quer no plano positivo, quer
no plano doutrinário hermenêutico, qualquer inovação relevante que solucione o
problema da efetividade de normas constitucionais programáticas, apresentando a
doutrina as mesmas teorias de interpretação sistemática de cunho positivista
voltadas à sanção pelo descumprimento de comandos comissivos ou deveres de
abstenção de conduta por parte de agentes públicos. 266

264 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais: teoria jurídica dos direitos sociais enquanto direitos
fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 159.
265 Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional..., cit. p. 64.
266 Mantém-se, assim, o paradigma constitucional da "dominância do negativo", na perspectiva

sociológica luhmanniana, segundo a qual as constituições do Estado de direito se caracterizam pela


convergência de prestações negativas, não admitindo o autor que possuam uma função de
102

Não há, por outro lado, normas complementares nos textos


das Constituições sociais que assegurem tal efetividade. O que se viu foram normas
de direitos sociais "enxertadas" em textos de uma Constituição liberal. O grande
problema desse "retalho" constitucional está justamente no elemento que confere
efetividade a normas com estruturas diversas, como as normas programáticas, que
requerem uma densificação normativa, a cargo dos poderes constituídos.
Para se efetivarem, deve o direito - no caso a própria
Constituição - prever mecanismos de sanção para a omissão desses poderes no
dever de complementação da Constituição. Dentre tais mecanismos, poder-se-ia
adotar desde multas individuais pela omissão, até a perda do cargo por decisão
judicial, ou por instrumentos como o recall.
A CRFB-88, v.g., adotou um modelo inovador nesse sentido:
a figura do mandando de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por
omissão. Ambas as figuras, adotáveis respetivamente em sede de controle difuso e
de controle concentrado de constitucionalidade, objetivam viabilizar o exercício de
direitos e liberdades constitucionais, sempre que a falta de norma
regulamentadora o impeça. No caso da ação direta de inconstitucionalidade por
omissão, prevê o artigo 103, §2º, da CRFB-88, que
declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida
para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência
ao Poder competente para a adoção das providências
necessárias e, em se tratando de órgão administrativo,
para fazê-lo em trinta dias.

Como se vê, o poder constituinte brasileiro de 1987, cujos


membros ocupariam, em sua maioria, o poder constituído legislativo, não tiveram
qualquer interesse em conferir isonomia de tratamento entre os poderes, uma vez
que ao Poder Executivo é fixado prazo (de trinta dias) para solução da omissão
normativa, ao passo que o texto nada diz a respeito do Poder Legislativo. A
isonomia de tratamento entre os Poderes exigiria que, caso declarada a omissão,

planejamento. De fato, em sua lógica, a Constituição é um mecanismo de redução de complexidade


do sistema político e é sua normatividade que a transforma em um sistema, diferenciando-a do
sistema político. Cf. LUHMANN, Niklas. Politische verfassungen im kontext des
gesellschaftssystems. Der Staat, Berlin, v. 12, n. 1, pp. 1-22, 1973. Essa tese é oposta à sociedade
aberta dos intérpretes proposta por Habërle, na medida em que nesta praticamente a política e o
direito se confundem. Cf. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos
intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da
constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2002.
103

devesse o Poder Legislativo apreciar a matéria em prazo máximo, como na


hipótese de regime de urgência, mesmo tratamento conferido a medidas
provisórias. Também poderia a determinação judicial dirigir-se ao Poder Executivo
para que, tendo a competência de emissão de medidas provisórias em caso de
relevância e urgência, suprir a omissão no mesmo prazo de trinta dias, cabendo ao
Congresso Nacional o processamento da medida provisória, promovendo seu
aperfeiçoamento e adequação.
No plano hermenêutico, todavia, a despeito do ceticismo em
encontrar soluções jurisprudenciais que não firam o princípio democrático, como
tem feito o Poder Judiciário brasileiro que, à falta de norma regulamentadora,
supre ele mesmo a lacuna, atuando como legislador positivo, há que se concordar
com Canotilho, no sentido de que "os problemas da constituição dirigente não
podem ser equacionados se os arquétipos paradigmáticos continuarem a ser os do
Estado Liberal e os da compreensão imperativística do direito."267

267 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional..., cit., p. 65.


104

2.4. A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE

O Estado social, que ganhou novo fôlego e conformação após


a segunda guerra, acompanhando as primeiras décadas de crescimento econômico,
sofre um revés com a crise econômica dos anos setenta, período igualmente
marcado por novas tensões geopolíticas, regimes autoritários, descolonização,
entre outras circunstâncias.
O constitucionalismo, a despeito da incorporação de normas
de direitos sociais e de imposições constitucionais já a partir das Constituições
mexicana e de Weimar, ainda era fortemente influenciado pelo positivismo liberal-
garantista, o que acaba por limitar a interpretação dessas normas dotadas de
menor densificação.
A Constituição portuguesa de 1976, porém, ao incorporar
diversos dispositivos típicos de constituições socialistas, as quais se regiam por
uma hermenêutica própria, intrinsecamente ligada ao ideário marxista,268 entre os
quais normas que estipulam metas e fins para os poderes constituídos,
especialmente para atingir o bem-estar social com a busca pela universalização de
certos direitos, exigia a construção de novas teorias, uma nova forma de pensar a
interpretação da Constituição no Estado social.
Nesse contexto, José Joaquim Gomes Canotilho publica, em
1982, a já referida obra "Constituição dirigente e vinculação do legislador". Como
reconhece o autor, o texto constitucional de 1976 veiculava um ideal de força
transformadora das normas constitucionais. No plano da teoria constitucional, a
força normativa das normas-fim, normas-tarefa e imposições constitucionais
necessitava de uma harmonização com os postulados dogmáticos da interpretação
jurídica, a fim de resolver o paradoxo entre as imposições constitucionais de fins,
meios e tarefas ao legislador, e a inexistência de remédios ou sanções visando a
torná-las efetivas.269
A teoria da "Constituição dirigente" problematiza e oferece
suporte teórico a essas questões. Canotilho alerta, porém, que a "Constituição

268 Embora Canotilho deixe claro que, “quando alguns autores equiparam a «teoria da constituição
dirigente» à ideologia social-comunista cristalizada numa constituição programática, estão a operar
uma inaceitável transposição de planos.” CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente...,
2001, cit., p. XIII.
269 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 2001, cit., p. XIII.
105

programática não significa a juridicização do governar", mas apenas diminui ou


conforma as influências da Economia na política e fortalece a vinculação jurídica
dos fins políticos.270 Certamente tal afirmação não previa o nível a que chegaria a
hipertrofia do Judiciário, circunstância que reafirma a necessidade de revisitação
do tema pelo autor.
Apesar de, em certos aspetos, parecer ser a Constituição
dirigente um ponto médio entre a Constituição liberal e a Constituição social-
comunista, essa transposição de conceitos é refutada por Canotilho, o qual busca
amparo em Peter Leche para demonstrar que a discussão em torno das omissões
inconstitucionais e suas eventuais sanções remonta à doutrina constitucional-
liberal, buscando sua teoria uma narratividade própria.271
Um aspeto controvertido na Constituição dirigente seria o
que Canotilho chama de "fórmulas de narratividade emancipatória", que consistem
na previsão de rumos gerais ou parciais para a Constituição, como a transição para
o socialismo na Constituição portuguesa e a proibição do pluralismo sindical na
Constituição brasileira. O grande problema de tais fórmulas é que o dirigismo de
longo prazo desconsidera a dinâmica da sociedade e do mundo global, bem como o
próprio direito das gerações futuras de rediscutir tais planos, o que estendemos às
próprias cláusulas pétreas. Nesse tema, Canotilho se mostra cauteloso,
posicionando-se contrariamente a inserção de tais cláusulas, pois comprometem o
próprio desenvolvimento constitucional.272
No entanto, novas lógicas e razões jurídicas e metajurídicas
(sociais, econômicas e políticas) levaram Canotilho a repensar o papel da
Constituição dirigente, sem, contudo, negá-la.273
Como já explicitado na introdução deste trabalho, a adesão
de Canotilho às teorias sistêmicas e procedimentalistas o faz relativizar - e não
sepultar - o dirigismo constitucional enquanto ideal teórico de Estado ou mesmo
enquanto forma de aplicação das Constituições portuguesa e brasileira. Nesse
sentido, os pressupostos de aplicação dogmática da Constituição dirigente por ele

270 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 470-1..
271 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 2001, cit., p. XIII.
272 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 2001, cit., p. XIII.
273 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 2001, cit., p. VII.
106

plasmados conservam sua aplicabilidade em ambos os países, especialmente no


Brasil, dada sua "modernidade tardia".274
Em resumo, a Constituição dirigente assenta especialmente
nos seguintes pilares: a superação definitiva da doutrina anterior das normas
programáticas, que as concebia como meras proclamações jurídicas sem
vinculatividade;275 a superação da conceção das omissões em viés formal-
naturalístico, assentada na mera inércia do legislador, pela conceção jurídico-
constitucional, reconhecendo-se as omissões relativas e, com base nestas, a
possibilidade de omissões criarem direitos subjetivos;276 o duplo caráter do
princípio da igualdade, como garantia e norma dirigente, com a teorização de
mecanismos de vinculação negativa efetivos diante da criação de desigualdades
materiais e de vinculação positiva, mediante a edição de normas perseguidoras da
igualdade substancial277 a integração entre a Constituição e o legislador,
especialmente mediante o reenvio de matérias constitucionalmente previstas em
termos genéricos para a conformação material do legislador278, e a defesa da
vinculação material positiva dos poderes políticos pela Constituição dirigente, os
quais não se encontrariam mais totalmente livres ou apenas negativamente
limitados.279
Somam-se a esse modelo teorizado por Canotilho as
contribuições do sistema brasileiro, especialmente no que toca ao controle de
constitucionalidade da omissão do legislador.

274 Expressão utilizada por Lenio Streck. Cf. STRECK, Lenio Luis. Jurisdição constitucional..., cit., p.
140 et seq.
275 Ibid., p. 277 et seq.
276 Ibid., p. 338 et seq.
277 Ibid., p. 380 et seq.
278 Ibid., p. 401 et seq.
279 Ibid., p. 449 et seq.
107

2.5. DAS FORMAS DE VINCULAÇÃO DO LEGISLADOR À CONSTITUIÇÃO SOCIAL

Uma exigência de conformidade pode se dar de diversos


modos, a depender do arranjo constitucional escolhido, da natureza comissiva ou
omissiva da imposição, ou da forma direta ou indireta a que se acha o legislador
condicionado.
Convém destacar que muitos dos fins ou meios estabelecidos
pelo Constituinte vinculam não apenas o legislador, mas os demais poderes
constituídos e também os cidadãos e demais instituições jurídicas e sociais.
Também as fórmulas linguísticas empregadas podem variar
e, muitas vezes, a mesma função normativa se expressa por enunciados diversos.
Uma lei penal – imperativa - pode ser construída empregando-se um enunciado
descritivo, ou igualmente imperativo (comando).
O mesmo arranjo constitucional que determina a forma de
vinculação deve se preocupar com os meios pelos quais limitará a atuação dos
poderes constituídos, incluindo-se o legislativo.
Para cada forma escolhida de vinculação, disporá o poder
constituinte de mais de um mecanismo possível para dirigir aos poderes
constituídos suas ordens, instruções e diretrizes, bem como as tarefas que devem
ser executadas, as metas que devem ser perseguidas, as vedações e limites de sua
atuação.
Noutro sentido, a Constituição cria vinculações indiretas ou
mediatas ao legislador. Ao assegurar aos cidadãos direitos e garantias, bem como
ao prescrever deveres políticos e de cidadania, o texto constitucional não se dirige
ao legislador ou aos poderes constituídos diretamente, mas os vincula
indiretamente.
É claro que a mesma finalidade pode empregar fórmulas
diversas, com destinatários diversos. Por exemplo, se a Constituição emprega a
fórmula “todo cidadão tem o direito à honra”, o destinatário imediato da norma são
os próprios cidadãos, mas a finalidade é garantir a proteção à honra. Se, por outro
lado, o constituinte preferir empregar a fórmula: “O Estado deve garantir o
respeito à honra dos cidadãos”, o destinatário imediato da norma é o Estado, mas a
finalidade continua sendo a mesma.
108

Se, em outra hipótese, pretender o constituinte estabelecer o


direito à educação, através da fórmula “é assegurado o acesso universal e gratuito
ao ensino básico”, o destinatário imediato da norma é o cidadão, mas o Poder
Público se achará vinculado indiretamente a ela, devendo criar os mecanismos
legais e administrativos para sua efetivação. Pode, porém, preferir o constituinte se
valer da fórmula “cabe ao Estado garantir o acesso universal e gratuito ao ensino
básico”. Nesse caso, o destinatário imediato da norma é o Estado, sendo o cidadão
seu destinatário mediato, mas sendo a finalidade igualmente a mesma.
Vê-se, assim, que há diversas formas, fórmulas e meios
possíveis de serem empregados pelo legislador constituinte para explicitação dos
deveres e direitos constitucionalmente criados.
Em grande parte dos casos, a escolha de uma ou outra
fórmula em nada modificará a efetividade da norma. Em algumas situações, porém,
a efetividade da norma poderá depender da sistematização do texto constitucional.
É o caso, v.g., das imposições constitucionais legiferantes. Se a fórmula pensada
para garantir aos cidadãos um direito for a instituição de uma obrigação ao Estado,
ela não terá a mesma efetividade que a explicitação de uma garantia direcionada
imediatamente ao cidadão. Menor efetividade terá a fórmula se ela pretender
deixar aos poderes constituídos a tarefa de densificar a norma constitucional.
Nesse caso, a Constituição deve igualmente prever uma distribuição de
competências calcada numa separação de funções estatais, mediante a qual um
poder, comumente o poder jurisdicional, possa exigir a atuação dos demais
poderes concretizando a norma constitucional. Ademais disso, o texto
constitucional, como forma de desestimular a inércia e mora do poder constituído
incumbido de assegurar um direito ou de desempenhar uma tarefa, deve prever
sanções no caso de descumprimento.
A seguir, serão analisadas algumas classificações comumente
utilizadas para se referir ao modo como se dão as vinculações constitucionais.

2.5.1. Vinculação positiva e vinculação negativa

A depender da natureza comissiva ou omissiva do comando


dirigido ao legislador, ou da norma que cria um direito ou dever a ser por ele
observado, pode-se falar em vinculação positiva ou negativa.
109

A vinculação positiva abrange o dever de regulamentar ou


concretizar normas exequíveis, de realizar tarefas, de perseguir metas, bem como o
de emitir normas de proteção de direitos.
A vinculação negativa estabelece as proibições ou os limites
até onde pode avançar o legislador.
Assim, respeitando direitos, observando princípios e
promovendo sua aplicação, o legislador, diante de cada norma, estará vinculado
positiva ou negativamente.

2.5.2. Vinculação formal, direta ou imediata e vinculação material, indireta


ou mediata

Tem-se a vinculação formal, direta ou imediata quando a


conduta ou direito previsto na hipótese normativa se referir ao destinatário da
norma. É o caso da norma que imponha uma ordem de legislar, proíba o Estado de
violar certo direito ou condicione uma determinada ação à observância de alguma
medida formal.
Já a vinculação material, indireta ou mediata se dá nos casos
em que a conduta ou direito previsto na hipótese normativa não se refere ao
destinatário da norma. Se o enunciado constitucional assegura a todos os cidadãos
o direito ao voto universal, seu destinatário são os cidadãos. Indiretamente, porém,
ela se dirige ao Estado na medida em que um ato deste que impeça os cidadãos de
exercerem seu direito ao voto é incompatível com a realização desse direito pelos
seus destinatários diretos.
Em termos lógicos ou semióticos, a vinculação indireta
decorre de uma relação de proibição de contrariedade (quando duas proposições
não podem ser ambas verdadeiras, mas podem ser ambas falsas), de proibição de
subcontrariedade (quando duas proposições podem ser ambas verdadeiras, mas
não podem ser ambas falsas), ou de proibição de contradição (quando duas
proposições não podem ser ambas verdadeiras, nem ambas falsas.280
Assim, v.g., se uma norma prevê que todos têm direito a
tratamento igualitário, uma segunda norma que prescreva uma preferência para
mulheres será, formalmente, contrária à primeira, porque ambas as prescrições

280Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. trad. F. P. Baptista; A. B. Sudatti. Bauru, SP:
Edipro, 2001, p. 184 et seq.
110

(“todos têm direito a tratamento igualitário” e “as mulheres devem ter tratamento
diferenciado”) não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras, mas podem ser
ambas falsas.
Tal vedação de contrariedade, que se dá no plano lógico,
acaba por vincular indiretamente os poderes constituídos.

2.5.3. Vinculação do legislador a normas autoaplicáveis e a normas não


autoaplicáveis

Há diversas classificações das normas constitucionais


quanto à sua eficácia e quanto ao grau de vinculação do legislador. 281 Com o
aparecimento das Constituições sociais, como a de Weimar, colocou-se o problema
da normatividade de algumas disposições constitucionais, as quais foram tidas
como meramente enunciativas, despidas de valor jurídico. Após a Segunda Guerra,
um movimento forte da doutrina começou a atacar a ideia de normas
constitucionais sem valor jurídico. Um grande marco veio da doutrina e
jurisprudência italiana, pela Corte de Cassação, que em 1948 repeliu a tese de que
as normas constitucionais não teriam valor normativo, reconhecendo normas com
eficácia imediata e normas que requereriam a intervenção do legislador. 282 Daí que
a doutrina italiana se dividiu na classificação, na questão da dicotomia entre
normas meramente diretivas e normas jurídicas. Muitos autores rebateram essa
tese e surgiram propostas de classificação.283
No Brasil, a classificação mais difundida é a proposta por
Jose Afonso da Silva, em seu livro "Aplicabilidade das normas constitucionais", em
que ele faz uma classificação tricotômica entre normas de eficácia plena
(aplicabilidade imediata), eficácia contida (pode ser restringida pela lei e enquanto
não for tem eficácia plena) e as normas de eficácia limitada (que dependem da
intermediação legislativa).284 Estas comportariam ainda uma subdivisão entre
normas de princípio institutivo e normas de princípios programáticos.
Para José Afonso da Silva, apenas as normas de eficácia
contida e limitada poderiam ser restringidas, posição antagônica à de seu filho,

281 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 308 et seq.
282 Cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas..., cit., p. 77 et seq.
283 Cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas..., cit., p. 79 et. seq
284 Cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas..., cit., p. 81 et seq.
111

Virgílio Afonso da Silva, para quem todas as normas de direitos fundamentais


comportariam restrição, posição por nós adotada.285
De fato, as normas de direitos fundamentais, sendo em sua
maioria princípios, comportam restrição, especialmente naquelas situações em que
podem conflitar com outros princípios. Mesmo no caso das normas-regra, elas
podem igualmente se colidir com princípios.
No mesmo sentido, a terminologia proposta por José Afonso
da Silva, como ele mesmo praticamente reconhece, não é das melhores. 286 A
expressão “eficácia contida” seria melhor substituída por “eficácia contível” ou
“eficácia limitável”. Também a expressão “eficácia limitada” não distingue com
precisão as situações em que a norma apresenta parcial eficácia daquelas em que
ela é totalmente condicionada à concretização legislativa.
Para efeitos de vinculação do legislador, porém, tal
classificação não parece a mais útil. Isso, porque interessa tão somente saber em
que grau e de que maneira a norma constitucional vincula o legislador. É certo que,
utilizando-se a classificação tricotômica de José Afonso da Silva, as normas de
eficácia plena, ou seja, normas autoaplicáveis, limitam o legislador na medida em
que este não pode adotar normas que apresentem relações de desconformidade
com os preceitos nelas contidos.
Em se tratando de normas de eficácia limitada, como as de
princípios institutivos (aquelas em que o legislador traça esquemas e estruturas de
órgãos, entidades e institutos para que o legislador os estruture em definitivo),
como aquela que prevê que a lei determinará as hipóteses de incompatibilidade
dos membros do governo, possui o legislador maior liberdade.
Já no caso das normas de eficácia contida, aquela em que o
legislador tem autorização implícita ou expressa para restrição, sua liberdade é
seguramente maior que nos casos anteriores, mas o próprio comando autorizativo
da restrição serve de limitação ao legislador. Isso não obsta, por outro lado, que
atendendo aos princípios condicionantes da discricionariedade legislativa, possa o
legislador avançar mesmo além da limitação imposta.

285 Cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas..., cit., p. 269.
286 Cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas..., cit., p. 274.
112

Por outro lado, mesmo uma norma que reclame a


concretização legislativa também não poderá ser contrariada em seus termos
gerais, assim como uma regra constitucional pode ser contrariada pelo legislador
em sede de ponderação entre princípios ou de critério de solução de conflito entre
uma regra e um princípio constitucional.
Desse modo, não há propriamente uma distinção
quantitativa entre normas autoaplicáveis e normas não autoaplicáveis para efeito
de limitação do legislador. O legislador estará sempre apenas limitado aos
comandos a ele dirigidos, a depender do grau de detalhamento da norma
constitucional. Somente em cada direito e caso concreto é que será possível saber
qual o grau de vinculação do legislador a cada preceito envolvido.

2.5.4. Vinculação a princípios, programas e regras

Sem adentrar o debate da tese da classificação das normas


constitucionais entre princípios e regras, adota-se neste trabalho, devido à sua
utilidade, a distinção proposta por Dworkin, acompanhada posteriormente por
autores como Alexy e Canotilho, das normas entre princípios, programas e
regras.287
Segundo Dworkin, no sistema jurídico existem, além das
regras - normas de aplicação "tudo-ou-nada" -, as policies (programas) e os
princípios. As policies referem-se a metas a serem alcançadas nos planos político,
econômico e social, assemelhando-se, ao menos estruturalmente, às normas
programáticas e às diretrizes. Já os princípios, na contribuição dada por Alexy, que
recusa a distinção original de Dworkin baseada na ideia de que as regras seriam
normas tudo ou nada, seriam "mandamentos de otimização", normas cujo grau de

287DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 35 et seq., 165 et seq., 197 et seq. ALEXY, Robert. Teoria discursiva..., cit., p. 163 et seq. Onde
há uma versão traduzida do artigo original de Alexy de 1979 (Zum begriff des rechtsprinzips) além
de outros textos do autor. Cf., dentre outros, sobre o tema da distinção entre princípios e regras:
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional..., cit., p. 1160-1. SILVA, Virgílio Afonso da.
Grundrechte und gesetzgeberische Spielräume. Bade-Bade: Nomos, 2003, p. 37-66. Idem, Princípios e
regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de Estudos
Constitucionais, n. 1, 2003, p. 2-3. ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras
e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n.
215, jan./mar. 1999, p. 151-179. NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras
constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2014.
113

eficácia e prevalência depende de circunstâncias concretas e do choque com outras


normas do sistema.288
Da mesma forma que se passa com a vinculação às normas
autoaplicáveis e às normas não autoaplicáveis, o grau de vinculação do legislador a
regras, princípios e a programas será o mesmo e dependerá da determinabilidade
contida em cada uma dessas normas concretamente.
Deveras, uma norma-regra tende a apresentar maior
determinabilidade, uma vez que expressa um comando definitivo. Ocorre que tal
comando definitivo pode criar faculdades ou prever uma discricionariedade ao
legislador. Por isso, uma norma estruturalmente mais objetiva e densificada pode
implicar, no caso concreto, menor vinculatividade.
Também os princípios, conquanto expressem direitos e
deveres que devem prevalecer na medida do possível, não apresentam - por isso -
menor vinculatividade. Não seria correto dizer, por exemplo, que o legislador está
mais vinculado à regra-critério da adequação, que ao princípio da proibição do
excesso, ou da igualdade. O facto de o legislador ter maior possibilidade
argumentativa ou mesmo de sopesar princípios não lhe enseja menor vinculação.
Quanto aos programas, é evidente que por serem
enunciados que veiculam metas, diretrizes, pode-se falar em grau de vinculação
quanto a fins e meios. Estes, porém, apresentam grau mínimo de vinculação, na
medida em que se admite qualquer meio idôneo a alcançar o fim previsto na
norma. Já os fins vinculam o legislador de dois modos. Pelo primeiro, em menor
grau, a meta que compõe a norma deve constituir objetivo alcançável pelo meio
escolhido pelo legislador. Assim, em virtude dela, deve o legislador: 1) emitir ato
normativo; 2) tal ato deve ser apto a atingir o fim ou meta. Pelo segundo, se os
meios empregados pelo legislador não estiverem obtendo qualquer êxito em
alcançar a meta, pode sofrer o legislador algum tipo de sanção, por vinculação ao
fim. Isso ocorre, por exemplo, quando, na tentativa de perpetuação de um tributo
provisório, ou não se encontra mais presente a crise financeira que ensejou sua
instituição, ou sua adoção não se mostrou adequada para solução do problema.289

288ALEXY, Robert. Teoria discursiva..., cit., p. 163 et seq.


289Canotilho distingue princípios de fins. Os princípios seriam parâmetros para a defesa de direitos
individuais, ao passo que os fins seriam coletivos, podendo não intervir na esfera individual.
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 282.
114

2.5.5. As imposições constitucionais

O mesmo arranjo constitucional que determina a forma de


vinculação deve se preocupar com os meios pelos quais limitará a atuação dos
poderes constituídos, incluindo-se o legislativo.
Para cada forma escolhida de vinculação, disporá o poder
constituinte de mais de um mecanismo possível para dirigir aos poderes
constituídos suas ordens, instruções e diretrizes, bem como as tarefas que devem
ser executadas, as metas que devem ser perseguidas, as vedações e limites de sua
atuação. No caso da vinculação formal, os poderes constituídos são destinatários
diretos da determinação constitucional.
Canotilho denomina tais mecanismos como "imposições
constitucionais".290 Segundo o autor, diversas classificações relativas às imposições
constitucionais foram propostas pela doutrina, considerando a determinabilidade
da tarefa constitucionalmente prevista, ou mesmo a sua permanência. Há, de fato,
imposições que consistem na realização de uma tarefa única, como a
regulamentação de uma determinada matéria, por tal razão classificada por alguns
autores como ordem constitucional, ou ordem de legislar. Outras imposições
prescrevem princípios de observância, que vinculam os poderes constituídos de
forma permanente, como se dá no caso de dever de progressividade dos direitos
sociais, ou deveres de diminuição de desigualdade social ou econômica. São
normas programáticas, destinando-se tão somente a fixar um norte de atuação
para o legislador (e demais poderes constituídos) quando de sua ação. As normas
programáticas são estáticas, vale dizer, não impulsionam o legislador, apenas
limitam sua discricionariedade. De modo diverso, há imposições que exigem uma
conduta do legislador, sendo por isso chamadas por Lerche, analisado por
Canotilho, como “normas de impulso”.291
Há que se reconhecer, independentemente da classificação
adotada, que os diversos tipos de imposições não se enquadram em espécies bem
delimitadas, podendo a mesma imposição figurar como diretriz e limite proibitivo

290 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 294.


291 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 309.
115

de atuação em sentido contrário. Nesse aspeto, a norma que prevê a


progressividade dos direitos sociais atua como norma programática, orientando a
atuação do legislador no incremento e desenvolvimento dos direitos sociais. Por
outro lado, a mesma norma se traduz como vedação de retrocesso, criando um
limite negativo para o legislador.
Por tal razão, Canotilho distingue normas programáticas de
imposições constitucionais. As normas programáticas seriam imposições
permanentes e abstratas, e as imposições constitucionais seriam imposições
permanentes, mas concretas.292
Segundo o autor, as imposições constitucionais são ordens
de atuação dirigidas especialmente ao legislador para que este emita leis que: a)
deem uma conformação jurídica a situações fáticas; b) regulamentem questões
específicas; c) criem pressupostos necessários para nova evolução do regime
constitucional; e d) adaptem leis antigas aos novos princípios constitucionais.293
Essa noção de imposições constitucionais pressupõe a
superação definitiva da doutrina das normas programáticas, concebidas como
proclamações políticas, juridicamente desprovidas de qualquer vinculatividade.
Para Canotilho, um grande defeito na análise das imposições
constitucionais é a desconsideração do iter legislativo completo, especialmente no
caso de concretizações de normas programáticas. Geralmente, explica o autor, não
se consideram os problemas relativos à competência de criação e impulso da
norma concretizadora, mas apenas sua dimensão e os "momentos hermenêuticos
de sua aplicação".294
Essa análise defeituosa desconsidera os seguintes aspetos
que devem ser levados em conta na compreensão do tema: a) reconhecimento do
primado do legislador na concretização constitucional e eventual controle dessa
concretização ou omissão pelo órgão encarregado de controlar a
constitucionalidade; b) reconhecimento da competência para determinar o
interesse público pelos órgãos políticos; c) reconhecimento do legislador, não do
juiz, como instância decisiva no processo de concretização constitucional.295

292 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 315.


293 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 480.
294 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 61.
295 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 61.
116

Embora se reconheça a pertinência das classificações


propostas, especialmente a de Canotilho, o tema da vinculação do legislador requer
uma adaptação, com a pretensão de enquadramento dos diversos tipos de
fórmulas vinculantes do legislador encontradas nos textos constitucionais.
Assim, adota-se a seguinte estrutura, conceituando as
imposições constitucionais como prescrições permanentes imediatamente
dirigidas aos poderes constituídos.
Tais prescrições podem ser divididas em imposições
legiferantes, normas programáticas, proibições, precepções e condições.

2.5.5.1. Imposições legiferantes

Também chamadas de "ordens de legislar", as imposições


legiferantes são comandos constitucionais permanentes e concretos dirigidos ao
poder legislativo para que ele edite normas regulamentando direitos, densificando
conteúdos de normas abertas ou genéricas, ou simplesmente editando atos
normativos para se atingir algum fim ou meio desejado pelo poder constituinte.
A imposição legiferante assume a forma “P deve editar
norma para regulamentar, concretizar o dever, proibição ou direito D”.
Embora geralmente as ordens de legislar se destinem a um
fim mediato, o fim predominante da vinculação é um fim-meio, a despeito da
contradição em termos, na medida em que o fim imediato da vinculação é a edição
do ato normativo.
Nesse sentido, se uma norma constitucional determinar que
o poder legislativo deve regulamentar o direito de greve, a heterovinculação do
legislador dar-se-á apenas a obrigação de aprovar a lei regulamentando o direito
de greve, não importando seu conteúdo, desde que não afronte outros direitos,
nem anule o núcleo essencial do direito de greve.

2.5.5.2. Normas programáticas

As diretrizes ou normas programáticas são imposições


constitucionais permanentes e abstratas dirigidas aos poderes constituídos.296

296Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 315. PONTES DE MIRANDA,
Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. I de 1969. t. 1. São Paulo:
Revista dos Tribunais, p. 126-7. Sobre outras definições, cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das
117

Assumem a forma “P deve adotar meios para atingir o fim F”. Por terem sua
eficácia condicionada à edição de ato dos poderes constituídos, são classificadas
por José Afonso da Silva, como normas de eficácia limitada. 297
Na mesma esteira do que propõe Dworkin, cabe distinguir as
normas programáticas (policies) de princípios em sentido estrito.298 Os princípios
em sentido estrito, como já analisado, são espécies de normas dotadas de maior
grau de abstração, com condição de aplicação indefinida, dependente do caso
concreto. Sua estrutura, no entanto, assemelha-se à das regras, na medida em que
veiculam um dever-ser. Segundo o autor, os princípios estabelecem padrões que
devem ser observados; as normas programáticas, objetivos que devem ser
perseguidos. 299
As normas programáticas, tais como os princípios em
sentido estrito, também não possuem condição de aplicação definida.
Diversamente dos princípios, porém, apresentam qualidade deontológica
condicionada, vale dizer, expressam um dever-ser mediato, reclamando
intervenção condicional do Poder Público.
Estruturalmente, ambas as normas podem se comportar de
forma idêntica, uma vez que tanto podem limitar o legislador, como podem ser
objeto de sopesamento.
Assim, o texto normativo que prevê a meta de erradicação
do analfabetismo veiculará duas normas, um princípio e um programa: o programa
é o objetivo político traçado que se traduz pela imposição aos poderes constituídos
de adotarem meios para a redução do analfabetismo. Por outro lado, o mesmo
texto normativo contém um princípio em sentido estrito, que delimita a atuação do
poder público, com inegável carga deontológica incondicionada: é vedado qualquer
ato do poder público que potencialmente vá promover o aumento das taxas de
analfabetismo.

normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 135.


297 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros,

1998, p. 137.
298 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros,

1998, p. 139.
299 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,

2002, p. 36.
118

Por essa razão, podemos afirmar que toda norma


programática apresenta um princípio em sentido estrito correlato, não sendo o
inverso verdadeiro.
Tal conclusão infirma a tese de Dworkin, segundo a qual os
princípios destinar-se-iam ao estabelecimento de direitos individuais, ao passo que
as normas programáticas materializariam interesses coletivos.300 Fosse
verdadeira, as imposições dirigidas aos poderes constituídos seriam sempre
mediatas, de natureza programática.

2.5.5.3. Proibições

As proibições constitucionais são imposições constitucionais


permanentes, concretas ou abstratas, que prescrevem limites de atuação do
legislador. Elas podem assumir a natureza de princípios ou de regras, mediante o
seguinte comando: “P não pode editar norma que ocasione X ou contrarie a norma
Y”.
O princípio de proibição do retrocesso, por exemplo, se
admitido pela ordem constitucional explícita ou implicitamente, é uma imposição
constitucional proibitiva.
Já a norma que proíbe a extradição ou o estabelecimento de
pena de morte, por não contemplarem exceções no sistema, expressando
mandamentos definitivos, ostentam o caráter de regra, vinculando o legislador a
par dos demais poderes constituídos.
Aqui se aplica os mesmos fundamentos aplicáveis à distinção
de vinculação a princípios ou a regras. Vale dizer, uma proibição de natureza
principista não vinculará nem mais nem menos o legislador, mas este poderá
excepcionar a norma em sede de sopesamento ou aplicação de critérios que
confiram a prevalência de uma regra sobre um princípio.
Nas proibições, o objetivo predominante da vinculação pode
ser tanto o meio (não edição do ato normativo), como o fim (proteção de um bem,
valor, ou direito).

2.5.5.4. Normas precetivas

300DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 90.
119

As normas precetivas são imposições constitucionais


permanentes, concretas ou abstratas, que estabelecem critérios de organização e
atuação dos poderes constituídos, bem como lhe fixam deveres ou imputam-lhe
responsabilidades. Assim como as proibições, as normas precetivas podem
assumir a natureza de regra ou de princípio, veiculadas do seguinte modo: “X deve
ser Y”.
A norma que prevê a responsabilidade do Estado por seus
atos, v.g., é um princípio que impõe aos poderes constituídos o dever de reparar,
sempre que possível e considerando as circunstâncias do caso concreto, os danos
causados aos particulares.
Já as normas que organizam os poderes e prevêem
requisitos de nomeação, bem como procedimentos diversos, podem ser
classificadas como regras precetivas, na medida que impõem um dever-ser
incondicionado.
Assim como nas proibições, o objetivo predominante da
vinculação por uma norma precetiva pode ser tanto o meio (não edição do ato
normativo), como o fim (proteção de um bem, valor, ou direito).

2.5.5.5. Condições explícitas

Outra forma de vincular o legislador é estabelecer-lhe


condições para o exercício de sua discricionariedade em determinada matéria.
É o caso, e.g., da norma prevista no n.º 4 do artigo 26.º da
CRP, que condiciona a privação da cidadania e as restrições à capacidade civil aos
termos fixados em lei, vedando-se a motivação política.
A condição imposta pode assumir diferentes formas. No
exemplo proposto, a condição é negativa e assume a forma “ X pode ser, se não C".
Pode o constituinte adotar condições afirmativas. A norma a ser editada, se
atendida à condição, será uma norma-regra. A condição, por sua vez, poderá ser
veiculada por uma regra ou por um princípio.
As condições impostas devem ser explícitas. É que as
condições implícitas constituem premissa básica da vinculação constitucional.
Assim, é uma condição lógica que o legislador pode editar normas, desde que elas
não conflitem com as normas constitucionais.
120

Uma condição explícita comum é a regra da legalidade,


segundo a qual determinadas matérias e conteúdos devem ser definidos em lei.
Observe-se que a condição de legalidade não se confunde com a imposição
legiferante. Nesta, há uma obrigação mediata ou imediata de legislar, sob pena de
haver um prejuízo a um direito. No caso da imposição de legalidade, o constituinte
cria uma faculdade vinculada à legalidade. Assim, o que é imposto é a
intermediação do legislador, não a regulamentação da matéria.

2.5.6. As permissões constitucionais

Outra forma de vincular o legislador é conferindo-lhe


faculdades. A aceitação da ideia de que a Constituição pode autorizar o legislador a
fazer algo pressupõe uma vedação implícita. Desse modo, a permissão
constitucional pode se dar basicamente por três razões: 1) excepcionar uma regra
geral proibitiva; 2) estabelecer permissões em um contexto constitucional de
competências taxativas do legislador; 3) estabelecer uma condição constitucional a
contrario sensu.
A norma prevista no art. 7.º, 7, da CRP, que autoriza Portugal
a aceitar a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, observadas as condições ali
previstas, visa estabelecer uma condição constitucional. Não se pode conceber, por
exemplo, nesse caso, que ante o silêncio da Constituição, estivessem os poderes
constituídos proibidos de celebrar um tratado internacional cedendo parte do
exercício de sua "autonomia jurisdicional".
Também o artigo 18.º, 2, da CRP, autoriza o legislador a
restringir os direitos, liberdades e garantias, desde que expressamente autorizados
pela Constituição. Aqui há uma condição imposta, que se traduz por um princípio
de constitucionalidade (as restrições aos direitos, liberdades e garantias devem
estar previstas na Constituição) acompanhada de uma autorização expressa de
restrição (o legislador não é obrigado a editar normas restritivas de direitos).
A CRFB-88, v.g., não contempla norma semelhante, restando
implícita a vedação de o Poder Legislativo restringir direitos fundamentais.
Eventual possibilidade de restrição é contemplada pontualmente. É o caso da
norma do artigo 5º, XIII, que prevê a liberdade de trabalho, ofício e profissão,
atendidas as qualificações que a lei estabelecer. Ou seja, trata-se de norma que
121

garante um direito, reservando ao legislador a faculdade de, em seu juízo político


discricionário, restringi-lo.
Outra forma de autorização de restrição de direitos
fundamentais se dá implicitamente, nos casos de conflitos entre princípios ou
entre regras e princípios. Em tais situações, o legislador pode excepcionar direitos
fundamentais justificando a prevalência de outro princípio.

2.5.7. Direitos garantidos

Os direitos garantidos são normas constitucionais


autoaplicáveis e, portanto, exigíveis e oponíveis pelo seu titular. Exigem, em
consequência, uma atuação positiva ou negativa dos poderes constituídos, ou
mesmo dos particulares. Seu conteúdo se encontra suficientemente determinado,
gerando ao cidadão o direito subjetivo à sua observação por parte do Poder
Público (e até mesmo por parte dos particulares), independentemente de qualquer
ato legislativo ou administrativo.
Sua elasticidade, porém, pode ser alterada pelo legislador
quando intensificar a proteção ou garantia mínima dada pelo direito fundamental.
No caso de restrição, ela pode ocorrer se o ato legislativo atender aos princípios
condicionantes da discricionariedade legislativa, como igualdade,
proporcionalidade, segurança jurídica objetiva e subjetiva e proibição do
retrocesso.
A norma que garante ao trabalhador um período de trinta
dias férias, v.g., constitui um direito fundamental social que deve ser observado
pelos empregadores ou pela Administração Pública. Nesse caso, o legislador não
pode diminuir para vinte dias o tempo de férias, mas pode aumentá-lo para
quarenta dias.
No caso de uma norma que proíba o trabalho de menores de
16 anos, a proteção infraconstitucional pode ser ampliada para proibir o trabalho
para menores de 18 anos. Em se tratando de normas regulamentáveis, como as de
princípios institutivos (aquelas em que o legislador traça esquemas e estruturas de
órgãos, entidades e institutos para que o legislador os estruture em definitivo),
possui o legislador maior liberdade.
122

Já no caso das normas restringíveis (ou de eficácia contida,


contível, na classificação adotada no Brasil, por sugestão de José Afonso da Silva),
aquela em que o legislador tem autorização implícita ou expressa para restrição,
sua liberdade é seguramente maior que nos casos anteriores, mas o próprio
comando autorizativo da restrição serve de limitação ao legislador. Isso não obsta,
por outro lado, que atendendo aos princípios condicionantes da discricionariedade
legislativa, possa o legislador avançar mesmo além da limitação imposta.

2.5.8. Deveres prescritos

Uma ordem jurídica não apenas estabelece direitos aos


cidadãos e deveres aos poderes constituídos, mas pode igualmente prescrever
deveres aos cidadãos.
Por mera questão didática, empregou-se o termo
“imposições constitucionais” para se referir aos deveres impostos aos poderes
constituídos, reservando o termo “deveres prescritos”, por paralelismo à expressão
“direitos garantidos”, para se referir às imposições dirigidas aos particulares.
Os deveres prescritos podem ser negativos ou afirmativos.
Como exemplo de dever negativo, pode-se citar a proibição do “lock-out” (artigo
57.º, 4, da CRP). Como deveres afirmativos, menciona-se o dever de os pais
educarem os filhos (art. 36.º, 5, da CRP), o dever de defender o meio ambiente (art.
66.º, 1). Cabe mencionar o sufrágio, que assume, em Brasil e em Portugal, um
caráter misto, de direito e dever (art. 49 da CRP e art. 14. §1º, da CRFB-88).
A vinculação do legislador aos deveres prescritos se dá
indiretamente, tal como ocorre com os direitos garantidos. No caso do sufrágio, por
exemplo, não pode o legislador retirar sua obrigatoriedade no Brasil.

2.5.9. Princípios estruturantes

Finalmente, os poderes constituídos, especialmente o


legislador, devem observância aos princípios estruturantes do Estado. Concebidos
em sua maioria como Estados de Direito, com algumas variações em torno dos
princípios democrático e socialista (ou de socialidade), os Estados ocidentais
modernos se estruturam em torno de princípios ínsitos a conceção de Estado de
123

direito, como a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a segurança jurídica e a


proporcionalidade.301
O quadro a seguir permite melhor visualizar a estrutura
constitucional de vinculação tratada neste capítulo:
Quadro 1 - Estrutura constitucional de vinculação
FIM DESTINATÁRIO
FUNÇÃO DO DESTINATÁRIO
FORMA DE PREDOMINANTE NATUREZA EXEMPLOS NA MEDIATO DA
ENUNCIADO IMEDIATO DA
VINCULAÇÃO DA DA NORMA CRP NORMA
VINCULANTE NORMA
VINCULAÇÃO (BENEFICIÁRIO)
Art. 20.º, 2; art.
Imposição Povo / Poder(es)
Ato (meio) Regra 26.º, 2 e 3; art. Legislador
legiferante Constituído(s)
33.º
Art. 1.º, 2ª parte;
art. 2.º, 2ª parte; Poder(es) Povo / Poder(es)
Programática Objetivo (fim) Programa
art. 9.º; art. 58.º, Constituído(s) Constituído(s)
2
Imposição Art. 19, I; Art.
constitucional Ato (meio) Regra Poder(es) Povo / Poder(es)
Proibitiva 33.º, 1, 7
Objetivo (fim) Constituído(s) Constituído(s)
Princípio Art. 18.º, 2 e 3;
Ato (meio) Princípio Art. 22.º; Poder(es) Povo / Poder(es)
Precetiva
Objetivo (fim) Regra Art. 23.º Constituído(s) Constituído(s)
Ato (meio) Regra Poder(es) Povo / Poder(es)
Condicional Art. 26.º, 4
Objetivo (fim) Princípio Constituído(s) Constituído(s)
Permissão Ato (meio) Regra Art. 7.º, 6, 7 Poder(es) Povo / Poder(es)
Autorizativa
constitucional Objetivo (fim) Princípio Art. 18.º, 2 Constituído(s) Constituído(s)
Art. 26,º, 4; Art.
Regra
Direito 28.º, 1 Povo / Poder(es)
Precetiva Objetivo (fim) Povo
garantido Princípio
Arts. 12.º; 13.º, Constituído(s)
14.º
Art. 57.º, 4
Dever Proibitiva Povo / Poder(es)
Objetivo (fim) Regra Art. 36.º, 5; art. Povo
prescrito Precetiva
66.º, 1
Constituído(s)
Precetiva Integridade Poder(es) Povo / Poder(es)
Princípio Art. 1º, 1ª parte
expressa constitucional Constituído(s) Constituído(s)
Subprincípios
decorrentes dos
Estrutura princípios
Constitucional Precetiva Integridade
constitucionais
Poder(es) Povo / Poder(es)
Princípio estruturantes,
Implícita constitucional Constituído(s) Constituído(s)
como os
previstos no art.
1º, 1ª parte, e
art. 2º, 1ª parte

301NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da república portuguesa. Coimbra:


Coimbra Editora, 2004, p. 49, et seq.
124

2.6. A VINCULAÇÃO MATERIAL DO LEGISLADOR AOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS SOCIAIS

Como visto nos tópicos anteriores, a vinculação do legislador


às normas constitucionais assume maior complexidade no Estado social,
especialmente a partir da adoção do dirigismo constitucional, uma vez que,
diversamente das normas típicas das Constituições liberais, dotadas de conteúdo
mais determinado e de maior densificação, a estrutura das normas de direitos
sociais implica maior atuação do legislador e, por conseguinte, maior liberdade de
conformação. 302 A par de normas declaratórias de direitos, o novo modelo recorre
a outros enunciados que garantem direta ou indiretamente a observância de
direitos sociais constitucionalmente consagrados. Cada uma dessas fórmulas
enunciativas possui estrutura própria, apresentando, em consequência, âmbitos,
intensidade e natureza vinculativa diversa.
Tal complexidade levou a dogmática jurídico-constitucional
a desenvolver esquemas de interpretação voltados à solução de problemas
advindos de cada grupo dessas normas, que podem ser assim subdivididas: as
normas que vinculam materialmente o legislador ao criar uma delimitação de
conteúdo específico que deve ser observado pelos poderes constituídos, podendo
consagrar uma posição jurídica subjetiva ou não, a depender de sua densificação, e
as normas que operam uma vinculação formal e direta, com a imposição de
obrigações-meio ou a imposição de metas e fins a serem alcançados por meios
discricionários.
O direito constitucional pós-moderno, em geral, já não mais
trabalha com a dúvida acerca da normatividade dos catálogos de direitos
fundamentais. O artigo 1º, (3), da Lei Fundamental de Bona representou
significativa contribuição para sua afirmação, ao estabelecer a vinculação jurídica
dos direitos fundamentais:
Artigo 1

302 Além da nossa classificação no item 2.5. e a classificação sugerida por Canotilho, convém conferir
a exemplificação trazida por Cristina Queiroz acerca das diferentes "técnicas" ou "enunciados
normativos", segundo a literatura jurídica: tarefas legislativas, normas-fins, tarefas constitucionais,
princípios diretivos e mandamentos de otimização. Cf. QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais...,
cit., p. 64. Ainda segundo Alexy, as normas sociais implicariam, assim, direitos a prestações em
sentido amplo, os quais possuiriam como espécie os direitos a prestações em sentido estrito, os
direitos à proteção, à organização e ao procedimento. Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos..., cit., p.
43; 195-6; 202-3.
125

[Dignidade da pessoa humana – Direitos humanos – Vinculação


jurídica dos direitos fundamentais]
(...)
(3) Os direitos fundamentais, discriminados a seguir, constituem
direitos diretamente aplicáveis e vinculam os poderes legislativo,
executivo e judiciário. (grifamos)

A aplicabilidade imediata prevista no modelo alemão foi


transferida para as Constituições portuguesa e brasileira. Sua interpretação,
porém, deve considerar a distinção entre os direitos fundamentais clássicos de
liberdade e os direitos sociais. Compreender essa diferença é, ademais,
imprescindível para a adoção de uma teoria da interpretação constitucional
compatível com a Constituição social e dirigente.

2.6.1. As diferenças entre as normas de direitos fundamentais sociais e os


direitos e garantias individuais

Embora não haja consenso, os direitos sociais são


considerados direitos fundamentais pela doutrina e jurisprudência constitucional
moderna predominante, entendimento reforçado pelos diversos tratados
internacionais. A aplicação, contudo, do mesmo regime jurídico que disciplina os
direitos de liberdade aos direitos sociais dependerá da estrutura da norma de
direitos sociais envolvida, considerando também cada sistema constitucional
positivo. 303

2.6.1.1. A questão em Portugal

Segundo o artigo 17.º da CRP, “o regime dos direitos,


liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos
fundamentais de natureza análoga”.
Conquanto muitas normas não possam ser classificadas
como direitos, liberdades e garantias fundamentais, elas podem assegurar uma
proteção equivalente à dessa categoria de direitos. Nesse sentido, a inclusão ou não
dos direitos sociais dentre aqueles de que trata o artigo 17.º da CRP, v.g., pode
determinar a maior ou menor relevância da aplicação de princípios vinculantes a
tal categoria de direitos.

303ALMEIDA, Luiz Eduardo de. Direitos sociais e seus limites: uma construção a partir das decisões
do STF. Curitiba: Juruá, 2017, p. 126 et seq.
126

Em torno da interpretação do artigo, cuja redação é


atribuída a Jorge Miranda,304 a doutrina portuguesa se dividiu sobre a
possibilidade de inclusão dos direitos sociais como direitos fundamentais de
natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias previstos no título II da Parte I
da CRP. 305
Assim, segundo o artigo 17.º, há a necessidade de saber se
um determinado direito diverso do direito de liberdade se comporta como tal. Um
direito social como a segurança social pode estar mais na esfera de alcance de um
princípio norteador de um direito individual como a propriedade - no caso a
vedação de confisco -, que propriamente de outro direito social. 306
Na doutrina portuguesa, existem três posições: a) aquela que
defende o dualismo entre os direitos, liberdades e garantias e os direitos
económicos, sociais e culturais; b) aquela que defende uma unidade dogmática
entre ambas; e c) uma tese intermediária.
Para a primeira corrente, os direitos constitucionais a
prestações constituem direitos limitáveis, assim como os direitos de liberdade e os
direitos de igualdade. 307
Outros autores entendem que os direitos sociais são direitos
fundamentais, porém com um regime específico.308
A primeira corrente sustenta sua tese na estrutura de ambos
os tipos de normas e na sua aplicabilidade. As normas que veiculam direitos de

304 É sabido em Portugal, conforme ele próprio admite, que foi Jorge Miranda o autor intelectual da
proposta contida no referido artigo 17, o qual nega a intenção de criação de uma unidade
dogmática.
305 Com efeito, a CRP consagra na Parte 1 (arts. 12.º a 79.º) os direitos fundamentais e os subdivide

em três títulos, sendo o primeiro de princípios gerais (arts. 12.º a 23.º), o título II sobre os direitos,
liberdades e garantias, e o título III sobre os direitos econômicos e sociais. A discussão acerca da
unidade dogmática está em saber se o regime que decorre da aplicação dos artigos 12.º a 23.º se
aplica aos direitos previstos no restante do título. Por sua distribuição tópica, se os artigos não
contivessem qualquer restrição de sua aplicação, o entendimento seria o de que se aplicariam tanto
aos direitos de liberdade como aos direitos sociais. Mas o artigo 17.º da CRP deixa claro que o
regime de direitos, liberdades e garantias se aplica aos direitos de natureza análoga aos direitos de
liberdade.
306 Recorde-se que na Alemanha o princípio da proibição do retrocesso social teve como fundamento

o direito de propriedade. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria
geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012, p. 450-1.
307 É o caso, dentre outros, de Borowski. Cf. BOROWSKI, Martin. La restricción de los derechos

fundamentales. Revista Española de Derecho Constitucional, n. 59, may./ago. 2000, p. 30.


308 Nesse sentido: QUEIROZ, Cristina. Direito fundamentais sociais: funções, âmbito, conteúdo,

questões interpretativas e problemas de justiciabilidade. Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 2006,


p. 6.
127

liberdade teriam seu “conteúdo principal determinado ou determinável ao nível


constitucional”309, ao passo que as segundas são dependentes da liberdade de
conformação do legislador.310 Ademais, as primeiras podem ter aplicabilidade
imediata, ao contrário das normas de direitos sociais.311
A doutrina da unidade dogmática assenta-se nos seguintes
pressupostos: a) a fundamentalidade no plano axiológico dos direitos sociais numa
acepção histórico-evolutiva ligada à ideia de Estado social;312 b) idêntica relevância
material entre direitos de liberdade e direitos sociais;313 c) a necessidade
financeira do Estado de garantir a ambos;314 d) a existência de uma dimensão
subjetiva em cada categoria de direitos.315 Em razão disso, pressupõe tal corrente o
erro lógico do constituinte.316
A terceira corrente, com algumas diferenças entre os
autores, reconhece o déficit de conteúdo normativo dos direitos econômicos,
sociais e culturais; a exigência, por outro lado, de imposições de legislar
densificando tais conteúdos; e a semelhança estrutural de alguns desses direitos
com os direitos, garantias e liberdades tutelados pelo artigo 17.º.317

2.6.1.2. A questão no Brasil

A CRFB-88 não contém disposição semelhante ao artigo 17.º


da CRP, cabendo observar que o texto constitucional brasileiro pouco discorre

309 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. 5.
ed. Coimbra: Almedina, 2012, p. 176.
310 MEDEIROS, Rui. Direitos, liberdades e garantias e direitos sociais: entre a unidade e a

diversidade. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia. Jorge Miranda (Coord.).
Lisboa: FADUL, 2010, v.1, p. 677.
311 Sobre a diferença entre ambas as normas, cf. BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Estudios sobre

derechos fundamentales. Trad. Juan Luis Requejo Pagés e Ignacio Villaverde Menéndez. Baden
Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1993, p. 80 et seq.
312 Cf. MEDEIROS, Rui. Direitos, liberdades e garantias..., cit., p. 660.
313 Nesse sentido SILVA, Vasco Pereira da. A cultura a que tenho direito – direitos fundamentais e

cultura. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 33; Todos diferentes, todos iguais. Breves
considerações acerca da natureza jurídica dos direitos fundamentais. Direitos Fundamentais e
Justiça, n.º 16, ano 5, jul./set. 2011, p. 30; e NOVAIS, Jorge Reis. O Tribunal Constitucional e os
direitos sociais: o direito à segurança social. Jurisprudência Constitucional, Lisboa, n. 6, abr./jun.
2005, p. 7.
314 Cf. SILVA, Vasco Pereira da. Verde cor de direito: lições de direito do ambiente. Coimbra:

Almedina, 2002, p. 87.


315 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. De novo a querela da ‘unidade dogmática’ entre direitos de

liberdade e direitos sociais em tempos de ‘exceção financeira’”. In: Epública: Revista eletrônica de
direito público, n°. 3, 2014. Disponível em: <http://e-publica.pt/>. Acesso em: 8 mar. 2015, p. 4-6.
316 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais..., cit., p. 349.
317 Cf. ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos fundamentais…cit., p. 41-2.
128

sobre o regime dos direitos fundamentais, tal qual faz a Constituição portuguesa,
resumindo tal regime ao disposto no §1º do artigo 5º que prevê a aplicabilidade
imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais. Não
obstante, a discussão sobre uma unidade dogmática também se faz presente, a par
da própria fundamentalidade dos direitos sociais.
Em decisão emblemática, contudo, o Superior Tribunal de
Justiça no Brasil, órgão encarregado de julgar violações às leis federais do país,
entendeu que inexiste direito líquido e certo a normas meramente programáticas,
como o direito à saúde, pois tais direitos dependeriam do reconhecimento de
“direito subjetivo próprio" inexistente, até que o legislador "exerça o múnus de
completá-las através da legislação integrativa”.318
Não obstante, o STF passou a dar outro entendimento à
efetividade de tais normas nos julgados mais recentes. Sob a condução do Ministro
Celso de Mello, diversos acórdãos a partir de 2014 passaram a conferir maior
efetividade aos direitos sociais, como no caso da ampliação e melhoria das
maternidades estaduais319, o custeio, pelo Estado, de serviços hospitalares
prestados por instituições privadas em benefício de pacientes do sistema público
de saúde320 ante as situações de inexistência de leitos na rede pública321,
manutenção de rede de assistência à saúde da criança e do adolescente322 e a
garantia de um prazo de 15 minutos antes da jornada extraordinária de trabalho
para mulheres323.
No julgado do ARE 745745 AgR, v.g., por exemplo, o Ministro
Celso de Mello resgata decisão monocrática tomada na ADPF 45/DF, onde assentou
que competiria ao Poder Judiciário, ante a inércia dos demais poderes, proceder à
formulação de políticas públicas:
É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções
institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em
especial - a atribuição de formular e de implementar políticas
públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os Direitos

318 Cf. RMS 6.564/RS, STJ, j. 17.6.1996.


319 Cf. RE 581352 AgR/AM. Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello. J. 29.10.2013. Pub. 22.11.2013,
p. 20.
320 No Brasil, o sistema público de saúde é organizado sob a forma do Sistema Único de Saúde – SUS,

que articula as ações estatais de todos os entes federativos, União, Estados, Distrito Federal e
Municípios.
321 Cf. ARE 727864 Agr/PR. Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello. J. 4.11.2014. Pub. 13.11.2014.
322 Cf. RE 745745 AgR/MG. Segunda Turma. Rel. Min. Celso de Mello. J. 2.12.2014. Pub. 19.12.2014.
323 Cf. RE 658312/SC. Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli. J. 27.11.2014. Pub. 10.2.2015.
129

Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, p. 207, item


n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo
reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.

Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais,


poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos
estatais competentes, por descumprirem os encargos político-
jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com
talcomportamento, a eficácia e a integridade de direitos
individuais e/ou coletivos impregnados de estatura
constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de
conteúdo programático. (grifo nosso)324

Embora naquela oportunidade, por perda superveniente do


objeto, tenha a ADPF sido julgada prejudicada, os argumentos ali lançados
passaram a sustentar as citadas decisões futuras, as quais passaram a conferir aos
direitos fundamentais tratamentos muito próximos, mormente a
autoaplicabilidade e criação de direitos subjetivos, que aos direitos de liberdade.

2.6.2. Análise crítica da aplicação do mesmo regime das direitos, liberdades e


garantias aos direitos fundamentais sociais

A despeito de, em Portugal, devido especialmente ao


disposto no artigo 17.º da CRP, a discussão em torno da distinção entre ambos os
direitos, o debate não deixa de existir no Brasil, conquanto mais reduzido à
questão da aplicabilidade imediata dos direitos sociais, por força do disposto no
§1º do artigo 5º da CRFB-88.
É possível, contudo, proceder a uma análise crítica que,
aproveitando-se em maior intensidade do debate português, extraia conclusões
aplicáveis também ao caso brasileiro.

2.6.2.1. A fundamentalidade dos direitos sociais

A questão em torno da fundamentalidade dos direitos


sociais atrai a velha discussão terminológica em torno dos direitos fundamentais.
Sem espaço para discussão sobre o tema, adota-se o termo direitos humanos ou
direitos do homem para designar as normas – com fundamento jusnaturalista – que
se acredite inerentes a qualquer pessoa em virtude de sua condição de ser
humano, e o termo direitos fundamentais – num viés juspositivista – para designar

324 Cf. ADPF 45/DF.


130

as mesmas normas que foram objeto de positivação no âmbito dos Estados ou de


organizações supraestatais como a UE ou o Conselho da Europa.325
Tal fundamentalidade, todavia, pode-se dar em duas
dimensões: na formal e na axiológica. A fundamentalidade formal cinge-se à
consagração expressa do rol de direitos fundamentais no texto constitucional.
Assim, tanto a CRP quanto a CRFB-88 consagram formalmente os direitos sociais
como espécies de direitos fundamentais. Já a fundamentalidade axiológica deriva
de uma pretensa conceção de que os direitos sociais derivariam de uma
interpretação dos demais direitos fundamentais clássicos, em especial a própria
dignidade da pessoa humana.
A fundamentalidade axiológica encontra forte amparo no
direito alemão. De fato, como demonstra Alexy, a Constituição alemã apresenta
apenas um direito fundamental social - o direito da mãe à proteção e à assistência
da comunidade (art. 6º, §4º). No mais, a Lei fundamental de Bona é silente em
relação aos demais direitos sociais, o que levou o Tribunal Constitucional a
reconhecer direitos a prestação decorrentes de princípios estruturantes ou outros
direitos de liberdade, como se deu no caso da decisão de 1975 em que se
reconheceu o direito de assistência material aos cidadãos sem condições de se
autossustentar.326 Com base neste e em poucos outros precedentes, 327 reconheceu

325 Com efeito, as expressões direitos do homem, direitos humanos, direitos fundamentais ou outras
equivalentes têm rendido algum tipo de preocupação doutrinária. Tal preocupação decorreria não
apenas da construção histórica do conceito material subjacente de direitos humanos, mas da
própria necessidade que há em distinguir o rol de direitos que são expressamente reconhecidos
numa determinada ordem constitucional daqueles que, embora não assimilados de tal modo, sejam
tidos como vinculantes dos poderes constituídos, numa visão jusnaturalista, seja por serem
considerados inerentes a cada ser humano, seja pelo recurso a técnicas retóricas utilizadas para
justificar a densificação de princípios de baixa normatividade e conteúdo altamente indeterminado,
como ocorre com o princípio da dignidade da pessoa humana. Sobre a distinção conceitual entre as
expressões, cf., MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed., Coimbra: Coimbra Editora,
2000, Tomo IV, p. 52-54. Uma dificuldade para se afastar essa confusão terminológica está
justamente no fato de que os textos normativos, especialmente os de abrangência internacional,
empregam uma expressão pela outra, reconhecendo sua equivalência, como ocorre com a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais, entre outras.. Acompanhamos, contudo, o entendimento de Maria Luísa Duarte.
DUARTE, Maria Luísa. União europeia e direitos fundamentais: no espaço da internormatividade.
Lisboa: AAFDL, 2006, p. 35.
326 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos..., cit., p. 435-7.
327 Peter Häberle também defende a dedução de direitos sociais a partir dos direitos de liberdade.

Cf. HÄBERLE, Peter. El contenido esencial de los derechos fundamentales: una contribución a la
concepción institucional de los derechos fundamentales y a la teoría de la reserva de la ley. trad. J.
B. Camazano. Madrid: Dykinson, 2003, p. 18.
131

a jurisprudência e doutrina alemã a existência de "direitos fundamentais sociais"


não explícitos. 328
Nesse sentido, a doutrina que defende a fundamentalidade
axiológica assenta sua tese no seguinte raciocínio: se na Alemanha se extraiu do
princípio da dignidade da pessoa humana um direito social prestacional, todos os
direitos prestacionais reconhecidos ou não pela constituição seriam fundamentais,
sendo a previsão expressa até mesmo desnecessária.329
Essa tese, contudo, não prospera. Em primeiro lugar, como
reconhece Alexy, apenas excepcionalmente e após muito debate - que ainda
persistem - é que se reconheceram tais direitos sociais explícitos.330 Ademais, a
fundamentalidade não possui necessariamente uma repercussão prática, na
medida em que, mesmo que se reconhece a tese da unidade dogmática,
persistiriam os mesmos óbices para a reivindicação subjetiva de tais direitos, ante
os problemas estruturais particulares dos direitos prestacionais.
Assim, deve ser refutada a unidade dogmática ao
fundamento de que todos os direitos fundamentais decorrem do princípio da
dignidade da pessoa humana, seja pela indeterminação de seu conteúdo, seja
porque, ainda que se admitisse um conteúdo consensual, ele não teria o condão de
transformar em igual o que é estrutural e materialmente diferente.

2.6.2.2. A coincidência material de normas de direitos de liberdade com normas de


direitos sociais

A tese de coincidência material de algumas das normas de


direitos de liberdade com normas de direitos sociais não pode ser generalizada para
extensão dos princípios contidos nos arts. 12.º a 23.º a normas de direitos sociais
que apresentem estrutura diversa dos direitos de liberdade.

328 Em decorrência, houve a necessidade de uma distinção terminológica entre "direitos


fundamentais sociais" e "direitos fundamentais a prestações". Os primeiros referem-se aos direitos
sociais imediamente proclamados nos textos constitucionais como normas sociais. É o caso do
direito à saúde, à educação, à moradia, etc. Por outro lado, há situações em que direitos sociais
decorrem mediatamente de interpretações dos direitos de liberdade ou igualdade. Tal distinção,
porém, faz mais sentido no sistema alemão, onde há raros direitos constitucionais sociais previstos
expressamente, razão pela qual se empregará o termo "direitos fundamentais sociais" para se
referir às "obrigações de prestação positivas cuja satisfação consiste (...) numa 'acção positiva' a
cargo dos poderes públicos". Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos..., cit., p. 499.
329 Cf. SILVA, Vasco Pereira da. Todos diferentes, todos iguais. Breves considerações acerca da

natureza jurídica dos direitos fundamentais. Direitos Fundamentais e Justiça, n.º 16, ano 5, jul./set.
2011, p. 30.
330 Ibid., p. 435.
132

2.6.2.3. A igualdade de custos entre direitos de liberdade e direitos sociais

A obra de Holmes e Sunstein teve grande importância e


repercussão por oferecerem a antítese necessária e reflexão acerca dos custos dos
direitos de liberdade, como forma de mitigar ou reduzir as políticas estatais que se
concentrariam na redução de direitos sociais como forma de diminuir o déficit
público. 331 Mas se teve o mérito de promover tal reflexão, igualmente o teve em
permitir que se comparassem tais custos.
De fato, já na introdução deste trabalho citamos números
que demonstram a distinção quantitativa de recursos gastos com direitos sociais
em comparação com direitos de liberdade. Além disso, Carlos Blanco de Morais
coloca uma distinção qualitativa no debate: é que muitos dos direitos de liberdade
compartilham custos do aparato estatal com outras áreas, inclusive com a própria
manutenção de aparatos centrais e imprescindíveis para qualquer organização
estatal, cuja existência prescindiria da consagração ou não de tais direitos.332
É possível, portanto, reconhecer a existência de custos para
os direitos de liberdade, uma vez que todos os direitos envolvem uma prestação
positiva do Estado.333

2.6.2.4. A dimensão subjetiva dos direitos sociais

Outro argumento recorrente é o de que ambos os direitos


possuem uma dimensão subjetiva. Ter dimensão subjetiva significa conferir
direitos subjetivos, os quais, por sua vez, importam na possibilidade de exigência
judicial de um direito.
Não se nega por completo essa tese, mas a criação de
direitos subjetivos a partir das normas de direitos sociais depende da satisfação de
alguns requisitos.
Em primeiro lugar, só excepcionalmente pode-se admitir
que as normas constitucionais de direitos sociais sejam convoladas em direitos
subjetivos. De fato, reclamando estes uma “determinabilidade normativa”, com

331 Cf. HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New
York, London: W. W. Norron & Company, 1999, p. 35 et seq.
332 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. De novo a querela da ‘unidade dogmática’…cit., p. 7.
333 Cf. HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New

York, London: W. W. Norron & Company, 1999, p. 35 et seq. SILVA, Vasco Pereira da. Verde cor de
direito: lições de direito do ambiente. Coimbra: Almedina, 2002, p. 8
133

objeto, destinatário e conteúdo delimitados, determinados ou determináveis, sua


judicialização, característica dos direitos subjetivos, não é possível, porquanto
normas de caráter programático, como as que prevêem o direito à saúde, à
educação e à habitação, dentre outras, não alcançam um grau suficiente para sua
dedução em juízo.334
Os direitos subjetivos a uma reivindicação da ação estatal
seriam possíveis nos termos do ordenamento jurídico-constitucional. Ocorre que
em grande parte dos ordenamentos, como se dá no Brasil e em Portugal, não há um
meio constitucionalmente previsto para compelir o legislador a fazê-lo. De
qualquer modo, desde que respeitado o núcleo essencial do direito social, qualquer
ação estatal que lhe dê alguma efetividade desconfigura a condição de
inadimplência do legislador.
Canotilho, por sua vez, reconhece a possibilidade das
normas de direitos sociais gerarem direitos subjetivos à reclamação judicial para
manutenção do nível de realização do direito constitucional e proibição de
qualquer “tentativa de retrocesso social”.335 O autor é contrário à tese de total
correlação entre dever-objetivo e direito-subjetivo proposto por Kelsen.336 Nesse
sentido, reconhece que
direito subjectivo social, economico e cultural — imposições
legiferantes e prestacoes não devem confundir-se. O
reconhecimento, por exemplo, do direito à saúde, é
diferente da imposição constitucional que exige a criação do
Serviço Nacional de Saúde, destinado a fornecer prestações
existenciais imanentes àquele direito.337

Já os direitos a uma prestação determinada só podem ser


exercitados se presentes, como enuncia Alexy, o destinatário, o titular do direito e
o objeto determinado.338 Ocorre que as normas de direitos sociais raramente
determinam tais elementos, o que depende de uma densificação legislativa, sem a
qual não há que se falar em direitos subjetivos.

