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Cachoeira – Bahia – Brasil, 21, 22 e 23 nov/2018

www3.ufrb.edu.br/eventos/4congressoculturas

AFROTONIZAR: JOVENS NEGROS COMO MODELO CULTURAL


AZEVEDO, Naymare1
Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade
Salvador/Bahia
naymaresazevedo@gmail.com

Resumo: Este trabalho se propõe a discutir a relevância da descolonização de narrativas por


jovens negros. Assim como também compreender a importância da cultura para o
desenvolvimento e na construção de um imaginário social descolonizado.

Palavras chaves: Cultura; Descolonização; Narrativas; Jovens Negros.

O projeto colonial causou traumas físicos, psicológicos e afetivos à população negra.


Sua cultura sofreu um severo processo de colonização e de silenciamento de suas identidades
e manifestações. Em decorrência desse processo histórico e a eminente presença do racismo
na hierarquização das relações de poderes simbólico entre os grupos, constatamos um massivo
processo de reprodução de violências supremacistas branca e eurocêntrica. A palavra “negro”,
entendida como referência a seres humanos com fenótipo de cor de pele escura, utilizada
pelos colonizadores para se referir aos escravos, carrega o estigma de que ser negro, ou se
auto declarar de cor escura, significa inferioridade e submissão, diante do ponto de vista de
colonização do país. (MUNANGA, 2003)
Etimologicamente, o conceito de raça deriva do italiano razza e que tem origem do
latim ratio que significa sorte, categoria, espécie. Porém, epistemologicamente, o seu campo
semântico sofre diversas variações, mas, em conclusão, em relação à raça e ao racismo:

Com efeito, com base nas relações entre “raça” e “racismo”, o racismo seria
teoricamente uma ideologia essencialista que postula a divisão da
humanidade em grandes grupos chamados raças contrastadas que têm
características físicas hereditárias comuns, sendo estas últimas suportes das
características psicológicas, morais, intelectuais e estéticas e se situam numa
escala de valores desiguais. Visto deste ponto de vista, o racismo é uma
crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação

1 Mestranda no Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e integrante do Grupo de Pesquisa


OBEC - Observatório de Economia Criativa e Etnomídia (IHAC/UFBA). Bacharel em Gestão de Políticas
Públicas (CCHLA/UFRN). Dedica-se a pesquisas nas áreas: estudos decolonias, cultura, identidade, políticas
públicas, desenvolvimento, feminismo negro e juventude.
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intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural.


O racista cria a raça no sentido sociológico, ou seja, a raça no imaginário do
racista não é exclusivamente um grupo definido pelos traços físicos. A raça
na cabeça dele é um grupo social com traços culturais, lingüísticos,
religiosos, etc. que ele considera naturalmente inferiores ao grupo a qual ele
pertence. (MUNANGA, p.5, 2003)

No raciocínio lógico colonizador e capitalista, a diferenciação cultural e social se torna


