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REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

volume 21
janeiro/junho - 2010

ISSN: 1517-7599
Editorial
Temos o prazer de apresentar o volume 21 de Per Musi - Revista Acadêmica de Música , cuja maioria dos trabalhos exi-
be facetas interdisciplinares, pouco estudadas, da música com outras artes ou da música com outras áreas. Com este nú-
mero começamos a transição, até 2010, para atender às novas normas ortográficas da língua portuguesa. Assim, o leitor
deve estar “tranquilo” (e não “tranqüilo”) para ler as “ideias” (e não “idéias”), por exemplo, do último artigo deste volume.
Rosana Costa Ramalho de Castro se debruça sobre o artista plástico e músico Paul Klee, abordando os princípios de sua
Teoria da Forma, tendo como eixo a interlocução entre elementos das artes plásticas e da música: linha e melodia, mó-
dulos e ritmos, sub-divisões da tela e os compassos, a paleta de cores e as modulações, tridimensionalidade e polifonia,
texturas e tonalidades.
Clayton Vetromilla revisita a participação de Guerra-Peixe como compositor da trilha sonora do filme O diabo mora no
sangue (1967) do cineasta-ator Cecil Albery Thiré e estabelece relações estruturais entre esta música e o Prelúdio nº 2
para violão, também de Guerra-Peixe e composto três anos depois.
Daniel Bento, com base em Dahlhaus, analisa as sete últimas obras para piano de Franz Liszt e revela a importância
da sexta ascendente como intervalo unificador no seu processo composicional, mostrando também o emparelhamento
harmônico de alguns destes estudos.
Nahim Marun aborda a última fase composicional de Gabriel Fauré, a partir do seu Quinteto para piano e cordas Op.115,
obra-prima da música de câmara, em que o compositor condensa as influências dos períodos anteriores e constrói um
estilo muito particular quanto ao tratamento da tonalidade e da modalidade, do contraponto e da harmonia, da melodia
e do acompanhamento.
Fundamentados na fonoaudiologia e na física acústica, Cristina de Souza Gusmão, Maria Emília Oliveira Maia e Paulo
Henrique Campos discorrem sobre as funções e os mecanismos da produção vocal, a localização dos formantes e dos
ajustes anatômicos e musculares do cantor.
Germano Gastal Mayer e Any Raquel Carvalho analisam Vastidão, um dos Seis Pequenos Quadros (1981) para piano
de Bruno Kiefer, detectando relações entre intervalos estruturais e a escala octatônica, estabelecendo também relações
intertextuais desta obra de maturidade do compositor gaúcho com outras de suas obras.
No seu terceiro artigo sobre obras de grande desafio técnico-musical para pianistas, Luciane Cardassi expõe suas estratégias
de aprendizagem e performance em Night Fantasies de Elliott Carter. Anteriormente, ela abordou Klavierstück IX de Karlheinz
Stockhausen e Sequenza IV de Luciano Berio em artigos que foram publicados anteriormente em Per Musi , nos vols. 12 e 14.
André Vieira Sonoda nos apresenta um panorama da tecnologia de áudio aplicada à etnomusicologia a partir do final
do século XIX até a era digital, tanto no exterior quanto no Brasil, cobrindo marcos importantes tanto das pesquisas de
campo quanto laboratoriais.
A partir de conceitos neurológicos e musicais da sinestesia e de uma análise de Joie du sang des étoilesI (o quinto dos dez
movimentos da sinfonia Turangalîla de Olivier Messiaen), Guilherme Francisco Furtado Bragança propõe parâmetros
para sistematizar as categorias sinestésicas.
Escavando a história da criação do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Ailton Pereira Morila traça um vivo
retrato de uma sociedade musical brasileira em movimento, refletindo os embates, humor e evolução em torno de um
perfil profissional eclético – com trânsito entre o erudito, o sacro e o popular, o qual se tornaria cada vez mais especialista.
Buscando explicar o sentido afetivo da memória na interpretação musical, Sérgio de Figueiredo Rocha recorre a refe-
renciais da fenomenologia e das neurociências para relatar sua experiência de preparação e performance no grupo de
trombones Trombominas.
A partir de cinco condições elaboradas pelo poeta português Fernando Pessoa para a compreensão dos símbolos e seus
rituais pelo intérprete, de idéias do educador musical inglês Keith Swanwick e do maestro italiano radicado no Brasil
Sérgio Magnani, Maria Inêz Lucas Machado discute a prática e o ensino de música.
Lembramos que todos os conteúdos e capas de Per Musi, desde janeiro de 2000 até julho de 2010 estão disponíveis para
download ou impressão gratuitamente no site de Per Musi Online, no endereço www.musica.ufmg.br/permusi. As versões
impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail mestrado@musica.ufmg.br.

Fausto Borém
Fundador e Editor Científico de Per Musi
PER MUSI - Revista Acadêmica de Música (ISSN 1517-7599) é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade
e o debate são bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião da Comissão Editorial ou do Conselho Consultivo. PER MUSI está indexada nas
bases RILM Abstracts of Music, Literature The Music Index e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).

Fundador e Editor Científico Revisão Geral


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Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte)
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ABM
Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador)
Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte) PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n. 21, janeiro/junho, 2010 -
Vladimir Silva (UFPI, Teresina) Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2010 –

n.: il.; 29,7x21,5 cm.


O Corpo de Pareceristas de Per Musi e seus pareceres são sigilosos Semestral
ISSN: 1517-7599

1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos.


I. Escola de Música da UFMG
Sumário

artigos científicos
O pensamento criativo de Paul Klee:
arte e música na constituição da Teoria da Forma.......................................................................... 7
The creative thinking of Paul Klee: art and music in the formation of the Theory of Form
Rosana Costa Ramalho de Castro

Guerra-Peixe: da trilha sonora do filme O diabo mora no sangue ao


Prelúdio nº 2 para violão..................................................................................................................19
Guerra-Peixe: from the soundtrack of the film O diabo mora no sangue to the Prelude No 2 for classical guitar
Clayton Vetromilla

Coesão discursiva nos Estudos de execução transcendental de Liszt: as últimas sete peças....25
Discourse cohesion in Liszt’s Transcendental studies: the last seven pieces.
Daniel Bento

O modernismo no estilo musical tardio de Gabriel Fauré: aspectos estilísticos e formais


do Primeiro Movimento do Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op.115.........................34
The modernism in the late Gabriel Fauré’s musical language: stylistic and formal features
of the First Movement of the Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op.115
Nahim Marun

O Formante do cantor e os ajustes laríngeos utilizados para realizá-lo:


uma revisão descritiva......................................................................................................................43
The singer’s formant and the laryngeal adjustments used to build it: a descriptive review
Cristina de Souza Gusmão, Maria Emília Oliveira Maia e Paulo Henrique Campos

Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer:


um estudo sobre sua estrutura intervalar, gestos musicais e
possíveis relações com outras composições do autor....................................................................51
Vastidão [Vastness] of Seis Pequenos Quadros [Six Small Pictures] (1981) by Bruno Kiefer:
a study of its intervallic structure, musical gestures and possible relationships with other works by the composer
Germano Gastal Mayer e Any Raquel Carvalho

Night Fantasies de Elliott Carter: estratégias de aprendizagem e performance........................ 60


Elliott Carter’s Night Fantasies: learning and performance strategies
Luciane Cardassi

Tecnologia de áudio na etnomusicologia........................................................................................74


Audio Technology in Ethnomusicology
André Vieira Sonoda

Parâmetros para o estudo da sinestesia na música........................................................................80


Parameters for the study of synaesthesia in music
Guilherme Francisco Furtado Bragança
Antes de começarem as aulas: polêmicas e discussões na criação do
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.........................................................................90
Before lessons begin: controversies and quarrels around the creation of the
Conservatório Dramático e Musical of São Paulo
Ailton Pereira Morila

Memória: uma chave afetiva para o sentido na performance musical


numa perspectiva fenomenológica..................................................................................................97
Memory: An affective key to the meaning of musical performance in a phenomenological perspective
Sérgio de Figueiredo Rocha

Um roteiro atemporal: reflexões sobre a música, os músicos e o ensino musical....................109


A timeless script: thoughts on music, musicians and music teaching
Maria Inêz Lucas Machado

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RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.7-18.

O pensamento criativo de Paul Klee:


arte e música na constituição da
Teoria da Forma
Rosana Costa Ramalho de Castro (UFRJ /UFF, Rio de Janeiro, RJ)
rosana.r.c@terra.com.br

Resumo: Estudo sobre a Teoria da Forma concebida no início do século XX pelo artista plástico Paul Klee e publicado
no livro O Pensamento Criativo (KLEE, 1920). A Teoria da Forma de Paul Klee é uma demonstração do pensamento
artístico que adota pressupostos formais, previamente estabelecidos para resultar na prática da representação artís-
tica. Klee identificou as relações formais entre a música e as artes visuais, apresentando conexões entre a linha
melódica e a linha no desenho; o ritmo e as seqüências de módulos e sub-módulos; os tempos dos compassos e as
divisões da pintura; a métrica da música e a modulação da forma e da cor nas artes visuais. Klee também apresentou
suas experiências com superposição de cores e texturas para representar visualmente a polifonia. A Teoria da Forma
de Paul Klee é um exemplo de estudo que pressupõe modelos formais para a elaboração artística e projetual.
Palavras-chave: Paul Klee, arte e música, Teoria da Forma, análise de imagens, metodologia visual.

The creative thinking of Paul Klee:


art and music in the formation of the Theory of Form

Abstract: Study on the Theory of Form conceived in the early twentieth century by artist Paul Klee and published in the
book The Creative Thinking (KLEE, 1920). The Theory of Form of Paul Klee is a demonstration of an artistic thought that
adopts the previously established formal prerequisites that result in the practice of artistic representation. Klee identified
the formal relationship between music and the visual arts, providing connections between the melodic line and the line
in the drawing, rhythm and sequence of modules and sub-modules, the pulses of the measures and the divisions of the
painting, metrics in music and the modulation of shape and color in the visual arts. Klee also presented his experiences
with overlapping colors and textures to visually represent polyphony. The Theory of Form of Paul Klee is an example of a
study that requires formal models for the artistic and design elaboration.
Keywords: Paul Klee, art and music, Theory of Form, image analysis, visual methodology.

1 - Introdução formal entre a música e as artes visuais. Por isso, desde


Nascido na Suíça em 1879, Paul Klee foi um dos prin- os primeiros anos de sua vida escolar já realizava expe-
cipais teóricos do movimento construtivista nas artes rimentos neste sentido, desenhando os códigos simbóli-
plásticas. Sua obra tornou-se importante para a fun- cos do universo da música nas bordas dos cadernos de
damentação do construtivismo alemão, contribuindo aulas de desenho geométrico. Em 1898, com 19 anos de
para sedimentar o pensamento formalista adotado pela idade, seu aprendizado do desenho era acompanhado de
Bauhaus, na Alemanha da década de 1920. representações da escritura musical. Enquanto aprendia a
desenhar uma elipse, Paul Klee via, na forma geométrica,
Educado numa família de músicos, Klee demonstrava o olhar de Beethoven. A imagem abaixo faz parte dos ca-
desde jovem seu interesse na existência de uma relação dernos de estudos do artista.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010 Recebido em: 21/11/2008 - Aprovado em: 15/11/2009
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RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.7-18.

por um período relativo à 2/3 de sua vida Klee realizou


pesquisas no âmbito da pintura e do desenho e elaboran-
do, em paralelo, as teorias sobre o pensamento criativo.
A tônica de suas pesquisas evidenciava a relação entre a
arte pictórica e a música. Assim, dizia ele a respeito da
temporalidade existente na pintura:
Cada vez mais estou convencido acerca dos paralelismos entre a
música e a arte (...) Sem dúvida ambos são temporais, o que é fácil
de demonstrar... os movimentos expressivos do pincel, a gênese do
efeito. (Wick apud Klee,1990,320)

Mas, apesar de parecer despertar um interesse meramen-


te formal, Klee destinava seus experimentos para forma-
lizar a idéia de que a representação do movimento levava
à dimensão filosófica da existência e do mundo. Ao abor-
dar conceitos de natureza puramente plástica, principal-
mente a questão da estrutura do quadro, revia a lei do
movimento. Ao postular a harmonia plástica, desenvolvia
a noção do equilíbrio entre o ‘princípio fundamental mas-
culino’ e o ‘princípio fundamental feminino’ (KLEE,1973),
entre o espírito e a matéria. Para isso, utilizava a imagem
do pêndulo como meio de designar as forças opostas e
formadoras do universo. E a música era a essência dessas
Ex.1 - Paul Klee, O Olho de Beethoven do caderno escolar
forças, pois utilizava os opostos: som e silêncio pela re-
de geometria analítica do artista. Felix Klee, Berna, 1898,
alização em desenvolvimento, nunca na obra finalizada.
p.154; caneta, tinta e lápis, 23 x 18,5 cm.
Para ele, o processo de formação do universo: do caos à
ordem, deveria ser o principio formador da arte. E assim
Além do reconhecimento como artista e teórico das artes dizia a respeito: [...] não pensar na forma mas na for-
visuais e um dos principais mestres da Bauhaus (DROSTE, mação: interessam mais as forças formadoras do que as
1994), Paul Klee também foi reconhecido como músico, formas finais. (Wick apud Klee,1990)
chegando a fazer parte, como violinista, da Orquestra
Municipal de Berna, além de participar de outros grupos Valorizando a realização, Klee, considerava uma obra
musicais (MARÇAL, 2009). finalizada como o encerramento de um processo con-
ceptivo, culminando nela própria. No entanto, para ele,
Talvez pela experiência nos dois segmentos das artes, Klee haveria um processo temporal até mesmo no ato de pin-
se debruçara nos estudos que despertavam o interesse de tar, vinculando-o ao movimento físico desenvolvido pelo
vários artistas da época. No período compreendido en- artista durante o processo de realização da obra. E não
tre 1850 e 1950, artistas de várias tendências realizavam apenas neste caminho, também na existência dos pres-
experiências similares. Dentre eles, nomeamos alguns im- supostos formadores da obra se encontravam um pre-
portantes pintores e teóricos das artes: Delacroix, Ruskin, existente que também seria dado em contínuo na obra
Gauguin, Seurrat, Delaunay, Kandinsky, Matisse, Tobey, seguinte, ou seja: a partir da elaboração dos conceitos
Mondrian e Pollock. Todos eles procuravam representar pressupostos formais que alinhavavam a concepção da
no quadro, alguns em textos escritos, as possibilidades obra pictórica aos valores formais da música haveria um
de existir inter-relação entre as artes visuais e a música, contínuo movimento para a concepção da obra por vir.
mas nenhum deles dedicou tanto tempo e energia para
elaborar uma teoria extensa que justificasse as experi- Apesar do empenho em resolver as questões formais, da
ências visuais representando os valores do compasso, dos estrutura e composição do quadro, Klee pretendia alcan-
tempos musicais, das divisões dos tempos, das notas em çar mais além, como poderemos compreender por suas
seqüências com diferentes valores de tempo e, na essên- palavras apresentadas a seguir:
cia disso tudo, revelando a manifestação convicta de seu
pensamento filosófico sobre a dualidade, do caos ao cos- Somos artistas, homens práticos de ação, razão pela qual atu-
mos, refletido sobre os opostos: o silêncio necessário ao amos, por natureza, em um âmbito preferencialmente formal.
Sem esquecer que antes do início formal, ou mais simplesmente
som; na forma inexistente sem seu complemento que é o
antes do primeiro traço, existe uma história precedente, e não
fundo; no claro contraposto ao escuro e no movimento apenas o anseio, o prazer do homem em se expressar, não apenas
como modo de interação entre estes opostos. a necessidade exterior de fazê-lo, mas também um estado geral
de sua condição humana cuja direção recebe o nome de visão
de mundo e que surge aqui e acolá com a necessidade interior
Talvez o conhecimento adquirido nas duas linguagens
de manifestar-se. Faço questão de frisar isso para que não se
artísticas tenha sido o estímulo para desenvolver teori- produza o mal entendido de que uma obra se compõe apenas de
camente a idéia filosófica que o acompanhava, porque forma. (Wick apud Klee,1990)

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RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.7-18.

A partir de 1919, já reconhecido no meio artístico, Klee publicada em edição pela Dessais et Tolra em 1973. Ali
fora convidado por Gropius para participar do corpo do- encontramos propostas do autor com desenhos e textos
cente da Bauhaus, instituição de ensino artístico desti- que procuram demonstrar de modo claro e objetivo os ca-
nado a formar profissionais nas áreas da arquitetura e do minhos seguidos para a constituição da Teoria da Forma.
design. A partir de então, Klee passou a lecionar e pintar
em seu atelier localizado nas dependências da Institui- De início, ele apresenta a base filosófica de seu pensamen-
ção, enquanto dava andamento aos seus escritos que to, na idéia de dualismo, não apenas dos opostos, mas,
chegaram a somar mais de 3000 páginas. inclusive, do ponto intermediário: o ponto “gris” como
intermediário entre os opostos: caos e cosmos. Segundo
E, a partir de 1920, sua obra teórica passou a ser publi- refere-se o autor: “Eu inicio pelo caos, é a maneira mais ló-
cada. No Pensamento Criativo, nome as obra teórica onde gica e a mais natural. Eu não me preocupo, pois posso me
Klee apresenta as bases de seu pensamento, encontramos considerar em primeiro lugar como o caos.” (Klee,1973,9).
a elaboração dos pressupostos formais que são relaciona-
dos com a escritura musical, servindo como base do pro- A mesma noção de dualidade percebida no pensamento
cesso criativo construtivista. Estes estudos são legados de Klee é parte dos questionamentos filosóficos desde Pla-
importantes, apesar de representarem um segmento das tão. O cosmos grego resulta da síntese de dois princípios
artes e do design baseados no formalismo que, na atua- opostos: as idéias e a realidade cotidiana. Segundo o filó-
lidade, é motivo de discussões. Ainda se encontram nas sofo Platão, o princípio de movimento e de ordem revela o
escolas artísticas mais tradicionais dedicadas ao ensino conhecimento do mundo que nos cerca: o ser (as idéias)
da arte, do design e da comunicação visual, os mesmos e o não-ser (a realidade cotidiana) (TARNAS, 2008). O du-
elementos pressupostos, apesar de não serem detalhadas alismo dos elementos constitutivos do mundo material
as relações com a escrita musical. Sendo publicada na resulta da ordem e da desordem, do bem e do mal.
época em que Paul Klee lecionava na Bauhaus, sua obra
teórica tornou-se fundamental para a constituição da Te- A imagem de dualidade está presente, também, no pen-
oria da Forma adotada naquela instituição de ensino, daí, samento de outros filósofos e destacamos o de Descartes,
ainda hoje é aceita e adotada na disciplina de Metodolo- filósofo do século XVII que influenciou, e ainda influencia,
gia Visual, fomentando o pensamento formalista. o pensamento ocidental moderno e da atualidade (TAR-
NAS, 2008). No dualismo de Descartes, mente e corpo são
O desenvolvimento do trabalho teórico de Paul Klee deve- substâncias distintas. À mente aproxima-se conceitos de
se ao incentivo de Walter Gropius, fundador e diretor da intelecto, de pensamento, de entendimento e de alma do
Bauhaus, que se interessava pelas pesquisas formais no ser humano, sendo o outro ponto do dualismo referente
campo da linguagem universal das artes. Neste sentido, ao corpo. As duas substâncias: res cogitans ou res extensa
Gropius não só contribuiu para sacramentar o pensamen- (KAMPER, 2008), mente e corpo, são distintas, de natu-
to de Klee, incentivando o entrelaçamento entre o traba- rezas irredutíveis. Na visão de Kamper, o corpo reclama a
lho dos ateliers com as aulas teóricas na Bauhaus como não existência em relação à mente, e reage na atualidade
também de vários professores da instituição, como Kan- desprezando a própria idéia preconcebida de corpo como
dinsky, outro importante artista que teorizava sobre seus extensão da mente.
procedimentos criativos, publicando vários livros tratan-
do deste assunto (KANDINSKY 1987, 1989, 1990), além O valor da imagem dual vai aparecer na filosofia antiga e
de pintar vários quadros que imaginava serem transposi- contemporânea, e também nos estudos da lingüística, da
ções dos efeitos musicais para suas pinturas. Enquanto semiologia, enfim, em vários princípios teóricos, filosófi-
Klee procurava desenvolver um trabalho lógico, constru- cos e em diferentes pensamentos.
tivista, Kandinsky buscava a interação espiritual através
da pintura expressionista. Podemos refletir melhor a respeito do pensamento dual
de Klee ao ler suas próprias palavras:
2 - O pensamento criativo de Paul Klee Nós dispomos, a partir daí, de duas energias: uma ofensiva e ou-
A obra teórica de Klee é, provavelmente, o marco inaugu- tra defensiva que se sucedem ou se mesclam. Nós temos a tare-
ral das artes abstratas do campo geométrico. No entan- fa difícil de estabelecer um equilíbrio vivo entre estes dois pó-
los; significação profunda da interpretação natural a partir da
to, mais do que isto, sua proposta inaugurava uma nova base de referência negro, branco, noção de equilíbrio antitético.
vertente para o ato criativo das artes visuais, pois reve- (KLEE,1973,10)
lava um procedimento mental distinto, iniciando pelos
alicerces filosóficos dos quais emergiam os pressupostos Seguindo sua idéia, o ponto “gris” induz ao movimento
formais teóricos e metodológicos. Ao escrever a respeito, cósmico e, por este ponto, espraiem-se os opostos que
Klee elaborou um arcabouço metodológico consistente e pertencem à natureza dual de todas as coisas. Caos e
singular, como veremos a seguir. cosmos são representações máximas destes opostos e o
ponto denominado ‘gris’ é o lugar onde se encontra a ‘au-
Apresentaremos alguns resultados dos estudos formais sência absoluta’ dos opostos: a tênue membrana de limite
de Klee da obra: La Pensée Creatice. Écrits sur L`Art / 1, dos opostos. Este ponto, segundo Klee, é caracterizado
incluindo textos recolhidos e anotados por Jurg Spiller, pela ausência de contraste.

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RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.7-18.

Em termos objetivos, Klee propõe que seja considerada e informações escritas identificando linhas esquemáticas
a existência do duplo (de um no seu oposto, o outro). de linhas melódicas.
Assim, o alto só tem existência a partir da comparação
com seu oposto: o baixo; o mesmo sentido existencial
ocorrendo entre o frio e o quente; o feminino e o mas-
culino; o claro e o escuro etc.

A natureza dual das coisas é expressa na realidade, que enfo-


ca o conhecimento de um pelo que não está contido no outro.
Sem um não é possível compreendermos o outro. Não pode-
mos compreender, por exemplo, o som sem sua relação com o
silêncio. Também, no âmbito das artes visuais, a percepção da
forma depende da existência do fundo e vice-versa.

A partir destas considerações, podemos entender as ba-


ses filosóficas que emergem no pensamento de Klee e
seguem para além: do dualismo à constituição do objeto Ex.2 – Paul Klee, Cadernos Pedagógicos. Introdução e
metodológico, criativo, dos pressupostos formais que são Tradução de Moholy-Nagly.
comuns no ponto de ligação entre a visualidade e a musi- Plano inicial para Ensino Teórico da Bauhaus alemã. Ed.
calidade, no mesmo ponto que mescla os extremos e de- Frederick A. Praedger, NY, 1953.
manda a criação musical e também a composição visual.
Em termos práticos, quando se refere à visualidade, Klee A representação acima é seguida de vários exemplos grá-
destaca a idéia de movimento contido na percepção de ficos de movimento, linha melódica, e outras grafias rela-
um (fundo) e de outro (forma) (ARNHEIM,1986), gerando cionadas à música. Nosso trabalho, a seguir, é explicitar
um movimento constante e oscilatório. Assim também estes elementos iniciando pelo ponto, elemento mínimo
ocorre de um (o som) e de outro (o silêncio), que são os da composição plástica. Para Klee o ponto não é sem di-
componentes básicos da música. mensão, mas sim executa o movimento zero (KLEE,1973).
Em seguida, apresentaremos os primeiros passos realiza-
dos por Paul Klee para elaboração da Teoria da Forma. As Tratando da tensão existente entre um ponto e outro, ele
páginas do caderno apresentam desenhos esquemáticos entende a linha que tanto pode ser reta como curva, ou

Ex. 3 – Tabela de desenhos propostos por Paul Klee em correspondência aos textos, copiados de sua obra La Pensée Créatrice.

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RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.7-18.

ainda sinuosa, ou, quem sabe, até angulosa. A seqüência Assim, Klee facilita a compreensão desses conceitos,
de pontos descreve uma linha que é a trajetória de um iniciando por definir os ‘ritmos estruturais primiti-
movimento. Isto ocorre também na música, quando uma vos’ formados pelas linhas horizontais e verticais.
seqüência de notas determina uma linha musical. Klee Este é o primeiro passo para a formação dos qua-
quer compreender a linha pela possibilidade de gerar mo- drados mágicos.
vimento. Ele vê na seqüência de pontos exatamente o que
ocorre também na linha melódica: a seqüência de notas
determina a trajetória da linha melódica.

Esta linha é denominada por Klee de linha ativa


(KLEE,1973,105), pois executa um movimento perfeita-
mente espontâneo (KLEE,1973). Na seqüência de dese-
nhos podemos observar de que maneira Klee representa
a linha ativa. As ilustrações estão aqui reproduzidas e se-
guem com as explicações do próprio autor.

Os desenhos a seguir também são cópias da obra do autor Ex.5 – Paul Klee: exemplo de uma malha em quadrados
e demonstram outros tipos de linhas e as similaridades constituídos a partir da composição de linhas horizontais
entre os movimentos oscilatórios e a linha musical. e verticais.

Na imagem a seguir, apresentamos a malha de construção


e, ao lado, uma pauta musical, com as subdivisões de um
compasso quaternário.

Ex.4- Desenhando a duas vozes, notas de Paul Klee para Ex.6 – Paul Klee: exemplo comparativo de malha de con-
os Cursos da Bauhaus. Paul Klee Foundation, Kunstmu- strução com módulos quadrados e, ao lado, uma pauta
seum, Bern. musical de um compasso quaternário com as divisões
dos tempos.
Linhas melódicas, contrapontos, harmonias, estão cor-
relacionados com linhas contínuas do desenho, linhas Os ritmos estruturais representam o primeiro passo
contrapostas também do desenho e tonalidades harmô- para elaborar a estrutura do quadro. Por eles, forma-
nicas. Mas, sobretudo quando ele conceitua o ponto e se o sistema das composições pictóricas com divisões
a linha, contrapõe à nota musical, à linha melódica, aos geométricas do espaço bidimensional. Em paralelo,
tempos rítmicos e passa a representar o movimento no na escritura musical os tempos do compasso podem
espaço bidimensional. Assim, Klee sistematiza a con- ser subdivididos para atenderem às necessidades
cepção do compasso na existência de uma estrutura de rítmicas da obra musical. E esta subdivisão sempre
malha de construção, formada por linhas horizontais e ocorrerá de modo a proporcionar valores modulares e
verticais para construir estruturadamente o espaço bi- correspondentes ao tempo definido pelo compositor,
dimensional similar ao universo musical. Estas linhas, como uma semínima numa composição de compasso
quando superpostas, vão formar módulos quadrados ou 4/ 4 corresponderá a uma unidade de tempo, enquan-
retangulares e serão por estes módulos que surgirá a to, se o autor desejar que este tempo seja subdividido,
relação entre a linha melódica e construção formal do possibilitando com isto valores rítmicos diferencia-
quadro; a divisão de ritmo e a subdivisão do módulo es- dos, ele estará utilizando duas colcheias ou quatro
tabelecendo definitivamente a relação entre as divisões semicolcheias etc. que ocuparão o mesmo tempo
do espaço bidimensional e o compasso musical. Nes- da semínima. E na pintura, o valor modular poderá
te sistema, Klee compreende como uma [...] estrutura ser subdividido proporcionando meios de valorizar a
é uma articulação dividual (KLEE,1973,207) e permite composição pictórica.
subdivisões proporcionando intenção rítmica. As sub-
divisões dos módulos na estrutura encontram similari- Os desenhos apresentados a seguir demonstram corres-
dades na divisão rítmica dos compassos e a utilização pondências com a divisão modular pictórica. Comparati-
modular de cada tempo do compasso encontra paralelo vamente, o quadrado da esquerda corresponderá a uma
na subdivisão modular do quadro. semínima, os dois retângulos a duas colcheias etc.

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RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.7-18.

Ex.9 - Paul Klee: uma linha dividida em três medidas


iguais e acompanhando a proposição de Klee para a
Ex.7 - Paul Klee, módulos quadrados divididos em dois norma trivalente ou medida a três tempos.
retângulos e em quatro quadrados: correspondências
com a escrita musical.
Obedecendo ao mesmo critério, percebe-se também
A partir da constituição de uma rede modular, Klee su- que há similaridade entre esta divisão e o compasso
geriria várias possibilidades de malhas estruturais. Estas ternário. O desenho abaixo demonstra as equivalências
malhas atenderiam às necessidades de composições har- entre os tempos do compasso ternário e a divisão da
mônicas. Klee propõe dois modelos de malhas constru- linha em três partes:
ção estruturais: estruturas sem alternância’ (KLEE,1973)
e estruturas com alternância (KLEE,1973). Ainda hoje, o
design e a comunicação visual fazem uso dessas estrutu-
ras no ensino e na formação do pensamento destinado à
concepção de produtos e de imagens de identidade, entre
outras aplicações.