334 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional..., cit., p. 574.
335 Segundo Canotilho, tais imposições constituiriam os direitos originários a prestações e sua
concretização por atos normativos infraconstitucionais corresponderiam a direitos derivados a
prestações. Reconhece o autor que para a maior parte dos juristas, os direitos a prestações seriam
normas programáticas, e não imposições constitucionais e, portanto, não gerariam direitos
subjetivos. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 366; 374.
336 KELSEN, Hans. Teoria pura..., cit., p. 140-1.
337 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 368.
338 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos ..., cit., p. 43; 195-6; 202-3.
134

Tais direitos prestacionais, ou de créditos dos indivíduos


perante a coletividade, como prefere chamar Celso Lafer339, podem consistir,
portanto, em direitos subjetivos a prestações sociais, na medida em que a lei
preveja um direito líquido e certo a certa prestação estatal. É o caso, v.g., da lei que
regulamenta os benefícios assistenciais. Uma vez determinado que todo cidadão,
ao atingir certa idade ou tempo de serviço, fará jus à percepção de uma pensão
mensal, tal prestação torna um direito subjetivo – porquanto possui um valor e
natureza certa determinada e exigível do Estado. No caso, porém, de determinada
lei instituir as bases gerais que devem informar determinada prestação social, sem
definir seu quantum e requisitos para concessão, não há um direito subjetivo a tais
prestações, mas igualmente um direito subjetivo de exigir uma ação estatal. Ambas
por vezes se confundem.
Não obstante, a constatação de que alguns direitos sociais
podem criar posições jurídicas ativas correlatas não é suficiente para defender a
tese da unidade dogmática. Há não apenas uma distinção estrututal, mas de
potencial de restrição. Como assevera Jorge Reis Novais, se os direitos de liberdade
podem ser restringidos, também podem os direitos sociais, sobretudo porque
neste caso deve-se observar a reserva do financeiramente possível.340

2.6.2.5. Posição adotada

A tese da unidade dogmática, assim, carece de argumentos


propriamente científicos, afeiçoando-se mais a uma espécie de ativismo
doutrinário.
Nesse tema a posição adotada pelo TC parece ser, de fato, a
que melhor reflita a distinção que deve ser feita entre ambas as categorias de
direitos e a acomodação dessa distinção com os princípios presentes no Estado
português e, com suas peculiaridades, nos demais Estados sociais.341
De fato, em primeiro lugar, se o constituinte quisesse
unificar o regime, teria dito expressamente, pois não se presume o erro do

339 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de hannah
Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 127 e 130/131.
340 NOVAIS, Jorge Reis. Princípios constitucionais..., cit., p. 304-6.
341 Ibid., p. 9.
135

legislador.342 Por isso, há que se entender que o regime aplicável a uma norma de
direito social dependerá da sua estrutura normativa. Se uma norma tiver estrutura
idêntica a uma norma de direito de liberdade, poderá ser aplicado os princípios
decorrentes do regime de direitos de liberdade, consoante dispõe o artigo 17.º.343
Se não, isso não impedirá a aplicação de princípios que informam os direitos
fundamentais como um todo e que podem ser extraídos da conceção de Estado de
direito, mediante uma interpretação que observe os postulados da lógica e do rigor
científico, bem como a legitimidade democrática prevista no arranjo institucional
do sistema jurídico em questão.344

2.6.3. Morfologia das normas de direitos sociais

A identidade estrutural da norma de direito social com uma


norma garantidora de um direito de liberdade pode não se dar integralmente.
Nesses casos, apenas a parte que se comportar como direito de liberdade é que
poderá sofrer a mesma tutela que lhe é oferecida.345
A partir dessa compreensão, é possível conceber três tipos
de normas de direitos sociais. O primeiro tipo é a norma material de direito social,
cujo conteúdo tem a finalidade de garantir o direito de igualdade material e
decorre da busca pela efetivação da justiça social, sem, contudo, implicar uma
prestação positiva por parte do Estado, apenas o dever de sua observação pelo
particular ou pelo próprio Poder Público. É o que ocorre com as normas de
direitos sociais, de proteção à criança e ao adolescente, que assegura a igualdade
de tratamento de gênero no acesso à educação, ao emprego, etc. Essa norma pode
ser chamada de norma social garantista. Um segundo tipo é a norma que impõe ao
legislador um dever-meio de regulamentar a matéria, facultando-lhe ou não o
estabelecimento do dever-fim ou meta (norma-fim), hipótese em que se estará
diante de uma norma social programática. Finalmente, pode-se chamar norma

342 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais…cit., p. 349.


343 Observe-se que não é necessário que a norma de direito social possua uma identidade estrutural
integral com uma norma de liberdade, bastando que em parte se comporte como tal.
344 Para o Tribunal Constitucional, assim, aplica a cada direito, não importando se é um direito

social ou liberdade, os princípios que são atraídos e que podem ser invocados pra cada espécie de
direito. E, como observa José Melo Alexandrino, o regime não se aplica à norma de direito social
como um todo, mas apenas a sua dimensão análoga ao direito de liberdade. ALEXANDRINO, José de
Melo. Direitos fundamentais..., cit., p. 52.
345 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. MOREIRA, Vital. Constituição da república…cit., p. 375.
136

social plena a que prevê meios, pois, nesse caso, os fins são presumidos.346 Se a
norma social plena instituir o dever de prestações positivas, pode ser classificada
como normas sociais prestacionais. 347
Uma norma de direito social, todavia, pode apresentar as
quatro dimensões. É o caso da norma que institui uma renda mínima, ou uma bolsa
a famílias de baixa renda. Nesse caso, a norma apresenta as dimensões de garantia
(a um valor mínimo) e de prestação. As normas que criam direitos a prestações
podem ser exigidas pelo seu destinatário, quando este é determinado ou
determinável, ou seja, criam direitos subjetivos.
Assim, deve-se aplicar, portanto, a proteção reforçada às
normas de direitos sociais ou às suas dimensões que, dotadas de aplicabilidade
imediata, consistam em direitos subjetivos.348

2.6.4. Vinculação positiva do legislador aos direitos fundamentais sociais

A vinculação do legislador aos direitos fundamentais pode se


operar basicamente de duas formas. Na conceção clássica, os direitos
fundamentais eram considerados direitos de defesa contra os poderes
constituídos. Nesse sentido, os poderes constituídos não poderiam eliminar ou
reduzir o núcleo essencial dos direitos fundamentais. Isso implicava sua
indisponibilidade pelo legislador e a possibilidade de sua invocação contra o
mesmo poder, por inconstitucionalidade do ato legislativo ou administrativo que
violasse o conteúdo essencial desses direitos ou restringisse-los349. Mas essa
vinculação considera apenas a violação por comportamento positivo do legislador,
não por seu comportamento omissivo.350

346 Canotilho classifica tais normas como normas-tarefa. O termo por nós utilizado visa distinguir a
norma-tarefa relacionada a direito social. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição
dirigente..., cit., p. 287.
347 Essa classificação por nós sugerida não tem a pretensão de invalidar ou de sobrepor outras

classificações usualmente adotadas pela doutrina tradicional, mas apenas de conferir uma utilidade
semântica mais adequada ao presente trabalho.
348 Carlos Blanco de Morais conceitua direitos subjetivos como as “posições jurídicas ativas

individuais suscetíveis de invocação direta a partir da Constituição tendo em vista a obtenção de


uma situação de vantagem, no sentido de o respetivo titular poder agir, reagir ou exigir certas
condutas dos poderes públicos”. Cf. MORAIS, Carlos Blanco. Curso de direito constitucional: teoria da
constituição..., cit., p. 471.
349 Cf., nesse sentido, decisão do Conselho Constitucional francês. CC. Décision n.º 84-181, DC du 11

octobre 1984 (11 de outubro de 1984). ECLI:FR:CC:1984:84.181.DC


350 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 363.
137

Com efeito, no bojo de uma teoria da Constituição dirigente,


no entanto, surge a preocupação em dar uma resposta à problemática da violação
por comportamento omissivo do legislador. O poder legislativo tem o dever de
criar as condições necessárias para a efetivação das normas constitucionais.351 Há,
todavia, que se distinguir a situação em que o legislador atuou daquela em que
permaneceu inerte. Na primeira, haveria uma inconstitucionalidade por omissão, a
ser resolvida em cada ordenamento jurídico de acordo com os instrumentos
previstos, ao passo que na segunda a imposição de legislar seria cumprida.
Contudo, se cumprida a imposição legislativa, poderia o legislador retroceder? Em
caso afirmativo, qual seu limite?
Nessa linha, Canotilho defende que os tribunais podem
declarar a inconstitucionalidade dessa omissão, responsabilizando o legislador,
tomando como base, especialmente, o respeito ao núcleo essencial do direito
envolvido. Segundo o mesmo autor, contudo, a constatação de mora legislativa, no
entanto, não ensejaria uma ação contra o legislador, especialmente fundada em
pretensão decorrente de reconhecimento de qualquer direito subjetivo do cidadão
em face do Estado.352 Como se verá a seguir, no entanto, até mesmo para surpresa
de Canotilho, a jurisprudência constitucional brasileira, em revisão do
entendimento praticado nos primeiros anos de vigência da Constituição e sob
influxo de certo ativismo judicial, conferiu maior efetividade ao referido controlo,
ao suprir com o uso da analogia a omissão normativa.
A par disso, convém sublinhar que, enquanto princípios
fundamentais do Estado, os direitos fundamentais vinculam o legislador
especialmente de duas formas: a partir de sua natureza principiológica, atuando
como normas sopesáveis no processo de controle de constitucionalidade, e por
meio da proteção conferida ao seu conteúdo essencial.353
No mesmo sentido, afirma Canotilho que a liberdade do
legislador deve ser compreendida positivamente em seu “sentido democrático-

351 Cf. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 2. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 1993, p. 112.
352 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 273-4.
353 Sobre o tema, Cf. LOPES, Ana Maria D'Avila. Os direitos fundamentais como limites ao poder de

legislar. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001.


138

constitucional”, como realizadora dos direitos fundamentais, e não de forma


meramente negativa. 354
Assim, a regra geral de vinculação do legislador aos direitos
sociais segue a regra já definida para todos os direitos fundamentais, que se pode
dar negativa ou positivamente. Interessa, porém, para o presente trabalho, a
vinculação positiva, que implica o dever de agir do legislador.355
A vinculação positiva pode se dar das seguintes formas:
editando normas necessárias para dar cumprimento a imposições constitucionais,
para dar efetividade a direitos criados sem a necessária densificação, para cumprir
normas-meio, ou por favorecimento de certos grupos em detrimento de outros
(omissão relativa).356
Esse dever de ação do legislador, regulamentando
disposições constitucionais, densificando direitos ou perseguindo fins de cunho
social, enseja uma arquitetura constitucional própria de uma Constituição
dirigente, com mecanismos jurídicos efetivos de censura de sua omissão, que não
se resumam à responsabilidade política.357
Nesse contexto, previu a Constituição portuguesa de 1976,
seguida pela Constituição brasileira de 1988, a figura da declaração, pelo Poder
Judiciário, da inconstitucionalidade por omissão. O instituto prevê, em ambos os
sistemas, a possibilidade de os tribunais declararem o não cumprimento da
Constituição pela não adoção, pelo poder legislativo, de medidas legislativas
necessárias para execução das normas constitucionais.

354 Por isso, Canotilho complementa a fórmula já exposta: “de direitos fundamentais no âmbito da
lei, transitou-se para a ideia de lei apenas no âmbito dos direitos fundamentais e ‘como exigência de
realização concreta dos direitos fundamentais’.” CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito
constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 364.
355 Não se trata, nessas hipóteses, de mera faculdade do legislador, mas de obrigação imposta

constitucionalmente. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., 2001, cit., p.
331; MIRANDA, Jorge. Manual de direito...., 2001, t. VI, cit., p. 284. BARROSO, Luís Roberto. O direito
constitucional..., 2000, cit., p. 161-2. Ou, como afirma Ignácio Villaverde Menéndez, o silêncio do
legislador apresenta também um conteúdo normativo. Cf. MENÉNDEZ, Ignácio Villaverde. La
inconstitucionalidad por omisión. Madrid: McGraw-Hill, 1997, p. 3.
356 Como explica Carlos Blanco de Morais, as omissões podem ser absolutas totais ou parciais, a

depender do grau de cumprimento do dever, ou relativas, quando a regulamentação alcança apenas


alguns grupos, deixando de lado grupos em posições idênticas. Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Justiça
constitucional: o direito do contencioso constitucional. t. II, 2. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2011,
p. 457.
357 Cristina Queiroz demonstra as arquiteturas possíveis de positivação, segundo a literatura

jurídica. QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais..., cit., p. 64.


139

No caso português, a pedido o Presidente da República, do


Provedor de Justiça ou dos presidentes das Assembleias Legislativas das regiões
autónomas (no caso de violação de direitos das regiões autónomas), a omissão
pode ser reconhecida pelo TC, o qual comunicará o órgão legislativo competente
(artigo 283.º). Em face desse modelo, Canotilho afirmou em sua tese doutoral de
1982 que a "fixação do silêncio legislativo não adquire força executória contra o
legislador". Poderia o juiz tão somente determinar a aplicação direta da norma
constitucional, quando possível (é o caso da norma que prevê gratuidade a
portadores de mobilidade reduzida, mas não menciona expressamente as pessoas
obesas), mas jamais substituir o legislador.358
Já o sistema brasileiro foi mais ousado. O controle de
constitucionalidade por omissão na CRFB-88 pode ter dois objetos: lei ou ato
administrativo (art. 103, §2º). O primeiro caso tem redação similar ao texto
português. Difere, porém, no que toca aos legitimados, que incluem não apenas o
chefe do Poder Executivo, Legislativo e do Ministério Público, mas também a
Ordem dos Advogados do Brasil, Partidos Políticos e as Mesas Diretoras das
Assembleias Legislativas dos Estados. É curioso notar que o sistema português é,
senão natimorto, bastante contraditório, na medida em que confere aos potenciais
responsáveis pela mora legislativa o seu próprio controlo. No caso brasileiro,
outros atores políticos podem requerer a mora. Além disso, a ação direta de
inconstitucionalidade por omissão - ADO, no Brasil, prevê o prazo de 30 dias para
que a Administração edite a norma necessária. Embora o texto constitucional não
mencione a sanção, o descumprimento de dever legal sujeitaria o responsável a
responder por improbidade administrativa, condição que pode ensejar a perda do
cargo público no direito brasileiro.
Além da ADO, a omissão inconstitucional no sistema
brasileiro pode ser atacada por meio do mandado de injunção, espécie de garantia
prevista no artigo 5º, LXXI, da CRFB-88, que permite a qualquer cidadão ajuizá-lo
individualmente, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o
exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à
nacionalidade, à soberania e à cidadania. Ironicamente, o STF discutiu, um ano
após a promulgação da Constituição de 1988, se a norma que previa o mandado de

358 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 273-4.


140

injunção teria aplicabilidade imediata, entendendo o colegiado que sim. Caso


contrário, o direito brasileiro teria criado a absurda figura de condicionar o
exercício do mandado de injunção a outro mandado de injunção impossível de se
impetrar por ausência de norma regulamentadora. Não obstante, na mesma ação,
decidiu o STF a ação visaria tão somente a declaração, pelo Poder Judiciário, da
mora legislativa. 359
Quase duas década depois, no entanto, no bojo de um
mandado de injunção, o STF alterou sua jurisprudência e passou a suprir - ele
próprio - a lacuna normativa, por meio da analogia. No julgamento do Mandado de
Injunção nº 670/ES, pleiteou-se o suprimento da lacuna normativa relativa ao
exercício do direito de greve dos servidores públicos. O STF já havia declarado, em
1994, a mora legislativa sobre a questão.360 Diante do estado de inércia
permanente dos poderes legiferantes, dando margem ao exercício abusivo do
direito por funcionários públicos, entendeu o STF que a mera declaração de mora
era absolutamente ineficaz, sendo imprescindível que o tribunal imprimisse efeitos
concretos à ordem injuncional, sob pena de incidir em mora judicial. A forma
encontrada para intervir da menor forma possível na função legislativa, a despeito
de divergências entre os julgadores, foi aplicar por analogia a regulamentação de
greve dos empregados privados. 361
Essa é, portanto, a primeira forma de vinculação positiva do
legislador aos direitos sociais. Em Portugal, a omissão normativa implica a
declaração de omissão, expondo politicamente o legislador. No Brasil, a omissão
tem efeitos mais gravosos, gerando a intervenção parcial e temporária no exercício
da função legislativa.
Além da omissão regulamentadora, o legislador pode se
encontrar inerte em face de normas-tarefas ou normas programáticas, que não
assegurem propriamente um direito, mas uma meta. Nesses casos, a vinculação do
legislador se mostra menor, porquanto sua margem discricionária abrange

359 Em seu voto, o ministro Celso de Mello acentua que o Judiciário não pode substituir o legislador
ou o administrador omissos, devendo observar estritamente o princípio constitucional da divisão
funcional do poder. No mesmo sentido, o ministro Moreira Alves, relator do processo, defende que
apenas os Poderes Legislativo e Executivo, cujos membros são eleitos diretamente pelo povo,
podem suprir efetivamente a lacuna normativa, eis que envolvem uma decisão política, e não o
Poder Judiciário. Cf. MI 107/DF.
360 Cf. MI 20/DF.
361 Cf. MI 670/ES.
141

qualquer medida adequada a atingir a meta, o que dependerá de vários fatores


conjunturais, como a reserva do possível, a realidade econômica, cultural, política e
social.362
Em qualquer caso, o controlo de constitucionalidade da
omissão legislativa, tal como controle da ação legislativa, atrai a articulação de
princípios constitucionais, muitos dos quais os mesmos, como a proporcionalidade,
a razoabilidade e o sopesamento de interesses ou circunstâncias de fato, como a
reserva do possível.363
Nessa esteira, tem entendido o Supremo Tribunal Brasileiro
que o princípio da dignidade da pessoa humana, ou as normas de direitos sociais
que consagrem o direito à saúde e à educação, v.g., em construção muito parecida
com a do Tribunal alemão364, ainda que sem qualquer densificação, gera direito
subjetivo.
Em diversos julgados, o STF passou a dar outro
entendimento à efetividade de tais normas mais recentemente. Sob a condução do
Ministro Celso de Mello, diversos acórdãos a partir de 2014 passaram a conferir
maior efetividade aos direitos sociais, como no caso da ampliação e melhoria das
maternidades estaduais365, o custeio, pelo Estado, de serviços hospitalares
prestados por instituições privadas em benefício de pacientes do sistema público
de saúde366 ante as situações de inexistência de leitos na rede pública367,
manutenção de rede de assistência à saúde da criança e do adolescente368, a
garantia de um prazo de 15 minutos antes da jornada extraordinária de trabalho
para mulheres369 e às reformas das instalações presidiárias.370

362 Cf. SILVA, Jorge Pereira da. O dever de legislar e proteção jurisdicional contra omissões
legislativas: contributo para uma teoria de inconstitucionalidade por omissão. Lisboa: Universidade
Católica Editora, 2003, p. 11.
363 Circunstância que Jorge Pereira da Silva descreve como hipótese de dever de legislar sujeito a

condição suspensiva. SILVA, Jorge Pereira da. O dever de legislar..., cit., p. 196.
364 No já mencionado caso da decisão de 1975 em que se reconheceu o direito de assistência

material aos cidadãos sem condições de se autossustentar.Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos...,
cit., p. 435-7.
365 Cf. RE 581352 AgR/AM. Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello. J. 29.10.2013. Pub. 22.11.2013,

p. 20.
366 No Brasil, o sistema público de saúde é organizado sob a forma do Sistema Único de Saúde – SUS,

que articula as ações estatais de todos os entes federativos, União, Estados, Distrito Federal e
Municípios.
367 Cf. ARE 727864 Agr/PR. Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello. J. 4.11.2014. Pub. 13.11.2014.
368 Cf. RE 745745 AgR/MG. Segunda Turma. Rel. Min. Celso de Mello. J. 2.12.2014. Pub. 19.12.2014.
369 Cf. RE 658312/SC. Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli. J. 27.11.2014. Pub. 10.2.2015.
370 Cf. RE 592581/RS. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ricardo Lewandowiski. J. 13/8/2015
142

No RE 612975/MT, o STF reconheceu outra consequência do


descumprimento da vinculação positiva do legislador (e dos poderes públicos em
geral) - o dever de indenizar. No caso emblemático em que o STF, inspirado na
jurisprudência constitucional colombiana, reconheceu o "estado de coisas
inconstitucional", determinou o pagamento de indenização aos presos. No caso,
porém, após debate entre os Ministros, assentou-se que a melhor forma de se
coadunar a sanção pela omissão com a reserva do financeiramente possível seria à
indenização mediante remição de pena, sendo assim lavrada a decisão final:
(...) considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema
normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de
humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua
responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º da Constituição, a
obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais,
comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta
ou insuficiência das condições legais de encarceramento.371

Assim, como explica e resume Cristina Queiroz, a


aplicabilidade imediata de um direito social, ainda que estruturalmente resida em
norma programática, não se confunde com o prescindir de sua densificação. Tais
normas não são, especialmente a partir do paradigma trazido pela Constituição
dirigente, "meros apelos ao legislador". Elas são normas constitucionais e, nessa
qualidade, apresentam "normatividade" em diversos graus de intensidade. Se não
vinculam o legislador a ponto de criar uma posição jurídico-subjetiva, vinculam
sua interpretação e, destarte, servem de limite negativo à ação do legislador.372

371 Cf. RE 580252/ MS. Tribunal Pleno. Rel. p/ acórdão. Min. Gilmar Mendes. J. 16/2/2017.
372 Cf. QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais sociais..., cit., p. 67.
143

2.7. A VINCULAÇÃO FORMAL DO LEGISLADOR À CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE -


A QUESTÃO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO

O Estado social é progressivamente prestacional. Em sua


gênese reside o dirigismo implícito ou explícito de alcançar a plenitude da justiça
social. Por essa razão, a defesa de uma proibição do retrocesso alcançado no
contexto das normas programáticas e da realização de direitos
constitucionalmente proclamados emerge como postulado estruturante do Estado
social. Regresso constitucional e dirigismo são antíteses. Tanto é assim que há
quem ironicamente invalide alguma defesa de retrocesso em Estados emergentes,
subdesenvolvidos ou de modernidade tardia, como adota Lenio Streck373, ao
fundamento de que, antes de se pensar em haver retrocesso, é preciso que tenha
havido algum progresso.374
Tal conceção, no entanto, faz-se em meio à já analisada
complexidade intrassistêmica de conferir normatividade com eficácia às diversas
normas de direitos sociais. Somam-se a isso as complexidades intersistêmicas, que
acabam refletindo no sistema jurídico sob a forma de reserva do financeiramente
possível, mutações constitucionais circunstanciais em meio à crise do sistema
econômico, além de eventual interferência político-ideológica.
Por tal razão, é natural que a teoria tenha se desenvolvido no
contexto de crise do Welfare State. No caso da experiência latino-americana,
porém, as conquistas sociais vêm com algum atraso, o que talvez explique, em
parte, o facto de, mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal brasileiro passar
a utilizar, em sua argumentação, o princípio da proibição do retrocesso social,
amparando-se em jurisprudência e construção doutrinária portuguesa de trinta
anos atrás.375
A teoria da proibição do retrocesso, em sentido amplo,
fundamenta-se especialmente na ideia de que tal princípio decorreria de um dever
de progressividade dos direitos sociais e, em sentido contrário, na eventual

373 STRECK, Lenio Luiz.Jurisdição constitucional..., cit., p. 140.


374 Cf. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Um olhar crítico-deliberativo sobre os direitos sociais no
estado democrático de direito. In: SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de (coords.),
Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lúmen
Juris, 2008, p. 125.
375 Cf. ADI 4350/DF; ARE 727864 Agr/PR; RE 745745 AgR/MG; RE 658312/SC; RE 592581/RS.
144

impossibilidade de o Estado expedir atos que diminuam a efetividade dos direitos


fundamentais ou reduzam direitos prestacionais sociais.376
A doutrina utiliza vários termos para se referir a tal
proibição, encontrando-se, dentre outros, os seguintes: vedação de retrocesso,
irreversibilidade, não revisibilidade, não retorno e efeito catraca377, em português;
em inglês, o termo standstill,378 com o sentido de bloqueio, paralisação, muito
usado na Bélgica, ou ratchet effect379, em francês, effet cliquet380 (efeito trava) ou
cliquet anti-retour381 (trava anti-retorno), non-retour (não-retorno)382, clause
cliquet (cláusula catraca), clause plancher (cláusula chão)383, non-régression (não
regressão)384; em espanhol, prohibición de regresividad o de retrocesso, ou no-
regresividad385; em italiano, non regresso386 e, em alemão,
nichtumkehrbarkeitstheorie387 ou rückschrittsverbot388.

376 Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. v. IV. t. IV. Coimbra: Coimbra Editora, 2000,
p. 397.
377 Cf. QUEIROZ, Cristina. O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais:

princípios dogmáticos e prática jurisprudencial. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 5. Canotilho


fala em proibição de contra-revolução social ou evolução reaccionária. Cf. CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. Rui Medeiros
fala ainda em tom irônico em princípio da proibição da evolução reaccionária. MEDEIROS, Rui.
Direitos, liberdades e garantias e direitos sociais: entre a unidade e a diversidade.
In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia. Jorge Miranda (Coord.). Lisboa: FADUL,
2010, v. 1, p. 668. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional..., cit., p. 397.
378 HACHEZ, Isabelle. Le principe de standstill dans le droit des droits fondamentaux: une

irréversibilité relative. Athènes - Bruxelles - Baden-Baden: Editions Ant. N. Sakkoulas - Bruylant -


Nomos Verlagsgesellschaft, 2008.
379 Cf. SAJÓ, András. Social rights as middle-class entitlements in hungary: the role of constitutional

court. In: GARGARELLA, Roberto; DOMINGO, Pilar; ROUX, Theunis. Courts and social transformation
in new democracies: an institutional voice for the poor? Burlington: Ashgate, 2006, p. 86.
380 Cf. FAVOREU, Louis; PHILIPPE, Loïc. Les grandes décisions du conseil constitutionnel. 10. ed. Paris:

Dalloz-Sirey, 1999, p. 581 et seq.


381 MOLLION, Grégory. Les garanties légales des exigences constitutionnelles. Revue française de

droit constitutionnel, n. 62, v. 2, 2005, p. 232.


382 HACHEZ, Isabelle. Le principe de standstill…cit., p. 485.
383 ARAUJO, Cassandra Pinhel. La protection des droits fondamentaux dans l’union européene à la

lumière de charte des droits fondamentaux – Mémoire de master 2 recherche droit international,
européen et compare, 2013. Les Mémoires de l’Équipe de Droit International, Européen et Comparé,
n.º4, p. 26. Disponível em: <http://ediec.univ-lyon3.fr/publications>. Acesso em: 11 mai. 2017.
384 Cf. BRAIBANT, G. La charte des droits fondamentaux de l'union européenne. Témoignage et

commentaires. Paris: Editions du Seil, 2001, p. 267.


385 Cf. COURTIS, Christian. Ni un paso atrás: la prohibición de regresividad en materia de derechos

sociales. Buenos Aires: Del Puerto, 2006, p. 18.


386 Cf. DELFINO, Massimiliano. Il principio di non regresso nelle direttive in materia di politica

sociale. Giornale di Diritto del Lavoro e di Relazioni Industriali, 2002. Disponível em:
<https://www.francoangeli.it/ Riviste/ Scheda_ Rivista.aspx?idArticolo=19442>. Acesso em: 23
mai. 2015. Convém salientar que na Itália, a despeito do atribuído pioneirismo doutrinário da
proibição do retrocesso social, o recurso a tal principio é raro na doutrina e jurisprudência, em face
de sua configuração constitucional, que se assenta em outros princípios, como a igualdade, a
proporcionalidade e a razoabilidade para defesa de direitos em face de leis retroativas. Assim, os
145

Embora, para alguns, o princípio da proibição do retrocesso já


tenha sido superado389, a prática jurisprudencial e a doutrina o mantém cada vez
mais vivo. No Brasil, o STF, especialmente a partir de 2011 390, passa a invocar esse
efeito catraca dos direitos sociais como princípio implícito autovinculante do
legislador, baseando-se fortemente na doutrina portuguesa, especialmente de
Canotilho, e no Acórdão 39/1984 do TC.
Como tratado na segunda parte, com o desenvolvimento do
Estado social, a discricionariedade legislativa conheceu restrições inexistentes no
Estado Liberal, provocadas pela adoção, por parte do poder constituinte originário,
de normas de conteúdo programático ou dirigente, especialmente em matéria de
prestações sociais, mediante as chamadas imposições constitucionais.
Tais imposições consistem em comandos dirigidos ao
legislador para regulamentar normas constitucionais que apresentam uma
estrutura diversa dos chamados “direitos fundamentais de primeira geração”, por
indicarem tão somente um núcleo essencial do direito, cuja aplicabilidade depende
da densificação desse conteúdo por parte do legislador, que, nesse mister, tem
ampla discricionariedade.
Há situações, porém, em que o poder constituinte originário
limitou tal liberdade legislativa, explícita ou implicitamente, justamente para
proteger direitos considerados mais fundamentais da conveniência do jogo político
democrático, em que, por questões de ordem social, política e econômica, que não
encontram espaço nesse trabalho, muitas vezes a maioria representada se torna
refém da minoria representante.391

termos regressività e regressione também são encontrados, embora se refiram a traduções literais
do principio da proibição do retrocesso contido em outros instrumentos não italianos.
387 Cf. HESSE, Konrad. Grunzüge des verfassungsrechts der bundesrepublik deutschland. Heidelberg:

C. F. Muller, 1978, p. 86.


388Cf. SCHELENKER, Rolf-Ulrich. Soziales rückschrittsverbot und grundgesetz: Aspekte
verfassungsrechtlicer einwirkung auf die stabilität sozialer rechtslagen. Berlim: Duncker &
Humblot, 1986.
389 Cf. MEDEIROS, Rui. Direitos, liberdades e garantias e direitos sociais: entre a unidade e a

diversidade. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia. Jorge Miranda (Coord.).
Lisboa: FADUL, 2010, v. 1, p. 668.
390 Com o julgamento do ARE 639337 AgR/SP. Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello. J.

23.8.2011. Pub. 15.9.2011.


391 Com efeito, se houvesse recursos infinitos, certamente o legislador não teria limites, pois o

anseio de qualquer mandatário político é agradar seus eleitores. Como isso não ocorre, e diversos
são os interesses em jogo, o governante deve fazer escolhas e, algumas vezes, modificá-las.
Ademais, inerente ao princípio republicano está a alternância do poder e nada mais natural que os
grupos que sucedem o exercício dos poderes constituídos alterem as opções político-legislativas
146

Ditas imposições constitucionais gerariam dois efeitos: a) os


poderes constituídos não poderiam eliminar ou reduzir o conteúdo essencial
desses direitos; e b) o poder legislativo teria o dever de criar as condições
necessárias para a sua efetivação.392
Na primeira hipótese, haveria inconstitucionalidade por
ação do ato estatal que violar o conteúdo essencial dos direitos ou restringi-los393.
No segundo caso, há que se distinguir a situação em que o
legislador atuou, daquela em que se manteve inerte. Nesta, haverá uma
inconstitucionalidade por omissão, a ser resolvida de acordo com os instrumentos
previstos em cada ordenamento jurídico, ao passo que naquela o dever de legislar
é cumprido.
De outro modo, uma vez cumprido tal dever, questiona-se se
poderia o legislador retroceder e, em caso afirmativo, se deve observar algum
limite. A par dos demais limites aos limites dos direitos fundamentais394, como a
proteção da confiança, a igualdade e o respeito ao núcleo essencial, a proibição de
retrocesso assume, para alguns, certa autonomia normativa, enquanto, para outros,
tratar-se-ia de mera retórica.395
Embora as Constituições modernas, em sua maioria, não
consagrem expressamente uma regra de standstill,396 o aumento crescente da
prestação de direitos sociais vai até onde encontrar limites. Por ser popular e,
considerando que qualquer sociedade busca otimizar seu bem-estar, a existência
de recursos constitui o principal limite a essa progressividade na concessão de
direitos.
Em um cenário de demanda crescente por direitos e
recursos limitados, o conflito entre interesses constitucionalmente tutelados é

anteriormente adotadas. Cf. SILVA, Jorge Pereira da. O dever de legislar e proteção jurisdicional
contra omissões legislativas: contributo para uma teoria de inconstitucionalidade por omissão.
Lisboa: Universidade Católica Editora, 2003, p. 281.
392 Cf. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e

possibilidades da constituição brasileira 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1993, p. 112.


393 Cf., nesse sentido, decisão do Conselho Constitucional francês. CC. Décision n.º 84-181, DC du 11

octobre 1984 (11 de outubro de 1984). ECLI:FR:CC:1984:84.181.DC


394 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 246. SARLET, Ingo

Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.
460.
395 Cf. NOVAIS, Reis. Direitos sociais..., cit., p. 249.
396 Termo empregado sobretudo no direito belga para se referir à cláusula que impede o retrocesso

social. Cf. HACHEZ, Isabelle. Le principe de standstill dans le droit des droits fondamentaux: une
irréversibilité relative. Athènes, Bruxelles: Baden-Baden, 2008.
147

inevitável, oferecendo a teoria da proibição do retrocesso um critério de solução, a


ser aplicado em sede de ponderação.
Embora seja sempre tratado sob o prisma dos direitos
sociais, tal princípio teve seu desenvolvimento na Alemanha ligado à proteção dos
direitos de liberdade. Não obstante, sua formulação teórica original teria sido
invocada na doutrina italiana para tratar da “vedação de geração de uma omissão
inconstitucional”.
De fato, atribui-se o pioneirismo no emprego do princípio a
Balladore Pallieri. Na sua obra Diritto Costituzzionale,397 o constitucionalista
italiano, ao tratar dos limites constitucionais ao poder estatal, referindo-se às
normas constitucionais de naturezas diversas, depara-se com as normas
constitucionais não autoaplicáveis, que veiculam imposições constitucionais.398
Tais normas, segundo Pallieri,
(…) produzem um efeito, ao menos indireto, notável. Elas
prescrevem um caminho a ser seguido pela legislação
ordinária; não obrigam o legislador a seguir esse caminho,
mas o obriga a não seguir o caminho oposto. Seria mesmo
inconstitucional a lei que dispusesse em contrário ao que a
Constituição prescreve. Além disso, se por exemplo, em
execução do artigo 44.º da Constituição, a reforma agrária
atualmente em elaboração for regulamentada, poder-se-á,
depois de emanada a lei, realizarem-se as oportunas
modificações e retoques que se considerar necessárias, mas
não se poderá voltar atrás, desnaturando ou anulando a
reforma.399

O que Pallieri enuncia, na verdade, é a “proibição de gerar


uma omissão inconstitucional”. Parte, assim, o jurista italiano, da pré-compreensão
de que a não densificação normativa de uma norma programática, tal como a
contida no artigo 32 da Constituição italiana, que garante o direito fundamental à
saúde e a gratuidade de atendimento aos indigentes, bem como de qualquer outra
norma regulamentável, é inconstitucional. Tal inconstitucionalidade, no entanto,
não geraria qualquer direito subjetivo aos destinatários da norma constitucional

397 Não tivemos acesso à primeiro edição, datada de 1949, mas apenas à segunda edição da obra,
datada de 1950. PALLIERI, Giorgio Balladore. Diritto costituzionale. 2. ed. Dott. A. Giuffré: Milão,
1950, p. 280.
398 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente…cit., p. 293.
399 PALLIERI, Giorgio Balladore. Diritto costituzionale…cit., p. 280. (Traduzimos).
148

carecedora de densificação, e não criaria qualquer direito de ação ou meio de


tutela para constranger o Estado a contretizá-la.400
Diversamente da conceção italiana, na Alemanha, a ideia de
proibição do retrocesso não decorreu diretamente dos direitos sociais, destacando-
se que a Lei Fundamental de Bona não traz um catálogo desses direitos.401 Ali a
ideia de retrocesso ou não reversibilidade foi ligada ao direito de propriedade e
assim desenvolvida pelo BVerfG (Tribunal Federal Alemão).
O BVerfG, entendendo que o cidadão teria uma liberdade de
exercer sua propriedade conquistada por direitos sociais, que não poderia ser
frustrada pelo legislador, adotou o posicionamento de que o Estado não poderia
restringir direitos que já tivessem sido objeto de concretização, quando, na
atribuição ao titular de posição jurídico-subjetiva de natureza pública,
caracterizada por ser patrimonial, pessoal, própria e exclusiva do titular, à posição
jurídica individual deve corresponder uma contraprestação pessoal relevante do
titular e a prestação deve servir à garantia da existência de seu titular.402
Percebe-se que, na construção alemã, a proibição de
retrocesso aproxima-se da ideia de proteção da confiança, tida como um
instrumento oferecido pela ordem jurídica para garantir a segurança patrimonial
do cidadão.403
Há que se frisar, contudo, que as peculiaridades do sistema
alemão, especialmente o facto de que os direitos sociais ali não gozam de um status
de direitos fundamentais, limitam a importação de seus fundamentos doutrinários
e jurisprudenciais aos sistemas português404 e brasileiro405.
Na França, a proibição de retrocesso aparece pela primeira
vez na jurisprudência do Conseil Constitutionnel na sua decisão DC 83-165, de 20
de janeiro de 1984, mediante a tese de impossibilidade de revogação total de uma

400 PALLIERI, Giorgio Balladore. Diritto costituzionale…cit., p. 280.


401 Cf. artigos 1.º a 19.º da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha.
402 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos

fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p.
450-1.
403 Cf. DERBLI, Felipe. A aplicabilidade do princípio da proibição de retrocesso social no direito

brasileiro. In: SARMENTO, D.; SOUZA NETO, C. P. (coord.). Direitos Sociais: fundamentos,
judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008, p. 345.
404 Cf. NOVAIS, Reis. Direitos sociais..., cit., p. 249.
405 Uma outra incoerência dessa tese de criar uma conexão entre direito de propriedade e direito

social é seu aspeto se poder sustentar, a contrario sensu, a desapropriação dos direitos sociais,
mediante indenização. DERBLI, Felipe. A aplicabilidade do princípio..., cit., p. 345.
149

lei-quadro, como a que regulamentava o ensino superior na França. O Conseil


Constitutionnel não abordou com profundidade a referida tese, mas entendeu que a
revogação dos dispositivos que concretizavam garantias constitucionais para os
professores sem serem substituídas por outra lei estava em desconformidade com
a Constituição.406 O argumento empregado pelo Conseil Constitutionnel foi
“batizado” pela doutrina como tese do effet cliquet dos direitos fundamentais,
embora o termo não conste do referido acórdão.407
Nesse caso, o entendimento adotado pelo Conseil
Constitutionnel é o de proibição de geração de uma omissão inconstitucional. Em
decisão seguinte, porém, ao analisar a constitucionalidade de lei que limitava a
concentração e assegurava a transparência financeira e pluralismo de empresas de
mídia, entendeu o referido conselho que um princípio autônomo da proibição do
retrocesso vincularia o legislador:
considerando que mais importante que o exercício de um direito
fundamental é a garantia essencial de respeito aos outros direitos
e liberdades, bem como à soberania nacional, a lei não pode
regulamentar seu exercício senão a fim de torná-lo mais eficaz ou
conciliá-lo com outras regras e princípios de valor
constitucional.408

Segundo essa decisão do Conseil Constitutionnel, o legislador


não pode regulamentar um preceito constitucional aberto para torná-lo “menos
eficaz”. Nesse sentido, a regulamentação da imprensa encontraria óbice no artigo
11 da Declaração de 1789, que dispunha:
A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos
direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode, portanto,
falar, escrever, publicar livremente, ressalvada sua
responsabilidade pelo abuso dessa liberdade nos casos
determinados pela lei.409

Iniciada em matéria de direitos civis e políticos, a


jurisprudência foi alargada para alcançar algumas decisões em matérias de direitos
sociais (à saúde, pluralismo sindical e direito à habitação), especialmente a partir
de 1991. No entanto, há alguma controvérsia doutrinária sobre a manipulação

406 Cf. Decisão DC 83-165, de 20 de Janeiro de 1984, do Conseil Constitutionnel. Considerando 42.
407 Sobre o emprego do termo, cf. FAVOREU, Louis; PHILIPPE, Loïc. Les grandes décisions du conseil
constitutionnel. 10. ed. Paris: Dalloz-Sirey, 1999, p. 581 et seq.
408 CC. Décision n.º 84-181, DC du 11 octobre 1984 (11 de outubro de 1984).

ECLI:FR:CC:1984:84.181.DC
409 Cf. Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen de 1789, cujo conteúdo ainda é reconhecido

como o catálogo de direitos fundamentais da Constituição francesa, como indica seu preâmbulo. Cf.
Constitution de la France 1958.
150

autônoma desse princípio pelo Conseil Constitutionnel, tendo em vista que ele
geralmente emprega outros princípios na análise de leis retroativas.410
Com efeito, em recente decisão acerca da lei de
financiamento da seguridade social na França, o Conseil Constitutionnel considerou
inconstitucionais as leis retroativas que atingiam as legítimas expectativas dos
cidadãos, com base no disposto no artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão de 26 de agosto de 1789, invocando implicitamente a segurança
jurídica, sem qualquer referência ao effet cliquet.411
Na Bélgica, informa Isabelle Hachez que a tese do standstill
(bloqueio) é utilizada mais frequentemente em matéria ambiental, sendo raro seu
emprego no âmbito dos demais direitos fundamentais, hipótese em que se aplica o
princípio da proporcionalidade.412
Na Hungria e na Polônia, os Tribunais têm entendido que
não pode haver regressão do direito aos serviços de saúde, mesmo em tempos de
crise, embora o argumento utilizado esteja, a exemplo do recente caso francês em
matéria de segurança social, mais próximo da segurança jurídica que de uma
vedação de ratched effect.413
Mais recentemente, a Itália enfrentou problemas parecidos
aos de Portugal, buscando na diminuição das pensões reduzir as despesas do
Estado para fazer frente a metas de ajuste orçamentário.
Em 2007, por exemplo, foi editada a Lei n.º 247, de 24 de
dezembro de 2007, que determinou o congelamento das pensões que
ultrapassassem 8 vezes o valor mínimo das pensões concedidas pelo sistema
público de previdência social da Itália. 414 A Corte Coztituzionale italiana não
aplicou, porém, a proibição do retrocesso social, mas o princípio da igualdade
previsto no artigo 3.º da Constituição Italiana,415 combinado com a razoabilidade
(ragionevolezza).416

410 Cf. HACHEZ, Isabelle. Le principe de standstill…cit., p. 205.


411 Cf. CC. Décision nº 2013-682, DC du 19 décembre 2013.
412 HACHEZ, Isabelle. Le principe de standstill…cit., p. 222.
413 SAJÓ, András. Social rights as middle-class entitlements in hungary: the role of constitutional

court. In: GARGARELLA, Roberto; DOMINGO, Pilar; ROUX, Theunis. Courts and social transformation
in new democracies: an institutional voice for the poor? Burlington: Ashgate, 2006, p. 83.
414 Cf. Sentenza 316/2010. Traduzimos.
415 Diz o artigo 3.º da Constituição Italiana: Todos os cidadãos terão a mesma dignidade social e

serão iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, língua, religião, opiniões políticas nem de
151

Assim, em semelhança com a recente jurisprudência


constitucional portuguesa417, a Corte italiana invocou - ainda que indireta e não
tecnicamente - a tese da proteção da confiança e da proporcionalidade em sentido
estrito para ponderar a medida legislativa que propunha a restrição do pagamento
das pensões, sem, porém, fazer qualquer menção à tese da proibição do retrocesso
social.
No Brasil, o princípio da proibição do retrocesso é
mencionado pela primeira vez no Supremo Tribunal Federal brasileiro, no
julgamento da ADI 2.065/DF, em que se discutia a constitucionalidade de norma
que extinguia o Conselho Nacional de Seguridade Social e os Conselhos Estaduais e
Municipais de Previdência Social. No caso, muito similar ao acórdão 39/84 do TC
de Portugal, também apontado como precursor da recepção jurisprudencial da
tese da proibição do retrocesso418, entendeu o relator Ministro Sepúlveda Pertence
que, se já há lei integrativa necessária à plenitude da eficácia da norma
constitucional, o legislador pode alterar sua disciplina, mas não pode retroceder na
omissão anterior.419
Após alguns julgados sem grande relevância do princípio, a
despeito de sua invocação,420 a proibição do retrocesso passa a ser aceita pelo STF a

circunstâncias pessoais e sociais. É obrigação da República retirar os obstáculos de ordem


econômica e social que, limitando de facto a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno
desenvolvimento da pessoa humana e a participação efetiva de todos os trabalhadores na
organização política, econômica e social do país. Traduzimos.
416 Cf. CARIGLIA, Michela. L'operatività del principio di ragionevolezza nella giurisprudenza

costituzionale. In: LA TORRE, Massimo; SPADARO, Antonino. La ragionevolezza nel diritto. Torino:
G. Giappichelli, 2002, p. 174.
417 Especialmente os acórdãos 396, de 21 de setembro de 2011; 187, de 5 de abril de 2013; 862, de

19 de dezembro de 2013; e 575, de 14 de agosto de 2014.


418 Cf. Processo n. º 6/83. Acórdão 39/1984.
419 Cf. ADI n.º 2.065/DF. Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Rel. p/ Acórdão Min. Maurício Corrêa.

J. 17.2.2000. Pub. 4.6.2004. Não obstante, o argumento foi utilizado pelo relator apenas para refutar
argumento preliminar de violação à proibição de retrocesso, não tendo qualquer outra relevância
no julgamento.
420 Dois anos depois, no julgamento da ADI n.º 2213/DF, ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores

contra medida provisória adotada pelo Presidente da República, a qual disciplinava a reforma
agrária e continha dispositivos contrários aos interesses dos movimentos sociais que “invadiam”
terras consideradas por eles improdutivas, o retrocesso social foi alegado pelos requerentes.
Entendeu o STF, no entanto, que sequer estaria configurado um retrocesso, dada a forte
componente axiológica envolvida na colisão entre o direito de propriedade e sua função social. Cf.
ADI n.º 2213 MC/DF. Pleno, Rel. Min. Celso de Mello. J. 4.4.2002. Pub. 23.4.2004. Já no julgamento
da ADI 3105/DF, o Min. Celso de Mello fundamentou a inconstitucionalidade do artigo 4.º da EC n.º
41/2003 na proibição do retrocesso social, sem indicar, contudo, critérios para tal posicionamento.
De qualquer modo, tratou-se de voto vencido, que não teve influência no julgamento. Cf. ADI n.º
3105/DF. Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. p/ Acórdão Min. Cezar Peluso. J. 18.8.2004.
Pub.18.2.2005.
152

partir do julgamento do Agravo n°. 639.337/SP.421 Tratava-se de processo que


pleiteava a matrícula de crianças de até cinco anos de idade em creche e rede
escolar, julgado procedente nas instâncias ordinárias. Em sede de recurso
extraordinário, o STF manteve as decisões, invocando, dentre outros argumentos, a
tese da proibição do retrocesso, sob nítida influência da doutrina e jurisprudência
portuguesa422.
No entanto, ao contrário da jurisprudência do TC que
evoluiu de uma conceção autônoma da proibição do retrocesso para uma conceção
relativizável e dependente da conjugação de outros princípios, o Min. Celso de
Mello reconheceu a autonomia normativa do princípio:
Na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social
traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão
negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional
(como o direito à educação e à saúde, p. ex.), impedindo, em
conseqüência, que os níveis de concretização dessas
prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente
reduzidos ou suprimidos pelo Estado, exceto na hipótese - de todo
inocorrente na espécie - em que políticas compensatórias venham
a ser implementadas pelas instâncias governamentais. 423

Na verdade, houve uma adoção, praticamente literal, dos


termos propostos por Canotilho e seguidos pelo TC de Portugal, por meio do
Acórdão n.º 39/84. Ou seja, quase trinta anos depois, a parcialmente superada
jurisprudência constitucional portuguesa exerce sua influência na jurisprudência
constitucional brasileira.
Além das críticas à autonomia normativa do princípio que
serão tratadas adiante, o acórdão apresenta algumas insuficiências teóricas, como
a falta de justificativa para a adoção da teoria (afinal, não se estava impugnando
um ato normativo que diminuiria ou anularia um direito social, mas requerendo
uma prestação positiva do Estado, ante a inércia do Poder Público).
Não obstante, a tese foi seguida pelo STF em outras questões
envolvendo direitos sociais, ainda em controle difuso de constitucionalidade, como
no caso da ampliação e melhoria das maternidades estaduais424, o custeio, pelo

421 ARE 639337 AgR/SP. Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello. J. 23.8.2011. Pub. 15.9.2011.
422 São citados no acórdão José Carlos Vieira de Andrade (p. 140), Canotilho (p. 163) e o próprio
acórdão 39/84 do TC de Portugal (p. 164).
423 Cf. ARE 639337 AgR/SP. Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello. J. 23.8.2011. Pub. 15.9.2011, p.

162.
424 Cf. RE 581352 AgR/AM. Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello. J. 29.10.2013. Pub. 22.11.2013,

p. 20.
153

Estado, de serviços hospitalares prestados por instituições privadas em benefício


de pacientes do sistema público de saúde425 ante as situações de inexistência de
leitos na rede pública426, manutenção de rede de assistência à saúde da criança e
do adolescente427 e a garantia de um prazo de 15 minutos antes da jornada
extraordinária de trabalho para mulheres428.
Em controle concentrado de constitucionalidade,
impugnando a recente legislação eleitoral que determinava a impressão do voto429,
o Tribunal aplicou a teoria da proibição do retrocesso político, uma adaptação
mutatis mutandis do princípio da proibição do retrocesso social.430
Finalmente, outra influência do Acórdão 39/84 do TCP se
verificou no julgamento de Agravo Regimental da Ação Penal 470/MG431, em que
se questionava a extinção de uma modalidade recursal, sob alegação, dentre
outras, de violação do princípio da proibição do retrocesso. A tese não foi aceita
pelo STF, acompanhando-se o seguinte entendimento de Canotilho, ali citado:
o princípio da vedação do retrocesso tem por pressuposto a
implementação, por lei, de direitos sociais previstos na
Constituição, bem como que, em razão disso, radique na
consciência jurídica geral que a concretização daquele direito
deve ser entendida como uma complementação ou
desenvolvimento da norma constitucional. O status alcançado pela
concretização promovida pela lei, a impedir que o legislador a
elimine, decorre do consenso básico em torno da sua
imprescindibilidade para a eficácia do direito garantido pela
Constituição, ampliando o seu núcleo fundamental por meio de
legítima mutação constitucional432

Ademais, cumpre registrar que, em todos os casos acima


mencionados, a alusão ao princípio da proibição do retrocesso social com
autonomia normativa suficiente para isoladamente determinar o julgamento

425 No Brasil, o sistema público de saúde é organizado sob a forma do Sistema Único de Saúde – SUS,
que articula as ações estatais de todos os entes federativos, União, Estados, Distrito Federal e
Municípios.
426 Cf. ARE 727864 Agr/PR. Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello. J. 4.11.2014. Pub. 13.11.2014.
427 Cf. RE 745745 AgR/MG. Segunda Turma. Rel. Min. Celso de Mello. J. 2.12.2014. Pub. 19.12.2014.
428 Cf. RE 658312/SC. Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli. J. 27.11.2014. Pub. 10.2.2015.
429 Como é de amplo conhecimento, a votação no Brasil é feita mediante “urnas eletrônicas”, sem a

impressão de voto. A Lei n.º 12.034/2009, todavia, previu a criação, a partir dos pleitos eleitorais de
2014, a impressão do voto, o que foi questionado pelo Ministério Público, sob o fundamento de que
o sistema de conferências digitais permitiria sua identificação, o que violaria a garantia
constitucional do voto secreto.
430 Cf. ADI 4543/DF. Pleno, Rel. Min. Carmen Lúcia. J. 6.11.2013. Pub. 13.10.2014.
431 Cf. AP 470 AgR-vigésimo quinto/MG. Pleno, Rel. p/ acórdão Min. Teori Zavascki. J. 18.9.2013.

Pub. 17.2.2014.
432 Cf. AP 470 AgR-vigésimo quinto/MG. Pleno, Rel. p/ acórdão Min. Teori Zavascki. J. 18.9.2013.

Pub. 17.2.2014. Declaração de voto Min. Luiz Fux.


154

contrário à liberdade de conformação do legislador foi reconhecido apenas por um


dos ministros julgadores, no caso o Ministro Celso de Mello. A mesma importância
dada ao princípio não aparece nas declarações de votos dos demais ministros, o
que leva a questionar seu emprego autônomo nos casos futuros. 433
Não obstante, como sói ocorrer no Brasil quando aparecem
formulações jurídicas com “ares” de “tese nova”, seu emprego é disseminado como
um “remédio que serviria para todos os males”. Nesse sentido, tal como passou a se
dar com o conceito de dignidade da pessoa humana, tão banalizado no cotidiano
jurídico que passou até a “enfraquecer” esse princípio434, o princípio da proibição
do retrocesso logo passa a ser invocado pelos advogados e membros do Ministério
Público para questionar a constitucionalidade de leis posteriores que criaram
quaisquer restrições a quaisquer direitos. Em uma delas, o STF, sob a relatoria do
Min. Gilmar Mendes, julgou improcedente o recurso que questionava norma
redutora do valor das indenizações pagas pelo Seguro de Danos Pessoais Causados
por Veículos Automotores de Via Terrestre – DPVAT e que se fundamentava na
tese de que implicariam um retrocesso social não admitido.435 Tendo por objeto a
mesma alteração do DPVAT, embora com pedido mais abrangente, foi também
julgada improcedente a ADI 4350, reconhecendo o Tribunal que o retrocesso só
seria reconhecido se afetasse o núcleo essencial do direito em causa.436
Uma das críticas ao posicionamento do STF relaciona-se à
competência da corte constitucional para aferir a existência de um consenso básico
em torno da imprescindibilidade de um direito.
A par disso, nota-se uma ausência de aprofundamento do
princípio e a densificação de um critério para sua aplicação. Ressente-se, ainda, da
falta de argumentos técnico-jurídicos para seu emprego, especialmente em
observância do método científico437, uma vez que a limitação de um princípio
estruturante do Estado brasileiro – o princípio democrático – não pode ser
justificado em mera transposição ao caso brasileiro da jurisprudência portuguesa

433 Observa-se, ainda, que, em todos os casos, o texto dos acórdãos foi praticamente o mesmo, sendo
modificados apenas os nomes das partes. Cf. ARE 727864 AgR/PR. Segunda Turma, Rel. Min. Celso
de Mello. J. 4.11.2014. Pub. 13.11.2014.
434 Cf. ARE 704520/SP. Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes. J. 23.10.2014. Pub. 2.12.2014, p. 11 et seq.
435 Cf. ARE 704520/SP. Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes. J. 23.10.2014. Pub. 2.12.2014, p. 11 et seq.
436 Cf. ADI 4350/DF. Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux. J. 23.10.2014. Pub. 3.12.2014.
437 MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional…cit., p. 437.
155

de quase trinta anos atrás, sem uma análise detalhada das suas implicações e um
silogismo construído dogmaticamente à luz do texto constitucional brasileiro, bem
como sem o devido confronto com todas as críticas que lhe são dirigidas.

2.7.1. O desenvolvimento da aplicação do princípio da proibição do


retrocesso em Portugal

O princípio da proibição do retrocesso em Portugal liga-se,


originalmente, à forte carga socializante de sua Constituição de 1974.438 A
atenuação desse valor originário concretizada pelas revisões constitucionais
provoca igualmente uma diminuição do recurso a esse princípio, o que fica nítido
na evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional.

2.7.1.1. Evolução doutrinária

Seu desenvolvimento, no entanto, teve início na doutrina,


atribuindo-se a Miguel Galvão Teles a primeira referência a um princípio da
proibição do retrocesso.439
Jorge Miranda já escrevia em 1981, em seu Manual de Direito
Constitucional, que a revogação de uma lei que concretizasse uma imposição
constitucional poderia implicar uma inconstitucionalidade material.440
Canotilho, em 1982, na sua obra Constituição Dirigente e
Vinculação do Legislador, afirmava que os direitos econômicos, sociais e culturais
possuem uma dimensão subjetiva, que resultaria da densificação normativa de
imposições constitucionais. Essa dimensão criaria, portanto, um direito subjetivo à
reclamação judicial para manutenção de tal nível de realização do direito
constitucional e proibição de qualquer “tentativa de retrocesso social”.441
José Carlos Vieira de Andrade e Manuel Vaz, porém, eram
contrários, entendendo que essa tese emprestava mais força aos direitos sociais
que aos próprios direitos de liberdade; que tal vinculação do legislador
corresponderia a dar-lhe inicialmente poderes constituintes, para depois retirar

438 Daí porque também se falava em “proibição de contra-revolução social” e “proibição da evolução
reaccionária”. Cf. SILVA, Jorge Pereira da. O dever de legislar..., cit., p. 247-9.
439 Cf. SILVA, Jorge Pereira da. O dever de legislar..., cit., p. 252.
440 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. v. I, t. II. Coimbra: Coimbra Editora, 1981, p.

670.
441 Segundo Canotilho, tais imposições constituiriam os direitos originários a prestações e sua

concretização por atos normativos infraconstitucionais corresponderiam a direitos derivados a


prestações. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 374.
156

sua própria liberdade de conformação;442 bem como limitariam a liberdade de


conformação do legislador em um nível não admitido pela ordem jurídico-
constitucional portuguesa.443

2.7.1.2. O acórdão 39/1984

Tais autores influenciaram o Tribunal Constitucional


português. No processo n.º 6/83, ao apreciar a constitucionalidade do artigo 17.º
do Decreto-Lei n.º 254/82, que, ao revogar disposições da Lei n.º 56/79,
praticamente extinguiria ou inutilizaria o Serviço Nacional de Saúde, por ela criado
em atendimento à imposição constitucional444 contida no n.º 2 do artigo 64.º da
CRP445, o TC, em sua maioria, aproximou-se da tese adotada por Jorge Miranda,
entendendo que a revogação do Serviço Nacional de Saúde violaria o disposto no
n.º 2 do artigo 64.º da CRP, ao retornar a uma situação de “incumprimento da
tarefa constitucional que lhe é cometida pelo referido dispositivo constitucional”.
A inconstitucionalidade seria devida não à conceção,
conforme entendimento do TC, de um princípio geral de proibição de retrocesso
social, mas ao argumento de que, após a concretização de uma imposição
constitucional, os direitos criados pela lei concretizadora gozam de uma proteção
constitucional, tal como escrevera Jorge Miranda.446
Tratar-se-ia, portanto, de uma inconstitucionalidade por
ação, não por omissão, como explicita o TC:
Que o Estado não dê a devida realização às tarefas constitucionais,
concretas e determinadas, que lhe estão cometidas, isso só poderá
ser objecto de censura constitucional em sede de
inconstitucionalidade por omissão. Mas quando desfaz o que já
havia sido realizado para cumprir essa tarefa, e com isso atinge
uma garantia de um direito fundamental, então a censura

442 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., cit., p. 302 et seq.
443 Como afirma Manuel Vaz, ela se baseia em duas pré-compreensões que atentam contra a
constituição material, ao limitar excessivamente a discricionariedade legislativa: a) a pretensão de
conferir e proteger um conteúdo constitucional a cada direito social; b) a conversão da
concretização legislativa em dimensão constitucional material. VAZ, Manuel Afonso. Lei e reserva de
lei: a causa da lei na constituição portuguesa da 1976. Lisboa: UCL, 1996, p. 384-86. No mesmo
sentido OTERO, Paulo, Instituições políticas..., cit., p. 596.
444 Nos termos definidos por Canotilho. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente...,

cit., p. 289 et seq.


445 Cf. Processo n. º 6/83. Acórdão 39/1984. Considerando 2.3.3.
446 Cf. Processo n. º 6/83. Acórdão 39/1984. Considerando 2.3.3. MIRANDA, Jorge. Manual de direito

constitucional.v. I, t. II. Coimbra: Coimbra Editora, 1981, p. 670.


157

constitucional já se coloca no plano da própria


inconstitucionalidade por acção.447

Essa tese foi refutada dentro do próprio TC. Os argumentos


dos demais juízes do TC reproduzem as principais correntes contrárias,
especialmente a de José Carlos Vieira de Andrade. 448
Deveras, em sua declaração de voto, Joaquim Costa Aroso
abriu três pontos de divergência. Primeiro, não importaria a revogação uma
simples repristinação da inconstitucionalidade por omissão? Segundo, a simples
previsão de organização, ainda que não implantada, equivaleria a um direito
adquirido ou a uma mera expectativa de aquisição daquele grau de direito à saúde?
Terceiro – e, talvez, o mais forte -, a tese da constitucionalidade por ação pressupõe
que a lei concretizadora adquirisse força constitucional. Nesse aspeto, ironizou o
julgador, dizendo que se deveria, portanto, acrescentar mais uma alínea ao artigo
290.º da CRP, que previa as limitações materiais às reformas constitucionais. José
Manuel Cardoso da Costa também declarou seu voto, concluindo que
só é de considerar ilegítima e inadmissível a revogação de uma
regulamentação concretizadora da Constituição (v. g., de um
direito fundamental «positivo») quando dela tenha derivado a
destruição, completa e efectiva, de algo que, embora dispondo
directamente apenas de uma cobertura normativa «legal», já
entrara a fazer parte do «acquis constitucional». 449

Messias Bento, também em declaração de voto, reconhece


dois outros requisitos para a admissão de um retrocesso social: que a lei
concretizadora já tenha sido executada, ou seja, que a prestação já esteja à
disposição dos destinatários, e que tal concretização material já radique na
“consciência jurídica dominante, formando-se uma espécie de communis opinio a
respeito da sua essencialidade.”450
É importante frisar que à época Portugal já havia ratificado o
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais que, em diversos
dos seus artigos451, previa o compromisso dos Estados em assegurar,

447 Cf. Processo n. º 6/83. Acórdão 39/1984. Considerando 2.3.3.


448 O artigo 290.º da CRP, na redação vigente à época da prolação do acórdão, corresponde, com
alterações, ao atual artigo 288.º, que estabelece os limites materiais de revisão constitucional. Quis
dizer o julgador que a Constituição não previa a hipótese de as leis de revisão deverem respeitar as
concretizações constitucionais efetivadas por atos normativos infraconstitucionais.
449 Cf. Processo n. º 6/83. Acórdão 39/1984. Declaração de voto.
450 Cf. Cf. Processo n. º 6/83. Acórdão 39/1984. Declaração de Voto. O julgador acompanha
451 Cf. art. 2.º, n.º1; art. 13, n.º 2, “b” e “c”; art. 14 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
158

progressivamente, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no tratado.452


Dentre tais direitos, encontra-se o direito de todas as pessoas à segurança social,
incluindo os seguros sociais.453 O TC, porém, não se manifestou sobre a existência
do Pacto.

2.7.1.3. A mudança de entendimento do TC e a superação do acórdão 39/1984

Não obstante, no acórdão n.º 186/88, em que se discutia a


abertura de setores de atividade econômica que até então constituíam monopólio
estatal, uma invocada proibição do retrocesso, especialmente em face do disposto
no artigo 2.º da CRP, que mencionava o objetivo de uma transição para o
socialismo, não foi aceita pelo TC, sob o argumento de prevalência da liberdade de
conformação do legislador.454
Já no Processo n.º 530/1992, o TC entendeu que o aumento
das propinas do ensino superior público não feria o conteúdo essencial do direito
de acesso universal ao ensino superior, porquanto restou assegurada a gratuidade
àqueles que não possuem condições econômicas de arcar com as propinas. Não
obstante, enunciou o TC seu entendimento de que a derrogação dos preceitos
legais que constituem direitos fundamentais não podem restringir o conteúdo
essencial dos direitos fundamentais já consagrado em lei. Ali também o TC, pela
primeira vez, considerou o princípio da progressividade. Embora tenha
mencionado o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
cotejou-se o mesmo princípio previsto no artigo 74.º, n.º 2, “e” da CRP, dando-lhe
uma interpretação conforme: o enunciado prevê uma realização progressiva, ou
seja, a tendência de uma gratuidade, tendo em conta as condições econômicas e
sociais dos cidadãos.455

2.7.1.4. O Acórdão 509/2002 e os parâmetros para aplicação da proibição do


retrocesso

Sociais e Culturais.
452 O referido tratado entrou em vigor em 31 de outubro de 1988. Cf. artigo 27, n.º 2, do

International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights. Versão original em inglês disponível
no site da Organização das Nações Unidas. A versão em português, bem como os documentos de
ratificação e comunicação do depósito da ratificação estão disponíveis, em Portugal, no site do
Diário da República Eletrônico: <https://dre.pt/application/file/297973>.
453 Dispõe o art. 9.º do Tratado: “Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas

as pessoas à segurança social, incluindo os seguros sociais.”