essencial para a manutenção de privilégio e acumulação de capital. O Brasil é produto do
projeto colonial, vivemos em um dos países com uma das maiores desigualdades sociais do
mundo. Convivemos com as mazelas coloniais: massacre da cultura indígena, escravização de
negros africanos, miscigenação violenta e imposição da supremacia cultural eurocêntrica, que
trata tudo que não é europeu como exótico. Existem traumas profundos no processo de
identificação do brasileiro com a sua cultura e identidade. A memória do afrodescendente
brasileiro tem sido sistematicamente agredida há mais de 500 anos. A marginalização do povo
negro e das manifestações culturais de matrizes africanas contribui para o silenciamento da
comunidade negra perante a afirmação e sentimento de pertencimento de sua raça e
identidade.
Segundo o Censo 2010, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística),
7,6% da população brasileira se autodeclara preta e 43,1% parda. Totalizando 50,7% da
população negra (pretos e pardos). Em pesquisa realizada pelo IPEA (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada) e SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial),
revela-se que, em 2012, apenas 4% da população negra recebia mais de três salários mínimos,
que apenas 9,6% de negros tinham acesso à educação superior no Brasil e que 21,5% estão
empregados sem carteira assinada. Nossos jovens crescem com poucas perspectivas,
marginalizados por suas peles escuras e submetidos às condições de subempregos. É de
extrema urgência o enfrentamento do racismo. Segundo a Anistia Internacional, em 2012,
56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil. Destas, 30.000 são jovens entre 15 e 29 anos e,
desse total, 77% são negros. A maioria dos homicídios é praticada por armas de fogo e menos
de 8% dos casos chegam a ser julgados. Historicamente, a população negra, descendente dos
povos oriundos do continente africano, sofreu os efeitos da diáspora em sua cultura em
virtude do projeto colonial. O projeto inacabável de escravidão e genocídio da população
negra resulta em uma grave desigualdade nos indicadores sociais, econômicos e políticos da
população negra.
A ideia de nós, negros, descolonizarmos nossas mentes e corpos, libertando-os dos
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traumas psicológicos e físicos que a reprodução do racismo causou, e continua causando, nas
famílias negras é urgente. Esse processo surge da possibilidade criativa de reconstruímos
nossas histórias e a afetividade entre o povo negro, dando margem à criação de novas
narrativas à luz de perceptividades negras, efetivando por meio da circulação e da ampliação
da rede de contatos e trocas que emerge do encontro de personagens que experimentam o
mesmo universo sob ângulos de vivências diferentes.

Indeed African and African Diasporic people have been forced to deal not
only whith individual trauma, but also with the collective and historical
trauma of colonialism, revived and re-actualized by racism. In such an
environment, exchanging greetings becomes a short moment – the time for a
smile – where one fabricates a setting in winch to overcome loss and racial
isolation, and at the same time develop a sense of beloing. (KILOMBA,
2015, p.130)

A virada do século XX trouxe novas perspectivas de processos de identificação, trouxe


uma nova geração de jovens e adultos que compartilham das experiências deste novo formato
social buscam por espaços onde o respeito às suas subjetividades individuais de classe, raça e
gênero sejam representadas. Para Stuart Hall (2009), seja nas relações pessoais ou na forma
de consumação, as pessoas estão passando por processos de identificação consigo mesmas,
uma vez que existe uma inquietude, por parte dos indivíduos, em busca de suas identidades
submersas nas condições pós-modernas. Para o economista indiano Amartya Sen (2009),
estamos vivendo em um mundo de privações e opressões extraordinárias, onde os antigos
problemas convivem com os novos. Para ele, a expansão da liberdade é o principal fim e o
principal meio para o desenvolvimento. As condições efetivas para as realizações individuais
e coletivas são determinadas por oportunidades econômicas, liberdades políticas básicas e
acesso a políticas públicas de bem-estar social.
A cultura exerce um protagonismo importante na estrutura organizacional da
sociedade moderna tardia, seja no desenvolvimento e/ou na distribuição de capitais globais,
assim como, também, para o meio ambiente global. Para Frantz Fanon, todo problema do
homem é concebido pelo tempo em que ele vive. Atualmente, estamos vivendo uma geração
em que a mídia é um dos principais meios de circulação de ideias e representação. Quando
Stuart Hall (2011) traz a noção da identidade em processo, ou seja, uma constante
reatualização da identidade, pode-se observar a importância da representatividade e do
sentimento de pertencimento a essas identificações. Hall (1997) afirma que as revoluções
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culturais globais causam grande impacto na operacionalização do modo de vida das pessoas e,
também, na forma como os indivíduos se comportam, consomem e agem diante os seus
contextos locais. A cultura se torna, não apenas, pertencente ao indivíduo como, também,
agente provedor de constantes atualizações no capital cultural desse indivíduo, uma vez que
cada processo de experiência cultural pode vir a ser transformador para o capital global dele.
A cultura está presente na subjetividade cotidiana, ela se apresenta de forma imaterial
em cada dimensão de nossas vidas. As dinâmicas sociais implicam na significação de alguma
coisa e, consequentemente, a cultura está condicionada à existência dessas práticas sociais, e
que em toda prática social há uma dimensão cultural. Nesse quesito, é preocupante pensarmos
que, nos dias de hoje, é a mídia que exerce esse papel de comunicador social e que essas
informações são distribuídas e manipuladas pelas grandes corporações midiáticas, fazendo
com que essa notícia venha a ser tendenciosa e favorecedora de apenas uma perspectiva de
verdade ou de uma realidade absoluta. A história já nos alertou do risco de se ter uma
narrativa contada de uma única forma. Foi assim que a hegemonia eurocêntrica e ocidental se
estabeleceu em todas as dimensões culturais não ocidentais; apagando a memória cultural dos
povos e impondo os seus contextos narrativos através da epistemologia para propagar suas
concepções de realidade:

[...] Não se pode reconstituir um sistema de pensamento a partir de um


conjunto definido de discursos. Mas esse conjunto é tratado de tal maneira
que se tenta encontrar, além dos próprios enunciados, a intenção do sujeito
falante, sua atividade consciente, o que ele quis dizer, ou ainda o jogo
inconsciente que emergiu involuntariamente do que disse ou da quase
imperceptível fratura de suas palavras manifestas; de qualquer forma, trata-
se de reconstituir ura outro discurso, de descobrir a palavra muda,
murmurante, inesgotável, que anima do interior a voz que escutamos, de
restabelecer o texto miúdo e invisível que percorre o interstício das linhas
escritas e, às vezes, as desarruma. (FOUCAULT, 2008, p. 31)

Ou seja, existe uma grande disputa na luta de poderes e essa luta é cada vez mais
simbólica, discursiva e cultural, pois, em vez de tomar uma forma material e palpável, ela se
infiltra, sutil e diariamente, na consumação de informação da sociedade. O funcionamento
econômico depende da formação discursiva da sociedade. Dessa forma, a cultura exerce um
papel fundamental na dinâmica econômica. O monopólio midiático depende desse controle
discursivo para sua manutenção e estabelecimento, gerando, assim, uma insalubre
dependência da alienação do discurso ao seu favor, impondo os modelos culturais que
enaltecem as práticas capitalistas. Pensar a centralidade da cultura na vida dos indivíduos é
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constatar a dimensão que a cultura toma nas mais diversas formas de influenciar os modelos
de vida, assim como compreender a cultura como meio, não apenas como fim, nas agendas
governamentais e como centro nas discussões políticas e como estratégia para promoção dos
indicadores sociais e econômico. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que as políticas culturais
exercem uma função determinante para as agendas desenvolvimentistas e, ainda mais, sua
regulação, também, viria a ser uma competência governamental. Para dessa forma, sim,
assegurar, de maneira comprometida, a circulação das diferentes ideias e diversas
representatividades, compreendendo as múltiplas subjetividades e a importância da cultura
para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática e isentas de privilégios
sociais. Portanto, é preciso haver uma construção de um elo forte entre a cultura, o Estado, a
política e a economia. Precisa-se que as ações das respectivas esferas atuem em comum
acordo para que, assim, exista um governo comprometido com o seu povo e com a
complexidade das diferentes e diversas culturas.
A ideia de cultura, como algo que precisa ser colonizado e sofrer constante domínio
regulatório, indica o medo da supremacia branca da existência de uma sociedade em que os
indivíduos, identificados com sua cultura, sejam livres para escolher as suas representações,
seja de etnia, gênero ou sexualidade. Para Eagleton (2003), a cultura é uma espécie de
pedagogia ética que nos torna aptos para cidadania política através da libertação do “eu ideal”
ou coletivo sepultado em cada um de nós; um eu que encontra a sua suprema representação no
domínio universal do Estado. Ele, ainda, acrescenta que aqueles que proclamam a necessidade
de um período de incubação ética, para preparar homens e mulheres para a cidadania política,
incluem os que negam aos povos coloniais o direito à autonomia até serem suficientemente
civilizados. (EAGLETON,2003, p. 18)