Prosseguindo na apresentação da obra teórica, Klee trata


da divisão do compasso – do tempo musical – e estabele- Ex10: Paul Klee: uma pauta musical apresentando um
ce a relação que a divisão da linguagem visual. Chaman- compasso ternário e, logo abaixo, a equivalência na
do de ritmos culturais (KLEE,1973) ao sistema de divisão linha visual sub-dividida em três medidas iguais.
de um módulo em partes, ele determina uma unidade de
medida, podendo ser relacionada ao compasso da música. Klee propõe variantes para as normas. Para a norma bi-
Quando Klee trata da divisão do módulo a partir de uma valente ou medida a dois tempos, é possível desenvolver
norma bivalente ou medida a dois tempos (KLEE,1973) po- uma variante que seria de uma medida a dois tempos
demos compreender as similaridades entre este sistema a qual se ajusta uma dupla divisão, resultando numa
e um compasso binário. O desenho a seguir demonstra medida a quatro tempos, como podemos constatar no
visualmente o proposto: desenho a seguir:

Ex11: Paul Klee: representação da norma bivalente com


variante de medida em dois tempos.

Nesta variante, o módulo de medida é subdividido em


Ex.8 - Paul Klee: uma linha dividida em duas medidas duas unidades iguais que, por sua vez, abriga subdivisões,
iguais e acompanhando a proposição de Klee para a resultando num módulo subdividido em quatro partes
norma bivalente ou medida a dois tempos. iguais. Outra variante é a variante da norma bivalente
com tripla divisão resultando numa medida a três tempos
Quando ele nomeia de norma bivalente está estabelecen- (KLEE,1973). Nesta variante, o módulo de medida é sub-
do que este segmento seja pertencente a um sistema cuja dividido em duas unidades e cada uma dessas unidades é
unidade de medida é um elemento modular e que, por sua subdividida em três partes iguais.
vez, subdivide-se em duas partes iguais. Ao chamar este
sistema de ‘norma bivalente ou medida a dois tempos’
está determinando que esta medida possa ser espacial
ou temporal. Como podemos constatar no esquema apre-
sentado, trata-se de um segmento de reta que é tratado Ex12: Paul Klee: representação da norma bivalente com
também como medida de tempo. variante de medida em três tempos.

O mesmo pensamento referente à divisão binária também Ao compararmos com a escrita musical vamos compre-
é adotado para as outras divisões, assim como a norma ender que nesta norma está correlacionada à divisão do
trivalente ou medida a três tempos (KLEE,1973). módulo, unidade de medida, com um compasso binário
composto. Neste tipo de compasso, a unidade de tempo
Poderemos observar no desenho a seguir o que representa é dividida em dois tempos iguais e subdividida em três
a divisão de uma unidade modular em três partes iguais. tempos, em cada unidade de tempo.

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RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.7-18.

Ainda em outra proposta, Klee apresenta a variante da


norma trivalente com tripla divisão, resultando numa me-
dida a nove tempos (KLEE,1973).

Apresentamos até o momento apenas alguns modelos


propostos por Klee para estabelecer a relação entre as
artes visuais e a divisão do compasso, a linha melódica,
os valores musicais. A seguir, apresentaremos algumas
imagens que demonstram não só a aplicação da Teoria
da Forma de Klee e também os primeiros exemplos do
pensamento correlacionado.

3 - Primeiras experiências pictóricas


As primeiras experiências realizadas por Paul Klee rela-
cionando a música com as artes visuais ocorreram nas
obras satíricas, utilizando a técnica da gravura. Na obra
realizada em 1909 representa a crítica às músicas moder-
nas daquela época. Na grafia da música que se encontra
apoiada sobre a estante do piano, há uma série de signos
indescritíveis e, no trajeto do trato alimentar da figura
que executa a peça musical, há pequenos pontos que Ex. 14 – Klee, Paul, Instrumento de Música Moderna,
se avolumam até alcançarem o local em que o pianista 1914.10. Bico de pena, 17.2x16.9 - Felix Klee, Bern.
está sentado: um penico. A imagem representa o efeito
da peça musical no próprio pianista que a executa. Na Nesta mesma época, Klee iniciava seus exercícios gráficos
representação, há tantas notas a serem dedilhadas que apoiados na linguagem abstrata. E, por meio dos estu-
é necessário o uso de duas manivelas, fixadas aos pés do dos da forma, ele encontra um sentido para sua pesquisa.
pianista, para que possam auxiliar na interpretação das Apesar da trajetória pela representação figurativa, aos
notas mais graves e nas mais agudas. Podemos observar poucos os valores da figuração se tornam relativizados,
a gravura a seguir: na medida em que os elementos simbólicos da escritu-
ra musical invadem o universo pictórico, revelando uma
nova iconicidade, ainda assim pictórica, para os elemen-
tos que são modos de representação do movimento. Há
um trabalho realizado entre 1908 e 1909, desta etapa
de desenvolvimento criativo que representa visualmente
a idéia de movimento. Desenhando com a fermata é o
nome desta obra que podemos ver a seguir:

Ex.13 – Klee, Paul, O Pianista em dificuldade


- Uma sátira: Caricatura de Música Moderna
1909.1. Bico de pena e aquarela, 16.5x18cm. Ex.15 – Paul Klee, Desenhando com a fermata,
Felix Klee, Bern. 1918.209. Bico de pena, 15.9x24.3 - Paul Klee
Foundation, Kunstmuseum, Bern.
No sentido de demonstrar o interesse do autor pela repre-
sentação conjunta da grafia musical e da pintura, apre- Segundo KAGAN, na obra Art and Music, esta obra está
sentamos uma gravura, abstrata, realizada em 1914. Nesta relacionada ao “Scherzo” e emprega elementos formais
obra, Klee utiliza os símbolos musicais em uma composição abstratos - três linhas paralelas - que parecem desen-
visual. Apesar de não estar à altura dos experimentos futu- volver o movimento de uma linha melódica composta de
ros, mesmo assim a representação demonstra a tendência acordes com três notas. As linhas descrevem um movi-
do autor. Podemos observar a obra a seguir: mento no plano do quadro e criam a idéia espacial.

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RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.7-18.

O “Scherzo” é um forma musical cujo nome que significa e sub-módulos. Enquanto as verticais são referências
jogo, brincadeira. Geralmente, é uma composição ligeira e de um arremedo de malha de construção, as nuances
breve. Na sua obra, Klee caracteriza o “Scherzo”, ou seja, das diferentes cores se incumbem de insinuar as linhas
as formas ligeiras e breves, por meio do emprego de seg- horizontais, completando os ‘ritmos estruturais primi-
mentos de retas que mudam de rumo e criam formando o tivos’. E, no centro da composição, variando do verde
ambiente onde os jogos podem ocorrer. A fermata é outro ao ocre, percebe-se um arremedo de subdivisão mo-
elemento da música que está representada nesta cena. dular, como se fossem notas de um conjunto rítmico
subdividindo um tempo musical. Podemos observar, na
Como elemento musical, a fermata é um símbolo que, imagem a seguir, a métrica visual em correlação com
ao ser empregado em uma obra, autoriza o intérprete o ritmo da musica:
a determinar o tempo de duração da nota sobre a qual
o símbolo está representado. Ela determina o tempo, a
espera. Nesta gravura, a fermata encontra-se no alto
à esquerda e interrompe o caminho já iniciado pelas
três retas, significando que a música já começara an-
tes do espaço representado. Klee utiliza o símbolo da
fermata como lhe convém. Modifica sua posição para
dar outro significado: um olho que espreita, ou utiliza-
a como elemento que encerra as trajetórias das retas
paralelas. Esta noção de espreita está novamente pre-
sente no ponto áureo do quadro, no quadrante direito
inferior, para onde segue o conjunto de três linhas que
percorreram o quadro. Neste ponto áureo encontra-se
uma imagem, um olho com pernas ou, quem sabe, uma
brincadeira, ou pássaro, enfim, um personagem fictício
com duas longas pernas e dedinhos. Nesta figura en-
cantadora, o espírito lúdico da obra está em evidência. Ex.16 – Paul Klee, Cúpulas vermelha e branca, 1914.
E, nesta figura, a espera é mais uma vez evidenciada Aquarela em superfície de cor e papel japonês colado
pela fermata que também destaca uma parte impor- sobre cartão. 14.6 x 13.7 cm - Kunstsammlung Nor-
tante da obra. drhein-Westfalen, Dusseldorf

4 - Aplicação da Teoria da Forma para análi- O pintor realiza, durante este período, inúmeras obras
se das pinturas de Paul Klee que demonstram sua atenção para a questão formal de-
Neste sub-capítulo, procuramos demonstrar as corres- finindo sua identidade de artista: da mente de um músico
pondências entre a Teoria da Forma elaborada por Paul para as mãos de um pintor.
Klee e sua própria obra pictórica. Em cada pintura ana-
lisada a seguir, perceberemos a preexistência de pressu- No mesmo ano de 1919, Klee realiza um trabalho mais es-
postos formais do pensamento do teórico e artista. As truturado, no qual evidencia, ainda mais, a relação da pin-
análises serão realizadas em pinturas do período compre- tura com a escritura musical. Trata-se de Rhythmic Wooded
endido entre 1914 e 1932. Landscape, que representa uma paisagem fictícia, composta
de desenhos esquemáticos de árvores dispostas em espaços
A primeira pintura, Coupoles Rouges et Blanches, de que são representados pelos intermédios entre linhas hori-
1914, demonstra a influência da viagem de Klee à Euro- zontais. Cada espaço contido entre estas linhas horizontais é
pa e à Tunísia. Nota-se a intenção de estruturar o espa- constituído a partir de um valor modular. Enquanto o menor
ço bidimensional e deixar em evidência a estrutura da corresponde à metade do módulo, o maior é composto de
malha de construção e, ainda na figuração, encontra-se três valores modulares. Em cada um desses espaços encon-
referências a imagens reconhecíveis, assim como esque- tram-se círculos de tamanhos diferentes, também constitu-
mas de cúpulas arquitetônicas; arremedos de janelas e ídos a partir de um valor modulado e que são arremedos de
portas, insinuados por retângulos de diferentes medi- cúpulas das árvores da paisagem. Há, no espaço tingido de
das; telhados insinuados por troncos de prismas, além terracota, uma imagem que insinua a silhueta de um came-
do espaço urbanístico e do conjunto arquitetônico, re- lo. Este espaço é composto pelos três módulos.
velados pelo conjunto das formas geométricas, levando
ao simbolismo do título da obra. Apesar de representado em silhueta, o animal surge entre
supostas árvores cujas diferenças de dimensões remetem
Analisando a imagem pelos pressupostos formais con- ao valor de tempo do elemento musical (o ritmo). O título
cebidos na Teoria da Forma, o que vemos é o seguin- também faz referencia ao ritmo. Portanto, por meio de
te: comandam a composição as linhas verticais que se Rhythmic Wooded Landscape Klee representa seus con-
tornam diretrizes para estruturar o quadro em módulos ceitos teóricos como vemos a seguir:

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RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.7-18.

A duração de um tempo passa a ser uma unidade de me-


dida representada pelos módulos e sub-módulos visuais.
Este é um passo importante na representação futura dos
quadrados mágicos.

Ex.19 – Paul Klee: exemplo de esquema demonstrando


os valores modulares e as subdivisões, correspondendo a
Ex. 17 – Paul Klee, Paisagem rítmica com ár- um módulo na parte superior direita do quadro Flora na
vores, 1920. 41, óleo em cartão , 47.4 x 29.5 - areia, apresentado na ilustração anterior.
Formerly E. Horstmann, Hamburg.
Na próxima obra, encontraremos a síntese da represen-
Os princípios da Teoria da Forma aparecem nesta ima- tação da Teoria da Forma, pois, além de elaborar a es-
gem visual, similares à notação rítmica, porque na escrita trutura primitiva (a formação dos módulos quadrados),
musical cada valor de tempo equivale à metade de ou- o movimento emerge como a resposta aos seus anseios.
tro valor de tempo (mínimas, semínimas, colcheias etc. Pela cor, Klee realiza sua intenção na aquarela chamada
são referências de tempos correspondendo o próximo à Alter Klang, de 1925. Podemos observar a obra a seguir:
metade do tempo do anterior). Na pintura, o que vemos
são, também, elementos visuais, ou marcações estruturais
visuais com medições variáveis.

A seguir, analisaremos a obra realizada em 1927, cha-


mada: Flora on the Sand. Totalmente geométrica e
composta de quadrados de medidas variáveis, a pintura
demonstra como o pintor realiza seqüências de quadra-
dos subdivididos, definindo módulos e sub-módulos. E,
por meio deste artifício, Klee mantém a idéia de mo-
vimento, como também ocorre na divisão do tempo da
música. No detalhe esquemático, apresentado ao lado do
quadro, podemos compreender a divisão modular, como
tempos da notação musical e subdivisões dos módulos
quadrados, como as subdivisões dos valores de tempo
das notas musicais:
Ex.20 – Paul Klee, Música Antiga (tradução livre),
1925.236. Óleo sobre cartão, 38 x 38. - Kunstmu-
seum, Basel.

Klee realiza uma composição abstrata geométrica procu-


rando transmitir a ambientação da época das velhas can-
ções. Na obra Paul Klee: Arte and Music, Andrew Kagan
comenta sobre esta obra:
Alter Klang é o espectro de evocações ascendentes que vem da
obscuridade dos negros profundos e verdes concentrados nos ân-
gulos do quadro para a serenidade dos rosas e amarelos no centro
do trabalho (KAGAN,1989).

Utilizando a malha de construção com módulos constan-


tes em uma composição inteiramente realizada pela cor,
Ex. 18 – Paul Klee, Flora na areia - (1927). Aquarela Alter Klang é planar e, ao mesmo tempo, as cores claras
sobre papel - Collection Felix Klee, Bern. estão sobrepostas a um fundo de cor escura. Cada cor é

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RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.7-18.

um módulo signo cujo conjunto tem a intenção de reme- Pelos quadrados mágicos, Paul Klee realiza as representa-
ter ao antigo tempo das canções harmônicas. Também, a ções harmônicas. Mas também elabora estudos de trans-
partir destes mesmos módulos, nota-se movimento e ritmo parências de cores e superposições para representar a
onde cor e módulos definem o movimento dos quadrados tridimensionalidade: a polifonia.
mágicos. Cada módulo tem o valor de signo, pela cor re-
presentada, mas também pode ser uma nota relacionada Ao superpor os elementos modulares, Klee encontra
ao módulo seguinte, intuindo uma linha pictórica estrutu- a maneira de representar uma obra polifônica (MAR-
rada, remetendo à idéia de movimento da linha musical. ÇAL,2009). O modo de resolver a questão é chamado por
ele de cor polifônica.
Com Alter Klang, Klee constitui:
A polifonia constitui-se em um processo complexo de
[...] uma verdadeira estrutura como no compasso musical, a par-
tir da qual ele pode compor com as cores [...]. Alter Klang é um composição musical no qual cada grupo de instrumen-
paradigma de construção puramente pictórica, e a definição das tos realiza, separadamente, seqüências de notas que não
possibilidades que a temática da cor contém. (KAGAN,1989). corresponde à linha melódica e sim a uma parte desta.
Quando os conjuntos instrumentais realizam as seqüên-
Outro trabalho igualmente importante no sentido de de- cias ao mesmo tempo, em conjunto, a melodia surge do
monstrar a relação entre a música e as artes visuais foi somatório de todas estas partes.
realizado em 1930: Three-part Time with the Quartered
e um trabalho utilizando a tinta guache. Esta obra apre- Nas experiências de Klee, a polifonia emerge dos planos
senta uma proposta ainda mais evidente da utilização superpostos de cores transparentes. A superposição das
dos módulos de cor que remetem aos tempos musicais. cores transparentes permite vislumbrar o somatório de
Não se encontram referências reais ou figurativas, pois todas as cores e o resultado que é a forma definitiva.
a imagem dispensa a representação de um objeto real Em termos visuais, o somatório das cores também vai
ou existente. Three-part Time with the Quartered, pelo representar um elemento que surge do conjunto de to-
contrário, representa um elemento da música que está das as cores.
identificado no título da obra. Three-part Time quer dizer:
tempo em três partes, tem correspondência com o com- Para fins didáticos, Klee apresenta os desenhos que cha-
passo ternário. Vamos observar a obra a seguir: ma de Three-part Polyphony.

Nestes trabalhos demonstra a rede que se forma quando


estruturas se cruzam e determinam uma nova estrutura
que é o somatório das partes. Ele apresenta três grupos
de elementos visuais: dois quadrados vermelhos, hachu-
ras horizontais e hachuras verticais. Estes modelos apre-
sentam-se à direita do quadro.

À esquerda vemos os três motivos superpostos. Nesta


superposição nota-se um padrão composto dos três
elementos. Assim, Klee encontra o meio de representar
visualmente o efeito produzido pelos conjuntos ins-
trumentais da música. Podemos observar o estudo a
seguir:

Ex. 21 – Paul Klee, Divisão a Três Tempos. 1930. Guache,


44.5 x 61.2 - Marlborough Fine Art (London) Ltd.

Klee utiliza nesta obra um esquema com alternância para


representar a grafia musical do compasso ternário. O
primeiro tempo é identificado pela cor preta; o segundo
pela cor cinza e o terceiro pelo branco. Estes elementos se
repetem em várias seqüências de pretos/cinzas/brancos.
Na composição musical, o compasso determina o ritmo.
Assim também ocorre na representação desta pintura.

Na obra, Klee sintetiza a marcação rítmica de uma com-


posição em compasso ternário - o primeiro tempo mais
forte; o segundo menos forte; e o terceiro mais fraco.
Representando cada tempo em preto (mais forte), cinza Ex. 22 – Paul Klee, Polifonia a Três Partes, illustra-
(menos forte) e branco (mais fraco) ele induz à represen- ção nas anotações de Klee´s para cursos da Bauhaus
tação das nuances de marcação dos tempos na música. (1921-22). Paul Klee Foundation, Kunstmuseum, Bern.

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RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.7-18.

As experiências com as cores realizadas por Paul Klee a Conclusão:


partir de 1930 demonstram sua busca pela representação O estudo realizado por Paul Klee com a intenção de de-
da profundidade. Para conseguir o recurso que necessita, monstrar a relação existente entre a linguagem da música
ele passa a utilizar seqüências de pontos como o meio e da pintura é bem mais abrangente e detalhado do que fo-
visual de representar a polifonia. Desta forma, torna-se mos capazes de apresentar neste artigo. Alguns segmentos
possível cobrir a superfície do quadro com uma cor, su- representando a Fuga, ou as Variações musicais nem foram
perpondo outras sem que nenhuma delas fique encoberta sequer nomeados neste trabalho por limitação de espaço.
totalmente, solucionando a questão da profundidade e da
superposição de panos de cor. Mesmo assim, consideramos que o esboço do assun-
to tornou possível demonstrar o propósito do pintor ao
Em 1932 Klee realiza a obra Polyphony como demonstra- desenvolver uma teoria destinada ao aprimoramento da
ção clara de aplicação dos estudos teóricos e práticos. Na linguagem visual que pudesse solucionar para as artes vi-
superfície do quadro, Klee realiza uma composição com suais as dificuldades de representação do movimento e
retângulos de cor (estrutura de módulos) e aplica conjun- da profundidade.
tos de cores em forma de pequenos pontos. Neste sistema
encontram-se vários conjuntos de cores superpostas for- Os estudos de Klee resultaram numa elaborada Teoria da
mando uma unidade e que sugere à Klee a polifonia. Na Forma, mais tarde organizada por Moholy-Nagly, tam-
pintura a seguir é possível observar as superposições dos bém professor da Bauhaus e que servem, ainda hoje, para
pontos e as transparências. fundamentar a didática da Metodologia Visual, sendo útil
para a formação de designers e comunicadores visuais
das Escolas mais tradicionais.

Utilizada na atualidade sem que se cogite a origem dos


ensinamentos: a representação visual do movimento pela
relação estabelecida com a escritura musical, o sistema
adotado tem o sentido de revelar pressupostos formais
para a representação. Por ter sido editada durante a es-
tadia de Klee na Bauhaus e por ser ele considerado até os
dias de hoje como um dos principais professores daque-
la Instituição, a teoria que trouxe para as artes visuais
as noções de modulação, ritmo, psicodinâmica das cores
(não apresentado neste artigo) é, na atualidade, modelo
Ex. 23 – Paul Klee, Polifonia, 1932-3=273; têmpera em da Boa Forma e, por este motivo, é comumente adotada
tela, 66.5 x 106 cm. Emanuel Hoffmann Foundation, Kun- no ensino do design e da comunicação visual como mo-
stmuseum, Basel. delo pressuposto de qualidade estética.

Sendo assim, o valor da obra que relaciona a linguagem


Em suma, as proposições teóricas de Paul Klee evoluíram musical com a visual sequer é explicitado, utilizando-se
ao ponto de alcançar seu propósito: a criação de um sis- apenas a tendência da criação artística por meios pres-
tema visual que representasse o movimento, o ritmo, a supostos visuais.
linha melódica, definido pelas seqüências de notas que
se tornam módulos; pelas seqüências de compassos da No entanto, pelo fato de que nunca houve, em nenhum tem-
linha melódica que se tornam divisões do espaço; seguin- po, um artista - pintor e músico - que tenha realizado um
do valores mensuráveis na linha melódica que se tornam trabalho tão aprofundado, teórico e pictórico, procurando
divisão modular no espaço visual. Por fim, realiza a nota- demonstrar os paralelismos entre as linguagens das artes, o
ção da polifonia, por meio da profundidade que consegue pequeno demonstrativo deste artigo tem o valor de reviver
com as transparências obtidas pelas superposições de co- sua obra e deixar, para mais adiante, o interesse despertado
res da aquarela e do pontilhismo. para maiores revelações a respeito de seus questionamentos.

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RAMALHO DE CASTRO, R. C. O pensamento criativo de Paul Klee. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.7-18.

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Rosana Costa Ramalho de Castro é pós-doutoranda do programa de pós-graduação em Letras da UFF, possui doutorado
em História pela UFF (2004) e mestrado em Artes Visuais pela UFRJ (1995). É professora da Universidade Federal do Rio
de Janeiro desde 1981 e atualmente ocupa a função de Professor Adjunto. É professora credenciada do Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Arte- UFF e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - UFRJ. É membro da comissão
de elaboração do Programa de Pós-Graduação em Design- UFRJ. Dedica-se à pesquisa sobre: semiótica aplicada; repre-
sentações culturais; design para a sustentabilidade, comunicação visual, atuando principalmente nas áreas de sociologia
cultural e da imagem, semiótica cultural e visual, design e comunicação visual e semiótica do design. É membro da Latin
American Studies Association – Pitt/edu.

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VETROMILLA, C. Guerra-Peixe: da trilha sonora do filme O diabo mora no sangue... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.19-24.

Guerra-Peixe: da trilha sonora do filme


O diabo mora no sangue ao Prelúdio nº 2
para violão
Clayton Vetromilla (UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ)
cvetromilla@gmail.com

Resumo: O presente texto apresenta as conclusões a que chegamos ao verificar a afirmação do violonista Nélio Rod-
rigues, segundo a qual o Prelúdio nº 2 para violão (1970) de César Guerra-Peixe foi “idealizado” a partir da trilha sonora
do filme O diabo mora no sangue (1967) de Cecil Albery Thiré. Depois de discutir questões gerais acerca da partitura dos
cinco Prelúdios para violão publicada em 1973, aproximamos as características do Prelúdio nº 2 não só com os recursos
anteriormente utilizados por Guerra-Peixe na música composta para o citado filme, como também nos duos para canto
e violão Nesta manhã; Resta, sim, é remover; e Mãe d’água (1969).
Palavras chave: Guerra-Peixe, violão, Prelúdios, trilha sonora.

Guerra-Peixe: from the soundtrack of the film O diabo mora no sangue [The Devil dwells in the
blood] to the Prelude No 2 for classical guitar
Abstract: The present text presents our conclusions on examining guitar player Nélio Rodrigues’s statement that Prelude
No. 2 for Guitar (1970) by César Guerra-Peixe was “idealized” from the soundratck of the film O Diabo Mora no Sangue
(1967, The Devil Dwells in the Blood), by Cecil Albery Thiré. After discussing general questions relating the score of the five
Preludes for Guitar published in 1973, we compare the characteristics of Prelude No. 2 not only to the resources previ-
ously used by Guerra-Peixe in the music composed for the mentioned film but also to those used in the duos for song and
guitar Nesta Manhã (This Morning); Resta, Sim, É Remover (It Will Have to Be Removed); and Mãe d’Água (1969).
Keywords: Guerra-Peixe, classical guitar, Preludes, soundtrack.