454 Cf. Processo n.º 344/88. Acórdão n.º 186, de 11 de agosto de 1988.
455 Processo n.º 530/92. Acórdão n.º 148, de 8 de fevereiro de 1994.
159

Mais adiante, no Acórdão 509/2002, em que se discutia a


constitucionalidade da Lei nº 19-A/96, de 29 de Junho, que aumentava de 18 para
25 anos o requisito etário mínimo para percepção do rendimento mínimo
garantido, o TC estabeleceu alguns parâmetros para limitação da medida
legislativa pelo princípio da proibição do retrocesso em caso de criação de omissão
inconstitucional. Em primeiro lugar, distinguiu duas hipóteses de retrocesso: a)
aquela em que a matéria tratada decorre de “uma ordem de legislar,
suficientemente precisa e concreta, de tal sorte que seja possível determinar com
segurança as medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade” e b)
as demais situações. 456
No primeiro caso, entendeu o TC que a margem de liberdade
do legislador para retroceder no grau de proteção atingido é necessariamente
mínima, já que só o poderia fazer na estrita medida em que a alteração legislativa
pretendida não viesse a consequenciar uma inconstitucionalidade por omissão.
Já nas outras situações, a proibição de retrocesso social
apenas poderia funcionar em “casos-limite”, uma vez que se encontraria limitada
pelo princípio democrático, cuja característica de alternância induziria a ideia de
revisibilidade das opções político-legislativas, mesmo aquelas fundamentais. Nesse
caso, a limitação do legislador dar-se-ia pelo respeito ao mínimo existencial.
Ademais, a reserva do possível apenas poderia ser invocada se comprovada a
incapacidade financeira ou a prioridade de realização de outro valor
constitucional.457
No entanto, foi ao julgar o Processo n.º 176/2009 que o TC
negou a autonomia normativa do princípio da proibição do retrocesso,
reconhecendo que o controle de constitucionalidade deve ser feito mediante o
emprego de outros princípios, como a proteção da confiança e do núcleo essencial
dos direitos, como corolários da proteção da dignidade humana. 458

456 Processo n.º 768/02. Acórdão n.º 509, de 19 de dezembro de 2002.


457 O mesmo entendimento foi mantido nos acórdãos seguintes. Cf. Processo n.º 944/03. Acórdão
n.º 590, de 6 de outubro de 2004; Processo n.º 962/06. Acórdão n.º 336, de 30 de maio de 2007;
Processo n.º 505/08. Acórdão n.º 188, de 22 de abril de 2009; Processo n.º 273/09. Acórdão n.º
561, de 28 de outubro de 2009; Processo n.º 985/09. Acórdão n.º 269, de 29 de junho de 2010;
Processo n.º 1260/13. Acórdão n.º 862, de 19 de dezembro de 2013; Processo n.º 819/14. Acórdão
n.º 575, de 14 de agosto de 2014.
458 Cf. Processo n.º 176/09. Acórdão n.º 3, de 6 de janeiro de 2010. O mesmo entendimento foi

mantido no Processo n.º 935/13. Acórdão n.º 794, de 21 de novembro de 2013.


160

Nesse sentido, no Acórdão n.º 575/2014, o TC reafirma seu


entendimento de inadmissibilidade de uma proibição geral de retrocesso social, o
que destruiria a autonomia legislativa. Em continuidade, fixa o TC os parâmetros
para invocação do princípio da proibição do retrocesso, nos mesmos termos já
fixados pelo Acórdão n.º 509/2002.459

2.7.1.5. A proibição do retrocesso no TC e no STF

Assim, de acordo com a jurisprudência do TC, a proibição do


retrocesso pode ser considerada um princípio limitador da discricionariedade
legislativa. Ele, no entanto, apenas tem o condão de atrair o questionamento acerca
da constitucionalidade da lei. É que as leis, em regra, gozam de presunção relativa
de constitucionalidade. Quando, porém, reduzem-se direitos sociais, essa
presunção relativa vê-se diminuída, dando ensejo à possibilidade de se questionar
judicialmente sua constitucionalidade. A presunção iuris tantum da lei, todavia, só
será quebrada se for demonstrado que o retrocesso social atingiu o “conteúdo
mínimo do preceito constitucional".
A proibição do retrocesso na jurisprudência constitucional
portuguesa é, assim, não um princípio autônomo, tampouco uma vedação absoluta
de criação de uma omissão inconstitucional, mas uma condição que impõe ao
legislador um ônus de demonstrar a compatibilidade do ato com os princípios da
proteção da confiança, da igualdade e da proporcionalidade, fenômeno parecido ao
desenvolvido recentemente na França e na Itália.
Concorda-se com a posição da jurisprudência constitucional
portuguesa. Com efeito, há que se reconhecer a limitação do legislador em revogar
ou alterar leis concretizadoras de direitos sociais fundamentais,
injustificadamente, afetando-se o núcleo essencial de tais direitos.
Tal limitação, porém, decorreria não apenas da vedação
geral de prática de um ato inconstitucional, nos casos em que a revogação de uma
lei dessa natureza gere uma omissão inconstitucional, mas também de um dever
inequívoco de progressividade previsto expressa ou implicitamente em norma
constitucional ou em norma de direito internacional, aspeto que foi considerado
pelo TC.

459 Cf. Processo n.º 819/14. Acórdão n.º 575, de 14 de agosto de 2014.
161

A jurisprudência portuguesa inaugurada em 1984 tem sido


invocada pelo Supremo Tribunal Federal para aplicar o princípio da proibição do
retrocesso social no Brasil, o que enseja duas críticas. Em primeiro lugar, há uma
transposição de fundamentos entre casos completamente diferentes. Nos recentes
acórdãos do STF, o caso em apreciação não envolvia a revogação de um ato
normativo, mas pedidos concretos de prestações sociais. Em segundo lugar, como
já analisado, o STF recorre a uma jurisprudência superada pelo TCP e a uma
doutrina, no caso a de Canotilho, que, embora possa ter influenciado em parte a
posição do TCP em 1984, não é contemplada em sua jurisprudência atual.
Desse modo, a manipulação do “princípio da proibição do
retrocesso social” pelo STF é, além de tecnicamente impreciso, órfão de referencial
comparado, uma vez que o paradigma jurisprudencial seguido, além de não
coincidir factualmente, já se encontra ultrapassado.

2.7.2. Análise crítica dos fundamentos utilizados na defesa de um princípio


geral de proibição do retrocesso

Como se constata, a tese da proibição do retrocesso não


encontra consenso na doutrina460 e geralmente seus defensores a fundamentam na
conceção de Estado social e Democrático de Direito461, na existência de um
princípio implícito e, por vezes, explícito, de dever de progressividade dos direitos
sociais, no princípio da dignidade da pessoa humana462, no princípio da máxima
eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais, na
vinculatividade estatal às normas de direitos sociais e, ou, em uma vedação de
criação de omissões inconstitucionais.463

460 A tese de existência de uma proibição do retrocesso que possa vincular o legislador não é
consensual na doutrina. Sobre a divergência doutrinária, Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de direito...,
cit., 2012, p. 485 et seq.
461 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 2. ed. Rio de

Janeiro: Renovar, 1993, p. 158.


462 OTERO, Paulo. Instituições políticas…cit., p. 578-92.
463 Cf., dentre outros, MIRANDA, Jorge. Manual de direito..., cit., 2000, p. 397-8; MEDEIROS, Rui.

Direitos, liberdades e garantias e direitos sociais: entre a unidade e a diversidade.


In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia. Jorge Miranda (Coord.). Lisboa: FADUL,
2010, v.1, p. 676. SARLET, Ingo. A eficácia dos direitos…cit., p. 455-7. Ana Paula de Barcelos justifica
a tese da proibição do retrocesso como uma espécie de eficácia jurídica vedativa, segundo a qual se
deve proteger a parcela do direito concretizado legislativamente, quando não for acompanhada de
“política substitutiva”. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o
princípio da dignidade da pessoa humana. 3.º ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 85 ss; OTERO,
Paulo. Instituições políticas…cit., p. 578-92; HACHEZ, Isabelle. Le principe de standstill..., cit., p. 17.
162

Cumpre analisar cada um desses argumentos.

2.7.2.1. Dever de progressividade ínsito à conceção de Estado social de direito?

Uma das formulações teóricas que pretendem conferir


normatividade a valores morais e ideológicos que se acredite decorrer diretamente
da conceção de Estado social de direito, defende a tese de um princípio da máxima
efetividade das normas de direitos fundamentais sociais, 464 do qual resultaria um
dever de progressividade dos direitos sociais vinculante do legislador.
Segundo essa forma de compreensão do Estado social de
direito, sua finalidade conduziria à noção de realização progressiva dos direitos
sociais. A contrario sensu, seria vedada sua realização regressiva.
Todavia, consistindo a liberdade de conformação do
legislador um dos princípios estruturantes do mesmo Estado social de direito,
qualquer limitação a esse princípio deve encontrar fundamento em uma previsão
constitucional expressa ou em um princípio implícito, porém mediante um
raciocínio lógico-jurídico inequívoco.
Nesse sentido, a análise histórico-evolutiva do conceito de
Estado (social) de direito parece infirmar qualquer pretensão de dedução de um
princípio autônomo de progressividade dos direitos sociais vinculante do
legislador.465
Há diversos elementos a considerar. Em primeiro lugar,
cumpre saber quando e a quem cabe decidir se há, de fato, um retrocesso social.
Em segundo lugar, a ideia de progressividade deve ser interpretada de forma
sistemática, à luz dos demais princípios constitucionais, como a proporcionalidade,
a liberdade de conformação do legislador, bem como pelos limites impostos pela
reserva do possível.

2.7.2.2. Regresso ou progresso?

464 Como defende Ingo Sarlet. Cf. SARLET, Ingo. A eficácia dos direitos…cit., p. 455-7. O autor
invocado ainda o Estado de direito, através dos princípios concretizadores e regras constitucionais
dele decorrente.
465 Cf., em sentido contrário, SARLET, Ingo. A eficácia dos direitos..., cit., p. 455-7.
163

Como questiona Jorge Reis Novais, as constituições não


indicam geralmente um critério para definição material do que consubstanciaria
um retrocesso.466
A revogação de uma lei, por exemplo, que crie cotas para
ingresso de afrodescendentes em universidades públicas ou a flexibilização de uma
legislação trabalhista, motivada pela necessidade de aumento de emprego,
consubstanciariam retrocessos ou progressos?
De fato, a conceção do que seja uma medida progressiva ou
regressiva deve considerar pelo menos três aspetos: um, de caráter subjetivo;
outro, de caráter sinalagmático; e, finalmente, um de caráter temporal.
O primeiro aspeto acima apontado liga-se à própria
avaliação individual ou de um grupo de interesse acerca da natureza da medida.
Para uns, a mesma medida pode ser considerada progressiva, mas regressiva para
outros. A flexibilização da legislação trabalhista pode ser considerada um regresso
para alguns, em termos de garantias sociais, por diminuir uma certa proteção aos
trabalhadores. Outro grupo, entretanto, considerando o aumento das contratações
por prazo indeterminado e diminuição do desemprego, pode considerar a medida
um avanço.
Uma medida legislativa também pode implicar um progresso
social em um campo e, ao mesmo tempo, um regresso social em outro. É o que
pode ocorrer, por exemplo, com a convergência de pensões entre os sistemas
público e privado, feita mediante a diminuição das vantagens conferidas às
pensões publicas, em atendimento ao princípio da igualdade entre os pensionistas
de ambos os sistemas. Tal convergência pode ser feita, também, com a concessão
de vantagens aos pensionistas de um sistema e a retirada de vantagens dos
pensionistas do outro sistema, hipótese em que haverá um progresso para o
primeiro grupo e um regresso para o segundo grupo.
Finalmente, o aspeto temporal evidencia que a natureza
progressiva ou regressiva da medida pode apenas se verificar no longo prazo. É o
que ocorre, especialmente, no campo econômico. Uma medida de contenção de
despesas do Estado pode retirar direitos sociais num primeiro momento, para
evitar uma maior constrição no futuro.

466 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais..., p. 243-244.


164

Assim, ainda quando o Estado estiver diretamente vinculado


a uma cláusula expressa de compromisso de progressividade dos direitos sociais,
todos esses aspetos devem ser objeto de uma ponderação que sopese os
argumentos envolvidos e considere os três aspetos acima apontados. Diante de um
conflito relevante de interesses, deve prevalecer a medida estatal, que já resultou
do processo democrático de balanceamento dos interesses sociais em jogo. Apenas
em casos discrepantes pode ter lugar uma intervenção judicial para aferição de
eventual violação a uma cláusula de standstill. 467
Diante disso, pode-se afirmar que há dois tipos de
retrocesso: o específico, que afeta a prestação de um direito social determinado, e
o geral, aferível a partir de critérios de ponderação e de razoabilidade, com
aplicação subsidiária dos princípios da igualdade, proporcionalidade e segurança
jurídica.
O retrocesso específico só será inconstitucional se houver
norma constitucional prevendo a progressividade específica, ou de forma indireta,
como na vedação de criação de omissão inconstitucional.
Nos demais casos, somente se poderá invocar uma cláusula
de progressividade se constatado o retrocesso social geral, ou seja, quando houver
supressão de direitos sociais pelo Poder Público de maneira injustificada,
inadequada, desnecessária ou excessiva.

2.7.2.3. Dever de progressividade expresso ou implícito no texto constitucional

Diversa é a hipótese de o dever de progressividade estar


implícita ou explicitamente previsto em texto constitucional ou normas
internacionais vinculantes do Poder Público.
Nesse sentido, como já informado, o Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais prevê, em diversos dos seus artigos, o
compromisso de os Estados assegurarem, progressivamente, o pleno exercício dos
direitos nele reconhecidos. Tal dever apresentaria duas implicações: que os

467Nesse sentido, entendeu o Supremo Tribunal Federal no Brasil, na Medida Cautelar na Ação
Direta de Inconstitucionalidade n.º 2213/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso De Mello, Pub.
23.4.2004.
165

Estados tomarão medidas para viabilizar tais direitos e que não deverão tomar
medidas regressivas.468
O referido Pacto apresenta os mesmos reflexos nos
ordenamentos português e brasileiro. Em Portugal, em razão do disposto no artigo
8.º, n.º 2, da CRP, a cláusula de progressividade dos direitos sociais deve ser
observada como princípio infraconstitucional e supralegal que determina um
standstill na máxima medida possível. Em decorrência, a concretização de um
direito social pelo legislador gera-lhe uma autovinculação, atraindo-lhe o ônus de
demonstrar o interesse público que justifica a medida.469
Alguns autores defendem, ainda, a existência de uma
progressividade implícita na Carta Social Europeia e na Carta de Direitos
Fundamentais da União Europeia.470
No caso brasileiro, a par do Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, há que se ressaltar a previsão do artigo 26 da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos.471 Diante de tais normas, duas
situações seriam possíveis para o Estado brasileiro. A aprovação do tratado por
maioria qualificada de três quintos na Câmara dos Deputados e no Senado, em dois
turnos de votação, nos termos do artigo 5.º, §3º, da CRFB, imprimiria ao referido
Pacto status constitucional. Como sua aprovação, no entanto, não observou tais
requisitos, o tratado adquire um status supralegal, porém infraconstitucional, tal
como se dá em Portugal.
Há, ainda, quem encontre um dever de progressividade
implícita em alguns dispositivos como o artigo 3º, I e III472, artigo 7º, caput,473 e
art. 170, caput e incisos VII e VIII da CRFB.474

468 HACHEZ, Isabelle. Le principe de standstill..., cit., p. 26. No mesmo sentido: COURTIS, Christian. Ni
un paso atrás…cit., p. 8.
469 Segundo Flávia Piovesan, os direitos e garantias previstos em tratados e convenções criam

obrigações jurídicas, não consistindo em meros preceitos de ordem moral e programática. Cf.
PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos, globalização econômica e integração regional. São Paulo: Max
Limonad, 2002, p. 70-1.
470 HACHEZ, Isabelle. Le principe de standstill..., cit., p. 54 et seq.
471 Cf. COURTIS, Christian. Ni un paso atrás…cit., p. 12 et seq.
472 Dispõe o referido artigo: Art. 3.º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa

do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (...); III - erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; (...)
473 Dispõe o artigo 7.º - Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que

visem à melhoria de sua condição social. (grifamos)


474 Dispõe o artigo 170.º - Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
166

2.7.2.4. Dever de progressividade como garantia da eficácia ou efetividade das


normas definidoras de direitos fundamentais

Outro argumento invocado é o de que o dever de


progressividade seria uma decorrência natural da eficácia jurídica das normas
constitucionais, as quais, ao serem objeto de concretização legal, não poderiam ser
suprimidas pelo legislador, sob pena de retirar a própria eficácia constitucional.475
A referida tese funda-se na pré-compreensão de que a
jusfundamentalidade das normas de direitos sociais e sua consequente força
jurídica implicariam tal dever.
Não se nega – à evidência – que tais normas gozem de tais
características. Mas a força jurídica vinculante de uma norma social depende de
sua própria estrutura normativa.476
Com efeito, como reconhece Carlos Blanco de Morais,
fundamentalidade e subjetividade são características diversas. Esta diz respeito ao
nível de determinabilidade e efetividade da norma, ao passo que aquela deriva da
previsão constitucional de um direito.477
Nesse sentido, a fundamentalidade da norma não lhe confere
per si eficácia. Daí porque José Afonso da Silva classifica, no Brasil, como de eficácia
limitada aquelas normas cuja eficácia depende de conformação legislativa.478
Tal eficácia pode se encontrar condicionada pela ausência de
dois elementos que, em virtude de sua natureza, só podem ser preenchidos pelo
legislador: o elemento criativo e o elemento financeiro.
O elemento criativo repousa na positivação de uma decisão
política legitimada democraticamente, que dará um conteúdo exigível por seu
destinatário. A medida da eficácia dessa norma será diretamente proporcional ao
direito criado. Já o elemento financeiro implica uma decisão política de alocação de
recursos escassos. Embora todos os direitos – mesmo os de liberdade – envolvam

humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames
da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; (...); III - função social
da propriedade (...). Cf. DERBLI, Felipe. O princípio da proibição do retrocesso..., cit., p. 382.
475 Nesse sentido, cf. MENDONÇA, João Vicente Santos de. Vedação do retrocesso: o que é e como

perder o medo. In: Revista de Direito da Associação de Procuradores do Novo Estado do Rio de
Janeiro, v. XII – Direitos Fundamentais, Lumen Juris, 2003, p. 223-4.
476 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional...2014, cit., p. 589-90.
477 MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional...2014, cit., p. 577.
478 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros,

1998, p. 86.
167

custos479, o facto é que direitos prestacionais envolvem custos diretos,


individualizáveis e maiores que os custos dos direitos de garantias, muitos dos
quais são absorvidos pelos custos inerentes à manutenção do aparato estatal.480
Por outro lado, a efetividade de uma norma sem qualquer
densificação constitucional, como a que simplesmente impõe ao legislador o dever
de garantir a proteção à saúde, é obtida com a legislação. Esta pode conferir
qualquer grau de efetividade ao direito e ser alterada de modo a equacionar,
diante da dinâmica política, social e econômica, os elementos criativo e financeiro,
sem qualquer comprometimento com uma efetividade de tal direito.

2.7.2.5. Direito subjetivo à ação estatal

Outro fundamento utilizado pela doutrina é o de que as leis


concretizadoras de direitos sociais não poderiam ser objeto de revogação ou
alteração pelo legislador, pois as normas de direitos sociais seriam mandamentos
constitucionais dirigidos ao Estado e, consequentemente, ao lhe determinarem a
tomada de medidas como meios para se atingirem os fins previstos nas normas-
programa, tais mandamentos imporiam deveres jurídicos objetivos de realizarem
o fim (ou programa) contido em tais normas, mediante as medidas apropriadas.481
Nessa mesma linha, Canotilho, analisando especificamente a
CRP, a partir de uma pretensa interpretação teleológica do artigo 3.º da CRP e do
artigo 9.º da CRP, reconhece que o referido dispositivo revelaria uma imposição
constitucional de realização de uma democracia econômica, social e cultural.482 Tal
imposição constitucional geraria uma garantia institucional e um direito
subjetivo.483 Em decorrência, o autor desloca a tese da proibição do retrocesso para
a segurança jurídica, ao limitar o retrocesso ao respeito aos direitos (subjetivos)
adquiridos.
De fato, como já analisamos no item 2.6.2.3., a constatação de
que uma norma programática ou de direito social (direito objetivo) gera um

479 Cf. HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New
York, London: W. W. Norron & Company, 1999, p. 35 ss. SILVA, Vasco Pereira da. Verde cor de
direito: lições de direito do ambiente. Coimbra: Almedina, 2002, p. 82.
480 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional…2014, cit., p. 556 et seq.
481 O principal expoente dessa tese é Böckenförde. Cf. BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang, Estudios

sobre derechos fundamentales. Trad. Juan Luis Requejo Pagés e Ignacio Villaverde Menéndez. Baden
Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1993, p. 80 et seq.
482 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional..., cit., p. 337.
483 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional..., cit., p. 338-9.
168

correlato direito subjetivo depende das circunstâncias concretas, da densificação


do direito e sua possibilidade de reclamação em juízo pela presença dos elementos
necessários para tanto (titular do direito, seu destinatário e seu objeto).
Constatando-se as possibilidades fáticas de acionamento judicial segundo o
ordenamento vigente, poderá haver o reconhecimento de tal direito contra o
retrocesso.
Finalmente, os fins da República Portuguesa previstos nos
artigos 2.º e 9.º da CRP, de realização de uma democracia econômica, social e
cultural, são princípios de conteúdo genérico que servem de parâmetros para
orientação do legislador e de limitações contra a tentativa de adoção por parte do
mesmo legislador ou do constituinte derivado de medidas contrárias a tais fins.
Desse modo, não é possível deduzir de tais princípios uma imposição constitucional
criadora de direitos subjetivos, como afirma Canotilho.484

2.7.2.6. Direito subjetivo a prestações sociais

Os direitos a uma prestação determinada só podem ser


exercitados se presentes, como enuncia Alexy, o destinatário, o titular do direito e
o objeto determinado.485 Ocorre que as normas de direitos sociais raramente
determinam tais elementos, o que depende de uma densificação legislativa, sem a
qual não há que se falar em direitos subjetivos.
Tais direitos prestacionais, ou de créditos dos indivíduos
perante a coletividade, como prefere chamar Celso Lafer486, podem consistir,
portanto, em direitos subjetivos a prestações sociais, na medida em que a lei
preveja um direito líquido e certo a certa prestação estatal. É o caso, v.g., da lei que
regulamenta os benefícios assistenciais. Uma vez determinado que todo cidadão,
ao atingir certa idade ou tempo de serviço, fará jus à percepção de uma pensão
mensal, tal prestação torna um direito subjetivo – porquanto possui um valor e
natureza certa determinada e exigível do Estado. No caso, porém, de determinada
lei instituir as bases gerais que devem informar determinada prestação social, sem

484 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional..., cit., p. 338-9.


485 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos ..., cit., p. 43; 195-6; 202-3.
486 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de hannah

Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 127 e 130/131.


169

definir seu quantum e requisitos para concessão, não há um direito subjetivo a tais
prestações, mas igualmente um direito subjetivo de exigir uma ação estatal.
Ainda no primeiro caso, pode-se discutir se há um direito
adquirido ao valor da pensão, como entende Jorge Reis Novais487 e o TCP488, mas
isso não implica uma vedação ao retrocesso por parte do legislador fundado
exclusivamente na conceção de que há um direito subjetivo à prestação e à
manutenção do status quo.
Na mesma linha, Jorge Reis Novais argumenta que se os
direitos de liberdade podem ser restringidos, também podem os direitos sociais,
sobretudo porque neste caso deve-se observar a reserva do financeiramente
possível.489

2.7.2.7. Vedação de criação de uma omissão inconstitucional

Parte da doutrina apenas admite a tese da proibição do


retrocesso social, tal como se verifica com os direitos de liberdade, se uma norma
infraconstitucional concretizadora de uma imposição constitucional de legislar for
revogada, sem ser substituída por outra.490
O mesmo entendimento é adotado pelo Conseil
Constitutionnel na França, na sua decisão DC 83-165, de 20 de janeiro de 1984.491
Também com algum dissenso, reconhece a doutrina que tal
vedação ocorrerá se houver revogação sem substituição da concretização legal,
quando: a) for violada a dignidade da pessoa humana492; b) violar os princípios da
proteção da confiança, da igualdade, da proibição do arbítrio e da razoabilidade; 493

487 NOVAIS, Jorge Reis. O direito fundamental à pensão de reforma em situação de emergência
financeira. E-pública - Revista Eletrônica de Direito Público, n. º 1, 2014, p. 7.
488 Cf. TCP. Processo 1260/2013. Acórdão 862/2013, parágrafo 45.
489 NOVAIS, Jorge Reis. Princípios constitucionais..., cit., p. 304-6.
490 Cf. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais ..., cit., p. 369, nt. 37.
491 Cf. Decisão DC 83-165, de 20 de Janeiro de 1984, do Conseil Constitutionnel. Considerando 42.
492 OTERO, Paulo. Instituições políticas…cit., p. 578-92.
493 Cf. OTERO, Paulo. Instituições políticas..., cit., p. 596; PULIDO, Carlos Bernal. Fundamento,

conceito e estrutura dos direitos sociais: uma crítica a “existem direitos sociais?” de Fernando Atria.
In: SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de (coords.). In: Direitos sociais:
fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie, Lúmen Juris, 2008, p. 161. QUEIROZ,
Cristina. O princípio da não reversibilidade..., cit., p. 70.
170

c) as concretizações deverem ser consideradas materialmente constitucionais494;


ou, d) afetarem o conteúdo essencial do direito.495

2.7.2.7.1. Revogação violadora da dignidade da pessoa humana

Alguns autores reconhecem que a revogação de uma lei


concretizadora de um direito social será inconstitucional se violar a dignidade da
pessoa humana.496
Essa tese esbarra na dificuldade de densificação de um
princípio da dignidade da pessoa humana, como já tratado em sede de pré-
compreensão. Não se nega a importância do conceito497, tampouco que o termo
reflete todas as aspirações representadas especialmente pelos filósofos políticos a
partir do século XVII, muitas das quais consagradas nas declarações de direitos498,
mas o facto é que tal princípio apenas pode ser invocado de modo autônomo se
houver um consenso radicado na consciência geral acerca de seu conteúdo, e não
apenas mediante uma formulação retórica doutrinária ou jurisprudencial, sob
pena de banalização do princípio, como advertiu, no Brasil, o STF:
Creio ser indispensável enaltecer a circunstância da
desnecessidade da invocação da dignidade humana como
fundamento decisório da causa. Tenho refletido bastante sobre
essa questão, e considero haver certo abuso retórico em sua
invocação nas decisões pretorianas, o que influencia certa
doutrina, especialmente de Direito Privado, transformando a
conspícua dignidade humana, esse conceito tão tributário das
Encíclicas papais e do Concílio Vaticano II, em verdadeira
panacéia de todos os males. Dito de outro modo, se para tudo se
há de fazer emprego desse princípio, em última análise, ele para
nada servirá. [...]” 499

Assim, o conceito de dignidade da pessoa humana só pode


ser utilizado autonomamente contra o legislador, fora das demais garantias e
direitos fundamentais expressamente previstos que lhe delimitam um conteúdo de
acordo com a ordem jurídico-constitucional, se, mediante uma argumentação

494 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais ..., cit., p. 378.
495 OTERO, Paulo. Instituições políticas…cit., p. 578-92.
496 Cf. OTERO, Paulo. Instituições políticas…cit., p. 578-92.; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os

direitos fundamentais ..., cit., p. 369, nt. 37.


497 Cf. HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In:

Dimensões da dignidade, ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. SARLET, Ingo


Wolfgang (Org.).Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 75.
498 Cf. LÉON, Luis Fleitas de. A propósito del concepto..., cit., p. 24.
499 Cf. STF. RE 363889. Pleno, Re l. Ministro Dias Toffoli, Pub. 16.12.2011.
171

lógico-jurídica, for demonstrado de modo inequívoco que certo conteúdo inerente


a tal princípio se encontra implícito no texto constitucional.500
Na ordem constitucional brasileira, assim como na
portuguesa, o princípio da dignidade humana não possui um conteúdo autônomo;
seu conteúdo encontra-se delimitado pelas demais normas constitucionalmente
previstas, que aclaram seu conteúdo. Nesse sentido, a autonomização do princípio
na Lei Fundamental de Bona e as soluções jurisprudenciais e doutrinárias adotadas
devem ser interpretadas e recepcionadas com ressalva na ordem jurídica
constitucional brasileira e portuguesa.

2.7.2.7.2. Observância dos princípios da proteção da confiança, da igualdade, da


proibição do arbítrio e da razoabilidade

Segundo Vieira de Andrade, as normas de direitos sociais


implicam uma “certa garantia de estabilidade das situações ou posições jurídicas
criadas pelo legislador ao concretizar as normas respetivas”. Tal garantia pode
assumir três graus: um grau mínimo, que impede que simplesmente sejam
destruídas tais posições; um grau máximo, quando tais garantias possam ser
consideradas materialmente constitucionais, e um grau médio, que exige a
observância do princípio da proteção da confiança e vedação do arbítrio
legislativo.501
A referida tese, no entanto, ao fazer depender o princípio da
proibição do retrocesso de outros princípios constitucionais, infirma, a contrario
sensu, sua autonomia normativa, transformando o termo em vocábulo retórico que
serve para indicar uma situação específica de aplicação daqueles princípios.502

2.7.2.7.3. Afetação do conteúdo essencial do direito

Finalmente, outro fundamento bastante utilizado é o de que


a revogação de lei concretizadora de um direito social apenas seria possível se não
diminuísse o núcleo essencial dos direitos.503 Canotilho, e.g., reconhece a

500 Cf. ALEXANDRINO, José de Melo. Perfil constitucional..., cit., p. 511.


501 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., cit., p. 378.
502 Cf. NOVAIS, Reis. Direitos sociais..., cit., p. 249.
503 Cf. HESSE, Konrad. Grunzüge des verfassungsrechts..., cit., p. 86-7. MIRANDA, Jorge. Manual de

direito constitucional..., cit., p. 393. Paulo Otero, porém, admite tal retrocesso se houver
fundamentação por parte do legislador. Cf. OTERO, Paulo. Instituições políticas…cit., p. 578-92.
172

“anulação, revogação ou aniquilação pura e simples” do "núcleo essencial" do


direito social como limite à liberdade de conformação do legislador.504
A dificuldade reside, como já analisado no tópico que trata
da proibição do excesso, em definir o que seria esse "núcleo essencial".
De fato, embora o TC faça referências ao núcleo essencial, na
esteira da linha teórica proposta por Vieira de Andrade 505, não o define, nem dá
qualquer critério para sua aplicação.506
Por outro lado, alegam outros autores que nem sempre é
possível aferir um conteúdo essencial de tais direitos.507 Isso não obsta que se
avalie, em cada caso, se o conteúdo essencial é ou não preservado. Nesse ponto,
abstrações teóricas podem dificultar a compreensão do fenômeno. O facto é que,
diante de casos concretos como pensões, remunerações, matrículas em
universidades, escolas e creches, é muito mais fácil avaliar a preservação ou não de
um conteúdo essencial, que em formulações com pretensões de universalidade.
Também não parece, como defende Felipe Derbli, que a
proteção do conteúdo essencial de um direito social não possa ser objeto de
proteção pelo princípio da proibição do retrocesso, ao fundamento de que outros
princípios podem atuar em sua defesa.508 A concorrência de normas não é
argumento para se desconsiderar a aplicação de uma delas, até mesmo porque
decorrem de fundamentos diversos que não se excluem, mas se somam.

2.7.2.7.4. Natureza constitucional da lei concretizadora de direitos sociais

Segundo Jorge Miranda, a revogação de uma lei que


concretiza uma imposição constitucional pode implicar uma inconstitucionalidade
material.509 O fundamento da sua tese é a aquisição de certa força constitucional
por tais leis devido à unidade sistemática que integram. 510

504 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional…cit., p. 340.


505 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., cit., p. 381.
506 Cf. Processo n.º 768/02. Acórdão n.º 509, de 19 de dezembro de 2002.
507 Cf. ALEXADRINO, José Melo. Direitos fundamentais..., cit., p. 145. Segundo o autor, a existência de

um conteúdo essencial é incompatível com a sistemática do artigo 18.º, n.º 3, combinada com o
artigo 17.º da CRP.
508 DERBLI, Felipe. A aplicabilidade do princípio da proibição de retrocesso social no direito

brasileiro. In: SARMENTO, D.; SOUZA NETO, C. P. (coord.). Direitos Sociais: fundamentos,
judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008, p. 364.
509 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, 1981..., cit., p. 670; MIRANDA, Jorge. Manual

de direito constitucional, 2000...cit, p. 397-8.


510 “Não se visa com isso revestir as normas legais concretizadoras da força jurídica própria das
173

Rui Medeiros também admite a possibilidade de direitos


sociais concretizados pelo legislador integrarem o bloco de fundamentalidade
constitucional e, em decorrência, não poderem ser por ele modificados. 511
José Carlos Vieira de Andrade, porém, é contrário. Este autor
chama à atenção duas contradições que decorreriam da adoção dessa tese. Em
primeiro lugar, se for conferida aos direitos sociais tal força, esta poderá ser mais
forte que a dos próprios direitos de liberdade, que igualmente comportam
restrição, desde que respeitado seu conteúdo essencial. Em segundo lugar, tal
vinculação do legislador corresponderia a dar-lhe inicialmente poderes
constituintes, para depois retirar sua própria liberdade de conformação.512 Ou seja,
segundo essa tese, o legislador seria um Poder de uma única oportunidade,
comparável a um atirador que dispõe de apenas uma bala: se não acertar o alvo
(equacionar o direito social à realidade do financeiramente possível e
relativamente aos demais direitos sociais) com aquela única bala (lei
concretizadora), não poderia voltar atrás (efeito catraca).
Com efeito, a par das contradições apontadas por Vieira de
Andrade, a única forma de se aceitar a tese da constitucionalização do direito
criado pelo legislador seria pressupor uma mutação constitucional provocada pela
densificação legislativa, como se examina no item a seguir.

2.7.2.7.5. Mutação constitucional provocada pela concretização de direitos sociais

Canotilho sustenta a possibilidade de as normas que


concretizam direitos sociais adquirirem força constitucional, por um processo de

normas constitucionais ou elevar os direitos derivados a prestações a garantias constitucionais.


Essas normas continuam modificáveis como quaisquer outras normas ordinárias, sujeitas a
controlo da constitucionalidade e passíveis de caducidade em caso de revisão constitucional (sem
prejuízo de limites materiais). Nem sequer vêm a prevalecer sobre outras normas ordinárias; como
tais, nenhuma consistência específica adquirem. O que se pretende é, na vigência de certas normas
constitucionais, impedir a abrogação pura e simples das normas legais que com elas formam uma
unidade de sistema.” MIRANDA, Jorge. Os novos paradigmas do Estado social. Texto da conferência
proferida em 28 de Setembro de 2011, em Belo Horizonte, no XXXVII Congresso Nacional de
Procuradores de Estado. Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/ files/media/1116-
2433.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2015.
511 MEDEIROS, Rui. Direitos, liberdades e garantias e direitos sociais: entre a unidade e a

diversidade. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia. Jorge Miranda (Coord.).
Lisboa: FADUL, 2010, v.1, p. 676.
512 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., cit., p. 377. Também Carlos Blanco de

Morais entende que o princípio da proibição do retrocesso não impede que sejam extintos direitos
criados por lei ordinária. A aplicação do mesmo regime previsto no artigo 18.º da CRP não impede
que tais direitos sejam extintos. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional..., cit., p.
52.
174

mutação, provocado pela existência de um “consenso básico presente na


consciência jurídica geral”, limitando, assim, a edição de leis que violem imposições
ou programa constitucional.513
Tal entendimento foi seguido pelo juiz do Tribunal
Constitucional Messias Bento, em declaração de voto no Acórdão 39/1984,
segundo o qual tal concretização material afigurar-se-ia uma mutação
constitucional se ela já radicar na “consciência jurídica dominante, formando-se
uma espécie de communis opinio a respeito da sua essencialidade.”514
Também Cristina Queiroz e Vieira de Andrade aceitam a tese
da mutação constitucional. Ambos, porém, divergem quanto às condições para que
tal mutação se verifique. Para Cristina Queiroz, não é a lei que gera a mutação, mas
sua atuação.515 Já, para Vieira de Andrade, a constitucionalização da concretização
legislativa deve ocorrer excepcionalmente, desde que haja um “consenso profundo
e alargado construído ao longo do tempo” e se limite a aspetos gerais da
concretização, não a todos os pormenores.516
Jorge Reis Novais acrescenta, ainda, que a consagração
constitucional de um direito fundamental não pode ser apartada da concretização
legislativa, como se a norma de direito fundamental fosse apenas o que o
enunciado constitucional diz, e não a norma que se extrai a partir da interpretação
do texto constitucional pelo enunciado contido na lei concretizadora.517
Com efeito, tal teoria não encontra suporte no direito
constitucional português, que se funda, como em grande parte dos demais Estados
democráticos de direito, numa permanente possibilidade de revisão das escolhas
legislativas. Daí porque é inerente a esse regime a alternância no Poder. No mesmo
sentido, há que se destacar a declaração de voto de Messias Bento, para quem
a Lei Fundamental (…) não se pode confundir com um mero
programa de governo; há-de ser antes — e sempre — um quadro
normativo, aberto à criatividade e à inventiva do poder
democrático. Há-de permitir a este que — empenhado na criação
de condições de justiça social, capazes de possibilitar a cada
homem uma cada vez mais completa realização da sua
personalidade — rasgue caminhos vários que cada um, atento às

513 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente…, p. 414.


514 Cf. Processo n. º 6/83. Acórdão 39/1984. Declaração de Voto.
515 QUEIROZ, Cristina. O princípio da não reversibilidade..., cit., p. 70.
516 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., cit., p. 378-80.
517 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais..., cit., p. 155 et seq.
175

exigências do bem comum, possa livremente percorrer em busca


do seu próprio modelo de bem-estar.518

Também não parece que seja possível falar em


constitucionalização do direito social densificado por lei, em virtude de uma
mutação constitucional presumida.519
A mutação constitucional se refere à alteração de sentido da
Constituição, sem modificação do seu texto escrito.520 A densificação de normas
constitucionais não pode se confundir com esse processo. Uma mutação
constitucional só se torna possível porque a norma não se confunde com o texto da
constituição. Ela é a interpretação do texto de acordo com a realidade. 521 As
hipóteses de densificação do texto são acréscimos pretendidos por um legislador
democrático, em determinada conjuntura política e econômica. A realidade que
condiciona uma mutação constitucional deve ser tida por inevitável. Isso pode se
dar com a interpretação do casamento, diante da aceitação da união entre pessoas
do mesmo sexo, do adultério, do termo livro (impresso) diante do surgimento dos
livros eletrônicos, entre outros. Em tais casos, a modificação de sentido da norma
se deve a uma alteração de sentido da própria realidade, não a uma intervenção do
legislador. Já no caso de uma norma que preveja o direito a uma pensão de cinco
mil euros, após trinta e cinco anos de trabalho, ou o direito de se matricular no
curso de Direito das Universidades Públicas, após o devido processo seletivo, sem
o pagamento de propinas, não se pode aceitar que se está diante de uma mutação
constitucional. Assim, nem nos termos mais rígidos admitidos por Vieira de
Andrade, como a verificação de “consenso profundo e alargado construído ao longo
do tempo”, poderia se falar em uma mutação constitucional propriamente dita.522
Para Bockenförde, tal “constitucionalização” tratar-se-ia de uma interpretação

518 Cf. Processo n. º 6/83. Acórdão 39/1984. Declaração de Voto Messias Bento.
519 Como admitem, com algumas variações: QUEIROZ, Cristina. O princípio da não reversibilidade...,
cit., p. 70; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., cit., p. 378-80.
520 Cf. FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da constituição: mutações

constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad Ltda., 1986, p. 10. Para uma
definição mais ampla, conceito e histórico, cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito
constitucional: teoria da constituição..., cit., p. 242 ss; e, do mesmo autor: As mutações
constitucionais implícitas e os seus limites jurídicos: autópsia de um acórdão controverso. Jurismat
– Revista Jurídica do Ismat, Portimão, n.º 3, 2013, p. 55. Disponível em:
<http://www.ismat.pt/images/PDF/jurismat3.compressed.pdf>. Acesso em: 3 ago. 2015, p. 61 et
seq.
521 Cf. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5. ed. rev. e

ampl. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 31.


522 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., cit., p. 378-80.
176

evolutiva por parte do poder jurisdicional, muito assemelhada a uma mutação


constitucional.523 No entanto, ela mais se assemelharia a uma sentença
intermédia524, decorrente de manifestação ativista por parte do Poder Judiciário.525
Não obstante, como garantia institucional, a omissão do
legislador pode dar ensejo a uma declaração de omissão. Tal declaração, se por um
lado não tem o condão de autorizar o juiz a suprir a omissão normativa do
legislador, tal como ocorre com o mandado de injunção - segundo a prática recente
do Supremo Tribunal Federal brasileiro -, declara um estado inconstitucional que
vincula negativamente o legislador. Em decorrência, não pode ele, por qualquer
ato, em especial um ato revocatório, incorrer em tal inconstitucionalidade.

2.7.3. Posição adotada

A ideia de que um dever de progressividade dos atos estatais


em matéria de direitos sociais decorreria da dignidade da pessoa humana ou da
noção histórico-conceitual do Estado social ou do Estado de direito parte de duas
pré-compreensões. A primeira é a de que seria possível encontrar racionalmente
um conteúdo jurídico de tais conceitos. A segunda é a de que o legislador existe
para garantir cada vez mais prestações sociais. É a figura do legislador-amigo de
que fala Haberle.526
Fora dos argumentos neoconstitucionais e de manifestações
ativistas, porém, não é possível deduzir tal dever da conceção de Estado de direito,
de Estado social, de dignidade da pessoa humana, pois o caráter aberto, dinâmico e
relativo de tais conceitos reclamam, para seu emprego, uma legitimação
democrática, que pode ser obtida de dois modos: socialmente, quando houver um

523 Cf. BOCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Estúdios sobre el estado..., cit., p. 185 et seq.
524 As sentenças ou decisões intermédias ou aditivas são as decisões que “declaram que ao preceito
impugnado lhe falta algo para ser conforme à Constituição, devendo, assim, o preceito ser aplicado
incluindo aquilo que lhe faltava”. Cf. SÁ, Fátima de. Omissões inconstitucionais e sentenças aditivas.
In: MORAIS, Carlos Blanco de (org.). As sentenças intermédias da justiça constitucional. Lisboa:
AAFDL, 2009, p. 428-9.
525 O ativismo judicial pode ser definido como o “exercício da função jurisdicional para além dos

limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário
fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias
jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Há, como visto, uma sinalização claramente
negativa no tocante à práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica do
Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes.” Cf. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial...,
cit., p. 129.
526 HÄBERLE, Peter. Dignita’Dell’Uomo e Diritti Sociali nelle Costituzioni degli Stati di Diritto. In:

BORGHI, Marco. Costituzione e diritti sociali. Fribourg: Éditions Universitaires Fribourg, 1990, p. 99
et seq.
177

consenso mínimo radicado na sociedade acerca das características antropológicas,


sociais, morais e históricas mínimas em torno de seu conteúdo, ou legalmente,
quando o legislador o define.527
Nesse sentido, as teses que defendem um princípio geral de
proibição do retrocesso social a partir dessas conceções carecem de fundamento
jurídico plausível, esbarrando em duas limitações que decorrem do mesmo
princípio do Estado de direito da qual pretendem extrair tais teses.
A primeira delas reside na reserva do financeiramente
possível, considerando que os direitos têm custos e sua proteção implica a
diminuição de outros direitos.528 A segunda diz respeito ao próprio princípio
democrático. De fato, a cláusula democrática implica alternância de poder e tal
regime só faz sentido se aqueles que alternam o poder podem ter visões diferentes
sobre a alocação de recursos.529 O Estado contemporâneo prescinde cada vez mais
de decisões políticas fundamentais, consistindo a boa governança na arte de
distribuir os recursos de modo a otimizar o bem estar social.
Tanto o sistema jurídico português, quanto o sistema
jurídico brasileiro, não referendam tal teoria. No entanto, um dever de
progressividade em ambos os ordenamentos decorre expressa ou implicitamente
de previsões contidas em suas Constituições ou Tratados ou Convenções de que
sejam signatários, especialmente o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, que ambos vincula.
Não houvesse dito dever de progressividade, a revogação de
tais direitos poderia encontrar limites em outros princípios constitucionais, mas
não em um princípio de não retrocesso.
Tal dever de progressividade, porém, não pode ser
considerado uma regra que se imponha de modo tudo-ou-nada, a qualquer custo,
indicando, antes, um princípio que deverá ser cotejado com outros princípios

527 Por isso pondera Alexandrino que a aceitação dessa tese consagraria a impossibilidade de o
Direito se adaptar à realidade. Cf. ALEXANDRINO, José de Melo. A estruturação do sistema de
direitos, liberdades e garantias na constituição portuguesa: a construção dogmática. v. II. Almedina:
2006, p. 291.
528 Cf. HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New

York, London: W. W. Norron & Company, 1999, p. 113-8.


529 Cf. MEDEIROS, Rui. Direitos, liberdades e garantias e direitos sociais: entre a unidade e a

diversidade. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia. Jorge Miranda (Coord.).
Lisboa: FADUL, 2010, v.1, p. 679.
178

constitucionais, no caso de conflitos, especialmente o da proibição do excesso e o


da segurança jurídica.
Quanto à ideia de existência de direitos subjetivos a uma
reivindicação da ação estatal, ela é possível nos termos do ordenamento jurídico-
constitucional. Ocorre que em grande parte dos ordenamentos, como se dá no
Brasil e em Portugal, não há um meio constitucionalmente previsto para compelir
o legislador a fazê-lo. De qualquer modo, desde que respeitado o núcleo essencial
do direito social, qualquer ação estatal que dê alguma efetividade ao direito social
desconfigura a condição de inadimplência do legislador.
Por outro lado, há que se reconhecer que, uma vez cumprida
a imposição constitucional de legislar a fim de garantir a efetividade de um direito
social, a omissão inconstitucional que veio a ser suprida com essa lei não pode ser
restabelecida530. O fundamento, porém, não é a mutação constitucional, mas o facto
de que criar uma omissão é um ato inconstitucional, o que é vedado implicitamente
em qualquer ordenamento. Se a omissão inconstitucional não pode ser suprida
sem o exercício de um poder legislativo (pois, ainda que se admitam sentenças
aditivas, tais sentenças consistirão em manifesto ato legislativo editado pelo Poder
Judiciário, uma vez que dependem de ato criativo, o ato que cria a omissão
inconstitucional pode ser infirmado, porquanto a atividade criadora não constitui
mais um óbice, e todos os elementos caracterizadores da norma estão presentes.
Isso não quer dizer, por outro lado, que a concretização não
possa ser modificada. O que não pode ocorrer é uma regulamentação que elimine o
núcleo do direito concretizado.
A abertura de uma omissão constitucional, porém,
pressupõe que a referida omissão possa ser objeto de um controle de
constitucionalidade. 531
Ademais, a vedação de retrocesso imposta ao legislador não
decorre de todas as normas concretizadoras de direitos fundamentais, mas apenas
de normas que possam ser consideradas jusfundamentais.532

530 Cf. SILVA, Jorge Pereira da. O dever de legislar..., cit., p. 284.
531 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Justiça constitucional..., cit., p. 497 et seq.
532 Cf. MEDEIROS, Rui. Direitos, liberdades e garantias..., cit., p. 673-5. FREITAS, Tiago Fidalgo de. O

princípio da proibição do retrocesso..., cit., p. 830.


179

A jusfundamentalidade da norma, por sua vez, requer a


verificação de dois pressupostos: a existência de uma cláusula constitucional
aberta que abrigue a referida norma e a sua materialidade constitucional. 533
A materialidade constitucional deve ser entendida como uma
equivalência estrutural às demais normas de direitos fundamentais
constitucionalmente previstas, embora alguns entendam que a norma deva ser
considerada fundamental em outro plano, como que para a “consciência jurídica
coletiva”.534

533 Cf. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., cit., p. 409.
534 É o que entendeu o TC no acórdão 150/85.
180

PARTE 3 – O PAPEL DOS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DO ESTADO DE


DIREITO NA VINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL DO LEGISLADOR EM MATÉRIA
DE DIREITOS SOCIAIS

Democracia quer dizer accountability. E isso implica a presença de


uma doutrina que doutrine. E que produza "constrangimentos
epistemológicos", "para censurar" as decisões do Juciário que
sejam feitas por políticas e não por princípios. 535

535STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013, p. 122.
181

Em tempos prósperos, a superestrutura jurídica oferece


suporte às necessidades e anseios das infraestruturas econômica, política e social.
Por isso, nesses períodos a doutrina e os tribunais não raro desenvolvem teses bem
aceitas ou, ao menos, toleradas pelos legisladores e governos, e que vão ao encontro
dos anseios da sociedade e demais atores estatais. O que a Constituição apenas
sugere, torna-se ordem aos poderes constituídos. Surge, em decorrência, um 'ativismo
doutrinário' idealizador de uma aplicação do direito que releva a interpretação
jurídica clássica - referenciada no método científico e na lógica silogística - e passa a
defender, em diversos níveis, uma interpretação aberta, fortemente alicerçada em
princípios jurídicos, como representa em grande parte o que se convencionou chamar
de 'neoconstitucionalismo'. Esse ativismo doutrinário influencia a postura
jurisdicional, fornecendo sustentação teórica para a atuação mais criativa dos
tribunais - o ativismo judicial.
Deveras, sendo verdade, por um lado, que a maioria
representada pode se tornar refém da minoria representante, o inverso também é
verdadeiro. Todo mandatário político quer agradar seus eleitores e, não sendo de seu
patrimônio os recursos necessários a atender aos anseios da população, certamente o
primeiro impulso político é “distribuir direitos sociais” ao povo representado. Tal
desejo encontra óbice nos recursos financeiros, porquanto essa categoria de direitos
apresenta custos536, aos quais se contrapõem a possibilidade orçamentária para sua
implementação.
Se os recursos fossem infinitos, o legislador certamente não
teria limites. Como são, e sendo diversos os interesses em jogo, o governante faz
escolhas e as altera em ritmo dinâmico. Do mesmo modo, a sucessão no poder entre
grupos de diferentes matizes ideológicos leva a alteração de opções político-
legislativas anteriores, sobretudo quando elas estão intrinsecamente ligadas a
concepções antagônicas de intervenção estatal. É natural, por exemplo, que um
governo socialista tenda a criar direitos sociais, de modo contrário a um governo
anterior liberal. Nessa situação, o único limite para sua criação seja, talvez,
financeiro. Mas se o inverso se dá, tendo o governo liberal sucedido um governo
socialista, a retirada de direitos sociais integra seu programa ideológico, restando

536Cf. HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New
York, London: W. W. Norron & Company, 1999, p. 35 et. seq.
182

saber se, não retirando o governo liberal qualquer direito constitucionalmente


previsto, ele pode regredir na concretização dos direitos sociais constitucionais, ou
mesmo naqueles criados inteiramente pelo legislador anterior. 537
Algumas teses e conceitos vêm sendo articulados pelos juristas
na tentativa de promover essa reflexividade sistêmica do ordenamento jurídico, em
uma tentativa de estimular a autopoiese do direito com a criação de construções
para superar essa tensão “direito-metadireito”. Formulações teóricas como a reserva
do possível e o mínimo existencial, os direitos das minorias, o princípo da igualdade e
o princípio democrático - que se expressa de diversas formas nas tomadas de decisões
-, são articulados logicamente através de procedimentos lógico-racionais de
interpretação como a proteção da confiança e a proporcionalidade, que decorrem ou
atuam princípios estruturantes do Estado de direito.
Nesta parte, analisa-se, assim, como tais princípios podem
vincular o legislador em matéria de direitos sociais.

537 Cf. SILVA, Jorge Pereira da. O dever de legislar e proteção jurisdicional contra omissões
legislativas: contributo para uma teoria de inconstitucionalidade por omissão. Lisboa: Universidade
Católica Editora, 2003, p. 281.
183

3.1. PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Assim como a origem dos direitos fundamentais assenta-se


na preservação da liberdade do homem e tal como a própria ideia de dignidade da
pessoa humana centra-se na autodeterminação do indivíduo, o princípio da
igualdade é elemento inafastável na vinculação legislativa.538
Além do progresso e da paz, a garantia da igualdade entre os
indivíduos é o grande fim do Estado moderno e é, justamente no modo de se a
alcançar, que as diferentes correntes políticas apresentam suas maiores
divergências.
Por essa razão, se o princípio da igualdade é elemento
determinante na opção do regime político, as premissas políticas de sua
positivação devem estar presentes ao se aferir a vinculação do legislador ao
princípio da igualdade consagrado na Constituição do Estado.

3.1.1. Funções normativa e social do princípio

O princípio da igualdade apresenta uma função normativa e


uma função social.539
A função normativa do principio da igualdade assegura uma
função de controle e a função social pode ser utilizada como imposição
constitucional relativa, como já visto.
Em sua dimensão normativa, o princípio da igualdade
apresenta uma vertente positiva e outra negativa, que implicam, respetivamente,
uma vinculação positiva ou negativa do legislador. A vinculação negativa
corresponde a vedações de tratamento desigual arbitrário, como a concessão de
privilégios,540 e a vinculação positiva à efetivação da "igualdade real"541.

3.1.2. Igualdade formal e igualdade material (real)

Já virou praticamente um consenso entender ambas as


dimensões do princípio da igualdade. Diante de normas garantistas, a igualdade
formal, ou igualdade perante a lei, deve ser observada.

538 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito..., cit., p. 489.
539 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 385.
540 Cf. artigo 13.º, 2, da CRP.
541 Cf. artigo 9.º, "d", da CRP.
184

A igualdade formal vincula o legislador na medida em que o


proíbe de conferir tratamento distinto a cidadãos diversos. No entanto,
especialmente em se tratando do Estado social, uma dimensão intrínseca do
princípio ganha maior relevo - a igualdade material.
Indissociáveis no processo hermenêutico, igualdade formal e
igualdade material convivem dialeticamente, conflitando-se em cada aplicação
concreta em um regime de equilíbrio dinâmico donde resulta o critério decorrente
da contradição entre ambos.
Por exemplo, no caso da norma que prevê requisitos
diferenciados de aposentação para homens e mulheres, a busca por uma igualdade
ou "reparação" material infirma a igualdade formal. Em muitos países, justifica-se a
adoção de menor idade de aposentação para mulheres, ao menos por estes quatro
fundamentos: a) maternidade; b) discriminação no mercado trabalho; c) realização
de trabalhos domésticos; d) ingresso tardio no mercado de trabalho devido à
cultura machista de não trabalho da mulher.
Com o desenvolvimento social, mormente de aspetos
culturais ligados à superação da discriminação da mulher, bem como a
equiparação salarial e de oportunidades entre os sexos no mercado de trabalho, a
distinção operada entre homens e mulheres pelo legislador passa a ser
questionada. Na medida em que, a par desses fatores, muitas mulheres optam por
não ter filhos, deixa de subsistir uma desigualdade material, o que acaba por tornar
inconstitucional a violação do princípio da igualdade formal pelo legislador.
Em que pese às inúmeras obras e artigos que trabalham o
tema, vale citar a precisa colocação de Canotilho, que bem sintetiza a distinção
entre o que chama de igualdade perante a lei e igualdade através da lei: o princípio
da igualdade não pode se resumir a um mecanismo de aplicação igual do direito,
mas deve aplicar igual o direito igual. Deve, assim, o legislador aplicar direito igual,
quando o direito for igual. Inexistindo direito igual, a igualdade perante a lei deve
ser convertida em direito à igualdade através da lei, atuando esta para igualar os
direitos.542
Na mesma linha, já julgou o STF:

542 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 381.


185

O princípio da isonomia, que se reveste de auto-


aplicabilidade, não é - enquanto postulado fundamental de
nossa ordem político-jurídica — suscetível de
regulamentação ou de complementação normativa. Esse
princípio — cuja observância vincula, incondicionalmente,
todas as manifestações do Poder Público — deve ser
considerado, em sua precípua função de obstar
discriminações e de extinguir privilégios (RDA 55/114), sob
duplo aspeto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade
perante a lei. A igualdade na lei — que opera numa fase de
generalidade puramente abstrata — constitui exigência
destinada ao legislador que, no processo de sua formação,
nela não poderá incluir fatores de discriminação,
responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade
perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz
imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na
aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a
critérios que ensejem tratamento seletivo ou
discriminatório. A eventual inobservância desse postulado
pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e
produzido a eiva de inconstitucionalidade.543

3.1.3. Vinculação negativa do legislador pelo princípio da igualdade

O princípio da igualdade vincula o legislador negativa e


positivamente. Negativamente, pela vedação de editar leis que criem
desigualdades formais ou materiais. Assim, se a Constituição apenas se limita a
declarar o princípio da igualdade, tem-se apenas uma vedação do arbítrio por
parte do legislador.544
É o que acontece com o artigo 13 da CRP e o artigo 5º da
CRFB. Tais dispositivos não comportariam uma imposição legislativa, mas um
mecanismo de controle dos atos legislativos.
Casos há, porém, em que o legislador edita uma norma
promovendo uma igualdade formal ou material. Nesse caso, a vinculação do
legislador assumirá alcances diversos se a norma decorrer de imposição
constitucional ou não. De fato, uma norma editada em virtude de imposição
constitucional (como uma eventual política afirmativa de cotas para alunos pobres
nas universidades públicas) não importaria em uma violação ao princípio da
igualdade.545 Ele exerceria apenas uma função de controle e seria acionado
somente para aferir a constitucionalidade do ato legislativo. Outros entendem que,

543 STF, MI 58, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19/04/91.


544 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 384.
545 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 385 et seq.
186

nesse caso, o princípio veicula uma imposição constitucional relativa e, desse


modo, pode ensejar uma ação dirigida contra a omissão.546
Concordamos nesse aspeto com Canotilho, no sentido de
relativização da ideia da função social do princípio da igualdade como
conformadora do legislador.547 Com efeito, cabe ao legislador a decisão política de
adotar os meios que entenda adequados para promoção da igualdade real. Isso não
obsta, porém, a aplicação do princípio da constitucionalidade para avaliar os
fatores de discrímen. Mas como precisar, no caso concreto, quando uma norma
viola o princípio da igualdade? Celso Antônio Bandeira de Mello elenca as
seguintes circunstâncias que indicam sua violação:
I – A norma singulariza atual e definitivamente um destinatário
determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ou
uma pessoa futura indeterminada.
II – A norma adota como critério discriminador, para fins de
diferenciação de regimes, elemento não residente nos fatos,
situações ou pessoas por tal modo desequiparadas. É o que ocorre
quando pretende tomar o fator tempo – que não descansa no
objeto – como critério diferencial.
III – A norma atribui tratamentos jurídicos diferentes em atenção
ao fator de discrímen adotado que, entretanto, não guarda relação
de pertinência lógica com a disparidade de regimes outorgados.
IV – A norma supõe relação de pertinência lógica existente em
abstrato, mas o discrímen estabelecido conduz a efeitos
contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses
protegidos constitucionalmente.
V – A interpretação da norma extrai dela distinções, discrímens,
desequiparações que não foram professadamente assumidos por
ela de modo claro, ainda que por via implícita.548

3.1.4. Vinculação positiva do legislador ao princípio da igualdade

Quando se está diante de uma imposição legiferante,


encontra-se o legislador positivamente vinculado à norma. Isso pode se dar, no

546 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 385 et seq.
547 Segundo o autor, os fundamentos dessa relativização são os seguintes: “1 — A igualdade (ou
desigualdade) jurídico-constitucional refere-se a relações jurídicas entre os cidadãos e os poderes
públicos, actuando estes soberanamente. 2 — A sua função é a de reconhecer a determinadas
pessoas uma pretensão autónoma (auto-executiva) judicialmente accionável contra os poderes
públicos. 3 — O princípio da igualdade social tem como função reconhecer a certas pessoas, sob
pressupostos ainda a determinar, uma pretensão contra os poderes públicos, no sentido de estes
eliminarem as desigualdades fácticas (sociais,económicas). 4 — Os «pressupostos a determinar» só
podem ser preenchidos através de decisões políticas — donde resulta que o princípio da igualdade
não pode estender-se à igualdade social, pois não apresenta conteúdo nem processo para, a partir
dele, se derivarem autonomamente pretensões.”CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição
dirigente..., cit., p. 383.
548 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São

Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 18.