A cultura significa um tipo de autodivisão bem como de autocura através do


qual os nossos eu fragmentados e sublunares não são abolidos mas
aperfeiçoados a partir de dentro por uma mais ideal espécie de humanidade.
A fenda entre o Estado e a sociedade civil - entre o modo como o cidadão
burguês gostaria de representar-se e o que ele na realidade é - é preservada
mas também desgastada. A cultura é uma forma de subjetividade universal
em laboração dentro de cada um de nós, tal como o Estado é a presença do
universal no domínio individual da social. (EAGLETON, 2003, p. 19)

A cultura exerce movimentos de dentro para fora, que emerge do indivíduo e


reverbera para o coletivo. As revoluções culturais são responsáveis por grandes mudanças no
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decorrer da história e o protagonismo da juventude tem um grande destaque nas


reivindicações sociais e políticas. O jovem representa uma força vital, renovadora e rebelde.
A energia jovem não se encaixa em padrões: a juventude dá margem ao novo, ao moderno e
ao inovador. Nessa força jovem, residem as possibilidades de resistência e renovação, a
capacidade de não se deter ao exílio de modelos conservadores é o espelho da coragem
necessária para romper as opressões. A juventude, em seu dom rebelde, ameaça a segurança
do adulto e o seu status quo ao não se encaixar nos padrões propostos por uma sociedade
representada por identificações conservadoras e limitadas. Ela não é apenas vigiada e
desviante como, também, inovadora, criativa e transformadora. A cada nova época,
sociedades constroem sua juventude e lança seus novos desafios, no paradoxo do novo
destituindo o velho e abrindo caminhos para imaginários contemporâneos de modelos sociais.
A hierarquização das fases da vida representa essa necessidade de controle do velho
pelo novo. Peralva (1997) aponta que a instrumentalização desse controle vem a ser uma ação
educativa, a cristalização dessas fases da vida revela a particularidade do vínculo social pelo
qual a juventude aparece como configuração da experiência moderna. Jovem é aquilo que se
integra mal, que resiste à ação socializadora, que desvia em relação a um certo padrão
normativo. A criança e o jovem, em fase avançada, tornam-se objetos de atenção particular e
alvos de um projeto educativo individualizado para essa integração social que, de certo modo,
qualifica o lugar que ela virá, posteriormente, ocupar na vida adulta. Para Foucault (1975), a
educação e a ordem são faces complementares do dispositivo intrínseco à racionalidade
moderna. Uma vez que o Estado toma para si, de forma voluntária e sistemática, múltiplas
dimensões da proteção do indivíduo, entre elas e sobretudo a educação, a escola se torna
agente desse indivíduo que necessita de formação. Consequentemente, faz com que o Estado
regule o modelo de construção desta juventude, impondo seus formatos pedagógicos éticos,
morais e cívicos. Durkheim (apud PERALVA, 1997, p. 18) dirá que a educação é a ação
exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que ainda não se encontram preparadas
para vida social.
Enquanto o adulto vive, ainda, o impacto de um modelo de sociedade que vem a se
decompor com a chegada dos futuros presentes, o jovem se atualiza e se insere na
contemporaneidade e nas novas formas de viver e se adequar ao futuro. A educação realiza
um papel determinante nas construções dessas juventudes, suas experiências de vida e sua
forma de enxergar o mundo, tanto na perspectiva íntima do lar quanto na atuação social
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cívica. As escolas, como agente formador, proporcionarão, a essa fase da vida, novas
perspectivas de leitura da vida, de letramento e de capacidade de interpretação, ampliando as