1- Introdução 2- Panorama
Este estudo está inserido em uma pesquisa sobre as ca- Conforme NAVES (1988, p.25-26), dentro do panorama
racterísticas da linguagem violonística do compositor modernista da década de 1920, ocorreu um “fenômeno
César Guerra-Peixe. No presente trabalho, apresenta- de hierarquização dos instrumentos”: o piano, reservado
mos as conclusões a que chegamos ao verificar a proce- ao teatro, identificado com a tradição romântica euro-
dência da afirmação do violonista e amigo próximo do péia, é preterido em lugar do violão, que, confinado ao
compositor, Nélio Rodrigues, segundo a qual o Prelúdio espaço circense e identificado com as culturas populares,
nº 2 para violão (1970) de Guerra-Peixe foi “idealizado” assume o papel de realizar a “mediação entre o erudito e
a partir da trilha sonora do filme O diabo mora no san- popular”. Por outro lado, ao se estabelecer a cronologia do
gue (1967). Depois de situar a partitura dos cinco Pre- repertório escrito até 1979 por Francisco Mignone, Rada-
lúdios para violão de Guerra-Peixe, especulamos sobre més Gnattali, Camargo Guarnieri e Guerra-Peixe, verifica-
a gênese do Prelúdio nº 2. Em linhas gerais, formulamos se que, o instrumento passou, de fato, a merecer maior
a hipótese que a sonoridade alcançada pelo compositor atenção a partir dos meados da década de 1960.
em suas obras para violão do período sugere uma metá-
fora entorno da imagem da água, mais precisamente, do A lista de obras elaborada por VERHAALEN (2001, p.366-
fluxo contínuo de um rio cujas águas correm tranqüila 369) mostra que a primeira obra para violão de Guarnie-
e inexoravelmente. A pesquisa não poderia ter sido re- ri data de 1944, o Ponteio. Posteriormente, o composi-
alizada sem a colaboração de Cecil Albery Thiré (diretor tor fez, em 1954, Valsa-choro e, em 1958, o Estudo nº
do filme O diabo mora no sangue), do Cineclube João 1. O quadro cronológico estabelecido por VETROMILLA
Bênnio (Goiânia, GO) e do Museu da Imagem e do Som (2002, p.34-35) demonstra que Guerra-Peixe escreveu
(Goiânia, GO) por intermédio de Tânia Mara Quinta A. de as Três Peças em 1946, posteriormente, a Suíte. O Ponte-
Mendonça, a quem agradecemos. ado para viola [de dez cordas] ou violão, posteriormen-

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010 Recebido em: 08/10/2008 - Aprovado em: 05/11/2009
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te, Prelúdio nº 5, do mesmo compositor é de 1966, e a Prelúdio nº 5, “Ponteado nordestino”, para viola [de dez
Sonata bem como o Prelúdio nº 1, de 1969. Em 1970, ele cordas] ou violão (GUERRA-PEIXE, 1973, p.12-13).
compôs os prelúdios nº 2, nº 3 e nº 4 e, em 1979, sete (1.
Fantasieta, 2. Dança fantástica, 3. Organum acompa- Conforme GUERRA-PEIXE (1971, p.[37]), o Prelúdio nº 3
nhado, 4. Berimbau, 5. Modinha, 6. Ponteado com liga- teve sua estréia realizada por Sebastião Tapajós em reci-
duras e 7. Diálogo) do total das dez Lúdicas. tal no Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro (Se-
minário de Música), em 1970. Para MARIZ (1983, p.243),
Disponível na internet, o catálogo de obras de GNATTA- Nélio Rodrigues é o “grande intérprete” dos Prelúdios e
LI (2009), informa que a Toccata em ritmo de samba nº da Sonata, tendo sido ele, segundo TEIXEIRA (2000, p.19)
1 é de 1950. Em 1967, o compositor fez dez Estudos e, quem estreou os cinco Prelúdios.
em 19[68], a Dança brasileira. Conforme a lista de obras
elaborada por BORGES (1997, p.191-192), as primeiras Ao comentar a gravação dos Prelúdios nº 4 e nº 5 rea-
peças para violão de Mignone foram assinadas com o lizada pelo violonista francês, Roland Dyens, FRANÇA
pseudônimo Chico Bororó e escritas em 1953: Modi- (1981) afirma que os mesmos são “de envolvente sedu-
nha, Minueto-fantasia, Repinicando e Choro. Em 1970, ção” e “demonstram o grande domínio do métier que o
o mesmo compositor escreveu Canção brasileira, doze compositor ostenta”, além de expressarem “autenticidade
Estudos e doze Valsas. Na mesma década, ele fez ainda nacionalista”. TEIXERA (2000, p.19) acrescenta que:
o Lundu do Imperador, de 1973, a Valsa de esquina e as
Com exceção do segundo prelúdio, todos os quatro restantes evo-
Variações, ambas de 1976. cam cenas regionais brasileiras, chegando o compositor inclusive a
dedicar uma linha (escrita num pentagrama auxiliar), para anotar
Confrontando fontes impressas pelo Serviço de Difusão a melodia que neste caso é fundamental para a atmosfera regional
de Partituras da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), de empregada nas obras.
1970, com a partitura publicada dos cinco Prelúdios para
violão César Guerra-Peixe, em 1973, pela editora Arthur Por outro lado, percebemos que, durante os anos que se-
Napoleão, são encontradas diferenças consistentes no param a data da composição dos Prelúdios (o de nº 5 é de
que diz respeito a títulos, subtítulos e dedicatórias. A re- 1966, o de nº 1, 1969 e os de nº 2 à nº 4 são de 1970), a
visão da literatura acerca das mesmas levanta questões a linguagem do compositor se transformou: a sonoridade
serem esclarecidas inclusive no que diz respeito às carac- do Prelúdio nº 5 contrasta consideravelmente com a dos
terísticas estilísticas do conjunto de peças. Prelúdios de nº 1 à nº 4, que, por sua vez, formam uma
unidade. É o violonista Nélio Rodrigues quem aponta o
caminho para elucidarmos quando se deu tal alteração.
3- Os Prelúdios para violão de Guerra-Peixe Segundo TEIXEIRA (2000, p.24), Rodrigues em entrevista
Em 1969, Guerra-Peixe compôs duas obras para violão realizada em 12 de abril de 1992, teria dito que o Prelúdio
solo: a Sonata e o Prelúdio nº 1. Na partitura do Prelúdio nº 2 foi “idealizado” por Guerra-Peixe a partir da partitura
difundida através de cópias heliográficas pela OMB en- do filme O diabo mora no sangue.
contramos a dedicatória “para Léo Soares” (GUERRA-PEI-
XE, 1970a), no entanto, na edição de 1973, não aparece 4- A trilha sonora de O diabo mora no sangue
o nome do citado violonista. Por outro lado, foi incluído o Trazendo no elenco João Bênnio, Ana Maria Magalhães,
subtítulo “Lua cheia” (GUERRA-PEIXE, 1973, p.1-3). Hugo Broches, Dinorah Brillanti e Maria Pompeu, o filme
O diabo mora no sangue tem direção de Cecil Albery Thiré
São de 1970, outros três prelúdios para violão de Guerra- e possui trilha sonora original assinada por Guerra-Peixe.
Peixe, todos distribuídos, inicialmente, pela OMB através A estória se passa às margens do rio Araguaia (divisa en-
de cópias heliográficas: Prelúdio nº 2, “para Geraldo Ves- tre os estados de Goiás e Mato Grosso do Sul) e trata da
par” (GUERRA-PEIXE, 1970b); Prelúdio nº 3, “ao prof. Syl- relação incestuosa entre Júlio (João Bênnio) e sua irmã,
vio Serpa Costa” (GUERRA-PEIXE, 1970c); e Prelúdio nº 4, Maria (Ana Maria Magalhães).
“a Waltel Branco” (GUERRA-PEIXE, 1970d). Na partitura
publicada em 1973, o compositor acrescentou, respecti- Guerra-Peixe escreveu dois temas para demarcar o con-
vamente, os subtítulos: “Isocronia (em forma de estudo)” traste entre os universos culturais envolvidos na trama,
(GUERRA-PEIXE, 1973, p.4-6), “Dança fantástica” (GUER- ou seja, os habitantes nativos da região (entre eles, Júlio
RA-PEIXE, 1973, p.7-9) e “Canto do mar” (GUERRA-PEIXE, e Maria) e o grupo de turistas, que vêm pescar à margem
1973, p.10-11). do rio. Conforme AGUIAR (2007, p.145), o produtor do
filme, João Bênnio, queria “uma trilha de jazz moderno”;
VETROMILLA (2003, p.84-93) esclarece que, da trilha so- entretanto, Guerra-Peixe desaconselha argumentando
nora original composta para o filme Riacho do Sangue – o que o uso de um gênero de música muito característi-
povo nordestino entre a tirania dos coronéis e o fanatismo co, torna o filme datado. Assim, “em plena era dos filmes
religioso (1965), adaptação, roteiro e direção de Fernan- autorais de custo médio”, quando “as orquestras cedem
do Policarpo de Barros e Silva (Aurora Duarte Produções), espaço aos pequenos conjuntos”, o compositor grava a
Guerra-Peixe extraiu o Ponteado, para viola [de dez cor- trilha sonora do filme utilizando dois grupos distintos:
das] ou violão (GUERRA-PEIXE, 19[70]). Em 1973, a mes- o conjunto formado por Orlando Silva de Oliveira Costa
ma peça foi anexada à coleção dos prelúdios, com o título (Maestro Cipó), no saxofone; Geraldo Vespar no violão,

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guitarra elétrica e viola de dez cordas; Antônio Maria, 5- O Prelúdio nº 2


no piano, além de baterista e contrabaixista (não identi- O fato de o violonista Manuel Geraldo Vespar ter partici-
ficados); e o Quinteto Villa-Lobos juntamente com coral pado da gravação da trilha sonora do filme O diabo mora
misto (não identificado). no sangue parece uma justificativa coerente para a dedi-
catória que Guerra-Peixe incluiu na partitura do Prelúdio
O primeiro conjunto interpreta um tema jazzístico (do- nº 2, quando publicada em 1973. O subtítulo “Isocronia”
ravante, Tema jazzístico), que, juntamente com um frag- pode ser entendido como uma corruptela do termo “iso-
mento da canção Lá, lá, lá (Manuel de la Calva e Ramon cronismo”, isto é, conforme FERREIRA (1999), “qualidade
Arcusa, na versão de Antônio José, interpretada pelo con- de isócrono, ou seja, que se realiza em tempos iguais ou
junto vocal Trio Ternura) marca a presença dos turistas da ao mesmo tempo”.
capital na região ribeirinha. O segundo conjunto gravou
o tema que marca as cenas onde aparece o rio Araguaia Guerra-Peixe utiliza a palavra isocronia para sugerir a
(doravante, Tema do rio Araguaia) (Ex.1). existência de um fluxo sonoro decorrente do ataque inin-
terrupto dos dedos da mão direita, à maneira dos pre-
Reaparecendo integralmente também durante a cena de lúdios atemáticos ou dos estudos de fórmula fixa. Além
amor entre Júlio e Maria; e, nos instantes finais, quando, disso, podemos supor que o compositor incluiu a expres-
morto sobre a canoa, Júlio é carregado pelo rio, o Tema do são “em forma de estudo” por considerá-lo uma espécie
rio Araguaia é utilizado durante a narrativa com diferen- de “prelúdio atemático”, ou seja, conforme SILVA (1945,
te instrumentação, andamento e colorido harmônico. Por p.51), uma “sucessão de acordes, sem propósito de me-
exemplo, quando Maria se banha nua no rio, a melodia lodia, nem número determinado de compassos”, e que,
surge executada por voz feminina (Ex.2) e, para sublinhar possuindo “a feição de um acompanhamento de rítmica
o clima de tensão entre os irmãos, o tema é tocado pelo constante”, adquire o “caráter de estudo de acordes, ar-
clarinete (Ex.3), em ambos os casos com acompanhamen- pejos ou de escalas”.
to da viola de dez cordas.

Ex.1: Fragmento inicial da melodia do Tema do rio Araguaia.

Ex.2: Fragmento inicial da melodia do Tema do rio Araguaia conforme aparece na cena em que a
personagem Maria toma banho no rio. A linha melódica (notas com haste para cima) é feita por uma voz
feminina, o acompanhamento (notas com haste para baixo) é feito por uma viola de dez cordas.

Ex.3: Fragmento inicial da melodia do Tema do rio Araguaia conforme aparece na cena que mostra a tensão no
relacionamento entre Maria e Júlio. A linha melódica (pentagrama superior) é feita pelo clarinete, o acompanhamento
(pentagrama inferior) é feito por uma viola de dez cordas.

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Em conversa informal com autor do presente texto, o 6- Das três canções para voz e violão de
violonista Léo Soares (a quem, inicialmente, Guerra-Peixe Guerra-Peixe
dedicara o Prelúdio nº 1) afirmou ter sido ele (Soares), Antes dos Prelúdios nº 1 à nº 4, Guerra-Peixe escreveu três
quem sugeriu ao compositor utilizar dois pentagramas ao duos para canto e violão: Nesta manhã, de 27 e 28 de
escrever para violão. Concluímos que o fato de o compo- agosto de 1969, Resta, sim, é remover, de 31 de agosto
sitor ter acatado a sugestão nos Prelúdio nº 1, nº 2 e nº 3 de 1969 e Mãe d’água, de 19 de setembro de 1969, cujos
(c.32-40), bem como, posteriormente, em Breves III - 3. manuscritos pertencem ao acervo da Biblioteca Nacio-
Arpejando, de 1981, decorre da necessidade de explicitar nal, Divisão de Música e Arquivo Sonoro (DIMAS), Rio de
graficamente uma concepção instrumental cujo gérmen Janeiro. Nesta manhã e Resta, sim, é remover são textos
se localiza nos recursos expressivos utilizados na trilha extraídos do livro Dez canções primitivas (1968) do poeta
sonora do filme O diabo mora no sangue. amazonense Elson Farias.

No pentagrama superior, das “cordas soltas”, Guerra- O encontro entre o poeta e o compositor provavelmente
Peixe escreve as notas obtidas ao pinçar com os dedos se deu em função do trabalho que reuniu a cantora Maria
da mão direita as cordas previamente afinadas do violão. Lúcia Godoy, o violonista Daudeth Azevedo (Neco) e ou-
No pentagrama inferior, das “cordas dedilhadas”, o com- tros músicos para a gravação do LP O canto da Amazônia
positor escreve os sons obtidos em cordas dedilhadas, ou (Museu da Imagem e do Som, 1969). Na ocasião, Elson
seja, as notas produzidas ao pinçar com os dedos da mão Farias era o Diretor-Superintendente da Fundação Cultu-
direita as cordas previamente pressionadas pelos dedos ral do Amazonas sendo Guerra-Peixe o autor das “trans-
da mão esquerda sobre o braço do instrumento (Ex.4). crições musicais” do disco onde foram reunidas obras de
Cláudio Santoro, Waldemar Henrique, entre outros com-
Com a indicação “Allegro comodo (semínima = ca. 108)” positores amazonenses.
a duração aproximada da peça, segundo GUERRA-PEIXE
(1971, p.[36]), é dois minutos. Na gravação realizada por As três obras mencionadas possuem uma concepção
Sebastião Tapajós, o Prelúdio nº 2 é executado em 2’12’’ harmônica e melódica que está intimamente associada
(TAPAJÓS, 1998). A forma da peça é A (c.1-8) B (c.9-20) A aos recursos manuais do violão. Previamente afinadas, as
(c.21-24 e c.21-24[bis]) B’ (c.25-43) Coda (c.44-47). cordas soltas do instrumento funcionam como um plano
sonoro estático; enquanto as notas presas (obtidas atra-
As notas Ré e Si, ou seja, aquelas obtidas pinçando com a vés da pressão dos dedos da mão esquerda sobre o braço
mão direita a quarta e a segunda corda do violão, confi- do instrumento) configuram um plano sonoro dinâmico.
guram um plano sonoro que poderíamos considerar está-
tico: as alturas não são modificadas e o desenho rítmico Do ponto de vista literário, nos dois poemas são signifi-
é sempre o mesmo. As notas obtidas pinçando com a mão cativas as metáforas entorno da imagem da água: “Nesta
direita a sexta e a terceira corda do violão previamente manhã és um vaso vago, inteira como água, simples e
pressionadas sobre o braço do instrumento com os de- sóbria, azul” (Cântico II) e “Estarás assim mais nova que
dos da mão esquerda configuram um plano sonoro que a água recém-rachada, como haste de lenha verde que
poderíamos considerar dinâmico. O deslizar paralelo dos acabou de ser cortada” (Resta, sim, é remover), por exem-
dedos da mão esquerda sobre as mesmas forma, do ponto plo. Ao mesmo tempo, o título Mãe d’água (“para canto
de vista vertical, intervalos de décima primeira, ora maior, vocalizado e violão” com versão também “para violon-
ora menor. Do ponto de vista melódico, o uso de croma- celo e violão”) é auto-explicativo no que diz respeito à
tismo imprime à peça uma sonoridade dramática onde aproximação entre a sonoridade do violão e o universo
ao conhecido (as notas pedal e a regularidade rítmica) se imaginário do compositor acerca da sonoridade da água.
sobrepõe o estranhamento e a indefinição tonal-modal Nesse caso, somadas as considerações anteriormente
(do uso de cromatismo). realizadas sobre da trilha sonora de O diabo mora no

Ex.4: c.1-4 do Prelúdio nº 2 para violão de Guerra-Peixe. No pentagrama superior, das “cordas soltas”
e, no inferior, das “cordas dedilhadas”, foram abstraídas a configuração rítmica e as outras informações
(agógica, dinâmica) que a partitura original apresenta.

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sangue, supõe-se que Guerra-Peixe, a partir de 1967, to da linguagem violonística brasileira e para a afirmação
adotou como elemento constitutivo de sua linguagem do instrumento no cenário da música erudita nacional.
composicional para violão uma textura contrapontística Quanto à segunda área, evidenciam-se as possibilidades
na qual se estabelecem dois planos sonoros distintos: didáticas do estudo, por exemplo: comparar com obras
um, estático, das cordas soltas; e outro, dinâmico, das contemporâneas entre si bem como de épocas diversas.
cordas presas. Nesse último, das cordas presas, o com-
positor utiliza basicamente dois procedimentos: inter- Por outro lado, no que diz respeito às características do
valos paralelos e passagens cromáticas. Tal recurso pode legado composicional de Guerra-Peixe, abre-se uma nova
ser associado à idéia do fluxo sonoro que traduz meta- perspectiva. Em setembro de 1982, o compositor e Marlos
foricamente o som das águas de um rio. Nobre participaram de uma mesa-redonda cujo tema ver-
sava sobre as influências africanas na música brasileira.
7- Considerações finais
A relação entre a música de Guerra-Peixe para cinema e Nome consagrado como compositor e pesquisador da
sua obra para violão merece uma pesquisa mais ampla. música nacionalista, Guerra-Peixe, durante sua expo-
Além de um estudo aprofundado sobre a trilha sonora sição, defendeu a tese de que as características gerais
Riacho do Sangue e do esboço realizado no presente tex- de escalas e ritmos presentes na música nordestina têm
to sobre O diabo mora no sangue, urge, por exemplo, uma origem nos modos e estruturas rítmicas africanas. Marlos
análise da música composta para o filme Simeão, o bo- Nobre, além de destacar a importância da música trazi-
êmio (1969), de João Bênnio. Conforme AGUIAR (2007, da pelos negros vindos da África para a consolidação da
p.145), a trilha sonora escrita por Guerra-Peixe inclui a identidade musical brasileira, afirma que foi um “privilé-
participação de Geraldo Vespar (violão e viola de dez cor- gio” sua formação ter sido realizada “diretamente com o
das), Nicolino Copia (flauta) e, “para não ficar sem fazer povo”, pois a música do povo não se pode imitar ou “usar
nada”, o próprio compositor (percussão). como documento”: “ou você está impregnado dela ou faz
uma coisa falsa” (Nobre, 1985, p.107).
Tendo estabelecido a relação entre a trilha sonora do fil-
me O diabo mora no sangue e a partitura do Prelúdio nº Nota-se, por conseguinte, que a problemática envolven-
2, torna-se necessário algumas considerações acerca do do a trajetória estética do primeiro (Guerra-Peixe), bem
trabalho a ser desenvolvido posteriormente. Estas se re- como dos compositores que pertencem à sua geração,
ferem essencialmente a dois domínios: a necessidade de perdeu completamente o significado para o segundo
se refletir criticamente sobre a produção para violão de (Marlos Nobre) e os jovens compositores plenamente
autores brasileiros de estética nacionalista e a proposta integrados no cenário da música erudita de vanguarda.
metodológica do trabalho a ser realizado. Nesse caso, mesmo que Guerra-Peixe seja considerado
um dos principais ícones da música nacionalista brasilei-
Quanto à primeira dessas áreas, fica-se conhecendo, so- ra, os aspectos que aproximam sua obra do universalismo
bretudo, a gênese das obras mestras para o estabelecimen- ainda estão pouco delineados.

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VETROMILLA, C. Guerra-Peixe: da trilha sonora do filme O diabo mora no sangue... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.19-24.

Referências
Partituras de Guerra-Peixe
GUERRA-PEIXE, César. Ponteado, para viola [de dez cordas] ou violão [(1966)]. Rio de Janeiro: Ordem dos Músicos do
Brasil, 1970. (1p., 1 partitura)
______. Mãe d’água para canto e violão. Rio de Janeiro: manuscrito (DIMAS), 1969. (4p., 1 partitura)
______. Nesta Manhã para canto e violão. Rio de Janeiro: manuscrito (DIMAS), 1969. (5p. 1 partitura)
______. Prelúdio nº 1 para violão [(1969)]. Rio de Janeiro: OMB, 1970a. (2p., 1 partitura)
______. Prelúdio nº 2 para violão [(1970)]. Rio de Janeiro: OMB, 1970b. (2p., 1 partitura)
______. Prelúdio nº 3 para violão [(1970)]. Rio de Janeiro: OMB, 1970c. (2p., 1 partitura)
______. Prelúdio nº 4 para violão [(1970)]. Rio de Janeiro: OMB, 1970d. (1p., 1 partitura)
______. Prelúdios para violão. Rio de Janeiro: Arthur Napoleão (únicos distribuidores: Fermata do Brasil), 1973. NA 2109
(13p., 5 partituras)
______. Resta, sim, é remover para canto e violão. Rio de Janeiro: manuscrito (DIMAS), 1969. (3p. 1 partitura)

Textos consultados
AGUIAR, Lúcio. As mídias do Séo Maestro. In: FARIA, A.; BARROS, L.; SERRÃO, R. (org.) Guerra-Peixe: um músico brasileiro.
Rio de Janeiro: Lumiar, 2007, p.129-146.
BORGES, João Pedro. O violão na obra de Francisco Mignone In: MARIZ, V. (org.). Francisco Mignone: o homem e a obra.
Rio de Janeiro: FUNARTE / Editora Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1997, p.101-105 e p.191-192.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico - Século XXI, versão 3.0, novembro de 1999.
FRANÇA, Eurico Nogueira. Encarte do LP Festival Villa-Lobos, 1980, II Concurso Internacional de Violão - Música Brasilei-
ra. MEC / SEAC / FUNARTE / MVL, 1981.
GUERRA-PEIXE, César. [Curriculum Vitae, 1971]. Rio de Janeiro: texto datilografado, março de 1971.
MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
NAVES, Santusa de Castro. O violão azul. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.
NOBRE, Marlos (debatedor). A influência africana na música do Brasil In: III CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO. Recife: Fun-
dação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 1985, p.89-108.
SILVA, José Paulo da. Linguagem da música. Rio de Janeiro: propriedade reservada, 1945.
TEIXEIRA, Moacyr Garcia Neto. Música contemporânea brasileira para violão. Vitória: Gráfica e Editora A1, 2000.
VERHAALEN, Marion. Camargo Guarnieri - Expressões de uma vida. São Paulo: USP/IMESP, 2001.
VETROMILLA, Clayton. Introdução à obra para violão solo de Guerra-Peixe; incluindo gravação integral e edição crítica da
Suíte. Rio de Janeiro: UFRJ / Escola de Música, 2002.
______.Ponteado ou Prelúdio: considerações sobre uma obra para violão de Guerra-Peixe. Per Musi, Revista de performa-
ce musical, vol. 8, jul./dez. 2003. Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, p.84-93.

Outras mídias
GNATTALI, Radamés. Catálogo de obras disponível em www.radamesgnattali.com.br (visitado em fevereiro de 2009).
O canto da Amazônia. Rio de Janeiro: Museu da Imagem e do Som, 1969. (LP)
O diabo mora no sangue. Cecil Albery Thiré. Brasil. 1967. Bênnio Produções Cinematográficas. Rio de Janeiro. Drama
Riacho do Sangue - o povo nordestino entre a tirania dos coronéis e o fanatismo religioso. Fernando Policarpo de Barros e
Silva. 1965. Paranaguá filmes. Rio de Janeiro. Drama
Sebastião Tapajós interpreta Radamés Gnattali & Guerra-Peixe. Rio de Janeiro: Tapajós Produções, 1998. (CD)

Clayton Vetromilla foi professor na UEMG (1995-1997) e na UFPel (1997/2004) e, desde de 2005, trabalha no Instituto
Villa-Lobos, da UNIRIO. É Mestre em Música / Práticas Interpretativas (Violão) pela UFRJ, orientado pelo professor Turíbio
Santos, e Bacharel em Música (Violão) pela UFMG, na classe do professor José Lucena Vaz. Estudou também com Edelton
Gloeden (1996-1997, SP) e Eduardo Isaac (1998-1999, Argentina). Como camerista, trabalhou com o Quinteto Tempos e
com o Quinteto Sescontu. Como solista de violão, destacam-se seus recitais no Festival Dilermando Reis (Guaratinguetá,
SP, 2003) e no Programa Sarau do Museu Villa-Lobos (RJ, 2001). Atualmente é doutorando no PPGM da UNIRIO.

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Coesão discursiva nos Estudos de execução


transcendental de Liszt: as últimas sete peças

Daniel Bento (UNESP, São Paulo, SP)


dbento@ig.com.br

Resumo: Parece urgente a investigação dos processos de coesão nos Estudos de execução transcendental de Franz
Liszt: a emergência de um todo unificado é sugerida já no plano tonal que os coordena. O exame de outros aspectos
que pudessem garantir unidade — vinculados aos materiais específicos das composições — constitui o foco do pre-
sente trabalho. Seu recorte é o subconjunto formado pelas últimas sete peças do grupo, justificado pelo fato de elas
demonstrarem uma afinidade particular, o salto de sexta ascendente antecedido por diferentes formas de ênfase. O
fundamento teórico adotado é uma adaptação do conceito de subtematismo de Dahlhaus, que nutre o procedimento
metodológico: a abordagem analítica. Os resultados mostram conexões baseadas não apenas em fenômenos harmôni-
cos, mas também na recorrência de materiais flexíveis que sofrem transformações. Com isso, confirma-se a coesão dos
recortes e a pertinência dos processos de integração no volume de Liszt.
Palavras-chave: análise musical; coesão musical; subtematismo; Franz Liszt.

Discourse cohesion in Liszt’s Transcendental studies: the last seven pieces


Abstract: It seems to be urgent the investigation upon the cohesive processes in the Transcendental studies by Franz
Liszt: the emergence of a unified whole is already suggested in the tonal plan that coordinates them. The examination
of other aspects that could guarantee unity — related to specific materials of the compositions — is this text’s main
concern. Its focus is the subset formed by the last seven pieces of the group, and that is justified by the fact that they
show a particular affiliation, the ascending leap of sixth preceded by different forms of emphasis. The theoretical basis
adopted is an adaptation of Dahlhaus’ concept of subthematicism, which supports the methodological procedure: the
analytical approach. The results show connections based not only on harmonic phenomena, but also on the recur-
rence of flexible materials that are object of transformations. Hence, it is possible to substantiate the cohesion of the
selected pieces and the relevance of the integration processes in Liszt’s volume.
Keywords: musical analysis; musical cohesion; subthematicism; Franz Liszt.

1 – Introdução
Franz Liszt (1811-1886) termina seus Estudos de execu- É relevante o fato de Liszt não ter abandonado — a des-
ção transcendental (Études d’exécution transcendante, S peito das consideráveis alterações4 que, ao longo de
139)1 em 2 de abril de 1851; mas o processo envolvendo décadas, tenham sofrido os materiais relacionados aos
esse grupo formado por doze composições (publicadas em Estudos de execução transcendental — um plano tonal
1852) é muito anterior a tal data, concernindo mesmo aos específico que encadeasse essas peças. Tal plano defi-
seus primeiros anos de atividade composicional. Afinal, em nir-se-ia pelo movimento de terças entre as fundamen-
1826 criaria um conjunto que constituiria a origem da obra tais das tonalidades. Numa observação mais detalhada,
em questão, Estudo para o piano em quarenta e oito exer- proporia a alternância entre tons maiores e menores
cícios em todos os tons maiores e menores Op. 6 2 (Étude marcada por deslocamentos descendentes de terça me-
pour le piano en quarante-huit exercices dans tous les tons nor após os tons maiores e de terça maior após os me-
majeurs et mineurs, S 136, com primeira publicação em nores. O resultado seria, de um ponto de vista funcional,
1827). Não bastasse isso, em 1837 terminaria uma outra a vizinhança entre tonalidades tanto relativas quanto
versão do material, Vinte e quatro grandes Estudos 3 (Vingt- anti-relativas. Desse modo, o primeiro Estudo far-se-ia
quatre grandes Études, S 137, livro publicado em 1839); e em Dó maior; o segundo, em Lá menor; o terceiro, em Fá
em 1840 faria uma revisão independente da peça em ré maior; o quarto, em Ré menor; e tal plano continuaria
menor (S 138, publicada em 1847) que integra esse longo até a última composição, em Si bemol menor.
projeto (SAMSON, 2003, p.136-137, passim).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010 Recebido em: 08/04/2008 - Aprovado em: 05/11/2009
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BENTO, D. Coesão discursiva nos Estudos de execução transcendental de Liszt... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.25-33.

Ou seja, não há dúvidas que Liszt tenha associado har- v.II, p.305, 307). Destaca-se que, até nos casos de maior
monicamente as doze composições dos Estudos de exe- referencialidade extramusical,8 o programa lisztiano não
cução transcendental na versão final que recebe esse serve “propriamente como um plano de estrutura musi-
título e nas formulações anteriores. Não obstante, res- cal” (WATSON, 1994, p.156); e, desse modo, a investiga-
taria investigar se conexões de outra ordem, vinculadas ção dos processos de coesão baseada na sintaxe musical
propriamente aos materiais utilizados, também patente- em si mesma — proposta do presente trabalho — é justi-
ariam um processo coesivo, processo capaz de estabele- ficada independentemente dos títulos dos Estudos e de
cer uma dupla função discursiva: as partes integrantes quaisquer vínculos que possam manter com elementos
do volume seriam independentes num primeiro patamar extramusicais. Para tal investigação, seria necessário
de fruição (as peças jamais perderiam suas autonomias que se comentasse o conceito de subtematismo, de Carl
formais, aspecto corretamente celebrado nos programas Dahlhaus (1928-1989).
de recital, que com freqüência as separam); mas se po-
deriam associar em um nível estrutural mais amplo — 2 – O subtematismo
tangendo tanto a pares ou subgrupos ainda maiores de Dahlhaus entende como fenômeno subtemático a pre-
peças quanto ao todo do livro. Essa investigação teria sença de elementos criativos que afetem a fruição das
especial pertinência no caso da versão5 de 1851, que se construções musicais sem se manifestarem nelas de for-
dá num período em que Liszt volta-se com particular ma estruturalmente rígida, definitiva. Tais elementos cor-
interesse à composição e, em termos ainda mais especí- respondem a proposições em essência abstratas, no limite
ficos, a estratégias de coesão criativa. Dois anos depois, perto da subliminalidade, que num certo sentido se fazem
para se dar um exemplo bastante efetivo — atestado perceber mais através de suas variáveis atualizações ma-
(dentre tantos outros) por SAMSON (2003, p.216), HA- teriais do que através de sua essência geradora, que não
MILTON (1996, p.32, 44, passim), WALKER (2004, v.II, se limita a uma única formulação concreta.
p.149-157) e ROSEN (1995, p.479-491) —, terminaria
sua Sonata em Si menor (S 178, publicada em 1854), É fácil notar que o termo, referindo-se a “tematismo”,
caso relevante de unidade num extenso discurso, em evoca a associação dos parâmetros intervalar (horizontal)
razão de contínuas afinidades de material, por sua vez e rítmico, própria da idéia de “tema”. Todavia, Dahlhaus
garantidas pela transformação temática.6 assume como representantes do subtematismo ocorrên-
cias que não precisam patentear tal vínculo (DAHLHAUS,
Dado que dez dos doze Estudos de 1851 recebem tí- 1993, p.216-218). Alguns dos seus casos que nesse senti-
tulos — Preludio (no 1), Paysage (no 3), Mazeppa (no 4), do devem ser considerados esclarecedores (BENTO, ZAM-
Feux follets (no 5), Vision (no 6), Eroica (no 7), Wilde PRONHA, 2007, p.3-4) integrarão o presente tópico. Após
Jagd (no 8), Ricordanza (no 9), Harmonies du soir (no 11) isso, indicar-se-á os termos em que o subtematismo re-
e Chasse-neige (no 12) —, é incontornável indagar-se quer adaptação — e resultante expansão — para viabilizar
se a coesão das peças se poderia dar não mediante o tipo de estudo aqui proposto.
vínculos da arquitetura musical, mas por argumentos
programáticos. A resposta mais rápida e efetiva para A obra tardia e pré-tardia de Ludwig van Beethoven
tal questionamento provém da versão de 1837, na qual (1770-1827) representa o contexto original das formula-
nenhuma peça recebe qualquer título poético, a des- ções de Dahlhaus acerca do subtematismo. Nessa produ-
peito de, mesmo assim, nela já se fazerem perceber ção, o autor trata, dentre outras composições, do primei-
(mais claramente do que na versão de 1826) as funda- ro movimento da Sonata para piano em Mi bemol maior
ções materiais da revisão de 1851. Op. 81a (1810), Les adieux. Destaca, nele, ocorrência sub-
temática isolada no parâmetro intervalar,9 baseada no
Liszt, como se pode ver, de fato associou essas suas cromatismo descendente — uma “sombra” (DAHLHAUS,
composições a fatores extramusicais (lembrando-se que 1993, p.209) acompanhando temas e outros componen-
Preludio é exceção, já que o título é puramente funcio- tes da superfície formal.
nal); e Mazeppa constitui, nesse sentido, o caso mais
sólido, pois em seu fim há alusão textual à conclusão Como poderá ver o leitor, a seguinte reflexão sobre o primei-
do poema homônimo de Victor Hugo7 (1802-1885). ro movimento de Les adieux e a posterior ilustração (Ex.1)
Mas tais manobras refletem, como afirma ROSEN (1995, comprovam que, no subtematismo, a dimensão intervalar
p.499), pensamento posterior à composição, “estímu- não precisa vincular-se à rítmica (que é variada demais nas
los à apreciação do ouvinte”. Essa função dos títulos e manifestações cromáticas da composição), apesar de tal in-
mesmo de textos prefaciais na sua produção como um tegração ser em certa medida esperada diante da própria
todo, inclusive no que tange a seus poemas sinfônicos, alusão a “tematismo” 10 no termo criado por Dahlhaus:
é reforçada pelo próprio Liszt — que afirma que “a única
finalidade do programa é fazer uma alusão preliminar É claro como resultado, de fato até mais do que claro, que, a des-
peito de nunca o cromatismo ser um tema, no sentido de aparecer
às motivações psicológicas que levaram o compositor a numa Gestalt temática, ainda assim, como estrutura ‘subtemáti-
criar sua obra, motivações que ele tenta exprimir atra- ca’, ele tem tão formidável influência no processo formal quanto
vés dela” (Apud in WATSON, 1994, p.225) — e por auto- os temas que poderiam ser vistos de fora como fundação do de-
res voltados à sua música, a exemplo de WALKER (2004, senvolvimento musical (Op. cit., p.209-210).