187

caso do princípio da igualdade, de norma constitucional que imponha o dever de


promover uma igualdade material, como a disposição que prevê a busca pelo fim
das desigualdades sociais.
Com efeito, no Estado social democrático, a doutrina
jusnaturalista tem cada vez mais aproximado a ideia de igualdade na aplicação do
direito, da ideia de uma função social do princípio da igualdade. Essa igualdade de
oportunidades, porém, que os socialistas anseiam e que muitos juristas tentam
alcançar mediante a interpretação das normas, não é - e tampouco pode ser - o fim
do direito, que não tem o condão de determinar a infraestrutura social. Isso não
quer dizer que o princípio da igualdade deva sempre comportar uma interpretação
restritiva, de conteúdo puramente formal. A Constituição pode impor ao legislador
a meta549 de corrigir desigualdades fácticas com o emprego de ações afirmativas
ou edição de leis que considerem sua existência e adotem medidas
compensatórias.550
Se a violação ao princípio da igualdade se deu por norma
editada em virtude de imposição constitucional, o princípio da igualdade não opera
uma imposição direta. Ele exerce apenas uma função de controle e será acionado
somente para aferir a constitucionalidade do ato legislativo. Outros entendem que,
nesse caso, o princípio veicula uma imposição constitucional relativa e, desse
modo, pode ensejar uma ação dirigida contra a omissão. No primeiro caso,
portanto, a ação pleitearia a anulação da lei. No segundo caso, o objeto da ação
seria a supressão da omissão inconstitucional.551
Diante desse problema, três soluções podem ser dadas: a) a
lei que beneficia apenas um grupo de indivíduos deve ser anulada por violação ao
princípio da igualdade; b) mediante uma interpretação conforme à Constituição,
pode-se declarar a nulidade parcial da lei; c) deve ser suprida a omissão quanto
aos demais destinatários.
O princípio da igualdade, no entanto, cumprindo a função
social, não está infenso ao controle de constitucionalidade com base na
proporcionalidade, não se admitindo uma compensação excessiva.552 No caso da

549 Prefere-se o emprego do termo meta, já que se trataria de uma obrigação de meios, não de fins.
550 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 384.
551 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 204 et seq.
552 Cf. acórdão 253/2012 do TC.
188

jurisprudência da crise, o pretendido estabelecimento de uma igualdade entre os


funcionários públicos e os trabalhadores privados, mediante cortes salariais dos
primeiros, sofreu tratamento diverso pelo TC. No acórdão 396/2011, o tribunal
apreciou a constitucionalidade da lei orçamental Lei n.º 55-A/2010, de 31 de
dezembro, que previu o corte de até 10% dos salários dos funcionários públicos,
reconhecendo a existência de desigualdade material entre os trabalhadores do
regime público e do regime privado, a justificar, por aplicação dos critérios da
proporcionalidade e da proteção da confiança a medida. Dois anos mais tarde, a
manutenção desse regime de distinções não passou pelo crivo de
proporcionalidade estabelecido pelo TC.553

3.1.5. A inconstitucionalidade parcial da lei por violação ao princípio da


igualdade e seus efeitos

O legislador pode violar o princípio da igualdade de duas


formas, conforme esteja negativa ou positivamente a ele vinculado. Pela primeira
hipótese, o legislador não pode, e.g., tratar homens e mulheres de maneira
desigual, sem uma justificativa, a qual pode se pautar em outros princípios,
inclusive o próprio princípio da igualdade, em sua dimensão material. Pela
segunda, o legislador deve promover a igualdade material.
Sucede que as normas violadoras do princípio da igualdade
podem ser corrigidas de duas formas: pela declaração de sua nulidade, por
violação ao mesmo princípio constitucional, ou pela sua omissão, gerando o que
Canotilho chama de "situação inconstitucional imperfeita".554
Esse é o caso típico de normas que garantem benefícios
sociais a um grupo em detrimento de outros. O autor dá o exemplo da legislação
que previa o subsídio de desemprego, o qual, por não contemplar aqueles que
nunca tiveram emprego, os empregados temporários e os que recebiam menos de
um salário mínimo, não seria universal e, portanto, não violaria o princípio da
igualdade.555
Muitos outros exemplos podem ser citados, como a norma
que prevê cotas raciais para ingresso no ensino público, e não inclui indígenas, e.g.,

553 Cf. acórdãos 187/2013 e 413/2014.


554 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 204, nt. 68.
555 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente..., cit., p. 204
189

ou a norma que concede isenção de impostos para quem possui o vírus HIV, pelo
alto custo do tratamento, mas não contempla outras patologias que ensejam
tratamentos de igual valor.
190

3.2. A SEGURANÇA JURÍDICA

A segurança, não apenas enquanto mera proteção da


integridade física, mas também como estabilidade da ordem jurídica,556
consistindo no elemento que talvez mais tenha justificado a edificação do Estado
moderno, é elemento inquestionavelmente ínsito ao Estado de direito.
Nessa qualidade, a segurança jurídica assoma não apenas
como princípio implícito, mas verdadeiro princípio estruturante, apto a
condicionar todos os poderes constituídos, inclusive o poder constituído-
constituinte.
Como escreve Canotilho, o princípio do Estado de direito,
densificado pela segurança jurídica e pela confiança jurídica,
reforça a coexistência de dois elementos: um objetivo da
ordem jurídica, relacionada à sua durabilidade, paz jurídico-
social; outro garantístico e subjetivo, de proteção à
confiança de permanência das situações jurídicas.557

Kelsen, embora vendo um pleonasmo na expressão Estado


de direito, dada sua conceção monista entre Direito e Estado558, reconhece o
emprego da expressão composta para “designar um tipo especial de Estado, a
saber, aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica”.559
A segurança jurídica consistiria, no entanto, em um
“princípio-pressuposto” do próprio Direito, destinado a garantir a “estabilidade,
certeza e coerência normativas, bem como a calculabilidade dos comportamentos
das instituições e dos cidadãos”.560

556 Como escreve Paulo Mota Pinto, “a confiança está na base da própria ‘possibilidade de vigência
da ordem constitucional’, uma vez que é a manutenção da confiança no ordenamento, e respeito às
garantias e regras que prevê, que permite a continuidade da vigência da ordem constitucional”.
PINTO, Paulo Mota. A proteção da confiança na jurisprudência da crise. In: COUTINHO, Luís Pereira;
RIBEIRO, Gonçalo de Almeida (orgs.). O tribunal constitucional e a crise: ensaios críticos. Coimbra:
Almedina, 2014, p. 137.
557 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional..., cit., p. 259.
558 Para Kelsen “se o Estado é reconhecido como uma ordem jurídica, se todo Estado é um Estado de

direito, esta expressão representa um pleonasmo”. Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito…cit., p.
218.
559 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito…cit., p. 218.
560 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Algumas reflexões sobre o valor jurídico de normas parasitárias

presentes em leis reforçadas pelo procedimento. Sep. de: Nos 25 anos da Constituição da República
Portuguesa de 1976. Lisboa: AAFDL, 2001, p. 14.
191

No mesmo passo, também o Supremo Tribunal Federal


brasileiro e o Tribunal Constitucional de Portugal reconhecem que o princípio da
segurança jurídica é elemento conceitual do Estado de direito.561
Se é possível dizer que o conceito de Estado de direito
permite inferir logicamente a noção de segurança jurídica, seu conteúdo e
dimensões encontram-se indeterminados, porém são determináveis por cada
ordem jurídica, segundo as necessidades da sociedade subjacente.
Algumas dimensões são propostas pela doutrina,
destacando-se quatro principais: o conhecimento (do direito), a confiança ou
previsibilidade, a estabilidade e a coerência. 562
Jorge Miranda ainda acrescenta a compreensibilidade
(clareza), a razoabilidade (como não arbitrariedade) e a determinabilidade
(densificação do conteúdo normativo).563
Carlos Blanco destaca também o

561 Segundo o STF: “O Estado de direito é um estado de segurança jurídica. E a segurança exige que
os cidadãos saibam com o que podem contar, sobretudo nas suas relações com os poderes públicos.
Saber com o que se pode contar em relação aos atos da função legislativa do Estado é coisa incerta
ou vaga, precisamente porque o que é conatural a essa função é a possibilidade, que detém o
legislador, de rever ou alterar, de acordo com as diferentes exigências históricas, opções outrora
tomadas. Contudo, a possibilidade de alteração dessas opções, se é irrestrita (uma vez cumpridas as
demais normas constitucionais que sejam aplicáveis) quando as novas soluções legislativas são
pensadas para valer apenas para o futuro, não pode deixar de ter limites sempre que o legislador
decide que os efeitos das suas escolhas hão de ter, por alguma forma, certa repercussão sobre o
passado”. Cf. STF. Tribunal Pleno. MS 24448/DF. Rel. Min. Carlos Britto. J. 27/09/2007. Já o
Tribunal Constitucional de Portugal limita-se a seguir a jurisprudência do Tribunal Constitucional
Federal Alemão: “Relevante é, porém, que aquele Tribunal tem entendido que também na chamada
«retroactividade inautêntica» os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, que
integram o princípio do Estado de direito, impõem limites que o legislador tem de respeitar,
considerando-se ofendida a protecção da confiança, sempre que a lei desvaloriza a posição do
indivíduo de modo com que este não deva contar, que não tinha, portanto, que considerar ao dispor
da sua vida.” Cf. Processo n.º 309/90. Acórdão 287, de 30 de outubro de 1990.
562 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional…cit., p. 482; FREITAS, Tiago Fidalgo

de. O princípio da proibição do retrocesso social. FREITAS, Tiago Fidalgo de. O princípio da proibição
de retrocesso social. In: Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano: no
centenário do seu nascimento / coordenação Jorge Miranda. v. 2. Lisboa : FADUL, 2006, p. 820.
AVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito
tributário. São Paulo, Malheiros, 2011, p. 122 et seq. MIRANDA, Jorge. Manual de direito
constitucional. Direitos Fundamentais. t. IV. 5. ed.. Coimbra: Coimbra Editora, 2012. p. 311-2.
ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos fundamentais..., cit., p. 79; ROCHA JÚNIOR, Luís Clóvis
Machado. A decisão sobre os efeitos do ato inconstitucional. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris,
2014, p. 146; MEDAUAR, Odete. Segurança jurídica e confiança legítima. In: Fundamentos do Estado
de direito. Estudos em homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva. Humberto Ávila (org). São
Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 115; STEIN, Torsten. A segurança jurídica na ordem legal da
república federal da alemanha. In: Cadernos Adenauer, n. 3 (Acesso à Justiça e. cidadania), 2000, p.
117; NOVAIS, Jorge Reis. Princípios constitucionais estruturantes da república portuguesa. Coimbra:
Coimbra Editora, 2004, p. 261.
563 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional…, cit., v. IV, p. 311-2.
192

imperativo de garantia da certeza da ordem jurídica, nas


suas dimensões da estabilidade, coerência, e igualdade,
permitindo aos cidadãos organizarem a sua vida individual
e social no respeito pela previsibilidade e calculabilidade
normativa de expectativas de comportamento e das
consequências derivadas das respetivas ações.564

Humberto Ávila acresce ainda a confiabilidade no passado e


calculabilidade das mudanças do futuro.565
O primeiro conteúdo, do conhecimento do direito, situa-se
numa dimensão estática e refere-se à certeza de vigência das normas e de um
mínimo conhecimento delas. O conhecimento do direito requer normas claras e
com um conteúdo determinável, bem como uma coerência e uma consistência do
ordenamento.566
Já a confiança ou previsibilidade, que evocam também a
estabilidade, situa-se numa dimensão dinâmica e volta-se a ação do direito no
tempo. Exige-se, assim, intangibilidade de situações passadas, permanência do
ordenamento jurídico e irretroatividade das normas presentes.567
A segurança jurídica se projeta de diversas formas e atinge
toda a atuação estatal: no exercício da função legislativa e da função
administrativa, e.g., sob a forma de irretroatividade; no exercício da função
jurisdicional, sob a forma de preservação da coisa julgada e vinculação a
precedentes, dentre outros.568
No direito processual, a segurança jurídica assume a forma
da prescritibilidade. No direito substancial, atua por meio da decadência.
A segurança jurídica apresentaria, também, uma dimensão
objetiva e uma dimensão subjetiva. A dimensão objetiva refletiria a busca da
estabilidade do direito. Já a dimensão subjetiva refletiria as expectativas
individuais quanto a essa estabilidade.569

564 MORAIS, Carlos Blanco de. Segurança jurídica e justiça constitucional…, cit., p. 621.
565 AVILA, Humberto. Segurança jurídica…, cit., p. 124-5.
566 AVILA, Humberto. Segurança jurídica…, cit., p. 320.
567 AVILA, Humberto. Segurança jurídica…, cit., p. 339 et seq.
568 Humberto Ávila aborda diversos exemplos de aplicação concreta da segurança jurídica subjetiva

no exercício das funções legislativa, jurisdicional e administrativa. Cf. AVILA, Humberto. Segurança
jurídica…cit., p. 342 et seq.
569 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional..., cit., p. 482.
193

Vista, assim, sob a ótica subjetiva, a segurança jurídica


decorreria da ideia, ínsita ao contrato social constitucional570, de que a relação de
confiança depositada no aparato governamental mantém um caráter de ultra-
atividade constituinte.
Especialmente no que toca a vinculação do legislador, o
princípio da segurança jurídica assume a forma de outro princípio: o da
irretroatividade da lei.

3.2.1. O núcleo da segurança jurídica - a irretroatividade da lei

O princípio da segurança jurídica envolve não apenas a


estabilidade, mas a previsibilidade. Sem uma garantia mínima quanto ao que pode
ou não ser feito, resta comprometida qualquer tentativa de planejamento, o que
compromete o próprio progresso do indivíduo e, em última instância, de qualquer
sociedade.
Para tanto, ao se verificar um fato, o indivíduo por ele
atingido deve estar ciente de que ele é ou não jurídico, e que consequências dele
podem advir. Um facto considerado relevante para o Direito, porque está apto a
gerar, modificar ou a extinguir direitos ou deveres patrimoniais ou de conduta,
consiste na hipótese de uma norma abstrata ou o próprio objeto de uma norma
concreta.
Os fatos geram apenas efeitos realísticos futuros e, quando
involuntários, são algumas vezes imprevisíveis. As normas jurídicas, por sua vez,
podem prever fatos passados, presentes e futuros, o que pode contribuir para
atenuar ou a acentuar a imprevisibilidade de seus efeitos. Uma norma jurídica com
destinatários indetermináveis - portanto, abstrata - preverá um facto (hipótese)

570Emprega-se a expressão contrato social constitucional, como uma fusão das ideias de contrato
social, conhecida e empregada pelos contratualistas, com a ideia de poder constituinte. Quer-se
referir não apenas à vontade constituinte, formalmente manifestada através do processo
constituinte, mas também à conceção contratualista de sociedade, que justificaria, para um cidadão
com uma consciência política média, sua convivência em sociedade e as regras do jogo que levam à
sua conformação constitucional. Isso, no entanto, não quer dizer que se concorde com a ideia de
que a Constituição é um mero contrato de natureza política. Pelo contrário, uma análise dialética do
fenômeno constitucional demonstra que se trata mais de uma imposição de normas por grupos
dominantes na sociedade. Nesse sentido, Carlos Blanco de Morais entende a imposição da vontade
dos “mais” sobre os “menos”. Esse “mais”, no entanto, não representa necessariamente uma maioria
quantitativa, mas uma maioria qualitativa, que consegue, mediante o emprego do poder político ou
econômico, atingir tal maioria numérica para fazer prevalecer sua vontade, pelo uso de recursos
ideológicos. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional..., cit., p. 423.
194

que, se ocorrer, constituirá um facto jurídico, prevendo a mesma norma, com


maior ou menor precisão, seus efeitos para o Direito.
Como a hipótese de normas jurídicas abstratas é um facto
futuro, não há preocupação com a violação da segurança jurídica por normas
puramente abstratas. Ainda que à hipótese normativa subsuma-se um facto
ocorrido anteriormente à sua vigência, a exigência de previsibilidade impõe que
aquele facto não seja considerado ainda jurídico quando de sua produção, o que
gerou o brocardo latino tempus regit actum. Por outro lado, ainda que nova norma
venha a conferir novo tratamento ao mesmo tipo de fato, não há quebra dessa
previsibilidade para quem tenha sido atingido pelos fatos passados, razão pela
qual tais fatos continuam ainda a ser alcançados pela norma anterior. É o que se
chama ultratividade da norma.
Por vezes, porém, a hipótese normativa alcança
expressamente fatos pretéritos, dada a referencialidade característica da
linguagem que suporta o texto normativo. Nessa situação, contudo, esses fatos
podem gerar efeitos jurídicos imprevisíveis para o destinatário da norma,
rompendo com o ideal de previsibilidade da ordem jurídica. Por isso, a
retroatividade é excepcional e geralmente negada total ou parcialmente nos
ordenamentos jurídicos571.

3.2.1.1. Os tipos de irretroatividade

Há tipos diferentes de fatos jurídicos quanto à relação


tempo-exaurimento. No primeiro grupo estão aqueles que se exaurem sob a égide
da lei. Além desses, existem os fatos jurídicos cujos efeitos permanecem no tempo
e podem ser alcançados por uma nova lei que venha a revogar a lei pretérita. São
os chamados fatos pendentes. Tais fatos já eram considerados pelos romanos, como
demonstra Limongi França. Na Autêntica 90 (C4, 20, 18), previa-se que a lei antiga
devia ser aplicada aos facta pendentia.572

571 A esse respeito, as Constituições, em sua maioria, adotam três técnicas de retroatividade: a
previsão de irretroatividade plena, como a Constituição do México (art. 14); a previsão de
retroatividade como regra a contrario sensu, em virtude de previsão específica de irretroatividade
de grupos de leis, como de leis penais, fiscais, ou garantidoras de direitos fundamentais (e.g.
Argentina – art. 18, Angola - art. 57, n.º 2 e art. 102, n.º 2), ou a previsão de irretroatividade ampla,
com exceções expressas, como se dá no caso da Constituição da Bolívia (art. 123), dentre outras.
572 Cf. FRANÇA, Rubens Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5. ed. rev. atual. do

Direito intertemporal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 22.


195

De acordo com o alcance dos fatos pendentes, fatos futuros ou


fatos pretéritos, classifica-se a retroatividade da lei em retroatividade plena ou
autêntica (quando a lei alcança os fatos pretéritos e seus efeitos) ou em
retroatividade imprópria ou inautêntica (quando a lei alcança fatos pendentes).
Na Espanha, e.g., e em Portugal, a Constituição prevê apenas
a irretroatividade em casos específicos, como nas hipóteses de restrição de direitos
individuais e em matéria penal.573 A contrario sensu, portanto, a retroatividade de
leis civis é possível. Não obstante, o Tribunal Constitucional da Espanha reconhece
a necessidade de se protegerem também os fatos pendentes, por aplicação do
princípio da segurança jurídica574 e da teoria dos “níveis de retroatividade”.
Segundo essa teoria, uma lei nova implica uma retroatividade máxima, quando
atinge direitos adquiridos e consumados; uma retroatividade mínima, quando
atinge apenas prestações futuras de negócios anteriores; e uma retroatividade
média, quando afeta direitos adquiridos, mas não consumados. Desses níveis, a
jurisprudência espanhola reconhece apenas a irretroatividade máxima.575
Na Itália, a despeito de sua Constituição não proteger os
direitos adquiridos, mas apenas prever a irretroatividade penal, a irretroatividade é
prevista no Código Civil. Não obstante, a jurisprudência italiana entende que
somente os fatos consumados são protegidos pelo princípio da irretroatividade
contemplado no artigo 11 do Código Civil. É a aplicação do brocardo tempus regit
actum, a resguardar, portanto, apenas os direitos adquiridos.576
No Brasil, os facta praeterita são protegidos por duplo
reforço: pelo direito adquirido e pelo ato jurídico perfeito. Já os facta pendentia não
gozam da mesma proteção, discutindo a doutrina sobre sua proteção contra
irretroatividade.

3.2.1.2. O problema da retroatividade inautêntica e dos direitos em formação

A retroatividade plena ou autêntica é a circunstância de a


norma futura atingir direitos já constituídos sob a égide da legislação antiga. É o
exemplo de quem implementou os requisitos previstos em lei para aposentação ou

573 Cf. arts. 9.3 e 25.1 da Constituição da Espanha.


574 IZQUIERDO, Beatriz Verdera. La irretroactividad: problemática general. Madrid: Dykinson, 2006,
p. 25.
575 IZQUIERDO, Beatriz Verdera. La irretroactividad..., cit., p. 92.
576 Cf. TARCHI, Rolando. Le leggi di sanatoria nella…, cit., p. 271-275.
196

reforma. Nesse caso, pouco importa se o titular desse direito o exerceu, pois tal
direito já integra seu patrimônio (jurídico).
No caso da retrospetividade ou retroatividade imprópria ou
inautêntica,577 a norma produzida gera efeitos apenas futuros, mas alcança efeitos
futuros de fatos jurídicos constituídos no passado sob a regência de lei anterior. É
o caso das pensões. O pensionista exerceu seu direito à concessão do benefício, o
que não pode ser desfeito por uma norma retroativa. A aposentação ou pensão,
porém, gera um direito a uma prestação de trato sucessivo, que se prolonga
indefinidamente. Uma lei que modifica o cálculo da pensão, ainda que tenha apenas
eficácia ex nunc, alcançará efeitos futuros (percepção da pensão) de fatos
preteritamente constituídos.578
Há, também, a hipótese dos direitos em formação, que são
aqueles ainda não adquiridos, mas que se encontram em fase de aquisição
temporal. É o caso do direito à aposentação. Se a legislação prevê que o funcionário
público poderá se aposentar após 35 anos de serviço, aos 34 anos este mesmo
funcionário terá um direito à aposentação em formação. No Brasil, tal fenômeno
ficou conhecido como expectativa de direito. Cuida-se, na verdade, de modalidade
de direito aquisitivo mediante condição suspensiva.
Tais casos não são alcançados pelo conceito de
irretroatividade e, portanto, a norma do artigo 18.º, n.º 3, da CRP, não se lhes
aplica. Essas situações, porém, podem violar o princípio da segurança jurídica,
como será adiante analisado.579

3.2.2. O direito adquirido

Direito adquirido é aquele que já se incorporou ao


patrimônio do seu titular e já pode ser exercido, por terem sido atendidas todas as
condições aquisitivas. Segundo o artigo 6º, §2º, da Lei de Introdução às Normas no
Direito Brasileiro, o direito adquirido é aquele “que o seu titular, ou alguém por ele,

577 O Tribunal Constitucional fala ainda em retroatividade mínima ou média, para se referir à
retrospectividade. Cf. acórdão 585/14.
578 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional: teoria da constituição…cit., p. 484;

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição…cit., p. 262;


NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constituição. Coimbra, 2. ed., 2003, p. 147.
579 Embora o Tribunal Constitucional tenha sinalizado a possibilidade de retroatividade autêntica,

se justificada e proporcional, no acórdão 187/2013.


197

possa exercer, como aqueles cujo comêço do exercício tenha têrmo pré-fixo, ou
condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”. 580
Já o artigo 66.º da Lei de Bases de Segurança Social de
Portugal define os direitos adquiridos como sendo “os que já se encontram
reconhecidos ou possam sê-lo por se encontrarem reunidos todos os requisitos
legais relativos ao seu conhecimento”.
A definição legal do instituto no Brasil apresenta um
componente diverso do correspondente português: a previsão de inalterabilidade
arbitrária da condição pré-estabelecida.
Isso quer dizer que o direito adquirido alcançaria, no direito
brasileiro, a condição de sua formação, ou seja, protegeria o direito em formação.
O direito adquirido protege os fatos consumados (facta
praeterita) e pendentes (facta pedentia) de conclusão diante de uma modificação
da ordem jurídica.
Grande parte dos direitos, no entanto, são constituídos,
contratualmente ou por lei, mediante condição suspensiva, ou seja, a aquisição do
direito depende do cumprimento de alguma obrigação por parte de seu titular.
Dentre estes, interessa aqueles cuja aquisição decorre do transcurso do tempo,
como se dá no caso das aposentações.
O direito a uma aposentação exige, dentre outros, o requisito
temporal puro (implemento da idade) ou o requisito temporal misto (implemento
de tempo de serviço ou de recolhimento de contribuições previdenciárias).
Durante o transcurso do prazo temporal, o direito à
aposentação ainda não está formado. Há, por essa razão, uma expectativa de direito
ou um direito em formação. Resta, portanto, saber duas coisas: se há um direito
adquirido àquelas condições predeterminadas e, em caso negativo, se mesmo a
mera expectativa deve ser protegida.

3.2.3. Direitos em formação: expectativa de direito ou direito adquirido?

580Cf. RAMOS, Elival da Silva. A proteção dos direitos adquiridos no direito constitucional brasileiro.
São Paulo: Saraiva, 2003, p. 182. BARROS, Sérgio Resende de. A reforma da previdência e os
direitos adquiridos dos servidores. Texto básico da palestra “A reforma da Previdência Social no
Congresso Nacional”, no dia 2 de junho de 2003, no 1º Ciclo de Seminários, realizado no Auditório
Franco Montoro, em São Paulo, SP., sob o patrocínio da Assembleia Legislativa do Estado de São
Paulo. Disponível em: <http://www.srbarros.com.br/pt/a-reforma-da-previdencia-e-os-direitos-
adquiridos-dos-servidores.cont>. Acesso em: 15 mai. 2017.
198

A distinção entre expectativa de direito e direito adquirido é


tormentosa e, desde Savigny, os autores tentam, sem sucesso, estabelecer um
recorte preciso sobre o tema na teoria geral do direito.581
Isso, porque a de expectativa de direito é o mesmo que
direito sob condição suspensiva ou resolutiva.
Em Portugal a distinção não alcança maior discussão. O TC
distingue o direito adquirido dos direitos em formação, mas não adentra o mérito
do direito adquirido ao regime jurídico (à manutenção das condições de aquisição do
direito).582 A distinção efetuada pelo TC é quantitativa, e não qualitativa, ou seja, os
direitos em formação gozariam de uma confiança menor que os direitos
adquiridos, mas a afetação de ambos pode ser controlada mediante a aplicação dos
critérios da proteção da confiança.
No direito brasileiro, a distinção tem início com a própria
definição legal de direito adquirido, trazida pelo artigo 6º, §2º, da Lei de
Introdução às Normas no Direito Brasileiro:
o direito adquirido é aquele “que o seu titular, ou alguém por
ele, possa exercer, como aqueles cujo comêço do exercício
tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida
inalterável, a arbítrio de outrem”.

O referido dispositivo faz alusão à condição pré-estabelecida


inalterável a arbítrio de outrem. Muito se discutiu acerca do alargamento do
conceito de direito adquirido levado a cabo por esse preceito, se alcançaria as
hipóteses de expectativa de direito ou ao direito adquirido a regime jurídico583.
Na jurisprudência constitucional brasileira, a discussão
acerca dos direitos previdenciários em formação ficou mais conhecida sob o aspeto
de direito adquirido a regime jurídico.
Para o STF, esse direito inexiste. Tal posicionamento pode
ser resumido na declaração de voto do Ministro Gilmar Mendes, no julgamento da
ADI 3128/DF. Com base em Savigny, Mendes distingue leis de aquisição de direitos
e leis relativas a existência de direitos, concluindo que a proteção do direito
adquirido atinge a aquisição de direitos com base nas relações decorrentes do

581 Cf. SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito adquirido e expectativa de direito. Belo Horizonte: Del
Rey, 2005, p. 49.
582 TC. Processo n.º 1260/13. Acórdão 862/2013.
583 Dentre eles Vicente Ráo, para quem o preceito estabeleceria um direito condicional adquirido.

RÁO, Vicente. Ato jurídico. São Paulo: Max Limonad, 1961, p. 290.
199

instituto e não em face do próprio instituto. Assim, ninguém poderia invocar o


direito adquirido à escravidão se o próprio instituto foi abolido. Ainda em seu voto,
esclarece que, segundo Savigny, a solução para esse problema seria um
“equacionamento entre o poder político e a economia política, mediante a
indenização daqueles prejudicados pela supressão do direito adquirido”.584
Nesse ponto, a doutrina igualmente se divide. Há autores
que defendem a tese do direito adquirido a regime jurídico, ao fundamento de que
a natureza sinalagmática da relação previdenciária se enquadraria num regime de
direito adquirido, não de expectativa de direito.585
Uma segunda corrente entende que se trata de direito
adquirido parcial ou proporcional, sustentando uma proteção parcial dos direitos
em formação. Para essa corrente, se a lei nova apenas alterar o prazo previsto para
aquisição do direito, como no caso dos direitos de aposentação, em que um dos
requisitos é o implemento de tempo de vida, de serviço, ou de recolhimento de
contribuições previdenciárias, o tempo já prestado teria sido adquirido. Assim, o
novo tempo deveria ser aplicado apenas proporcionalmente àqueles que já se
encontravam implementando tais requisitos de aquisição do direito.586

584 STF. ADI 3128/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Cesar Peluso. J. 18/08/2004.
585 Cf. MELO, José Tarcízio de Almeida. Direito constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey,
1996, p. 221.
586 Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Direito adquirido proporcional. Revista Trimestral de

Direito Público, São Paulo, n.º 36, 2001, p. 18-19. No mesmo sentido, posiciona-se Sérgio Resende de
Barros: “Nesse instante, há fatos pretéritos (já passaram), pendentes (estão passando) e futuros
(ainda vão passar). Pelo princípio da irretroatividade, a reforma não atinge em nada os fatos
pretéritos, atinge em tudo os fatos futuros, atinge em parte os fatos pendentes. Mas, destes, que
parte é atingida? Há direitos que dependem só de serem exercitados (iura pendentia exercitatione)
e há os que pendem de aquisição (iura pendentia acquisitione). Na primeira categoria, os direitos
dependem apenas de execução ou exercício pelo titular que os adquiriu. O direito está adquirido,
pois estão atendidas todas as condições aquisitivas. Apenas não foi exercitado. Mas sua execução e
seu exercício estão compreendidos na sua aquisição, sob pena de ser adquirida uma coisa e
recebida outra, o que seria fraude do próprio direito. Daí a inconstitucionalidade da tributação dos
inativos: o direito deve ser exercitado nas mesmas condições em que foi adquirido. Não pode sofrer
abatimento sem ser ferido. Já na segunda categoria, porque falta cumprir alguma condição
aquisitiva, a reforma atinge a causa de aquisição do direito e a modifica no quanto a atingir, para
melhor ou pior. Mas, na proporção em que essa causa já estiver realizada, tem de ser respeitada: o
direito estará adquirido, em parte. Daí, serem indispensáveis à reforma as normas de transição
(apelidadas “pedágio”, porque permitem passar do que já foi adquirido ao que ainda será
adquirido). Cf. BARROS, Sérgio Resende de. A reforma da previdência e os direitos adquiridos dos
servidores. Texto básico da palestra “A reforma da Previdência Social no Congresso Nacional”, no
dia 2 de junho de 2003, no 1º Ciclo de Seminários, realizado no Auditório Franco Montoro, em São
Paulo, SP., sob o patrocínio da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Disponível em:
<http://www.srbarros.com.br/pt/a-reforma-da-previdencia-e-os-direitos-adquiridos-dos-
servidores.cont>. Acesso em: 15 mai. 2015. (sublinhamos)
200

Finalmente, uma terceira corrente defende que, nesse caso,


deve haver a tutela da expectativa do direito. Nesse sentido, o juscivililsta brasileiro
Clóvis Beviláqua, ao tratar do problema sob a ótica do regime jurídico dos
funcionários públicos, no caso em que uma lei previa o aumento de remuneração a
cada cinco anos, concluiu que
No caso da consulta, o Estado, na mencionada lei, declarou
que os professores, no fim de dez annos, perceberiam mais a
quarta parte de seus vencimentos; no fim de quinze, mais a
terça parte; no fim de vinte e cinco, mais a metade. Não tem
direito de declarar, antes de decorridos os mencionados
prazos, que não pagará mais os prometidos augmentos. Está
vinculado por sua promessa, e deve cumpri-la, desde que se
realize a condição, a que a subordinou: se o professor se
achar no exercício do cargo, no tempo determinado; se o
exercer por dez, quinze ou vinte e cinco annos. A lei
posterior pode, sem duvida, abolir esses accrescimos; mas
sómente em relação aos profesores nomeados na sua
vigência. (sublinhamos)587

A divergência sobre o tema na doutrina civilista é


considerável, assim como vasta é a bibliografia. O mesmo se pode dizer a respeito
das formas de aquisição dos direitos subjetivos, bem como da transposição do tema
para o direito público588.
Em primeiro lugar, se a norma constitucional prevê a idade
de 60 anos para o funcionário público se aposentar, obviamente, se ele estiver com
59 anos, ele não adquiriu o direito de se aposentar. Ele tem, ainda, mera
expectativa. Questão diversa é saber se o mesmo funcionário tem direito à
manutenção das regras de aposentadoria. Trazendo a questão novamente ao
campo da teoria geral das obrigações, a relação do funcionário público com a
Administração é, antes de tudo, uma relação sinalagmática. Há um contrato
preestabelecido entre a Administração e o funcionário. O cidadão, diante das
opções profissionais que lhe oferecem as entidades privadas e a Administração,
compara as regras de ambas e, com base nelas, faz sua opção. Assim, o cidadão,
qualquer que seja o processo seletivo para ingresso, faz uma opção por regras
preestabelecidas. Tais regras lhe geram uma expectativa de manutenção da ordem

587 BEVILÁQUA, Clovis. Soluções práticas de direito (pareceres). v. I. Rio de Janeiro: Corrêa Bastos,
1923, p. 21.
588 Nesse sentido, uma satisfatória síntese do tema pode ser encontrada em SAMPAIO, José Adércio

Leite. Direito adquirido e expectativa de direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 11 et seq.
201

jurídica. Ausente tal expectativa, a manifestação de sua vontade poderia ter se


dado de forma diversa.
Desse modo, é inegável que um funcionário público possui
expectativa de direito de se aposentar, mas igualmente direito adquirido ao regime
jurídico, ou seja, à manutenção dos requisitos prévios para o exercício de sua
aposentação.
Questão diferente é saber se tal direito adquirido pode se
opor ao interesse público que exige reformas estruturais no país. Aqui, de fato,
caberá uma ponderação entre princípios. Nesse sentido, a previsão constitucional
do direito adquirido talvez seja inócua, pois, de fato, a segurança jurídica,
especialmente na sua dimensão subjetiva – a confiança - conquanto não expressa
no texto constitucional, já ofereceria a mesma proteção, uma vez que decorreria da
conceção de Estado de direito.
Assim, sob o ângulo do direito português e brasileiro, a
modificação dos requisitos temporais para obtenção de aposentadoria viola a
proteção do direito adquirido.
Em Portugal, em função da previsão na Lei de Bases de
Segurança Social, cuja especialidade deve prevalecer sobre a lei orçamentária, só
seria admitida tal modificação se modificada a referida lei de bases. Uma
modificação legislativa dessa lei apenas seria admitida mediante uma justificativa
plausível de persecução de um interesse público legítimo, por aplicação do
princípio da tutela da confiança. Não obstante, a referida modificação seria
admissível em lei de revisão constitucional, desde que não afetasse as dimensões
análogas aos direitos, liberdades e garantias, nos termos do art. 288.º, “d”, da CRP.
No Brasil, em virtude da limitação do legislador pelo direito
adquirido, a modificação seria vedada por lei, não por emenda constitucional.
Nesse sentido, a proteção da confiança acaba sendo relevada pela aplicação do
direito adquirido. Não obstante, tanto o direito adquirido, quanto a proteção à
confiança, não podem ser invocados em face de emendas à constituição, pelo que
está correto o posicionamento do STF, ao declarar constitucional a modificação do
direito por via de emenda à Constituição. 589

589 Incorreto é o facto de o plenário não ter apreciado tal argumento, e ter se manifestado apenas
202

3.2.4. A dimensão subjetiva da segurança jurídica - o princípio da confiança

O princípio da proteção da confiança, também chamado de


proteção à confiança, à confiança legítima ou simplesmente princípio da confiança,
é a dimensão subjetiva do princípio da segurança jurídica.
Embora se registrem antecedentes até mesmo no Direito
Canônico, datado de 896, e na própria jurisprudência francesa, em 1922 590, a
doutrina costuma assentar sua origem na jurisprudência alemã, por volta da
década de 1950. São mencionados dois acórdãos de tribunais administrativos
alemães datados de 1956 e 57 como os primeiros a empregarem tal princípio.
Naquele caso, porém, seu uso se deu para a questão da boa-fé na percepção de
vantagens econômicas decorrentes de erro de facto no cálculo.591 A partir de então,
teve seu uso alargado para alcançar todas as formas de atuação do Estado que
afetassem as expectativas dos indivíduos. Tal como se deu com a construção do
princípio da proibição do retrocesso, também o princípio da proteção da confiança
nasce de casos concretos mais afetos a questões patrimoniais – mediante o
emprego de um processo indutivo - que de um processo dedutivo a partir de uma
teoria dos direitos fundamentais.592
Diversamente de outros princípios também inferidos da
conceção de Estado de direito, tal qual o princípio da igualdade e da
proporcionalidade na Constituição da República de Portugal, ou mesmo a garantia
de proteção do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, bem como a própria
segurança jurídica, na Constituição da República Federativa do Brasil, não há uma
previsão constitucional expressa do princípio da proteção da confiança, pelo que a
ideia de sua aplicação prima facie soaria como uma hipótese de ativismo judicial,
ou mesmo de uma manifestação neoconstitucional em sentido amplo.

sobre as questões tributárias, o que implica um déficit de prestação jurisdicional. STF. ADI
3128/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Cesar Peluso. J. 18/08/2004.
590 Cf. ARAÚJO, Valter Shuenquener de. O princípio da proteção da confiança: uma nova forma de

tutela do cidadão diante do Estado. Niterói, RJ: Impetus, 2009, p. 18-9.


591 Sobre o caso e seus fundamentos, cf. MAURER, Hartmut. Elementos de direito administrativo

alemão. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2001, p. 70-71.
592 Cf. DERBLI, Felipe. A aplicabilidade do princípio da proibição de retrocesso social no direito

brasileiro. In: SARMENTO, D.; SOUZA NETO, C. P. (coord.). Direitos Sociais: fundamentos,
judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008, p. 345.
203

Sem embargo, muitos tribunais europeus têm empregado o


princípio da confiança593 para limitar a atuação do legislador na modificação de leis
concretizadoras de direitos sociais, algo que não se verifica no Brasil, cuja
Constituição, a exemplo desses países, consagra igualmente o princípio do Estado
de direito.
Segundo Jorge Miranda e Rui Medeiros, trata-se de uma
norma-princípio, de gestação essencialmente jurisprudencial, com raiz no
princípio do Estado de direito, que determina que as autoridades públicas não
devem contrariar ou afetar com os seus atos as expetativas legítimas dos
particulares, a não ser que um interesse de peso superior justifique essa
afetação.594
A mesma tese é adotada pelo TC de Portugal, que reconhece
a confiança como “uma norma com natureza principiológica que deflui de um dos
elementos materiais justificadores e imanentes do Estado de direito: a segurança
jurídica”.595
A doutrina apresenta grande dissenso acerca do conteúdo,
ou mesmo do emprego de tal princípio, dada sua construção abstrata e sua
limitação da liberdade de conformação do legislador.596
Jorge Miranda descreve a proteção da confiança como a
vinculação do Estado a um dever de boa-fé, de lealdade e de respeito aos
particulares.597

593 Além de Portugal, como será estudado, citem-se a jurisprudência espanhola (confianza legitima),
alemã (vertrauensschutz), holandesa (vertrouwensbeginsel), lituana (teisėtų lūkesčių – legitimate
expectations), italiana (legittimo affidamento) suíça, francesa e o Tribunal de Justiça das
Comunidades Europeias (attente legitime), dentre outras. Cf. RODRÍGUEZ-ARANA, Jaime. El
principio general del derecho de confianza legítima. Ciencia Jurídica. Departamento de Derecho.
División de Derecho Política y Gobierno, Universidad de Guanajuato, Año 1, nº. 4, 2013, p. 66;
RUBIALES, Iñigo Sanz. Principio de confianza legitima, limitador del poder normativo comunitário.
Revista de Derecho Comunitario Europeo, Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, Madrid,
n.º 7, jan./jun. 2000, p. 95; CALMES, Sylvia. Du príncipe de protection de la confiance legitime en
droits allemand, communautaire et français. Paris: Dalloz, 2001, p. 117; PRANEVIČIENĖ, Birutė;
MIKALAUSKAITĖ-ŠOSTAKIENĖ, Kristina. Guarantee of principles of legitimate expectations, legal
certainty and legal security in the territorial planning process. Mykolas Romeris University, Kaunas,
Lithuania, 2012, 19 (2), p. 643-656. Disponível em: <http://www. mruni.eu/upload/iblock/d32/
013_praneviciene_mikalauskaite_sostakiene.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2015.
594 MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui. Constituição Portuguesa anotada. t. I, 2. ed. Coimbra: Wolters-

Coimbra Editora, 2010, p. 213-41.


595 Processo n.º 1260/13. Acórdão 862, de 19 de dezembro de 2013.
596 ALEXANDRINO, José de Melo. Jurisprudência da crise..., cit., p. 66.
597 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Direitos Fundamentais. t. IV. 5. ed.. Coimbra:

Coimbra Editora, 2012, p. 312. Cf. ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos fundamentais: introdução
204

Humberto Ávila enuncia quatro pressupostos do princípio


da proteção da confiança, a saber: a) uma base de confiança do sujeito; b) a
confiança nessa base; c) o exercício da liberdade, com base nessa confiança; d)
frustração da confiança, por ato posterior e contraditório do Poder Público.598
O Tribunal Constitucional português, pelo acórdão
287/1990, tentou construir um conteúdo para o princípio, através de uma fórmula
aplicada com base em avaliações e ponderações que consideram as circunstâncias
do caso concreto. Como será adiante analisado, tal fórmula considerava requisitos
para a tutela da confiança dois pressupostos:
a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será
inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica
com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela cons-
tantes não possam contar; e ainda b) quando não for ditada pela
necessidade de salvaguardar direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos que devam considerar-se
prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da propor-
cionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos,
liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição). 599

Além da tese de que o princípio decorreria do Estado de


direito, a doutrina apresenta outros fundamentos para justificar o princípio.
Para Jorge Reis Novais, os particulares têm o direito de
prever as atuações estatais e de não terem suas “legítimas” expectativas frustradas,
especialmente por atos estatais “radicais”. A delimitação do princípio se dá pela
aplicação do critério da proporcionalidade a par de ter como pressuposto a
legitimidade, não admitindo as posições sustentadas em “ilegalidades” e
“omissões”.600
José de Melo Alexandrino enxerga na proteção da confiança
uma ligação com: a) subordinação ao Estado de direito; b) previsibilidade da
atuação estatal; c) clareza e precisão das regras jurídicas; d) publicidade e
transparência dos atos e dos procedimentos públicos; e respeito pelos direitos,
expectativas e interesses legítimos dignos de proteção pelo direito.601

geral. Estoril: Principia, 2007, p. 79.


598 Cf. AVILA, Humberto. Segurança jurídica…cit., p. 367.
599 Cf. Processo n.º 309/90. Acórdão 287, de 30 de outubro de 1990.
600 NOVAIS, Jorge Reis. Princípios constitucionais estruturantes…cit, p. 263.
601 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos fundamentais…cit., p. 85
205

Segundo Cristina Queiroz, o princípio comportaria uma


leitura que decorre do princípio geral das obrigações de que os pactos devem ser
cumpridos. 602
Toda essa construção teórica, porém, assenta-se em um
plano axiológico. Se é verdade que da conceção de Estado de direito é possível
inferir um princípio da segurança jurídica, não é possível universalizar, de forma
legítima, um conteúdo para tal princípio. Prova disso é a diversidade, no direito
comparado, de formas como as Constituições e os tribunais constitucionais e
ordinários lidam com a questão da segurança jurídica, mediante a adoção ou não
de proteção à retroatividade das leis, ao direito adquirido, aos direitos em
formação, à coisa julgada, dentre outras.
Por tal razão, as manifestações doutrinárias que pretendem
a adoção de um conteúdo universal para tal princípio, mormente a partir de pré-
compreensões igualmente assentadas em valores, como o Estado de direito e a
dignidade da pessoa humana, esbarram no problema de legitimidade democrática
para tal construção e mais representam uma imposição pessoal, que uma posição
impessoal.603
Isso não quer dizer, porém, que em face de um determinado
ordenamento não seja possível aferir um conteúdo maior ou menor de tal
princípio. No entanto, essa constatação deverá ser feita diante de cada ordem
jurídica.

3.2.4.1. A aplicação do princípio em Portugal

A CRP não adota o princípio da irretroatividade absoluta das


leis, mas apenas prevê a irretroatividade penal (artigo 29.º, n.º 4), fiscal (artigo
103.º, n.º 3) e irretroatividade das leis restritivas de direitos, liberdades e
garantias (artigo 18.º, n.º 3).

602 QUEIROZ, Cristina. O tribunal constitucional e os direitos sociais. Coimbra: Coimbra Editora, 2014,
p. 25.
603 Dentre esses autores, citam-se: SARLET, Ingo Wolfgang. Proibição de retrocesso, dignidade da

pessoa humana e direitos sociais: manifestação de um constitucionalismo dirigente possível.


Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, Bahia, Brasil, n. 15, set./out./nov. 2008.
Disponível em: <http:/ /www.direitodoestado.com/revista/RERE-15-SETEMBRO-2008-
INGO%20SARLET.pdf>. Acesso em: 1º mar. 2017, p. 21-2.
206

Por sua vez, o artigo 17.º prevê que o regime dos direitos,
liberdades e garantias aplica-se aos direitos, liberdades e garantias pessoais, de
participação política e dos trabalhadores e aos direitos de natureza análoga.
Diante dessa disposição, questiona-se se os “demais” direitos
sociais na CRP seriam alcançados pelo princípio de irretroatividade previsto no
artigo 18.º, n.º 3.604
Além disso, o referido dispositivo apenas trata dos casos de
retroatividade autêntica, desconsiderando as hipóteses de retroatividade
inautêntica. Em outras palavras, a CRP apenas protege expressamente os efeitos
passados de fatos passados.
Alguns dos direitos sociais, no entanto, tais como os direitos
à pensão, apresentam um aspeto intertemporal, destacando-se dois deles – a
existência de efeitos pendentes de fatos passados, bem como a existência de
direitos em formação.
Assim, poderia o legislador português, por exemplo, alterar a
idade exigida para aposentação um dia antes de o funcionário público se
aposentar, ou mesmo reduzir o valor das pensões? A resposta para questões como
essa, tanto no ordenamento jurídico português, como no brasileiro, envolverá uma
análise prévia da construção do princípio da proteção da confiança em ambos os
sistemas.
Em Portugal, a proteção da confiança foi inicialmente
assimilada pela doutrina.
Alberto Xavier, em sua obra Manual de Direito Fiscal, de
1974,605 já escrevia que a irretroatividade das leis fiscais, ainda que não expressa
em lei, decorreria do próprio princípio da legalidade, o qual devia ser interpretado
à luz da segurança jurídica e da proteção da confiança.
Afonso Rodrigues Queiró, em sua obra Lições de Direito
Administrativo, de 1976, mencionava que a aplicação retroativa de uma norma
administrativa poderia ser considerada “contrária aos princípios do Estado de
direito ou da Legalidade, se redunda numa ofensa, pela instituição de

604 A CRP separa os direitos dos trabalhadores, incluído no Título II, referente aos direitos,
liberdades e garantias, do direito ao trabalho, incluído no Título III, referente aos direitos
econômicos, sociais e culturais.
605 XAVIER, Alberto. Manual de direito fiscal. v. I. Lisboa: Almedina, 1974, p. 191.
207

consequências jurídicas gravosas ou desfavoráveis, da confiança dos destinatários


num statu quo legislativo que lhes era favorável”.606
Canotilho, embora já fizesse referência à impossibilidade de
leis retroativas quando estas violassem outras normas constitucionais607, veio a
mencionar a proteção da confiança como um desses princípios, na obra Direito
Constitucional II, v. 2, de 1981.608
Essa doutrina inspirou a Comissão Constitucional609, a qual,
especialmente com o Acórdão n.º 437, de 26 de janeiro de 1982, considerou
“inconstitucional a norma retroactiva que viola de forma intolerável a segurança
jurídica e a confiança que as pessoas e a comunidade têm a obrigação (e também o
direito) de depositar na ordem jurídica que as rege”.610
O Tribunal Constitucional seguiu a mesma linha, adotando o
critério da segurança jurídica e da proteção da confiança para controlo da
constitucionalidade de leis retroativas:
Será dispensável enunciar agora, ainda que resumidamente, todos
os elementos que caracterizam um Estado de direito Democrático.
Mas é indiscutível que entre tais elementos se contém o da
protecção da confiança dos cidadãos face à actuação do Estado: é
decerto uma exigência jurídica fundamental a de que o Estado não
actue por forma a pôr em crise os direitos e as expectativas que os
cidadãos legitimamente constituíram à sombra da ordem jurídica
vigente — o Estado não deve agir de forma a trair a confiança dos
cidadãos. 611

Alguns anos mais tarde, em 1990, o TC viria a desenvolver o


conteúdo desse princípio da proteção da confiança. Em primeiro lugar, o conteúdo
do princípio protegeria as expectativas legítimas contrariamente a qualquer ato
estatal considerado inadmissível, arbitrário, ou demasiado oneroso, nas situações de
retrospectividade.612
Em uma argumentação confusa, o TC, primeiro, tenta
densificar isoladamente o critério da inadmissibilidade, mediante estes dois
subcritérios:

606 Citado pelo TC. Processo 22/83. Acórdão 20/83.


607 Cf. TC. Processo 22/83. Acórdão 20/83.
608 Cf. TC. Processo 22/83. Acórdão 20/83.
609 A Comissão Constitucional tinha, dentre outras, a função de exercer o controle de

constitucionalidade das leis e foi precursora do atual Tribunal Constitucional, criado em 1982, com
a primeira revisão constitucional.
610 Cf. TC. Processo 22/83. Acórdão 20/83.
611 Cf. TC. Processo n.º 94/83. Acórdão n.º 11/83.
612 Cf. TC. Processo n.º 309/90. Acórdão 287/90.
208

a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será


inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica
com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela
constantes não possam contar; e ainda

b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar


direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam
considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio
da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos
direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da
Constituição).613

Adiante, o TC associa o item “a” à ideia de onerosidade


extraordinária e o item “b” à ideia de “onerosidade excessiva, inadmissível ou
intolerável, porque injustificada ou arbitrária”, afirmando, ainda, que tais critérios
devem se complementar.
Finalmente, a arbitrariedade da medida e o excesso da
frustração das expectativas serão aferidas mediante a ponderação entre o
interesse do legislador (interesse coletivo) na mudança da ordem jurídica e o
interesse individual na manutenção da ordem jurídica.
Tratou-se de uma fusão de um critério já expresso na CRP (o
da proporcionalidade) com outro critério de difícil controle apolítico, como o da
previsibilidade subjetiva razoável dos destinatários da norma. Também é bom
destacar que o critério da proporcionalidade não é somente o previsto no citado
n.º 2 do artigo 18.º da CRP, pois no parágrafo 28 do acórdão, o TC menciona a
necessidade de ponderar interesses coletivos com interesses individuais.614
Ou seja, pelo critério da proporcionalidade, o TC se coloca
como árbitro da disputa entre a coletividade, representada pela Administração
Pública e Poder Legislativo, e os particulares.
Em jurisprudência posterior, quase duas décadas depois, a
pretexto de desenvolver a fórmula anterior, o TC apresenta novo critério para a
densificação do princípio. Segundo tal critério, viola-se a proteção da confiança
quando:
1.º o Estado (mormente o legislador) tenha encetado
comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de
continuidade;

2.º devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas


em boas razões;

613 Cf. TC. Processo n.º 309/90. Acórdão 287/90.


614 Cf. TC. Processo n.º 309/90. Acórdão 287/90.
209

3.º devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a


perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual;

4.º não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em


ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a
situação de expectativa615.

Cumpre frisar que a relatora do citado acórdão, Maria Lúcia


Amaral, simplesmente adotou em seu relatório sua própria tese, já explicitada em
sua obra “A Forma da República”, publicada dois anos antes de sua eleição para o
Tribunal:
Para que haja, em determinadas situações concretas, lesão do
princípio da confiança — que tem a sua sedes materiae no artigo
2.° da Constituição — é necessário que se perfaçam sempre quatro
pressupostos essenciais:

1.°, que o Estado (os poderes públicos) tenham efectivamente


tomado decisões, ou encetado comportamentos, susceptíveis de
gerar nos cidadãos expectativas de continuidade;

2.°, que os cidadãos tenham eles próprios tomado decisões — ou


feito planos de vida — com fundamento nessas mesmas
expectativas;

3.°, que tais expectativas na continuidade da política estadual


sejam legítimas, porque fundadas, ou justificadas, por boas razões;

4.º, que a mudança do comportamento dos poderes públicos não


seja exigida por um interesse público que, pela sua importância e
valor, sobreleve o valor da tutela das expectativas privadas 616

Na mesma obra, a autora enfatiza que tais quatro critérios


são sua interpretação da jurisprudência: “(...) Note-se, no entanto, que os ‘quatro
pressupostos’ que vêm enunciados no texto não se encontram assim mesmo
fixados pela jurisprudência constitucional. Eles ‘interpretam’ a jurisprudência; não
a reproduzem.”.617
Os mesmos critérios foram seguidos nos acórdãos
seguintes.618
O acórdão 862/2013, por sua vez, vai exigir outro critério: o
do gradualismo da medida:
No juízo de ponderação que é imposto pela proteção da confiança,
onde se confronta e valora a condição de pensionista, em princípio,

615 Cf. TC. Processo n.º 772/07. Acórdão n.º 128/09. Foram efetuadas adaptações de pontuação no
texto.
616 AMARAL, Maria Lúcia. A forma da república…cit., p. 183.
617 AMARAL, Maria Lúcia. A forma da república…cit., p. 183, nt. 202.
618 Cf. TC. Acórdãos n.º 3/2010, 396/2011 e 187/2013.
210

sem possibilidade ou impossibilidade de regressar a uma vida


ativa que permita recuperar o que lhe é retirado, com os referidos
interesses públicos, que podem ser satisfeitos no horizonte mais
alargado, a solução justa à luz do princípio da proporcionalidade
imporia também que a implementação da medida se fizesse de
forma gradual e diferida no tempo. Aplicá-la de uma só vez, seria
ultrapassar, de forma excessiva, a medida de sacrifício que a
natureza do direito à pensão poderá admitir.619

Assim, o Tribunal inscreve novo critério para aferição da


observância da confiança legítima, que está ligada à necessidade.
Finalmente, o acórdão 575/2014 inclui novo critério - a
confiança objetiva -, que se aplica aos sistemas intergeracionais, como se dá no caso
das pensões. Trata-se, na verdade, de uma frustração da confiança na estabilidade
futura da ordem jurídica, que pode ser provocada nos mais jovens pelo ato estatal
dirigido às pessoas mais velhas. Segundo o referido acórdão:
No domínio de um sistema previdencial como o nosso, que, como
vimos, se financia (artigo 90.º da Lei de Bases da Segurança
Social), quanto a prestações substitutivas dos rendimentos do
trabalho, através de ‘quotizações dos trabalhadores’ e de
‘contribuições das entidades patronais, a confiança, para além da
dimensão estritamente subjetiva com que até agora foi tratada,
adquire ainda uma dimensão objetiva, que se associa à sua
própria legitimidade enquanto sistema que implica um contrato
entre gerações. Se para as presentes gerações da população ativa
portuguesa – as que financiam o sistema previdencial através das
suas quotizações – a frustração da confiança das gerações mais
velhas, beneficiárias atuais do sistema que financiam, puder
aparecer como questão constitucionalmente neutra, indiferente
ou irrelevante, nenhuma razão terão elas próprias (as gerações
presentes de contribuintes) para confiar na subsistência do
modelo para o qual contribuem.620

Cuida-se de um novo requisito, que vai integrar o primeiro


critério, sobre a existência de expectativas dos cidadãos. Para o TC, portanto, não
apenas as expectativas individuais, subjetivas, devem ser tuteladas, mas também
uma expectativa presumida, expressão que deveria ter sido empregada para que
não haja uma aparente contradição com o termo confiança, que representa a face
subjetiva da segurança jurídica.

3.2.4.2. A aplicação do princípio no Brasil

No Brasil, o art. 5º da CRFB-88 prevê em seu caput o direito


à segurança. Não fala em segurança jurídica.

619 Cf. TC. Processo 1260/2013. Acórdão 862/2013, considerando 44. (itálico no original)
620 Cf. Processo n.º 819/2014. Acórdão 575/2014, considerando 22. (sublinhamos)
211

A doutrina extrai daí o entendimento de que o comando


constitucional – não obstante a polissemia do termo – adotou um conceito amplo
de segurança.621
Mesmo autores que se debruçaram exaustivamente sobre o
tema da segurança jurídica no Brasil, como Humberto Ávila, desconsideram os
debates parlamentares na aferição do tema. Apreendem um sentido universal para
o conceito a partir da doutrina estrangeira e mesmo dos debates romanos, mas não
dedicam nenhuma nota a mens legislatoris.622
O facto é que, a despeito do “malabarismo” teórico para
justificar que a conceção de segurança prevista no art. 5.º decorre de uma
construção histórica e comparada, o termo segurança jurídica aparece no
Anteprojeto da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, designando o
inciso V, que viria a corresponder ao inciso XXXVI do art.º 5.º. Segundo o
Anteprojeto:
Art (...) São direitos e garantias individuais:

V – A segurança jurídica. A lei não prejudicará o direito


adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada e não poderá
excluir da apreciação do Poder Judiciário nenhuma lesão de
direito. (Destacamos)623

Assim, pode-se afirmar que na CRFB de 1988 a segurança


jurídica encontra-se genericamente adotada no art. 5.º, XXXVI. Sem embargo,
outros dispositivos constitucionais a garantem, sob a forma de irretroatividade
penal ou fiscal.624 Daí com razão Humberto Ávila ao afirmar que o princípio da

621 Cf. ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica..., cit., p. 33.


622 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica..., cit., p. 34 et seq. De fato, a menção ao termo segurança
apareceu diversas vezes na Assembleia Constituinte de 1988. Quando usado de forma isolada, o
termo quase sempre era empregado para se referir à segurança não jurídica, à segurança pública,
ou à segurança de Estado. Na Comissão de Sistematização, v.g., o Constituinte José Mendonça de
Moraes adota a conceção de segurança como segurança não jurídica: “A inviolabilidade da liberdade
precisa ser manifesta, o que não está no texto, ainda. E a nossa segurança? Temos o direito, direito
concernente à segurança, à segurança do ser humano”.622 Por vezes, aparece o termo “segurança do
Estado” Anais da Assembleia Nacional Constituinte. Atas de Comissões. p. 207. Disponível em:
<http://www.senado.gov.br/ publicacoes/anais/constituinte/sistema. pdf.> Acesso em: 15 mar.
2015. Cf., dentre outras passagens, a menção do Constituinte constitucionalista Afonso Arinos no
Suplemento “b”, p. 3, e do Constituinte Sepúlveda Pertence, que depois viria a se tornar Ministro do
STF, nos Anais da Subcomissão de Garantia da Constituição, Reforma e Emendas, p. 65; a
intervenção do Ministro do STF Sydnei Sanches, ao defender a vitaliciedade dos Ministros do STF
como garantia da segurança jurídica nacional. Ibid., p. 225.
623 Anais da Assembleia Nacional Constituinte. Atas de Comissões. Ata da Subcomissão dos Direitos

e Garantias Individuais. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/


constituinte/sistema. pdf>. Acesso em: 15 mar. 2015, p. 207 e 285.
624 Cf. art. 5º, XL e art. 150, I e III, “a” e “b”, da CRFB.
212

segurança jurídica no direito brasileiro é dedutível a partir do princípio do Estado


de direito e indutivel a partir de regras constitucionais da proteção ao direito
adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, como a regra legalidade,
anterioridade e irretroatividade.625
Além desses dispositivos, a CRFB não consagra, a exemplo
da CRP, o princípio da irretroatividade absoluta. Não obstante, a proteção
constitucional ao direito adquirido e o ato jurídico perfeito acaba esvaziando um
pouco a aplicação do princípio da segurança jurídica e suas variantes, como a
confiança jurídica.
Mesmo assim, desenvolveu-se uma vasta doutrina,
sobretudo nos campos do direito administrativo e do direito tributário, que
defende essa dimensão subjetiva da segurança jurídica como limites à atuação
estatal, para alcançar direitos ou expectativas não protegidos expressamente por
tais garantias.626
A jurisprudência ainda é tímida em usar o princípio da
proteção da confiança e, quando o faz, emprega outros termos, como boa-fé ou a
própria segurança jurídica. Muitos dos julgados empregam implicitamente o
princípio da proteção da confiança, sem, contudo, reconhecê-lo como tal. Pode-se
citar o RE 370682/SC, em que o Ministro Ricardo Lewandowski assim se
pronunciou em seu voto:
(...) Isso, sobretudo, em respeito ao princípio da segurança jurídica
que, no dizer de Celso Antonio Bandeira de Mello, tem por escopo
‘evitar alterações surpreendentes que instabilizem a situação dos
administrados’, bem como ‘minorar os efeitos traumáticos que

625ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. São Paulo: Forense, 2005, p. 247.
626Dentre as quais, cita-se: FERREIRA, Sérgio de Andréa. O princípio da segurança jurídica em face
das reformas constitucionais. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 334, p. 191- 209; ARANHA, Márcio
Iorio. Segurança jurídica stricto sensu e legalidade dos atos administrativos: convalidação do ato
nulo pela imputação do valor de segurança jurídica em concreto à junção da boa-fé e do lapso
temporal. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 34, n. 134, p. 59-73, abr./jun. de 1997, p. 12;
COUTO e SILVA, Almiro do. princípios da legalidade e da administração pública e da segurança
jurídica no estado de direito contemporâneo. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 84, out./dez.,
1987, p. 46; O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro e
o direito da administração pública de anular seus próprios atos administrativos: o prazo
decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da união (Lei n.º 9.784/99). REDE – Revista
Eletrônica de Direito do Estado. Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n..2, abr./mai/jun.
2005. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 27 mar. 2015;
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 34. ed. atual. por Eurico de Andrade
Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2008, p.
99/101; MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo:
Malheiros, 2009, p. 87; PIETRO, Maria Sylvia Zanella di Pietro. Direito administrativo. 22. ed. São
Paulo: Atlas, 2009, p. 87-8.
213

resultam de novas disposições jurídicas que alcançaram situações


em curso’.(...)627

No entanto, assim como em Portugal o recurso à proteção da


confiança foi utilizado para limitar situações não alcançadas pela vedação de
irretroatividade das leis - como se dá no caso de leis retrospectivas, que atingiriam
meras expectativas, e não propriamente direitos adquiridos -, no Brasil o mesmo
tipo de vácuo dá lugar à aplicação do princípio da segurança jurídica e da proteção
da confiança.
No MS 24448/DF, o STF entendeu que tal princípio seria
uma “projeção objetiva do princípio da dignidade da pessoa humana e elemento
conceitual do Estado de direito”.628
Na dimensão subjetiva da segurança jurídica, o princípio tem
sido utilizado pelo STF em duas questões principais: impossibilidade de revogação
e anulação de atos administrativos que gerem direitos aos seus beneficiários com o
decurso do tempo e a impossibilidade de demissão de servidores contratados
irregularmente, mas por atos aparentemente legítimos (quando controversa a
admissão de servidores por concurso publico).629
Também no MS 26782/DF há referência expressa no
acórdão de relatoria do Ministro Cesar Peluso sobre o princípio da confiança:
Tais ascensões funcionais são, pois, atos perfeitos, que já não
podem alcançados pela revisão do Tribunal de Contas(...) por
força da decadência, nem ademais, sem ofensa aos subprincípios
da confiança e da segurança jurídicas (...).630

No MS 26271 AgR/DF, o relator Ministro Celso Melo adotou


expressamente o princípio da proteção da confiança para cassar acórdão do
Tribunal de Contas que mandava desconstituir a incorporação na pensão de um
valor determinado, que havia sido concedido e vinha sendo pago há 13 anos.631

627 Cf. STF. RE 370682/SC. Tribunal Pleno. Rel. para Acórdão Min. Gilmar Mendes. J. 25/06/2007.
628 Cf. STF. MS 24448/DF. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carlos Britto. J. 27/09/2007.
629 Cf. STF. MS 24927/RO. Tribunal Pleno. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 28/09/2005.
630 Cf. STF. MS 26782/DF. Tribunal Pleno. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 17/12/2007.
631 Segundo Celso Melo “Os postulados da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da proteção da

confiança, enquanto expressões do Estado democrático de direito, mostram-se impregnados de


elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de
direito público, em ordem a viabilizar a incidência desses mesmos princípios sobre
comportamentos de qualquer dos poderes ou órgãos do Estado (os Tribunais de Contas, inclusive),
para que se preservem, desse modo, situações administrativas já consolidadas no passado.” Cf. MS
26271 AgR/DF. Tribunal Pleno. Rel. Min. Celso de Mello. J. 4/12/2012 .
214

Não há, diversamente do que ocorre com o TC de Portugal,


uma densificação do STF de um critério de aplicação do princípio da proteção da
confiança.
A despeito das cada vez mais constantes referências ao
termo pelo STF, há mais um emprego retórico que técnico em sua jurisprudência.
Contraditoriamente, o emprego da segurança jurídica pelo STF ainda gera
insegurança jurídica.
215

3.3. PROPORCIONALIDADE

Diversamente das normas anteriores, a proporcionalidade


não pode ser considerada, estritamente, um princípio, uma vez que ela não é
sopesada contra algo. Trata-se, por outro lado, de uma prescrição passível de
subsunção, aplicável da forma "tudo ou nada". 632
Ao contrário da segurança jurídica, que pode não prevalecer
diante do interesse público, ou do princípio democrático, uma norma considerada
desproporcional não pode subsistir no ordenamento. Tampouco pode prevalecer a
igualdade ou o direito à vida sobre a proporcionalidade.
Não obstante, por vezes se emprega o termo princípio, senão
para precisar uma distinção entre normas-regras, para acentuar o grau de
fundamentalidade da norma, sentido que ora se atribui tipologicamente, sem,
contudo, abandonarmos a proposta de Alexy quanto à distinção qualitativa entre
regras e princípios.633

3.3.1. Proporcionalidade e razoabilidade

Há que se distinguirem proporcionalidade e razoabilidade.


Como explica Virgílio Afonso da Silva, a proporcionalidade tem uma estrutura
racionalmente definida que a confere o caráter de regra ao passo que a
razoabilidade consubstancia um princípio sem subelementos definidos e, portanto,
aplicável na máxima medida possível.634
Conquanto não se confundam, razoabilidade e
proporcionalidade, pode-se dizer que a primeira, em seu sentido comum, é o
conteúdo da segunda, em seu sentido técnico desenvolvido especialmente na
Alemanha. Deveras, a proporcionalidade - enquanto norma-regra - nada mais é que

632 De fato, como explica Humberto Ávila, a proporcionalidade é uma regra (e não um princípio) de
interpretação e aplicação do direito. ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e
regras e a redefinição do dever de proporcionalidade Revista de Direito Administrativo, (215):151-
179, Rio de Janeiro, Renovar, jan./mar. 1999, pp. 154-158. No mesmo sentido, convém salientar que
o próprio autor, ao aplicar sua própria teoria à questão, enfatiza que os sub-elementos da
proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) não são
sopesados contra algo, tampouco ora prevalecem, ora não prevalecem em determinado caso
concreto. Seriam, portanto, regras, passíveis de subsunção. Cf. ALEXY, Robert. Teoria..., cit., p. 117,
nt. 84. Não obstante, grande parte da doutrina emprega o termo princípios. Cf. BOROWSKI, Martin.
La estructura de los derechos fundamentales. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003, p.
197.
633 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo, v.

91, n. 798, abr. 2002, p. 27.


634 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional..., cit., p. 31.
216

um instrumento formal de aferição de razoabilidade. Ao menos assim ela foi


desenvolvida pelo Tribunal Constitucional alemão e, posteriormente, pela
doutrina.635
Nesse sentido, é sempre oportuno ressaltar que a adoção da
conceção da natureza da proporcionalidade como norma-regra com um conteúdo
instrumental específico pode variar em cada ordenamento positivo, consistindo
mais em uma proposta de aplicação lógica do que se entende por razoável ou
proporcional, que uma decorrência silogístico-positivo-necessária dos sistemas
constitucionais modernos.
Ademais, também nunca é demais lembrar que a mesma
construção pode sofrer variações lógicas quando se está num sistema common law
ou civil law, o que parece não ser considerado por grande parte da doutrina.

3.3.2. Os subelementos da regra da proporcionalidade

Pela conceção mais aceita, a regra da proporcionalidade


envolveria a aplicação de três testes sequenciais, também chamados de sub-regras
ou subelementos da proporcionalidade, a saber: adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito.
A maioria da doutrina concorda com a aplicação desses três
subelementos. Há, porém, outras teses que merecem menção. A primeira delas
entende que o exame de proporcionalidade envolveria apenas a aplicação dos
testes de adequação e necessidade. Outras admitem a inclusão de outros critérios
como a legitimidade dos fins pretendidos com o ato analisado636 e a proibição
absoluta do meio.637
Outro aspeto importante é que tais critérios devem ser
aplicados em uma sequência excludente. Em outras palavras, a ordem de aplicação
dos critérios se impõe pela própria lógica que suporta a regra da
proporcionalidade, em que a gradatividade está presente.
Feitas tais observações, cabe, portanto, compreender a regra
da proporcionalidade desenvolvida pelos alemães e assimilada, a despeito das

635 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional..., cit., p. 33.


636 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional..., cit., p. 35.
637 Cf. SCHLINK, Bernhard. Proportionality. In: ROSENFELD, Michel; SAJÓ, András (eds.). The oxford

handbook of comparative constitutional law. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 718 et seq.
217

críticas e de algum dissenso, por boa parte da doutrina constitucionalista ocidental,


talvez por sua resistência lógica.
Segundo Alexy e o próprio Tribunal Constitucional alemão, o
princípio ou máxima da proporcionalidade (grundsatz)638 decorre da natureza
mesma dos princípios. O autor tenta explicar essa implicação lógica, o que não
ficou muito claro dada a circularidade do raciocínio exposto, limitando-se o autor a
dizer que os princípios são relativizáveis.639
De fato, a proporcionalidade é uma propriedade
comparativa e, como tal, intrinsecamente relativa. Inexiste o proporcional em si.
Algo sempre é proporcional a outra coisa. Diz-se que duas coisas são proporcionais
quando se identifica uma igualdade a partir da relação de suas próprias grandezas.
Pode-se dizer, por conseguinte, que a proporcionalidade é uma variante do
princípio da igualdade, aplicável não a sujeitos, mas aos atos estatais. Assim como a
simetria geométrica não se confunde com igualdade em sentido estrito, uma vez
que dois quadrados não iguais podem ser simétricos, pois as relações entre duas
dimensões são iguais, também a proporcionalidade se verifica na existência de
relações de igualdade.
Ocorre que em sua transmudação para o direito, a
proporcionalidade não compara normas concorrentes, mas normas com
necessidades correlatas, o que torna mais complexa sua compreensão e aplicação.
Explica-se.
Quando se diz que a autorização do aborto é proporcional,
não se está comparando a medida com a norma alternativa que proíbe o aborto,
mas com a necessidade de solução de um problema fático provocado pelo aborto.
Assim, saber se tal medida é proporcional é saber se seu grau e qualidade de
restrição a outras normas constitucionais pode ser "igual" à necessidade e
qualidade de restrição exigidas pelo facto concreto.