possibilidades de representação de suas subjetividades e identidades. Os desafios e as
repressões que as juventudes enfrentam são altamente repressivos, uma vez que a força
conservadora insiste em estabelecer seus padrões normativos baseados em um sistema
representativo ainda colonizado por uma cultura eurocêntrica heteronormativa. A cultura,
mais uma vez, vem exercer o seu papel de agente transformadora do ser indivíduo, agindo
como ferramenta de extrema importância nessa fase da vida. Se o jovem é a força marginal
que contrapõe o novo sobre o velho, a cultura é o instrumento que essa juventude utilizará
para a quebra dos antigos paradigmas que insistem em sugerir o que se deve ou precisa fazer.
O acesso às culturas possibilitará o contato do jovem com a arte e suas diversas linguagens.
Dessa forma, constrói-se caminhos para novas representações desse indivíduo no sistema que
possibilita diálogos com velhos e novos problemas.
Por outro lado, se a escola é quem exerce essa função de formadora do indivíduo nessa
fase da vida e se ela vem a ser uma instituição regulada pelo Estado ou, até mesmo, pela
iniciativa privada, ela inclinará para os velhos modelos estabelecidos, que instiga a prática de
conservação de pensamento tradicionalista. Então, mais uma vez, é preciso encarar novas
dinâmicas de rupturas. Faz-se necessário que exista, dessa potencial juventude, a coragem
questionadora de, no emaranhado de alienações, encontrar suas verdades individuais. Em um
mundo onde, a todo momento, são vendidas representações induzidas para manutenção
capitalista, o desafio é mergulhar dentro de si e resistir a sua integridade subjetiva.
Ainda assim, mesmo que seja possível esse encontro com as verdades individuais
subjetivas, a manutenção de privilégios permanecerá estabelecida pela mobilidade de acesso
da juventude aos bens de consumo que agreguem valor à sua consumação cultural. A
estratificação social, que subloca os indivíduos por suas acumulações capitais, nunca
concederá as mesmas oportunidades para todos os grupos sociais. Os que pode ter acesso a
uma educação de qualidade, cursos de idiomas e viagens, não terão o mesmo processo de
formação daqueles que estudaram em escolas com sistema sucateado, que moram em
periferias e que sofrem com as violências sociais reproduzidas pelo sistema colonial. Se a
formação se inicia na escola, é nela que se entrava os primeiros desafios a serem subvertidos
pelas juventudes, visto que os privilégios são distribuídos por cor e dinheiro no bolso e a
exclusão começa por apenas não ser. No modelos social que vivemos, é por não ser branco e
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rico que o indivíduo não irá ter. Sim, a realidade é que os impasses nessa fase da vida
aumentam e as tentações que fazem com que a juventude privada de direitos básicos desista
acabam se tornando guerras diárias, demandando, dos jovens, estratégias de sobrevivência.
Em meio a tantas dificuldades que ser jovem, e, principalmente, ser jovem no Brasil,
implica, continuo insistindo que a cultura que existe em cada um de nós, e que nasce junto
com o lugar que nos originou, não pode ser colonizada. A força da cultura subjetiva dos
indivíduos pode vir a ser reverberação necessária para a transformação revolucionária.
Mesmo com as estatísticas que insistem em matar a juventude pobre, negra e periférica, a
potência que sua cultura e identidade carrega é mais expoente do que o silenciamento causado
pelas opressões. A ressignificação da história de jovens negros surge das brechas oportunas de
furar as bolhas de privilégios, ou melhor, surge pelos entraves diários da disputa de poderes
por sobrevivência. Enquanto os letramentos hegemônicos são escolarizados, reconhecidos
como a única forma legítima de escrita, índice de inteligência e prestígio, os letramentos