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Ex.1 – Cromatismo subtemático na mão esquerda no Primeiro movimento da


Sonata Les adieux de Beethoven (c.2-4, 17-19, 37-38).

Num outro caso de subtematismo, desta vez o parâmetro ganha importância nos c.5-6. Com isso, considerando-se
intervalar horizontal fica totalmente de fora; e é a ação os c.1-2, c.5-6 e c.12-13, vê-se que se firma junto à har-
harmônica que passa a ter força, dividindo importância monia uma aceleração rítmica: chega a haver semínima
com a rítmica (Op. cit., p.216-218). pontuada no 1, mas no 5 o acompanhamento faz-se em
semicolcheias, e finalmente no 12 aparecem as fusas.
Numa das últimas sonatas para piano beethovenianas, a
Op. 110 (1822), em Lá bemol maior, o compositor estabe- Em suma, no primeiro movimento da Op. 110 há um
lece conexões relevantes porém materialmente abertas. “‘subtemático’ curso de eventos” (Op. cit., p.216) que, em
Vê-se isso no primeiro movimento, no começo da tran- suas bases, prescinde do parâmetro intervalar horizontal.
sição (c.12-15), que tem construção vertical diretamente
ligada aos quatro compassos iniciais da obra, definidos Portanto, vê-se nesses casos que a relação do subtema-
por tônica, dominante com sétima11 em segunda inver- tismo com o tipo de entidade musical normalmente cha-
são, tônica em primeira inversão e dominante com séti- mada de “tema” é bastante tênue, mesmo com a utiliza-
ma. Mas esses segmentos divergem consideravelmente ção do prefixo “sub–”. Afinal, o subtematismo não só não
no geral — a tal ponto que a descrição verbal da harmonia necessariamente associa os parâmetros intervalar (hori-
(feita acima) é mais efetiva do que a ilustração musical zontal) e rítmico como pode dispensá-los, nutrindo-se de
(que mais patentearia as diferenças dos trechos). outros dados musicais. Nesse sentido, sua relação com os
processos temáticos justifica-se apenas no fato de haver
Soma-se à ocorrência um processo paralelo, pois a pri- tanto nesses últimos quanto no subtematismo alguma
meira metade da progressão harmônica citada — tônica e sorte de proposição que na composição demonstre perti-
dominante com sétima em segunda inversão — também nência. Contudo, no conceito de Dahlhaus, tal pertinência

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é mais conceitual do que puramente material, visto que fil comum aos quartetos de cordas em Lá menor Op. 132
o elemento subtemático não é uma entidade cristalizada; (1825), em Dó sustenido menor Op. 131 (1826) e em Si
ele mais se materializa do que é, em si mesmo, material. bemol maior opp. 130 (1826) e 133 (Grande fuga, 1826),13
Seus frutos manifestam-se na escrita; mas a diretriz que de Beethoven (Id., 1989, p.83).
os gera continua a apontar para uma idéia, para um com-
portamento abstrato. Isso exposto, comenta-se a seguir Paralelamente, aponta aproximações subtemáticas entre
os dois pormenores que fazem o subtematismo aqui so- movimentos diferentes da já citada Sonata para piano
frer adaptação e, em certa medida, expansão. Op. 110 (Id., 1993, p.217). Mas pensa no subtematismo
primordialmente como ferramenta limitada às fronteiras
Em primeiro lugar, sendo empregado nos Estudos de execu- da peça individual.
ção transcendental de Liszt, o subtematismo emancipa-se
da produção tardia e pré-tardia de Beethoven, seu âmbito 3 – Os sete últimos Estudos de execução
original. Ainda que tal produção traia, em diversas situa- transcendental
ções, relações que indiquem um princípio abstrato que se Existe um aspecto precípuo que une os Estudos de exe-
materializa de modos variados na composição, o processo cução transcendental de números 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12.
jamais poderia ser considerado exclusividade do mestre do Ainda que firme a abstração que caracteriza o subtema-
classicismo. Basta que se pense, por exemplo, na suíte de tismo — seu processo de fazer-se perceber em contextos
variação barroca12 e numa obra que bem a represente — que apontem para uma idéia que mais materialize do
como a primeira Suíte francesa (BWV 812, composta en- que seja, em termos mais estritos, material em si mes-
tre 1722 e 1725) de Johann Sebastian Bach (1685-1750), mo —, tal aspecto recebe considerável ênfase ao longo
cujas partes, das mais variadas maneiras, nutrem-se da dessas sete composições. É mais audível (e, na parti-
sucessão Ré-Lá-Si bemol-Lá (BENTO, 2006, p.375) — para tura, visível) do que qualquer outro fenômeno do livro
que se constate que os recortes beethovenianos de Dah- que se compatibilize com o pensamento de Dahlhaus (e
lhaus podem, sim, ser especialmente interessantes no que essa afirmação é válida mesmo se se considerar as ou-
diz respeito a seu conceito; mas de forma alguma estabe- tras cinco peças que o integram). Como perfil conceitual
lecem os limites repertoriais de suas implicações. que, das mais diversas formas, se cristaliza, pode ser de-
finido pelo salto ascendente de sexta (maior ou menor),
Em segundo lugar, Dahlhaus mais utiliza o subtematismo antecedido por alguma sorte de ênfase na primeira nota
para identificar aspectos de coesão próprios de uma única que o componha. É essa ênfase que faz com que um mo-
composição: não desenvolve sua possibilidade de mediar vimento tão elementar quanto esse salto ganhe surpre-
a associação de diferentes peças. O autor chega, de fato, endente importância no volume, ainda que como uma
a esboçar isso quando mapeia um perfil abstrato definido “sombra” (para se lembrar de já citado termo empregado
por dois semitons separados por intervalos variáveis, per- por Dahlhaus) de seus temas.

Ex.2 – Estudo no 6 de Liszt (c.44-45): Nota Ré cercada por Dó sustenido e Mi bemol,


integrando em seguida salto de sexta ascendente.

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Ex.3 – Início do Estudo no 6 de Liszt (c.1-2).

Ex.4 – Estudo no 7 de Liszt (c.38-39).

O perfil mencionado não surge no começo da composição do livro, isto é, sua fundação harmônica geral, presente
no 6 (Vision), em Sol menor, mas apenas a partir do c.44 já desde a versão de 1826.
— doze compassos, assim, antes da coda. Nesse ponto,
a nota Ré ganha destaque por aparecer três vezes e por No Estudo no 7 (Eroica, em Mi bemol maior), como no seu
ser cercada cromaticamente por Dó sustenido e Mi be- predecessor, a partir de certo ponto se cristaliza o perfil
mol, que estabelecem bordaduras. Após, com a nota Si, no conceitual do salto ascendente de sexta antecedido por
c.45, consuma-se o salto de sexta maior (Ex.2). alguma sorte de ênfase na primeira nota; e tal ponto é
o c.38 (Ex.4, com a sexta maior), que integra a primeira
Liszt, logo, introduz na sexta peça elemento que marcará variação do tema. Desta vez, a ênfase na primeira nota do
porção maior do que a metade dos Estudos de execução salto consuma-se pela simples repetição: não há borda-
transcendental; só que o faz muito após ter estabelecido duras. Comparando-se o que se vê na sétima peça, a essa
o tema e grande parte da estrutura dessa composição, altura, com a estrutura que emerge no anterior Estudo no
num certo sentido mascarando, ao menos nesse momen- 6 (Ex.2, acima), pode-se finalmente perceber, em Liszt, ca-
to inicial, o papel de tal elemento. Isso gera um interes- racterística tão importante no subtematismo a que chega
sante desdobramento: o c.44 tem importância maior no Dahlhaus, impulsionado por Beethoven. Tal característica
contexto global do volume musical lisztiano do que no já se impõe como corolário das reflexões apresentadas na
contexto particular do sexto Estudo. segunda seção deste texto. Porém, é agora demonstrada
com facilidade: as amplas divergências entre os mate-
No entanto, mesmo se firmando tal interessante des- riais, a despeito de serem eles frutos de um mesmo perfil
dobramento, é necessário grifar-se que esse desenho conceitual, são precisamente o que garante o relevo da
do Estudo no 6 — que corresponde à materialização do qualidade abstrata de seu princípio gerador.
subtemático movimento ascendente de sexta antece-
dido por ênfase na sua primeira nota — emerge pela Na composição em Dó menor, Estudo no 8 (Wilde Jagd),
transformação temática, tão importante na produção o elemento subtemático aqui demonstrado se manifesta
madura de Liszt (WATSON, 1994, p.201, 158). Eviden- claramente de três maneiras. A primeira assume a ênfase
cia-se isso ao se observar parte do tema da peça (Ex.3), na primeira nota do salto (de sexta menor) pela subida e
com bordadura e salto descendente de terça (inversão, descida cromática, que em tal nota tanto se inicia quanto
afinal, do deslocamento de sexta ascendente); salto se encerra (Ex.5); a segunda patenteia um desenho muito
esse que, por seu turno, obviamente se vincula ao pla- próximo daquele encontrado na sétima peça (Ex.6, sex-
no tonal de terças descendentes do volume, inclusive ta maior), apesar das divergências rítmicas; e a terceira
por aparecer com reforços harmônicos que espelham garante por repetição (ainda que com a interpolação de
esses intervalos. Em suma, a propriedade subtemática outras notas) o destaque à altura que principia o salto
aqui em discussão se relaciona a uma idéia primordial (Ex.7, sexta maior).

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Ex.5 – Estudo no 8 de Liszt, introdução (c.29-30).

Ex.6 – Estudo no 8 de Liszt, final da introdução (c.58-59).

Ex.7 – Estudo no 8 de Liszt, segundo tema (c.91-93).

Ex.8 – Estudo no 9 de Liszt (c.14, 30).

Pode-se vislumbrar, a esta altura, o efeito acumulativo O Estudo no 9 (Ricordanza), em Lá bemol maior, dá con-
dessas estruturas no decurso dos Estudos de execução tinuidade às associações. Ocorrências do salto de sexta
transcendental. É por meio desse pormenor que o prin- maior ascendente com sua primeira nota enfatizada nele
cípio subtemático por trás delas se impõe como fator de são numerosas, tendo importância no próprio contexto
grande significância. Nesse contexto, grifa-se que a per- melódico da composição e fazendo-se próximas, entre
cepção do processo aqui em destaque se vai favorecendo si, nas suas linhas gerais: a primeira altura da sexta é
cada vez mais, conforme o conjunto de obras que se in- basicamente objeto de ornamentação. Apresenta-se aci-
terligam avança em seu próprio discurso. ma (Ex.8) a ocorrência fundamental do processo, no c.14,

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bem como outra manifestação, no 30. Contudo, muitos por outras alturas e seguida, após, por Si dobrado be-
pontos da peça poderiam também servir de ilustração mol (estabelecendo-se dessa forma outro salto de sexta
(como atestam os c.49-50 e c.97, dentre tantos outros). menor ascendente). Além desses exemplos (Ex.10), alguns
outros poderiam ser dados (c.11-12, 58-59, 70-71).
Chegando-se ao décimo Estudo, em Fá menor, vê-se que
seu primeiro tema tem um dos seus traços mais mar- Finalmente, verifica-se a destacada presença, no últi-
cantes no salto ascendente de sexta (menor) antecedido mo Estudo (Chasse-neige), em Si bemol menor, do salto
por ênfase na primeira nota que o compõe (comprovam ascendente de sexta antecedido por ênfase na sua pri-
isso os c. 6, c.7-9, c.22-23, c.25-26, c.27-28, dentre ou- meira nota. Em alguns casos, o processo é complexo:
tros). Nele, a nota que principia o salto é cercada cro- Liszt constrói o salto ascendente de sexta maior; mas,
maticamente (Ex.9). entre o ponto de partida — novamente enfatizado ao ser
cercado cromaticamente — e o de chegada, insere uma
No caso da peça no 11 (Harmonies du soir, em Ré bemol apojatura, apojatura esta que por enarmonia também
maior), o perfil subtemático estudado é comum. O início estabelece o salto de sexta, ainda que menor (Ex.11, com
da composição já o patenteia, pelas repetições de Lá be- o salto Lá bemol-Fá e a apojatura Mi bequadro). O fe-
mol (c.1) que antecedem a entrada da mão direita (c.2), nômeno repete-se em pontos como os c.11-12, c.57-58,
esta com nota superior sexta menor (composta) acima c.59-60. Todavia, não bastasse isso, vê-se outros casos,
das reiteradas alturas da outra mão. Logo depois, ainda, em que o salto de sexta com primeira nota enfatizada
mais uma ocorrência se firma: a citada entrada destaca dá-se sem apojatura intercalada (c.14-15 e c.52, por
posteriormente Ré bemol, nota superior que é cercada exemplo), de modo direto, portanto.

Ex.9 – Estudo no 10 de Liszt (c.6-7).

Ex.10 – Estudo no 11 de Liszt (c.1-2).

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Ex.11 – Estudo no 12 de Liszt (c.9-10).

O que se vê nesses sete Estudos, destarte, é um processo Por seu turno, no segundo par, que corresponde às com-
coesivo que vai muito além daquele sugerido pelo mero posições no 11 e no 12, há planos tonais que se aproximam
encadeamento tonal do volume, pois garante que os diante da retrogradação e da transposição. Afinal, pode-
materiais das peças firmem conexões — tênues, afinal, se sintetizar o percurso harmônico do Estudo no 11 por
porque jamais ocorre entre as composições situação ób- Ré bemol maior (início), Sol maior (a partir do c.38), Mi
via como a reaparição (ou a reformulação) de um tema. maior (58) e Ré bemol maior (98); e o caminho do no 12 se
Tais materiais acima discutidos traem transformações, estabelece através de Si bemol menor (início), Ré bemol
se comparados entre si; grifam um princípio gerador co- maior/menor (9), Mi maior (25) e Si bemol menor (36).
mum, cujos resultados, plurais, apontam para a abstra- Vê-se ainda, nesse contexto, que há dois centros comuns
ção. Esse princípio é de natureza subtemática. às peças, Ré bemol e Mi.

4 – Considerações finais Por fim, deve-se acrescentar que no volume de Liszt não
Outros processos coesivos poderiam ser adicionados à há apenas coesão (justificada em materiais particulares)
grande união múltipla aqui estudada, formada pelas sete envolvendo as últimas sete peças. Outras relações de in-
últimas composições dos Estudos de execução transcen- tegração encontram espaço nas primeiras composições
dental. Concernem a dois pares de peças e fundamen- dos Estudos de execução transcendental (tratando exata-
tam-se basicamente em relações harmônicas. mente delas o segundo trabalho que consta das Referên-
cias deste artigo). Assim, ainda que as últimas sete cria-
No primeiro par, formado pelos Estudos no 7 e no 8, há ções apresentem o mais notável fenômeno subtemático
algo além da aproximação por tonalidades relativas, pois do livro — que lhes caracteriza e não ocorre nas peças
os dois temas do no 8 (principiando o primeiro deles no anteriores —, os Estudos de execução transcendental es-
c.59 e o segundo no c.85) constroem-se inicialmente na tabelecem um processo maior, envolvendo suas doze par-
tonalidade do no 7, isto é, Mi bemol maior. Essa anomalia tes. Os desdobramentos (inclusive formais) dessa grande
numa estrutura que no geral dialoga com a forma-sonata associação em muito transcendem as dimensões destina-
parece relacionar-se diretamente com a tendência de in- das ao presente texto.
tegração das composições do livro.

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Referências
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(Doutorado em Comunicação e Semiótica) — Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
BENTO, Daniel, ZAMPRONHA, Edson. Coesão discursiva nos Estudos de execução transcendental de Liszt: primeiras seis
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2007, São Paulo. Anais... São Paulo: ANPPOM/IA-UNESP, 2007. p.1-9. CD-ROM.
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ROSEN, Charles. The romantic generation. Cambridge: Harvard university press, 1995.
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WALKER, Alan. Franz Liszt. Ithaca: Cornell university press, 2004. 3v.
WATSON, Derek. Liszt. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1994. (Estante de música).

Notas
1 Catálogo de obras de Liszt organizado por Humphrey Searle (1915-1982).
2 ‘O título faz referência a quarenta e oito peças, dando a entender que as doze então publicadas seriam apenas o primeiro de
quatro volumes. Todavia, os outros três volumes jamais foram elaborados.
3 Ocorre aqui, como se pode ver, questão similar à do volume de 1826: Liszt assume um número de peças (vinte e quatro em
1837) que não corresponde ao efetivamente encontrado na publicação. Assim, mais uma vez se supõe que tenha planejado uma
continuação (através de volume posterior), nunca consumada.
4 A maior alteração sem dúvida diz respeito à total exclusão, em versões posteriores, dos materiais da composição no 11 de 1826.
Em função dessa eliminação, Liszt transpõe para Ré bemol maior as idéias da peça no 7 desse ano (originalmente em Mi bemol
maior), a partir disso chegando a um outro Estudo no 11 em 1837, que nutrirá a composição correspondente de 1851. Paralela-
mente, elabora novo material para ocupar o lugar da transposta composição no 7, como comprova o volume da década de 1830
— que também nesse caso serve de base para o da década de 1850.
5 Vinculada a pesquisa de Pós-Doutorado atualmente desenvolvida pelo autor no Instituto de Artes da UNESP, com bolsa da FA-
PESP. Em seu primeiro estágio, a pesquisa é supervisionada pelo compositor Edson Zampronha; após, passa a ser pelo atual
diretor do Instituto, Marcos Pupo Nogueira.
6 A transformação temática pode ser definida como uma técnica baseada tanto na variação quanto no desenvolvimento de estrutu-
ras temáticas. Por meio dela, temas diferentes ou contrastantes se revelam, após observação mais atenta, manifestações de um
mesmo componente criativo.
7 Parte de As orientais (Les orientales), obra de Hugo publicada em 1829.
8 Como a segunda das Duas lendas (S 175, 1863): Lenda de São Francisco de Paula marchando sobre as ondas.
9 Dahlhaus menciona a “quarta” cromática descendente como elemento integrador (1993, p. 209); mas a estruturação exclusiva
desse intervalo não é imprescindível na obra.
10 Afinal, “tema” pressupõe a cristalização de uma proposição intervalar-rítmica — nem apenas intervalar nem apenas rítmica.
11 Todavia, nessa última harmonia há alguma divergência não mencionada por Dahlhaus (1993, p. 216), se se comparar o c.15 como
c.4. Neste, vê-se dominante com sétima em estado fundamental; naquele, dominante com sétima em primeira inversão.
12 A suíte de variação caracteriza-se por relações unificadoras entre suas diferentes peças, relações que podem concernir a mate-
riais motívicos ou a planos tonais aparentados.
13 Originalmente parte do Op.130.

Daniel Bento é Professor pesquisador do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista, com bolsa de Pós-Dou-
torado da FAPESP. Seus trabalhos publicados nos últimos anos vêm envolvendo interligações entre a análise musical, a
estética e a performance. Bacharel em Composição e Regência pelo citado Instituto, é também Mestre (bolsa CNPq) e
Doutor (bolsa FAPESP) em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na graduação,
sua pesquisa de Iniciação Científica (bolsa FAPESP) foi premiada no XI Congresso de Iniciação Científica da UNESP (1999)
e tornou-se o livro Beethoven, o princípio da modernidade (Annablume/FAPESP, 2002). Seu próximo livro — A Nona sin-
fonia e seu duplo — será publicado em breve pela Editora da UNESP.

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MARUN, N. O modernismo no estilo musical tardio de Gabriel Fauré... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.34-42.

O modernismo no estilo musical tardio de


Gabriel Fauré: aspectos estilísticos e formais
do Primeiro Movimento do Deuxième
Quintette pour Piano et Cordes Op.115
Nahim Marun (UNESP, São Paulo, SP)
nmarun@uol.com.br

Resumo. Análise dos aspectos estilísticos da última fase composicional de Gabriel Fauré, focando sobre aspectos
harmônicos, contrapontísticos, rítmicos e formais encontrados no Primeiro Movimento do Deuxième Quintette pour
Piano et Cordes Op.115.
Palavras-chave: Gabriel Fauré, análise musical, estilo musical, música de câmara, interpretação musical.

The modernism in the late Gabriel Fauré’s musical language: stylistic and formal features of the
First Movement of the Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op.115

Abstract. Analysis of Gabriel Fauré’s late musical style, with focus on the harmony, counterpoint, rhythm and formal
structure of the First Movement of the Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115.
Keywords: Gabriel Fauré, musical analysis, musical style, chamber music, musical performance

1. Introdução 2. O amadurecimento artístico e os dois


Gabriel Fauré (1845-1924) vivenciou uma época de gran- Quintetos para piano e cordas
des mudanças no pensamento musical ocidental. Ao longo Segundo ORLEDGE (1979, prefácio), podemos dividir a
dos anos, o compositor absorveu essas transformações e vida e obra de Gabriel Fauré em três fases criativas. O
construiu lentamente um estilo musical original, comple- primeiro período de 1860 a 1885; o segundo período de
xo e refinado. Sua música transborda uma grande “since- 1885 a 1906 e o último período de 1906 a 1924. Fre-
ridade artística”. Esse conceito, renegado por sua aparente qüentemente mencionado como um dos principais repre-
ausência de valor científico, surgiu resgatado por CABAL- sentantes do movimento romântico francês, o compositor
LERO (2001, p.11-57), no livro Fauré and French Musical é bastante reconhecido pelos trabalhos de sua primeira
Aesthetics. No primeiro capítulo dessa obra, intitulado The fase “romântica”, que figuram com relativa freqüência
Question of Sincerity, demonstra-se a importância capi- nos programas de concertos dentro e fora da França.
tal desse parâmetro de valor para Fauré e para toda uma Como exemplo desse primeiro período, podemos citar a
geração de artistas franceses do início do século XX. O Ballade Op. 19 (1881), composta originalmente para pia-
autor cita as próprias palavras Fauré: “Há certas obras que no solo e orquestrada mais tarde por sugestão de Franz
não necessitam ser catalogadas como arcaicas ou moder- Liszt (1811-1886), a Premier Sonate pour Piano e Violon
nas, porque elas são belas e sinceras.” (CABALLERO, 2001, Op. 13 (1875), o Premier Quartour avec Piano Op. 15
p.16). Charles Koechlin (1867-1950) assim se referiu a seu (1876-9), algumas canções como Après un Rêve Op. 7 no.
mestre: suas sonatas “me iluminaram com luz serena e 2 (1878), Automne Op. 18 no. 3 (1878), Notre Amour Op.
absoluta sinceridade”. (CABALLERO, 2001, p.18). 23 no. 2 (1879) e os primeiros opus das treze Barcarolas e
dos treze Noturnos para piano solo.
Neste artigo veremos uma análise de vários elementos
importantes da linguagem musical tardia de Fauré e res- No entanto, são nos trabalhos da segunda e terceira fases
saltaremos a importância capital do seu estilo para a pro- composicionais que sua linguagem adquire uma força ar-
dução estético musical do século XX. tística sem precedentes. Segundo COPLAND (1924/1991,

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010 Recebido em: 20/01/2009 - Aprovado em: 02/10/2009
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MARUN, N. O modernismo no estilo musical tardio de Gabriel Fauré... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.34-42.

p.49), o longo período de amadurecimento, necessário para liderar um movimento para a remoção do “não essencial”
depurar a linguagem de Fauré, injustamente tornou-se um da música, que se tornou uma tendência importante para
fator para lançar sua obra a um relativo esquecimento. Tal- a vanguarda musical do pós-guerra 1914-18.
vez o público e a crítica parisienses dessa época estivessem
grandemente seduzidos pelo entretenimento dos années No domínio dos quintetos de corda com piano, Fauré
folles, ou pela avalanche de experimentação ousada trazi- contribuiu com duas obras primas para o gênero: O Pre-
dos pelos jovens compositores e pelas influências das cul- mier Quintette pour Piano et Cordes Op. 89 em Ré menor
turas extra-européias. A discreta modernidade da lingua- (1906) e o Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op.
gem de Fauré do último período não lhe trouxe o merecido 115 em Dó menor (1921). Segundo SMALLMAN (1996,
reconhecimento. No mencionado artigo, publicado exata- p.113), tais obras demonstram uma pureza clássica de
mente no ano da morte de Fauré, o jovem Aaron Copland estilo e um notável equilíbrio. Fauré expande sua técnica
nos chama a atenção para as grandes inovações presentes musical, impregnando esses quintetos de uma nova in-
no trabalho tardio de Gabriel Fauré. Copland considerou tensidade, constantemente emocional, porém carregados
Fauré como o “Brahms da França”, explicando que “não de moderação e contenção. Segundo ORLEDGE (1979,
significa absolutamente que (Fauré) imite Brahms, pois ele p.314), Eugène Ysaÿe (1858-1931), com o seu quarteto e
possui um gênio, um estilo particular e uma técnica tão o próprio Fauré como pianista, deram a primeira audição
perfeita quanto o mestre alemão.” do Premier Quintette pour Piano et Cordes Op. 89 no Cer-
cle Artistique de Bruxelas, no dia 23 de Março de 1906.
É muito interessante buscar alguns dos fundamentos que Segundo SMALLMAN (1996, p.114), o grande violinista
originaram essa constatação e analisar a ambigüidade assim descreveu a natureza essencial do pensamento do
musical presente na obra de ambos os compositores - compositor nessa obra: “total rejeição do exibicionismo”
Brahms e Fauré - considerando-se suas muitas intersec- e uma habilidade para criar uma “música absoluta, no
ções estéticas. Em artigo da Current Musicology, ARNO- mais puro sentido da sua expressão”. Conforme o catálo-
NE (2006) discute a música de Brahms e a ambigüidade go de ORLEDGE (1979, p.323), o Deuxième Quintette pour
inerente aos elementos de sua música. Podemos concluir Piano et Cordes Op. 115 foi estreado na Société Nationa-
que vários pontos de vista defendidos pelo autor pode- le de Paris em 21 de Maio de 1921, com Robert Lortat
riam ser igualmente aplicados à música de Fauré, como (piano), André Toumet e Victor Gentil (violinos), Maurice
por exemplo, a pouca diferenciação de texturas entre a Vieux (viola) e Gérard Hekking (violoncelo).
melodia-acompanhamento e a relativização de parâme-
tros formais, métricos e harmônicos. Para citar algumas
passagens específicas, vejamos as típicas hemíolas tão 3. Algumas particularidades da harmonia
exploradas por Brahms, que aparecem insistentemente no empregada por Gabriel Fauré:
quarto movimento do Deuxième Quintette pour Piano et Segundo GERVAIS (1971, p.272-3) comparando-se a lin-
Cordes Op. 115 e o tratamento da harmonia em ambos os guagem harmônica de Debussy e Fauré observamos que
autores que evitam sistematicamente as posições funda- ao contrário de Debussy, “Fauré reuniu modalidade e to-
mentais dos acordes. No caso específico de Fauré, a fusão nalidade numa fusão tão íntima que elas formam uma
da tonalidade com os modos eclesiásticos confere uma única e perfeita linguagem harmônica”.
originalidade particular ao seu sistema harmônico. Ainda
podemos constatar em ambos os compositores, muitos Sabe-se que na época de Fauré, o uso dos modos já não
exemplos de texturas musicais que fundem admiravel- era uma inovação dentro do sistema tonal. Podemos
mente bem as tramas da melodia e do acompanhamento. assinalá-los já em Beethoven (Heiliger Dankgesange),
em César Frank (Prélude, Choral et Fugue) e em diversas
Segundo CABALLERO (2001, p.26), Émile Vuillermoz, que obras de Chopin (a exemplos das Mazurcas, Concertos
fora um dos alunos ilustres de Fauré, escreveu crítica so- e Baladas), para citar somente alguns exemplos. Porém,
bre o Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115 na maioria dos casos, os modos gregorianos eram incor-
em 1921 e endereçou, em suas entrelinhas, uma crítica porados em momentos específicos para obtenção de um
severa ao “grupo dos seis”. Assim se expressou Vuillermoz: efeito característico. Na música de Fauré, no entanto,
“Nos seus quatro movimentos há mais incorporações de ocorre uma total integração destes modos ao sistema to-
modernidade do que em todas as bandeiras agitadas por nal, revigorando e transformando a percepção da própria
certos aprendizes em música, ansiosos em estabelecer tonalidade. Segundo LONG (1981, p.21), a habilidade em
uma revolução em benefício próprio”. trabalhar com estes modos teve origem nos dez anos de
estudos rigorosos que o compositor realizou na tradicio-
Segundo COOPER (1951, p.141), a partir de 1907, as obras nal École Niedermeyer de Paris, conhecida por preparar
de Fauré praticamente renunciam à cor, e até mesmo a alunos para o ofício de mestres cantores e organistas.
escrita ornamental pianística, típica de sua primeira fase,
foi progressivamente modificada. Ainda segundo COOPER A técnica composicional de Fauré utiliza-se de escalas
(1951, p.152), “o conteúdo intelectual tornou-se denso, tonais e modais sem levar em consideração suas dife-
as harmonias cada vez mais elípticas, as linhas melódi- renças e polaridades. O compositor criou uma lingua-
cas cada vez mais severas, econômicas e construídas com gem que funde escalas semelhantes, ou seja, considera
menos notas.” Fauré foi um dos primeiros compositores a aparentadas as escalas com polaridades comuns. Muitas