638 Em nota de tradução para o português, Virgílio Afonso da Silva explica o uso, por Alexy, dos
termos grundsatz e satz respetivamente para se referirem à proporcionalidade e à igualdade.
Sinteticamente, os termos grundsatz e satz são lexicalmente sinônimos ou equivalentes ao termo
prinzip (princípio). Ocorre que, sendo a proporcionalidade uma norma de ponderação de
princípios, uma distinção terminológica evita confusões e facilita a compreensão da proposta do
autor e aplicação da sua teoria. Por tal razão, empregaremos, como sugere o autor, o termo máxima
para se referir à proporcionalidade. Cf. ALEXY Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad.
Virgílio Afonso da Silva da 5. ed. alemã. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 10.
639 Cf. ALEXY Robert. Teoria..., cit., p. 116.
218

A proposta de Alexy, com base na jurisprudência do Tribunal


Constitucional alemão, é conceituar a proporcionalidade como uma regra
composta de sub-regras, subelementos ou critérios: adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito. Os dois primeiros, adequação e necessidade,
ensejariam relativizações fáticas, vale dizer, são empregados para relativizar a
aplicação de princípios diante de cada situação fática, ao passo que o último
implicaria uma relativização jurídica, ou seja, condiciona a aplicação do princípio à
norma colidente.640
Já são bastante conhecidos os conteúdos e critérios de
aplicação desses subelementos da máxima da proporcionalidade. Pela adequação,
perscruta-se se a norma é apta a alcançar o fim por ela proposto. Na necessidade,
investiga-se se não há opção que restrinja menos outra norma constitucional que a
adotada e que tenha eficácia semelhante ou muito próxima. Já na
proporcionalidade em sentido estrito, avaliar-se-ia o custo-benefício da medida
tomada, ou seja, se o que se ganha com a restrição do direito é maior ou menor que
o que se perde com a mesma violação.

3.3.3. Subelementos ou princípios autônomos

Assim como fizeram outros autores, discordamos da


proposta de Alexy, ao misturar princípios ou máximas autônomas, como
adequação e necessidade, com a proporcionalidade. Duas inconsistências se
mostram evidentes. Em primeiro lugar, a própria necessidade terminológica de dar
ao conjunto dos três critérios o nome de proporcionalidade já demonstra certa
confusão entre a proporcionalidade em sentido amplo e a proporcionalidade em
sentido estrito. Depois, a autonomia de cada um dos critérios, não obstante se
possa discutir a existência ou não de grau ou de ordenação de sua aplicação, revela
sua completa independência.641 Não por outra razão, autores como Böckenförde e

640Cf. ALEXY Robert. Teoria..., cit., p. 116 et seq.


641 Em sentido contrário, Virgílio Afonso da Silva defende a aplicação conjunta e ordenada de tais
critérios, mas a explicação dada não é convincente, pois o autor não demonstra que diferença há em
se empregar os critérios de modo autônomo e em outra ordem. Segundo ele, a justificativa residiria
na subsidiariedade, ou seja, a aplicação ordenada dos critérios dispensaria a análise dos demais
critérios. Ocorre que não há entre todos eles uma relação de absorção recíproca ou de
prejudicialidade intrínseca. Explicamos. O critério da adequação não absorve o da necessidade, mas
o prejudica. Uma norma pode ser adequada e desnecessária, mas não pode ser inadequada e
necessária. Se a instituição de cotas não resolver o problema de acesso de negros nas universidades
públicas, tal medida será igualmente desnecessária, pois não se necessita de algo que não resolve o
219

Schlink642 apenas aceitam os critérios da adequação e da necessidade na aferição


da proporcionalidade, excluindo a proporcionalidade em sentido estrito. Também
se pode perceber na densificação de critérios da proteção da confiança, como visto
no capítulo anterior, que os mesmos elementos são analisados em relação de
complementaridade.
Considerar os três subcritérios como necessariamente
interdependentes ou tê-los como princípios autônomos não seria problema do
ponto de vista meramente classificatório, visto que as classificações são mais ou
menos úteis conforme o desiderato proposto. Ocorre que recusamos, na esteira de
Böckenförde, a análise do sopesamento da medida, pois o escrutínio de qual valor
deve prevalecer é juízo político-discricionário, não jurídico-vinculado.
Por outro lado, o critério da proporcionalidade em sentido
estrito deve dar substituição ao critério da proteção contra afetação do núcleo
essencial do direito. Com efeito, a única hipótese em que o juiz, numa conceção de
separação dos poderes do sistema civil law, pode optar pela prevalência de um
princípio em detrimento do outro se dá no caso em que o núcleo essencial de um
direito é afetado, ao passo que o outro não.
A despeito de nossa posição, porém, analisaremos
criticamente os princípios da adequação, da necessidade e da vedação de afetação
do núcleo essencial neste capítulo.

3.3.4. O princípio ou subelemento da adequação

Virgílio Afonso da Silva alerta para a confusão feita por


alguns autores quando da tradução do verbo alemão fördern para o português, no
sentido de alcançar. A proposta alemã não exige que o ato estatal possa alcançar o
fim perseguido, mas tão somente "fomentá-lo".643
Segundo a formulação do Tribunal Constitucional alemão,
uma norma seria adequada se pudesse fomentar a realização do objetivo por ela

problema posto. Já a proporcionalidade em sentido estrito não traz qualquer relação de


prejudicialidade em relação aos demais critérios. É possível efetuar um sopesamento entre a
vedação de tratamento desigual e a promoção da igualdade material, independentemente de a
medida ser considerada concretamente necessária e adequada. Cf. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O
proporcional..., cit., p. 36.
642 Cf. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional..., cit., p. 36.
643 Cf. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional..., cit., p. 36; BOROWSKI, Martin. La estructura

de los derechos fundamentales. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003, p. 197.


220

buscado. Em sentido contrário, apenas se ela não puder de algum modo promover
o benefício buscado, é que será ela considerada inadequada. 644
O critério da adequação, também chamado de idoneidade ou
aptidão, visa escrutinar o meio-fim. Em outras palavras, pretende-se, com tal
critério, valorar se o meio é apto a atingir um fim pretendido.645
Aqui emergem duas questões. Primeiro, há matérias em que
o legislador possui maior discricionariedade para escolher o fim, ao passo em que
há outras matérias em que o legislador está vinculado a imposições
constitucionais, como se dá no caso da exigência de instituição de um sistema
previdenciário unificado. Em segundo lugar, o legislador possui grande margem de
discricionariedade para se atingir os meios.
A liberdade do legislador para escolher os fins esbarra em
limites de ordem material ou axiológica. Não pode, v.g., o legislador pretender criar
uma desigualdade de gênero com uma medida legislativa. Já a liberdade de meios
esbarra em limites materiais e formais.
Uma primeira análise do meio empregado pelo legislador é o
próprio meio enquanto legítimo. Não pode, por exemplo, haver o meio “confisco”,
para se atingir um fim de igualdade social, ou o meio “tortura” para se atingir o fim
diminuição da violência. Uma segunda análise é a externalidade jurídica do meio,
ou seja, as consequências externas provocadas pelo uso do meio, como a afetação
das expectativas dos particulares ou a constrição sobre seu patrimônio.
Haverá consequências diversas na avaliação de tais
requisitos. Por exemplo, se o fim for antijurídico, a norma será inconstitucional. Se
o fim inexistir ou for indeterminável, a norma será inconstitucional por violação ao
princípio da proporcionalidade. Se o fim existir, mas o legislador incorrer em
desvio de finalidade, a norma não será, por isso, inválida, pois o legislador tem
discricionariedade para a escolha dos fins. Pode suceder que o fim seja diverso,

644Cf. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional..., cit., p. 36.


645 Como observa Jorge Reis Novais, “o princípio da idoneidade ou da aptidão significa que as
medidas legislativas devem ser aptas a realizar o fim prosseguido, ou, mais rigorosamente, devem,
de forma sensível, contribuir para o alcançar. No entanto, o controlo da idoneidade ou adequação
da medida, enquanto vertente do princípio da proporcionalidade, refere-se exclusivamente à
aptidão objetiva e formal de um meio para realizar um fim e não a qualquer avaliação substancial
da bondade intrínseca ou da oportunidade da medida. Ou seja, uma medida é idónea quando é útil
para a consecução de um fim, quando permite a aproximação do resultado pretendido, quaisquer
que sejam a medida e o fim e independentemente dos méritos correspondentes”. NOVAIS, Jorge Rei.
Princípios constitucionais…, cit., p. 167-8.
221

mas o meio seja adequado para se atingir o fim efetivamente buscado, hipótese em
que a medida não será inválida. Diversamente, porém, entendeu o TC no acórdão
862/13 que: “(...)a redução de pensões é uma medida conjuntural para resolução
de problemas imediatos de equilíbrio e consolidação orçamental e não uma
medida que vise a sustentabilidade financeira da Caixa."646
Nesse caso, sendo ambos, a resolução conjuntural de
problemas imediatos de equilíbrio e consolidação orçamental e a sustentabilidade
financeira do sistema fins legítimos, e sendo a medida legislativa tomada idônea
para alcançá-los, caberia ao Poder Judiciário julgar inadequada a medida?
Há autores que entendem que sim. Cristina Queiroz, v.g.,
buscando influência no modelo estadunidense – cujo sistema (common law) exige
do juiz um papel naturalmente mais proativo, defende uma velada tese de
supremacia do Poder Judiciário ao pretender que a dúvida quanto à adequação e
necessidade da medida fulmine a medida legislativa. Essa tese funda-se na pré-
compreensão de que os Tribunais Constitucionais possuem tal legitimidade
democrática. Essa legitimidade – que mesmo nos Estados Unidos é contestada sob
o argumento de uma juristocracy – não consta das tradições democráticas do Brasil
e de Portugal e, mesmo de lege ferenda, que se adotasse o método alternativo
sugerido por Kelsen, não há certeza de que haveria um avanço ou retrocesso.647
Na mesma linha, José de Melo Alexandrino tenta equacionar
o problema proteção da confiança vs. liberdade de conformação do legislador, da
seguinte forma: 1) se a lei se aplica a situações jurídicas futuras, a liberdade do
legislador é plena; 2) se a lei apresentar retrospetividade, a liberdade do legislador
deve ser ponderada e in dubio pro legislador; 3) se a lei for retroativa, há
presunção relativa de inconstitucionalidade, que pode ser afastada pelo legislador
em razão de interesse público.648
Concordamos com essa proposta, com a ressalva de que ela
apenas deve incidir no juízo de aferição de inconstitucionalidade após

646 CANAS, Vitalino. Constituição prima facie: igualdade, proporcionalidade, confiança (aplicados ao
"corte" de pensões). Epública: Revista eletrônica de direito público, n°. 1, 2014. Disponível em:
<http://e-publica.pt/constituicaoprimafacie.html>. Acesso em: 3 mai. 2016, p. 26.
647 Kelsen previa a possibilidade de a Constituição conferir poderes legislativos aos juízes, mas já

reconhecia igualmente a perda de segurança jurídica que essa opção político-constitucional


encerraria. Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito…, cit., p. 175-6.
648 ALEXANDRINO, José de Melo. Direitos fundamentais..., cit., p. 86.
222

demonstrada a afetação de direitos ou de expectativas legítimas, tendo em vista


que a CRP não consagra a irretroatividade absoluta.
Ainda em relação à adequação da medida, um problema em
particular vem à tona, especialmente nos acórdãos da crise: é a que diz respeito ao
iter temporal entre a produção normativa e a apreciação jurisdicional.
Com efeito, pode ser que um ato normativo tenha nascido
proporcional, pois ninguém, tampouco o julgador – ou muito menos ele -, teria
condições de saber qual o melhor meio para se atingir um fim, ou qual o meio mais
adequado. Se o meio escolhido se mostrar impróprio no futuro, teria o julgador a
competência para declarar inconstitucional a lei?
Jorge Reis Novais entende que sim. Para o autor, uma
medida será suscetível de ser invalidada por inidoneidade ou inaptidão “quando os
seus efeitos sejam ou venham a revelar-se indiferentes, inócuos ou até negativos
tomando como referência a aproximação do fim visado (...).”649 Ou seja, o autor
imagina uma hipótese de condição resolutiva de validade. A norma nasce válida,
mas pode perder a validade se não se verificar sua idoneidade para atingir certo
fim.
Tal interpretação, porém, não se coaduna com a
discricionariedade legislativa. De fato, é inerente à atividade legiferante o
componente discricionário. Vale dizer, diante de um cenário contemporâneo à
produção legislativa, cabe ao legislador determinar meios que considera aptos
para se atingir um fim. A análise da constitucionalidade de uma lei deve considerar
se, no momento da legiferação, ela observou os limites formais e materiais
constitucionalmente previstos. Se a resposta for negativa, caberá ao legislador
revogar a norma ou se submeter à responsabilidade política pela manutenção de
uma medida sabidamente inadequada, e não ser ela invalidada pelo poder
jurisdicional.
Com efeito, em harmonia com esse modelo, o sistema
político positivado permite que, diante de uma dúvida acerca da observância de
tais limites, certos legitimados questionem se tais meios são aptos a atingir o fim
visado. Mas, se a prova da adequação depende da verificação de um facto com
termo certo, a natureza constitucionalmente vinculante da norma impede sua

649 NOVAIS, Jorge Rei. Princípios constitucionais estruturantes…, cit., p. 167-8.


223

inconstitucionalidade, pois a sanção de nulidade - um dos instrumentos afeitos à


segurança que o sistema jurídico encerra -, não pode por esta mesma razão
depender da verificação no plano fático de uma condição incerta. Já a natureza
também discricionária da atividade legislativa implica responsabilidade do
legislador, tema que refoge ao limite deste trabalho.650
Como exemplo, imagine-se uma lei prevendo a criação de um
tributo para proteção das casas de Portugal contra um terremoto que, segundo os
sismólogos, apresenta 99% de chances de se verificar. Caso o terremoto não
ocorra, deveria tal lei ser declarada inconstitucional? Parece-nos que não. Eventual
destino do dinheiro arrecadado e que não precisou ser utilizado é problema
diverso da discussão acerca da sua inconstitucionalidade ou não. 651
Por isso, na esteira do que alerta Virgílio Afonso da Silva, a
definição de adequação dada por Martin Borowski é a que melhor traduz o espírito
dessa (sub)máxima: "uma medida estatal é adequada quando o seu emprego faz
com que 'o objetivo legítimo pretendido seja alcançado ou pelo menos
fomentado'".652

3.3.5. O princípio ou subelemento da necessidade

Uma medida é necessária quando não houver outra que


satisfaça o fim pretendido com a mesma intensidade e que atinja com menor
intensidade o direito constitucional envolvido.653
Se, no plano da adequação, um certo “ônus” de provar o
interesse público é do legislador, aqui compete ao particular ou mesmo ao julgador
demonstrar a existência de medidas estatais mais ou igualmente adequadas para
se atingir o fim, com menor sacrifício àqueles direitos.

650 Sobre as diferentes responsabilidades que podem ser imputadas ao legislador, cf., dentre outros
LOMBA, Pedro. Teoria da responsabilidade política. Coimbra: Coimbra Editora, 2008; FERNANDEZ
FARINA, Federico. Responsabilidad politica. Revista Mexicana de Justicia. v.5, n.3, jul./sept, 1987. p.
149-62; ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 817 et
seq. CANOTILHO, JOAQUIM JOSÉ Gomes. Direito constitucional..., cit., p. 598; ROJAS, Marco Antonio
Castro. Los sujetos de resonsabilidad. Revista Mexicana de Justicia. v.5, n.3, jul./sept, 1987, p. 117.
651 Nesse sentido, observa Gonçalo de Almeida Ribeiro que não cabe ao Tribunal a função de

interferir nos juízos de prognose. RIBEIRO, Gonçalo de Almeida. O constitucionalismo dos


princípios. In: O tribunal constitucional e a crise: ensaios críticos. RIBEIRO, G. A.; COUTINHO, L. P.
(orgs.). Coimbra: Almedina, 2014, p. 94. Não foi encontrado nenhum caso na jurisprudência
brasileira em que uma lei tenha sido declarada inconstitucional por aplicação do princípio da
proporcionalidade, por inadequação superveniente.
652 BOROWSKI, Martin. La estructura..., cit., p. 197.
653 Cf. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional..., cit., p. 39.
224

O aspeto da necessidade da medida é bastante empregado


pelo TC para indagar o legislador quanto a alternativas para o combate à crise que
afetem menos as expectativas e direitos dos particulares, especialmente os direitos
prestacionais.
Ocorre que as matérias que têm mais recentemente ocupado
o TC em tempo de crise, como questões orçamentárias e previdenciárias,
revestem-se de uma complexidade tal que, qualquer tentativa de afastamento da
medida legislativa sob o argumento de ausência de necessidade, representaria um
comportamento ativista.
O TC, porém, no acórdão n.º 862/2013, em uma
manifestação ativista, inovou ao exigir que a medida estatal que pretende
estabelecer um corte de pensões, ainda que justificada pelo interesse público, deve
ser feita de modo gradual, sob pena de haver excesso injustificado da medida.654
Ou seja, para o Tribunal, a compatibilização entre o interesse
público do Estado em cortar pensões e as expectativas dos particulares se resolve
no parcelamento da medida legislativa. Assim, se em dez anos o valor do corte de
pensões atingir o nível máximo que era pretendido por ora, a medida já não será
inconstitucional.
Não se discorda, no plano político ou moral, que essa seja a
situação mais proporcional, razoável, equilibrada. Apenas não se concebe que tal
juízo deva ser feito pelo Poder Judiciário, pois, como já afirmado, não está esse
Poder autorizado constitucionalmente para fazer esse tipo de valoração.

3.3.6. A proibição de excesso ou vedação de afetação do núcleo essencial?

A proporcionalidade em sentido estrito, também chamada


de justa medida ou proibição de excesso, aparece na máxima da proporcionalidade
em sentido amplo como um "sopesamento entre a intensidade da restrição ao
direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental
que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva."655
O princípio é bem esclarecido por Jorge Reis Novais:
o alcance prático do princípio da protecção da confiança só é
delimitável através de uma avaliação ad hoc que tenha em conta

654 Cf. TC. Processo n.º 1260/13. Acórdão 862/13.


655 Cf. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional..., cit., p. 42.
225

as circunstâncias do caso concreto e permita concluir, com base


no peso variável dos interesses em disputa, qual dos princípios
deve merecer prevalência656

Ao contrário da adequação e da necessidade, em que se


verificam, respetivamente, se a norma (ou medida estatal) é proporcional à busca
pelo fim perseguido e à necessidade posta, ou seja, se as medidas vão, na mesma
razão, ao encontro da causa de sua adoção, na proporcionalidade em sentido
estrito, as "grandezas" comparadas apresentam uma relação de exclusão,
porquanto a intensidade de restrição de um direito deve ser proporcional à
intensidade de realização do outro direito.
Como já se pode notar, a proporcionalidade em sentido
estrito não se resume a um balanceamento de apenas essas duas variáveis. A
relação a ser aferida não pode se resumir apenas à aplicação antagônica dos
princípios em colisão.
De fato, se a intensidade de restrição de um direito se
conflita com a intensidade de realização do outro direito, a relação de
proporcionalidade não se limita ao balanceamento de ambas as "intensidades", que
representam dimensões ou grandezas parciais dos objetos balanceados. Ao lado
dessas grandezas, a intensidade de não-realização do outro direito, bem como a
intensidade de não-restrição, também comportam balanceamento, bem como o
peso relativo de ambos os direitos.
Assim como se dá na aferição de proporcionalidade
geométrica ou física, com base em diversas grandezas (peso, largura, altura,
cumprimento, densidade, etc.), também a aferição de proporcionalidade entre
medidas políticas ou jurídicas e necessidades ou condições fáticas, bem como entre
atos estatais, deveria levar em consideração a diversidade de grandezas que
também estão neles presentes.
Tome-se o exemplo da aplicação do princípio da confiança
ao caso de instituição de contribuição previdenciária dos funcionários públicos
aposentados. A aferição da proporcionalidade da medida em sentido estrito levará
em conta essencialmente duas grandezas: as legítimas expectativas dos particulares
na manutenção de seu valor de pensão de um lado e o interesse público no
equilíbrio das finanças públicas do outro.

656 NOVAIS, Jorge Rei. Princípios constitucionais..., cit., p. 264-7. Grifo do autor.
226

Com efeito, na aferição da justa medida, portanto, o interesse


público e as legítimas expectativas dos particulares ocupam os dois lados da
balança, desempenhando o julgador (ou legislador) o mesmo papel metafórico
exercido pela força gravitacional.
Ocorre que, diversamente desta, em que se conhecem as
relações de massa e de aceleração como determinantes do peso de cada matéria
dos objetos colocados em cada lado da balança, bem como sua forma e dimensão,
ditadas pelas leis da física, o interesse público e as legítimas expectativas dos
particulares não conhecem forma, tamanho, conteúdo e peso ditados por nenhuma
lei social com a mesma precisão daquelas.657
A forma na física tem relevo para determinação do ponto de
gravidade, mas não altera o peso. Assim, uma bola de plástico com 1 quilograma de
massa terá o mesmo peso que um retângulo com 1 quilograma de massa. Na
analogia feita, a forma corresponde à difusão dos interesses. Um interesse difuso
ou um interesse mais determinável não devem ter pesos diferentes, embora o
intérprete, por vezes, confunda peso e forma. O interesse público, assim, possui
uma forma muito difusa quanto ao valor não monetário de tal interesse, o que se
verifica também com a forma difusa das expectativas intrínsecas dos particulares.
Já o tamanho, assim como na física, poderá ser comparado
quando se estiver diante da mesma matéria. Nesse sentido, os valores monetários
envolvidos na economia estatal, assim como os percentuais e valores patrimoniais
retirados dos particulares, apresentam um tamanho determinável.
O conteúdo na metáfora diz respeito, na física, às
propriedades da matéria envolvida. Dessarte, o interesse público na recuperação
financeira do país tem suas propriedades distintas das expectativas dos
particulares na manutenção do seu patrimônio.
Finalmente, o peso. Na física, este é uma propriedade
relacional entre conteúdo da matéria e força (no caso, gravitacional). Se a força for
única, o peso será determinado apenas pelo conteúdo da matéria. Por outro lado,
só será possível conhecer o exato peso de uma matéria se única for a força sobre
ela projetada. Na transposição alegórica, o peso é o valor depositado sobre o

657 Talvez isso explique o facto observado por José de Melo Alexandrino quanto às “distinções
omissas e insuficientemente recortadas pelo TC.” Cf. ALEXANDRINO, José de Melo. Jurisprudência da
crise..., cit., p. 67.
227

conteúdo do interesse público e da expectativa legítima. Assim, só seria possível


comparar o peso de ambos se o valor (força moral ou política) sobre ambos for o
mesmo, o que é raro, se não impossível de acontecer.
A determinação de tais grandezas – posto que inexistente em
lei natural ou social – pode ser realizada política ou juridicamente pelo detentor do
poder soberano, por intermédio dos representantes legitimados para fazê-lo. Nos
Estados democráticos de direito de orientação civil law, entre os quais Brasil e
Portugal, o poder pertence ao povo e o órgão legitimado para representar sua
vontade indiretamente é comumente o Poder Legislativo.
O órgão encarregado do poder jurisdicional não possui,
especialmente no sistema civil law, legitimidade democrática para proceder à
determinação das grandezas que são objeto de sopesamento. Assim, a vinculação
do legislador pelo princípio da justa medida nesses ordenamentos não se pode dar
por grandezas determinadas pelo poder jurisdicional.
Tome-se como exemplo o caso do corte das pensões em
Portugal. Os fundamentos econômicos apresentados pelo governo são objeto de
críticas por economistas e especialistas de diversas áreas, como ocorre em toda
limitação de direitos sociais. A par do argumento de controle das finanças públicas,
há os que defendem maior injeção de dinheiro no mercado interno, fomentando o
consumo e, por conseguinte, aquecendo a economia local, o que pode ser feito
mantendo-se as pensões no mesmo patamar. O meio “corte de pensões” para se
atingir o fim “saída da crise econômico-financeira” está, assim, à volta de tais
circunstâncias (grandezas). Por outro lado, o direito restringido “direito à
manutenção do valor das pensões” também está cercado de grandezas sopesáveis,
como as legítimas expectativas dos particulares, e o próprio direito das futuras
gerações. Somam-se a essas circunstâncias a necessidade de opções políticas
excludentes, na medida em que, precisando cortar gastos para equilíbrio
orçamentário, cabe ao governo e legislador escolher o que deve ser cortado, e
quem será atingido.
Nesse sentido se manifestou o TC:
Não tenho dúvidas de que muitas das objeções feitas no
Acórdão quanto à solução encontrada pelo legislador são
razoáveis e de boa-fé apresentadas. Mas o ponto é
justamente esse: perante a existência de diferentes
conceções razoáveis quanto ao que seja, quanto a essa
228

reforma, justo ou injusto – e perante a discussão aberta no


espaço público entre essas diferentes conceções razoáveis –
é ao poder legislativo, e não ao poder judicial, que cabe
tomar a decisão quanto ao caminho a seguir.658

Essa atividade de sopesamento, que constitui o núcleo da


justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito, pertence não ao Direito,
mas à política. O direito (posto) é resultado da atividade prévia de sopesamento,
consubstanciando metodologia pressuposta do legislador, e não critério de
aferição de proporcionalidade ou constitucionalidade de ato estatal pelo poder
jurisdicional.
Nada obstante, há um limite na determinação das grandezas
ponderáveis que pode e deve ser objeto de controle pelo poder jurisdicional – o
núcleo ou conteúdo essencial do direito.
A preservação do conteúdo essencial dos direitos
fundamentais está prevista expressamente em algumas Constituições modernas,
especialmente inspiradas na Lei Fundamental de Bona (art. 19, nº2), mediante
diversas fórmulas textuais, como a de Portugal (art. 18, n.º 3), da Espanha (art. 53,
n.º 1), da Polônia (art. 31. n.º 3), da Hungria (art. I, n.º 3), da Eslovênia (art. 15), da
Albânia (art. 17, n.º2) e da Coreia do Sul (art. 37, n.º 2).
A despeito dessa incorporação cada vez mais recorrente, as
constituições não definem o que seria esse "conteúdo essencial", o que levou à
criação de teorias a respeito.
Há basicamente duas posições. Em primeiro lugar, os que
defendem a existência de um núcleo absoluto, intangível, cuja afetação anularia o
próprio direito.659 Segundo Virgílio Afonso da Silva, tal conteúdo pode ser estático
ou dinâmico, mudando-se no curso do tempo.660 Outra corrente entende que o
núcleo essencial é relativo, sendo encontrado mediante juízo de ponderação.661
Discordamos dessa segunda posição, embora entendamos
que ela visa a corrigir as distorções da própria legislação.

658 Processo n.º 819/2014. Acórdão 575/2014.


659 Cf. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais..., cit., p. 282. MIRANDA, Jorge.
Manual de direito constitucional..., t. IV, cit., p. 341.
660 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2.

ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 188 et seq.


661 Cf. FREITAS, Luiz Fernando Calil de. Direitos fundamentais: limites e restrições. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2007, p. 196-7.


229

De fato, é elementar que pode haver situações em que ambos


os núcleos essenciais de direitos fundamentais entrem em conflito, sendo inviável
a prevalência de ambos. É o que ocorre, v.g., quando se pondera o direito à vida do
feto e o direito à liberdade da mulher. Qualquer dos critérios de prevalência levará
à afetação de um núcleo essencial. Se a decisão política optar pela liberdade de
escolha da mulher, haverá a restrição do núcleo essencial do direito à vida do feto.
Por outro lado, se a decisão considerar que a vida deva prevalecer, será atingido o
núcleo essencial do direito à liberdade da mulher.
Ocorre que diante das fórmulas usualmente contidas nos
textos constitucionais citados, especialmente o de Portugal, apenas se considera a
hipótese de uma restrição pura de direitos fundamentais, ausente a situação de
colisão de dois direitos fundamentais.
Consoante dispõe o artigo 18.º, 3, da CRP, "as leis restritivas
de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não
podem ter efeito retroativo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo
essencial dos preceitos constitucionais."662
Observe-se que a fórmula adotada pelo constituinte
português, ao contrário dos demais exemplos constitucionais, apresenta até
mesmo maior precisão, ao não se limitar em dizer que o legislador não pode afetar
o conteúdo essencial dos preceitos constitucionais, mas que igualmente não pode
afetar sua extensão e alcance.663
Isso quer dizer que se de um dos lados da balança apenas
um núcleo essencial estiver sendo atingido, a medida pode ser considerada
desproporcional. Imagine-se o exemplo do direito às pensões. Conquanto se
discuta se há ou não direito adquirido ao valor da pensão664, o facto é que o
conteúdo essencial do direito à pensão não é seu valor, mas o direito a uma pensão

662 Grifamos.
663 A Constituição espanhola adota em seu artigo 53, n.º 1, a seguinte fórmula: "(...)Sólo por ley, que
en todo caso deberá respetar su contenido esencial, podrá regularse el ejercicio de tales derechos y
libertades". A Lei Fundamental de Bona dispõe em seu artigo 19, n.º 2, que "Em nenhum caso, um
direito fundamental poderá ser violado em sua essência". Já a Constituição da Coréia do Sul prevê
em seu art. 37, n.º 2, que, mesmo quando for necessária a restrição, nenhum aspeto essencial da
liberdade ou direito deve ser violado.
664 Cf. O TC entende haver direito adquirido inclusive ao valor da pensão. Posição distinta do STF.

Cf. TC. Processo n.º 1260/13. Acórdão n.º 862, de 19 de dezembro de 2013 e STF. ADI 3128/DF.
Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Cesar Peluso. J. 18/08/2004.
230

compatível com o mínimo existencial naquela sociedade específica. Do outro lado


da balança, buscar-se-á proteger o equilíbrio das contas públicas, que igualmente
apresentará um limite, um conteúdo essencial, o qual pode ser traduzido na
solvência financeira do Estado. Desse modo, se, dos dois lados da balança forem
colocados os dois interesses em jogo, a solvência financeira do Estado e o valor da
pensão, terá o legislador a discricionariedade de optar por estabelecer um corte
nas pensões até o mínimo existencial. O valor escolhido pelo legislador, desde que
legítimo, adequado e necessário o ato estatal, não poderá ser sindicado
jurisdicionalmente. Se, pelo contrário, o ato estatal, a pretexto de evitar a solvência
financeira, atingir o conteúdo essencial do direito à pensão, cortando
completamente as pensões, sem estar em risco a solvência financeira do Estado no
outro lado da balança, a medida é excessiva, e pode ser declarada inconstitucional
pelo poder jurisdicional.
A caracterização do núcleo essencial, por sua vez, pode se
mostrar difícil no caso concreto, por duas razões: a subjetividade na avaliação do
que configura o mínimo existencial e sua elasticidade.
Observe-se o exemplo do conflito entre a liberdade de
imprensa e o direito à privacidade. Uma lei que autoriza a imprensa a divulgar
imagens dos cidadãos será desproporcional na medida em que o núcleo essencial
do direito à privacidade for violado - a intimidade. Todos têm direito à intimidade,
podendo aqui ser definida como o ambiente de controle exclusivo do indivíduo. Tal
ambiente será definido pelo próprio indivíduo, mediante padrões definidos em sua
própria vida, o que torna o núcleo essencial de seu direito elástico e somente
delimitável diante das circunstâncias fáticas concretas. Tal elasticidade, porém,
não implica necessariamente uma complexidade. O indivíduo, por exemplo, que
vive com discrição, sem postar fotos ou vídeos pessoais em redes sociais públicas,
certamente não pode ter sua imagem capturada em uma praia divulgada
publicamente por um veículo de imprensa. O mesmo não se diz de um ator famoso
que constantemente posta fotos na praia em suas redes sociais com acesso
irrestrito ao público. Já um político que não mistura sua vida pessoal com sua vida
231

pública, pode ter sua imagem em eventos públicos divulgados, sem que isso atinja
o núcleo essencial de seu direito à intimidade.665
Isso ocorre porque o núcleo essencial do direito também
depende das circunstâncias concretas. O próprio mínimo existencial, como núcleo
essencial universal de direitos a prestações pecuniárias do Estado referentes à
segurança ou assistência social, é assaz elástico e subjetivo no tempo e no espaço.
Do mesmo modo que o núcleo essencial do direito à intimidade do melhor jogador
de futebol do mundo é diverso do núcleo essencial do direito à intimidade de um
cidadão comum, o mínimo existencial para um cidadão português de 2018
certamente é maior que em 1980 e que o mínimo existencial para um cidadão de
países mais pobres.
A despeito de sua relatividade, as circunstâncias concretas
podem oferecer elementos objetivos a serem considerados pelo juiz para definição
do que venha a ser reconhecido como mínimo existencial ou núcleo essencial do
direito. Uma decisão jurisdicional declarando que certa medida afeta o núcleo
essencial de um direito não envolve juízo discricionário de sopesamento entre dois
interesses excludentes, como se dá na ponderação defendida pela maior parte dos
autores. Nesse caso, limita-se o juiz a apontar um excesso flagrante, em casos mais
bem delimitados, deixando ainda aberta grande margem de liberdade para o
legislador optar por soluções que não afetem apenas um dos núcleos essenciais
envolvidos.

3.3.7. A ausência, inadequação ou ilegitimidade do interesse público ou da


expectativa do particular

Alguns autores defendem a existência de outros critérios a


serem empregados para aferição de proporcionalidade de um ato estatal, como a
juridicidade e legitimidade do fim pretendido.666
Se considerada um princípio autônomo, a adequação do fim
perseguido pelo ato estatal poderia ter a juridicidade ou legalidade do fim como
subcritério.

665 No mesmo sentido: SCHLINK, Bernhard. Abwägung im Verfassungsrecht. Berlin: Duncker &
Humblot, 1976, p. 76 et seq.
666 Cf. SCHLINK, Bernhard. Proportionality. In: ROSENFELD, Michel; SAJÓ, András (eds.). The oxford

handbook of comparative constitutional law. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 718 et seq.
232

Com efeito, como já foi dito em relação à proibição do


excesso, não se pode afirmar que o critério da ponderação nunca possa ser
utilizado pelo poder jurisdicional. Tem este também o dever de garantir a proteção
constitucional diante da ilegitimidade do interesse público ou mesmo de sua
inadequação ou inexistência manifesta ou presumida, do outro lado da balança, das
expectativas legítimas dos interessados.
Diversa da hipótese em que a comparação entre valores de
forma, conteúdo e peso diversos colocam o juiz num campo de insegurança
jurídica pelo não domínio, com precisão, dos elementos em balanceamento, há
situações em que o julgador pode afastar a constitucionalidade da medida, com
base na exclusão de um dos pesos.
Isso pode se dar quando identificada a ausência de
quaisquer dos interesses,667 ou mesmo sua inadequação ou ilegitimidade. Tal é o
caso de o interesse se mostrar inadequado para se atingir o fim pretendido, ou
mesmo se tratar de um interesse ilegítimo juridicamente.
Não é o que se dá, por exemplo, quando o Tribunal passa a
contestar a eficácia de determinadas medidas tomadas pelo legislador.
Outro argumento, mais recorrente nos acórdãos da crise em
Portugal, é o interesse público de resguardar os interesses particulares
momentaneamente atingidos. No Acórdão 396/2011, ponderou o TC que
à situação de desequilíbrio orçamental e à apreciação que
ela suscitou nas instâncias e nos mercados financeiros
internacionais são imputados generalizadamente riscos
sérios de abalo dos alicerces (senão, mesmo, colapso) do
sistema económico-financeiro nacional, o que teria também,
a concretizar-se, consequências ainda mais gravosas, para o
nível de vida dos cidadãos.668

667 É o que considerou o TC nos acórdãos 303/90 e 141/02. No primeiro acórdão, afirmou o TC que
a medida estatal suspendia direitos dos particulares, “sem que se anteolhe a existência de situação
de interesse geral ou conformação social de suficiente peso que pudessem tornar previsível ou
verosímil tal suspensão. Por isso se depara uma inadmissível (porque irrazoável,
extraordinariamente onerosa e excessiva) afectação levada a cabo pela norma sindicada.” Cf.
Processo n.º 129/89. Acórdão 303, de 21 de novembro de 1990.” O mesmo se deu no Acórdão
141/02: “Por outro lado, não se descortinam – nem sequer foram invocados – quaisquer motivos
que pudessem aqui «justificar» a adopção da medida com efeitos retrospectivos, nomeadamente
particulares razões de interesse público ou uma qualquer alteração objectiva e concreta das
condições de trabalho do pessoal afectado».” Cf. Processo n.º 198/92. Acórdão 141/02.
668 Processo n.º 72/11. Acórdão n.º 396/11.
233

Tal situação de reflexividade autoriza o julgador, na fórmula


de pesos, a atrair para o outro lado da balança o peso do interesse particular. De
fato, se a medida se destina a evitar, no futuro, uma supressão total do direito
envolvido, e houver sérios riscos dessa supressão, mais autorizado está o
legislador a promover a intervenção.
234

PARTE 4 – A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS VINCULANTES DO LEGISLADOR AOS


DIREITOS SOCIAIS EM TEMPOS DE CRISE ECONÔMICO-FINANCEIRA: O CASO
DAS REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS E DO CORTE DE PENSÕES

Como tudo o que é pedido é, por isso, um bem,


não deve o princípio guia da filosofia ética (desde
que todos os pedidos não possam ser atendidos
conjuntamente nesse pobre mundo) ser capaz de
simplesmente atender, na maioria das vezes, o
maior número possível de demandas? 669

Cada vez mais hoje em dia, felizmente não na


generalidade dos países, a Constituição é aquilo
que os juízes constitucionais querem que ela
seja.670

O texto respira o ar do seu contexto.671

669 JAMES, William. The moral philosopher and moral life. In: The will to believe: and other essays in
popular philosophy. Mineola: Dover, 1956, p. 205.
670 URBANO, Maria Benedita. A jurisprudência da crise no Divã. Diagnóstico: bipolaridade? In: O

tribunal constitucional e a crise: ensaios críticos. RIBEIRO, G. A.; COUTINHO, L. P. (orgs.). Coimbra:
Almedina, 2014, p. 23
671 Frase do Presidente do Tribunal Constitucional, na intervenção de abertura [inédita], feita em 23

de Abril de 2014 , no Seminário Avançado sobre Mutações Constitutionais, realizado na Faculdade


de Direito da Universidade de Lisboa e citado por ALEXANDRINO, José de Melo. Jurisprudência da
crise. Das questões prévias às perplexidades. In: O tribunal constitucional e a crise: ensaios críticos.
RIBEIRO, G. A.; COUTINHO, L. P. (orgs.). Coimbra: Almedina, 2014, p. 56.
235

O Estado social é um Estado progressivamente prestacional,


ou seja, o aumento crescente da prestação de direitos sociais vai até onde encontrar
limites. Como os direitos sociais - muito mais que os direitos de liberdade - rendem
mais votos na disputa por cargos políticos, em períodos de prosperidade econômica a
demanda por prestações de moradia, lazer, saúde, remunerações e pensões encontra
eco na vontade governamental. As leis econômicas, por outro lado, são ditadas por
causas "invisíveis", enfrentando a Economia avanços e retrocessos cíclicos.
Sendo o Direito estático, nos momentos de crise econômico-
financeira, em que se verifica a diminuição da receita orçamental do Estado, ocorre,
no máximo, um "congelamento" na progressão dos direitos sociais, ainda que os
recursos financeiros disponíveis para atender aos direitos sociais tenham diminuído,
não apenas se mantido "congelados".
A ausência de cláusulas dinâmicas, como normas que
estabelecem uma vinculação entre o aumento da prestação de direitos sociais e a
arrecadação estatal, leva inexoravelmente ao estabelecimento de uma previsível
contradição dialética entre o Direito estático e a Economia dinâmica.
Essa contradição criada entre Direito e Economia atinge um
ponto de tensão máximo quando uma norma constitucional rígida (porque
considerada imutável pela ordem jurídica constituída) proíbe expressamente a
limitação ou supressão de direitos sociais prestacionais, a despeito de o Estado não
possuir recursos financeiros para suportá-los.
O acirramento dessa tensão geraria um "antagonismo" (um
rompimento da ordem jurídica, por prevalência da infraestrutura política e
econômica sobre a superestrutura jurídica), criando um cenário propício para uma
revolução, em quaisquer dos sentidos do termo.
Tal situação se evita com recursos oferecidos pelo próprio
Direito que tendem, em um processo de harmonização, concretizado por técnicas
lógico-jurídicas, a preservar tais direitos sociais de forma reduzida, no limite
aceitável pela ordem econômico-financeira.
No cerne desse processo de harmonização, encontram-se os
princípios constitucionais limitadores da atividade do legislador.
Se o Direito é, como já afirmado, estático, mas a Economia,
que constitui pressuposto de realização dos direitos sociais, é dinâmica, as técnicas
236

de harmonização dessa relação dialética devem conter um componente flexível e


igualmente dinâmico.
Tal componente terá de integrar, de algum modo, a estrutura
lógico-argumentativa de aplicação desses princípios. Percebe-se, por isso, que na
aplicação de princípios como a proporcionalidade e a segurança jurídica, há um
componente de razoabilidade que envolve, em última instância, uma ponderação que
coteja, muitas vezes de forma velada, o Estado da crise econômica, financeira ou
social, evitando-se o rompimento da ordem constituída.
É justamente a flexibilidade desse componente presente em
tais princípios limitadores da discricionariedade legislativa que pode imprimir à
interpretação jurídica em tempos de crise econômico-financeira a efetividade
necessária para salvaguardar, ao mesmo tempo, o Estado e os interesses da
coletividade na satisfação dos direitos sociais constitucionalmente previstos.
Nesta última parte, portanto, analisar-se-á a aplicação
especial de tais princípios vinculantes do legislador em tempos de crise econômica ou
financeira do Estado social, a partir do caso das reformas previdenciárias.
237

4.1. OS SISTEMAS PREVIDENCIÁRIOS NO BRASIL E EM PORTUGAL - UMA


ANÁLISE COMPARADA

Diante de uma econômico-financeira, os primeiros direitos a


serem atingidos são os direitos prestacionais. Nesse grupo, dada a extensão de seu
atendimento - praticamente universal -, as pensões ou aposentadorias672 acabam
sendo o alvo principal das reformas, pois, com pequenas reduções individuais,
logra-se maior economia global. Desse modo, as reformas previdenciárias
constituem excelente campo de análise concreta da aplicação dos princípios
vinculantes do legislador em matéria de direitos sociais.
Convém, desse modo, analisar o entendimento
jurisprudencial e doutrinário em Portugal e no Brasil, países que passaram por
crises econômico-financeiras recentes, a fim de se comparar as soluções dadas
mediante o recurso a tais princípios.
A segurança social apresenta fundamentos jurídicos e
estrutura diversos nos diferentes Estados. No Brasil e em Portugal, ela decorre
diretamente da Constituição, ao passo que, em outros países, ela decorre de
interpretações fundadas na conceção de dignidade humana ou socialidade.673
Dada sua semelhança estrutural, a análise comparada entre
as reformas nos sistemas português e brasileiro e a correspondente resposta
jurisprudencial, permitirá uma melhor compreensão da distinção de aplicação dos
princípios vinculantes do legislador em ambos. Sem a pretensão de formular uma
tríade comparativa, contudo, mostra-se oportuno fazer um breve cotejo das
recentes medidas adotadas na Itália e do posicionamento de sua corte
constitucional.
Os sistemas de segurança social no Brasil e em Portugal são,
de fato, muito semelhantes.674 Tal semelhança, todavia, não decorre da
Constituição. No Brasil, as regras gerais, incluindo-se as fórmulas de cálculo dos
benefícios e as idades para aposentação, estão expressamente previstas no texto

672 Cumpre observar que o termo pensão no Brasil refere-se apenas ao direito previdenciário de
percepção mensal de valores, em decorrência da morte do titular.
673 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. O direito fundamental à pensão de reforma em situação de emergência

financeira. E-pública - Revista Eletrônica de Direito Público, n. º 1, 2014, p. 3.


674 O Brasil emprega o termo seguridade social, ao passo que Portugal emprega o termo equivalente

segurança social. Cf. art. 194 et seq. da CRFB e art. 63 da CRP.


238

constitucional.675 Já, em Portugal, a disciplina do tema em nível constitucional está


restrita ao artigo 63.º, que se limita a indicar princípios gerais.676
Na CRFB-88, a seu turno, a "segurança social"677
compreende não apenas as aposentadorias e assistência social, mas também a
saúde. A previdência, a exemplo de Portugal, estrutura-se em dois sistemas: o
privado e o público. O sistema privado é unificado, apresentando caráter
contributivo e universal, sendo obrigatório para todos os trabalhadores não
abrangidos pelo sistema público, que devem contribuir com um percentual de um
salário-base variável por tipo de filiação. Já o sistema público é oferecido aos
funcionários públicos dos três níveis federativos: federal, municipal e estadual ou
distrital. Cada Estado ou Município tem a faculdade, não obrigatoriedade, de gerir
um sistema específico de previdência, tendo pouca liberdade de fixação de regras
diversas para aposentadoria de seus funcionários. Caso não institua um regime de
previdência de acordo com as condicionantes constitucionais, seus trabalhadores
vinculam-se ao sistema privado.
Em ambos, há uma divisão entre um sistema público e um
sistema privado de pensões. Por uma série de razões, o sistema público confere
mais vantagens aos seus destinatários, como valores maiores de pensões,
requisitos mais favoráveis para sua obtenção, dentre outros. Muitos fatores
explicam essa diferença, como o número de destinatários do sistema público, bem
menor que o do sistema privado, a maior proximidade dos funcionários públicos
com o governo e a maior qualificação, em média, dos trabalhadores do serviço
público. Não obstante, a conscientização social tem gerado pressões

675 Cf. art. 40 e art. 202 da CRFB.


676 CAPÍTULO II - Direitos e deveres sociais - Artigo 63.º -
Segurança social e solidariedade
1. Todos têm direito à segurança social.
2. Incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e
descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações
representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários.
3. O sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e
orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de
meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.
4. Todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e
invalidez, independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado.
677 A CRFB-88 adota a expressão "seguridade social". CAPÍTULO II - DA SEGURIDADE SOCIAL -

SEÇÃO I - DISPOSIÇÕES GERAIS


Artigo 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos
Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência
e à assistência social.
239

governamentais lastreadas no princípio da isonomia, o que tem levado a um


processo gradual, nos dois países, de convergência entre os sistemas público e
privado.
Com efeito, assim como em Portugal, um terceiro passo após
a afetação dos direitos em formação foram os cortes “diretos” ou “indiretos” das
pensões. No Brasil, os cortes assumiram a “forma” de “tributos", como já visto.
Tais reformas levaram a questionamentos perante as cortes
constitucionais de ambos os países, defendendo, dentre outros aspetos, a
extrapolação dos limites da discricionariedade do legislador e do Poder
Constituinte derivado, o que se analisa a seguir.

Todas elas observaram o direito adquirido daqueles que já


haviam cumprido todos os requisitos legal e constitucionalmente previstos para o
exercício de sua aposentadoria, pelas regras até então vigentes. Dada a
controvérsia acerca do alcance da proteção constitucional do direito adquirido em
face do próprio Poder Constituinte derivado, ambas as emendas trouxeram
cláusula expressa de respeito a esse princípio.678 Não obstante, tais emendas não
contemplaram o direito adquirido às regras de aposentação para aqueles que, até a
data de sua promulgação, ainda não tinham cumprido todos os requisitos. Ou seja,
tais reformas não preservaram expressamente os direitos em formação (ou
expectativas de direito).

Em sua atuação, porém, o Supremo Tribunal Federal no


Brasil e o Tribunal Constitucional em Portugal enfrentaram fortes críticas pelas
decisões tomadas em relação às reformas previdenciárias e aos cortes
remuneratórios. No caso português, as críticas foram objeto de obra específica a
que se seguiram contra-críticas, também mediante publicação.679
As críticas resumem-se à ausência de quatro deveres que
devem ser observados por qualquer Tribunal Constitucional, no exercício da
função judicante e de intérprete da Constituição: clareza, coerência, completude e
técnica argumentativa.

678Cf. art. 3º da EC n. 20/1998 e art. 3º da EC n. 41/2003.


679Em Portugal cf. NOVAIS, Jorge Reis. Em defesa do tribunal constitucional: resposta aos críticos.
Coimbra: Almedina, 2014; e QUEIROZ, Cristina. O tribunal constitucional e os direitos sociais.
Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 101 et seq.
240

Sua não observância resulta em deficiências técnicas no


exercício da prestação jurisdicional, de que resulta um ato inconstitucional, além de
dar margens a desconfianças sobre os reais motivos que levam os juízes a adotar
uma tal posição. É o ônus de quem defende uma interpretação aberta, sem método,
apenas assentada numa base axiológica de justiça.
A seguir, tais críticas serão analisadas construtivamente
considerando as pré-compreensões já adotadas.
241

4.2. AS REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS NO BRASIL E O POSICIONAMENTO DO


STF

No Brasil, a preocupação com os altos gastos do Estado com


direitos sociais previdenciários materializa-se num processo que remonta a 1998.
Num cenário de crise econômica crônica, que o país tentava superar após a
consolidação do regime democrático, afirmado especialmente após as eleições
presidenciais de 1994, teve início as discussões para a reforma previdenciária.
O país tinha alta dívida pública, sendo forçado a contrair
empréstimos junto ao FMI, o qual, em contrapartida, passou a exigir uma série de
reformas estruturais no Brasil, dentre as quais, uma reforma do sistema
previdência.

4.2.1. A reforma previdenciária de 1998

Nesse cenário de "crise", aprovou-se, em 1998, a EC nº


20/1998, instituindo um sistema previdenciário no setor público680, de caráter
contributivo, bem como modificações no valor das pensões, forma de cálculos e
tempo de serviço para aposentadoria, tanto para o setor público, quanto para o
privado.

4.2.2. A tentativa de tributação das aposentadorias por meio da Lei n.


9.783/99

Além da grande reforma institucional promovida pela


Emenda n. 20 à CRFB-88, tentou o governo federal brasileiro instituir uma
contribuição previdenciária definitiva dos servidores inativos do governo federal,
por meio da Lei n. 9.783/99, algo similar à Contribuição Extraordinária de
Solidariedade – CES, criada pela Lei n.º 55-A/2010, em Portugal.
Contra a referida Lei, o Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil ajuizou a ADI 2010/DF, em 2002, invocando, dentre outras
questões, ofensa ao direito adquirido.

4.2.2.1. Mens legislatoris

680Até então, os funcionários públicos não possuíam um sistema de previdência. Após atingirem
idades e tempo de serviço mínimos previstos na legislação, os funcionários eram "inativados"
continuando a receber a mesma remuneração a que tinham direito enquanto eram ativos, salvo nas
hipóteses de "aposentadoria" proporcional, em que recebiam na "inatividade" um valor
proporcional ao tempo de serviço.
242

O STF julgou inconstitucional a contribuição, empregando a


mens legislatoris e a interpretação literal do texto constitucional que menciona
expressamente “servidores titulares de cargos efetivos” o que excluiria, a contrario
sensu, os servidores inativos, sem adentrar o problema do direito adquirido.
Apenas um dos julgadores, o Min. Sepúlveda Pertence, abordou o problema do
direito adquirido, mas para desconsiderá-lo, ao fundamento de que não seria
necessário entrar no mérito desse princípio, o que “poderia levar a invocar
questões mais complexas.”681

4.2.2.2. O possível recurso ao princípio da proteção da confiança e ao direito


adquirido

Mas seria possível ao Brasil recorrer à segurança jurídica, ao


direito adquirido ou à proteção da confiança, caso a mens legislatoris fosse a
tributação dos inativos?
Como deixou transparecer o relator da ADI 2010/DF, a
questão do corte de pensões pode ser vista por diversos prismas. Sob o direito
tributário, que se sujeita aos princípios inerentes a essa dogmática, tal qual o
princípio da vedação de confisco e unicidade tributária, também observada na
jurisprudência análoga em Portugal682. Sob o foco do direito de propriedade, tal
qual aplica o direito alemão683, a matéria também poderia ser resolvida em termos
de expropriação ou não do patrimônio. E, sob o aspeto da dogmática constitucional,
a questão poderia se resolver mediante o recurso à proteção constitucional do
direito adquirido.684
O critério da proteção da confiança assumiria uma função
subsidiária, podendo ser tal princípio invocado, como em Portugal, quando outras
projeções do princípio da segurança jurídica não conferirem uma proteção
expressa, pois todos decorrem do mesmo princípio estruturante do Estado de
direito.

4.2.3. A segunda reforma: o contorno da vinculação do legislador pela


(des)vinculação do poder constituinte derivado

681 Cf. ADI 2010/DF. Acórdão.


682 Acórdãos 187/2013, 862/2013 e 575/2014.
683 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. O direito fundamental à pensão…cit., p. 11-2.
684 Ao contrário de Portugal, onde o TC entendeu que o corte das pensões poderia violar o direito

adquirido, mas não a proteção da confiança. Cf. Acórdão 862/2013.


243

A reforma de 1998 ainda foi tímida, tendo sido


complementada cinco anos depois, pela EC n. 41/2003, objetivando uma
convergência entre os regimes público e privado.
Tendo sido "derrotado" no plano jurídico, o governo
brasileiro contornou eventual discussão acerca da constitucionalidade de lei que
tributava as pensões com a promulgação da Emenda Constitucional n. 41/2003, a
qual previu, em seu art. 4º, a contribuição dos inativos.685
Em face da EC n. 41/2003, a Associação Nacional dos
Procuradores da República (entidade considerada legitima para questionar a
constitucionalidade de leis ou de emendas à Constituição) ajuizou a ADI 3128/DF,
questionando especificamente a instituição da contribuição dos inativos. Dentre
suas alegações, estava a de que a EC n. 41/2003 violaria a garantia individual do
direito adquirido previsto no artigo 5, XXXVI, da CRFB, bem como o disposto no
artigo 60, §4º, IV, que dispõe que não será objeto de deliberação proposta de
emenda à constituição tendente a abolir direito fundamental. 686
Segundo a entidade, o disposto no art. 5º, XXXVI, da CRFB, ao
mencionar que a lei não retroagirá para alcançar o direito adquirido, adota a
acepção do termo lei como a de qualquer ato introdutor de normas no
ordenamento, o que inclui as emendas à Constituição. 687 O Congresso Nacional, em
sua contestação, alegou que descaberia invocar a proteção do direito adquirido em
face de emenda constitucional.
Entendeu o STF, por maioria, que a contribuição dos inativos
deveria ser analisada à luz dos princípios próprios do direito tributário e que,

685 Dispõe o referido art. 4.º: Os servidores inativos e os pensionistas da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, em gozo de benefícios na
data de publicação desta Emenda, bem como os alcançados pelo disposto no seu art. 3º,
contribuirão para o custeio do regime de que trata o art. 40 da Constituição Federal com percentual
igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos.
Parágrafo único. A contribuição previdenciária a que se refere o caput incidirá apenas sobre a
parcela dos proventos e das pensões que supere:
I - cinqüenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de
previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os
pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II - sessenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de
previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal, para os servidores inativos e os
pensionistas da União.
686 ADI 3128/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Cesar Peluso. J. 18/08/2004.
687 Ibidem.
244

desse modo, não haveria que se falar em direito adquirido.688 O acórdão invocou
dois pontos diversos: em primeiro lugar, a questão da limitação do Poder
Constituinte derivado ao direito adquirido ou à proteção da confiança e, em
segundo lugar, a existência ou não de direito adquirido à pensão.
Apenas os Ministros Ayres Brito, Carlos Veloso e Celso de
Melo entenderam que a Emenda Constitucional havia violado o direito adquirido.689
Quanto à questão do direito adquirido à pensão, o Pleno do
STF não reconheceu sua possibilidade, mas a questão não foi tratada de modo
uniforme pelos Ministros.
Eros Grau e Gilmar Mendes, v.g., analisaram a questão sob a
ótica do direito adquirido e da proteção da confiança. Diversamente do que
entendeu o TC de Portugal, que exigiu o requisito de gradualidade da medida, o
STF entendeu que a natureza da contribuição não se coadunaria com a necessidade
de uma regra de transição (gradual), algo que tutelaria a proteção da confiança.
Além disso, segundo eles, a tributação das pensões não atentaria contra a
confiança, pois as pessoas podem se programar para viver com a contribuição, e
nem contra a dignidade da pessoa humana, pois a contribuição não levaria a uma
vida sem dignidade, e tampouco se mostraria desproporcional.690 Para Eros Grau,
haveria direito adquirido à pensão, mas não ao valor delas.
Ressalte-se aqui, que, enquanto o TC desenvolve uma análise
pormenorizada das expectativas dos particulares, o STF “resolve” o problema em
uma sentença de duas linhas.
Já para o Ministro Marco Aurélio, segundo uma conceção de
relação entre a confiança legítima do particular e a dignidade da pessoa humana, a

688 O Min. Sepúlveda Pertence entendeu que não há direito adquirido a hipótese de incidência
tributária, pois isso seria um autêntico caso de imunidade tributária. Cf. ADI 3128/DF. Acórdão.
Tribunal Pleno. Rel. Min. Cesar Peluso. J. 18/08/2004.
689 O Ministro Ayres Brito defendeu a tese já veiculada nove anos antes de que as emendas também

devem observar o direito adquirido. BRITTO, Carlos Ayres; PONTES FILHO, Valmir. Direito
adquirido contra as emendas constitucionais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro,
Renovar, v. 202, 1995, p. 80. Já o Ministro Carlos Veloso em seu voto lembrou que mesmo ao manto
da Constituição de 1969 que não reconhecia como cláusulas pétreas os direitos coletivos e
individuais, ele já não entendia possível uma emenda constitucional ferir o direito adquirido. Mas
não reconhece que houve ofensa ao direito adquirido, pelas mesmas razões anteriores, de que a
contribuição é um tributo e de que não há direito adquirido a não ser tributado. O Ministro Celso de
Melo entendeu que as razões de Estado não podem ser invocadas para afastar garantias
constitucionais. Ele também defende a tese de limites ao poder de reforma, acatando a tese de Otto
Bachoff. Ibidem.
690 BRITTO, Carlos Ayres; PONTES FILHO, Valmir. Direito adquirido..., cit., p. 80.
245

emenda seria inconstitucional. O voto do Ministro se mostra mais retórico (com


valorações genéricas da importância de se impedir a retroatividade das leis) que
técnico, pois não tratou tecnicamente a questão sob o ponto de vista do conceito de
direito adquirido e mesmo da confiança legitima.691
A mesma falta de obediência a uma técnica legislativa não
ativista se observou na manifestação do Ministro Joaquim Barbosa, que “recusou” a
ideia de cláusula pétrea, ao fundamento de que se trata de uma “teoria
conservadora, antidemocrática, não razoável, oportunista, utilitarista e que visa a
perpetuação da desigualdade”, além de equiparar a defesa do direito adquirido à
síndrome da Torre de Marfim.692 Esse foi o “fundamento” empregado por Barbosa
para refutar a tese contida no pedido de reconhecimento do direito adquirido
contra a redução das pensões, pois inexistiria direito adquirido contra tributo.
Ademais, o princípio da solidariedade deveria prevalecer sobre direito adquirido,
caso se o reconhecesse.
Em entendimento completamente oposto, o Min. Carlos
Ayres Brito afirmou que o direito ao valor da pensão era mais que um direito
adquirido, era um “direito adquirido reforçado”, “quase um ato jurídico perfeito”.
O Ministro Cesar Peluso entendeu que não haveria ofensa ao
direito adquirido, pois não se estaria numa relação contratual, mas institucional,
em que o direito à pensão deveria ser conjugado com outros princípios do sistema.
Sepúlveda Pertence traz outro ponto de vista do problema:
estava em caso um tributo e, portanto, não se poderia falar em direito adquirido
contra tributo, pois isso equivaleria a uma imunidade constitucional.
Finalmente, o Ministro Celso de Melo entendeu que “razões
de Estado” não poderiam ser invocadas para afastar garantias constitucionais,
posicionando-se pela inconstitucionalidade da contribuição por ofensa ao direito

691 De fato, ainda em sua argumentação, Marco Aurélio citou o entendimento de Rui Barbosa, que à
época da Constituição de 1891, mostrou-se contrário à retirada das aposentadorias, afirmando que
o aposentado era um credor da nação, por títulos definitivos, perenes e irretratáveis. Há que se
destacar o trecho em que ele colaciona trecho de manifestação do Ministro Nelson Jobin, quando na
Assembleia Constituinte, se posicionou contrário à proposta de outros constituintes de retirar o
direito adquirido da constituição. Nesse trecho, o Min. Nelson Jobin, então constituinte, havia
defendido fortemente a manutenção do direito adquirido, que ele associava com a impossibilidade
de retroatividade da lei. Ibidem.
692 A expressão Ivory Tower (Torre de Marfim) é muito usada especialmente em língua inglesa para

se referir pejorativamente aos acadêmicos que se preocupam com questões desvinculadas da


prática cotidiana.
246

adquirido e à proteção da confiança e também ao princípio da proibição do


retrocesso.

4.2.4. A (des)vinculação do Poder Constituinte derivado aos princípios


vinculantes do legislador ordinário

Em virtude da consagração constitucional do direito


adquirido no Brasil, os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança
(dos quais o direito adquirido aparece como subprincípio, ou princípio correlato)
parece ter pouco campo de aplicação. Não obstante, além de o direito adquirido
não alcançar todas as situações de irretroatividade, ele também não limitaria o
Poder Constituinte derivado, apenas o legislador infraconstitucional, a depender
de cada sistemática constitucional.
Nesse tema, os ordens portuguesa e brasileira podem
apresentar interpretações diversas. A Consitituição portuguesa, e.g., prevê
expressamente em seu art. 288 os limites materiais de revisão:
Artigo 288.º - Limites materiais da revisão
As leis de revisão constitucional terão de respeitar:
a) A independência nacional e a unidade do Estado;
b) A forma republicana de governo;
c) A separação das Igrejas do Estado;
d) Os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;
e) Os direitos dos trabalhadores, das comissões de
trabalhadores e das associações sindicais;
f) A coexistência do sector público, do sector privado e do
sector cooperativo e social de propriedade dos meios de
produção;
g) A existência de planos económicos no âmbito de uma
economia mista;
h) O sufrágio universal, directo, secreto e periódico na
designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania,
das regiões autónomas e do poder local, bem como o
sistema de representação proporcional;
i) O pluralismo de expressão e organização política,
incluindo partidos políticos, e o direito de oposição
democrática;
j) A separação e a interdependência dos órgãos de
soberania;
l) A fiscalização da constitucionalidade por acção ou por
omissão de normas jurídicas;
m) A independência dos tribunais;
n) A autonomia das autarquias locais;
o) A autonomia político-administrativa dos arquipélagos
dos Açores e da Madeira.
(grifou-se)
247

O referido artigo prevê os limites materiais de revisão,


afirmando expressamente que as leis de revisão (equivalentes às emendas
constitucionais brasileiras) devem respeitar, dentre outros, os direitos, liberdades
e garantias dos cidadãos. Não se prevê taxativamente, por outro lado, que o Poder
Constituinte de revisão esteja vinculado à proteção da confiança, ou ao princípio da
segurança jurídica, assim como a outros princípios implícitos do Estado de direito,
como a proporcionalidade. Apesar disso, ao dispor que “as leis de revisão
constitucional têm de respeitar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”, a
proteção de irretroatividade da lei penal (artigo 29.º, n. 4, da CRP) encontra-se por
essa cláusula protegida, pois se encontra no capítulo que trata dos direitos e
garantias individuais. Por outro lado, pode-se discutir se a regra do artigo 18.º, n. 3,
da CRP, teria o condão de limitar não apenas o legislador, mas igualmente o Poder
Constituinte revisional.
Nesse sentido, o disposto no artigo 288 da CRP apresenta
uma incoerência, ao proteger apenas os direitos e garantias dos cidadãos, mas não
os princípios gerais sobre os quais incidem. É que não parece possível respeitar os
direitos, liberdades e garantias pessoais, violando-se os princípios gerais que
regem tais direitos, previstos nos artigos 12.º a 23.º. Por outro lado, quanto aos
direitos sociais, sua dimensão análoga a dos direitos, liberdades e garantias dos
cidadãos limita a atuação do poder constituinte revisional. 693 Mas a
irretroatividade da lei de revisão em matéria de direitos sociais não estaria por ela
protegida, segundo uma interpretação literal do artigo 288.º, que, nesse ponto, não
deixa dúvida. 694
Sem embargo, se mesmo as cláusulas materiais expressas
não foram observadas durante a revisão constitucional de 1989, admitir a
limitação do poder de revisão em Portugal por um princípio implícito como a
proteção da confiança é algo que se mostra possível em teoria, mas não tão
factível.695

693 Ou seja, a dimensão de exigibilidade do Poder Público de uma prestação garantida


constitucionalmente. Cf. MORAIS, Carlos Blanco. Curso de direito constitucional: teoria da
constituição..., cit., p. 471.
694 Segundo Canotilho, v.g., os limites implícitos de revisão resguardariam a identidade e

continuidade da ordem constitucional, não aspetos pontuais. CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
Direito constitucional..., cit., p. 1065.
695 Deveras, o precedente da dupla revisão realizada em 1989 teria, para alguns doutrinadores,

tornado inócua a proteção prevista no art. 288 da CRP, por se tratar de uma verdadeira “fraude”
248

Assim, os “cortes” das pensões em Portugal poderiam ser


realizados por meio de uma revisão constitucional, mesmo se admitindo que
violassem o princípio da proteção da confiança, porquanto, no sistema luso, tais
princípios implícitos não limitam o poder constituinte de revisão.
No Brasil, a hipótese é mais recorrente que em Portugal, o
que se deve, principalmente, a dois fatores: a grande quantidade de emendas
constitucionais que ali se verifica, as quais são muitas vezes empregadas para
contornar limitações impostas pela própria Constituição ao legislador ordinário, e
a forte densificação constitucional de alguns direitos sociais, como se dá com o
direito previdenciário. Ademais disso, a Constituição brasileira adota,
diferentemente da portuguesa, a proteção constitucional do direito adquirido.696
Em um primeiro momento, discutiu-se o problema da
limitação do Poder Constituinte derivado pelo direito adquirido, que é
potencialmente afetado por grande parte das alterações constitucionais.697 Por
essa razão, qualquer modificação pretendida nas regras de aposentadoria no Brasil
somente pode ser concretizada mediante emenda constitucional. Conquanto o
Congresso Nacional, órgão investido do poder legislativo, seja também o órgão
investido do poder constituinte derivado, os requisitos para aprovação de uma
emenda constitucional são mais rigorosos que aqueles exigidos para aprovação de
uma lei (ordinária ou complementar).698
No caso do estabelecimento de tributo sobre as
aposentadorias e pensões por meio da EC nº 20/1998, questionou-se se a referida
taxação não violaria o direito adquirido. O tema chegou ao Supremo Tribunal
Federal por meio da ADI 3128/DF, cabendo ao tribunal decidir se o direito
adquirido, previsto no artigo 5º, XXXVI, da CRFB-88, vincularia o poder

constitucional legitimada social e politicamente, mediante acordo político prévio ditado por
interesses econômicos que se impuseram sobre os “limites” jurídicos. A dupla revisão é um dos
maiores exemplos recentes de que quando superestrutura jurídica e infraestrutura econômica
entram em contradição insuperável, esta irrompe em antagonismo, o qual geral inevitavelmente
uma necessidade de ruptura da ordem jurídica, seja por revolução, seja por uma fraude lógica que a
preserve. Sobre as críticas jurídicas à dupla revisão, especialmente a de que o raciocínio da dupla
revisão levaria a uma regressão ao infinito, cf. FAVOREU, Louis et al. Droit constitutionnel. 5.ed.
Paris: Dalloz, 2002, p. 108.
696 Cf. art. 5º, XXXVI, da CRFB-88.
697 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. 5. ed. São Paulo: Saraiva: 2007, p.