vernaculares estão relacionados com as escritas incipientes e ordinárias e, além disso, são
formas de letramentos, frequentemente, ignoradas e tidas como irrelevantes pelas instituições
dominantes, principalmente, pelas escolas (STREET, 2014 apud FACINA, 2018, p. 685).
Compreendemos, então, que a escola funciona como um espaço importante no
processo formativo do indivíduo jovem e oferece práticas fundamentais para o exercício
democrático da cidadania, como ler e escrever, mas que, infelizmente, é limitado e engessado.
Determina práticas hegemônicas do que é tido, tradicionalmente, hegemônico e que reproduz
exclusões perigosas nessa fase da vida, em que as experiências carregam um valor simbólico
importante. Por outro lado, as experiências vividas no interior do espaço escolar contribuem,
de forma significativa, para as experiências fora desses espaços, pois o conhecimento é poder
e, assim, vivendo em uma sociedade em que há constantes disputas por poderes, a narrativa
discursiva é uma estratégia de sobrevivência dentro do sistema colonial. Facina (2018) afirma
que a vida não pode ser vista como algo independente de sua adequação em histórias,
tampouco as histórias podem ser compreendidas, independentemente, de sua conexão com a
vida e a forma pela qual é vivida. Quando o sujeito toma suas experiências individuais para
reconstruir narrativas a partir do seu local de fala, ele está performando o seu discurso em
uma verdade que lhe cabe subjetividade e representação. Trabalhar com narrativas é, então,
situar-se politicamente, decidir fazer escolhas entre performances narrativas possíveis. Em um
universo imerso a processos do que o Hall (1997) chama de McDonaldização da vida, é
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preciso estar atento às emboscadas capitalistas. As mídias nos impõem padrões e segmentos
que não representam verdadeiras construções identitárias. Descolonizar narrativas se torna um
processo emergente na construção de representatividades plurais e livre de segmentações
estereotipadas. Para além de padrões de representatividade estética, a descolonização de
narrativas se torna um processo de reconstrução de histórias com perspectivas da diversidade.
Por muito tempo, o homem branco foi autor e proprietário de narrativas que não os
competiam, os movimentos sociais e políticos, junto às políticas públicas de acesso e inclusão
social, permitiram que negros, indígenas e outros grupos oprimidos pelo sistema colonial,
retomassem a propriedade de suas histórias.
A episteme eurocêntrica insiste na construção de um imaginário pós-colonial, mas
excluem a massiva intervenção capitalista em práticas de reprodução colonialista. A ferida
colonial ainda dói. Como podemos viver em um mundo apagando os traumas e os problemas
estruturais causado por um processo tão invasivo quanto o colonialismo? Como podemos
reconstruir a história de famílias assassinadas, escravizadas e violentadas pelos
colonizadores? Como sobreviver em uma estrutura social desigual, racista e genocida? Como
resgatar a afetividade e afirmação de identidades negras em um mundo idealizado para corpos
brancos? Que forma tomam os fantasmas coloniais e como interagem com a feitura do mundo
nas ex-colônias? Como a colonialidade está presente na relação das corporalidades marcadas
pela geopolítica da racialidade? Que forças esses fantasmas movem? Que ficções
materializam? São fantasmas encarnados, inscritos na latência incontornável da ferida
colonial, como uma tensão muscular ou uma pontada sentida no osso, nas ossaduras dos
corpos e da terra ex-colonial. Pensar em uma estrutura pós-colonial é eliminar e silenciar toda
uma história de massacre que se reproduz no cotidiano de vidas negras através do racismo.