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vezes o compositor combina até mesmo dois tetracor- Lá bequadro - no compasso 181 - insinua uma modula-
des distintos, um de cada modo musical, criando assim ção para o modo lídio, se relacionarmos a frase anterior
uma nova escala musical. Outras vezes, Fauré enfraque- à tonalidade de Mi bemol maior que é confirmada logo
ce o efeito da nota sensível, abaixando-a em meio tom. a seguir; ou indica uma passagem pelo modo dórico se
Segundo JOHANSSON (1999, p.63), “paradoxalmente, o relacionarmos a frase à tonalidade de Dó menor, tônica
elemento que parece constituir obstáculo principal para da obra. Uma típica cadência plagal aparece no compasso
uma melhor apreciação das obras tardias de Fauré - o 182-183. Podemos observar também o emprego da enar-
estilo harmônico singular e muito complexo - constituem monia da nota Mi bemol - Ré sustenido, que imediata-
também sua qualidade mais encantadora.” Ainda segun- mente conduz a tonalidade para outra região.
do esse autor, “a linguagem harmônica de Fauré parece
resumir e sintetizar todos os recursos e todas as possibi- Fauré usou com muita parcimônia a escala de tons inteiros,
lidades do sistema harmônico tonal, e ao mesmo tempo normalmente aplicando-a em passagens curtas ou então
incorpora os elementos mais antigos da música modal.” A integradas ao contexto tonal-modal. Podemos observá-la
cadência plagal, justamente por sua característica modal no exemplo seguinte, na linha melódica. Tal escala apa-
e ausência da nota sensível, tornou-se um dos meios de rece harmonizada com acordes de configurações seme-
articulação e de conclusão musicais favoritos de Gabriel lhantes aos acordes clássicos de Jean Philippe Rameau
Fauré. Podemos observá-las na articulação de fraseado (1683-1764), ou seja, os arquetípicos acordes de quinta e
nos compassos 9, 21 e 182 do Deuxième Quintette pour sexta acrescentada. Percebemos mais uma vez, a criação
Piano et Cordes Op. 115. No exemplo a seguir, em poucos de um sistema musical híbrido e elástico que funde magis-
compassos extraídos desse quinteto, podemos constatar tralmente os princípios da tonalidade clássica a elementos
três procedimentos típicos da linguagem de Fauré: a nota musicais novos, nesse caso, a escala de tons inteiros.

Ex. 1: Gabriel Fauré. Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, 1º. Mov, c.179-186.

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Ex. 2: Gabriel Fauré. Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, 1º. Mov, c. 73-77. Escalas de tons inteiros na
linha melódica harmonizadas tonalmente

Ex. 3: Gabriel Fauré. Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, 1º. Mov, c. 171-176. Uso de cromatismo em
cadeia e de acordes alterados

A profunda integração desses sistemas de composição e A harmonia de Fauré floresceu dentro do equívoco e não
escalas diversas provoca no ouvinte uma sensação auditi- se explica completamente ou corretamente partindo-se de
va inovadora de dilatação do sistema tonal. JOHANSSON um só ponto de vista analítico. JOHANSSON (1999, p.69)
(1999, p.63-64) defende a idéia que a linguagem de Fau- assinala que o equívoco harmônico em Fauré não se con-
ré “escapa a todos os métodos convencionais de análise figura simplesmente pelo uso de acordes individuais que
harmônica. A análise tradicional em algarismos roma- se resolvem de maneira inesperada, mas sim pelo empre-
nos, mesmo quando alargada incluindo acordes altera- go sistemático de um equívoco sustentado que resulta em
dos ou cromáticos, é claramente insuficiente”. A “análise uma série de enganos individuais, provocando uma se-
schenkeriana indica com clareza a longa direção tonal, qüência de ambigüidades sucessivas que envolvem a tona-
mas parece ser incapaz de explicar as origens de certas lidade e sua direção em um complexo caleidoscópio tonal.
complexidades harmônicas presentes no primeiro plano.”
A principal falha de muitos dos métodos analíticos é a Segundo ORLEDGE (1979, p.246), Fauré explora a am-
exigência de decisões categóricas, excluindo as interpre- bigüidade e a flutuação harmônica através do uso de
tações alternativas, e impondo às situações equívocas acordes alterados, ou seja, acordes diminutos ou aumen-
uma só possibilidade de resolução. tados que muitas vezes se encadeiam dando a impressão

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MARUN, N. O modernismo no estilo musical tardio de Gabriel Fauré... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.34-42.

de “modulações” auditivas que de fato não ocorrem. As tica. Fauré se influenciou muito pouco pela poderosa rítmi-
alterações são empregadas em todos os graus da escala, ca da primeira fase de Igor Stravinsky (1882-1971) ou Béla
com uma predileção pelos III e VI graus. JOHANSSON Bartók (1910-1949). Entre as poucas exceções, podemos
(1999, p.78) nos confirma essa informação, assegurando citar a Fantaisie Op. 111 pour Piano et Orchestre.
que muitos dos encadeamentos harmônicos audaciosos
de Fauré não se confirmam em modulações definitivas, No Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, no-
mas apresentam-se somente como sugestões fugazes ta-se o uso sistemático de ligaduras aplicadas do tempo
desse procedimento tonal. Freqüentemente “existe a fraco ao forte, evitando desta maneira o apoio regular do
sensação de estarmos muito longe do nosso ponto de primeiro tempo. Segundo FORTASSIER (1976, p.5), há uma
partida, porém na verdade, estamos somente a um passo tendência em Fauré em evitar o ritmo iambo que, segundo
da resolução”. MEYER e COOPER (1960, p.6), é um dos cinco agrupamen-
tos rítmicos, tradicionalmente associados com a prosódia.
4. Considerações sobre o contraponto e rit- Segundo FORTASSIER (1976, p.5), o uso restrito do ritmo
mo: iambo fraco/forte pelo compositor reflete uma tendência
Segundo ORLEDGE (1979, p.255-258), no segundo e ter- típica da língua francesa, fato evidenciado na estruturação
ceiro períodos, o compositor criou uma técnica inovadora rítmica das suas mélodies para canto e piano.
onde ocorre uma interpenetração entre o ritmo melódico
e o ritmo harmônico. Geralmente a tensão da harmonia Pode-se notar até mesmo uma tendência no compositor
aumenta enquanto a tensão melódica decresce ou vice- em abolir a barra de compasso; porém ele nunca a aban-
versa, criando uma alternância paradoxal entre equilíbrio donou de fato, como fizeram alguns de seus contempo-
e conflito. Segundo MELLERS (1947, p.61-2), “Fauré criou râneos. Segundo ORLEDGE (1979, p.259), Fauré freqüen-
um idioma de potência quase bachiana por meio de gran- temente construía frases com cruzamento de vozes e
de vigor na linha melódica e de um domínio rigoroso so- sentenças musicais de métrica irregular, criando desse
bre o baixo. A melodia e o baixo são interdependentes” modo, um novo artifício para não evidenciar a métrica.
(exemplo 4).
Segundo VUILLERMOZ (1983, p.136), “a linha melódica 5. Considerações sobre a estruturação musical:
de Fauré caracteriza-se geralmente por frases longas Fauré desenvolveu e expandiu sua herança musical, assi-
e expansivas com intervalos largos”. Por outro lado, milando e transformando os gêneros musicais e estabe-
segundo JOHANSSON (1999, p.78), pequenos movi- lecendo um constante diálogo com o passado. O compo-
mentos contrapontísticos, geralmente de um tom ou sitor influenciou-se por J. S. Bach (1685-1750) nas duas
de um semitom no interior da trama harmônica são fugas que fazem parte das Huit Pièces Breves Op. 84. Se-
igualmente muito importantes na música de Fauré. gundo TODD (1990, p.198), o compositor inspirou-se em
Muitas vezes, a re-escritura enarmônica de uma nota Felix Mendelssohn (1809-1847) nos Trois Romances sans
a insere dentro de um novo contexto e lhe confere um Paroles Op. 17 e ainda segundo GILLESPIE (1972, p.305),
novo significado. em Robert Schumann (1810-1953) no Thème et Varia-
tions Op. 73 - comparar com os Estudos Sinfônicos Op.
Nas suas últimas obras, Fauré procurou não evidenciar a 13 - em Frédéric Chopin (1810-1849) nos Impromptus,
métrica e os acentos convencionais dos tempos fortes. Para Nocturnes e Barcarolles e em Franz Liszt (1811-1886), ao
obtenção desse efeito, o compositor utilizou ritmos pouco inspirar-se na Sonate en Si menor para compor a forma
marcados e explorou uma intrincada escrita contrapontís- cíclica da Ballade Op. 19.

Ex. 4: Gabriel Fauré. Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, 1º. Mov, c. 119-123. Intrincado contraponto

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MARUN, N. O modernismo no estilo musical tardio de Gabriel Fauré... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.34-42.

Ex. 5: Gabriel Fauré. Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, 1º. Mov, c.265-276. Coda: contraponto com
linhas melódicas de tessitura ampla

Ex. 6: Gabriel Fauré. Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, 1º. Mov, c. 52-56. Intenso contraponto e baixos
em contratempos que minimizam os apoios em tempos fortes e emprestam leveza ao discurso

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Ex. 7: Gabriel Fauré. Deuxième Quintette pour Piano et Cordes Op. 115, 1º. Mov, c. 124-131. Fugato

Segundo ORENSTEIN (1991, p.123), Fauré adotou uma equanimidade entre o primeiro e segundo temas e entre
simetria tonal clássica ao estabelecer as relações en- o piano e as cordas.
tre os movimentos internos da maioria das suas obras
de câmara. No Deuxième Quintette pour Piano et Cor- Nós poderíamos ir adiante destas constatações e acres-
des Op. 115, o Primeiro Movimento está em Dó menor/ centar que Fauré desenvolve esse movimento aplicando
maior, o Segundo Movimento em Mi bemol maior, o Ter- vários procedimentos típicos das formas musicais Clássi-
ceiro Movimento em Sol maior e o Quarto Movimento cas e Pré-Clássicas, aproximando-se do Concerto Grosso
novamente em Dó menor/maior. e das Árias em Ritornello do período Barroco. Segundo
MICHELS (1985, p.123), uma das instrumentações típi-
Em seguida, veremos em maiores detalhes uma proposta cas do Concerto Grosso se desenvolveu utilizando como
de análise do autor deste artigo, que demonstra como o formação dois violinos, violoncelo e contínuo. Nesse gê-
Primeiro Movimento do Deuxième Quintette pour Piano nero, o Tutti (ou ripieno) expõe o tema na tonalidade da
et Cordes Op. 115 se relaciona com as formas Pré-Clás- tônica, ou próxima dela, e os solistas tocam os episódios
sicas de composição. Seu desenvolvimento ininterrupto em tonalidades mais afastadas ou mesmo modulantes,
emprega vários recursos polifônicos, como os fugatos explorando motivos temáticos livres.
(exemplo 7) - e uma escrita pianística que remete ao
Baixo Contínuo do período Barroco. Existe também um parentesco tonal com a Forma Sona-
ta no plano geral das tonalidades, como por exemplo, as
relações do Tema C que apesar da instabilidade modulan-
5.1. Análise formal do Primeiro Movimento te, aparece inicialmente polarizando Si bemol que é uma
tonalidade relacionada à dominante menor. Na ultima
do Deuxième Quintette pour Piano et Cor- exposição, o mesmo tema aparece polarizando Mi bemol,
des Opus 115. que é uma tonalidade relacionada à tônica.
Segundo SMALLMAN (1996, p.119) o Primeiro Movi-
mento dessa obra adota um “processo de desenvolvi- Os temas com função estabilizadora citados por Small-
mento contínuo, no qual o tema principal (compassos man são o Tema A e suas pequenas variantes, que apare-
83, 177 e 267), anuncia o início de novas seções e pos- cem em tonalidades próximas do centro tonal Dó menor.
sui função estabilizadora, e não de recapitulação”. Em Vejamos, a seção iniciada no compasso 83 está em Sol
crítica para a revista Musical Times, HOPKINS (1974, menor, a iniciada no compasso 177 em Mi bemol Maior.
p.44) observou que nos quintetos com piano, Fauré re- Portanto, podemos inferir que a sensação musical de
nunciou aos contrastes dinâmicos da Forma Sonata. O solidez deriva principalmente de pilares de tonalidades
Primeiro Movimento do Deuxième Quintette pour Piano construídas sobre as notas fundamentais Dó, Mi bemol e
et Cordes Op. 115 é construído como um “fundo cons- Sol, que por sua vez compõem a tríade do tom principal
tante de fluxo contínuo” que valoriza essencialmente a do quinteto: Dó menor.

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5.2. Seções estruturais c. 177-185:


Terceiro pilar tonal:
c.1-34 Primeiro pilar tonal:
Quarta exposição do Tema A
Exposição Tema A
Nessa exposição o material temático aparece, pela pri-
Apresentação temática da viola, seguida pelos solos do
meira vez, em uníssono tocado por todas as cordas e
violoncelo, do segundo e primeiro violinos. O tema prin-
acompanhado pelo contínuo do piano. Fauré explora uma
cipal é derivado da célula de acompanhamento contínuo
intensidade crescente no material temático.
apresentado pelo piano, o que configura uma técnica de
desenvolvimento temática típica do Classicismo musical. c. 186-192:
Tema A
c. 35-44:
Há uma evidência cada vez maior da fusão dos três ele-
Tema B
mentos temáticos do movimento:
Tema breve, de influência eminentemente bachiana. Nes-
Tema A / Tema B / Tema C
se momento esse material musical é exposto exclusiva-
Iniciando a terceira região de desenvolvimento modulan-
mente pelas cordas.
te, observar os fragmentos ou antecipações do Tema B no
c. 45-78: violoncelo.
Tema C
c. 194-210:
Desenvolvido pelo piano. O material melódico é derivado
Tema B aparece, pela primeira vez, acompanhado pelo
do Tema A. A técnica de derivar temas de um original, apli-
piano, ocorrência que reforça a reconciliação instrumen-
cando-os em diferentes momentos da estrutura musical é
tal e temática dos elementos musicais e aumenta a inten-
característica do Estilo Clássico.
sidade expressiva e emocional.
Essa é a primeira região de desenvolvimento modulan-
te, onde os solistas se alternam em constante diálogo. c. 210-249:
O contraste de caráter entre os Temas A e C (típicos da Tema C
Forma Sonata) acontece por suas diferenças de densidade Material do Tema C com interferências do Tema B.
e de estabilidade harmônica. A tonalidade apresentada pelo Tema C na re-exposição
prepara o advento de Dó Maior, tonalidade homônima de
c. 79-82: Dó menor.
Tema utilizado para articular a forma. Caráter de passa-
gem, estático. c. 225-248:
Tema A + Tema B
c. 83-107: Confirma-se cada vez mais a reconciliação dos temas
Segundo pilar tonal: Segunda exposição do Tema A . principais. Reminiscências do Tema A nos compassos 231-
Apresentação temática do primeiro violino com a vio- 236. No compasso 240, sentimos que Fauré se direciona
la, seguidos imediatamente pelo segundo violino e vio- para a coda preparando a terça de picardia, que finalizará
loncelo. O tema é desenvolvido em pares pelas cordas e o movimento na luminosa tonalidade de Dó maior.
intensificado pela expressividade, dos contrastes e das
modulações. A escolha de tonalidades com poucos acidentes é típica
da última fase do compositor, a exemplo da nona e déci-
c. 108-124: ma Barcarolles em Lá menor, da última Barcarolle em Dó
Terceira exposição do Tema A maior, do décimo segundo Nocturne em Mi menor e da
O material temático é apresentado novamente com nova Fantaisie pour Piano et Orchestre Op. 111, em Sol maior.
textura mais leve e pela primeira vez, desenvolvido pelo
piano em diálogo com as cordas. c. 249-266:
Material de articulação, semelhante ao compasso 79 – 82.
c. 125-134:
Tema B c. 267-337:
Material musical bachiano apresentado no compasso 35 Quarta região de desenvolvimento.
e exposto ainda exclusivamente pelas cordas, em fugato. Segundo ROSEN (1987, p.120), na Forma Sonata, “pou-
co depois do regresso da tônica há com freqüência
c. 135-160:
uma seção secundária de desenvolvimento que pode
Tema C
ser bastante extensa e conter quase sempre uma re-
Textura musical ainda mais fluida e transparente que na
ferência à subdominante.” Rosen continua afirmando
seção da exposição. À maneira dos episódios que com-
que “esta seção utiliza técnicas de desenvolvimento
põe o Concerto Grosso do período Barroco, os solistas se
harmônico e motívico, não para prolongar a tensão,
alternam em uma segunda região de desenvolvimento
mas para reforçar a resolução sobre a tônica.” Ecos
modulante.
desse recurso estão presentes nessa seção final do Pri-
c. 161-176: meiro Movimento do Deuxième Quintette pour Piano
Articulação formal. Desenvolvimento cromático do ma- et Cordes Op. 115. Fauré apresenta uma espécie de de-
terial de 79-82. senvolvimento secundário que passa por algumas to-

41
MARUN, N. O modernismo no estilo musical tardio de Gabriel Fauré... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.34-42.

nalidades relacionadas com o sentido anti-horário do 6. Conclusão


ciclo das quintas, explorando tonalidades com polari- Este artigo pretende colaborar para o estudo do estilo
dades em fundamentais como Fé, Ré b, Lá b e ao mes- tardio do compositor francês Gabriel Fauré. A arte com-
mo tempo desenvolve magistralmente todo o material posicional de Fauré reflete a maturidade do sistema tonal,
temático sobre o “contínuo” do piano. Nessa seção, um expandindo consideravelmente seus limites e dialogando
Tutti funde e transforma todos os elementos temáticos com toda a história da música ocidental.
em moto perpetuo, incluindo-se os materiais mais sim-
ples como aqueles utilizados para a articulação formal, Retomando o antigo e belo conceito resgatado por Carlo
apresentados no compasso 79, 161 e 249. Fauré retor- Caballero, a grande “sinceridade artística” de Fauré pro-
na ao centro tonal de Dó através de Ré bemol maior, piciou a criação de uma síntese de elementos aparente-
com insistência na região da subdominante Fá maior/ mente opostos e paradoxais, que são revelados por todos
menor, uma clara alusão ao arquetípico acorde de sex- os parâmetros de sua obra, sejam eles técnico-musicais,
ta napolitana: Fá, Lá b, Ré b. sejam eles emocionais. A técnica composicional de Fau-
ré fundiu magistralmente a tonalidade e a modalidade,
c. 337-360: o contraponto e a harmonia a melodia e o acompanha-
Uma cadência perfeita no compasso 336 articula defi- mento. Sua estética procurou conciliar a angústia e a se-
nitivamente a região da coda final, explorando cada vez renidade, os valores apolíneos e dionisíacos, antecipando
mais a volta e o caráter enfático do Tema A, que aparece assim, muitas das questões estéticas da segunda metade
confirmado na tonalidade “de picárdia” - Dó maior. do século XX.

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Nahim Marun recebeu vários prêmios por sua carreira artística, entre eles, o Prêmio Melhor Solista do Ano da Associação
Paulista dos Críticos de Arte. Suas gravações em CDs e DVDs receberam o Prêmio Diapason d’Or e o Prêmio Bravo! de
Cultura “Melhor CD de Música Erudita de 2006”. Estudou análise com Koellreutter no Brasil e com Carl Schachter nos
EUA. Dedicou-se por vários anos ao estudo da obra de Gabriel Fauré sob orientação do pianista americano Grant Johan-
nesen (pioneiro na gravação integral da obra para piano desse compositor). É professor de piano na Universidade Estadual
Paulista/UNESP de São Paulo desde 1998, atuando na graduação e pós-graduação. Doutor em Música pela UNICAMP e
Mestre em Performance pelo The Mannes College of Music de Nova York. Suas próximas atividades acadêmicas incluem
a publicação do livro Técnica Avançada para Pianistas pela Editora da Universidade Estadual Paulista/EDUNESP e Pós-
Doutorado na Universidade Paris-Sorbonne sobre a obra de Villa-Lobos, com orientação de Danièle Pistone, com bolsa da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP.

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GUSMÃO, C. de S.; CAMPOS, P. H.; MAIA, M. E. O. O formante do cantor e os ajustes laríngeos ... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.43-50.

O formante do cantor e os ajustes


laríngeos utilizados para realizá-lo:
uma revisão descritiva
Cristina de Souza Gusmão (UEMG, Belo Horizonte, MG).
tina_gusmao@yahoo.com.br
Paulo Henrique Campos (UEMG, Belo Horizonte, MG)
paulocam@yahoo.com.br
Maria Emília Oliveira Maia (FEAD, Belo Horizonte, MG)
kiumaia@terra.com.br

Resumo: Este estudo descreve, através da literatura da Fonoaudiologia e da Física Acústica, alguns aspectos relacio-
nados à produção da voz, tais como o espectro do som como a frequência fundamental, os harmônicos, os formantes
e também os ajustes laríngeos. A revisão de literatura inclui a descrição anátomo-fisiológica do aparelho vocal, suas
funções e mecanismo para produção vocal. Descreve também os aspectos relacionados à espectografia do som, da
localização dos formantes e de ajustes anatômicos e musculares para se obter o formante do cantor. Este estudo visa
esclarecer conceitos e levantar questionamentos sobre o que ocorre na fisiologia vocal e o que é dito e aceito pelo
senso comum sobre o formante do cantor.
Palavras-chave: voz; formante do cantor; canto; fonoaudiologia; física acústica.

The singer’s formant and the laryngeal adjustments used to realize it: a descriptive review

Abstract: This study describes some voice production aspects, like sound spectrum as the fundamental frequency,
harmonics, the formants and also the laryngeal adjustments through the phonoaudiology and acoustics literature. The
literature review includes the anatomical and physiological description of the vocal apparatus, its functions and the
mechanism for the vocal production. It also describes related aspects of the sound spectrographs, to the formants loca-
tion and to the anatomical muscle adjustments to realize the singer’s formant. This study aims at clarifying concepts
and raising questions about what happens in vocal physiology and what is said and accepted by the common sense
about the singer’s formant.
Keywords: voice; singer´s formant; singing; phonoaudiology; acoustics.

1. Introdução
A voz cantada é considerada uma das mais belas formas que cantores eruditos têm maior preocupação e cuidados
de expressão. O canto é conceituado como uma forma com seu instrumento de trabalho preocupando-se mais
de comunicação através da qual o indivíduo é capaz de com a fisiologia vocal. Por isso iniciaremos este texto
expressar os sentimentos escondidos na alma. abordando alguns aspectos relacionados à produção vo-
cal. Antes, porém, vale revisarmos algumas particularida-
Segundo COSTA e SILVA (1998), é através da fala que des da laringe, determinantes na abordagem da produção
os indivíduos se comunicam melhor e pelo canto se ex- vocal, que por ora nos propomos a realizar.
pressam artisticamente; como se pudessem dividir uma
metade racional para a fala e outra emocional para ser A laringe é um órgão situado na extremidade superior da
transmitida pelo canto. traqueia e na região anterior do pescoço que se conecta,
na parte inferior à traqueia e na superior abre-se à faringe.
Dentre tipos diversos, o canto lírico é reconhecido pela BEHLAU (2001), ZEMLIM (2000) e PINHO (2008) afirmam
sua estética particular, projeção vocal adequada, dinâmi- que o esqueleto da laringe é formado por cartilagens, mús-
ca e qualidade vocal agradável. Desta forma, observa-se culos, membranas e mucosas, como se observa no Ex.1 1.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010 Recebido em: 09/04/2008 - Aprovado em: 05/11/2009
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GUSMÃO, C. de S.; CAMPOS, P. H.; MAIA, M. E. O. O formante do cantor e os ajustes laríngeos ... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.43-50.

2.2. Harmônicos
O sinal sonoro, “a voz” produzida na laringe, é muito com-
plexo, pois é composto por uma frequência fundamental de-
terminada pelo tamanho das pregas vocais, pela velocidade
de vibração e por diversas frequências parciais, que são múl-
tiplos integrais da frequência fundamental. Essas frequên-
cias parciais são conhecidas como harmônicos da frequência
fundamental. Dessa forma, pode-se entender que se a fre-
quência fundamental de um indivíduo é de 100 Hz, ou seja,
as pregas vocais vibram 100 vezes por segundo, a laringe
inclui componentes que são múltiplos integrais de 100, sen-
do encontrados componentes de 100, 200, 300 Hz no sinal
sonoro (ZEMLIN, 2000), como se observa no (Ex. 2)2. Alguns
destes harmônicos, ao chegar às cavidades de ressonância,
possuem compatibilidade com a frequência do trato vocal.
Ex.1 - Vista anterior e lateral da laringe Dessa forma, estes sons que foram transferidos mais facil-
mente pelo trato vocal são amplificados e transformados em
A laringe possui funções importantes para o ser huma- formantes, sendo este o agrupamento de harmônicos (COR-
no, sendo elas a função respiratória, a deglutitória e a DEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007; BEHLAU, 2001). MILLER
fonatória e tem como função principal proteger as vias (1996)3, apud VIDAL (2000) e ZEMLIN (2000), relatam que
aéreas inferiores (BEHLAU, 2001), ou seja, traqueia, pul- o trato vocal é composto pela cavidade oral, faríngea e, às
mão, brônquios e bronquíolos. Além disso age como uma vezes pela cavidade nasal. Já BEHLAU (2001) e PINHO (2003)
válvula denominada pregas vocais, cujo papel é impedir relatam que o trato vocal é composto pela cavidade oral, na-
que corpos estranhos penetrem na laringe com o risco de sal, nasofaringe, orofaringe e laringe, sendo que para estas
causarem alguma infecção. autoras as cavidades nasal e paranasal entram como parte
integrante do trato vocal.
A laringe também tem uma função não-biológica de ex-
trema importância para nós seres humanos, que é a emis-
são do som. Suas pregas vocais são capazes de produzir
som quando o ar que sai dos pulmões (ar expiratório),
passa por entre elas e faz produzir som através da vibra-
ção das mesmas. Desta forma, segundo BEHLAU (2001), o
som produzido pelas pregas vocais amplifica-se ao passar
pelas cavidades situadas acima da laringe, conhecidas
como cavidades de ressonância, sendo elas: laringe, fa-
ringe, orofaringe e nasofaringe.