186.
698 No Brasil, as leis ordinárias são aprovadas por maioria simples (art. 47 da CRFB), as leis

complementares, por maioria absoluta (art. 69 da CRFB) e as emendas constitucionais por maioria
qualificada de três quintos, exigindo-se duas votações (art. 60, §2º, da CRFB-88).
249

constituinte derivado. Em seu julgamento, a maioria dos Ministros do STF


“contornou” o problema da existência de princípios implícitos em face de emendas,
reconhecendo a natureza tributária da contribuição sobre a previdência dos
inativos e sua constitucionalidade de acordo com os princípios tributários. No
mesmo processo, o Ministro Nelson Jobim, que presidia o julgamento, ignorou a
distinção entre Poder Constituinte Originário e derivado, alegando que a
Constituição de 1988 é, no fundo, fruto do Poder Constituinte Derivado, mas não
tirou daí qualquer conclusão útil. O primeiro Ministro a analisar o caso sob a ótica
da segurança jurídica foi Eros Grau, o qual entendeu que não haveria violação ao
artigo 60, §4º, porque a emenda não aboliu o direito adquirido, apenas poderia tê-
lo violado, o que são coisas distintas.
A questão é deveras complexa. Enquanto poder
subordinado, o poder constituinte derivado encontra seus limites de atuação em
poder que lhe é superior, no caso, o poder constituinte soberano. A descrição
desses limites encontra-se expressa na Constituição, ou implícita, nos casos em que
a própria estrutura constitucional não pode ser atingida.699
No caso em estudo, os autores da ADI 3128/DF alegaram
ofensa ao artigo 60, §4º, IV, da CRFB,700 ao fundamento de que se estaria
pretendendo abolir o direito adquirido, argumento meramente retórico, eis que
manifestamente não buscou a Emenda Constitucional nº 20/1998 abolir o instituto
do direito adquirido, mas apenas não o observar.
Outra discussão relaciona-se com a acepção do termo "lei". É
que o artigo 5º, XXXVI, da CRFB-88, afirma que a "lei" não prejudicará o direito
adquirido. Seria a "lei" ali mencionada a lei ordinária ou complementar ou
abrangeria também as demais espécies normativas primárias constantes do rol
previsto no artigo 59 da CRFB-88?701 A resposta pode se dar pela interpretação

699 Cf. SCHMITT, Carl. Teoria de la constitución. Trad. Francisco Ayala. Madrid: Alianza Editorial,
1996, p. 118.
700 Dispõe o referido artigo - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a

abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
701 Dispõe o artigo 59:

Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:


I - emendas à Constituição;
250

tópica, uma vez que as limitações ao Poder Constituinte Derivado se encontram


previstas no artigo 60, §4º, IV. Assim, a proteção do direito adquirido é uma
limitação às leis retroativas, não às emendas retroativas. Poder Constituinte
Derivado e legislador apresentam uma relação de hierarquia natural, que decorre
da própria legitimidade assegurada pelo procedimento diverso de sua atuação.
Enquanto o legislador se encontra limitado pelo princípio do direito adquirido, este
não limita o Poder Constituinte, o qual apenas está impedido de retirá-lo do texto
constitucional.702
Esse é o entendimento do Supremo Tribunal Federal, para
quem não há direito adquirido contra texto constitucional, quer produto do Poder
Constituinte originário, quer produto do Poder Constituinte derivado. 703
José Afonso da Silva, e.g., é contrário a esse entendimento,
pois admitir que uma emenda constitucional afete direitos adquiridos seria uma
“fraude à Constituição”, na medida em que a proteção do direito estaria esvaziada
na medida em que sua concretização – que é o fim da proteção – estaria
desprotegida.704
Esse argumento, porém, apresenta o problema de equiparar
o Poder Constituinte derivado ao poder legislativo e de desconsiderar que o direito
adquirido é, antes de tudo, um princípio, que deverá ser sempre objeto de
ponderação. A vinculação expressa ou implícita à sua observância é dirigida apenas
ao legislador, pois assim tencionou o Poder Constituinte Originário.
No aspeto do direito adquirido, portanto, o STF parece ter
seguido a melhor interpretação ao considerar que o Poder Constituinte Derivado

II - leis complementares;
III - leis ordinárias;
IV - leis delegadas;
V - medidas provisórias;
VI - decretos legislativos;
VII - resoluções.
702 Nesse sentido, BASTOS, Celso; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição do brasil. v. 2,

São Paulo: Saraiva, 1988, p. 191. MACHADO, Hugo de Brito. Direito adquirido e coisa julgada como
garantias constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 84, n.º 714, abr. 95, p. 21-2.
703 Cf. STF. ADI 1497-8/DF. Tribunal Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. J. 9/10/96; ADI 2242/DF.

Tribunal Pleno. Rel. Min. Moreira Alves. J. 7/2/2001; ADI 2666/DF. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ellen
Gracie. J. 3/10/2002.
704 SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a constituição. São

Paulo: Malheiros, 2002, p. 233. No mesmo sentido, FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder
constituinte…cit., p. 203.
251

está autorizado a prever um “corte” das pensões, o que, em Portugal, haveria


apenas de observar o disposto no artigo 288.º, “d”, da CRP.
Diferente é o caso da proteção da confiança. Princípio
implícito do Estado de direito, ele condiciona todos os poderes constituídos,
incluindo-se o próprio Poder Constituinte Derivado.
Nada obstante, na análise concreta da tributação dos
inativos no Brasil operada pela EC nº 20/1998, conquanto se possa afirmar que ela
tenha violado as legítimas expectativas dos aposentados e pensionistas ao valor da
sua pensão ou de seus proventos, aplicando-se os critérios utilizados pelo Tribunal
Constitucional de Portugal, a dimensão da proporcionalidade somada ao interesse
público e ao princípio da isonomia autorizariam sua afetação pelo Poder
Constituinte Derivado.
De fato, a democracia exige maiorias. Direitos fundamentais
são direitos reforçados contra essa maioria. Logo, restrição de direitos
fundamentais como o caso da confiança dos pensionistas na manutenção da
percepção dos mesmos valores de pensões só pode ocorrer por meio de alteração
constitucional, o que implicará um quórum e debate compatível com o nível de
restrição efetuado. Apenas se houver vícios formais nesse procedimento, ou a
decisão ali tomada for considerada manifestamente desproporcional, é que estaria
o Poder Judiciário a recorrer à tutela da confiança legítima para invalidar a decisão
tomada pelo Poder Constituinte Derivado.
252

4.3. AS REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS EM PORTUGAL

Em Portugal, após um período de certa estabilidade


econômica, em meio ao ingresso na União Europeia e na zona do Euro, o país
passou a enfrentar um processo recessivo a partir do fim da primeira década do
século XXI, experimentando déficit orçamental e uma necessidade de contenção de
gastos públicos. Tal como no Brasil, o sistema de pensões foi um dos grandes alvos
da contenção de despesas.
Nesse cenário, advieram as Leis n.º 52/2007 e 11/2008, que
modificaram o sistema de segurança social, aumentando o critério tempo de idade
para aposentação e alterando também as fórmulas de cálculo das pensões.705

4.3.1. A instituição da Contribuição Extraordinária de Solidariedade

Em meio ao incremento da crise econômico-financeira, o


governo português instituiu uma tributação das pensões portuguesas por meio da
Contribuição Extraordinária de Solidariedade – CES, criada pela Lei n.º 55-A/2010,
de 31 de dezembro (Orçamento de Estado para 2011), que foi objeto de
questionamento pelo Presidente da República706 e também por um Grupo de
Deputados de diversos partidos, os quais requereram ao TC a apreciação da
inconstitucionalidade dos números 1.º e 2.º do artigo 78 da referida lei
orçamentária, que estabeleceu as diversas alíquotas de contribuição sobre o valor
das pensões, variando entre 3,5% até 10% do valor das pensões, que poderiam
ainda ser acrescidos de um valor adicional, de acordo com a tabela progressiva ali
contida.707
Como é natural em processos de fiscalização de
constitucionalidade, o requerimento apresentou uma profusão de argumentos e de
fundamentos para pleitear a inconstitucionalidade da referida exação, dentre os

705 Cf. art. 5.º da Lei n.º 11/2008 e arts. 1º, 5º, 6º e 7º da Lei n.º 52/2007.
706 Em Portugal, diferentemente do Brasil, vigora um sistema de governo semipresidencialista, em
que o Presidente da República não cumpre a função de chefe de governo, mas exerce funções
similares às desempenhadas pelos presidentes em regimes presidencialistas, como o poder de veto
legislativo. Diante de uma norma aprovada pelo Poder Legislativo, pode o Presidente promulgar ou,
preventivamente, requerer sua fiscalização de constitucionalidade, nos termos do artigo 134.º da
CRP. Ao contrário do Brasil, onde a promulgação é ato que certifica a existência da lei, conferindo-
lhe presunção relativa de constitucionalidade (de natureza meramente declaratória), em Portugal a
promulgação equivale à sanção no sistema brasileiro, possuindo uma natureza “material e
autônoma”. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. MOREIRA, Vital. Constituição da república
portuguesa anotada. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, t. 2, p. 191.
707 Cf. Processos n.ºs 2/2013, 5/2013, 8/2013 e 11/2013. Acórdão n.º 187/2013.
253

quais ofensa ao “princípio da unidade do imposto sobre o rendimento pessoal,


(artigo 104.º, n.º 1, da CRP), aos princípios da igualdade e da proporcionalidade
(artigo 104.º, n.º 1, conjugado com os artigos 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP), do direito a
uma sobrevivência com um mínimo de qualidade (artigos 1.º e 63.º, n.ºs 1 e 3, da
CRP) e do núcleo essencial de direitos patrimoniais de propriedade, na sua
dimensão “societário-pensionista”, garantidos pelo n.º 1 do artigo 62.º, nos termos
do n.º 2 do artigo 18.º, ambos da CRP, bem como ofensa à proteção da confiança,
como fundamentou o Presidente da República:
(...) na medida em que a aplicação das taxas nele previstas,
quando acumuladas com a adoção de medidas parafiscais,
como o corte de pensões e com o aumento da tributação,
frustram de forma súbita, em muitos casos exorbitante e
carente de fundamento constitucional, as legítimas
expectativas dos pensionistas em auferirem uma pensão
cujo valor efetivo, depois de sujeito a tributação, se não
afaste excessivamente do valor esperado e calculado nos
termos da lei aplicável no momento da aposentação, atentas
as contribuições efetuadas e a salvaguarda do seus direitos
adquiridos. A propósito, como já me referi, o artigo 66 e 100
da Lei n. 4/2007, Lei de Bases da Segurança Social, já
garante os direitos adquiridos. Já, embora seja citado o
artigo 100, não vejo propriamente que deva ser aplicado,
pois ele se refere a uma regulamentação da lei de bases, não
a uma situação de emergência, mas pronto.

E tais medidas, ao incidirem sobre pensões complementares


de subscrição voluntária pelos cidadãos, vulneram o
investimento da confiança por eles depositada, pois, ao
subscreverem, abdicarem de outro tipo de poupanças,
descontaram valores da sua retribuição para obterem um
complemento de reforma que passa a ficar severamente
comprometido através de um esforço fiscal equiparado ao
das pensões.

Por outro lado, a redação do n.º 4 do artigo 78°, quando


conjugada com o disposto no n.º 3, revela a incidência deste
imposto sobre os juros de aplicações puramente privadas
bem como sobre o respetivo capital quando não resultem,
exclusivamente, de contribuições do beneficiário, o que se
mostra desconforme com o princípio da proteção da
confiança, já que a realização daquelas aplicações foi
incentivada pelo legislador, designadamente através da
concessão de benefícios fiscais, pelo que a alteração
legislativa agora operada assume uma natureza gravosa e
contraditória com as expectativas criadas pelo mesmo
legislador.708

708 Cf. Processos n.ºs 2/2013, 5/2013, 8/2013 e 11/2013. Acórdão n.º 187/2013.
254

Já o Grupo de Deputados alegou, quanto à violação do


princípio da proteção da confiança e da proporcionalidade que
as medidas legislativas ofendem o princípio da
proporcionalidade, nos segmentos adequação e
necessidade. Não seriam adequadas para atingir o fim que
visam, que é o da consolidação orçamental. Mesmo que o
Tribunal atenda à perspectiva ex ante do legislador, deve
agora considerar a experiência atual, que mostraria
insuficiente.

A justificativa apresentada para lastrear o argumento de que


tais contribuições não seriam proporcionais trazia os seguintes argumentos: a)
quanto à adequação, as finanças do Estado não seriam beneficiadas com as
contribuições que se pretendia instituir; b) quanto à necessidade, haveria medidas
alternativas menos restritivas ou drásticas. Tais argumentos, no entanto, não
foram acompanhados de justificativa plausível que infirmasse a adequação e a
necessidade da medida, tampouco indicaram as medidas menos restritivas que
poderiam ter sido utilizadas.
Neste primeiro acórdão, porém, o TC entendeu que a CES
não feria o princípio da proteção da confiança, pelas próprias características do
regime de cálculo de pensões instituído pela Lei de Bases da Segurança Social, com
suas alterações recentes, que permitiria extrair o entendimento de que o cálculo
das pensões deveria assegurar o equilíbrio econômico-financeiro do sistema, a
justiça social e a equidade contributiva. E, ponderando a expectativa que os
aposentados devem ter na estabilidade do regime e das pensões com a crise por
que passaria o Estado e a natureza conjuntural da medida a exigir um sacrifício do
próprio Estado e, reflexamente, dos cidadãos, a instituição da CES seria
proporcional. Nessa vertente, considerou o TC que a medida é adequada porque
atinge o fim pretendido, que é garantir o financiamento da seguridade social em
tempo de crise. O TC considerou, ainda, que a medida é necessária, por não
vislumbrar outra medida que atingisse o mesmo fim, lesando em menor grau os
titulares das posições. Já no que toca à proporcionalidade em sentido estrito, o
Tribunal deu particular relevo ao caráter transitório da medida.709

4.3.2. O corte de pensões pelo Decreto nº 187/2012

709 Cf. Acórdãos n.ºs 396/2011 e 187/2013.


255

Ainda no mesmo ano, a Assembleia da República aprovou o


Decreto n.º 187/2012, estabelecendo um corte de 10% (dez por cento) nas
pensões710. Diversamente do que ocorreu no Brasil com a Lei n.º 9.783/99 e com a
EC n.º 41/2003, a norma portuguesa não tentou velar o corte sob a forma de um
“tributo”, mas assumiu a natureza de verdadeiro “corte”. 711
O Presidente da República não promulgou o referido Decreto
e requereu a fiscalização preventiva de constitucionalidade apenas das normas
constantes das alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto da Assembleia
da República n.º 187/2012, as quais dispunham sobre as pensões já pagas e não
sobre a idêntica regra prevista no artigo 2.º do mesmo decreto, que trata do
mesmo corte em relação às pensões futuras.712
Alegou o Presidente da República que a norma ostentaria o
caráter tributário e, em decorrência, teria violado diversos princípios tributários.
Subsidiariamente, porém, alegou o Presidente da República que a norma, se não
ostentasse tal natureza, deveria ser sindicada sob o aspeto da proteção da
confiança, na medida em que apresentaria uma retroatividade inautêntica,
“afetando desfavoravelmente relações jurídicas, direitos e factos consolidados que

710 Cumpre observar que o termo pensão no Brasil refere-se apenas ao direito previdenciário de
percepção mensal de valores, em decorrência da morte do titular.
711 Dispõe o artigo 7.º do Decreto n.º 187/2012:

Artigo 7.º
Norma transitória e de adaptação
1 - As pensões atribuídas pela CGA, até à data da entrada em vigor da presente lei, são alteradas,
com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2014, nos seguintes termos:
a) As pensões de aposentação, de reforma e de invalidez de valor mensal ilíquido superior a €
600,00, fixadas de acordo com as fórmulas de cálculo sucessivamente em vigor do Estatuto da
Aposentação, aprovado pelo DecretoLei n.º 498/72, de 9 de dezembro, bem como as fixadas de
harmonia com regimes especiais previstos em estatutos próprios ou noutras disposições legais ou
convencionais, têm o valor ilíquido em 31 de dezembro de 2013 reduzido em 10%;
b) As pensões de aposentação, de reforma e de invalidez de valor mensal ilíquido superior a €
600,00, fixadas com base nas fórmulas de cálculo sucessivamente em vigor do artigo 5.º da Lei n.º
60/2005, de 29 de dezembro, alterada pelas Leis n.ºs 52/2007, de 31 de agosto, 11/2008, de 20 de
fevereiro, e 66-B/2012, de 31 de dezembro, têm o valor ilíquido do P1 recalculado por substituição
da remuneração (R), inicialmente considerada, pela percentagem de 80% aplicada à mesma
remuneração ilíquida de quota para aposentação e pensão de sobrevivência;
c) As pensões de sobrevivência de valor global mensal ilíquido superior a €600,00, fixadas de
acordo com o Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/73, de 31
de março, têm o valor global ilíquido em 31 de dezembro de 2013 reduzido em 10%;
(...)
(sublinhamos).
712 Cf. Processo n.º 1260/13. Acórdão nº 862/2013.
256

foram constituídos no passado, ao abrigo da legislação vigente ao tempo em que os


beneficiários das pensões da CGA realizaram toda a sua carreira contributiva.”713
O TC, ao apreciar a constitucionalidade do dispositivo,
reconheceu sua retrospectividade e a ausência de proibição constitucional expressa
de leis retrospectivas, o que não impedia sua apreciação sob a tutela da confiança.

4.3.2.1. Desproporcionalidade

Neste último acórdão, o TC coloca valores diferentes de


ambos os lados da balança, como o caráter fechado do sistema da CGA, a
solidariedade sistêmica e o fim de convergência dos regimes para atendimento do
comando constitucional de sistema previdenciário unificado. Embora se possa
compreender individualmente a avaliação que é feita pelo Tribunal de cada um
desses elementos, a operação subjetiva que conduz à decisão pelo peso maior ou
menor de cada lado da balança é nebulosa. De fato, conclui o Tribunal que o
sacríficio dos pensionistas da CGA não é proporcional, pois a medida legislativa
que promove tal sacrifício não promoveu uma reforma estrutural e abrangente no
sistema, a qual deveria ser tomada, especialmente, para a observância do princípio
da igualdade entre os beneficiários dos dois sistemas, público e privado, de
segurança social.714

4.3.2.2. Ofensa ao direito adquirido e à proteção da confiança

Quanto à alegação de violação ao direito adquirido às


pensões, constante da Lei de Bases da Segurança Social, o Acórdão n.º 862/2013
traz uma argumentação que convém destacar:
Com o reconhecimento, ou desde que se encontrem
reunidos todos os requisitos necessários ao seu
reconhecimento, o direito à pensão entra na esfera jurídica
do aposentado com a natureza de verdadeiro direito
subjetivo, um «direito adquirido» que pode ser exigido nos
termos exatos em que for reconhecido.

Assim, para o TC, o direito à pensão e ao seu valor


constituem direito adquirido.

713 Processo n.º 1260/13. Acórdão nº 862/2013.


714 Cf. Processo 1260/2013. Acórdão 862/2013, parágrafo 45.
257

Além disso, como já tratado acima, o Acórdão n.º 862/2013


inova ao exigir um novo requisito no teste de proteção da confiança, ligado ao
critério da necessidade - o gradualismo da medida.

4.3.3. A tentativa da perpetuação da CES - a criação da CS

A Assembleia da República, pelo Decreto n. 262/2012,


tentou transformar a CES - uma contribuição provisória - em permanente,
transformando a Contribuição Extraordinária de Solidariedade na Contribuição de
Sustentabilidade – CS, embora tenha reduzido o valor das alíquotas de
contribuição. 715

4.3.3.1. Princípio da igualdade e proteção da confiança

715 Dispõem os artigos 2.º e 4.º do referido Decreto:


Artigo 2.º
Âmbito de aplicação da contribuição de sustentabilidade
1 - A CS incide sobre todas as pensões pagas por um sistema público de proteção social a um único
titular independentemente do fundamento subjacente à sua concessão.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por pensões, para além das pensões
pagas ao abrigo dos diferentes regimes públicos de proteção social, todas as prestações pecuniárias
vitalícias devidas a pensionistas, aposentados ou reformados no âmbito de regimes
complementares, independentemente da designação das mesmas, nomeadamente, pensões,
subvenções, subsídios, rendas, seguros, bem como as prestações vitalícias devidas por força de
cessação de atividade, processadas e postas a pagamento pelas seguintes entidades:
a) Instituto da Segurança Social, I.P. - Centro Nacional de Pensões (ISS, I.P./CNP) no quadro do
sistema previdencial da segurança social;
b) CGA, I.P.;
c) Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) no quadro do regime de proteção
social próprio.
(...)
Artigo 4.º
Cálculo da contribuição de sustentabilidade
1 - A CS incide sobre o valor das pensões mensais definidas no artigo 2.º.
2 - Para a determinação do valor da pensão mensal, considera-se o somatório das pensões pagas a
um único titular pelas entidades referidas no n.º 2 do artigo 2.º.
3 - A aplicação da CS obedece às seguintes regras:
a) 2% sobre a totalidade das pensões de valor mensal até € 2 000;
b) 2% sobre o valor de € 2 000 e 5,5 % sobre o remanescente das pensões de valor mensal até € 3
500;
c) 3,5% sobre a totalidade das pensões de valor mensal superior a € 3 500.
4 - Nos casos em que da aplicação da CS resulte uma pensão mensal total ilíquida inferior a € 1 000,
o valor da pensão em pagamento é mantido nos seguintes termos:
a) Pela atribuição de um diferencial compensatório, a cargo do sistema público de pensões
responsável pelo pagamento da pensão, quando estejam em causa pensões de montante ilíquido
superior aos valores mínimos legalmente garantidos e igual ou inferior a € 1 000;
b) Pela atribuição do complemento social quando estejam em causa pensões mínimas do regime
geral de segurança social.
5 - Na determinação da taxa de CS aplicável, o 14.º mês ou equivalente e o subsídio de Natal são
considerados mensalidades autónomas.
258

O Presidente da Republica requereu exame prévio de


constitucionalidade, alegando violação ao princípio da igualdade e da proteção da
confiança. Quanto à proteção da confiança, justificou:
A redação do n.º 4 do artigo 78°, quando conjugada com o
disposto no n.º 3, revela a incidência deste imposto sobre os
juros de aplicações puramente privadas bem como sobre o
respetivo capital quando não resultem, exclusivamente, de
contribuições do beneficiário, o que se mostra desconforme
com o princípio da proteção da confiança e com a proteção
constitucional da propriedade, tal como consagrada no
artigo 62º da Constituição já que:

a) A realização daquelas aplicações foi incentivada pelo


legislador, designadamente através da concessão de
benefícios fiscais, pelo que a alteração legislativa agora
operada assume uma natureza gravosa e contraditória com
as expectativas criadas pelo mesmo legislador;

b) Ao incidir de forma muito significativa sobre o capital, o


imposto é confiscatório e expropriativo, na medida em que
representa uma descapitalização notória, arbitrária e
desigual de aplicações financeiras realizadas por
reformados, até em comparação com aplicações de outra
natureza.

ii) Da afetação desproporcionada do direito a uma


sobrevivência com um mínimo de qualidade 716

Em sua análise, o TC considerou a mens legislatoris,


especialmente os dados apresentados na Proposta de Lei n.º 236/2012, que
originou o Decreto n.º 262/2012, de que “cerca de 95% dos pensionistas da
segurança social ficam isentos e, no conjunto dos sistemas, ficam totalmente
isentos de qualquer contribuição mais de 87% dos pensionistas”.717
No entanto, o segundo argumento contido na referida
proposta, de que todos os cidadãos ficariam em uma situação subjetiva mais
favorável que a que estava vigendo durante a CES, não foi aceito pelo TC, ao
fundamento de não ser possível fazer tal valoração a partir da comparação entre
um instituto permanente e um transitório.

4.3.3.2. Os fundamentos do acórdão: proteção da confiança, mínimo social, dignidade


da pessoa humana, igualdade

716 Processo n.º 819/2014.


717 Cf. Processo n.º 819/2014. Acórdão n.º 575/2014.
259

Do acórdão, convém isolar alguns fundamentos, os quais,


mediante um processo indutivo, permite compreender a forma como o TC
interpretou a aplicação do princípio da proteção da confiança.
Em primeiro lugar, reconhece o TC uma margem de
liberdade de conformação do legislador, uma vez que não há norma na CRP fixando
as regras do sistema de pensões e suas correspondentes prestações, bem como
valores e critérios de concessão. Tratar-se-ia, portanto, de uma norma aberta.718
Em segundo lugar, o TC analisa o próprio direito material em
discussão, reconhecendo que a questão deve considerar a reserva do
financeiramente possível, a estrutura temporal do direito muito “sensível à ideia
de rebus sic standibus”, tendo em vista que durante o médio e o longo prazo os
“contextos socioeconômicos que enquadram a atividade legislativa podem alterar-
se radicalmente” e, por fim, o sistema previdencial de repartição em que se
inserem os beneficiários, os quais não “podem ignorar os riscos envolvidos, com
limites impostos pela reserva do possível”.
Num terceiro momento, o TC reconhece que o legislador
encontra-se hetero e autonomamente vinculado às normas e princípios de direitos
fundamentais, devendo as alterações legislativas se fundarem em motivos
justificados – designadamente a sustentabilidade financeira do sistema, não
podendo afetar o mínimo social, os princípios da igualdade, da dignidade da pessoa
humana e da proteção da confiança.
Em quarto lugar, o TC reconhece que o legislador se
desincumbiu da tarefa prevista no artigo 63.º da CRP, que impõe ao Estado criar e
manter um sistema de segurança social e foi feito nos termos da Lei n. 4/2007 e
legislação complementar, estruturando o sistema em torno de alguns princípios,
como o da complementaridade, da totalização, da contributividade e do benefício
definido.719

718Cf. Processo n.º 819/2014. Acórdão n.º 575/2014..


719 “Torna-se assim necessário harmonizar a estabilidade da concretização legislativa já alcançada
no domínio dos direitos sociais com a liberdade de conformação do legislador. E essa harmonização
implica que se distingam as situações onde a Constituição contenha uma ordem de legislar
suficientemente precisa e concreta, em que a margem de liberdade do legislador para retroceder no
grau de proteção já atingido é necessariamente mínima, daquelas outras em que a proibição do
retrocesso social está limitada pelo princípio da alternância democrática e opera apenas quando a
alteração redutora do conteúdo do direito social afete a «garantia da realização do conteúdo
mínimo imperativo do preceito constitucional» ou implique, pelo «arbítrio ou desrazoabilidade
260

4.3.3.3. Aplicação do princípio da vedação de retrocesso social

O TC faz uma distinção entre duas situações: a primeira é


aquela em que há uma ordem concreta de legislar cumprida pelo legislador em
razão da qual este não pode provocar muitas alterações. Assim, no caso do item 2
do artigo 63.º, o legislador que criou o sistema de segurança social baseado no
princípio da descentralização, não pode simplesmente extinguir o sistema ou criar
um novo mecanismo centralizado.720 A segunda são as “situações em que a
proibição do retrocesso social é relativizada pelo princípio democrático e só se
verifica em duas situações: a) quando a alteração redutora afete o conteúdo
mínimo do direito social e b) afete a proteção da confiança.”
Ou seja, o TC admite a proteção da confiança como um
princípio do qual depende o princípio da proibição do retrocesso.
Em sua última análise, o TC avalia as situações de
retroatividade e conclui pela existência de retroatividade imprópria, de grau forte,
a qual, embora admitida, deve observar, dentre outros, o princípio da proteção da
confiança.721
Depois de invocar os precedentes e os critérios para
aplicação do princípio da proteção da confiança, entendeu o TC que a lei violaria o
direito adquirido, pois, “ainda que não aplicável a factos pretéritos, operou “uma
acentuada redefinição jurídica do passado, alterando os termos de exercício de um
direito já completamente formado, que a Lei de Bases da Segurança Social qualifica
apropriadamente como «direito adquirido».” 722

manifesta do retrocesso», a violação da proteção da confiança (cfr. Acórdãos n.ºs 509/2002 e


188/2009).” Processo n.º 819/2014. Acórdão 575/2014.
720 Dispõe o artigo 63.º, n.º 2, da CRP: “Incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um

sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações


sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações
representativas dos demais beneficiários.”
721 Processo n.º 819/2014. Acórdão 575/2014.
722 Cf. Processo n.º 819/2014. Acórdão 575/2014. É importante frisar que a CRP não consagra a

proteção ao direito adquirido como direito fundamental, tal qual faz o Brasil. No entanto, a proteção
ao direito adquirido pode estar prevista em legislações de base, como a Lei de Bases da Segurança
Social, que em seu artigo 100º prevê expressamente: "o desenvolvimento e a regulamentação da
presente lei não prejudicam os direitos adquiridos, os prazos de garantia vencidos ao abrigo da
legislação anterior, nem os quantitativos de pensões que resultem de remunerações registadas na
vigência daquela legislação."
261

4.3.4. Análise crítica da aplicação do princípio da proteção da confiança pelo


TC

A primeira crítica ao posicionamento da Corte veio dentro


do próprio Tribunal, nomeadamente no voto vencido da juíza Maria Lúcia Amaral,
segundo a qual, o legislador, de fato, efetivou reformas num contexto de incerteza,
em prazo curtíssimo, e sem um debate necessário para um tema tão polêmico e de
significativos efeitos macro e microeconômicos. Tais considerações, no entanto,
não são jurídicas, mas políticas, e devem ensejar a responsabilidade política do
legislador, não uma invalidação da norma.723
A metodologia do emprego do princípio da confiança e sua
densificação pelo TC apresentam inconsistências.
De fato, os três acórdãos sobre o tema geram mais
insegurança jurídica que aquela que alegam tutelar, considerando a forma como o
princípio da proteção da confiança leva a resultados tão díspares de matérias tão
iguais. Como afirma Maria Benedita Urbano, o TC parece sofrer de bipolaridade.724
Ora, o princípio da segurança jurídica não vincula apenas o
legislador, mas igualmente o próprio poder jurisdicional. E a previsibilidade das
decisões judiciais também decorrem de tal princípio.725
Logo, não é possível admitir que o TC invoque o princípio da
proteção da confiança contra as medidas legislativas e não se possa ter qualquer
previsibilidade acerca de suas decisões, que utiliza o mesmo critério
argumentativo para chegar a resultados diversos em tão curto espaço de tempo.
Não se defende a existência de uma resposta correta nos
termos preconizados por Dworkin726, mas apenas que o TC observe três elementos
essenciais no discurso argumentativo jurisprudencial em torno dos princípios: a

723 Afirma a juíza: “Contudo, estas são considerações que motivarão, para quem as perfilhar, uma
atitude de censura cidadã. Mas não me parece que sejam suficientes para fundamentar uma censura
jurídico-constitucional (…) Em suma, não pode o Tribunal, pela sua natureza de jurisdição, impor ao
legislador a sua própria visão do que seja uma reforma justa do sistema”. Processo n.º 819/2014.
Acórdão 575/2014. Declaração de Voto Vencido. Maria Lúcia Amaral. (sublinhamos)
724 Cf. URBANO, Maria Benedita. A jurisprudência da crise no Divã. Diagnóstico: bipolaridade? In: O

tribunal constitucional e a crise: ensaios críticos. RIBEIRO, G. A.; COUTINHO, L. P. (orgs.). Coimbra:
Almedina, 2014, p. 9.
725 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Princípios constitucionais estruturantes..., cit., p. 261-69.
726 Cf. DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins

Fontes, 1999, p. 404 et seq.


262

integridade, a clareza e a densidade normativa.727 Tais elementos são essenciais


para aferição de manipulação argumentativa que resulta em sofismas ou equívocos
lógicos. 728
Nesse sentido, a falta de conceção da confiança e de seu
alcance pelo TC é criticada por José de Melo Alexandrino. Segundo o autor, o TC
“absolutizou” o princípio da proteção da confiança:
Esta decisão é inesperada, em primeiro lugar, por romper
com três décadas; jurisprudência constitucional, em que a
tutela da confiança havia sido confinada aos casos de ofensa
“intolerável, arbitrária, opressiva ou demasiado acentuada”
(Acórdãos n9s 11 /83,86/84,287/90, 352/91, 237/98) ou
quando sua violação contrariasse “a própria ideia de Estado
de direito” (Acórdão 1 794/2013), nunca tendo servido de
parâmetro determinante em matérias como a que estava aí
em causa; é inesperada, em segundo lugar, na medida em
que foi depois de percorrer inúmeras outras razões que o
Tribunal resolveu aclarar que o caso apenas podia ser
aferido à luz da protecção da confiança; em terceiro lugar, o
Tribunal Constitucional bastou-se como uma alusão
genérica e não fundamentada ao princípio da
proporcionalidade; por fim, considerou que deveria
prescrever ao legislador uma solução sistémica estrutural
eventualmente resistente à tutela da confiança.729

Também Maria B. Urbano critica o emprego da proteção da


confiança pelo TC, apontando diversas incoerências no iter argumentativo
utilizado pelo TC. Um deles é o facto de que a reforma previdenciária já se
desenvolvia ao longo do tempo, o que reduziria a solidez das expectativas dos
interessados. Outra incoerência apontada diz respeito à opção política feita pelo
legislador de distribuir os encargos financeiros decorrentes da crise entre aqueles
que possuem uma situação financeira mais privilegiada, o que não foi reconhecido
pelo TC, embora tenha usado uma argumentação que levasse a tal conclusão.730
Ainda quanto ao método, Jorge Reis Novais critica a desconsideração da

727 Cf. RIBEIRO, Gonçalo de Almeida. O constitucionalismo dos princípios. In: O tribunal constitucional
e a crise: ensaios críticos. RIBEIRO, G. A.; COUTINHO, L. P. (orgs.). Coimbra: Almedina, 2014, p. 90.
728 Segue-se a divisão proposta por Alaôr C. Alves, que se refere aos equívocos (ou paralogismos)

como espécies de falácia (raciocínio incorreto em sua forma ou em seu conteúdo) involuntária e,
aos sofismas, como espécies de falácia voluntária. ALVES, Alaôr Caffé. Lógica - pensamento formal e
argumentação: elementos para o discurso jurídico. Bauru-SP: Edipro, 2000, p. 292-6.
729 ALEXANDRINO, José de Melo. Jurisprudência da crise..., cit., p. 65.
730 URBANO, Maria Benedita. A jurisprudência da crise..., cit., p. 18.
263

jusfuntamentalidade do direito à pensão, o que exigiria a observação de princípios


estruturantes do Estado, como a proteção da confiança.731
Deveras, ressente-se, na estrutura argumentativa comparada
dos acórdãos, de um critério objetivo que conduza inexoravelmente a tal decisão,
pois o mesmo critério empregado pode conduzir a um resultado diametralmente
oposto, como se depreende da própria declaração de voto da juíza Maria Lúcia
Amaral.732

4.3.4.1. Expectativas geradas

De acordo com a jurisprudência analisada, a confiança tutela


dois tipos de expectativas: as expectativas individuais de aquisição de direitos
geradas por atos estatais que preveem tais direitos e a expectativa coletiva na
manutenção futura da estabilidade da ordem jurídica.
A primeira pode ser considerada uma expectativa subjetiva
objetivamente considerada. É subjetiva porque diz respeito aos patrimônios
individuais, mas é também objetiva porque presume-se que os indivíduos afetados
não estejam preparados para a abrupta mudança em seu patrimônio provocada
pela alteração da ordem jurídica. Como reconhece o TC,
essa valoração só pode incidir sobre a consistência das
posições jurídicas subjetivas definidas à luz do Direito
anterior, e que vêm agora, pela lei nova, a ser afetadas. Na
verdade, as “expectativas” dos particulares na continuidade,
e na não disrupção, da ordem jurídica, não são realidades
aferíveis ou avaliáveis no plano empírico dos factos. A sua
densidade não advém de uma qualquer pré-disposição,
anímica ou psicológica, para antecipar mentalmente a
iminência ou o risco das alterações legislativas; a sua
densidade advém do tipo de direitos de que são titulares as
pessoas afetadas e o modo pelo qual a Constituição os
valora. O ponto é importante. É que, como se disse no
Acórdão n.º 862/2013, quanto mais consistente for o direito
do particular, mais exigente deverá ser o controlo da
proteção da confiança.733

Tal critério possui um pressuposto objetivo, porquanto


requer a produção de atos estatais que preveem a aquisição de direitos se
observadas algumas condições materiais e temporais pré-determinadas. Como

731 NOVAIS, Jorge Reis. O direito fundamental à pensão..., cit., p. 6 et seq.


732 Processo n.º 819/2014. Acórdão 575/2014. Declaração de Voto Vencido. Maria Lúcia Amaral.
733 Cf. Processo n.º 819/2014. Acórdão 575, de 14 de agosto de 2014, parágrafo 22.
264

exemplo, tem-se a lei que prevê a aposentação de um funcionário público após


atingir 60 anos de idade e 35 anos de contribuição para o fundo público de
aposentadoria, percebendo, a título de pensão, o valor correspondente à sua última
remuneração. Trata-se de um ato estatal que gera para o particular a expectativa
de, quando vier a completar a idade e o tempo de contribuição referidos, adquirir o
direito à aposentação e, em consequência, à percepção mensal de uma pensão.
Além dessas expectativas, como já referido, o TC, no acórdão
575/2014, reconheceu também o que chamou de confiança objetiva. Trata-se de
uma expectativa coletiva na manutenção futura da estabilidade da ordem jurídica.
Esse critério, no entanto, carece de fundamento, pois
reconhece uma causa, consistente na perda da confiança na estabilidade da ordem
jurídica futura, sem parâmetros objetivos. Esse critério pode ser aceito quando sua
formulação seja incontroversa. Isso ocorre, por exemplo, em situações em que a
expectativa criada decorre diretamente de comandos normativos, como a norma
que assegura o direito adquirido, prevista na Lei de Bases da Segurança Social.734
Embora não tenha status constitucional, tal proteção
constitui um índice objetivo de apreciação do julgador, pois a figura do direito
adquirido tem dois efeitos: por um lado, constitui uma autovinculação do
legislador. Embora seja possível revogá-la, tal disposição, por não densificar uma
imposição constitucional, deve ser feita dentro da Lei Geral de Bases da Segurança
Social, e não tacitamente por uma lei orçamentária, segundo critérios elementares
de interpretação.

4.3.4.2. Legitimidade

O segundo critério requer, por parte do intérprete, uma


avaliação objetiva e subjetiva. A legitimidade das expectativas é aferível pela
própria interpretação da norma que cria o direito. Deve haver um fumus boni iuris.
Os dois critérios seguintes, que as expectativas sejam justificadas e fundadas em
boas razões, são prima facie desnecessárias, pois devem ser absorvidas pela
legitimidade. De fato, se a expectativa de um direito é legítima, porquanto pode ser
inferida da norma sem grande esforço “criativo” hermenêutico, imagina-se que

734 Artigo 100 da Lei n.º 4/2007.


265

também se justifique, pois não parece razoável uma expectativa legítima


injustificada.
Também a expressão fundadas em boas razões parece ser
absorvida pela justificativa, afinal se a justificativa não se fundar em boas razões, a
expectativa será considerada injustificada.
Assim, o que o TC quer aferir é uma juridicidade nas
expectativas, empregando as expressões justificadas e fundadas em boas razões
como um recurso linguístico enfático.

4.3.4.3. Planejamentos feitos pelos privados

O terceiro critério, por sua vez, a par de considerar aspetos


subjetivos, atrai a ponderação de outros princípios, em especial o da igualdade.
Não parece razoável, tampouco compatível com a ideia de igualdade, que a
constitucionalidade de uma norma esteja na dependência do planejamento que
seus destinatários fazem de seus impactos. Tal consideração, a priori, poderia ser
feita em regime de indenização ao particular em virtude da alteração legislativa, se
verificada a responsabilidade estatal após a ponderação com outros princípios
norteadores e justificadores de tal conduta. Do mesmo modo, no exemplo da
aposentação, não há dúvida de que um particular tenha planejado sua vida para se
aposentar com aqueles requisitos, percebendo os mesmos valores a título de
pensão.

4.3.4.4. A proibição do excesso

A aplicação da justa medida pelo TC é um dos aspetos mais


problemáticos. De fato, o referido princípio apresenta dois pressupostos: um
domínio técnico mínimo dos dois valores que estão nos lados opostos da balança e
a possibilidade de estabelecimento de uma certeza mínima acerca de ambos os
valores. No caso, estão ausentes ambos os pressupostos: o TC não parece ter o
domínio da matéria atuarial envolvida na complexa estrutura de pensões,
tampouco parece ser este um campo onde impera uma certeza entre meios e fins,
266

ou o que é mais ou menos justo, correto e desejável.735 E este é o ponto que merece
maior atenção:
Não tenho dúvidas de que muitas das objeções feitas no
Acórdão quanto à solução encontrada pelo legislador são
razoáveis e de boa-fé apresentadas. Mas o ponto é
justamente esse: perante a existência de diferentes
conceções razoáveis quanto ao que seja, quanto a essa
reforma, justo ou injusto – e perante a discussão aberta no
espaço público entre essas diferentes conceções razoáveis –
é ao poder legislativo, e não ao poder judicial, que cabe
tomar a decisão quanto ao caminho a seguir.736

Sem espaço para nos aprofundarmos no mérito da medida, o


facto é que a diferença de posição entre a doutrina e o TC, e a existência de
divergência entre os membros do próprio Tribunal, bem como a própria mudança
de tratamento do tema em ambos os acórdãos, revela a existência de um forte
componente político contido no juízo de ponderação do TC, na aplicação do
princípio da confiança. Tal constatação demonstra o problema do método da justa
medida, um dos elementos de aferição do respeito à confiança.
Se a avaliação do custo benefício de uma medida enseja
divergências na sociedade, parece que cabe ao TC respeitar a decisão tomada pelo
órgão democraticamente legitimado para tal, no caso a Assembleia da República.
Assim, tendo sido a medida aprovada pelos critérios da adequação e da
necessidade, não poderia o TC, por maioria, considerar a medida desproporcional
no caso do Acórdão 575/2014.
Deveras, a atividade de ponderação, especialmente como
critério de aferição da proteção da confiança, é uma atividade contraditória, pois
justifica na segurança jurídica a aplicação de um critério informado pela incerteza
jurídica.
A razão de tal contradição está, justamente, na
incompatibilidade da técnica com as propriedades exigidas pela hermenêutica
jurídica, que requer, justamente pela garantia de segurança jurídica, o recurso a
uma lógica formal, não a uma retórica, tal como é defendida hoje pelos expoentes
do neoconstitucionalismo.

735 Cf. RIBEIRO, Gonçalo de Almeida. O constitucionalismo dos princípios In: O tribunal
constitucional e a crise: ensaios críticos. RIBEIRO, G. A.; COUTINHO, L. P. (orgs.). Coimbra: Almedina,
2014, p. 84.
736 Processo n.º 819/2014. Acórdão 575/2014.
267

Ao contrário do espaço político-legislativo, em que as regras


do discurso permitem sanar as incongruências lógicas do método ponderativo com
a retórica e demais discursos focados na formação do consenso, o espaço jurídico
no sistema português, em análise, não o contempla, pela simples ausência de
legitimidade democrática dos juízes para o desempenho dessa função.

4.3.4.5. Proteção da confiança ou proporcionalidade?

O uso do critério proporcionalidade pelo TC é o mais


problemático. Em primeiro lugar, tal critério não deixa claro se o que pretende o
Tribunal é uma simples ponderação de valores ou interesses, ou se há uma
aplicação do critério da proporcionalidade em sentido amplo.
Deveras, no acórdão 187/2013, o TC faz menção expressa à
proporcionalidade em sentido estrito.737 Já no acórdão 862/13, constata-se a
presença de uma ratio mais próxima de uma proporcionalidade em sentido amplo,
ao afirmar o Tribunal que “(...) o método do juízo de avaliação e ponderação dos
interesses relacionados com a proteção da confiança é igual ao que se segue
quando se julga sobre a proporcionalidade ou adequação substancial de uma
medida restritiva de direitos.”738 Ademais, no mesmo acórdão, o Tribunal faz uma
avaliação dos fins pretendidos pelo legislador, o que invoca os demais critérios da
aferição de proporcionalidade em sentido amplo, como a adequação e a
necessidade da medida.739 Tal confusão entre o critério da proporcionalidade
empregado no acórdão como requisito da proteção da confiança e o princípio
autônomo da proporcionalidade é reconhecido pelas juízas Maria de Fátima Mata-
Mouros e Maria José Rangel de Mesquita:

737 Dispõe o acórdão: "Sendo certo que se verificam, de forma clara e em grau elevado, todos os
pressupostos exigíveis do lado da tutela da confiança, a dúvida só pode residir na relevância do
interesse público que determinou a alteração legislativa, questão que remete para um controlo da
proporcionalidade em sentido estrito, e para a ponderação entre a frustração da confiança, com a
extensão de que esta se revestiu, e a intensidade das razões de interesse público que justificaram a
alteração legislativa". (Itálico no original)
738 Cf. Processo 1260/2013. Acórdão 862/2013, parágrafo 27. (Itálico no original. Sublinhamos)
739 Nesse sentido, afirma o TC no parágrafo 44: “Nesta ponderação, não pode deixar de pesar a

circunstância dos fins a prosseguir – nos termos expostos na exposição de motivos – constituírem
interesses económicos de longo prazo que se confrontam com os interesses imediatos legalmente
protegidos dos pensionistas. É que, enquanto a ótica da sustentabilidade financeira da segurança
social é de médio e longo prazo, o direito à pensão vence-se todos os meses. Daí que, a diferente
dimensão temporal do fim a atingir e do meio utilizado, exija, de per si, disposições transitórias que
harmonizem em justa medida o sacrifício imposto com a redução da pensão e o benefício por ela
prosseguido.” (Itálico nosso)
268

Não acompanhamos o Acórdão quanto ao alcance da


pronúncia de inconstitucionalidade, desde logo porque
divergimos da utilização, no caso, do princípio da tutela da
confiança como parâmetro determinante de controlo, sem
uma análise autónoma centrada no princípio da
proporcionalidade.740

Uma leitura atenta do acórdão permitirá reconhecer,


entretanto, um emprego da proporcionalidade em sentido amplo, de forma
autônoma, mesclado com outros argumentos. Assim, a articulação proposta pelo
TC pode ser assim representada:

Atos estatais

Expectativas
CONFIANÇA legítimas

Planejamentos
individuais

Proporcionalidade
e
Todavia, a estrutura argumentativa dos acórdãos do
Tribunal mais se aproxima da arquitetura a seguir:
Adequação

PROPORCIONALIDADE Necessidade

Outros critérios
Proporcionalidade em sentido estrito
Confiança

De qualquer modo, seja empregando de forma autônoma,


seja como conteúdo ou continente da tutela da confiança, a proporcionalidade,
especialmente o subcritério da proibição do excesso, como tratado no capítulo 3.3.,
enfrenta conhecidas críticas na doutrina por investir o julgador de um poder de
análise que muitas vezes fica em uma zona cinzenta entre o jurídico e o político.741

740 Cf. Processo 1260/2013. Acórdão 862/2013, Declaração de Voto. Juízas Maria de Fátima Mata-
Mouros e Maria José Rangel de Mesquita. (Sublinhamos)
741 Cf., nesse sentido, ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais…, cit., p. 587 et seq.
269

4.3.5. Princípio da justiça intergeracional?

A atuação do TC nos casos mencionados apresenta duas


incoerências. Em primeiro lugar, sob o fundamento de primazia de um princípio
dotado de grande relatividade e de baixa densidade normativa, como a justiça
intergeracional, a corte portuguesa afastou uma regra, que determina a proteção
do direito adquirido. A par de fiar em dispositivos constitucionais específicos do
direito ambiental742, a aplicação da tese da justiça intergeracional ao caso não
apresenta um nexo lógico causal, porquanto cortar as pensões da geração presente
não significa “não cortar” as pensões da geração futura.
Ademais disso, ditos recursos não se destinam,
necessariamente, ao pagamento das pensões da geração futura e, mesmo que o
fosse, haveria uma distribuição injusta de encargos entre a geração presente e a
geração futura para o financiamento da segurança social. De fato, um sistema
previdenciário de caráter solidário, como ocorre no Brasil a partir da Emenda à
Constituição n.º 41/2003743, com benefícios da geração seguinte custeados pela
geração anterior, requer uma previsão constitucional ou legal expressa (no caso,
na Lei de Bases da Segurança Social), e deve ter efeito ex nunc, respeitando as
expressões da segurança jurídica.
Em segundo lugar, o TC empregou o pretenso princípio da
justiça intergeracional para justificar a instituição da CES (um tributo provisório),
mas não fez o mesmo em relação à instituição da CS. Ou seja, o tribunal entende
que o direito adquirido pode ser afastado para instituição de um tributo provisório
sob o argumento de uma justiça intergeracional (princípio que deveria incidir, em
virtude de sua natureza temporal, sobre atos e institutos dotados de mais
estabilidade e definitividade), mas não pode ser invocado para instituição de um
tributo permanente?

742 No mesmo sentido NOVAIS, Jorge Reis. O direito fundamental à pensão..., cit., p. 26.
743 Dispõe o art. 40 da CRFB-88, com a redação dada pela EC n.º 41/2003: “Art. 40. Aos servidores
titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas
suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e
solidário, mediante contribuição do respetivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos
pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto
neste artigo.”
270

4.4. UM EXEMPLO COMPARADO: AS REFORMAS NAS PENSÕES NA ITÁLIA E O


RECENTE POSICIONAMENTO DA CORTE COSTITUZIONALE

A Itália enfrentou problemas parecidos ao de Portugal,


buscando na diminuição das pensões reduzir as despesas do Estado para fazer
frente a metas de ajuste orçamentário.
Em 2007, por exemplo, foi editada a Lei 247, de 24 de
dezembro de 2007, que determinou o congelamento das pensões que
ultrapassassem 8 vezes o valor mínimo das pensões concedidas pelo sistema
público de previdência social da Itália. 744
A questão foi submetida à Corte Costituzionale Italiana,
questionando-se a não observância de normas genéricas da Constituição italiana
garantidoras de direitos sociais745, bem como o princípio da proporcionalidade. 746
A jurisprudência italiana seguiu idêntico caminho da
portuguesa, na Sentenza 316, de 11 de novembro de 2010, em processo em que se
submetia à Corte Costituzionale a apreciação de constitucionalidade da mencionada
lei italiana (Lei 247, de 24 de dezembro de 2007). No caso concreto, considerou
que a medida, tendo em vista sua natureza temporalmente limitada (apenas ao ano
de 2008) e o consequente impacto financeiro irrelevante, era proporcional e
inseria-se no campo de discricionariedade legislativa, não violando a Constituição.
Posteriormente, todavia, ao ser novamente chamado a
apreciar a questão, agora sobre a constitucionalidade do Decreto-Legge 201, de 6
de dezembro de 2011, convertido na Lei 214, de 22 de dezembro de 2011 e
alterações posteriores, mais precisamente sobre o § 24 do artigo 25, que previa o
congelamento das pensões superiores a 1400 euros, a Corte Costituzionale,

744 Cf. Sentenza 316/2010. Traduzimos.


745 Como o artigo 38 da Constituição italiana, que declara o direito de todos os trabalhadores de
serem amparados durante a velhice e o artigo 3º, a seguir reproduzido: Diz o artigo 3.º da
Constituição Italiana: Todos os cidadãos terão a mesma dignidade social e serão iguais perante a lei,
sem distinção de sexo, raça, língua, religião, opiniões políticas nem de circunstâncias pessoais e
sociais. É obrigação da República retirar os obstáculos de ordem econômica e social que, limitando
de facto a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno desenvolvimento da pessoa
humana e a participação efetiva de todos os trabalhadores na organização política, econômica e
social do país. Traduzimos.
746 A Corte Coztituzionale italiana não aplica a proteção da confiança, mas uma figura híbrida,

inferida do princípio da igualdade previsto no artigo 3.º da Constituição Italiana combinado com o
princípio da proporcionalidade - a ragionevolezza. Cf. CARIGLIA, Michela. L'operatività del principio
di ragionevolezza nella giurisprudenza costituzionale. In: LA TORRE, Massimo; SPADARO, Antonino.
La ragionevolezza nel diritto. Torino: G. Giappichelli, 2002, p. 174.
271

aplicando mais uma vez a proporcionalidade, entendeu pela inconstitucionalidade


da medida.747
Com efeito, em decisão de reenvio, o Tribunal de Contas
alegou, dentre outras violações específicas à Constituição da República Italiana,
ofensa ao princípio da proteção da confiança748 e da proporcionalidade, que
estariam implícitos em seu artigo 3.º,749 bem como violação ao artigo 6.º da
CDFUE750. Ademais, talqualmente se deu com contribuição extraordinária de
solidariedade751, alegou o órgão de reenvio que medidas excepcionais estavam
sendo repetidas, o que desnaturaria sua natureza extraordinária.
Ao julgar o caso, considerou a Corte italiana que o
dispositivo impugnado,752 “se analisado sob os aspetos da proporcionalidade e da
adequação, sugere que foram ultrapassados os limites da razoabilidade e da
proporcionalidade, o que causou prejuízo para o próprio poder de compra e
‘irremediável frustração da confiança legítima depositada pelo trabalhador no
tempo posterior ao encerramento de suas atividades’”.753
Retomando sua jurisprudência anterior, o tribunal
reafirmou que
O legislador, com base em um equilíbrio razoável dos
valores constitucionais, deve "ditar a disciplina de um
tratamento adequado às pensões, proporcionalmente aos
recursos financeiros disponíveis e sem prejuízo da garantia
indispensável dos requisitos mínimos de proteção do

747 Cf. Sentenza 70/2015.


748 Embora o Tribunal de Contas fale em princípio da segurança jurídica, sua articulação se dá mais
próxima da ideia de proteção da confiança, tal qual é entendida em Portugal: “É de se deduzir,
portanto, que a norma censurada também se mostra lesiva do princípio da confiança do cidadão na
segurança jurídica, garantido no artigo 3.º da Constituição, uma vez que os pensionistas adequam
seus programas de vida às previsões sobre sua própria disponibilidade financeira, com
consequente prejuízo para suas expectativas de vida.” Traduzimos. Cf. Sentenza 70/2015.
749 Diz o artigo 3.º da Constituição Italiana: Todos os cidadãos terão a mesma dignidade social e

serão iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, língua, religião, opiniões políticas nem de
circunstâncias pessoais e sociais. É obrigação da República retirar os obstáculos de ordem
econômica e social que, limitando de facto a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno
desenvolvimento da pessoa humana e a participação efetiva de todos os trabalhadores na
organização política, econômica e social do país. Traduzimos.
750 Dispõe o artigo 6.º da CDFUE que todas as pessoas têm direito à liberdade e à segurança.
751 Cf. Sentenza 70/2015.
752 Cf. Sentenza 70/2015.
753 No original: “La censura relativa al comma 25 dell’art. 24 del d.l. n. 201 del 2011, se vagliata

sotto i profili della proporzionalità e adeguatezza del trattamento pensionistico, induce a ritenere
che siano stati valicati i limiti di ragionevolezza e proporzionalità, con conseguente pregiudizio per
il potere di acquisto del trattamento stesso e con «irrimediabile vanificazione delle aspettative
legittimamente nutrite dal lavoratore per il tempo successivo alla cessazione della propria attività.”
Sentenza 70/2015.
272

segurado" (sentença nº 316 de 2010 ). Para evitar a


ocorrência de um "desvio não desejável "entre os salários e
as pensões", o legislador não pode contornar o limite de
razoabilidade (julgamento nº 226 de 1993).754

Em continuidade, a Corte italiana mantém seu tom


pedagógico dirigido ao legislador, afirmando ser ele responsável por "identificar
mecanismos adequados para assegurar a permanente adequação das pensões ao
aumento do custo de vida." E, finalmente, reitera a advertência ao legislador, de
que o critério da razoabilidade (ragionevolezza), já delineado em sua
jurisprudência, que o aplica ao conteúdo dos artigos 36 e 38 da Constituição
italiana, que veiculam princípios de proteção ao trabalhador e ao aposentado,
limita a discricionariedade do legislador e vincula suas escolhas à adoção de
soluções compatíveis com tais parâmetros constitucionais.755
Observa-se, assim - em mais uma semelhança com a decisão
do Tribunal Constitucional de Portugal -, que a Corte italiana invocou - ainda que
indireta e não tecnicamente - a tese da proteção da confiança e da
proporcionalidade em sentido estrito para ponderar a medida legislativa que
propunha a restrição do pagamento das pensões. Também, tal como se deu no caso
português, a tese da proibição do retrocesso não foi invocada.
Como é da tradição jurisprudencial constitucional italiana,
os princípios da proporcionalidade e razoabilidade foram invocados, ao lado dos
princípios da igualdade material e da solidariedade.756
Nesse sentido, na sentença n.º 26/1980, a Corte
Costituzionale italiana já havia entendido que a proporcionalidade e adequação da
medida não deveriam apenas ser observadas no momento da aposentadoria, mas
continuamente ao longo da percepção das pensões.757
A fim de superar as "inconstitucionalidades" apontadas pela
corte constitucional italiana, o governo italiano editou o Decreto-lei 65, de 21 de

754 Sentenza 70/2015. Considerando 8. Traduzimos.


755 Cf. Sentenza 70/2015. Considerando 8.
756 Sobre a evolução da jurisprudência italiana na matéria, cf. PETRACCI, Fabio; TEAT, Gianluca.

Corte costituzionale, retribuzioni e pensioni nella crisi: la sentenza 30 aprile 2015, n.º 70 – ragione e
conseguenze. Key Editore, 2015.
757 Cf. Sentenza n. 26/1980: “Proporzionalità ed adeguatezza, che non devono sussistere soltanto al

momento del collocamento a riposo, ma vanno costantemente assicurate anche nel prosieguo, in
relazione ai mutamenti del potere d'acquisto della moneta.” Proporcionalidade e adequação, que
não devem estar presentes apenas no momento da aposentadoria, mas devem ser constantemente
assegurados ao longo do tempo, proporcionalmente às alterações no custo de vida. Traduzimos.
273

maio 2015, convertido pelo parlamento italiano na Lei 109, de 17 de julho de 2015,
alterando dispositivos da Lei 214, de 22 de dezembro de 2011, e acrescentando
outras disposições.
Entre elas, estabeleceu nova regra para o reajuste
automático das pensões, a partir de 2012, de forma escalonada e proporcional aos
valores recebidos, conforme a tabela abaixo:

Valor da pensão em 2012/2013 Percentual de


reajuste a que
faz jus758

até 3 vezes o valor mínimo de pensão759 100%

3 vezes até quatro vezes o valor mínimo de pensão 40%

mais de 4 vezes até 5 vezes o valor mínimo de pensão 20%

mais de 5 vezes até 6 vezes o valor mínimo de pensão 10%

mais de 6 vezes o valor mínimo de pensão 0%

Para os valores de pensão referentes a 2014/2015 e a 2016,


a lei determina a aplicação dos valores de 20% e 50% respetivamente aplicáveis
aos valores da tabela acima.
A nova medida legislativa foi também questionada perante
os tribunais ordinários, sendo a questão levada, em caráter prejudicial, à Corte
Constitucional, a qual, na Sentenza 250, de 25 de outubro de 2017, entendeu que o
legislador "seguiu a lição".
Com efeito, na referida decisão, entendeu a Corte
Costituzionale que, "na intenção de implementar a Sentenza 70/2015, o legislador
fez um novo balanceamento dos valores e interesses constitucionais envolvidos na
matéria."760

758 Os valores percentuais não incidem sobre a totalidade das pensões, mas sobre os valores de
reajustes a que teriam direito. Assim, o aposentado que recebe menos de 3 vezes o mínimo pago
pelo INPS receberá a totalidade do reajuste automático. Já quem recebe acima de 6 vezes o mínimo,
não receberá qualquer reajuste.
759 O valor mínimo mensal de pensão corresponde a € 507,42, segundo a Circular n. 186, da

Direzione Centrale Pensioni do Istituto Nazionale Previdenza Sociale da Itália. Disponível em:
<https://www.inps.it/bussola/VisualizzaDoc.aspx?sVirtualURL=%2fCircolari%2fCircolare%20nu
mero%20186%20del%2021-12-2017.htm.> Acesso em 20 fev. 2018.
760 Sentenza 250/2017. Considerando 6.1. Traduzimos.
274

Ao ter estabelecido um escalonamento melhor definido,


mesmo excluindo do reajuste as pensões mais elevadas, entendeu a Corte que o
legislador observou os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.761

761 Sentenza 250/2017. Considerando 6.5.2.


275

4.5. ANÁLISE COMPARATIVA DOS CRITÉRIOS EMPREGADOS PELAS CORTES


CONSTITUCIONAIS

Observam-se, nos acórdãos analisados, problemas de lógica


e técnica jurídica. Em termos gerais, os problemas comuns são a ausência de
manifestação das pré-compreensões do tribunal acerca do raciocínio lógico
formulado, a falta de um silogismo preciso entre premissas e síntese, a incoerência
de argumentações no mesmo acórdão e, mais especificamente no caso do TC, a
incoerência entre julgamentos próximos, dentre outros.
José de Melo Alexandrino resume o problema do que
considera “distinções omissas ou insuficientemente recortadas pelo Tribunal
Constitucional”:
(i) a distinção entre bens e interesses constitucionalmente
protegidos e outros bens e interesses; (ii) a distinção entre
posições constitucionais (direitos fundamentais) e posições legais
(como o direito a uma determinada pensão); (iii) a distinção entre
direitos fundamentais constitucionalmente determinados (como
sucede com a generalidade dos direitos, idades e garantias) e
direitos fundamentais essencialmente configurados por lei
(podendo estar ou não sujeitos à limitação intrínseca do
financeiramente possível); (iv) a distinção entre a função e o
conteúdo da norma (particularmente relevante no caso dos ditos
princípios estruturantes); (v) a distinção entre o conteúdo da
norma e o respectivo alcance como parâmetro de controlo; enfim,
a distinção entre os diferentes graus de intensidade do
controlo.762

4.5.1. A metodologia empregada

O STF não explicitou um método para o julgamento desses


casos, razão pela qual a análise de suas conclusões – conquanto por esse dado reste
comprometida – será feita diante da compreensão técnico-jurídica dos institutos
envolvidos.
Também a Corte Costituzionale é questionada pela doutrina
italiana pela falta de critérios na apreciação da matéria. Isso, porque no julgamento
em semana anterior à prolação da Sentenza 70/2015, a Corte Costituzionale havia
proferido outra decisão em matéria financeira e orçamentária, em que a Corte
determinou que o pagamento dos valores atrasados deve ser feito em observância
ao equilíbrio econômico-financeiro do orçamento do Estado.763

762ALEXANDRINO, José de Melo. Jurisprudência da crise..., cit., p. 67.


763Cf. MORRONE, Andrea. Ragionevolezza a rovescio: l’ingiustizia della sentenza n. 70/2015 della
Corte Costituzionale. Federalismi.it: Rivista di Diritto Pubblico Italiano, Comparato, Europeo, n. 10,
276

De fato, em ambas as decisões, proferidas no mesmo mês, o


Tribunal administrou o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade
chegando a conclusões antagônicas em questões aparentemente convergentes.
Nesse ponto, há que se reconhecer os esforços do TC na
indicação de um método para aplicação da tutela da confiança. Tal enunciação de
critérios pelo TC não constitui per si uma manifestação ativista do Tribunal. Trata-
se da transparência de uma tentativa de universalização de critérios para evitar o
casuísmo do Tribunal. Ocorre que o conteúdo de tais critérios e a metódica
empregada levam igualmente ao casuísmo e à possibilidade de decisões diferentes
com a utilização do mesmo método, o que se pode verificar na divergência entre os
votos dos membros do TC. Convém, portanto, analisar a referida metodologia.
Em primeiro lugar, os quatro requisitos enunciados pelo TC
devem ser aplicados em caráter consecutivo e prejudicial. Assim, uma norma não
viola a confiança, se: (1) não existirem expectativas objetivas e subjetivas; (2) se,
existindo expectativas, essas forem ilegítimas; (3) se estas forem legítimas, que não
tenham influenciado o planejamento da vida das pessoas; (4) se o tiverem feito,
que tal influência não gere expectativa com mais peso que o interesse público em
jogo; (5) se tiverem gerado, que a medida seja introduzida gradualmente.
Os três primeiros testes são, com as ressalvas que se faz a
seguir, mais delimitados. O problema reside na densificação e nos aspetos
estruturais do último teste – o da proporcionalidade, que apresenta as mesmas
inconsistências já conhecidas no critério de ponderação.

4.5.2. Outra solução seria possível?

Sem adentrar na distinção feita por Ricardo Guastini entre


Doutrina e Ciência do Direito764, cabe ao jurista, enquanto intérprete-cientista (ou
intérprete doutrinador), diante das soluções adotadas por um órgão legitimado a
interpretar o Direito (intérprete judicial), confrontá-las com aquelas que emanam
das próprias bases do sistema que o autorizam.

2015. Disponível em: <http://www.federalismi.it/nv14/articolo-documento.cfm?Artid=29515&


content=&content_author=>. Acesso em 5 ago. 2017.
764 Ou, mais precisamente, entre interpretação e descrição. A interpretação, segundo Guastini,

envolve a atribuição de (novo) significado a um texto normativo, e não sua mera descrição Cf.
GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare. Milano: Giuffre Editore, 2011, p. 213 et seq.
277

Como teoriza Guastini, ao intérprete judicial caberia a função


de decisão sobre a prevalência (ou escolha) de um dos sentidos possíveis dos
textos normativos. Já o intérprete-cientista tem a função de desvelar seus diversos
sentidos possíveis.765
Esse dever não vela qualquer intenção do cientista em agir
sobre o dever-ser, mas em extrair, a partir de um método referencial
hermenêutico, uma norma concreta (produzida naturalmente pelo processo de
interpretação que cria a norma a partir do texto), único modo de oferecer o
paradigma necessário para dizer se a solução dada pelo órgão legitimado é
possível para o sistema. E, em sendo possível, indagar sobre a escolha efetuada.
No caso do corte das pensões, sem desconsiderar a
complexidade da matéria, seria possível ao TC e ao STF adotar, dentre outras
eventuais respostas possíveis oferecidas pelos sistemas jurídicos português e
brasileiro, outra interpretação a respeito de sua constitucionalidade, como se
destacou em cada item abordado.