Espaços autoproclamados pós-coloniais, ou mesmo descoloniais e


anticoloniais, não estão isentos de reengendrar a colonialidade como
sistemática. O modo como esses espaços se articulam, quem os coordena,
quem decide por eles, que relações de força, o que escrevem, como, com que
suportes, para que circuito: todos esses modos de trafegar em meio às ruínas
das relações coloniais (e produzir desde aí) mobilizam – quase como regra –
uma dimensão contraditória inegociável, fruto de uma ferida racial histórica
marcada tenazmente no corpo social, embora ainda muito mal elaborada do
ponto de vista das afetividades e emoções coletivas. (MOMBAÇA, 2017)
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Essa demarcação do tempo espaço do pós-colonialismo, que rompe com a noção do


que já existiu, como, simplesmente, fosse uma página arrancada, é mais uma estratégia
eurocêntrica e, principalmente, acadêmica, de se isentar de qualquer resquício de culpa, ainda
mais propor um raciocínio iluminista, em alusão ao indivíduo moderno, progressista e
bondoso. Stuart Hall (2003) afirma que o termo pós-colonial não se restringe a determinar
uma sociedade ou época. Ele relê a colonização como parte de um processo global das
grandes narrativas imperiais do passado, centradas na nação. O colonial não está morto, já que
sobrevive sobre seus efeitos secundários. Em contrapartida, não podemos mapear exatamente
suas políticas, nem considerá-las no momento pós-colonial. A complexidade da reencenação
do colonialismo, em práticas demarcada pelo pós, acontecem em vários locais que ainda
sofrem consequências de suas mazelas. Nesse tempo versus espaço, não está explícito as
lacunas e, muito menos, os problemas específicos de cada território desse pós-colonialismo.
A problemática dessa discussão toma corpus mais denso quando conseguimos traçar
um panorama quantitativo e qualitativo dos impactos do colonialismo nos territórios
saqueados. O que restou após o colonial? A estrutura, posta em xeque, mostra-nos uma
estrutura extremamente problemática e com graves distorções. Como reparar a memória dos
corpos que foram arrancados dos seus territórios e traficados nos mais de 36 mil navios
negreiros? E de suas famílias e dos aqui, então, descendentes? Acredito que a ferida colonial
ainda dói e que existam mais questionamentos do que respostas. Tais questionamentos,
inclusive, não podem deixar de ser levantados e, muito menos, descansar, enquanto corpos
negros não forem, totalmente, livres. Não podemos deixar de interrogar a estrutura
eurocêntrica patriarcal e seus privilégios, enquanto não começarem a dividir conosco, ou
melhor, nos devolver o que nos é de direito. Não, enquanto formos estatísticas e vítima de
ações institucionalizadas de extermínio. Não, enquanto nossos corpos sofrem opressões
diárias de racismo. Não, enquanto nossa juventude está estagnada, marginalizada e
assassinada. Existem problemas no conceito de pós-colonial, porque a ferida colonial ainda
dói. Mesmo quando ousamos pensar na perspectiva decolonial, ainda enfrentemos os tais
fantasmas coloniais. Apesar das tentativas de descolonizarmos as narrativas históricas, em um
momento dependemos dos meios – estrutura financeira, política, social –, em outro,
conseguem, mais uma vez, silenciar-nos. A construção de narrativas negras ainda é um
caminho a ser bem estabelecido. Enquanto os espaços de poderes e decisão forem ocupadas
por uma elite heterogênea e branca, precisaremos construir estratégias de sobrevivência. Para
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Grada Kilomba, a importância de contarmos nossas histórias, através da apropriação da


narrativa e da colocação das experiências pessoais do sujeito, é importante para afirmação e
ocupação desses espaços. Quando propomos uma narrativa em primeira pessoa, sempre
somos interpretados como pessoal demais ou não científico. Como se nossas vivências e
experiências sociais, enquanto pessoas negras, não merecessem espaços acadêmicos por
serem interpeladas pelo próprio sujeito, mas, quando um sujeito branco toma um corpo negro
como objeto de estudo, há legitimidade. A urgência de nos colocarmos em primeira pessoa
em espaços onde os poderes são determinados pelos saberes é de não permitirmos que
continuem a colonizar nossas narrativas e se apropriar discursivamente da dignidade que nos
resta, como a nossa sabedoria ancestral, a nossa cultura subjetiva e individual, o pedaço de
África que trouxemos dentro de nós, fio que nos conecta e nos resgata do presente e nos traz a
memória de um passado desconhecido.