2. Espectro do som: frequência fundamental,


harmônicos e formantes.
2.1. Frequência fundamental
A frequência fundamental é definida através da veloci-
dade com que as pregas vocais vibram completando uma
Ex.2 - Espectro do som com sua frequência
vibração ou um ciclo vibratório. A frequência fundamen-
fundamental e seus harmônicos.
tal pode ser definida pelo som inicial que as pregas vocais
emitem numa fala habitual, ou seja, a frequência da fala
de um indivíduo, ou também pela vibração de qualquer 2.3. Formante
nota emitida mesmo que essa nota não esteja dentro do O formante é representado pelas frequências naturais de
registro da fala habitual, como exemplo, o canto. ressonância do trato vocal, especificamente na posição
Levando em consideração a frequência da fala habitual, a articulatória da vogal falada. As vogais são identificadas
frequência fundamental depende do sexo, da idade e do pelos seus formantes (BEHLAU, 2001). Os formantes deter-
processo de mudança da voz do indivíduo, que ocorre na minam a qualidade das vogais e contribuem muito para o
puberdade. Mas outros fatores podem interferir tempora- timbre pessoal do cantor (CORDEIRO, PINHO E CAMARGO,
riamente nesse processo, a saber fatores comportamen- 2007). Sendo assim, em uma análise acústica, observa-se
tais, emocionais e orgânicos. que os primeiros cinco formantes são os de maior interesse,
sendo que os três primeiros são responsáveis pela identi-
A frequência fundamental depende diretamente do resul- dade das vogais e possuem características instáveis, já que
tado natural do comprimento das pregas vocais, ou seja, podem apresentar variações de vogal para vogal, enquanto
do tamanho e também da velocidade em que as mesmas que o quarto e o quinto formantes não têm a mesma va-
vibram (BEHLAU, 2001; ZEMLIN, 2000). riação, sendo então considerados estáveis (MARTER, 2005),

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GUSMÃO, C. de S.; CAMPOS, P. H.; MAIA, M. E. O. O formante do cantor e os ajustes laríngeos ... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.43-50.

e são responsáveis pelo timbre pessoal, ou seja, pela quali- Para CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007), o quarto
dade e brilho da voz (BEHLAU, 2001). formante (F4) provavelmente tem ligação com o com-
primento do tubo laríngeo; o (Ex. 4)6 tenta demonstrar
Sobre essa questão, MEDEIROS (2004) ressalta que há este fenômeno.
uma diferença entre o padrão formântico das vogais fa-
ladas em relação às vogais cantadas. O que se observa é
que na vogal cantada há uma distorção do formante, tan-
to acusticamente quanto articulatoriamente em relação
à vogal falada, ocorrendo uma sobreposição do primeiro
formante das vogais [a], [e] e [o]. Dessa forma fica sendo
responsabilidade do segundo formante a diferenciação
acústica dessas vogais, já que não se observa a sobrepo-
sição do segundo formante.

Os formantes, na maioria das vezes, são expressos através


de seu valor médio em Hertz (Hz), ou ciclos por segundo, e
designados por F1, F2, F3... Fn, de modo progressivo (BEHLAU,
2001). De acordo com DINVILLE (1993: 45), “os formantes
são frequências que servem para determinar o timbre”.
DINVILLE (1993) e CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007)
descrevem ainda a localização no trato vocal de cada for-
mante, afirmando que o primeiro formante (F1) ocorre na
cavidade posterior da boca e está em torno de 250 a 700
Hz. DINVILLE (1993) afirma que o segundo formante (F2)
fica situado na cavidade oral entre os valores de 700 a
2.500 Hz. Já CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007) con-
cordam que o segundo formante fica localizado na parte
anterior da cavidade oral.

Segundo as autoras, CAMARGO e CUKIER (2005), o pri-


meiro formante (F1) está relacionado à abertura da boca e
à altura da língua na cavidade oral, e o segundo formante
(F2) tem relação com o deslocamento ântero-posterior da Ex.4 - Esquema da distribuição dos formantes das vogais
língua. Já para SUNDBERG (1987)4, apud BARRICHELO [i], [u] e [a], em tratos vocais distintos em comprimento
(2007), o primeiro formante (F1) é sensível à abertura da e com constrição nos vários locais do trato vocal.
mandíbula, já que quanto maior a abertura da boca, mais
aguda fica a frequência do formante. 3. Formante do cantor
A laringe, através da voz cantada, é o primeiro instru-
Para MAGRI, CUKIER, KARMAN e CAMARGO (2007), as mento musical utilizado pelo ser humano. O cantor trei-
frequências dos três primeiros formantes determinam a nado tem a capacidade de sobressair-se ao som de uma
identidade fonética da vogal, especialmente a dos dois orquestra sem fazer uso de amplificação sonora como o
primeiros. Como se observa no Ex. 35. microfone e sem prejudicar seu aparelho fonador. Desta
forma, obtém uma voz clara, com brilho, rica em har-
mônicos, com boa articulação e vibrante. Na maioria das
vezes, o responsável por alguns destes aspectos é o for-
mante do cantor (CORDEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007).

O formante do cantor é encontrado geralmente em vo-


zes com treinamentos específicos do canto erudito e é
definido pela amplificação sonora das frequências de
2.000, 3.000 e 4.000 Hz, sendo demonstradas no es-
pectro acústico pela junção do terceiro, quarto e quinto
formante. Isso se deve à sua localização na região aguda
e ao elevado pico de amplitude, desta forma, não se tem
a ocorrência de outras vozes ou mesmo dos instrumen-
tos da orquestra (BEHLAU, 2001 e CORDEIRO, PINHO e
CAMARGO, 2007). Segundo FANT (1970)7, apud CORDEI-
Ex.3 - Espectro sonoro da vogal [a] sustentada formando RO, PINHO e CAMARGO (2007), o trato vocal, através do
o formante (barras escurecidas no espectro). controle ativo no canto, pode incrementar de 3 a 5 dB

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GUSMÃO, C. de S.; CAMPOS, P. H.; MAIA, M. E. O. O formante do cantor e os ajustes laríngeos ... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.43-50.

na amplitude das frequencias agudas, além do acrésci- formante depende do comprimento de todo o trato vocal
mo natural de 10 a 15 dB já existente. e da configuração na profundidade da faringe. O autor
defende, também, que o terceiro formante tem ligação
A técnica lírica é utilizada pelos cantores de ópera, por com o movimento da língua. Para CORDEIRO, PINHO e
isso suas vozes apresentam um pico espectral intenso e CAMARGO (2007), o que favorece o aparecimento do for-
largo em torno de 3.000 Hz. É este pico que proporciona mante do cantor é o agrupamento de todas as estruturas
aos harmônicos uma maior amplitude e o agrupamento formando um tubo único, acoplando o terceiro, o quarto
destes harmônicos – os formantes – possibilita o desta- e quinto formante.
que da voz sobre o som da orquestra. Para VIEIRA (2004),
o responsável por este fenômeno é o formante do cantor; Para se obter qualquer formante, é necessária a produção
o autor afirma ainda que a ocorrência deste fenômeno de harmônicos gerados pela mucosa das pregas vocais.
está relacionada ao abaixamento da laringe e o alarga- Sendo assim, os harmônicos só serão amplificados se as
mento da cavidade faríngea, embora este não seja o úni- pregas vocais produzirem os harmônicos correspondentes
co mecanismo existente. à sua faixa de frequência. Com isso, é possível afirmar
que a produção de qualquer formante está ligada à in-
DINVILLE (1991) diz que, para se obter o formante do tegridade da mucosa das pregas vocais, e que patologias
cantor, a laringe deve elevar-se ao atingir um som agu- que levam à diminuição na produção destes harmônicos
do e em seguida descer para o grave. ZEMLIM (2000), dificultam a produção dos formantes, (CORDEIRO, PINHO
por sua vez, afirma que ao se abaixar a laringe ou alar- e CAMARGO, 2007).
gar a faringe, o indivíduo faz com que os formantes fi-
quem mais graves, produzindo então uma voz com um É importante salientar que a intensidade do formante
timbre mais escuro. Portanto, é importante ressaltar que do cantor também ocorre quando o cantor aumenta a
um ajuste vocal controverso, ou que foge da fisiologia intensidade propositalmente, o que significa que uma
vocal, pode prejudicar o aparecimento ou a definição do maneira simples de se criar o formante do cantor é sim-
formante do cantor. Isso explica a grande complexidade plesmente cantar mais forte, ou seja, com mais inten-
deste assunto e as divergências entre os autores sobre sidade. No entanto, isso pode causar vários problemas
um mesmo parâmetro. vocais na maioria das vezes.

SUNDBERG (1974) relata que o formante do cantor – a 4. Os ajustes laríngeos


junção do quarto e do quinto formante- pode ser deno- A deficiência técnica de cantores não treinados, a grande
minado como uma ressonância adicional que diferencia o busca por projeção e brilho na voz e suporte respirató-
canto da fala. É o responsável pela percepção de “brilho” rio deficiente podem acarretar várias tensões musculares
e projeção da voz que possibilita a sua perfeita percep- como, por exemplo, a constrição da musculatura situada
ção na presença de toda uma orquestra. Relata ainda que acima da laringe conhecida como supraglótica, além da
o aparelho fonador isolado já tem sua própria estrutura tensão das pregas vocais e a redução de seu movimento,
formântica. Por isso atua como um ressonador indepen- o que pode muitas vezes explicar a ausência do formante
dente gerando um formante adicional entre o terceiro e do cantor em alguns cantores, (CORDEIRO, PINHO e CA-
o quarto formante. Afirma ainda que o nível de pressão MARGO, 2007).
sonora (NPS) do formante do cantor depende de vários
fatores, dentre eles, o NPS total da emissão. O primeiro, segundo e terceiro formantes definem as
vogais, e o quarto e o quinto formantes definem o tim-
Conforme as perspectivas mencionadas até o presente bre e a qualidade da voz, conhecido como formante
momento, podemos notar que existe controvérsia em do cantor, e essa definição depende da localização do
relação às cavidades onde ocorre o formante do cantor formante no trato vocal. A literatura aponta alguns
e quais estruturas são utilizadas para realizá-los. SUND- ajustes laríngeos corretos para se obter o formante do
BERG (1974) cita que a formação do quarto e do quinto cantor. Nesse contexto, podemos incluir o abaixamen-

Ex.5 - Cartilagem aritenóidea e cartilagem epiglótica se aproximando para fazer a constrição ariepiglótica.

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to da laringe, o alargamento da cavidade faríngea, a 5. Discussão


constrição ariepiglótica, sendo esta a aproximação das Para nos posicionarmos mediante essa discussão, é impor-
cartilagens aritenóidea e epiglótica (Ex.5)8, o alonga- tante lembrar que há uma controvérsia na literatura sobre a
mento do tubo faríngeo e, por fim, a expansão de todo localização dos formantes na cavidade oral. Algumas auto-
o trato vocal. Segundo BEHLAU (2001), estes são al- ras, como DINVILLE (1993) e CORDEIRO, PINHO e CAMARGO
guns dos ajustes que levam à junção do terceiro, quar- (2007), relatam que o primeiro formante (F1) ocorre na ca-
to e do quinto formantes. vidade posterior da boca e está em torno de 250 a 700 Hz.
CAMARGO e CUKIER (2005) e MAGRI, CUKIER, KARMAN e
Já SUNDBERG (1974) afirma que a ocorrência do forman- CAMARGO (2007) já citam que o primeiro formante (F1) está
te do cantor depende de um abaixamento da laringe e relacionado com a altura e com o deslocamento da língua
do alargamento da faringe, para que haja aumento de no plano vertical e com a abertura da boca.
algumas cavidades situadas na laringe. Alguns autores
como CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007) consideram Desta forma, pode-se dizer que a abertura da boca, seja
que o tamanho do trato vocal interfere diretamente na no plano vertical ou horizontal, influencia a produção
produção do formante e que tratos vocais maiores enfa- do primeiro formante, e a altura da língua na cavidade
tizam as frequências graves, e os menores enfatizam as oral também. Isso parece indicar, talvez, que a produção
frequências agudas. de uma vogal com a língua anteriorizada desfavoreça o
primeiro formante.
FANT (1970)6 apud CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007)
fazem uma relação dos formantes na qual afirmam que o Em relação ao segundo formante (F2), CORDEIRO, PI-
terceiro formante ocorre devido a uma constrição ocorri- NHO e CAMARGO (2007) concordam que fica localizado
da no percurso do som e que o quarto formante se rela- na cavidade oral anterior. CAMARGO e CUKIER (2005),
ciona ao comprimento da laringe. por outro lado, relatam que o segundo formante (F2)
ocorre devido ao deslocamento da língua no plano hori-
É importante ressaltar que todos os autores citados re- zontal, ou seja, com o grau de variação no sentido ânte-
latam sobre a localização dos formantes, (BEHLAU, COR- ro-posterior. Assim, podemos verificar novamente que a
DEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007; DINVILLE, 1991; SUN- posição da língua, agora horizontalmente, influencia na
DBERG, 1974; PINHO e TSUJI, 1995), e isso indica, por um produção deste formante.
lado, que a integridade de todas as estruturas favorece o
formante do cantor e determina a qualidade sonora do Podemos verificar então que ambos os formantes são pro-
cantor. Por outro lado, isso indica que a falta da integri- duzidos pelos mesmos órgãos, entretanto, esses órgãos
dade pode ser a causa da ausência do mesmo. utilizam posicionamentos diferentes para produzi-los.

É muito comum, no canto lírico, a busca por uma “ca- Já o terceiro formante (F3) está relacionado com a cavi-
vidade de ressonância” que proporcione uma voz agra- dade atrás da constrição da língua e aquela à frente dela
dável e com muita projeção. Existem pesquisas que re- (CAMARGO e CUKIER, 2005). Ou seja, cavidade faríngea e
latam que no canto lírico ocorre uma posteriorização cavidade oral anterior.
do ponto articulatório, ou seja, (a posteriorização da
língua para se fazer determinado fonema) buscando E, para MAGRI, CUKIER, KARMAN e CAMARGO (2007), o
assim uma ressonância posterior, pois a concentra- quarto formante (F4) relaciona-se ao formato da larin-
ção sonora ficará concentrada na cavidade posterior ge e da faringe na mesma altura, mas Cordeiro, PINHO e
da boca. Além disso, ainda temos a verticalização da CAMARGO (2007) dizem que o quarto formante provavel-
mandíbula e elevação do véu palatino, ou seja, pala- mente tem ligação com o comprimento do tubo laríngeo.
to mole. (PERELLÒ, 19759 e PILLOT10, 1996 apud COR- Assim, novamente, autores relatam localidades diferentes
DEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007). Para SUNDBERG para a produção do mesmo formante. O importante é que,
(1974), a busca de uma ressonância posterior faz com se o quarto formante já tem relação com o formante do
que ocorra um rebaixamento do segundo formante, já cantor, e que o formante do cantor determina o brilho,
que a língua encontra-se posteriorizada. qualidade e projeção da voz, acreditamos que o compri-
mento do tubo laríngeo tenha uma grande influência na
A constrição ariepiglótica e a abertura da laringe asso- produção deste formante já que o trato vocal influencia na
ciadas ao alongamento circular de toda a faringe, citado produção dos harmônicos e consequentemente da produ-
por alguns autores (PINHO e TSUJI, 1995 e SUNDBERG, ção do formante.
1974), não são os únicos mecanismos responsáveis pela
criação do formante do cantor, mas possivelmente po- É quase unânime entre os autores consultados que o pri-
dem levá-lo ao centro de frequência ideal para o sur- meiro (F1), segundo (F2) e o terceiro (F3) formantes são
gimento deles, e isso explica a divergência de alguns responsáveis pela identificação das vogais. Enquanto que
autores quanto ao centro de frequência do formante os outros dois, o quarto (F4) e o quinto (F5) são respon-
ter, ou não, relação com a classificação vocal no canto sáveis pela qualidade vocal e timbre da voz (Formante
(CORDEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007). do cantor). Mas CORDEIRO, PINHO e CAMARGO (2007) e

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BEHLAU (2001) concordam que o terceiro formante (F3) nenhum dos autores pesquisados tratam das cavidades
seja responsável pela qualidade e brilho na voz, pelo que, paranasais como sendo parte integrante do trato vocal.
para estas autoras, o formante do cantor é a junção do Tal posição contradiz o senso comum sobre a voz passar
terceiro, quarto e quinto formantes. pelas cavidades de ressonância incluindo as cavidades
paranasais conhecida como voz na máscara para obter
Em relação ao quinto formante (F5), não encontramos brilho e projeção vocal. Porém, a ideia de voz na másca-
na literatura pesquisada qualquer referência a algum ra ajuda muito na compreensão de aspectos subjetivos
local para a sua produção porque há uma concordân- da sensação sonora principalmente no canto, mas não
cia entre alguns autores sobre o formante do cantor podemos deixar de pensar que a voz ocorre por um pro-
ocorrer graças à junção do terceiro, quarto e do quin- cesso fisiológico e que distorções neste aspecto podem
to formantes (CORDEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007 e prejudicar e muito toda ideia de uma voz fácil, sem ten-
BEHLAU, 2001). são, com qualidade e projeção.

Outra discussão que é relevante neste trabalho diz respei-


to aos ajustes laríngeos para a realização do formante do 6. Considerações finais
cantor. VIEIRA (2005) e SUNDBERG (1974) ponderam que O formante do cantor é um tema ainda pouco discutido
um dos ajustes utilizados para este fenômeno é o abaixa- na literatura fonoaudiológica o que torna difícil seguir
mento da laringe e o alargamento da cavidade faríngea. Há uma única linha de raciocínio para sua abordagem. Ape-
também a afirmação de CORDEIRO, PINHO e CAMARGO sar disso, este trabalho nos proporcionou conhecimentos
(2007) quando relatam que o aparecimento do formante relevantes sobre esse tema fascinante que é o formante
do cantor se deve ao agrupamento de todas as estruturas do cantor, como a produção dos formantes, sua localiza-
formando um único tubo, acoplando o terceiro, o quarto ção e definição, além de ressaltar sobre os ajustes larín-
e o quinto formantes. A expansão de todo o trato vocal geos utilizados para realizá-los.
citada por BEHLAU (2001) e ao comprimento da laringe
(FANT, 1970 apud CORDEIRO, PINHO e CAMARGO, 2007). Além disso, levantou questões do senso comum, como por
exemplo, “voz na máscara”, ressonância nasal, recursos
É importante ressaltar que todos estes recursos citados estes utilizados para adquirir qualidade vocal, projeção e
acima favorecem o aparecimento do formante do cantor, brilho na voz. Dentre os autores pesquisados, a ressonân-
já que todos priorizam um tubo ressonador para a produ- cia paranasal foi apontada por BEHLAU (2001) e PINHO
ção dos formantes. (2003) como sendo uma cavidade que favorece o formante
do cantor. TITZE (2001) ressalta que as sensações vibrató-
Outros autores, PINHO e TSUJI (1995), encontraram a rias percebidas na face nada mais é do que a conversão
ocorrência de constrição ariepiglótica e abertura do ves- de energia aerodinâmica em energia acústica; e não um
tíbulo laríngeo, e SUNDBERG (1974) fala da abertura do som ressoado na cavidade nasal e seios paranasais como
vestíbulo laríngeo associada ao alargamento circular da erroneamente se faz referência. Ou seja, para este autor a
faringe, ou seja, mais uma vez a utilização de recursos voz na cavidade nasal e paranasal nada mais é do que uma
que favoreçam o alargamento do tubo laríngeo. sensação sonora. Mas há uma concordância de que o trato
vocal como sendo um tubo único favorece todos requisitos
Cada autor trata de ajustes ideais para a realização do for- dados ao formante do cantor.
mante do cantor, mas o interessante é que todos buscam
um mesmo objetivo: favorecer a projeção e a facilidade É de suma importância para a literatura musical e fo-
dos harmônicos para se obter formantes com brilho e qua- noaudiológica, que novos pesquisadores discutam sobre
lidade como o encontrado no formante do cantor, e este este tema e que novos estudos sejam realizados a fim de
mecanismo, segundo os autores citados acima, acontece se compreender melhor este mecanismo pouco discutido.
quando se tem um aumento e alargamento de todo o trato Através do levantamento de novos estudos, também se
vocal. Neste caso, há concordância entre os autores sobre torna possível esclarecer questões levantadas pelo senso
os ajustes para se obter o formante do cantor. comum, que são importantes e imprescindíveis como par-
te de um processo pedagógico.
É de extrema importância relatar que todos os autores
pesquisados citam o trato vocal como sendo o gran- Mas não podemos deixar de pensar que este assunto deva
de responsável pela formação do formante do cantor e ser discutido considerando a fisiologia vocal e a física
mencionam também ser ele o responsável de se obter acústica, pois, só assim, teremos embasamento científico
um tubo único que amplifica toda a voz. Com exceção e fidedigno desse tema que tanto interessa aos cantores,
de BEHLAU (2001) e de PINHO (2003) e PINHO (2008), professores de canto e fonoaudiólogos.

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ZEMLIN, Willard R. Anatomia e Fisiologia aplicada a fonoaudiologia 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000.

Leitura recomendada
ANDRADE, Simone Rattay; FONTOURA, Denise Ren da; CIELO, Carla Aparecida. Inter-Relação entre Fonoaudiologia e
Canto: Revista Música Hodie, Goiânia, V. 7, n. 1. p. 83-98, 2007.
FONOAUDIOLOGIA.COM: Um método de investigação dos distúrbios da fala e voz: A espectografia vocal. Desenvolvido por
HORTA, Leila; TOMITA, Shiro, 2001. Apresenta informações direcionadas ao profissional de Fonoaudiologia. Disponível
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HUCHE, F.l; ALLALI,A. A voz. Anatomia e fisiologia dos órgãos da voz e da fala. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 1999. V. 1.
ZAMPIERI, Sueli A; BEHLAU, Mara; BRASIL Osíris OC do. Análise de cantores de baile em estilo de canto popular e lírico:
perceptivo-auditiva, acústica e da configuração laríngea. Revista Brasileira de Otorrinolaringologia. São Paulo. V. 68
n.3, p. 378-86, maio/jun. 2002.

Cristina de Souza Gusmão é Fonoaudióloga clínica graduada pela FEAD – Minas desde 2006, especialista em Voz pela
PUC- Minas desde 2007. Graduada em Música com habilitação em canto pela Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG) desde 2008. Atualmente trabalha com Assessoria e consultoria com profissionais da voz. É cantora integrante do
grupo experimental de ópera da UEMG (GEL), professora de canto e preparadora vocal. Participa ativamente de palestras
e oficinas relacionadas a voz profissional, principalmente com cantores, além de lecionar cursos de Oratória.

Paulo Henrique Campos é Licenciado em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Belo Horizonte, 1997.
Bacharel em Música com Habilitação em Canto pela Escola de Música da UEMG, 2001. Especialista em práticas inter-
pretativas da Música Brasileira pela Escola de Música da UEMG, 2003 e possui o título de mestre em educação musical

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GUSMÃO, C. de S.; CAMPOS, P. H.; MAIA, M. E. O. O formante do cantor e os ajustes laríngeos ... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.43-50.

pela Escola de Música da UFMG concluído em Março de 2007. Professor da UEMG nas áreas de canto, fisiologia da voz
e pedagogia do ensino de canto desde 2002. Como regente Paulo Henrique Campos atua à frente do “Coral Imprensa
Oficial” desde 2000. Além de atuar como músico efetivo da Fundação Clóvis Salgado desde 1995.

Maria Emilia Oliveira Maia é Fonoaudióloga graduada pela FEAD – Minas - 2006, especialista em Voz pelo Centro de
Estudos da Voz - CEV – São Paulo, graduada em Psicologia pela Universidade Fumec - BH - 1989, especialista em Psicolo-
gia clínica pelo Conselho Federal de Psicologia. Atua em atendimento clínico com Assessoria e consultoria ao profissional
da voz.

Notas
1 Figura disponível em: <www. agmarrazes.ccems.pt/.../s-resp/v-resp-total.htm>. Acessado em 27-07-08
2. Figura disponível em: SILVIA e CAMARGO, 2001 p.36
3 MILLER, R. The structure of singing – system and Art in vocal technique. New York: schirmer Books, 1996.
4 SUDBERG. J. The Science of the singing voice. Northern lllinois University Press; 1987.
5 Figura disponível em: SILVIA e CAMARGO, 2001 p. 38.
6 Figura disponível em: ZEMLIN, 2000. p. 320.
7 FANT, G. Acoustic theory of speech production. Paris: Mouton, 1970.
8 Figura disponível em: <www.scielo.br/img/revistas/rboto/v72n6/a18fig01.gif>.Acessado em 06-10-08
9 Perellò J. Canto-Dicción: Foniatria estética. Barcelona: Editorial científico médica, 1975.
10 PILLOT C, Quattocchi S. Mesires acoustiques, jugements perceptifs et correlates physiologiques du singing-formant
chez les chanteurs et les chanteuses lyriques. Rev Laringol Otol Rhinol. 1996; 117 (4): 335-9.

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MAYER, G. G.; CARVALHO, A. R. Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.51-59.

Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981)


de Bruno Kiefer: um estudo sobre sua
estrutura intervalar, gestos musicais e possíveis
relações com outras composições do autor

Germano Gastal Mayer (Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS)


germano@mayer.art.br

Any Raquel Carvalho (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS)
anyraque@cpovo.net

Resumo: O presente trabalho oferece uma análise dos gestos musicais e configurações intervalares da peça intitulada
Vastidão, pertencente aos Seis Pequenos Quadros (1981) para piano de Bruno Kiefer. A incidência constante de gestos
previamente levantados por Luciane CARDASSI (1998) em outras obras de Kiefer bem como a presença do elemento
octatônico são estudados e inter-relacionados com obras precedentes do compositor. A teoria dos conjuntos de Allan
Forte é utilizada aqui como base teórica. A densidade gestual encontrada nesta composição de data tardia em meio ao
conjunto de obras para piano do autor e sua curta duração apontam para uma síntese estilística.
Palavras-chave: Bruno Kiefer, gestos musicais, teoria dos conjuntos, análise.

Vastidão [Vastness] of Seis Pequenos Quadros [Six Small Pictures] (1981) by Bruno Kiefer:
a study of its intervallic structure, musical gestures and possible relationships with other
works by the composer

Abstract: The present article offers an analysis of the musical gestures and intervallic configurations of the composi-
tion Vastidão [Vastness], which belongs to the set entitled Seis Pequenos Quadros [Six Small Pictures] (1981) for piano
by Brazilian composer Bruno Kiefer. The recurring musical gestures from other of Kiefer’s compositions, previously sur-
veyed by Luciane CARDASSI (1998), as well as the presence of octatonic elements, are studied and related to preceding
Kiefer’s works. Set theory by Allan Forte is applied here as a theoretical basis. The density of the gestures observed in
this late piece, and its brevity, point to a stylistic synthesis.
Keywords: Bruno Kiefer, musical gestures, set theory, analysis.

1 – Introdução
O compositor, escritor e professor Bruno Kiefer (1927- O presente artigo é um recorte de pesquisa que teve por
1987) formou-se em química, física e flauta transversal objetivo a investigação dos Seis Pequenos Quadros (1981)
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, instituição para piano de Bruno Kiefer.1 Neste artigo é oferecida uma
na qual também lecionou e participou da implantação do análise do 1º Quadro, intitulado Vastidão, o qual con-
Programa de Pós-Graduação em Música (1987). Tendo centra uma significativa quantidade de gestos musicais
estudado harmonia e contraponto com Ênio Freitas de idiossincráticos do compositor, além de configurações
Castro, a música para piano teve fundamental importân- intervalares existentes também em outras obras do autor.
cia na sua produção.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010 Recebido em: 20/03/2009 - Aprovado em: 10/10/2009
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MAYER, G. G.; CARVALHO, A. R. Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.51-59.