4.5.3. A questão do direito adquirido às pensões e ao seu valor

O TC e o STF têm posicionamentos distintos acerca do


alcance do direito adquirido às pensões.
O STF entende que não há direito adquirido ao valor das
pensões, mas apenas à percepção de uma pensão. 766 Para o TC, porém, o direito
adquirido atinge inclusive o direito ao seu valor, como demonstra o acórdão nº
862/2013:
Com o reconhecimento, ou desde que se encontrem
reunidos todos os requisitos necessários ao seu
reconhecimento, o direito à pensão entra na esfera jurídica
do aposentado com a natureza de verdadeiro direito
subjetivo, um «direito adquirido» que pode ser exigido nos
termos exatos em que for reconhecido.767

Embora o TC trate o direito à pensão como direito adquirido,


ele confere peso e consequências diversas ao princípio. Isso ocorre porque a
proteção dada pelo direito adquirido no ordenamento jurídico português é

765 Cf. GUASTINI, Riccardo. Problemi epistemologici del normativismo. In: COMANDUCCI, P.;
GUASTINI, R. (eds). Analisi e diritto 1991. Ricerche di giurisprudenza analítica: Torino: Giappichelli,
1991, p. 185
766 Cf. STF. ADI 3128/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Cesar Peluso. J. 18/08/2004.
767 Cf. TC. Processo n.º 1260/13. Acórdão n.º 862, de 19 de dezembro de 2013. (Grifos do autor).
278

sopesada ou subordinada ao teste da confiança. Assim, após reconhecer o direito


adquirido à pensão, o TC o submete o direito adquirido a uma ponderação de
acordo com os critérios expostos de tutela da confiança. Com esteio em Jorge
Miranda e Rui Medeiros, afirma o TC:
O direito à pensão, enquanto direito adquirido, fundado na
lei, com existência real, material, individualizado e
incorporado no patrimônio do aposentado, a vencer
mensalmente, em princípio, está mais protegido em relação
a quaisquer modificações legislativas posteriores. Aí, o
princípio da tutela dos direitos adquiridos, positivado nos
artigos 20.º e 66.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro,
representa o acolhimento no plano infraconstitucional da
ideia tuteladora do princípio constitucional da proteção da
confiança. Neste contexto, referem Jorge Miranda e Rui
Medeiros que, “quanto mais consistente for o direito do
particular, mais exigente é o controlo da proteção da
confiança” (ob. cit., pág. 643).768

Essa subordinação do princípio do direito adquirido à tutela


da confiança não ocorre no Brasil, segundo a jurisprudência do STF. Se, no mesmo
caso, reconhecesse a Corte brasileira que o direito à pensão estaria protegido pelo
direito adquirido, ela declararia a inconstitucionalidade de sua alteração ou
supressão, sem proceder a uma nova ponderação com base na confiança.
Tal posição do STF, porém, não se justifica. O facto de a
Constituição brasileira, diversamente da Constituição portuguesa, conferir status
de princípio constitucional ao direito adquirido, não impede a incidência do
princípio da proteção da confiança, que decorre diretamente da condição de Estado
de direito.
No entanto, se para o TC a aplicação dos testes da confiança
tem lugar mesmo diante de um direito adquirido, para o STF a não proteção pelo
direito adquirido autorizaria a retroatividade inautêntica da lei ou da alteração
constitucional, entendimento que desconsidera a proteção constitucional conferida
pelo princípio da confiança legítima.
No caso brasileiro, diferentemente da primeira tentativa
portuguesa, o corte de aposentadorias no Brasil deu-se sob a forma de tributação,
não de mera supressão do valor (o que, em termos financeiros, teria o mesmo
efeito). Com essa tática jurídica, o legislador brasileiro contornou eventual violação

768 Cf. TC. Processo n.º 1260/13. Acórdão n.º 862, de 19 de dezembro de 2013.
279

a princípios constitucionais de proteção ao valor da aposentadoria (como


irredutibilidade da remuneração e o próprio direito adquirido ou o ato jurídico
perfeito), atraindo para a discussão os princípios do direito tributário.
Como já visto, o STF, no julgamento da instituição da
contribuição previdenciária dos aposentados, reconheceu seu caráter tributário,
apreciando a questão sob esse ângulo e concluindo que não há direito adquirido
contra tributos.769
A Corte constitucional brasileira deixou, assim, de se
pronunciar sobre a aplicação ao princípio da proteção da confiança talqualmente a
Corte portuguesa.
Deveras, para o TC de Portugal, a natureza tributária da CES
e da CS foi igualmente invocada, o que não impediu, ao contrário do que ocorreu no
Brasil, a aplicação dos testes da confiança. Conquanto no sistema português não
haja proteção constitucional ao direito adquirido, esta proteção se dá no nível
legal, com previsão expressa na Lei Geral de Bases da Segurança Social,
constituindo uma autovinculação do legislador. Embora revogável, pois não se
trata de densificação de uma imposição constitucional, tal revogação deve ser feita
dentro da própria lei que instituiu essa previsão, e não tacitamente por uma lei
orçamentária.
No acórdão n.º 187/2013, o TC mencionou o direito
adquirido em algumas passagens, mas não o invocou para apreciar a
constitucionalidade do art. 78, que previa o aumento da CES. Já no acórdão n.º
862/2013, o direito adquirido foi relativizado, sob o argumento de observação do
“princípio da justiça intergeracional”.770 E, no acórdão n.º 575/2014, o TC citou en
passant o direito adquirido, declarando inconstitucional a CS por outros
fundamentos ligados à finalidade emergencial da instituição do tributo.

769 Cf. ADI 2010/DF. Acórdão.

770 Segundo o TC, o princípio da justiça intergeracional “poderá justificar um corte nas pensões que
se insiram já no campo dos designados “direitos adquiridos”, uma vez que a proteção rígida desses
direitos poderia traduzir-se numa ameaça a toda uma geração que, pelo simples facto de reunir os
pressupostos para adquirir o direito à pensão num momento posterior, teria de sustentar a
manutenção do nível de reformas dos já detentores dos “direitos adquiridos”, mesmo que isso
pusesse em causa a sustentabilidade do sistema e se traduzisse numa profunda injustiça
intergeracional”. O termo mantra é dado por Jorge Reis Novais. Cf. NOVAIS, Jorge Reis. O direito
fundamental à pensão de reforma em situação de emergência financeira. E-pública - Revista
Eletrônica de Direito Público, n. º 1, 2014, p. 25.
280

No julgamento da ação proposta, em sede de controle de


constitucionalidade, questionada eventual violação ao princípio da proteção da
confiança, entendeu o Tribunal Constitucional de Portugal que apenas estavam em
causa “direitos em formação, uma vez que as normas questionadas não afectam os
direitos já adquiridos pelos funcionários públicos, relativamente à sua
aposentação.”771
Quanto às expectativas dos particulares, porém, o TC não as
considerou legítimas, pois,
perante o registo de significativas alterações em factores
com forte influência num sistema de financiamento da
segurança social essencialmente contributivo, fosse
expectável que as condições de aposentação dos
funcionários públicos permanecessem imutáveis e
indiferentes a tais mudanças.772

O mesmo entendimento foi adotado pelo Supremo Tribunal


Federal. Aplicando o precedente daquela Corte na ADI 3104-0/DF, o Tribunal
decidiu que a EC n.º 20/1998 atingiria apenas direitos em formação e os titulares
de tal direito tinham mera expectativa de direito, não propriamente um direito
adquirido. Adotou o STF a mesma fórmula empregada pela jurisprudência italiana
de igualar o direito adquirido ao brocardo tempus regit actum nas relações
previdenciárias.773
Embora os julgados do STF e do TC tenham apresentado
conclusões muito parecidas, ambos percorreram caminhos argumentativos
diversos. De fato, o TC empregou o princípio da proteção da confiança para avaliar
a constitucionalidade das leis que atingem os direitos em formação ou a expectativa
de direito. Já o STF centrou sua análise na tese de “modelo binário direito
adquirido/expectativa de direito”, o que foi objeto de críticas por integrantes do
mesmo Tribunal. 774
No julgamento da ADI 3104-0/DF, no entanto, os Ministros
Gilmar Mendes e Carlos Ayres Britto defenderam a aplicação do princípio da
proteção da confiança, a par dos princípios da segurança jurídica, da razoabilidade

771 Cf. acórdão n.º 3/2010.


772 Cf. acórdão n.º 3/2010.
773 ADI 3104/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carmen Lúcia. J. 26/09/2007. Cf. TARCHI,

Rolando. Le leggi di sanatoria nella teoria del diritto intertemporale. Milano: Giuffrè, 1990, p. 271-5.
774 Cf. crítica do Ministro Gilmar Mendes em sua declaração de voto no processo. ADI 3104/DF.

Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carmen Lúcia. J. 26/09/2007.


281

e da proporcionalidade, para análise da constitucionalidade da reforma.775Ambos,


porém, deixaram de analisar de maneira mais aprofundada a problemática dos
direitos adquiridos e dos direitos em formação, pelos seguintes motivos.
Em primeiro lugar, não houve a devida explicitação de uma
conceção de direito adquirido, segundo a teoria geral do direito. Em segundo lugar,
não foram discriminados os tipos de direito adquirido, como já tratado na parte 3
deste trabalho. Em terceiro lugar, o objeto do direito adquirido no caso em análise
não foi determinado.
Com efeito, o núcleo do problema em torno do direito
adquirido reside na intertemporalidade. Na parte 3 explicou-se que, em regra, as
leis, como corolário da segurança jurídica, são prospectivas, não retroativas.
Algumas normas, porém, excepcionalmente, alcançam fatos passados
(irretroatividade autêntica) ou apenas fatos pendentes de fatos pretéritos
(irretroatividade inautêntica).
A irretroatividade inautêntica se observa com mais
frequência quando a lei vai alterar o regime aplicável a direitos que envolvam
prestações de trato sucessivo, que se prolongam indefinidamente, como é o caso
típico da aposentação, o qual gera o direito a prestações de trato sucessivo, com
prazo indeterminado.
Segunda a jurisprudência brasileira, tais prestações não se
renovam mensalmente776, pois o direito é constituído no momento da aposentação.
Esses direitos apenas apresentam uma causa de extinção, que se confunde com
uma condição resolutiva - a vida do segurado. Tal causa de extinção funciona como
um condição mensal, conferindo-lhe uma natureza complexa: é, ao mesmo tempo,
um facto pendente, pois o direito à aposentadoria depende de o segurado estar
vivo, cessando imediatamente após sua morte; e um efeito de facto passado, na
medida em que o direito à pensão e ao seu valor se constituiu no passado, mas sua
percepção se dá no futuro, por prazo indeterminado. Assim, uma lei que modifica o
cálculo da pensão, ainda que tenha apenas eficácia ex nunc, alcançará efeitos
futuros (percepção da pensão) de fatos preteritamente constituídos.777 Por isso,

775 ADI 3104/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carmen Lúcia. J. 26/09/2007.
776 Cf. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 737694. Dje 27/02/2014.
777 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional: teoria da constituição…, cit., p. 484;

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição…, cit., p. 262;
282

pode-se afirmar que os “cortes” das pensões no Brasil778 e em Portugal 779 afetam o
direito adquirido às pensões.780
No caso brasileiro, o corte foi efetivado por emenda à
Constituição e assumiu a natureza jurídica de tributação, o que afasta a tese do
direito adquirido, uma vez que não há direito adquirido contra instituição de
tributo. Já, no caso de Portugal, o corte se deu diretamente pela lei orçamentária,
contrariando expressamente a proteção ao direito adquirido prevista na Lei de
Bases da Segurança Social, motivo pelo qual deveria o TC ter declarado inválidos os
cortes e tributações sob esse aspeto, por solução de antinomia normativa entre a
lei orçamentária (geral) e a Lei de Bases da Segurança Social (específica quanto à
explicitação de princípios). Não se trataria, portanto, de declaração de
inconstitucionalidade, mas de constatação de prevalência da Lei de Bases de
Segurança Social.
Sob outro aspeto, porém, uma alternativa se mostra possível
diante do caso concreto. É que, remetendo-se ao item "Direitos em formação:
expectativa de direito ou direito adquirido" na parte 3, adota-se neste trabalho a
tese de que, segundo a conceção prevista na Lei de Introdução às Normas no
Direito Brasileiro, há direito adquirido às condições de aposentação, o que não
implica dizer que tal direito vincula de modo absoluto o legislador, porquanto
mesmo tal princípio pode ser sopesado com o princípio da segurança jurídica e da
proporcionalidade.

NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais…, cit., p. 147.


778 Como entenderam os Ministros Carlos Ayres Brito e Celso de Melo, no julgamento da ADI

3128/DF. Cf. STF. ADI 3128/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Cesar Peluso. J. 18/08/2004.
779 Assim também entendeu o TC. Cf. Processo n.º 1260/13. Acórdão n.º 862, de 19 de dezembro de

2013.
780 Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Direito adquirido proporcional..., cit., p. 18-19. No mesmo

sentido, posiciona-se Sérgio Resende de Barros: “Pelo princípio da irretroatividade, a reforma


(previdenciária) não atinge em nada os fatos pretéritos, atinge em tudo os fatos futuros, atinge em
parte os fatos pendentes. Mas, destes, que parte é atingida? Há direitos que dependem só de serem
exercitados (iura pendentia exercitatione) e há os que pendem de aquisição (iura pendentia
acquisitione). Na primeira categoria, os direitos dependem apenas de execução ou exercício pelo
titular que os adquiriu. O direito está adquirido, pois estão atendidas todas as condições aquisitivas.
Apenas não foi exercitado. Mas sua execução e seu exercício estão compreendidos na sua aquisição,
sob pena de ser adquirida uma coisa e recebida outra, o que seria fraude do próprio direito. Daí a
inconstitucionalidade da tributação dos inativos: o direito deve ser exercitado nas mesmas
condições em que foi adquirido. Não pode sofrer abatimento sem ser ferido. Cf. BARROS, Sérgio
Resende de. A reforma da previdência..., cit. (sublinhamos). NOVAIS, Jorge Reis. O direito
fundamental à pensão…cit., p. 6 et seq.
283

Já no caso português, a definição legal do instituto do direito


adquirido não apresenta o componente previsto na legislação brasileira, a saber, a
previsão de inalterabilidade arbitrária da condição pré-estabelecida. Nesse caso,
diversamente do conceito legal brasileiro, pode-se afirmar que os direitos em
formação não são considerados direitos adquiridos a condições.
Ocorre que mesmo havendo essa distinção conceitual em
ambos os sistemas, o mesmo facto - o direito em formação - que no Brasil pode ser
protegido pelo princípio constitucional do direito adquirido, e que em Portugal não
é alcançado pelo princípio legal do direito adquirido, podem ter,
contraditoriamente, os mesmos efeitos. Isso porque os princípios da segurança
jurídica, especialmente na modalidade proteção da confiança, e da
proporcionalidade, modulam em sede de ponderação o princípio do direito
adquirido.
No caso brasileiro, e.g., o direito adquirido pode não limitar a
atuação do legislador se a norma produzida estiver amparada em outro princípio
constitucional, hipótese em que deverá haver a aplicação dos testes de
proporcionalidade.
Já no caso português, ainda que a norma produzida pelo
legislador não viole o direito adquirido, previsto em legislação infraconstitucional,
mas apenas direitos em formação, ela pode ser considerada inconstitucional por
violar o princípio da proporcionalidade e da proteção da confiança.
Observa-se, portanto, que o direito adquirido, ainda quando
reconhecido expressamente como princípio constitucional, como se dá no caso
brasileiro, ocupa uma função secundária diante dos princípios da segurança
jurídica e da proporcionalidade.
284

4.6. MUTAÇÕES CONSTITUCIONAIS CIRCUNSTANCIAIS?

Os acórdãos da crise sofreram inúmeras críticas da doutrina


por criarem normas não previstas na CRP e por densificarem conteúdos e
atribuírem sentidos até então não admitidos,781 como a impressão de efeitos pro
futuro782 e a invocação de princípios como a justiça intergeracional,
sustentabilidade e dimensão objetiva da proteção da confiança.783 Por tal razão,
Carlos Blanco de Morais afirma que a jurisprudência da crise aplicou um princípio
não explicitado na CRP - o princípio da "conjuntura econômico-financeira
excecional"784. Essa mudança na jurisprudência do TC representaria uma mutação
constitucional aplicável aos tempos de crise?
O termo mutação constitucional é concebido como uma
alteração de sentido da Constituição, sem modificação do seu texto escrito.785
Trata-se de um fenômeno excepcional explicado pela teoria geral do direito, a qual
reconhece, com variações, a tese da distinção entre norma e texto, sendo a
primeira produto do texto em consonância com a realidade.786 Consiste, na
tipologia adotada por Carlos Blanco de Morais, em alterações implícitas da
Constituição.787
Uma mutação constitucional pode se dar de diversos
modos,788 interessando aqui somente aquela que decorreria da própria

781 Cf., dentre eles, NOVAIS, Jorge Reis. O direito fundamental à pensão..., cit., p. 25. ALEXANDRINO,
José de Melo. Jurisprudência da crise..., cit., p. 65; MORAIS, Carlos Blanco de. As mutações
constitucionais implícitas e os seus limites jurídicos: autópsia de um acórdão controverso. Jurismat
– Revista Jurídica do Ismat, n.º 3, 2013, p. 55 et seq.
782 Cf. Processo n.º 40/12. Acórdão n.º 353/12.
783 Cf. Acórdãos n.ºs 353/12, 187/13, 862/13, 413/14, 572/14, 575/14 e 260/15.
784 MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito..., cit., p. 711.
785 Os autores brasileiros usualmente empregam o termo "modificações" para se referir ao gênero e

o termo "mutações" para se referir às modificações informais. Carlos Blanco de Morais adota
tipologia diversa, empregando a expressão "mutação informal" como espécie de alterações
implícitas, a par da interpretação evolutiva. Cf. FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos
informais de mudança da constituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São
Paulo: Max Limonad Ltda., 1986, p. 10. Para uma definição mais ampla, conceito e histórico, cf.
MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional: teoria da constituição..., cit., p. 242 ss; e,
do mesmo autor: As mutações constitucionais implícitas…, cit., p. 61 et seq. Ver ainda BARROSO, Lu s
Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção
do novo modelo. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2011, p. 148 - 149
786 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5. ed. rev. e

ampl. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 31.


787 MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito..., cit., p. 238.
788 Sobre as fontes de mutação constitucional cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito

constitucional: teoria da constituição..., cit., p. 248 et seq.


285

interpretação jurisdicional, hipótese em que a modificação da norma se deve pela


alteração na compreensão da realidade pelo julgador.
Convém distinguir, porém, uma mutação constitucional de
uma interpretação constitucional evolutiva. De fato, Bockenförde demonstra quatro
situações que, embora parecidas, não se consideram mutações constitucionais, a
saber: a) quando há alteração da realidade fática sobre a qual a norma
constitucional se projeta; b) a densificação de normas por previsão expressa da
Constituição; c) a determinação de conceitos constitucionalmente indeterminados
e, d) determinação de conceitos extrajurídicos.789
Com base nessa distinção, também aqui adotada, Carlos
Blanco de Morais define mutação constitucional (informal) como
normas substanciais de conteúdo politicamente inovador, geradas
e gradualmente consolidadas pelos poderes político e
jurisdicional, à margem do poder formal de revisão e que se
revelam aptas a operar efeitos materialmente derrogatórios das
normas constitucionais, a transformar e afetar o seu programa
político ou surgir como aditamentos ao texto constitucional.790
Nesse sentido, os acórdãos da crise refletiram mais uma
interpretação evolutiva que propriamente uma mutação constitucional. No caso da
modulação de efeitos pro futuro, v.g., o TC fundamentou sua aplicação no artigo
282.º, n.º 4, da CRP, que prevê a possibilidade de o TC dar alcance mais “restrito”
aos efeitos da decisão, desde que, fundamentadamente, a segurança jurídica,
razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo o exijam. Assim, a
decisão apenas aplicou dispositivo constitucional, podendo ser justificada no item
"a" do parágrafo anterior, considerando-se que a modulação aplicada teve por base
a situação fática conjuntural e futura.
A modulação de efeitos de uma decisão de
inconstitucionalidade é, no plano jurídico, absurda, na medida em que confere
validade a norma que se reputa, no mesmo ato, inválida. Razões metajurídicas,
contudo, justificam seu uso, motivo pelo qual tal recurso é contemplado no direito
constitucional comparado. 791

789 Cf. BOCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Estúdios sobre el estado de derecho y la democracia. Trad. de
Rafael de Agapito Serrano. Madrid: Editorial Trotta, 2000, p. 185 et seq.
790 MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito..., cit., p. 238.
791 Como no Brasil (art.º 27.º da lei n.º 9.868 de 1999) e na Áustria (art.º 140, n.º 7). No Brasil, tal

possibilidade é ainda mais questionável, uma vez que está apenas previsto em lei, sem qualquer
previsão constitucional nesse sentido. Curiosamente, uma Emenda à Constituição, manifestação do
poder constituinte derivado, pode ser limitada com base em uma lei ordinária (a Lei n.º 9.868/99,
286

Apesar da previsão constitucional, tal modulação cria, no


caso de declaração de inconstitucionalidade por violação à proteção da confiança
ou da própria segurança jurídica objetiva, uma contradição: é que, ao modular os
efeitos baseado na segurança jurídica, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da CRP,
pode se convalidar uma decisão de inconstitucionalidade de ato que igualmente
tenha atentado à segurança jurídica, quer em sua dimensão objetiva, quer em sua
dimensão subjetiva. Por essa e outras razões, a modulação de efeitos sofre críticas
na doutrina.792
Já o emprego dos conceitos de justiça intergeracional, de
sustentabilidade e de confiança objetiva decorrem de uma mudança de
interpretação da CRP pelo TC à luz da mudança da realidade circunstancial em
tempo de crise.
Com efeito, um sistema constitucional fortemente axiológico
certamente conterá normas sensíveis a crises e sujeitas – portanto – a mutações
jurídicas.793 Essa previsibilidade de mutação jurídica, constitucional ou
infraconstitucional, constitui elemento empregado pelo TC no teste da confiança.794
Posto que o TC não tenha promovido uma metanarrativa da
crise para justificar suas recentes decisões, a crise certamente influenciou sua
jurisprudência, encontrando-se na retórica presente em algumas de suas últimas
decisões, nos juízos de ponderação795, além de reconhecimento expresso pelo seu
Presidente.796
De fato, no acórdão 399/2010, houve referência ao termo
crise para “relativizar a legitimidade das expetativas de que os salários e a
generalidade das prestações sociais nunca diminuam ou encolham ou de que os
impostos nunca se agravem.”.797 Ao ponderar que os contribuintes já teriam
conhecimento de que a crise econômica europeia atingiria Portugal e que era de

aprovada por maioria simples).


792 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. As mutações constitucionais…cit., p. 59-60.
793 Oren Gross fala em interpretative accomodation para se referir ao fenômeno de mudança de

interpretação das normas para acomodá-las à crise, como se deu no caso da jurisprudência da
Suprema Corte após os atentados de 11 de setembro de 2001. Cf. GROSS, Orer. Chaos and rules:
should responses to violent crises always be constitutional? The Yale Law Journal, v. 112, n. 5, fev.
2003, p. 1059.
794 Cf. TC. Acórdão 187/2013.
795 Cf. URBANO, Maria Benedita. A jurisprudência da crise…cit., p. 13 et seq.
796 O qual teria afirmado que “o texto respira o ar do seu contexto”, conforme destaca

ALEXANDRINO, José de Melo. Jurisprudência da crise..., cit., p. 56.


797 Cf. URBANO, Maria Benedita. A jurisprudência da crise…cit., p. 15.
287

conhecimento de todos, inclusive os contribuintes portugueses, a conjuntura de


crise foi determinante no teste da confiança.798 Também nos acórdãos 396/2011 e
187/2013 o elemento crise foi determinante para a decisão do TC.799
Por outro lado, no acórdão 575/14, o mesmo argumento da
crise não foi suficiente para, na aplicação do teste da proporcionalidade, admitir a
desvinculação do legislador à necessidade de respeitar as expectativas legítimas
dos particulares atingidos pelas medidas de “combate à crise”.
Poder-se-ia afirmar ter havido, nos acórdãos 399/2010,
396/2011 e 187/2013, uma verdadeira mutação constitucional circunstancial da
CRP por parte do TC. Em decorrência, o princípio da proteção da confiança e o
próprio direito adquirido legalmente previsto passariam a ter outro menor alcance
diante de momentos de crise, prevalecendo elementos extraídos da metanarrativa
da crise.
Ocorre, porém, que o acórdão n.º 575/2014 não seguiu a
mesma orientação. Se a situação fática se manteve (crise financeira) e a norma não
foi alterada, não há razão juridicamente legítima que justifique a mudança de
orientação pelo Tribunal, o que Maria B. Urbano intitula como "bipolaridade".800
É verdade que os julgadores são seres humanos, os quais
podem ser, de fato, atingidos por uma "bipolaridade" (transtorno psiquiátrico que
provoca instabilidade de humor). Nem o julgador, no uso de sua "toga", tampouco
os Tribunais, podem apresentar oscilações de "humor" que afetem o resultado das
decisões jurídicas, pois uma das razões de ser do Poder Judiciário, se não a
principal, é a garantia da segurança jurídica.
Assim, a oscilação do entendimento do TC pode indicar a
presença das seguintes circunstâncias: má-técnica no emprego dos elementos
lógico-racionais de hermenêutica pelo tribunal, gerando tais incoerências; má-fé na
modulação dos argumentos para atender a decisões políticas subjetivas ou
interesses particulares; ou ativismo judicial.

798 Cf. Acórdão n. º 399/2010.


799 No Acórdão n. º 187/2013, reconheceu o TC que: “a relativização das expectativas que podem
legitimamente criar-se em torno da irredutibilidade das remunerações a pagar por verbas públicas,
é agora, por força da manutenção da situação de excecionalidade financeira, mais acentuada e
evidente.(...) Não se trata, assim, de uma mutação da ordem jurídica com que os destinatários das
normas dela constantes, no contexto global em que foi introduzida, não pudessem verdadeiramente
contar (...)”.
800 URBANO, Maria Benedita. A jurisprudência da crise…cit., p. 13 et seq.
288

Se desconsiderarmos, no entanto, a ocorrência de quaisquer


desses elementos, e admitirmos, à exceção do acórdão n.º 575/2014, a ocorrência
de mutação constitucional circunstancial nos acórdãos anteriores, ela não pode se
dar por meio de uma sentença aditiva.801
Com efeito, como reconhece Celso de Mello, Ministro do STF,
mesmo diante de uma razão histórica ou circunstancial de alteração de normas
constitucionais para atender a necessidades políticas, sociais ou econômicas, não
pode o Poder Judiciário se substituir ao Poder Legislativo, justificando uma
alteração das normas constitucionais por via de uma sentença aditiva ao abrigo de
uma pretensa "mutação constitucional". Nas palavras do Ministro, “impor-se-á a
prévia modificação do texto da Lei Fundamental, com estrita observância das
limitações e do processo de reforma estabelecidos na própria Carta Política”.802
Tal posicionamento, lançado em 13.6.2002, não tem sido
observado nas recentes decisões. No julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277, v.g., o
STF superou a literalidade do artigo 226, §3º, da CRFB-88, que dispõe ser
reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar,
para efeito de proteção do Estado, interpretando o dispositivo como abrangendo a
união entre pessoas do mesmo sexo, em virtude de uma suposta "mutação
constitucional" que decorreria de diversos argumentos de natureza extrajurídica.
A mutação constitucional não pode, assim, ser fruto da
“cabeça” dos juízes do tribunal, mas deve ser aceita pela “sociedade aberta” e
decorrer de um consenso social.803
Nessa mesma linha, não poderia o TC produzir uma mutação
informal (ou inconstitucional) da Constituição, velada sob a forma de aplicação de
princípios como a proporcionalidade e confiança, como um atalho para driblar a
exigência de sua mutação formal.
Por isso, ao contrário do que afirma Jorge Reis Novais, o
estado de crise justificou a aplicação do que chamou de um direito especial, se é que
se pode afirmar que se tratou, propriamente, da aplicação do direito vigente. 804

801 BLANCO DE MORAIS, As sentenças com efeitos aditivos. In: MORAIS, Carlos Blanco de. (Coord.).
As sentenças intermédias da justiça constitucional. Lisboa: AAFDL, 2009, p. 25-26.
802 Cf. ADI 2010/DF. J. 13.6.2002.
803 Cf. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da

constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da constituição. Trad.


Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2002, p. 12-15.
289

4.7. ATIVISMO JUDICIAL OU POLÍTICO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL?

Os problemas demonstrados na aplicação de princípios


vinculantes do legislador levam a questionar se não houve um ativismo judicial ou
político dos tribunais.
De fato, a atividade hermenêutica, mormente aquela com
grande impacto social, como as decisões dos tribunais constitucionais, é
reconhecidamente complexa e seus efeitos políticos e econômicos interferem na
análise subjetiva do julgador, a par das próprias opções metodológicas que podem
alterar o resultado lógico-dedutivo obtido a partir das mesmas premissas, bem
como das diferentes propensões axiológicas, que podem levar cada julgador a
partir de uma premissa diferente. Não obstante, essa "discricionariedade" do
julgador encontra limites na coerência lógica e na própria discricionariedade
legislativa.
Nesse sentido, ao contrário do que defende Jorge Reis
Novais, a sociedade não deve se conformar passivamente com as decisões do Poder
Judiciário, se elas se fundarem, preponderantemente, em razões políticas, ainda
que não assumidas. O Poder Judiciário, na qualidade de legislador negativo, assume
a mesma importância política que os demais Poderes, devendo também arcar com
a pressão social exercida. Por essa razão, assim como os demais, a tomada de
decisões do Poder Judiciário, por influenciar toda a sociedade, deve sofrer controle
social e institucional permanente e criterioso. Apesar disso, a responsabilidade do
Poder Judiciário é bem mais tênue: enquanto o Poder Legislativo e o Poder
Executivo possuem uma responsabilidade política perante a sociedade pelo
insucesso das medidas adotadas, o Poder Judiciário deve apenas ser cobrado pela
clareza, coerência e razoabilidade de suas decisões.
A ausência desses elementos nas decisões judiciais pode ser
causada por ativismo judicial, má-fé ou má-técnica, sendo importante distingui-las,
pois podem ter consequências e soluções diversas. Com efeito, as três
circunstâncias teriam o condão de tornar nula a decisão judicial.
Pode-se buscar indícios de um ativismo judicial, de forma
isolada, mediante processos indutivos. Nessa análise, critérios estruturais da

804NOVAIS, Jorge Reis. Em defesa do tribunal constitucional: resposta aos críticos. Coimbra:
Almedina, 2014, p. 43.
290

decisão ou mesmo a consciência do julgador sobre seus limites competenciais


podem apontar erros ou má-técnicas. O motivo desse erro pode se dar
basicamente por duas razões: falha técnica e desvio de finalidade. Uma decisão
política representa um desvio de finalidade. Uma decisão ativista pode decorrer de
uma decisão política ou meramente de uma invasão de competência. Deveras, já foi
adotado em sede de pré-compreensões que o ativismo é a invasão de competência
dos demais poderes pelo Poder Judiciário. Nossa definição prescinde do aspeto
erro ou desvio de finalidade: basta que se constate tal invasão.
Assim, o erro do julgador per si não indica um ativismo,
tampouco a politização da decisão, mas acente o alerta.
No primeiro caso, v.g., a Corte Constitucional italiana, ao
considerar que o dispositivo constitucional que determina o acompanhamento
progressivo, no cálculo dos valores das pensões, do custo de vida dos pensionistas,
desconsidera outros valores igualmente tutelados pela Constituição, recorrendo à
proporcionalidade e à razoabilidade e, por conseguinte, assumindo um papel
político-legislativo que não compete ao Judiciário nessa atividade de
ponderação.805 Há, nesse caso, uma decisão ativista, na medida em que substitui
ponderações feitas pelo poder legislativo pelas suas.
Quanto ao STF, ao menos no que toca à interpretação da
vinculação do legislador aos princípios constitucionais estruturantes, a aferição de
eventual "ativismo" resta prejudicada por duas ordens de fatores: a ausência de
critérios e uniformidade nas decisões do Tribunal, sendo os acórdãos uma
justaposição de interpretações individuais de cada julgador, sem qualquer diálogo
entre elas, bem como o facto de grande parte dessas reformas estarem sendo feitas
pelo poder constituinte derivado, e não pelo poder legislativo.
No que toca à aplicação de maior efetividade às normas
programáticas e às normas de direitos sociais, verifica-se maior uniformidade e
preocupação com o princípio da colegialidade. A adesão a tal princípio induz, por
um lado, a busca pelo consenso, mas reflete, por outro, a transparência e o preparo
do julgador, de posse das premissas e argumentos necessários a justificar a tomada
de posição, mormente em casos difíceis.806Curiosamente, sentiu-se uma posição

805 MORRONE, Andrea. Ragionevolezza a rovescio..., cit.


806 Cf. MENDES, Conrado Hübner. Constitutional courts..., cit., p. 130.
291

mais ativista do STF no julgamento de questões com menor adesão à ideia da


deliberação colegiada. A politização do STF e seu ativismo resta evidente em
muitos de seus acórdãos. Cabe indagar se, a despeito de estar invadindo a esfera
competencial do decisor legislativo ou executivo, a gravidade da situação e a
natureza e alcance da decisão aditiva não se revelam autorizadoras, por meio de
outros princípios estruturantes do Estado social e de direito.
Já a atuação do TC, v.g., rendeu disputas doutrinárias tanto
na defesa quanto no ataque da posição do tribunal.807
Dentre os que acusam o TC de ativismo judicial, Maria
Benedita Urbano afirma que o referido tribunal agiu politicamente, "modulando"
uma fundamentação para atender decisões políticas anteriormente tomadas. Isso
decorreria da existência de contradições e ausência de fundamentos jurídicos
consistentes.808
Reis Novais, ao reconhecer a dificuldade de solução dos
casos difíceis por qualquer tribunal, defende a conformação passiva da sociedade
com as decisões dos tribunais.809
Com efeito, nos chamados acórdãos da crise, constata-se má-
técnica de interpretação jurídica - com as incoerências apontadas neste trabalho -
bem como ausência de critérios e definições das premissas empregadas,
comprometendo o argumentação utilizada.
Hipótese de postura ativista está presente na aplicação do
princípio da proibição do excesso pelo TC, ao fazer prevalecer sua orientação sobre

807 Nesse contexto, foram publicadas duas obras: "O tribunal constitucional e a crise: ensaios
críticos" (RIBEIRO, G. A.; COUTINHO, L. P. (orgs.). Coimbra: Almedina, 2014); e "Em defesa do
tribunal constitucional: resposta aos críticos" (NOVAIS, Jorge Reis. Coimbra: Almedina, 2014).
808 Maria Benedita Urbano critica, no mérito, o juízo de ponderação utilizado pelo TC em ambos os

acórdãos, reconhecendo a existência de pesos diferentes para lidar com os pensionistas da CGA, em
relação aos pensionistas do regime de Segurança Social. Essa diferença de tratamento, que teria
sido motivada pela influência “política” dos pensionistas da CGA, não é legítima e transparece em
diversas passagens dos acórdãos, por ela demonstradas. URBANO, Maria Benedita. A jurisprudência
da crise no Divã. Diagnóstico: bipolaridade? In: O tribunal constitucional e a crise: ensaios críticos.
RIBEIRO, G. A.; COUTINHO, L. P. (orgs.). Coimbra: Almedina, 2014, p. 18. A mesma opinião é
partilhada por José de Melo Alexandrino, para quem o TC “passou diretamente ‘autocontenção’
(Acórdão ns 396/2011) para picos de ‘dirigismo constitucional’ (Acórdão ns 862/2013).”.
ALEXANDRINO, José de Melo. Jurisprudência da Crise. Das Questões Prévias às Perplexidades. In: O
tribunal constitucional e a crise: ensaios críticos. RIBEIRO, G. A.; COUTINHO, L. P. (orgs.). Coimbra:
Almedina, 2014.Perplexidades. In: O tribunal constitucional e a crise: ensaios críticos. RIBEIRO, G. A.;
COUTINHO, L. P. (orgs.). Coimbra: Almedina, 2014, p. 60.
809 NOVAIS, Jorge Reis. Em defesa do tribunal constitucional: resposta aos críticos. Coimbra:

Almedina, 2014, p. 20.


292

opções legislativas, ao fundamento de falta de evidência ou de demonstração de


adequação, necessidade e excesso do legislador, em situações nas quais os próprios
integrantes do TC divergiam sobre sua verificação ou não.
Também a adoção do pretenso princípio da justiça
intergeracional para afastar a regra do direito adquirido revela um vício lógico-
argumentantivo, uma vez que seu fundamento não guarda uma relação de
causalidade lógica com o fim que pretende evitar, qual seja, "o corte de pensões da
geração futura". Também como já afirmado, os recursos não se destinariam ao
pagamento das pensões da geração futura, havendo uma distribuição
intergeracional injusta de encargos. Mais curioso foi o apontada incoerência no
recurso ao "princípio da justiça intergeracional" apenas diante da instituição de
um tributo provisório (CES), mas não diante de sua instituição definitiva (CS). Os
vícios lógicos, no caso, podem indicar uma posição política do TC, ou mero erro do
iter argumentativo. No entanto, a ponderação entre gerações futuras e gerações
presentes e o déficit público, bem como a escolha de quem deve ser "sacrificado"
pelas medidas de austeridade, revela igualmente uma postura política e ativista.
Ademais, como advertiu a própria juíza Maria Lúcia Amaral,
em sua declaração de voto, ressente-se, na estrutura argumentativa comparada
dos acórdãos, de um critério objetivo que conduza inexoravelmente a tal decisão,
pois o mesmo critério empregado pode conduzir a um resultado diametralmente
oposto.810
Vistos assim, em sua dimensão micro-decisória, há vestígios
ativistas do TC.
Carlos Blanco de Morais, no entanto, traz grande
contribuição ao tema, fazendo uma análise mais ampla, panorâmica, a fim de
adotar uma conclusão mais precisa - e, por ventura, menos injusta - acerca do
comportamento do TC na jurisprudência da crise. Morais adota quatro critérios de
aferição de eventual ativismo: a) recurso a uma jurisprudência normativa
manipulativa; b) realização de interpretação com caráter inesperado e audacioso;
c) invasão da competência legislativa no processo de concretização; e d) a adoção
de uma postura contra-poder político, concorrendo com a maioria parlamentar.811

810 Processo n.º 819/2014. Acórdão 575/2014. Declaração de Voto Vencido. Maria Lúcia Amaral.
811 MORAIS, Carlos Blanco. Curso de direito..., cit., p. 765.
293

Na aplicação de tais critérios, Morais descarta a ocorrência


de uma jurisprudência manipulativa, constatando apenas dois casos cuja decisão
foi, no entanto, em favor do legislador.812
Também chama à atenção o dado de que o TC não
reconheceu a princípios implícitos, mas aos princípios estruturantes do Estado de
direito, já fortemente densificados em precedentes do próprio tribunal.813
Em último abono de sua posição de não reconhecimento de
uma postura ativista, ressalta o autor que, a despeito de todo clima tensional
gerado entre TC e Governo, limitou-se a corte a atuar nos limites de sua jurisdição
constitucional e, nesse mister, se inclinação houve, esta se deu não por um
ativismo político propriamente dito, mas devido às influências extrajurídicas e
pressões sociais a que o TC, como qualquer outro órgão de um sistema social, não
se encontra completamente infenso. Não se verificou, v.g.¸como ocorre no Brasil,
uma ampla midiatização dos julgadores, com entrevistas e discursos.814
A constatação em torno de eventual ativismo judicial do TC
ou sua politização diante dos acórdãos da crise fica, portanto, a depender de uma
pré-compreensão do que seja o ato de julgar em direito constitucional, seus limites
e generalização que pode ser feita a partir de eventuais constatações de vícios
pontuais nos julgados.
Com base nisso, podemos afirmar que tanto o STF quanto o
TC protagonizaram decisões políticas e ativistas. Mas não se pode falar, com o
mesmo grau de certeza, em uma jurisprudência ativista ou política da crise.

812 Ibidem.
813 Ibid., p. 767.
814 Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito..., cit., p. 769.
294

CONCLUSÕES

Conclusões parciais

1. Cada ordem jurídico-constitucional pode conferir


estrutura e função próprias à sua Constituição. Na ausência de uma definição,
porém, a Constituição deve ser entendida como uma ordem-fundamento não
exaustiva, na medida em que, contemplando decisões relevantes, não consegue
prever todas as decisões possíveis com que o Estado possa se deparar, deixando ao
legislador, inevitavelmente, uma atividade criativa, e não de mera descoberta
normativa. Tal compreensão aplica-se à Constituição dirigente, devendo-se
considerar as especificidades das imposições constitucionais típicas do dirigismo
constitucional.
2. O termo Estado de direito exprime uma ideia-força, um
valor político e jurídico cujo conteúdo mínimo pode ser aferido em dois planos: no
histórico-evolutivo e em uma consciência social contemporânea. No plano
histórico-evolutivo, o conteúdo mínimo do Estado de direito encontra fundamentos
políticos e jurídicos, a partir dos quais é possível chegar à sua densificação com
pretensão de normatividade. Pode-se também afirmar que esses valores se
encontram presentes na conceção da maioria dos indivíduos, bem assim dos seus
representantes constituintes, ao menos no seio das sociedades formadas sob os
valores cristãos, consistindo verdades evidentes, pré-racionais, que dispensam uma
persuasão política ou demonstração lógico-racional, conferindo, assim,
legitimidade à adoção de um conceito mínimo de Estado de Direito. A partir desse
raciocínio, é logicamente possível conceber o Estado de direito como o Estado cujos
poderes constituídos são limitados por normas emanadas do poder que os constitui e
por normas que se pressupõem universalizáveis, por refletirem a proteção
presumidamente desejada de todo ser humano à sua liberdade de autodeterminação,
à preservação de sua integridade física e moral, à garantia de paz social e de
previsibilidade e estabilidade das relações sociais e políticas, sendo tais normas,
positivadas ou não, legitimadas democraticamente.
3. As expressões Estado de direito, Estado social e Estado
democrático veiculam conceitos – posto que não delimitados -, delimitáveis
juridicamente. Sua densificação axiológica, porém, não prescinde das demais
295

ciências e, no plano jurídico, aparecem como ideias-força donde emergem teorias


que pretendem conferir normatividade a valores morais e ideológicos associados à
origem dessas variantes. É preciso, portanto, com o recurso ao método científico e
mediante uma argumentação lógica, expurgar desses discursos os elementos
metajurídicos, especialmente de ordem exclusivamente político-subjetiva, a fim de
se aferir os aspetos normativos aptos a irradiar efeitos na ordem jurídica,
produzindo consequências na interpretação e aplicação do Direito. Esse método,
todavia, deve considerar as especificidades históricas e jurídicas de cada ordem
jurídica, que conformam e delimitam seu campo material de aplicação. Assim, os
princípios estruturantes da segurança jurídica, igualdade e proporcionalidade
assomam-se como princípios jurídicos vinculantes da atuação dos poderes
constituídos, especialmente do poder legislativo.
4. A despeito da dificuldade de densificar o princípio da
dignidade da pessoa humana, sua importância e reconhecimento nas diversas
ordens constitucionais impõe a inexorável busca por uma definição em cada
sistema jurídico, aplicando o núcleo essencial e o conteúdo desse princípio
perseguido pelas aspirações representadas especialmente pelos filósofos políticos
a partir do século XVII, muitas das quais consagradas nas declarações de direitos. A
partir desse resgate histórico, pode-se invocá-lo de forma autônoma, se
demonstrado, de forma inequívoca, que certo conteúdo inerente a tal princípio se
encontra implícito no texto constitucional ou radique com algum consenso na
consciência geral da sociedade subjacente.
4.1. Nas ordens jurídico-constitucionais brasileira e
portuguesa, o princípio da dignidade humana não possui um conteúdo autônomo,
o qual se encontra delimitado pelas demais normas constitucionalmente previstas,
que aclaram seu conteúdo. Nesse sentido, a autonomização do princípio na Lei
Fundamental de Bona e as soluções jurisprudenciais e doutrinárias ali adotadas
devem ser interpretadas e recepcionadas com ressalva nas demais ordens jurídico-
constitucionais, especialmente a brasileira e a portuguesa.
5. Pode-se conceituar o neoconstitucionalismo como um
fenômeno caracterizado por toda forma de interpretação constitucional que se
utiliza de elementos não positivados explícita ou implicitamente, mas que seriam
inferidos histórica e racionalmente, e cuja legitimidade dar-se-ia pelo seu conteúdo
296

destinado ao reconhecimento de direitos inerentes a qualquer indivíduo em


virtude de sua condição humana, ou a partir de postulados morais ou de justiça.
Caracterizado pela ausência de um método científico universalizável e pelo
prestígio dos fins em detrimento dos meios, uma interpretação neoconstitucional
será considerada ilegítima se, na perseguição de determinado fim, não observar o
método científico, abandonando a interpretação gramatical, sistemática e
teleológica do dispositivo, ou não observar, diante do recurso à ponderação, no
caso de conflitos entre princípios ou aplicação da máxima da proporcionalidade, os
rigores da lógica jurídica ou os deveres de enunciação de premissas, clareza,
coerência e completude imprescindíveis para o controle da argumentação jurídica
formulada.
6. Na mesma esteira do neoconstitucionalismo, o ativismo
judicial, que pode ser definido como a invasão inconstitucional pelo Poder
Judiciário do campo reservado à função legislativa, que não seja excepcionalmente
a ele atribuída pela ordem constitucional em questão, dentro do quadro das
chamadas funções atípicas, deve ser identificado nas decisões analisadas, pois é
função da Ciência do Direito não apenas revelar as diversas soluções oferecidas
por cada ordenamento diante de casos concretos, mas igualmente descrever a
forma como a escolha por uma delas ou a recusa das soluções possíveis é tomada
pelos órgãos jurisdicionais.
7. A liberdade do legislador encontra limites explícitos e
implícitos estabelecidos no texto constitucional. Sua compreensão deve considerar
a evolução do constitucionalismo e a consequente substituição de protagonismo do
legislador pelo poder constituinte. Com efeito, a partir do reconhecimento da
normatividade da Constituição, a liberdade de atuação do legislador passou a ser
por esta delimitada, devendo se abster de editar leis contrárias às normas
constitucionais.
7.1. Com o avanço das teorias que propugnam a abertura da
interpretação constitucional - entre as quais o movimento que passou a se
denominar neoconstitucionalismo - e a crescente carga axiológica e programática
dos textos constitucionais, especialmente no caso da Constituição dirigente, o tema
da vinculação do legislador à Constituição requer a análise de duas relações entre
esta e aquele: a relação de legitimação e a de hierarquia. Na relação de legitimação,
297

especialmente em se tratando de Estados sociais, democráticos e de direito, fins e


meios, justiça material e justiça procedimental devem concorrer como aspetos de
legitimidade a serem perseguidos e considerados pelo legislador e intérpretes
constitucionais. A aferição e consideração desses aspetos, porém, deve se dar de
forma equilibrada, sem prevalência de uns ou de outros, devendo todos eles serem
buscados em sua totalidade. Não se pode abandonar os meios previstos em lei para
se atingir os fins nela previstos, ainda que ambos estejam previstos na mesma
fonte normativa. Para tanto, haverá técnicas de interpretação que promoverão a
adequada ponderação, cuja legitimidade será reforçada se o procedimento
interpretativo também gozar de previsão constitucional.
7.2. A legitimação servirá de equacionamento da contradição
entre a vontade da maioria e a vontade do representante, na medida em que opõe a
cada uma dessas vontades meios e fins para sua atuação.
7.3. A relação de hierarquia envolve dois pressupostos: a
distinção entre a função da lei e a da Constituição, bem como a do sistema jurídico
subjacente, civil law ou common law. A Constituição possui as seguintes funções: a)
reconhece a vinculatividade de preceitos morais ou constantes de ordenação
anterior ou supraestatal; b) organiza as competências, formas e processos de
exercício do poder; c) impõe limites à atuação dos poderes constituídos; d)
estabelece diretrizes de atuação e fins a serem perseguidos pelos poderes
constituídos; e) prescreve direitos e deveres dirigidos aos poderes constituídos, ao
seu povo, organizações coletivas e população. Já a lei tem a função de inovar a
ordem jurídica, mediante comandos gerais e abstratos expedidos pelo órgão
representativo da coletividade investido de tal poder. Essa função é comumente
exercida pelo Poder Legislativo, órgão composto por representantes eleitos do
povo para manifestarem sua vontade de criar as leis. Isso não impede, contudo,
que tal função seja exercida por outros Poderes, desde que a Constituição do
Estado expressamente o preveja. Aí reside uma distinção entre os sistemas civil
law e common law. Neste sistema, admite-se como fonte do direito os costumes,
especialmente os reconhecidos pelo trabalho de magistrados a partir do século XII.
Ao contrário do sistema civil law, o paradigma normativo na common law é a
"descoberta" do direito, com base em princípios morais e de justiça latentes na
respetiva sociedade. O que de facto muda no sistema common law em relação ao
298

sistema civil law não é a pretensa autorização implícita ao juiz de legislar, mas uma
maior abertura do primeiro sistema à interpretação construtiva e o recurso às
fontes históricas e consuetudinárias. Por tradição, a dedução de valores morais e
sua concretização em regras fixadas em precedentes judiciais leva, muitas vezes, a
uma desnecessidade ou diminuição de codificação em relação ao sistema civil law.
Há, de fato, uma maior aceitação implícita na common law de juízo de escolha de
uma dentre as soluções possíveis albergadas pelo mesmo princípio, o que não
afasta a preferência do legislador no caso de positivação superveniente.
7.4. Apesar da reconhecida supremacia da Constituição,
devida à sua origem histórica de limitação dos poderes constituídos, dois fatores
modernos justificam a busca pelo reequilíbrio entre a supremacia constitucional e
a liberdade do legislador: a constitucionalização de matérias que não integram o
conceito material de norma constitucional e o aumento do catálogo de direitos
fundamentais, acompanhados de imposições constitucionais de densificação
normativa dirigidas especialmente ao legislador, a partir de conceitos genéricos e
sem limites delimitados, muitas vezes dependentes de uma pré-compreensão de
ordem moral ou política.
8. A vinculação constitucional do legislador cria o paradoxo
entre a vontade do povo expressa na Constituição e a vontade do mesmo povo
expressa pelo legislador. A solução desse paradoxo se dá pela compreensão de que
no mesmo Estado Constitucional o exercício da soberania democrática se dá
mediante processos com a finalidade de garantir a participação popular de acordo
com as normas constitucionais. É um poder exercido dentro da Constituição e não
fora dela.
9. A intensidade da proeminência do legislador na função de
concretização constitucional pode variar entre os sistemas civil law e common law,
mas não se deve negá-la, em ambos, a menos que a ordem constitucional disponha
expressamente em sentido contrário, pois a função de complementar a
Constituição remanesce aos representantes mais ligados ao titular do poder
soberano - o povo -, que perante estes apresenta a responsabilidade política das
escolhas efetuadas.
10. Pela mesma razão, a autoridade da vontade do legislador
deve ser observada sempre que possível, revalorizando-se a interpretação genética
299

ou mens legislatoris, a qual jamais pode ser relevada pela mens legis. Esta pode ter
lugar nos casos de indefinição dada pela primeira, e nunca para infirmá-la, sob
pena de se abrir caminho para o arbítrio do julgador.
11. A vinculação do legislador à Constituição deve ser
entendida em sentido estrito como a exigência de os atos legislativos estarem em
conformidade com as normas constitucionais. Em um sentido mais amplo e
completo, tal vinculação inclui ainda a exigência de regulamentação das normas
constitucionais não autoexequíveis nos limites previstos pelo poder constituinte,
bem como a regulamentação a partir da implementação de circunstâncias fáticas.
12. Em seus aspetos formais, diversas são as maneiras pelas
quais se estabelece a vinculação. Conforme a natureza omissiva ou comissiva do
comando dirigido ao legislador, a vinculação será respetivamente negativa ou
positiva. Tem-se a vinculação formal, direta ou imediata quando a conduta ou
direito previsto na hipótese normativa se referir ao destinatário da norma. É o caso
da norma que imponha uma ordem de legislar, proíba o Estado de violar certo
direito ou condicione uma determinada ação à observância de alguma medida
formal. Já a vinculação material, indireta ou mediata, dá-se nos casos em que a
conduta ou direito previsto na hipótese normativa não se refere ao destinatário da
norma.
13. As normas não autoaplicáveis, a par de vincularem o
legislador positiva e negativamente, como podem fazê-lo as normas autoaplicáveis,
criam uma vinculação positiva implícita de densificação dos valores ou princípios
nelas expressos, bem como de implementação de atos adequados a alcançar o fim
declarado em normas programáticas e diretrizes.
14. Os textos constitucionais podem recorrer a diversas
formas de enunciados linguísticos vinculantes do legislador. Com base nas
fórmulas recorrentes, a vinculação do legislador pode se dar por meio de
imposições constitucionais, permissões constitucionais, garantia de direitos,
prescrição de deveres e, implícita ou explicitamente, por princípios estruturantes.
14.1. As imposições constitucionais são prescrições
permanentes imediatamente dirigidas aos poderes constituídos. Elas podem ser
divididas em imposições legiferantes, normas programáticas, proibições,
precepções e condições. As imposições legiferantes são comandos constitucionais
300

permanentes e concretos dirigidos ao poder legislativo para que ele edite normas
regulamentando direitos, densificando conteúdos de normas abertas ou genéricas,
ou simplesmente editando atos normativos para se atingir algum fim ou meio
desejado pelo poder constituinte. As diretrizes ou normas programáticas são
imposições constitucionais permanentes e abstratas dirigidas aos poderes
constituídos, assumindo a forma “P deve adotar meios para atingir o fim F”. As
proibições constitucionais são imposições constitucionais permanentes, concretas
ou abstratas, que prescrevem limites de atuação do legislador. Elas podem assumir
a natureza de princípios ou de regras, mediante o seguinte comando: “P não pode
editar norma que ocasione X ou contrarie a norma Y”. As normas precetivas são
imposições constitucionais permanentes, concretas ou abstratas, que estabelecem
critérios de organização e atuação dos poderes constituídos, bem como lhe fixam
deveres ou imputam-lhe responsabilidades. Assim como as proibições, as normas
precetivas podem assumir a natureza de regra ou de princípio, veiculadas do
seguinte modo: “X deve ser Y”. As condições são imposições negativas ou positivas
que constituem meios cuja verificação se faz necessária para que um ato estatal
seja produzido.
14.2. As permissões constitucionais são autorizações dadas
expressa ou implicitamente aos poderes constituídos, as quais se dão basicamente
por três razões: excepcionar uma regra geral proibitiva, estabelecer permissões em
um contexto constitucional de competências taxativas do legislador, ou estabelecer
uma condição constitucional a contrario sensu.
14.3. Os direitos garantidos são normas constitucionais
autoaplicáveis e, portanto, exigíveis e oponíveis pelo seu titular. Exigem, em
consequência, uma atuação positiva ou negativa dos poderes constituídos, ou
mesmo dos particulares. Seu conteúdo se encontra suficientemente determinado,
gerando ao cidadão o direito subjetivo à sua observação por parte do Poder
Público (e até mesmo por parte dos particulares), independentemente de qualquer
ato legislativo ou administrativo.
14.4. Os deveres prescritos são imposições dirigidas de
forma imediata aos particulares, não aos poderes constituídos. A vinculação
positiva ou negativa do legislador aos deveres prescritos se dá indiretamente, tal
como ocorre com os direitos garantidos.
301

14.5. Além dessas formas de vinculação, os poderes


constituídos se encontram implicitamente vinculados aos princípios estruturantes
do Estado de direito, mesmo em matéria de direitos sociais e relativamente às
demais normas de estrutura indeterminada inerentes ao dirigismo constitucional.
15. O Estado social pode ser entendido como uma variante
do Estado de direito, em que o elemento econômico se constitucionaliza com maior
intensidade, em virtude da busca em garantir a satisfação das necessidades do
povo consideradas essenciais pela sociedade política subjacente.
16. A constitucionalização de meios para satisfação dessas
necessidades resultou na incorporação de normas programáticas e normas de
direitos sociais no texto constitucional, que se deu de três formas: pela inserção de
normas-garantia, com o conteúdo necessário para sua autoexecutabilidade pelos
poderes constituídos e consagradoras de direitos subjetivos, por um lado, e, por
outro, pela adoção de normas dirigentes (normas-fins e normas-tarefas) ou
imposições constitucionais ao legislador para regulamentação de direitos sociais,
execução de tarefas ou ordens de legislar como meios para se atingir fins
preestabelecidos explícita ou implicitamente pelo poder constituinte.
16.1. O conteúdo de tais normas, por dependerem de
verificação de circunstâncias fáticas, especialmente das condições econômico-
financeiras e escolhas políticas pontuais ou de governo, que podem se modificar ao
longo do tempo, não pode - por tais razões - ser definido constitucionalmente com
exaustividade, tarefa que se delega aos poderes constituídos, mormente ao
legislador, através de imposições e condições constitucionais.
16.2. Tais imposições constitucionais criam ao legislador um
campo de atuação discricionária e um campo de atuação vinculada. Neste, o
legislador deve respeitar o núcleo essencial do direito constitucionalmente
consagrado. Essencial é aquele elemento ou conjunto de elementos absolutamente
necessários para a existência do direito em si. A forma, estrutura, quantidade e
qualidade do sistema criado, por outro lado, não integram esse núcleo essencial,
mas pertencem ao que pode ser chamado de "campo discricionário do legislador".
17. A vinculação positiva do legislador é maior em relação às
normas dirigentes ou instituidoras de direitos sociais que em relação às normas
302

garantidoras de direitos e liberdades, mas menor quando se trata de vinculação


negativa, devido à diferença estrutural entre esses grupos de direitos.
18. É imprescindível a análise da estrutura das normas de
direitos sociais para compreensão de seu grau e forma de vinculação do legislador
e dos demais poderes constituídos, especialmente considerando sua dimensão
objetiva e subjetiva. As normas programáticas e normas de direitos sociais
apresentam-se no texto constitucional em sua dimensão objetiva, ou seja,
enquanto prescrições de conduta gerais e abstratas imponíveis ao Estado.
Considerando, com possíveis exceções, que todo dever gera um direito correlato,
tais deveres seriam potencialmente oponíveis ao mesmo Estado na forma de
direitos subjetivos. Todavia, consistindo o direito subjetivo na faculdade de se
exigir o cumprimento de um dever, a indeterminação de muitas das normas
programáticas e de direitos sociais - cuja aplicação e eficácia dependem de sua
densificação pelo legislador-, impede a aplicação da máxima, nesse tema, de que a
todo dever corresponde um direito.
19. A tese da unidade dogmática carece de argumentos
propriamente científicos, afeiçoando-se mais a uma espécie de ativismo
doutrinário. Não se nega, todavia, que alguns direitos sociais apresentam
semelhanças estruturais com os direitos, garantias e liberdades, razão pela qual se
deve aplicar o regime destes aos direitos sociais que se comportarem no todo ou
em parte como direitos de liberdade. Deve-se aplicar, portanto, a proteção
reforçada às dimensões das normas de direitos sociais que, ao terem aplicabilidade
imediata, consistam em direitos subjetivos.
18. A Constituição social e dirigente, dada a indeterminação
dos conceitos constitucionais empregados nas normas programáticas e de direitos
sociais, assim como nas normas principiológicas em geral - dotadas de alto
conteúdo axiológico -, acabou por provocar uma hipertrofia do Poder Judiciário, o
qual, diante da inércia, ineficiência ou arbitrariedade do legislador, passou a
assumir um protagonismo na determinação do conteúdo dessas normas
constitucionais e, a partir delas, a fixação de limites à função legislativa, criando
uma tensão interinstitucional. No centro dessa tensão, encontram-se os princípios
constitucionais estruturantes vinculantes do legislador, os quais, assim como as
normas que conformam, também comportam positivação e densificação por cada
303

ordenamento jurídico. Não obstante, é possível sublevar aspetos essenciais


comuns presentes em cada um desses princípios que afetam a relação do legislador
com os direitos.
19. O princípio da igualdade - decorrente do Estado de
direito, vincula o legislador positiva e negativamente: nesta, pela vedação de editar
leis que criem desigualdades formais ou materiais; naquela, em se tratando de
imposições legiferantes. Se a violação ao princípio da igualdade se deu por norma
editada em virtude de imposição constitucional, o princípio da igualdade não opera
uma imposição direta, mas pode ser acionado para aferir a constitucionalidade do
ato legislativo.
20. Tal como a exigência de igualdade, a garantia de
previsibilidade e estabilidade das relações sociais e políticas, com a negação da
arbitrariedade e imprevisibilidade características do Estado Absolutista, constitui
valor-fim presumidamente aceito nas sociedades ocidentais modernas, alcançável
pelo princípio (norma-meio) segurança jurídica. Não é possível, porém,
universalizar, de forma legítima, um conteúdo para tal princípio a partir do
conceito de Estado de direito, tendo em vista a diversidade, nos diversos
ordenamentos jurídicos, como a segurança jurídica se manifesta em seu direito
posto pressuposto. É possível, todavia, inferir limites e conteúdos materiais desse
princípio em cada plano intrassistêmico, mormente no campo dos direitos sociais
previdenciários, que constitui o paradigma metodológico desse estudo.
20.1. A segurança jurídica apresenta uma dimensão objetiva
e uma dimensão subjetiva. A dimensão objetiva reflete a busca da estabilidade do
direito, ao passo que a dimensão subjetiva visa à proteção das expectativas
individuais quanto a essa estabilidade.
20.2. O critério de aferição de proteção à segurança jurídica
em cada ordenamento se dá pelo grau de retroatividade normativa
constitucionalmente permitido. Quanto maior for esse grau, maior será a
possibilidade de afetação da confiança dos indivíduos na segurança jurídica,
especialmente pelo legislador.
20.3. O TC e o STF tratam de forma distinta a tutela aos
direitos em formação. A corte brasileira entende que o princípio do direito
adquirido não protege o que chama de "mera expectativa" de direito . Já o TC,
304

conquanto distinga o direito adquirido dos direitos em formação, não adentra o


mérito do direito adquirido ao regime jurídico, resolvendo a questão em seu aspeto
quantitativo, ou seja, os direitos em formação gozariam de uma confiança menor
que os direitos adquiridos, mas a afetação de ambos pode ser controlada mediante
a aplicação dos critérios da proteção da confiança. A análise do instituto no Brasil e
em Portugal, porém, permite concluir que a modificação dos requisitos temporais
para obtenção de aposentadoria viola a proteção do direito adquirido à
manutenção dos requisitos prévios para o exercício de sua aposentação. Isso não
obsta a ponderação entre esse princípio e o interesse público em eventuais
reformas estruturais no país.
20.4. Brasil e Portugal aplicam o princípio da proteção da
confiança de forma distinta, o que se nota com mais facilidade na análise da
jurisprudência constitucional de ambos os países em torno da reforma
previdenciárias. No Brasil, a aplicação do princípio da proteção da confiança é
ainda tímida e tem sido invocada para limitar a atividade administrativa, muitas
vezes aplicada sob o nome de boa-fé ou mesmo de segurança jurídica. Em face do
legislador, o princípio já é invocado por alguns Ministros do STF, mas ainda não há
notícia de sua aplicação isolada para a tutela de direitos em formação, ou no caso
de retroatividade inautêntica. Já em Portugal o princípio é citado pela doutrina
desde 1974 e pela jurisprudência constitucional desde 1982. A partir de então,
doutrina e jurisprudência desenvolveram o princípio, com a densificação de
critérios para sua aplicação. Posto que ínsito à conceção de Estado de direito, dois
fatores podem explicar a distinção de aplicação do princípio da proteção da
confiança em ambos: total “desprezo” à interpretação genética pelos tribunais
brasileiros, dentre os quais o STF, algo que o TC, com as ressalvas devidas, recorre
com frequência para a operação de ponderação na aplicação da tutela da confiança,
bem como os diferentes graus de limitação da retroatividade das leis em ambos os
sistemas.
20.5. Podem-se identificar coerências e até mesmo um
ativismo judicial na densificação dos critérios da proteção da confiança pelo TC de
Portugal. Quanto ao método, o discurso do TC é o de emprego do princípio da
proteção da confiança com o recurso ao princípio da proporcionalidade. A análise
dos acórdãos do TC vai demonstrar que se trata, na verdade, do emprego do
305

princípio da proporcionalidade com o recurso, na aferição da justa medida, do


princípio da proteção da confiança. Quanto à exigência de planejamentos feitos
pelos privados, não parece razoável, tampouco compatível com o princípio da
igualdade e com o próprio princípio da segurança jurídica, que a
constitucionalidade de uma norma esteja na dependência do planejamento que
seus destinatários fazem ou possam hipoteticamente fazer de seus impactos.
Também a adequação das medidas incorre na clássica crítica enfrentada por Alexy
acerca da legitimidade do Poder Judiciário para examinar a discricionariedade do
legislador para escolha de um meio idôneo, em detrimento de outro, mormente no
caso de declaração de inconstitucionalidade de uma medida por inadequação
superveniente. Quanto à justa medida, a atividade de ponderação, especialmente
como critério de aferição da proteção da confiança é uma atividade contraditória,
pois justifica na segurança jurídica a aplicação de um critério informado pela
incerteza jurídica – pois pretende comparar pesos de matérias (conteúdos) de
diferentes naturezas, submetidas a forças (valoração individual) igualmente
diversas. Por essa razão, uma medida legislativa só pode ser afastada pelo
emprego da ponderação, nos casos de ilegitimidade do interesse público ou mesmo
de sua inadequação ou inexistência manifesta ou presumida, quando se destinar a
garantir a proteção constitucional, do outro lado da balança, das expectativas
legítimas de particulares.
21. Também se pode inferir do conteúdo jurídico do
princípio do Estado de direito e especialmente do valor-fim "proteção do indivíduo
contra abuso do poder" os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Conquanto tutelem o mesmo bem, ambos apresentam estruturas diversas. Pode-se
dizer que a proporcionalidade é um instrumento formal de aferição de
razoabilidade ou de "não-excesso". Diversamente das demais normas
estruturantes, entre os quais a própria razoabilidade, a proporcionalidade não
pode ser considerada, estritamente, um princípio, uma vez que ela não é sopesada
contra algo.
21.1. A proposta de Alexy e do próprio Tribunal
Constitucional alemão de decomposição do critério da proporcionalidade
apresenta duas inconsistências, ao misturar princípios ou máximas autônomas,
como adequação e necessidade, com a proporcionalidade. Em primeiro lugar, a
306

própria necessidade terminológica de dar ao conjunto dos três critérios o nome de


proporcionalidade já demonstra certa confusão entre a proporcionalidade em
sentido amplo e a proporcionalidade em sentido estrito. Depois, a autonomia de
cada um dos critérios, não obstante se possa discutir a existência ou não de grau ou
de ordenação de sua aplicação, revela sua completa independência. Considerar os
três subcritérios como necessariamente interdependentes ou tê-los como
princípios autônomos não seria problema do ponto de vista meramente
classificatório, visto que as classificações são mais ou menos úteis conforme o
desiderato proposto. Ocorre que a análise do sopesamento da medida implica um
escrutínio de qual valor deve prevalecer no caso concreto, consubstanciando,
assim, um juízo político-discricionário, não jurídico-vinculado, que não pode, por
essa razão, ser exercido pelo juiz numa conceção de separação dos poderes do
sistema civil law, segundo a qual, especialmente no Brasil e em Portugal, o Poder
Judiciário não possui legitimidade democrática para optar pela prevalência de uma
escolha política em detrimento de outra, salvo quando há a afetação de apenas um
núcleo essencial entre os princípios envolvidos. A despeito de sua relatividade, as
circunstâncias concretas podem oferecer elementos objetivos a serem
considerados pelo juiz para definição do que venha a ser reconhecido como
mínimo existencial ou núcleo essencial do direito.
21.2. Pelas mesmas razões, não se pode declarar
inconstitucional uma norma por inadequação superveniente, pois é inerente à
atividade legiferante o componente discricionário. Diante de um cenário
contemporâneo à produção legislativa, cabe ao legislador determinar meios que
considera aptos para se atingir um fim. A análise da constitucionalidade de uma lei
deve considerar se, no momento da legiferação, ela observou os limites formais e
materiais constitucionalmente previstos. Se a resposta for negativa, caberá ao
legislador revogar a norma ou se submeter à responsabilidade política pela
manutenção de uma medida sabidamente inadequada, e não ser ela invalidada
pelo poder jurisdicional.
22. Fundamentando-se na ideia de um dever de
progressividade dos direitos sociais e, em sentido contrário, na eventual
impossibilidade de o Estado expedir atos que diminuam a efetividade dos direitos
307

fundamentais ou reduzam direitos prestacionais sociais, a proibição do retrocesso


se apresentaria, para alguns, como um princípio estruturante do Estado social.
22.1. Em Portugal, a receção do princípio da proibição do
retrocesso está ligada à forte carga socializante de sua Constituição de 1974, o que
explica tanto sua aplicação com maior intensidade na doutrina a partir da década
de 1980, como a diminuição do recurso a esse princípio pelo Tribunal
Constitucional, proporcionalmente à atenuação desse valor originário concretizada
pelas revisões constitucionais.
22.2. No Brasil, apenas recentemente a jurisprudência
constitucional passou a invocar o princípio da proibição do retrocesso social como
princípio implícito vinculante do legislador, baseando-se fortemente na superada
doutrina de José Gomes Canotilho e no Acórdão 39/1984 do Tribunal
Constitucional de Portugal, cujo entendimento não é de há muito tempo seguido
pela mesma Corte.
22.3. As teses que defendem um princípio geral de proibição
do retrocesso social a partir das conceções de Estado social ou como princípio
decorrente do princípio estruturante da dignidade da pessoa humana carecem de
fundamento jurídico plausível, esbarrando em duas limitações que decorrem do
mesmo princípio do Estado de direito da qual pretendem extrair tais teses. A
primeira delas reside na reserva do financeiramente possível, considerando que os
direitos têm custos e sua proteção implica a diminuição de outros direitos. A
segunda diz respeito ao próprio princípio democrático, cuja exigência de
alternância de poder só faz sentido se aqueles que o alternam podem ter visões
diferentes sobre a alocação de recursos. O Estado contemporâneo prescinde cada
vez mais de decisões políticas fundamentais, consistindo a boa governança na arte
de distribuir os recursos de modo a otimizar o bem estar social.
23. Quanto à ideia de existência de direitos subjetivos a uma
reivindicação da ação estatal, ela é possível nos termos do ordenamento jurídico-
constitucional. Ocorre que em grande parte dos ordenamentos, como se dá no
Brasil e em Portugal, não há um meio constitucionalmente previsto para compelir
o legislador a fazê-lo. De qualquer modo, desde que respeitado o núcleo essencial
do direito social, qualquer ação estatal que dê alguma efetividade ao direito social
desconfigura a condição de inadimplência do legislador.
308

24. Uma vez cumprida a imposição constitucional de legislar


a fim de garantir a efetividade de um direito social, a omissão inconstitucional que
veio a ser suprida com essa lei não pode ser restabelecida. O fundamento, porém,
não é a mutação constitucional, mas o facto de que criar uma omissão é um ato
inconstitucional, o que é vedado implicitamente em qualquer ordenamento.
25. O tratamento da reforma previdenciária em Portugal,
Brasil e Itália, posto que se estruturem sob o mesmo princípio do Estado de direito
demonstram diferença de tratamento. Na Itália, tal afirmação pode ser
comprovada pelo uso do princípio da ragionevolezza, aliando os princípios da
igualdade e da proporcionalidade, nos casos análogos em que se tenta aplicar a
ideia da proteção da confiança em Portugal. Por outro lado, enquanto o TC
reconhece o direito adquirido à pensão e ao seu valor, independentemente da
natureza (tributária ou não) da forma como se deu a redução de seu valor, o STF
sequer analisou a medida sob o ângulo do direito adquirido. No caso dos direitos em
formação¸ ainda que o TC não os reconheça como direito adquirido a regime
jurídico, aplica-lhes a tutela da confiança. Quanto ao âmbito de aplicação do
princípio da confiança, conclui-se que tanto em Portugal como no Brasil, ele não
atua, isoladamente, como limite ao Poder Constituinte derivado, como reconheceu
o STF, por maioria de votos. Pode-se afirmar, ainda, que em Portugal o princípio da
proteção da confiança foi fruto de uma mutação do art. 2.º da CRP pelo TC, que
passou a interpretá-lo diversamente em tempos de crise, incorporando noções
como o de justiça intergeracional, sustentabilidade e confiança objetiva no
ordenamento, para relativizar tal princípio.
26. É possível afirmar que o tratamento da confiança dado
pelo TC incorre, em parte, em manifestação ativista, sob o influxo do
neoconstitucionalismo, ao afastar, em situações limítrofes, escolhas legislativas
possíveis, mediante o recurso a técnicas argumentativas de sopesamento inerentes
ao discurso extra-jurídico, consubstanciado na valoração entre perseguição do
interesse público de superação da crise econômico-financeira e o interesse público
na preservação de direitos subjetivos.
27. A liberdade de conformação do legislador apenas pode se
dar em casos de desproporcionalidade evidente, como ocorre na hipótese de
309

inexistência de interesse público, sua completa inadequação ou desnecessidade,


mas não na hipótese de dúvida quanto a quaisquer desses elementos.