Deve-se ter percebido que a situação que estudei não é clássica. A


objetividade científica me foi proibida, pois o alienado, o neurótico, era meu
irmão, era minha irmã, era meu pai. Tentei constantemente revelar ao negro
que, de certo modo, ele aceita ser enquadrado; submete-se ao branco, que é,
ao mesmo tempo, mistificador e mistificado. O negro, em determinados
momentos, fica enclausurado no próprio corpo. Ora, “para um ser que
adquiriu a consciência de si e de seu corpo, que chegou à dialética do sujeito
e do objeto, o corpo não é mais a causa da estrutura da consciência, tornou-
se objeto da consciência.” (FANON, 2008, p. 186)

Diante disso, precisamos entender como corpos negros em diáspora estão se movendo
em busca de liberdade, reconectando-se pela possibilidade de resistência para criar Áfricas.
Esse entendimento pode ser construído na nossa partilha da fala através da arte, da
comunicação e da política, mas, também, por meio da ocupação de espaços e da utilização da
energia das resistências voltadas à produção de estratégias de sobrevivência e ao combate do
genocídio da população negra. Esse movimento implica, também, uma preocupação relativa a
ações diretas para o crescimento dos indicadores sociais e econômicos de negros e na
afirmação da cultura e da identidade. Necessita-se que haja mobilização para o planejamento
de estratégias para criação de novos dados e perspectivas de desenvolvimento. Tais estratégias
surgem do acesso aos meios de inclusão social, como a educação, a criatividade e o
empreendimento de possíveis ideias inovadoras na construção de espaços de
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representatividade política, econômica e cultural. Sobre esse desempenho e participação


política Angela Davis discorre:

O ofício do ativismo político envolve inevitavelmente certa tensão entre a


exigência de que sejam tomadas posições em relação aos problemas atuais à
medida que eles surgem e o desejo de que sua contribuição, de alguma
forma, sobreviva à ação do tempo. Este é um esforço, em retrospecto,
alguma continuidade a uma vida que por quase duas décadas têm sido
inspirada pelas lutas locais e globais em busca de uma mudança social e
progressista. (DAVIS, 2017)

Propondo um universo novo para alcançar lugares ainda não despertados, é no


exercício de expansão das mentes para pensar em como criar caminhos e políticas públicas
que promovam os indicadores sociais da população negra que avançamos. Nossos jovens
crescem discriminados pelos tons escuros de suas peles. Por conta disso, torna-se um dever da
comunidade negra lutar para que os potenciais criativos de nossos jovens não sejam
exterminados. É preciso que se pense em rede, em como se conectar ao próximo e expandir as
redes criativas que produzem reflexões sobre a cultura negra em um contexto de diáspora.
Igualmente, faz-se necessário que tais redes busquem proporcionar a afirmação dessa cultura,
costurando os fragmentos soltos e devolvendo o sentimento de pertencimento de coletivo às
suas origens africanas. A juventude negra exerce um papel importante nessa luta. Os acessos
permitidos, através da luta do movimento negro e do feminismo negro, possibilitaram o
avanço de algumas pautas da agenda política da comunidade. Jovens negros que, hoje,
possuem acesso ao letramento, ao ensino superior ou à formação artística, têm o
comprometimento intelectual de multiplicar esses acessos e ocupar os espaços de
representatividade para ampliar as redes de resistência. É importante pensar na construção de
um sujeito crítico e consciente de sua localização social para construção de uma sociedade,
verdadeiramente, livre e democrática, onde a alienação colonial, reproduzida através da mídia
e nas reproduções de consumo capitalista, seja questionada e combatida pela capacidade
intelectual de interpretar as verdades subjetivas que permitem que homens e mulheres
exerçam os seus direitos de existir, mas, principalmente, de resistir.
Assim como hoje persisto em meu trabalho e resisto na luta de construir uma produção
intelectual comprometida com uma sociedade mais ética e politicamente coerente com as
necessidades individuais e coletivas, meus mais velhos, um dia, fizeram o mesmo por mim. A
compreensão de que a descolonização de narrativas é importante não apenas para o presente
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como, também, para o futuro das próximas gerações, objetivando que experiências reais sejam
compartilhadas. Dessa forma, a resistência de nossos ancestrais serão validadas por nossas
ações, enfrentando o que existe de errado no mundo.

Um futuro de melhor qualidade para a população afro-brasileira só poderá


ocorrer pelo esforço enérgico de organização e mobilização coletiva, tanto
da população negra como das suas inteligências e capacidades escolarizadas,
para a enorme batalha no fronte da criação teórico-científica.
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