O conjunto de peças intitulado Seis Pequenos Quadros midade de temática em relação à Terra Selvagem (1971),
(1981) foi encomendado por Aymara Célia para a come- obra em que “o estilo instrumental de Bruno Kiefer está
moração do aniversário de quarenta anos de seu marido, exposto à perfeição” (CHAVES, 1992, s/p). O levantamen-
o médico psiquiatra e músico que residia em Porto Alegre, to e a contextualização dos gestos musicais2 encontrados
Rafael Célia. Trata-se de seis miniaturas musicais perten- em Vastidão em meio à sua estrutura e outras composi-
centes ao último período composicional de Kiefer. Quan- ções prévias projetam nova luz sobre esta peça. Além de
do compôs esta coleção o compositor já havia atingido caracterizarem a linguagem musical utilizada, situam a
sua plena maturidade artística, alcançada por volta de composição no contexto estético de Kiefer.
1970. Nas palavras de Chaves, este criador estava “liberto
do afã da pesquisa e da busca pela afirmação pessoal... 2 - Análise dos Seis Pequenos Quadros de
revelando um compositor mais solto, não raro mais bem- Bruno Kiefer
humorado” (CHAVES, 1995, s/p). A partir da constatação superficial de elementos oc-
tatônicos em Vastidão,3 optou-se pela investigação
A análise proposta toma como pressupostos teóricos os da organização de suas alturas no intuito de apu-
gestos musicais organizados e sistematizados por Lucia- rar uma possível constante nas relações intervalares
ne CARDASSI (1998), os quais transitam por, pelo menos, que contribuísse para a coesão do discurso. Com este
vinte e uma obras compostas entre 1970 e 1983. Estas fim, aplicou-se a teoria dos conjuntos de Allen FORTE
obras, selecionadas em sua tese de mestrado a partir das (1973).
temáticas “terra”, “vento” e “horizonte” (fato que exclui
a peça objeto deste estudo), foram relacionadas à poesia A presente análise estrutura-se nas seguintes etapas:
de Carlos Nejar. A autora organizou, nomeou e agrupou
todos os gestos musicais em famílias. Estes gestos con- • Delimitação das estruturas formais e gestuais de
siderados como “de autocitação”, constituem uma das Vastidão;
características mais marcantes do estilo do compositor • Análise dos parâmetros textura, ritmo e dinâmi-
(CARDASSI, 1998, p.176). ca para verificar como estes elementos se inter-
relacionam com a estrutura da peça, tomando
Escritos em 1981, os Seis Pequenos Quadros inserem-se como unidades básicas os gestos musicais;
no período em que foram compostas as obras analisadas • Análise do conteúdo intervalar através da teoria
por CARDASSI, sendo que das seis peças, o Quadro nº. dos conjuntos para constatar a recorrência de pa-
1, Vastidão, é o que apresenta a maior gama de gestos drões;
musicais levantados. Em sua pequena dimensão temporal • Organização e sistematização dos dados.
concentra características gerais de seu estilo pianístico,
no que parece ser uma síntese de aspectos recorrentes O Ex.1 localiza as seções da peça estabelecidas a partir de
de sua obra. Um indício para este julgamento é a proxi- alguns gestos musicais de referência:

Localização das Seções e


Seções Gestos Musicais
Gestos Musicais por compasso
anacruse ao c. 1 – 2 1º tema da chamada
anacruse ao c. 3 – 5 2º tema da chamada
A c. 1 – 12 anacruse ao c. 6 – 7 3º tema da chamada
Anacruse ao c. 8 4º tema da chamada trilha
anacruse ao c. 8-12
c. 10 golpe rítmico melódica
c. 14 tema contrapontístico
c. 23 tema contrapontístico
trilha
B c. 13 – 33 c. 28 tema contrapontístico
melódica
c. 29 golpe rítmico
c. 31 golpe rítmico
c. 34 1º arpejo
c. 36 2º arpejo
C c. 34 – 39
c. 38 3º arpejo
c. 39 – 40 gesto em silêncio
c. 40 golpe rítmico
D c. 40 – 45 c. 43 golpe rítmico
c. 44 golpe rítmico

Ex.1 – Tabela de seções e gestos musicais do Quadro nº. 1

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MAYER, G. G.; CARVALHO, A. R. Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.51-59.

Abaixo segue a descrição e hierarquização dos gestos Cunhada por Celso Loureiro CHAVES, a expressão tema
musicais estabelecidos por CARDASSI (1998) e encontra- da chamada refere-se a pequenos fragmentos melódi-
dos em Vastidão: cos “que pela sua concepção intervalar funcionam como
verdadeiros ‘pedidos de socorro’, como verdadeiras ‘cha-
1) Sonoridades Percussivas: gestos com alto índice de percussivi- madas” (CHAVES 1982, s/p). Encontrados inicialmente
dade. Tanto timbre quanto ritmo são prioritários para a sua defini-
ção, enquanto altura e intensidade são secundários;
em Terra Selvagem (1971), tais fragmentos possuem
– Golpes Rítmicos: São formados basicamente por uma ou duas configuração rítmica e intervalar semelhante aos ges-
figuras curtas, freqüentemente acentuadas, seguidas de uma figu- tos musicais referidos em Vastidão. Luciane CARDASSI
ra longa, associando este gesto a um caráter percussivo, nervoso, afirma que,
com intervalos de 2ª Menor e 3ª Menor.
2) Trilhas Melódicas: Configuram tanto fragmentos de linhas me-
o tema da chamada de Terra Selvagem, nos primeiros compassos
lódicas quanto motivos temáticos recorrentes. A sua função pre-
da peça, que enfatiza o intervalo de terça menor e ocorre asso-
dominante é produzir momentos de relaxamento, em oposição à
ciado aos golpes rítmicos (sonoridades percussivas), exemplifica
atmosfera de tumulto característica dos sons móveis e sonoridades
essa tendência das trilhas melódicas ao caráter épico, ao lirismo
percussivas;
pungente, sem declinar de seu aspecto de suspensão (CARDASSI,
– Temas contrapontísticos: O que caracteriza estes gestos é o ca-
1998, p.107).
ráter improvisatório e leggero da linha melódica, que pode ocorrer
em solo, com acompanhamento, ou em imitação. Assim, a palavra
contrapontístico no nome deste gesto não implica necessariamen- O último dos temas da chamada em Vastidão estende-
te a ocorrência de contraponto, sendo apenas um indicativo da se por uma trilha melódica contendo um golpe rítmico, o
simultaneidade e do caráter improvisatório dessas linhas. Os temas
contrapontísticos ocorrem freqüentemente associados a um trata-
que constitui a mais clara similaridade existente entre a
mento rítmico em sincopas; introdução de Vastidão e Terra Selvagem (ver Ex.3). Assim,
- Terça Menor: Constitui-se quase em um motivo temático, pela a seção A de Vastidão se identifica com o caráter referido
insistência com que se manifesta (...), e pela sua importância na por CARDASSI.
configuração das demais trilhas melódicas.
3) Fragmentos Cortantes: Os fragmentos cortantes são gestos bre-
ves que provocam uma interrupção brusca do discurso musical e, As temáticas “terra”, “vento” e “horizonte” discutidas por
como elemento surpresa, contribuem para a manutenção da at- CARDASSI (1998) como recorrentes na obra de Bruno
mosfera dramática;
- Interferências Angulares: Gestos caracterizados por intervenções
Kiefer vão ao encontro do título Vastidão na medida em
muito breves, têm nível elevado de intensidade e investem o tre- que todos os quatro termos envolvem necessariamente a
cho musical de um caráter agressivo. idéia de espaço. Esta aproximação e a admissão do com-
- Gesto em Silêncio: Freqüentemente pausas como fermata, cons- partilhamento de gestos musicais entre Terra Selvagem
tituem um elemento de fragmentação do discurso; contribuem
para o aumento do nível de incerteza e de imprevisibilidade da
e o Quadro nº. 1 tornam inevitável a associação entre
música e resultam em eventos de alto teor dramático. (CARDASSI, os títulos destas duas peças. Assim, a idéia de vastidão
1998, p.42-74, passim) que Kiefer empregou aqui se afirma como referência à
imensidão territorial. Poder-se-ia ainda inferir que este
O material apresentado na seção A (Ex.2) envolve uma espaçamento é vinculado a uma delimitação geográfica
linha isolada finalizada por uma trilha melódica e dividida na medida em que as temáticas “terra”, “vento” e “hori-
em quatro gestos musicais similares descritos como tema zonte” originam-se do poeta do pampa brasileiro, Carlos
da chamada. Este gesto não se encontra na citação acima Nejar, e se transfiguram em música por Kiefer. O composi-
e será descrito logo a seguir. tor, por sua vez, apesar de ter nascido na Alemanha e to-

Ex.2 – Seção A de Vastidão (anacruse ao c.1–12) de Bruno Kiefer.

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MAYER, G. G.; CARVALHO, A. R. Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.51-59.

Ex.3 - (a) = Terra Selvagem (1971) de Bruno Kiefer – anacruse ao c.3–7;


(b) = Vastidão (1981) de Bruno Kiefer – anacruse ao c.8–12.

Ex.4 – Seção A de Vastidão (anacruse ao c.1–12) de Bruno Kiefer.

mado um caminho estético independente dos nacionalis- de uma mínima (Lá, c.6 e Sib, c.8), sendo a última desen-
tas (com suas referências diretas ou indiretas ao folclore), volvida pela trilha melódica.
ainda assim, se afirmou como compositor legitimamente
brasileiro, tendo adotado a capital gaúcha como sua ter- O conjunto de classes de alturas [0, 1, 4] (3-3) que per-
ra. A vastidão que intitula esta música é possivelmente meia internamente os temas da chamada tanto o faz em
aquela dos campos do extremo sul brasileiro, com pouca pares integrando o conjunto maior [0, 3, 4, 7] (4-17),
ou nula interferência do homem e uma dura realidade como se apresentando sozinho, de modo normal ou in-
social. Os temas da chamada que abrem a peça fazem vertido [4, 3, 0]. Além disso, relaciona as notas polari-
jus a este panorama com sua brusquidão e isolamento da zadas de cada gesto, como exposto através dos números
linha melódica. em tipo maior do Ex.4, o que resulta na unidade inter-
na e externa entre os gestos. Os intervalos de 2ª menor
As notas longas polarizadas deste gesto4 são sucedidas e 3ª menor, bem como suas respectivas inversões, são
por elaboração progressiva. Como o exposto no Ex.4, a costurados ao longo de toda a seção A. As disposições
primeira é apresentada como uma mínima (Sib, c.1), a intervalares aqui presentes resultam em elementos da
segunda é repetida e ornamentada (Dó#, c.3-5) e as úl- coleção octatônica em contraste com conjuntos envol-
timas duas se repetem novamente no espaço temporal vendo cromatismos.

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MAYER, G. G.; CARVALHO, A. R. Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.51-59.

Na seção B (c.13-33), a linha melódica permanece sendo anterior, delineia o conjunto [0, 3, 4, 7] (4-17), que
agora acompanhada por uma sucessão regular de acor- apresenta, por sua vez, dois subconjuntos [0, 1, 4] (3-3)
des na pauta inferior, os quais impõem estabilidade rít- dispostos em espelho (Ex.5).5
mica ao discurso. O Ex.5 apresenta este ostinato através
de um trecho da seção B: Os temas contrapontísticos encontrados nos c.14, 23 e 28
(vide Ex.8 à frente) ainda que se situem nos tempos fortes
Estes acordes não só acompanham a trilha melódica de cada compasso e não na anacruse, derivam do tema
da pauta oposta, como ecoam as alturas que compõem da chamada em função do contraste de movimentação
tal trilha. Sua configuração intervalar, como na seção rítmica que produzem. As inflexões de dinâmica e ritmo

Ex.5 – Seção B de Vastidão: início (c.13-27).

Ex.6 - Acorde em Espelho formando o conjunto (4-17), presente na seção B.

Ex.7 - (a), anacruse ao c.1;


(b), c.14-15.

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MAYER, G. G.; CARVALHO, A. R. Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.51-59.

permanecem, porém de maneira diferenciada, pois as fi- neira completa. A única altura que não pertence a (8-
guras rítmicas são mais lentas (com exceção do c. 28) e 28) é uma apojatura com a funcionalidade de ornamento
as indicações de dinâmica se suavizam. O Ex.7 compara ou nota de passagem no c.25. Como mostram os Ex.8c
estes dois gestos superficialmente similares: e Ex.8d, os c.29–33 apresentam o retorno parcial des-
ta coleção com o uso das mesmas alturas aplicadas nos
Estas modificações gestuais, juntamente com a estabi- c.17–19. O tema contrapontístico do c.28 constitui mais
lidade da métrica e a estaticidade dos acordes da pau- uma vez o conjunto [0, 3, 4, 7] (4-17), o qual também é
ta inferior, configuram um caráter contrastante com o um subconjunto da coleção octatônica.
apresentado na seção anterior, pois contribuem para a
projeção da trilha melódica que dá seguimento a este A seção C vem ocupar o papel de digressão no discurso
tema contrapontístico e se estende liricamente ao longo musical, sendo a seção mais contrastante de todo o
de toda seção B. No entanto, esta trilha não perde o “ca- Quadro nº. 1. Aqui o acúmulo vertical dos sons toma
ráter agressivo” (CARDASSI, 1998, p.69) propiciado pelos o primeiro plano, ocupado anteriormente pela mé-
golpes rítmicos (Ex.8d). trica. Seus três arpejos configuram uma idéia musi-
cal6 categorizada por CARDASSI (1998, p.140) como
As duas trilhas melódicas desta peça possuem fortes configuradora de “um processo de autocitação”, pois
traços de semelhança entre si, além da recorrência de ocorre em várias outras obras do compositor. A função
parâmetros como altura, intervalos e ritmo. Os Ex.8a- desta idéia é “de elemento fragmentador do discurso
8d focalizam estas semelhanças (Ex.8a representando musical, atuando como uma perturbação do material
a 1ª trilha e os demais exemplos representando tre- musical lírico elaborado nesses trechos” (ibid, p.154).
chos da 2ª trilha): Em Vastidão tal idéia apresenta as sonoridades que se
situam nos registros extremos da peça. As pausas que
Na segunda trilha melódica, observa-se o uso quase ex- separam seus arpejos aumentam a cada intervenção,
clusivo da coleção octatônica a partir do c.17. Entre os e assim configuram um aspecto fragmentário, como
c.17–27, esta disposição intervalar se apresenta de ma- demonstrado no Ex.9:

Ex.8 (a) = anacruse ao c.8–12: 1ª trilha (seção A); (b) = c.23–27: 2ª trilha (seção B); (c) = c.14–19: 2ª trilha (seção
B); (d) = c.28–33: 2ª trilha (seção B).

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MAYER, G. G.; CARVALHO, A. R. Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.51-59.

Ex.9 – Arpejos (Seção C - c. 34-39).

Ex.10 - (a) = Tríptico nº. 1 (1969) de Bruno Kiefer (c.12–13);


(b) = Quadro nº. 1, Vastidão (1981) de Bruno Kiefer (c.38–40).

Por outro lado, mesmo que a seção C seja internamen- xima-se novamente da escala octatônica. O subconjunto
te fragmentada, possui traços em comum com a seção (3-3) apresenta-se em um número crescente de ocorrên-
A. Estão presentes a seqüência de gestos similares, a cias em cada arpejo, culminando no último (c.38) onde
ausência de ataques simultâneos e a diminuição da in- as três versões deste subconjunto são protagonizadas por
tensidade de um determinado parâmetro musical cons- todas as notas do gesto.
tatada distintamente em cada seção: nos arpejos ocorre
a diminuição de textura, enquanto que nos temas da Dentre os vários fatores que ocupam lugar na genealogia
chamada, a diminuição é de dinâmica. Além disso, o de Vastidão, encontra-se o gesto em silêncio, constituído
aumento do número de classes de alturas contribuindo pela fermata entre os c.39-40 (ver Ex.10a). Esta pausa,
para o desenvolvimento do texto musical é encontrado separando uma estrutura em ff de uma melodia acom-
em ambas as seções. panhada por acordes, remonta à obra Tríptico (1969) de
Bruno Kiefer. ALBUQUERQUE (1972, p.5), referindo-se à
Não obstante ao contraste de caráter acarretado pela fermata localizada entre os c.12–13 do 1º Tríptico, carre-
seção C, seu primeiro arpejo sucede a seção anterior pre- ga este elemento de um “sentido de expectativa”. Pode-se
servando as mesmas relações intervalares. Trata-se do referir da mesma maneira ao gesto em questão, dado o
conjunto (5-31), outro fragmento da coleção octatônica. fato de que o terceiro arpejo de Vastidão atinge o Dó mais
O segundo arpejo tende ao cromatismo e o último apro- agudo da peça, em um registro não explorado até então:

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MAYER, G. G.; CARVALHO, A. R. Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.51-59.

Ex.11 - (a) = Seção B de Vastidão: c.31;


(b) = Seção D de Vastidão: c.43.

A seção D prenuncia o final da peça com uma métrica acompanhamento da seção B, [0, 3, 4, 7] (4-17) e em alguns
que tende a estaticidade devido à quebra do fluxo rítmico fragmentos. Este último, um superconjunto, assim como o
do material da pauta inferior (c.41-42). Esta paralisação 1º arpejo da seção C, constituído por (5-31) são fragmentos
evidencia a distância temporal entre os primeiros dois da coleção octatônica. O compositor fez uso abundante da
golpes rítmicos (pauta superior, c.40 e c.43), causando configuração intervalar destes acordes de acompanhamen-
com isto um efeito de fragmentação típico da estética de to, imprimindo à peça um conteúdo harmônico essencial-
Kiefer. No entanto, a unidade estrutural é reforçada pela mente octatônico com toques de cromatismos, fato este que
economia de materiais: recapitulando o material harmô- vai ao encontro dos apontamentos de Gerling (2001), sobre
nico e textural utilizado na seção B, são empregados não as peças Terra Selvagem (1971), Lamentos da Terra (1974) e
apenas os mesmos intervalos, mas as mesmas classes de Alternâncias (1984).
alturas, as quais se inserem em acordes em espelho e gol-
pes rítmicos distribuídos entre as duas pautas (Ex.11): Quanto à estrutura gestual, Vastidão apresenta traços de
semelhança, através dos temas da chamada, com Em Pou-
3 - Conclusão cas Notas (1974) e Terra Selvagem (1971), além de trilhas
Em Vastidão a 2ª menor e a 3ª menor são os intervalos mais melódicas com gestos internos muito comuns na escrita
presentes, constituindo alicerces da estrutura da peça na do compositor. Presume-se por sua riqueza gestual, única
medida em que Kiefer constrói os subconjuntos [0, 1, 4] (3- no conjunto dos Seis Pequenos Quadros (1981) que esta
3) e [0, 3, 4] - a inversão de (3-3). Estes conjuntos são co- epígrafe sintetiza os aspectos mais marcantes da obra
mumente encontrados juntos dando forma aos acordes de pianística de Kiefer.

Referências
ALBUQUERQUE, Armando. Apresentação e Análise dos Movimentos. In: Tríptico (piano – 1969). Editora da Ufrgs. Porto
Alegre. Cadernos de música/1, 1972. 1 partitura.
CARDASSI, Luciane. A música de Bruno Kiefer: “terra”, “vento”, “horizonte” e a poesia de Carlos Nejar. Dissertação – Mes-
trado – UFRGS-PPGMUS. Porto Alegre. 1998.
CHAVES, Celso Loureiro: Apresentação. In. Terra Selvagem. Editora da Universidade. Cadernos de música/3. Porto Alegre.
1982.
FORTE, Allen. The Structure of Atonal Music. New Haven. Yale University press, 1973.
GERLING, Cristina C.. Traços característicos na música para piano de Bruno Kiefer. Opus. v. 3 n. 3, p. 75-80. Porto Alegre.
set. 1991.
_________. ‘Terra Selvagem’, ‘Lamentos da Terra’ e ‘Alternâncias’: o componente octatônico nas últimas três peças para
piano de Bruno Kiefer. In: PER MUSI. v. 4, p. 52 – 71, Belo Horizonte. 2001.
LAITANO, Yanto & GERLING, Cristina. Análise da música “Em Poucas Notas...” de Bruno Kiefer segundo a Teoria dos Con-
juntos de Allen Forte. Disponível em: http://www.ex-machina.mus.br/welcome.htm. Acesso em: 28 out. 2008.
PERSICHETTI, Vincent. Twentieth-Century Harmony. New York, Norton & Company, Inc.1961.

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MAYER, G. G.; CARVALHO, A. R. Vastidão de os Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.51-59.

Partituras
KIEFER, Bruno. Seis Pequenos Quadros. Partituras para piano manuscritas em duas cópias: à lápis; à nanquim em papel
vegetal, Acervo particular de Nídia Kiefer, Porto Alegre – 1981 .
_____________. Terra Selvagem. Partitura para piano – 1971. Editora da Universidade. Porto Alegre, Cadernos de mú-
sica/3, 1982.
_____________. Tríptico. Partitura para piano – 1969. Editora da Ufrgs. Porto Alegre. Cadernos de música/1, 1972.

Leitura recomendada
STRAUS, Joseph N. Introduction to Post-Tonal Music. New Jersey: Prentice Hall, Inc, 2000.

Notas
1 A pesquisa realizada resultou na dissertação de Mestrado de Germano Mayer, orientada pela Dra. Any Raquel Carva-
lho e defendida em setembro de 2005, sob o titulo: “Seis Pequenos Quadros (1981) de Bruno Kiefer: relações inter-
valares e outros parâmetros a partir da teoria dos conjuntos e gestos musicais”.
2 CARDASSI entende gesto musical como “um conjunto de sons (ou signos) que compõe uma unidade fundamental e
recorrente. Cada gesto apresenta determinadas características peculiares nos quatro parâmetros musicais básicos
(altura, intensidade, duração e timbre), as quais devem ser suficientes para sua identificação pelo analista e pelo
ouvinte” (CARDASSI, 1998, p.7).
3 Em análise realizada das peças Terra Selvagem (1971), Lamentos da Terra (1974) e Alternâncias (1984), GERLING já
havia averiguado “a presença de sonoridades recorrentes cuja conformação coincide com o conteúdo intervalar das
coleções octatônicas” (GERLING, 2001, p.52).
4 LAITANO & GERLING afirmam que na peça Em poucas notas (1974), também de Bruno Kiefer, o tema da
chamada,“sempre é usado de modo a criar um pólo momentâneo em uma determinada nota”. Trata-se da atração
exercida pela nota longa imediatamente posterior às fusas, que faz com que estas últimas “corram” em sua direção
constituindo uma polarização. (disponível em http://www.ex-machina.mus.br/welcome.htm)
5 De acordo com PERSICHETTI, “qualquer acorde (de duas, três, quatro notas, policorde ou composto) pode ser espelha-
do através da adição dos intervalos da formação original estritamente invertidos” (1961, p.172). Neste caso, o acorde
em questão é o conjunto (3-3), e o intervalo de 2ª menor é o pivô desta formação.
6 CARDASSI afirma que a expressão “idéia musical deve ser entendida como a somatória do gesto musical com o
contexto em que esse gesto ocorre e a função desempenhada por ele, configurando trechos musicais de diferentes
dimensões” (1998, p.140).

Germano Gastal Mayer é Bacharel em música (2003) e Mestre em práticas interpretativas (2005) pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul com bolsa da CAPES. Foi professor substituto da Universidade Federal de Pelotas (2005-
2007), professor colaborador na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (2007), e pianista instrutor da Escola do Teatro
Bolshoi no Brasil (2008). Paralelamente a estas atividades, tem atuado como pianista camerista e solista no sul do país.
Desde o início de 2009, é membro do quadro efetivo de professores do Conservatório de Música da UFPEL, onde leciona
piano e matérias teóricas.

Any Raquel Carvalho é Doutora em Música e Mestre em Música pela University of Georgia (Athens, Georgia, USA). É
Professora Associada no Programa de Pós-graduação em Música e no Departamento de Música do Instituto de Artes da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde leciona órgão, contraponto e fuga. Atua como conferencista e
organista no Brasil e no exterior. Possui dois livros publicados sobre contraponto: Manual de Contraponto Modal (Editora
Evangraf, 2ª ed., 2006) e Manual de Contraponto Tonal e Fuga (Editora Novak Multimidia, 2002). Como pesquisadora do
CNPq, desenvolve trabalhos na área de práticas interpretativas, incluindo música brasileira para órgão e contraponto.

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CARDASSI, L. Night Fantasies de Elliott Carter: estratégias de aprendizagem e performance. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.60-73.

Night Fantasies de Elliott Carter: estratégias


de aprendizagem e performance

Luciane Cardassi (The Banff Centre, Banff, Canadá)


luciane.cardassi@gmail.com

Resumo: Este texto é um relato de minha experiência de aprendizagem e performance da obra Night Fantasies de Elliott
Carter. Discuto neste artigo os problemas técnico-pianísticos que encontrei e as estratégias de que lancei mão a fim de
superar tais dificuldades, além de algumas questões analíticas e históricas da obra e do compositor que julgo importantes
para a performance criteriosa desta peça para piano.
Palavras-chave: música contemporânea, música para piano, performance, Elliott Carter, Night Fantasies.

Elliott Carter’s Night Fantasies: learning and performance strategies

Abstract: In this article, I write about my experience of learning and performing Night Fantasies by Elliott Carter. I dis-
cuss the technical problems that I found, as well as the strategies that I made use in order to overcome those difficulties.
I also bring some analytical and historical questions about the work and the composer that I find important for a rigorous
performance of this piano piece
Keywords: contemporary music, piano music, performance, Elliott Carter, Night Fantasies.

1 - Introdução
Este artigo deriva de minha tese de doutorado (CARDAS- termo “complexismo” ao descrever uma categoria da mú-
SI, 2004), na qual discorri sobre três peças das mais sig- sica contemporânea frequentemente associada à música
nificativas no repertório para piano da segunda metade dos compositores Brian Ferneyhough, Chris Dench e Mi-
do século XX: Klavierstück IX (1961) de Karlheinz Sto- chael Finnissy, mas da qual outros compositores, e certa-
ckhausen, Sequenza IV (1966) de Luciano Berio e Night mente esta peça de Elliott Carter, também fazem parte 1.
Fantasies (1980) de Elliott Carter. A minha experiência
prática de aprendizagem e performance dessas obras foi Ao abordarmos uma peça tal qual a obra aqui discutida,
o elemento principal desse trabalho, o qual foi comple- ela pode nos causar certo estranhamento, já que mui-
mentado pelo estudo da bibliografia sobre o assunto e tas vezes nos deparamos com elementos técnicos e/ou
discussão com colegas pianistas que já haviam se dedi- musicais não tradicionais. Uma fase de pré-leitura se faz
cado ao mesmo repertório. Dois artigos, resultado desse necessária, onde procuramos compreender a notação,
trabalho, foram publicados anteriormente na Revista Per desvendar os problemas técnicos e definir estratégias
Musi (CARDASSI, 2005 e 2006). O presente artigo é o ter- para resolvê-los. A escolha de estratégias de aprendizado
ceiro da série e tem como objeto de estudo a obra Night é fundamental e influirá certamente no resultado dessa
Fantasies do compositor norte-americano Elliott Carter. fase, ou seja, na performance da obra. Além disso, a com-
plexidade de peças tais como a obra aqui estudada não
O repertório para piano dos séculos XX e XXI pode ser é gratuita; ao contrário, configura elemento essencial da
classificado em categorias tais como impressionista, neo- estesia do compositor. Para o performer, o conhecimento
clássica, serial, minimalista e complexista, entre outras. A dessa estesia influenciará as suas escolhas de abordagem
obra aqui discutida faz parte do grupo de peças modernas tanto de aprendizado quanto de performance (REDGATE,
complexistas. O conceito de complexismo em música é 2007, p.142). É na fase de início do aprendizado de obras
controverso e não deve ser confundido com complexida- complexas tais como a Night Fantasies, que este artigo
de. Neste artigo utilizo o termo “complexo” quando me encontra a sua razão de ser, podendo ser uma ferramenta
refiro a dificuldades técnicas da peça estudada, e utilizo o útil aos colegas que estiverem iniciando o aprendizado
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010 Recebido em: 17/11/2009 - Aprovado em: 13/11/2009
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CARDASSI, L. Night Fantasies de Elliott Carter: estratégias de aprendizagem e performance. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.60-73.