Conclusão geral

Para muitas cortes constitucionais, a crise está no caminho


do Direito. Mas em uma sociedade política dotada de instituições jurídicas sólidas, é
o Direito que deve estar no caminho da crise.
O Estado (sistema social) e a Constituição (subsistema
funcional), por força de sua reflexividade sistêmica, são dotados de vida própria,
com autoconstituição e autorreprodução. Seu desenvolvimento tende à criação de
complexidades progressivas e infinitas, processo em meio ao qual as tensões por
ruptura (crises intra e intersistêmicas) são inexoráveis. As crises são, assim,
inerentes ao sistema jurídico, o qual deve ser apto a desenvolver elementos
intrassistêmicos de resistência à ruptura, condição de sua coesão e sobrevivência.
Em termos sintéticos, não existe direito sem crise, nem a crise deve provocar a
ruptura do direito.
O Estado social e o dirigismo constitucional não negam
completamente o direito clássico, pois não constituem sua antítese perfeita, mas a
síntese de opostos, liberais e socialistas, que encontram nas estruturas
consolidadas do sistema jurídico, em especial a coerência lógica do método jurídico
científico, sua condição de estabilidade.
A crise é circunstância apta a conferir certa flexibilidade ao
direito, mas não pode infirmá-lo, nem justificar a ausência de um método jurídico.
Enquanto sistema concebido para pacificação e estabilização das diversas relações
formadas entre os entes da sociedade política que lhe é subjacente, o direito
também é instrumento de resistência a crises. Seu grau de resistência é, nesse
sentido, a medida de solidez e amadurecimento democrático de uma sociedade
política.
Direito, justiça e política interpenetram-se e geram certa
reflexividade intersistêmica. No entanto, cada um desses sistemas apresenta
métodos próprios de validação argumentativa, cabendo aos tribunais a aplicação
do método jurídico de interpretação contemplado no respetivo sistema
constitucional.
310

Diante de uma ordem de valores, contudo, os métodos


clássicos de interpretação são – por vezes – insuficientes no processo
hermenêutico constitucional, o que não dispensa o julgador de observar os deveres
impostos pela lógica jurídica de clareza, coerência, completude e técnica da
argumentação.
De fato, a abertura axiológica do ordenamento jurídico é a
porta de entrada da imposição das conceções ideológicas e dos interesses políticos
e econômicos velados sob a forma de sofismas e equívocos lógicos na
argumentação jurídica, o que fica mais evidente nos tempos de crise. A constatação
desses vícios depende de uma sindicância linguística e semântica da lógica
empregada na argumentação jurídica, residindo na clareza, na completude e na
coerência os postulados fundamentais da legitimidade hermenêutica
objetivamente aferida. É verdade que tal controle objetivo nem sempre se mostra
efetivo, dado que os fins ocultos e determinantes da decisão judicial nem sempre
são os manifestados. O mesmo meio (argumentação judicial) pode atingir fins
legítimos ou ilegítimos, velando estes e revelando aqueles.
Algumas posturas, no entanto, indicam a desobediência ao
sistema jurídico. É o que ocorre diante da formação convicção do juiz sobre a
solução do caso concreto, previamente ao exame das matérias e análise dos
argumentos. Tal prática, que é admitido sem censura e não raramente ocorra no
Poder Judiciário, é um desvirtuamente da boa-fé e de toda a lógica do sistema, que
assegura em mecanismos de persuasão da livre motivação a condição de
imparcialidade do julgador inexorável para o equilíbrio necessário do sistema.
Por isso, a garantia de estabilidade e certeza do Direito
depende da observância do princípio estruturante da segurança jurídica, o qual
não é – tampouco deve ser – apenas um princípio dedutivo da interpretação
jurisprudencial, mas igualmente um princípio indutivo da atividade judicial.
Nestes termos é que se deve conceber o neodirigismo
constitucional e a vinculação do legislador às normas constitucionais de direitos
sociais: como um desenvolvimento de conceitos clássicos estrututantes do sistema
jurídico, que, por um lado, incorpora novos elementos e valores, por reflexividade
sistêmica, à medida que reflete o desenvolvimento dos sistemas com o qual se
comunica, como a Economia e a Política, e, por outro, cria seus novos elementos e
311

valores (autopoiese), absorvendo a nova realidade supranacional


(transconstitucionalidade) e pluricêntrica.
A Constituição dirigente ainda vive em Portugal e no Brasil,
mesmo diante das crises e ainda que não totalmente conforme ao desenho
institucional originalmente traçado em ambos os países, às metas originalmente
fixadas e em meio a circunstâncias políticas, econômicas e até jurídicas diversas do
momento de sua adoção.
É necessário, porém, restabelecer o equilíbrio entre os
sistemas econômico, social e jurídico pela conformação democrática do Direito, sob
pena de uma reflexividade moralmente desvirtuada converter o dirigismo
constitucional em dirigismo econômico inconstitucional. Para tanto, o sistema
jurídico talvez seja o único dotado de um mecanismo estabilizador que tem o
condão de limitar sua própria autopoiese - a coerência lógica. O desrespeito aos
limites lógicos das leis deliberadas e escolhidas pelo legislador e poder
constituinte, em analogia aos organismos vivos, subverte tal controle, podendo
gerar tumores que, se malignos, rompem a ordem jurídica.
Este trabalho tentou contribuir com o estabelecimento de
parâmetros para o controle dos limites impostos à liberdade do legislador na
interpretação e aplicação dos direitos sociais constitucionais, em tempos de crise
do Estado social contemporâneo. As teses, contudo, apenas introduzem ou
desenvolvem o estado da arte. Nunca dão a última palavra.
312

ÍNDICE DAS FONTES

OBRAS CITADAS

ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional: sobre tolerância, direitos


humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2010.
ALEXANDRINO, José de Melo. A estruturação do sistema de direitos, liberdades e
garantias na constituição portuguesa: a construção dogmática, v. II, Almedina,
2006.
______. Direitos fundamentais: introdução geral. Estoril: Principia, 2007.
______. Perfil constitucional da dignidade da pessoa humana: um esboço traçado a
partir da variedade de concepções. Estudos em Honra do Professor Doutor José de
Oliveira Ascensão, v. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 481-511
______. Jurisprudência da crise. Das questões prévias às perplexidades. In: O tribunal
constitucional e a crise: ensaios críticos. RIBEIRO, G. A.; COUTINHO, L. P. (orgs.).
Coimbra: Almedina, 2014, p. 49-68.
______. Lições de direito constitucional. v. I. Lisboa: AAFDL, 2015.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva da 5.
ed. alemã. São Paulo: Malheiros, 2008.
______. Teoria discursiva do direito. Org. Trad. Alexandre T. G. Trivisonno. 2. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2015.
ALMEIDA, Luiz Eduardo de. Direitos sociais e seus limites: uma construção a partir
das decisões do STF. Curitiba: Juruá, 2017.
ALVES, Alaôr Caffé. Lógica - pensamento formal e argumentação: elementos para o
discurso jurídico. Bauru-SP: Edipro, 2000.
AMARAL, Maria Lúcia. A forma da republica: uma introdução ao estudo do direito
constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na constituição
portuguesa de 1976. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2012.
ARAUJO, Cassandra Pinhel. La protection des droits fondamentaux dans l’union
européene à la lumière de charte des droits fondamentaux – Mémoire de master 2
recherche droit international, européen et compare, 2013. Les Mémoires de
l’Équipe de Droit International, Européen et Comparé, n.º4, p. 26. Disponível em:
<http://ediec.univ-lyon3.fr/publications>. Acesso em: 11 mai. 2017.
RODRÍGUEZ-ARANA, Jaime. El principio general del derecho de confianza legítima.
Ciencia Jurídica. Departamento de Derecho. División de Derecho Política y
Gobierno, Universidad de Guanajuato, Año 1, nº. 4, 2013, p. 66.
ARANHA, Márcio Iorio. Segurança jurídica stricto sensu e legalidade dos atos
administrativos: convalidação do ato nulo pela imputação do valor de segurança
jurídica em concreto à junção da boa-fé e do lapso temporal. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, v. 34, n. 134, p. 59-73, abr./jun. de 1997.
ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005.
313

ARAÚJO, Valter Shuenquener de. O princípio da proteção da confiança: uma nova


forma de tutela do cidadão diante do Estado. Niterói, RJ: Impetus, 2009.
ATALIBA, Geraldo. Revisão constitucional. Revista de informação legislativa, v. 28,
n. 110, p. 87-90, abr./jun. 1991.
AVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição
do dever de proporcionalidade Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n.
215, jan./mar. 1999.
______. Sistema constitucional tributário. São Paulo: Forense, 2005.
______.“Neoconstitucionalismo”: entre a “Ciência do Direito” e o “Direito da Ciência”.
Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Bahia, Brasil, n.º 17,
jan./fev./mar. 2009. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/
rede-17-janeiro-2009-humberto%20avila.pdf>. Acesso em: 8 abr. 2017.
______. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12. ed.
São Paulo: Malheiros, 2011.
______. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito
tributário. São Paulo: Malheiros, 2011.
BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo
Horizonte: Del Rey, 2003.
______. Contribuição dialética para o constitucionalismo. Campinas: Millenium, 2007.
______. A reforma da previdência e os direitos adquiridos dos servidores. Texto básico
da palestra “A reforma da Previdência Social no Congresso Nacional”, no dia 2 de
junho de 2003, no 1º Ciclo de Seminários, realizado no Auditório Franco Montoro,
em São Paulo, SP., sob o patrocínio da Assembléia Legislativa do Estado de São
Paulo. Disponível em: <http://www.srbarros.com.br/pt/a-reforma-da-
previdencia-e-os-direitos-adquiridos-dos-servidores.cont>. Acesso em: 15 mai.
2015
CARBONELL, Miguel; JARAMILLO, Leonardo García (ed.). Neoconstitucionalismo(s).
Madrid: Editorial Trotta, 2003.
BACHOF, Otto. Estado de direito e poder político. Boletim da Faculdade de Direito
de Coimbra. Coimbra, Coimbra ed., v. 1, LVI, 1996.
BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e
controle das políticas públicas. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, nº 15,
jan./fev./mar., 2007.
BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas:
limites e possibilidades da constituição brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
1993.
______. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da constituição brasileira. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
______. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito constitucional brasileiro:
Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. Revista de Direito
Administrativo, Rio de Janeiro, n. 225, p. 5-37, jul./set. 2001.
314

______. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e


a construção do novo modelo. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2011.
______. O novo direito constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013.

BASTOS, Celso; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição do brasil. v. 2,


São Paulo: Saraiva, 1988.
BATISTA J., Fernando. La dignidad de la persona en la constitución española:
naturaleza juridica y funciones. Cuestiones constitucionales, n. 14, jan./jun. 2006, p.
16. Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=885014 01>. Acesso
em: 24 jun. 2016.
BEÇAK, R. (org); QUINTILIANO, L. D.; NIMER, B. L. C. (coords.). Princípios
constitucionais: contribuições à luz da obra de sérgio resende de barros. Belo
Horizonte: Arraes, 2018.
BEEVER, Allan. Forgotten justice: forms of justice in the history of legal and
political theory. Oxford: Oxford University Press, 2013.
BELL, John. Judiciaries within europe: a comparative review. Nova Iorque:
Cambridge University Press, 2006.
BERCOVICI, Gilberto. A problemática da constituição dirigente: algumas
considerações sobre o caso brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, n.
142, abr./jun. 1999.
______. Desigualdades regionais, estado e constituição. São Paulo: Max Limonad,
2002.
______. Entre o estado total e o estado social: atualidade do debate sobre direito,
estado e economia na República de Weimar. 2003. Tese (Livre Docência em Direito
Econômico) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/ disponiveis/livredocencia/2/
tde-22092009-150501/>. Acesso em: 2017-05-09.
BEVILÁQUA, Clovis. Soluções práticas de direito (pareceres). v. I. Rio de Janeiro:
Corrêa Bastos, 1923.
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Estudios sobre derechos fundamentales. Trad.
Juan Luis Requejo Pagés e Ignacio Villaverde Menéndez. Baden Baden: Nomos
Verlagsgesellschaft, 1993.
______. Los métodos de la interpretación constitucional - inventario crítico. In:
Escritos sobre derechos fundamentales. trad. J. R. Pagés; I. V. Menéndez. Baden-
Baden: Nomos, 1993.
______. Estúdios sobre el estado de derecho y la democracia. Trad. de Rafael de
Agapito Serrano. Madrid: Editorial Trotta, 2000.
BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. v. I. 11 ed. trad. C. C. Varriale et al.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
______. Teoria da norma jurídica. trad. F. P. Baptista; A. B. Sudatti. Bauru, SP:
EDIPRO, 2001.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15.ed. São Paulo: Malheiros,
2004.
315

______. Curso de direito constitucional, 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
BOROWSKI, Martin. La restricción de los derechos fundamentales. Revista Española
de Derecho Constitucional, n. 59, p. 30, mayo/agosto 2000.

______. La estructura de los derechos fundamentales. Bogotá: Universidad Externado


de Colombia, 2003.

BRAIBANT, G. La charte des droits fondamentaux de l'union européenne.


Témoignage et commentaires. Paris: Editions du Seil, 2001.
BRITTO, Carlos Ayres; PONTES FILHO, Valmir. Direito adquirido contra as
emendas constitucionais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro,
Renovar, v. 202, 1995.
BYRD, B . Sharon; HRUSCHKA, Joachim. Kant’s doctrine of right: a commentary.
Cambridge, New York, Melbourne, Madrid, Cape Town, Singapore, São Paulo, Delhi,
Dubai, Tokyo: Cambridge University Press, 2010.
CARIGLIA, Michela. L'operatività del principio di ragionevolezza nella
giurisprudenza costituzionale. In: LA TORRE, Massimo; SPADARO, Antonino. La
ragionevolezza nel diritto. Torino: G. Giappichelli, 2002.
CALMES, Sylvia. Du príncipe de protection de la confiance legitime en droits
allemand, communautaire et français. Paris: Dalloz, 2001.
CANAS, Vitalino. Constituição prima facie: igualdade, proporcionalidade, confiança
(aplicados ao "corte" de pensões). Epública: Revista eletrônica de direito público,
n°. 1, 2014. Disponível em: <http://e-publica.pt/constituicaoprimafacie.html>.
Acesso em: 3 mai. 2016.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador:
contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas.
Coimbra: Coimbra editora, 1994.
______. Rever ou romper com a constituição dirigente? Defesa de um
constitucionalismo moralmente reflexivo. Cadernos de Direito Constitucional e
Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4, n.15, 1996.
______. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a
compreensão das normas constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra
editora, 2001.
______. O estado adjetivado e a teoria da constituição. Revista da Procuradoria Geral
do Estado do Rio Grande do Sul (PGE-RS), Imprenta, Porto Alegre, v. 25, n. 56, p. 25-
40, dez. 2002.
______. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina,
2003.
______. "Brancosos" e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a
historicidade constitucional. Coimbra: Almedina, 2006.
316

______. MOREIRA, Vital. Constituição da república portuguesa anotada. 4. ed.


Coimbra: Coimbra Editora, 2007. 2 t.
______. CORREIA, Marcus Orione Gonçalves (coords.). Direitos fundamentais sociais.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p.19.
CARBONELL, Miguel. El neoconstitucionalismo: significado y nível de análisis. In:
CARBONELL, Miguel; JARAMILLO, Leonardo García. El canon neoconstitucional.
Madrid: Editorial Trotta, 2010, p. 153-64.
CARIGLIA, Michela. L'operatività del principio di ragionevolezza nella
giurisprudenza costituzionale. In: LA TORRE, Massimo; SPADARO, Antonino. La
ragionevolezza nel diritto. Torino: G. Giappichelli, 2002.
CARRÉ DE MALBERG, Raymond. Contribution à la théorie générale de l’état, spécia-
lement d’après les données fournies par le droit constitutionnel français. Paris: Sirey,
1920. 2 t.
______. Teoria general del estado. Trad. José Lión Depetre. México, D.F.: Fondo de
Cultura Económica, 2001.
CELSO, M. Mazziotti di; SALERNO, G. M. Manuale di diritto costituzionale. 4. ed.
Padova: CEDAM, 2007.
CRISAFULLI, Vezio. La costituzione e le sue disposizioni di principio. MIlano: Dott. A.
Giuffrè Editore, 1952.
COMANDUCCI, Paolo et. al. Positivismo juridico y neoconstitucionalismo. Madrid:
Fundación Coloquio Jurídico Europeu, 2009.
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as
instituições da Grécia e de Roma. Trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca.
São Paulo: Hemus, 1975.
COURTIS, Christian. Ni un paso atrás: la prohibición de regresividad en materia de
derechos sociales. Buenos Aires: Del Puerto, 2006.
COUTINHO, Luís Pedro Dias Pereira. A autoridade moral da constituição - da
fundamentação da validade do direito constitucional. Coimbra: Coimbra Editora,
2009.
COUTO e SILVA, Almiro do. Princípios da Legalidade e da Administração Pública e
da Segurança Jurídica no Estado de direito Contemporâneo. Revista de Direito
Público, São Paulo, n. 84, out./dez., 1987, p. 46-63.
______. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no Direito Público
Brasileiro e o direito da Administração Pública de anular seus próprios atos
administrativos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo
da União (Lei n.º 9.784/99). REDE – Revista Eletrônica de Direito do Estado.
Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n..2, abr./mai/jun. 2005. Disponível
em: <http://www.direitodoestado.com.br>. Acesso em: 27 mar. 2015.
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Um olhar crítico-deliberativo sobre os direitos
sociais no estado democrático de direito. In: SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO,
Cláudio Pereira de (coords.), Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos
sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2008, p. 128 ss.
D’ANDREA, Luigi. Ragionevolezza e legittimazione del sistema. Milano: Giuffré, 2005.
317

DAWSON, John P. As funções do juiz. In: Aspetos do direito americano.Trad. Janine


Yvonne Ramos Péres e Arlette Pastor Centurion. Rio de Janeiro: Forense, 1963.
DELFINO, Massimiliano. Il principio di non regresso nelle direttive in materia di
politica sociale. Giornale di Diritto del Lavoro e di Relazioni Industriali, 2002.
Disponível em: <https://www.francoangeli.it/Riviste/Scheda_ Rivista.aspx?
idArticolo=19442>. Acesso em: 20 dez. 2017.
DERBLI, Felipe. A aplicabilidade do princípio da proibição de retrocesso social no
direito brasileiro. In: SARMENTO, D.; SOUZA NETO, C. P. (coord.). Direitos Sociais:
fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lúmen
Juris, 2008.
DICEY, Albert Venn. Introdution to the study of the law of the constitution. 10. ed.
London: Macmillan, 1962.
DÓRIA, Antonio de Sampaio. Principios constitucionaes. São Paulo: São Paulo
Editora, 1926.
DUARTE, Maria Luísa. União europeia e direitos fundamentais: no espaço da
internormatividade. Lisboa: AAFDL, 2006.
DUGUIT, LÉON. Manuel de droit constitutionnel: théorie générale de l’état – le droit
et l’état - lês libertes publiques – l’organisation politique de la france. 4. ed. Paris:
E. de Boccard, 1923.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
______. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
FAVOREU, Louis; PHILIPPE, Loïc. Les grandes décisions du conseil constitutionnel.
10. ed. Paris: Dalloz-Sirey, 1999.
FAVOREU, Louis et al. Droit constitutionnel. 5.ed. Paris: Dalloz, 2002.
FERNANDEZ FARINA, Federico. Responsabilidad politica. Revista Mexicana de
Justicia. v.5, n.3, jul./sept, 1987. p. 149-62.
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Processos informais de mudança da constituição:
mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. São Paulo: Max Limonad
Ltda., 1986.
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. São Paulo:
Editora Atlas, 1994.
FERREIRA, Sérgio de Andréa. O Princípio da Segurança Jurídica em face das
Reformas Constitucionais. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 334, p. 191- 209.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição. São Paulo:
Saraiva, 1988.
______. O poder constituinte. 5. ed. São Paulo: Saraiva: 2007.
______. Princípios fundamentais do direito constitucional. Saraiva: São Paulo, 2009.
______. Do processo legislativo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
318

______. Notas sobre o direito constitucional pós-moderno, em particular sobre certo


neoconstitucionalismo à brasileira. Revista de Direito Administrativo, FGV, v. 250,
2009. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ ojs/index.php/rda/
issue/view/354>. Acesso em: 3 jun. 2017.
FORSTHOFF, Ernst. Stato di diritto in transformazione. trad. L. Riegert e C.
Amirante. Milano, 1973.
FRANÇA, Rubens Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido. 5. ed. rev.
atual. do Direito intertemporal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1998.
FREITAS, Tiago Fidalgo de. O princípio da proibição de retrocesso social. In:
Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano: no centenário do
seu nascimento / coordenação Jorge Miranda. - Lisboa : FADUL, 2006, p. 783-850.
2 vol.
FREITAS, Luiz Fernando Calil de. Direitos fundamentais: limites e restrições. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las transformaciones del estado contemporâneo. 2. ed.
Madrid: Alianza Editorial, 1985.
GOZZI, Gustavo. Kant: la concezione dela democrazia sul fondamento dei diritti. In:
BOLOGNESI, Dante; MATTARELLI, Sauro. L’Illuminismo e i suoi critici. Milano:
FrancoAngeli, 2011.
GOUVEIA, Jorge Bacelar. Manual de direito constitucional: introdução: parte geral:
parte especial. 2v. 5. ed. rev. atual. Coimbra: Almedina, 2013.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5.
ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2009.
GROSS, Orer. Chaos and rules: should responses to violent crises always be
constitutional? The Yale Law Journal, v. 112, n. 5, fev. 2003.
GUASTINI, Riccardo. Dalle fonti alle norme. Torino: Giappichelli, 1990.
______. Problemi epistemologici del normativismo.In: COMANDUCCI, P.; GUASTINI, R.
(eds). Analisi e diritto 1991. Ricerche di giurisprudenza analítica: Torino:
Giappichelli, 1991.
______. Interpretare e argomentare. Milano: Giuffre Editore, 2011.
HÄBERLE, Peter. Dignita’Dell’Uomo e Diritti Sociali nelle Costituzioni degli Stati di
Diritto. In: BORGHI, Marco. Costituzione e diritti sociali. Fribourg: Éditions
Universitaires Fribourg, 1990.
______. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da
constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da
constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris,
2002.
______. El contenido esencial de los derechos fundamentales: una contribución a la
concepción institucional de los derechos fundamentales y a la teoría de la reserva
de la ley. trad. J. B. Camazano. Madrid: Dykinson, 2003.
319

______. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In:


Dimensões da dignidade, ensaios de filosofia do direito e direito constitucional.
SARLET, Ingo Wolfgang (Org.).Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
HABERMAS, Jürgen. Ensaio sobre a constituição da europa. Trad. Marian Toldy e
Terese Toldy. Lisboa: Edições 70.
HACHEZ, Isabelle. Le principe de standstill dans le droit des droits fondamentaux:
une irréversibilité relative. Athènes - Bruxelles - Baden-Baden: Editions Ant. N.
Sakkoulas - Bruylant - Nomos Verlagsgesellschaft, 2008.
HAYEK, Friedrich August Von. Os fundamentos da liberdade (original: The
Constitution of liberty). Trad. port. A. M. Capovilla e J. I. Stelle. São Paulo: Visão,
1983.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. trad. O. Vitori.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Coleção Os Pensadores.
Trad. Ernildo Stein: São Paulo: Abril Cultural, 1979.
HELÚ, Jorge Sayeg. El constitucionalismo social mexicano: la integración
constitucional de México (1808-1988). México: Fondo de Cultura Económica, 1991.
HESSE, Konrad. Grunzüge des verfassungsrechts der bundesrepublik deutschland.
Heidelberg: C. F. Muller, 1978
______. Escritos de derecho constitucional. Madrid: Centro de Estúdios
Constítucionales, 1983.
______. Elementos de direito constitucional da república federal da Alemanha. Trad.
20. ed. alemã Luís Afonso. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998.
HIRSCHL, Ran. The political origins of the new constitutionalism. Indiana Journal of
Global Legal Studies, v. 11, n.º 1, art. 4º. Disponível em: <http://www.repository.
law.indiana.edu/ijgls/vol11/iss1/4>. Acesso em: 11 jun. 2017.
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on
taxes. New York, London: W. W. Norron & Company, 1999.
MENDES, Conrado Hübner. Constitutional courts and deliberative democracy.
Oxford: Oxford University Press, 2013.
IZQUIERDO, Beatriz Verdera. La irretroactividad: problemática general. Madrid:
Dykinson, 2006.
JAMES, William. The moral philosopher and moral life. In: The will to believe: and
other essays in popular philosophy. Mineola, N.Y.: Dover, 1956.
JELLINEK, Georg. Teoria general del estado. Trad. Fernando de Los Rios. Mexico,
D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2004.
KANT, Immanuel. Princípios metafísicos da doutrina do direito. Trad. Joãosinho
Beckenkamp. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
KMIEC, Keenan D. The Origin and Current Meaning of "Judicial Activism". California
Law Review, v. 92, n. 5, 2004, p. 1441-78.
320

LAUBADERE, André de et al. Traité de droit administratif. 2. ed, Paris: Libraire Générale de Droit et
de Jurisprudence, 1992.
LÉON, Luis Fleitas de. A propósito del concepto de “estado de derecho”: un estudio y una propuesta
para volver a su matriz genética. Revista de Derecho de la Universidad de Montevideo, ano X, n.º 20,
2011, p. 23-40.
LLOYD, Dennis. A ideia de lei. trad. Á. Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
LOCKE, John. Two treatises of government. London: Thomas Hollis, 1689, 2 v. (a
versão fac-símilar do original está disponível em:
<http://oll.libertyfund.org/titles/222>. Acesso em 1º jun. 2015.
LOMBA, Pedro. Teoria da responsabilidade política. Coimbra: Coimbra Editora,
2008.
LOPES, Ana Maria D'Avila. Os direitos fundamentais como limites ao poder de
legislar. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001.
LUHMANN, Niklas. Politische verfassungen im kontext des gesellschaftssystems.
Der Staat, Berlin, v. 12, n. 1, pp. 1-22, 1973.
______. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.
______. Introdução à teoria dos sistemas. trad. A. C. A. Nasser. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
2010.
MACHADO, Hugo de Brito. Direito adquirido e coisa julgada como garantias
constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 84, n.º 714 , p. 19-26, abr. 95.
MAYER, Otto. Le droit administratif allemand. v. 1. Paris: Giard & Briére, 1906.
MAURER, Hartmut. Elementos de direito administrativo alemão. Trad. Luís Afonso
Heck. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2001.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2011.
MEDAUAR, Odete. Segurança jurídica e confiança legítima. In: Fundamentos do
Estado de direito. Estudos em homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva.
Humberto Ávila (org). São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 114-119.
MEDEIROS, Rui. Direitos, liberdades e garantias e direitos sociais: entre a unidade
e a diversidade. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia. Jorge
Miranda (Coord.). Lisboa: FADUL, 2010, 2.v., p. 657-683.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 34. ed. atual. por Eurico
de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São
Paulo: Malheiros, 2008.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Direito adquirido proporcional. Revista
Trimestral de Direito Público, São Paulo, n.º 36, 2001, p. 18-23.
______. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2002
______. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
MELO, José Tarcízio de Almeida. Direito constitucional brasileiro. Belo Horizonte:
Del Rey, 1996.
321

MENDONÇA, João Vicente Santos de. Vedação do retrocesso: o que é e como perder
o medo. In: Revista de Direito da Associação de Procuradores do Novo Estado do Rio
de Janeiro, v. XII – Direitos Fundamentais, Lumen Juris, 2003.
MENÉNDEZ, Ignácio Villaverde. La inconstitucionalidad por omisión. Madrid:
McGraw-Hill, 1997.
MIRANDA, Jorge. Os novos paradigmas do estado social. Texto da conferência
proferida em 28 de Setembro de 2011, em Belo Horizonte, no XXXVII Congresso
Nacional de Procuradores de Estado. Disponível em: <http://www.
icjp.pt/sites/default/files/media/1116-2433.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2017
______. Manual de direito constitucional. Direitos Fundamentais. t. IV. 5. ed.. Coimbra:
Coimbra Editora, 2012.
MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui. Constituição portuguesa anotada. t. I, 2. ed.
Coimbra: Wolters-Coimbra Editora, 2010.
MOLLION, Grégory. Les garanties légales des exigences constitutionnelles. Revue
française de droit constitutionnel, n. 62, v. 2, 2005.
MORAIS, Carlos Blanco de. Segurança jurídica e justiça constitucional. RFDUL, v.
XLI, n° 2, 2000, p. 619-30.
______. Algumas reflexões sobre o valor jurídico de normas parasitárias presentes
em leis reforçadas pelo procedimento. Sep. de: Nos 25 anos da Constituição da
República Portuguesa de 1976. Lisboa: AAFDL, 2001.
______. As mutações constitucionais implícitas e os seus limites jurídicos: autópsia
de um acórdão controverso. Jurismat – Revista Jurídica do Ismat, Portimão, n.º 3,
2013, p. 55. Disponível em: <http://www.ismat.pt/images/PDF/jurismat3.
compressed.pdf>. Acesso em: 3 ago. 2015.
______. Curso de direito constitucional: a lei e os actos normativos no ordenamento
jurídico português. t. I. Coimbra: Coimbra Editora, 2008.
______. Justiça constitucional: o direito do contencioso constitucional. t. II, 2. ed.,
Coimbra: Coimbra Editora, 2011
______. Curso de direito constitucional: teoria da constituição em tempo de crise do
estado social. v. 2. t. 2. Coimbra: Coimbra Editora, 2014.
______. De novo a querela da ‘unidade dogmática’ entre direitos de liberdade e
direitos sociais em tempos de ‘exceção financeira’”. In: Epública: Revista eletrônica
de direito público, n°. 3, 2014. Disponível em: <http://e-publica.pt/>. Acesso em: 8
mar. 2015.
MORRONE, Andrea. Ragionevolezza a rovescio: l’ingiustizia della sentenza n.
70/2015 della Corte Costituzionale. Federalismi.it: Rivista di Diritto Pubblico
Italiano, Comparato, Europeo, n. 10, 2015. Disponível em: <http://www.
federalismi.it/nv14/articolo-documento.cfm?Artid=29515&content=&content_
author=>. Acesso em 5 ago. 2017
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
_____. Entre hidra e hércules: princípios e regras constitucionais como diferença
paradoxal do sistema jurídico. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
322

NIMER, Beatriz Lameira Carrico. Ação popular como instrumento de defesa da


moralidade administrativa: por uma nova cidadania. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2016.
NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente
autorizadas pela constituição. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.
______. Princípios constitucionais estruturantes da república portuguesa. Coimbra:
Coimbra Editora, 2004.
______. O tribunal constitucional e os direitos sociais: o direito à segurança social.
Jurisprudência Constitucional, Lisboa, n. 6, abr./jun. 2005, p. 3-14.
______. Contributo para uma teoria do estado de direito. Coimbra: Almedina, 2006.
______. Direitos sociais: teoria jurídica dos direitos sociais enquanto direitos
fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2010.
______. Direitos fundamentais e justiça constitucional em estado de direito
democrático. Coimbra: Coimbra Editora, 2012.
______. Em defesa do tribunal constitucional: resposta aos críticos. Coimbra:
Almedina, 2014.
______. O direito fundamental à pensão de reforma em situação de emergência
financeira. E-pública - Revista Eletrônica de Direito Público, n. º 1, 2014. Disponível
em: < http://e-publica.pt/pdf/artigos/odireitofundamentalpensao.pdf>. Acesso
em: 4 abr. 2017.
OTERO, Paulo. Instituições políticas e constitucionais. v. 1. Coimbra: Almedina,
2009.
PARSONS, Talcott. El sistema social. Espanha: Ed. Alianza, 1999.
PALLIERI, Giorgio Balladore. Diritto costituzionale. 2. ed. Dott. A. Giuffré: Milão,
1950.
PEREIRA, Paulo Trigo. Portugal: dívida pública e défice democrático. Lisboa:
Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2012.
PETRACCI, Fabio; TEAT, Gianluca. Corte costituzionale, retribuzioni e pensioni nella
crisi: la sentenza 30 aprile 2015, n.º 70 – ragione e conseguenze. Key Editore, 2015.
PRANEVIČIENĖ, Birutė; MIKALAUSKAITĖ-ŠOSTAKIENĖ, Kristina. Guarantee of
principles of legitimate expectations, legal certainty and legal security in the
territorial planning process. Mykolas Romeris University, Kaunas, Lithuania, 2012,
19 (2), p. 643-656. Disponível em: <http://www.mruni.eu/upload/iblock/
d32/013_praneviciene_mikalauskaite_sostakiene.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2017.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella di Pietro. Direito administrativo. 22. ed. São Paulo:
Atlas, 2009.
PINTO, Paulo Mota. A proteção da confiança na jurisprudência da crise. In:
COUTINHO, Luís Pereira; RIBEIRO, Gonçalo de Almeida (orgs.). O tribunal
constitucional e a crise: ensaios críticos. Coimbra: Almedina, 2014, p. 133-185.
PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos, globalização econômica e integração regional.
São Paulo: Max Limonad, 2002.
323

PITKIN, Hanna Fenichel. The concept of representation. Berkley: University of


California Press, 1967.
POLITZER, Georges; BESSE Guy; CAVEING, Maurice. Princípios fundamentais de
filosofia. 2. ed. Trad. J. C. Andrade. São Paulo: Fulgor, 1963.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967
com a Emenda n. I de 1969. t. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais.
PORTALES, Rafael Enrique Aguilera. Las transformaciones del estado
contemporáneo: legitimidad del modelo de estado neoconstitucional. Universitas.
Revista de Filosofía, Derecho y Política, n. 15, jan. 2012.
PULIDO, Carlos Bernal. Fundamento, conceito e estrutura dos direitos sociais: uma
crítica a “existem direitos sociais?” de Fernando Atria. In: SARMENTO, Daniel;
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de (coords.). In: Direitos sociais: fundamentos,
judicialização e direitos sociais em espécie, Lúmen Juris, 2008.
QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais sociais: funções, âmbito, conteúdo,
questões interpretativas e problemas de justiciabilidade. Coimbra, Portugal:
Coimbra Editora, 2006.
______.O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais: princípios
dogmáticos e prática jurisprudencial. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.
______. O tribunal constitucional e os direitos sociais. Coimbra: Coimbra Editora,
2014.
QUINTILIANO, Leonardo David. Autonomia federativa: delimitação no direito
constitucional brasileiro. 2012. Tese (Doutorado em Direito do Estado) - Faculdade
de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em:
<http://www. teses.usp.br/teses/disponiveis /2/2134/tde-26082013-162030/>.
Acesso em: 5 ago. 2017.
______. Políticas públicas e endividamento: como os precatórios financiam os entes
federativos. Observatório da Jurisdição Constitucional. Brasília: IDP, Ano 5, Vol. 2,
ago./dez. 2012.
RAMOS, Elival da Silva. A proteção dos direitos adquiridos no direito constitucional
brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003.
______. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010.
RÁO, Vicente. Ato jurídico. São Paulo: Max Limonad, 1961.
RAWLS, John. A theory of justice. rev. ed. Cambridge, Massachusetts: Harvard
University Press, 1999.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1993.
RIBEIRO, Gonçalo de Almeida. O constitucionalismo dos princípios. In: O tribunal
constitucional e a crise: ensaios críticos. RIBEIRO, G. A.; COUTINHO, L. P. (orgs.).
Coimbra: Almedina, 2014, p. 69-104.
ROCHA JÚNIOR, Luís Clóvis Machado. A decisão sobre os efeitos do ato
inconstitucional. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2014.
324

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social: ou principes du droit politique.


Amsterdam: Marc Michel Rey, 1762. (a versão original digitalizada está disponível
em: <https://archive.org/details/ ducontratsoc00rous>. Acesso em: 1.º jul. 2017.
RUBIALES, Iñigo Sanz. Principio de confianza legitima, limitador del poder
normativo comunitário. Revista de Derecho Comunitario Europeo, Centro de
Estudios Politicos y Constitucionales, Madrid, n.º 7, jan./jun. 2000, p. 95.
SÁ, Fátima de. Omissões inconstitucionais e sentenças aditivas. In: MORAIS, Carlos
Blanco de (org.). As sentenças intermédias da justiça constitucional. Lisboa: AAFDL,
2009.
SAGÜÉS, Néstor Pedro. Sobre el concepto de ‘constitución viviente’ (living
constitution). Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte,
nº 1, jan./jun. 2003.
SAJÓ, András. Social rights as middle-class entitlements in hungary: the role of
constitutional court. In: GARGARELLA, Roberto; DOMINGO, Pilar; ROUX, Theunis.
Courts and social transformation in new democracies: an institutional voice for the
poor? Burlington: Ashgate, 2006.
SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito adquirido e expectativa de direito. Belo
Horizonte: Del Rey, 2005.
SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana:
construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível.
Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, n. 9, jan./jun. 2007, p. 361-88.
______. Proibição de retrocesso, dignidade da pessoa humana e direitos sociais:
manifestação de um constitucionalismo dirigente possível. Revista Eletrônica sobre
a Reforma do Estado, Salvador, Bahia, Brasil, n. 15, set./out./nov. 2008. Disponível
em: <http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-15-SETEMBRO-2008-
INGO%20SARLET.pdf>. Acesso em: 5 jul. 2016.
______. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012.
SCHMITT, Carl. La tirania de los valores. Trad. Anima Schimitt de Otero. Revista de
Estudios Politicos, Madrid, 115, ene./feb. 1961, p. 65-82.
______. Teoria de la constitución. Trad. Francisco Ayala. Madrid: Alianza Editorial,
1996.
SECONDAT, Charles-Louis, Baron de la Brède et de MONTESQUIEU. De l´esprit des
lois. Introd. notas e variantes por Gonzague Truc. Paris: Garnier Frères, 1949. 2 t.
SCHELENKER, Rolf-Ulrich. Soziales rückschrittsverbot und grundgesetz: Aspekte
verfassungsrechtlicer einwirkung auf die stabilität sozialer rechtslagen. Berlim:
Duncker & Humblot, 1986.
SCHLINK, Bernhard. Abwägung im Verfassungsrecht. Berlin: Duncker & Humblot,
1976.
______. Proportionality. In: ROSENFELD, Michel; SAJÓ, András (eds.). The oxford
handbook of comparative constitutional law. Oxford: Oxford University Press, 2012,
p. 718 et. seq.
325

SIEYÈS, Emmanuel-Joseph. Qu’est-ce que le tiers état? Édition critique avec une
introduction par Ed-me Champion. Paris: Au Siège de la Société, 1888. Fotocópia
de exemplar da biblioteca de Stanford disponível em:
<http://www.archive.org/details/questce queletie01sieygoog>. Acesso em:
11.03.15.
SILVA, Jorge Pereira da. O dever de legislar e proteção jurisdicional contra omissões
legislativas: contributo para uma teoria de inconstitucionalidade por omissão.
Lisboa: Universidade Católica Editora, 2003.
SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a
constituição. São Paulo: Malheiros, 2002.
_____. Curso de direito constitucional positivo, 11.ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
______. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.
_____. Curso de direito constitucional positivo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais,
São Paulo, v. 91, n. 798, abr. 2002, pp. 23-50.
______. Grundrechte und gesetzgeberische spielräume. Bade-Bade: Nomos, 2003.
______. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista
Latino-Americana de Estudos Constitucionais, n. 1, 2003, p. 2-3.
______. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São
Paulo: Malheiros, 2014.
SILVA, Vasco Pereira da. Verde cor de direito: lições de direito do ambiente.
Coimbra: Almedina, 2002.
______. A cultura a que tenho direito – direitos fundamentais e cultura. Coimbra:
Coimbra Editora, 2007.
______. Todos diferentes, todos iguais. Breves considerações acerca da natureza
jurídica dos direitos fundamentais. Direitos Fundamentais e Justiça, n.º 16, ano 5,
jul./set. 2011, p. 23-51.
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas.
v. I. introd. E. Cannan. trad. L. J. Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
STEIN, Torsten. A segurança jurídica na ordem legal da república federal da
alemanha. In: Cadernos Adenauer, n. 3 (Acesso à Justiça e. cidadania), 2000.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração
hermenêutica da construção do direito. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2011.
______. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013.
TARCHI, Rolando. Le leggi di sanatoria nella teoria del diritto intertemporale.
Milano: Giuffrè, 1990.
TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. trad. J. E. Antunes. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1989.
326

TRIBE, Laurence H. The invisible constitution. Oxford: Oxford University Press,


2008.
URBANO, Maria Benedita. A jurisprudência da crise no Divã. Diagnóstico:
bipolaridade? In: O tribunal constitucional e a crise: ensaios críticos. RIBEIRO, G. A.;
COUTINHO, L. P. (orgs.). Coimbra: Almedina, 2014, p. 9-48.
VAZ, Manuel Afonso. Lei e reserva de lei: a causa da lei na constituição portuguesa
de 1976. Lisboa: UCL, 1996.
VERDÚ, Pablo Lucas. La lucha por el estado de derecho. Bolonia: Real Colegio de
España, 1975.
WEBER, Max. Economía y sociedade: Esbozo de sociología comprensiva. 2ª
impressão da 2. ed. Trad. da 4.ª ed. alemã por José Medina Echavarria et al. México,
Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, Guatemala, Peru,
Venezuela: Madrid: Fondo de Cultura Econômica de España.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. J. A. Giannotti. São
Paulo: Cia Editora Nacional – Universidade de São Paulo, 1968.
XAVIER, Alberto. Manual de direito fiscal. v. I. Lisboa: Almedina, 1974,
ZEPEDA, Jesús Rodrigues. Estado de derecho y democracia. 2. ed. Mexico: Instituto
Federal Electoral, 2001.
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do estado. Trad. Krin Praefke-Aires Coutinho. 3.
ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

JURISPRUDÊNCIA CITADA

ALEMANHA. Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht –


BverfG)
BVerfG 39:1. German Constitutional Court Abortion Decision. Translation by
Robert E. Jonas and John D. Gorby. The John Marshall Journal of Practice and
Procedure, (v. 9:605). Disponível em: <http://groups.csail.mit.edu/mac/users/
rauch/nvp/german/german_abortion_decision2.html>. Acesso em: 16 jun. 2016.
BVerfG 1 BvR 357/05, Judgment of the First Senate of 15 February 2006 - paras.
(1-156). ECLI:DE:BVerfG:2006:rs20060215.1bvr035705.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal.


(Todos os acórdãos do Supremo Tribunal Federal brasileiro podem ser
encontrados no sítio do STF na internet. A pesquisa pode ser feita pelo número do
processo no seguinte endereço: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/
pesquisarProcesso.asp>).
MI 107/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Moreira Alves. J. 23/11/1989.
ADI 571 MC/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Néri da Silveira. J. 28/11/1991.
MI 20/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Celso de Mello. J. 19/05/1994.
ADI 1497-8/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. J. 9/10/1996
ADI 2010/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Celso de Mello. J. 30/09/1999.
327

ADI 2242/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Moreira Alves. J. 7/02/2001.
ADI 2213/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Celso de Mello. J. 4/04/2002.
ADI 2666/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ellen Gracie. J. 3/10/2002.
ADI 2.065/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. J.
17/02/2000.
ADPF 45/DF. Decisão Monocrática. Rel. Min. Celso de Mello. J. 29/04/2004.
ADI 3128/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 18/08/2004.
ADI 3105/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 18/08/2004.
MS 24927/RO. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 28/09/2005.
RE 370682/SC. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. para Acórdão Min. Gilmar Mendes. J.
25/06/2007.
RE 503452 AgR/SP. Acórdão. Segunda Turma. Rel. Min. Cezar Peluso. J.
18/09/2007.
MI 721/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. J. 30/08/2007.
ADI 3104/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carmen Lúcia. J. 26/09/2007.
MS 24448/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carlos Britto. J. 27/09/2007.
MI 670/ES. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Gilmar Mendes. J. 25/10/2007.
MS 26782/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Cezar Peluso. J. 17/12/2007.
Súmula Vinculante nº 13. DJe de 29.8.2008.
Debate de aprovação da Súmula Vinculante nº 13. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaSumulaVinculante/anexo/SU
V_11_12_13__Debates.pdf>. Acesso em: 22 out. 2017.
ADPF 132/RJ. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ayres Britto. J. 5/05/2011.
ADI 4277/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ayres Britto. J. 5/05/2011.
ARE 639337 AgR/SP. Segunda Turma. Rel. Min. Celso de Mello. J. 23/08/2011.
RE/DF 363889. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Ministro Dias Toffoli. J. 2/06/2011.
MS 26271 AgR/DF. Acórdão. Tribunal Pleno. Rel. Min. Celso de Mello. J. 4/12/2012.
AP 470 AgR-vigésimo quinto/MG. Pleno. Rel. p/ acórdão Min. Teori Zavascki. J.
18.9.2013.
RE 581352 AgR/AM. Segunda Turma. Rel. Min. Celso de Mello. J. 29/10/2013.
ADI 4543/DF. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carmen Lúcia. J. 6/11/2013. Pub.
13/10/2014.
ARE 704520/SP. Tribunal Pleno. Rel. Min. Gilmar Mendes. J. 23.10.2014
ADI 4350/DF. Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux. J. 23.10.2014.
ARE 727864 Agr/PR. Segunda Turma. Rel. Min. Celso de Mello. J. 4/11/2014.
RE 745745 AgR/MG. Segunda Turma. Rel. Min. Celso de Mello. J. 2/12/2014.
RE 658312/SC. Tribunal Pleno. Rel. Min. Dias Toffoli. J. 27/11/2014.
328

RE 592581/RS. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ricardo Lewandowiski. J. 13/8/2015.


HC 124306/RJ. Primeira Turma. Rel. Min. Roberto Barroso. J. 9/8/2016.
RE 580252/ MS. Tribunal Pleno. Rel. p/ acórdão. Min. Gilmar Mendes. J.
16/2/2017.
RE 612975/MT. Tribunal Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. J. 27/4/2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.
(Todos os acórdãos do Superior Tribunal de Justiça brasileiro podem ser
encontrados no sítio do STJ na internet. A pesquisa pode ser feita pelo número do
processo no seguinte endereço: <https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/
?aplicacao=processos.ea>).
RMS 6564/RS. Primeira Turma. Rel. Demócrito Reinaldo. J. 17.6.1996
AgRg no REsp 737694. Sexta Turma. Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. J. 6/2/2014.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Corte (Supreme Court)


(Todos os acórdãos a seguir foram consultados no site da Suprema Corte.
Disponível em: <https://supreme.justia.com/>.)
Marbury v. Madison. 5 US 137 (1803)
Atkins v. Virginia. 536 U.S. 304 (2002).
Roper v. Simmons. 543 U.S. 551 (2005).
Obergefell v. Hodges. 576 U.S. (2015)

FRANÇA. Conselho Constitucional (Conseil Constitutionnel).

Disponível em: <http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/


francais/la-constitution/les-constitutions-de-la-france/les-constitutions-de-la-fran
ce.5080.html>.

Décision n.º 84-181, DC du 11 octobre 1984 (11 de outubro de 1984).


ECLI:FR:CC:1984:84.181.DC

ITÁLIA. Corte Costituzionale.


Disponível em: <http://www.cortecostituzionale.it/ctionPronuncia.do>.
Sentenza 26, de 6 de março de 1980.
Sentenza 316, de 11 de novembro de 2010.
Sentenza 70, de 6 de maio de 2015.
Sentenza 250, de 25 de outubro de 2017.

PORTUGAL. Tribunal Constitucional.


(Todos os acórdãos do Tribunal Constitucional de Portugal foram consultados no
sítio do TC na internet. A pesquisa pode ser feita pelo número do acórdão no
seguinte endereço: <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/>).
Processo .º 94/83. Acórdão n.º 11, de 12 de outrubro de 1983.
329

Processo nº 22/83. Acórdão 20, de 16 de novembro de 1983.


Processo n.º 6/83. Acórdão n.º 39, de 11 de abril de 1984.
Processo n.º 126/84. Acórdão n°. 150, de 31 de julho de 1985.
Processo n.º 344/88. Acórdão n.º 186, de 11 de agosto de 1988.
Processo n.º 309/90. Acórdão 287, de 30 de outubro de 1990.
Processo n.º 129/89. Acórdão 303, de 21 de novembro de 1990.
Processo n.º 530/92. Acórdão n.º 148, de 8 de fevereiro de 1994.
Processo n.º 768/02. Acórdão n.º 509, de 19 de dezembro de 2002.
Processo n.º 198/92. Acórdão 141, de 9 de abril de 2002.
Processo n.º 768/02. Acórdão n.º 509, de 19 de dezembro de 2002.
Processo n.º 944/03. Acórdão n.º 590, de 6 de outubro de 2004.
Processo n.º 962/06. Acórdão n.º 336, de 30 de maio de 2007.
Processo n.º 772/07. Acórdão n.º 128, 12 de março de 2009.
Processo n.º 505/08. Acórdão n.º 188, de 22 de abril de 2009.
Processo n.º 273/09. Acórdão n.º 561, de 28 de outubro de 2009.
Processo n.º 176/09. Acórdão n.º 3, de 6 de janeiro de 2010.
Processo n.º 985/09. Acórdão n.º 269, de 29 de junho de 2010.
Processos n.º s 523 e 524/2010. Acórdão n.º 399, de 27 de outubro de 2010.
Processo n.º 72/11. Acórdão n.º 396, de 21 de setembro de 2011.
Processo n.º 197/12. Acórdão n.º 253, de 23 de maio de 2012.
Processo n.º 40/12. Acórdão n.º 353, de 5 de julho de 2012.
Processos n.ºs 2/2013, 5/2013, 8/2013 e 11/2013. Acórdão n.º 187, de 5 de abril
de 2013.
Processo n.º 1260/13. Acórdão n.º 862, de 19 de dezembro de 2013.
Processo n.º 14/2014; 47/2014 e 137/2014. Acórdão n.º 413, de 30 de maio de
2014.
Processo n.º 1260/13. Acórdão n.º 862, de 19 de dezembro de 2013
Processo n.º 819/14. Acórdão n.º 575, de 14 de agosto de 2014.
Processo n.º 386/2014 e 389/2014. Acórdão n.º 572, de 30 de julho de 2014.
Processo n.º 819/2014. Acórdão n.º 575, de 14 de agosto de 2014.
Processo n.º 119/14. Acórdão n.º 260, de 5 de maio de 2015.

LEGISLAÇÃO CITADA

ALBÂNIA. Constitution of the Republic of Albania (1998). Sítio do Parlamento da


Albânia. Disponível em: <https://www.parlament.al/assembly/constitution/?
lang=en>. Acesso em: 15 abr. 2017.
330

ALEMANHA. Constituição do Império Alemão (1919). Versão em inglês disponível


no sítio <http://germanhistorydocs.ghi-dc.org/pdf/eng/ghi_wr_weimarconstitutio
n_Eng.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2017.
ALEMANHA. Lei Fundamental da República da Alemanha (1949). Versão em
português disponível no sítio do Bundestag (Parlamento alemão) em: <
https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf >. Acesso em: 15 jan. 2017.

ANGOLA. Constituição da República de Angola (2010). Sítio da Assembleia Nacional


de Angola. Disponível em: <http://www.parlamento.ao/constituicao-
an/index.html>. Acesso em: 28 abr. 2017.
ARGENTINA. Constitución Nacional (1853). Sítio do Senado de la Nación Argentina.
Disponível em: < http://www.senado.gov.ar/deInteres>. Acesso em: 18 abr. 2017.
ÁUSTRIA. Constituição Federal da Áustria (1920). Sítio do Parlamento da República
da Áustria. Disponível em: <https://www.ris.bka.gv.at/Dokumente/
Erv/ERV_1930_1/ERV_1930_1.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2018.
BOLÍVIA. Constitución Política del Estado de Bolivia (2007). Sítio do Ministerio de
Justicia de Bolivia. Disponível em: <http://www.justicia.gob.bo
/index.php/normas>. Acesso em: 6 de jun. 2018.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Sítio do Palácio do
Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constituicao.htm>. Acesso em: 15 jan. 2018.
BRASIL. Emenda n. 20/1998 à Constituição da República Federativa do Brasil. Sítio
do Palácio do Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/emendas/emc/ emc20.htm>. Acesso em 15 jan. 2018.
BRASIL. Emenda n. 41/2003 à Constituição da República Federativa do Brasil. Sítio
do Palácio do Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/Emendas/Emc /emc41.htm>. Acesso em: 15 jan. 2017.
BRASIL. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Decreto-Lei nº 4.657, de
4 de setembro de 1942. Sítio do Palácio do Planalto. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm>.
Acesso em: 15 de jan. 2018.
BRASIL. Lei federal n. 9783, de 28 de janeiro de 1999. Sítio do Palácio do Planalto.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9783.htm>. Acesso
em: 20 jan. 2017.
BRASIL. Lei federal n. 9868, de 10 de novembro de 1999. Sítio do Palácio do
Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9868.htm>.
Acesso em: 17 mar. 2017.

BRASIL. Lei federal 10406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Sítio do Palácio
do Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/Leis/2002/L10
406.htm>. Acesso em: 17 mar. 2017.

BRASIL. Lei federal n. 12.034, de 29 de setembro de 2009. Sítio do Palácio do


Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9868.htm>.
Acesso em: 17 mar. 2017.
331

BRASIL. Lei federal nº 13.587, de 2 de janeiro de 2018. Sítio do Palácio do Planalto.


Disponível em: <http://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/
orcamento/or2018/lei/Lei13587-2018.pdf. > Acesso em: 21 abr. 2018.

BRASIL. ESTADO DE SÃO PAULO. Lei nº 16.646, de 11 de janeiro de 2018. Sítio da


Assembleia Legislativa de São Paulo. Disponível em: <https://www.al.sp.gov.br/
norma/?id=184902>. Acesso em: 30 abr. 2018.

CORÉIA DO SUL. Constituição da República da Coréia (1948). Sítio da Corte


Constitucional da Coréia. Disponível em: <http://english.ccourt.go.kr/cckhome/
eng/index.do>. Acesso em: 20 jan. 2018.

ESLOVÊNIA. Constituição da República da Eslovênia (1991). Sítio da Corte


Constitucional da Eslovênia. Disponível em: <www.us-rs.si/media/constitution.pdf>.
Acesso em: 15 mai. 2017.

ESPANHA. Constitución española (1978). Sítio do Congresso da Espanha.


Disponível em: <http://www.congreso.es/consti/constitucion/indice/index.htm>.
Acesso em: 15 jun. 2017.

FRANÇA. Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen de 1789. Sítio do Conseil


Constitutionnel de la République Française. Disponível em: <http://www.conseil-
constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/root/bank/pdf/conseil-constitutionnel-
5076.pdf>. Acesso em: 8 jun. 2017.

FRANÇA. Constitution du 5 Fructidor An III. Sítio do Conseil Constitutionnel de la


République Française. Disponível em: <http://www.conseil-constitutionnel.fr
/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-constitutions-de-la-france/
constitution-du-5-fructidor-an-iii.5086.html>. Acesso em: 9 fev. 2017.

HUNGRIA. Hungary's Constitution of 2011. Sítio da Corte Constitucional da Hungria.


Disponível em: <https://hunconcourt.hu/fundamental-law/>. Acesso em: 15 mar.
2018.

ITÁLIA. Costituzione della Repubblica Italiana. (1947). Senato della Repubblica.


Disponível em: <http://www.senato.it/documenti/repository/istituzione/
costituzione. pdf>. Acesso em: 20 jul. 2017.

ITÁLIA. Legge 24 dicembre 2007, n. 247. Parlamento Italiano. Disponível em:


<http://www.camera.it/parlam/leggi/07247l.htm>. Acesso em: 15 ago. 2017.

ITÁLIA. Legge 22 dicembre 2011, n. 214. Parlamento Italiano. Disponível em:


<http://www.camera.it/parlam/leggi/11214l.htm>.15 ago. 2017.

ITÁLIA. Legge 17 luglio 2015, n. 109. Parlamento Italiano. Disponível em:


<http://www.camera.it/parlam/leggi/11214l.htm>. 5 jan. 2018.

MEXICO. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos (1917). Cámara de


Diputados. Disponível em: <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/
htm/1.htm>. Acesso em: 8 abr. 2015.
332

POLÔNIA. The constitution of the republic of poland (1997). Sítio do Parlamento da


Polônia (Sejm). Disponível em: http://www.sejm.gov.pl/prawo/konst/angielski/
kon1.htm. Acesso em: 5 jun. 2017.

PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. (1976). Assembleia da


Republica. Disponível em: <http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/
ConstituicaoRepublicaPortu guesa.aspx>. Acesso em: 5 jun. 2015.

PORTUGAL. Lei n.º 4, de 16 de janeiro de 2007. Diário da Republica. Disponível em:


<https://dre.pt/application/file/522716>.
PORTUGAL. Lei n.º 52, de 31 de agosto de 2007. Diário da Republica. Disponível em:
<https://dre.pt/application/file/641059>. Acesso em: 5 abr. 2015.
PORTUGAL. Lei n.º 11, de 20 de fereveiro de 2008. Diário da Republica. Disponível
em: <https://dre.pt/application/file/247813>. Acesso em: 6 abr. 2015.
PORTUGAL. Lei nº 55-A, de 31 de dezembro de 2010. Diário da República. Disponível
em: <https://dre.pt/application/dir/pdf1s /2010/12/25301/0000200322.pdf>.
PORTUGAL. Lei nº 66-B, de 31 de dezembro 2012. Diário da República. Disponível
em:< https://dre.pt/application/dir/pdf1s /2012/12/25201/0004200240.pdf>.
PORTUGAL. Decreto da Assembleia n. 187/12. Sítio da Assembleia da República.
Disponível em: <http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/
DiplomasAprovados.aspx>.
PORTUGAL. Decreto da Assembleia n. 262/12. Sítio da Assembleia da República.
Disponível em: <http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/
DetalheDiplomaAprovado.aspx?BID=18197>.
PORTUGAL. Lei n.º 114, de 29 de dezembro de 2017. Sítio da Assembleia da
República. Disponível em: < https://www.parlamento.pt/OrcamentoEstado/
Paginas/oe.aspx>. Acesso em: 25 mar. 2018.
UNIÃO EUROPEIA. Tratado da União Europeia – 1992 a 2009 (Versão
Consolidada). Sítio da União Europeia. Disponível em:
<http://europa.eu/pol/pdf/consolidated-treaties_pt.pdf>. Acesso em: 5 mar. 2017.

UNIÃO EUROPEIA. Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa – 2004.
Sítio da União Europeia. Disponível em: <http://europa.eu/eu-law/decision-
making/treaties/pdf/treatyestablishing_a_constitution_for_europe/treaty_establis
hing_a_constitution_for_europe_pt.pdf>. Acesso em: 5 mar. 2017.

UNIÃO EUROPEIA. Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia – 2012. Sítio


da União Europeia. Disponível em: <<http://eur-lex.europa.eu/legal-
content/PT/TXT/PDF/ ?uri=CELEX :12012P/ TXT&from=PT>>. Acesso em: 5 mar.
2017.

OUTROS DOCUMENTOS CITADOS

BRASIL. Anais da Assembleia Nacional Constituinte (1988). Atas de Comissões.


Disponível em: <http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/constituinte/
sistema.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2015.
333

ITÁLIA. Circolare n. 186. Direzione Centrale Pensioni. Istituto Nazionale della


Previdenza Sociale. Disponível em: <https://www.inps.it/bussola/VisualizzaDoc.
aspx?sVirtualURL=%2fCircolari%2fCircolare%20numero%20186%20del%2021-
12-2017.htm.> Acesso em: 5 jan. 2018.

Você também pode gostar