tanto dessa peça para piano quanto de outras que apre- estrutura harmônica. Em cada tópico serão abordadas
sentem desafios semelhantes. questões técnico-pianísticas ou analíticas que considero
fundamentais para a execução criteriosa da peça. Incluo
Considero fundamental a definição de estratégias de es- sugestões de como superar os desafios encontrados, além
tudo já no início do aprendizado de uma obra musical de um breve histórico do compositor e da obra.
do repertório contemporâneo. Deve-se subdividir a peça
em partes menores, compreendendo tanto o plano arqui- 2 - Elliott Carter
tetônico geral da obra quanto os detalhes técnicos de Elliott Carter nasceu em 11 de dezembro de 1908 em New
cada célula. Deve-se buscar uma estratégia de simplifi- York City. Apesar de ter demonstrado interesse pela mú-
cação do material que, à primeira vista, pode se mostrar sica desde muito jovem, e de ter nascido em uma família
intricado em demasia. “O ato de aprender uma peça é próspera, seus pais não o encorajaram a estudar música,
primordialmente o de simplificação, enquanto a arte da pois esperavam que Elliott viesse a ser o líder dos negó-
performance é a de (re)complexificação” (SCHICK, 1994, cios criados pelo seu avô. Ele chegou a ter aulas de piano
p.133). Durante essa fase inicial, ritmos complexos devem quando criança, entretanto o foco principal de seus estu-
ser transformados em unidades que possam ser interna- dos dessa época era o idioma francês. De fato, Carter pas-
lizadas, complexidades da forma e textura devem ser sou grande parte de sua infância na Europa e aprendeu
subdividas em materiais compreensíveis e “vários tipos a falar francês mesmo antes de ser capaz de escrever em
de recursos mnemônicos devem ser empregados simples- inglês. Esse treinamento precoce para línguas foi decisivo
mente para que o [intérprete] se lembre o que fazer em para o grande interesse por diversos idiomas e literatura
seguida” (SCHICK, ibid.). Além da subdivisão sugerida por que Carter sempre demonstrou na sua produção musical.
Schick, é necessário estabelecer “imagens” do som dese-
jado através de ensaios mentais. Assim como nos espor- Em 1922 Elliott Carter ingressou na Horace Mann Scho-
tes de precisão, onde a visualização contribui para uma ol e começou a se interessar por música nova. Em 1924
melhor performance do atleta, na música devemos fazer ele conheceu Charles Ives, cuja música e idéias exerce-
uso do mesmo processo cognitivo. Apesar de chamarmos ram grande influência no desenvolvimento musical de
esse processo cognitivo de ensaios mentais, o que impli- Carter. Em 1926 ingressou na Harvard University, mas o
caria uma separação dos processos físicos intrínsecos à programa de música daquela universidade o frustrou e
performance do atleta e do músico, essa separação não Carter então transferiu seus estudos universitários para
existe. “De fato, processos mentais – pensamentos, sen- Literatura Inglesa, Grego e Filosofia, e continuou estu-
timentos e imagens – todos eles originam-se no cérebro dando música (piano, oboé e solfejo) na Longy School em
e frequentemente envolvem outras partes do corpo, tais Cambridge. Recebeu seu diploma de Mestre em Música
como o sistema nervoso autônomo e o sistema hormo- pela Harvard University em 1932, sob orientação de Wal-
nal... o processo cognitivo é portanto um processo físi- ter Piston e Gustav Holst. Durante os três anos seguintes
co que ocorre no cérebro e sistema nervoso” (MURPHY, estudou em Paris com Nadia Boulanger.
2005, p.128). Assim, ao criarmos uma imagem sonora de
um trecho musical, estamos ao mesmo tempo exercitan- Carter retornou a New York City, em 1935. Apesar de ter
do a nossa capacidade perceptiva e a nossa capacidade sido professor em várias universidades, a escola onde ele
física, preparando o corpo para a realização de um trecho deu aulas por mais tempo foi a Juilliard School (1964-84).
musical. A técnica utilizada na busca desse som ideal e as Foi compositor em residência em vários lugares na Europa
estratégias de aprendizado dependerão de cada músico, e nos Estados Unidos, mas a sua residência permanente é
de sua experiência e de sua capacidade perceptiva. Entre- em New York City (Manhattan) e em Waccabuc, ao norte
tanto, “sem a conceitualização de uma imagem desejada, de New York City.
não existe imagem alguma; não se pode materializá-la
mesmo que sejam boas as intenções. Esta é a razão pela Elliott Carter tem sido um dos mais criativos e influentes
qual não existe substituto para o estudo lento ou ‘pré- compositores por mais de sete décadas. Sua música é fre-
estudo’” (SHERMAN, 1996, p.30). qüentemente caracterizada pelas experimentações com
textura e com relações temporais. A Sonata para Piano
O presente artigo tem como objetivo a discussão da (1945-46) é a primeira obra de Carter a revelar elementos
obra Night Fantasies de Elliott Carter partindo do ponto que viriam mais tarde a alicerçar seu estilo:
de vista do intérprete. Mantive uma pergunta constan-
Aqui, pela primeira vez, Carter deriva o material musical a partir da
te enquanto elaborava este texto: se um colega pianista natureza do instrumento, em particular a amplitude de timbres, a
quisesse estudar essa obra e me pedisse sugestões sobre ressonância e os sons harmônicos, construindo uma obra com um
como abordá-la, o que eu diria? Que alicerces embasa- plano arquitetônico no qual contrastam tempos muito lentos e mui-
riam minhas respostas? Com esse enfoque, a discussão to rápidos, e do qual uma continuidade de sons de caráter improvi-
satório emergem de um alicerce rigoroso. Nesta peça, Carter revela
foi organizada nos seguintes tópicos: justaposição de pela primeira vez a amplitude da dramaticidade que veio a caracte-
caracteres contrastantes, linhas melódicas (independên- rizar muitas das suas composições posteriores (SCHIFF, 2001, p.202)
cia das linhas melódicas e melodias com grandes saltos
intervalares), textura, polirritmias e modulação métri- Na sua Sonata para Violoncelo (1948) Carter abando-
ca, episódios em primeiro plano e em segundo plano e nou o neoclassicismo. Nessa obra, violoncelo e piano

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CARDASSI, L. Night Fantasies de Elliott Carter: estratégias de aprendizagem e performance. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.60-73.

parecem ser completamente independentes ritmica- Durante os meses que passei estudando a peça, foi-me
mente. O piano toca em rigor metronômico, enquan- de grande ajuda a leitura dos artigos escritos pelo com-
to o violoncelo toca de uma maneira expressiva, com positor, em particular aqueles escritos no mesmo período
muito rubato. Essas inovações rítmicas, somadas às da composição da peça. Foi através dessa leitura que vim
harmonias também inovadoras e às frases muito ex- saber do seu interesse pela literatura, “especialmente a
pressivas, proporcionaram um fôlego novo à obra de literatura que confronta a natureza do tempo, e a pre-
Carter daquele período. Em entrevista recente, o com- ocupação com o tempo em si. De fato, a sua coleção de
positor afirmou que um dos primeiros aspectos que textos traz como último artigo o ‘Música e a Cortina do
mais lhe chamou atenção na música da primeira meta- Tempo’, de 1976” (WARBURTON, 1990, p.209).
de do século XX foi o pouco interesse dos compositores
pelo parâmetro ritmo. Além do interesse pela questão do tempo, Carter também
demonstra preocupação com o processo narrativo em lite-
Stravinsky foi talvez um dos que mais experimentou, mas apenas
em certas obras como a Sagração da Primavera. Schoenberg tam-
ratura. Parece que sua preocupação com o tempo encon-
bém havia procurado elaborar ritmos, já que buscava fazer música trou um correlato literário na busca de Hans Castorp pelo
como a fala. Sua música tinha ritmos irregulares da mesma ma- pensamento temporal significativo no romance A Montanha
neira como quando falamos usamos ritmos irregulares. Senti então Mágica de Thomas Mann. De fato, em entrevistas a Allen
que eu gostaria de encontrar um caminho para desenvolver o lado
rítmico da música mais do que outros haviam feito (BAKER, 2002).
Edwards entre 1968 e 1970, Carter revelou interesse parti-
cular pela obra de James Joyce, especialmente pela técnica
Em 1961 o compositor escreveu o Double Concerto para de epifanias 4 encontrada, por exemplo, nos Dublinenses.
cravo e piano, o qual extrapola as relações rítmicas ini- Como o relacionamento entre música e literatura tem sido
ciadas com a Sonata para Violoncelo. De fato, a partir de assunto de grande interesse nos meus trabalhos de pesqui-
então, a manipulação do tempo tem sido um dos elemen- sa anteriores, fiquei entusiasmada ao descobrir a expressão
tos mais enaltecidos em sua obra. “desenvolvimento epifânico” usada por SCHIFF (1983) para
descrever os processos compositivos encontrados na obra de
A tentativa de escapar de uma sensação de tempo mecânica, Carter. Meu entendimento das Night Fantasies alcançou ní-
simples e unidimensional tem sido uma das características mais
radicais da técnica de Elliott, assim como a maneira com que ele
veis mais profundos através desse paralelo com a literatura
procura derivar e dar forma a todo o material melódico a partir da enquanto procurava desenvolver estratégias para aprimorar
sonoridade dos diferentes instrumentos (ROSEN, 2007). meu processo de aprendizado da música.

Prestes a comemorar os seus 101 anos, Elliott Carter tem Discuto a seguir as questões técnico-pianísticas ou ana-
tido uma produção musical extraordinária nos últimos líticas que considero essenciais para o aprendizado crite-
anos. A estréia recente2 de sua única ópera atesta a per- rioso dessa obra de Elliott Carter e as estratégias de que
sonalidade incansável do compositor. O título da ópera, lancei mão a fim de superar os desafios encontrados.
What Next?, nos deixa curiosos. Afinal, que surpresas
ainda nos reserva Elliott Carter, um dos mais respeitados 3.1 - Justaposição de caracteres contrastantes
compositores norte-americanos da atualidade? Um dos principais desafios que encontrei ao estudar
as Night Fantasies foi justamente o aspecto que mais
3 - Night Fantasies me chamou a atenção quando a escutei pela primeira
Em 1980, Elliott Carter compôs Night Fantasies para vez: a justaposição de caracteres contrastantes. Carter
piano solo. A peça foi encomendada por quatro pianis- afirma que
tas: Paul Jacobs, Gilbert Kalish, Ursula Oppens e Charles
Night Fantasies é uma peça para piano com caracteres em con-
Rosen.3 Esta obra apresenta um universo de caracteres tínua transformação, sugerindo os pensamentos e sentimentos
contrastantes e de grande intensidade dramática, o uso fugazes que nos vêm à mente durante um período de insônia no-
de acordes de todos os intervalos e uma superposição de turna. A evocação sutil, como um noturno, que inicia a peça e
ritmos criados a partir de uma organização subliminar em que retorna ocasionalmente, é subitamente interrompida por uma
série de frases curtas e rápidas que vêm e vão. Esse episódio é se-
polirritmias. É uma obra desafiadora ao extremo, que exi- guido por muitos outros de caracteres contrastantes de diferentes
ge conhecimento profundo do instrumento. durações: algumas vezes são abruptos e outras vezes são desen-
volvidos de maneira sutil a partir do que aconteceu antes. A obra
Night Fantasies é uma peça de quase meia-hora em um culmina na repetição periódica, intensa e obsessiva de um acorde
enfático, o qual, ao se desfazer, traz a peça ao seu final.
movimento único. Os seus muitos desafios técnicos serão
discutidos a seguir. Apesar da escrita detalhada e rigorosa, Procurei capturar, nesta peça, a qualidade extravagante e cambiá-
a peça oferece espaço para a individualidade dos pianistas. vel de nossa vida interior em momentos em que ela não se encon-
tra dominada por intenções e desejos direcionados e fortes – cap-
As mudanças imprevisíveis e os gestos deliberadamente ambíguos turar o temperamento poético que, em um contexto romântico,
são os elementos essenciais do seu universo poético musical – e aprecio nas obras de Robert Schumann como Kreisleriana, Carna-
são também a resposta criativa de Carter a essa comissão. Night val, and Davidsbündlertänze (CARTER, 1982, prefácio à partitura).
Fantasies, na sua sucessão de visões fugitivas, cria um ambiente
musical que amplia todas as minúsculas facetas da personalidade Sendo eu também uma apreciadora da obra de Schu-
de cada intérprete. A música não é uma imagem dos intérpretes,
mas foi composta de tal maneira que cada interpretação seja um
mann, compreendi as palavras de Carter imediatamente.
auto-retrato (SCHIFF, 1983, p.213). Entretanto, tocar a sua música com exatidão, e ao mes-

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mo tempo alcançar o nível profundo de interpretação dos incorporados posteriormente. Meu enfoque foi sempre
caracteres poéticos me parecia tarefa quase impossível. incorporar o máximo de informação possível já no apren-
Era evidente que eu ainda precisava percorrer um longo dizado inicial. Essa estratégia me deu a confiança de que
caminho antes de conseguir expressar a intenção poéti- estava fazendo música em cada passagem, por mais curta
ca do compositor através da minha execução. Optei por que fosse, e não apenas superando dificuldades técnicas.
aprender a peça dividindo-a em passagens curtas, com Esse processo lento e cuidadoso significou meses de tra-
o objetivo de nunca perder o conteúdo musical de vista, balho árduo, mas também a certeza de que ao chegar à
mesmo que o processo fosse lento. Mantendo esse objeti- última página eu teria construído a minha interpretação
vo maior durante o aprendizado da peça, pude vislumbrar, da Night Fantasies de maneira mais acurada possível.
mesmo que por instantes muito breves, a intenção poéti-
ca e musical de Carter, o que funcionou para mim como A primeira mudança crucial de caráter acontece logo
uma recompensa pelo trabalho árduo. no início da peça (Ex.1). Os dois últimos tempos do
compasso 14 antecipam o novo andamento e caráter.
Por exemplo, nas primeiras páginas, as quais considero das A nova seção – Fantastico – é bastante ativa em ter-
mais difíceis devido a mudanças constantes de caráter (e mos de contrastes extremos e esse aspecto gera em
às muitas modulações métricas, assunto que estarei discu- si grande desafio ao pianista. Essa seção é leggerissi-
tindo adiante), procurei aprender a música no andamento mo, com sons de intensidade reduzida e apenas alguns
sugerido pelo compositor, trabalhando no contraste de ca- instantes em crescendo para mezzo forte. Devido à
racteres, e nas muitas indicações de articulação, dinâmica grande atividade rítmica e melódica, é difícil manter o
e fraseado. A cada página existem muitos detalhes e po- nível geral de intensidade reduzida indicado pelo com-
deríamos ser tentados a deixar alguns de lado, para serem positor. De fato, este é um dos desafios da peça como

Ex.1 – Night Fantasies – primeira justaposição de caracteres contrastantes: Tranquillo (aqui somente os compassos 13 e 14) e
Fantastico (c.15-18). A seta aponta para a primeira modulação métrica, com o novo andamento das semicolcheias.

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um todo – retornar a sons de intensidade reduzida 3.2.2 - Melodias com grandes saltos
após passagens intensas. Foi-me útil pensar que de- intervalares
pois de cada passagem em sons intensos eu precisaria Night Fantasies é repleta de escrita melódica, entretanto
descansar mentalmente, reduzir o peso do meu toque “a obra não apresenta temas no sentido tradicional e as
e conseqüentemente guardar energia para ao acordes linhas melódicas, depois de uma primeira aparição, nunca
intensos que viriam ao final da peça. retornam” (ANDERSON, 1988, p.136). As melodias ocorrem
Além da justaposição de caracteres contrastantes em se- freqüentemente com grandes saltos intervalares, visitan-
ções longas como no Ex.1, o contraste ocorre também em do diferentes registros do instrumento, o que configura um
escala muito menor, como interrupções breves em dife- desafio ao pianista. Conectar notas em registros diferentes
rentes níveis de intensidade e articulação. requer o uso do pedal de sustentação, já que a maioria
desses intervalos não pode ser alcançada através da sim-
3.2 - Linhas melódicas ples extensão da mão. Entretanto, ao usar o pedal corre-se
3.2.1 - Independência das linhas mélodicas o risco de sustentar notas outras que aquelas que fazem
Por toda a Night Fantasies encontram-se gestos de parte do intervalo a ser conectado. Acredito que o único
duas linhas melódicas independentes, compartilhan- caminho para uma execução precisa de tais passagens seja
do o mesmo caráter declamatório, porém ocorrendo através do uso econômico do pedal, somado a uma rápida
em contextos musicais diferentes. Procurei estudar preparação das próximas notas a serem tocadas. Além dis-
essas passagens da mesma maneira: por exemplo, o so, o uso cuidadoso de variações de dinâmica para enfati-
gesto declamatório dos compassos 59-62 (Ex.2) e a zar as inflexões melódicas que são de difícil percepção em
passagem em molto espressivo em polirritmia 8 x 5 dos saltos intervalares dessa natureza, e finalmente, a memori-
compassos 167-172 (Ex.3). Enquanto estudava esses zação da linha melódica a fim de que se possa manter con-
trechos procurei repetir cada linha melódica em se- tato visual com o teclado ao invés da partitura. Melodias
parado, freqüentemente com o auxílio do metrônomo, com grandes saltos intervalares ocorrem freqüentemente
até que eu obtivesse a independência necessária de em Night Fantasies, algumas vezes sem acompanhamento,
cada linha. Só então passei a executar as duas linhas outras vezes com acordes de 3 notas em outra camada de
concomitantemente, buscando sempre a realização textura, como nos compassos 304-307, ou com acordes de
precisa das polirritmias. 5 notas como na passagem em quase recitativo nos com-
passos 377-386 (Ex.5).
Utilizei a mesma estratégia de aprendizado na se-
ção a seguir, a qual oferece um desafio a mais: as As linhas melódicas em Night Fantasies passam às vezes
duas linhas melódicas se sobrepõem em um mesmo de uma mão para outra, como se pode observar na se-
registro e apresentam uma aceleração em sentido ção com indicação sempre ben in fuori, cantando (Ex.6).
oposto – a mão esquerda mantém um tempo cons- Elas também podem ser encontradas em interrupções
tante enquanto a mão direita passa de quintinas para bastante breves, como nos compassos 23 e 24. Inde-
tercinas (Ex.4). O som almejado para essa passagem, pendentemente da extensão da melodia, ela sempre
com as duas linhas melódicas se aproximando e se guarda semelhança com a música romântica: o caráter
afastando, requer enorme precisão de ataques e total cantabile inspirado pelas melodias para voz, como um
independência rítmica. noturno de Chopin.

Ex.2 – Night Fantasies – gesto declamatório (c.59-62). Os indicativos do caráter declamatório desta passagem são as
expressões ben cantando, forte espressivo e legato

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Ex.3 – Night Fantasies – passagem em molto espressivo (c.167-172)

Ex.4 – Night Fantasies – duas linhas melódicas se sobrepondo em registro (c.314-317)

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Ex.5 – Night Fantasies – legato, quasi recitativo (c.377 - 379): melodia em grandes saltos intervalares percorrendo
diversos registros do piano (mão esquerda), acompanhada por acordes de 5 notas.

Ex.6 – Night Fantasies – melodia passando de uma mão para outra (c.77)

Contrastando com as melodias com grandes saltos inter- reduzidas e do registro médio-agudo do piano, ou como um
valares, Night Fantasies apresenta uma passagem em que “rouxinol mecânico” (SCHIFF, 1983, p.214), percebo esta
a melodia, ou linha expressiva, fica restrita a intervalos de passagem como um momento de bastante tensão devido
segunda menor (Ex.7). Esse trecho, bastante expressivo, em às suas restrições: a melodia não chega a lugar algum além
intensidade reduzida e com uma melodia que se restringe das notas Lá e Si, e o uso do pedal é reduzido, o que não
às notas Lá e Si, é altamente contrastante com todas as permite muita reverberação do instrumento. A extravagân-
melodias anteriores da peça. Ele soa como se as melodias cia das linhas melódicas com grandes saltos parece estar
de grandes saltos tivessem sido aprisionadas em um inter- aprisionada nesse intervalo de segunda menor, pronta para
valo de segunda menor. Embora a passagem possa soar de outro arrombo expressivo. A tensão dessa passagem se des-
caráter etéreo para alguns, devido ao uso de intensidades faz quando novas melodias em grandes saltos acontecem

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na seção appassionato dos compassos 168-172 (ver Ex.3 peça, gera questões técnicas de grande complexidade.
acima). Ao estudar esse trecho, considero essencial uma Um exemplo do uso de articulações diferentes resul-
“compartimentalização” das mãos, especialmente da mão tando em desafios ao performer é encontrado na seção
direita, para que as notas Lá e Si da melodia aprisionada não recitativo collerico dos compassos 235-240 (Ex.8), onde
passem desapercebidas, mas ao contrário, que sejam enfati- uma camada de textura cordal em intensidades reduzidas
zadas, assim como seu caráter expressivo e tenso. ocorre simultaneamente a uma série de ataques curtos
em intensidades elevadas.
3.3 – Textura 5
Night Fantasies oferece ao intérprete uma variedade Nesse exemplo, ambas as camadas são executadas pelas
enorme de possibilidades de texturas ao piano. De acordo duas mãos. Já que o uso do pedal poderia comprome-
com SCHIFF (1983, p.214), ter a camada em staccato, o pianista deve buscar uma
maneira de sustentar os acordes com os dedos 3 a 5 em
o performer é convidado a usar uma variedade enorme de tipos de ambas as mãos, enquanto a camada em staccato é rea-
toque e dinâmica – de leggerissimo a marcatissimo, de staccato
lizada pelos dedos 1 e 2. Este é um processo elaborado,
a cantabile. A música cobre um espectro do teclado em confi-
gurações que se transformam a todo instante, o que leva a uma o de decidir o melhor dedilhado para seções como esta
variação contínua de possibilidades de cores resultantes. que resulte em uma seção confortável do ponto de vis-
ta técnico-pianístico. Momentos como este acontecem
Essa transformação exaustiva de níveis de intensidade e por toda a Night Fantasies e cabe ao performer realizar
de articulação, somada à natureza contrapontística da todas as sutilezas de maneira criteriosa.

Ex.7 – Night Fantasies – melodia “aprisionada” em um intervalo de segunda menor (c.157-162). As setas indicam os
ataques nas notas Lá e Si

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Ex.8 – Night Fantasies - recitativo collerico (c.235-240) – duas camadas: uma em acordes em intensidade piano e a
outra em ataques curtos em intensidade forte com acentos

3.4 – Polirritmias 6 e modulação métrica 7


Polirritmias são, provavelmente, o maior desafio enfren- exigem extrema dedicação por parte do intérprete. Mais
tado pelo pianista ao estudar esta peça de Carter. Ni- uma vez, optei por seguir com um estudo em partes. No
ght Fantasies foi composta sobre um sistema de pulsos caso das polirritmias, iniciei com um treinamento rítmico
ininterruptos do início ao final: um pulso no tempo de longe do piano, até que eu me sentisse confortável ao
MM 10.8 (um pulso a cada 5 segundos e meio) e outro executar polirritmias de 3 x 5 notas, 7 x 5 notas, 5 x 4
em MM 8.75 (um pulso a cada 7 segundos), o que forma notas, e assim por diante. Podemos observar no Ex.9 um
uma polirritmia subliminar de 216:175. Os dois pulsos trecho em polirritmia 5 x 4 semicolcheias em andamento
somente coincidem no primeiro tempo do compasso 3 e rápido e níveis elevados de intensidade com diferentes
nas últimas notas da peça. Embora não seja aparente ao acentuações. Trechos como esse, freqüentemente em ar-
ouvinte, esta estrutura de polirritmias controla a peça ticulação non legato, ocorrem em toda a peça. Se o per-
como um todo. former inicia o aprendizado de trechos como esse já com
as polirritmias internalizadas, o tempo despendido será
O pulso incansável pode ser comparado a um relógio no quarto de
um insone, o seu tic-tac entrando e saindo do nível consciente do
certamente reduzido e o nível de exatidão muito maior.
ouvinte. Nunca antes havia Carter inserido sistematicamente um
tempo real em uma peça de tais dimensões e com tal rigor, e nun- A fim de solucionar polirritmias com as quais eu não es-
ca antes o contraste entre tempo real e tempo psicológico havia tava familiarizada, utilizei sempre o método do “menor
sido apresentado de forma mais estrutural que dramática – embo-
ra para o insone a visão do relógio possa desencadear sentimentos
denominador comum”, com a subseqüente reescrita da
os mais terríveis e dramáticos (SCHIFF, 1983, p.217). polirritmia (WEISBERG, 1993, p. 18). Adicionar a música
às polirritmias pré-estudadas se tornou tarefa factível.
Esta estrutura subliminar, as polirritmias e as muitas mo- Uma outra ferramenta essencial para o aprendizado de
dulações métricas que ocorrem por toda Night Fantasies polirritmias é o estudo de exercícios progressivos tais

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como aqueles encontrados na Cartilha rítmica para piano passo 319 e 320. Mais uma vez o cálculo se faz através
do compositor Almeida Prado.8 Programas de computador da multiplicação do número de ataques em colcheias em
também podem ser úteis na fase de aprendizado de po- cada unidade de tempo, neste caso a mínima. Se mínima
lirritmias. A escuta atenta e repetitiva de um trecho em = 67.5, ao multiplicarmos esse valor por 4 (número de
polirritmia pode auxiliar no aprendizado de passagens de colcheias equivalente a uma mínima), chegamos a 270.
grande dificuldade técnica, entretanto ao escolher esse Essa é a velocidade de cada ataque em colcheias nes-
percurso, sugiro que o performer estude a polirritmia de sa seção. Para se calcular o andamento da colcheia no
maneira aprofundada, compreenda as várias camadas in- compasso 320, teríamos que multiplicar o andamento da
dividualmente e o ritmo resultante, e só então passe a unidade de tempo (semínima pontuada = 90) pelo núme-
fazer uso do computador. ro de colcheias em cada unidade de tempo (3). Portan-
to, 90 x 3 = 270, exatamente o mesmo andamento das
No que se refere às modulações métricas, procurei es- colcheias da seção anterior. Apesar desse cálculo não ser
tudar as transições com muita atenção, repetindo-as necessário nessa transição, já que o próprio compositor
tantas vezes quanto necessário para que eu começasse deixou explícito na partitura que o andamento das col-
a sentir o novo andamento um ou dois tempos antes cheias se mantém o mesmo nessa modulação métrica, é
da transição. Vale a pena ressaltar o fato de que, atra- fundamental fazer uso desse tipo de cálculo em muitas
vés das modulações métricas, Carter nos proporciona das transições em Night Fantasies.
um guia sobre o novo andamento a ser realizado em
cada transição. Por exemplo, nos compassos 14 e 15 A fundação rítmica da Night Fantasies é uma base rigo-
(Ex.1 acima), a velocidade das últimas semicolcheias na rosa e imutável sobre a qual flui uma superfície de sons
mão esquerda correspondem à velocidade das tercinas cambiantes. Acredito que essa base rítmica complexa
da nova seção. Chega-se a esta conclusão através do funcione durante a performance como uma salvaguar-
seguinte cálculo: se o andamento dessa seção é mínima da, algo que sei está presente, e sabê-lo presente me faz
= 47.25, ao multiplicarmos esse valor por 8 (número sentir mais segura. Durante a performance as estruturas
de semicolcheias equivalente à duração de uma míni- rítmicas, as polirritmias, as modulações métricas, todo
ma), chegamos à velocidade de cada semicolcheia nesse esse emaranhado de complexidades dá lugar ao fluir de
trecho (47.25 x 8 = 378). Na seção Fantástico, o anda- gestos de caráter improvisatório, os quais superam a rigi-
mento é semínima = 126. Logo no primeiro tempo dessa dez da estrutura rítmica sobre a qual a peça é construída.
seção ocorrem colcheias em tercinas. A velocidade de A dramaticidade resultante, conseguida depois de supe-
cada colcheia em tercina será, portanto, o andamen- radas as dificuldades técnicas, é um dos aspectos mais
to da unidade de tempo (semínima) multiplicado por 3 fascinantes e intrigantes desta peça para piano.
(126 x 3 = 378). É fundamental o uso de guias tais como
este durante as modulações rítmicas em Night Fanta-
sies, a fim de que se possa manter o controle dos muitos 3.5 - Episódios em primeiro plano e em
andamentos e polirritmias que essa peça oferece. segundo plano
Episódios rápidos e lentos parecem estar continuamente
Outro exemplo de modulação métrica e transições pode sendo negociados em Night Fantasies, enquanto materiais
ser observado no Ex.10. Neste trecho, a velocidade das inicialmente mantidos em segundo plano passam para um
semicolcheias nos compassos 318 (em quintinas) e 319 primeiro plano e vice-versa. Esse aspecto de mutabilidade
(em septinas) é a mesma, enquanto na próxima transição, contínua constitui um dos elementos essenciais que fazem
o guia para o intérprete está na mão esquerda, pois a ve- desta peça monumental de mais de 20 minutos uma expe-
locidade das colcheias se mantém a mesma entre o com- riência auditiva absolutamente fascinante.

Ex.9 – passagem em polirritmia 5 x 4 e andamento rápido: = 94.5 (c.32)

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CARDASSI, L. Night Fantasies de Elliott Carter: estratégias de aprendizagem e performance. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.60-73.

Ex.10 – Night Fantasies – modulações métricas entre c.317 e 318 e entre c.318 e 319

Ex.11 – Night Fantasies – a seta aponta para o primeiro dos acordes repetidos (c.473-477)

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Carter descreve a obra [Night Fantasies] como um movimento rá- Essa repetição de acordes acontece depois de aproxima-
pido interrompido (como em Schumann) por ‘trios’ lentos que gra- damente 20 minutos de música incrivelmente complexa e
dualmente se transformam em um movimento lento interrompido
por ‘trios’ rápidos. Episódios rápidos e lentos têm, portanto, suas é fundamental que o intérprete maneje apropriadamente
funções inter-cambiadas de segundo plano para primeiro plano sua energia física e mental, pois esses acordes finais são
─ uma diferença que o performer deve evidenciar. Os caracteres essenciais para uma performance convincente.
de música lenta e rápida também evolvem durante a peça. Vários
tipos distintos de música rápida (fantastico, marcato, cantabile,
leggero, appassionato) aparecem antes que a seção rápida mais 3.6 - Estrutura harmônica
longa da peça aconteça (capriccioso leggerissimo). Todos esses [ti- A estrutura harmônica de Night Fantasies é formada por
pos diferentes de música rápida] retornam como ‘trios’ durante a 88 acordes de 12 notas abrangendo todos os intervalos
segunda parte da peça, com as passagens em marcato se tornando
cada vez mais proeminentes. De maneira semelhante, a música possíveis. Cada intervalo faz par com seu inverso equiva-
lenta tem uma transformação de caráter que vai do início Tran- lente ao redor de um trítono central. Em outras palavras,
quillo, quase inaudível , com acordes flutuando e breves ostinatos segundas menores fazem par com sétimas maiores, se-
estáticos, até aparições cada vez mais líricas e intensas (...) Ma- gundas maiores com sétimas menores, terceiras menores
teriais rápidos e lentos finalmente intersectam em seus pontos de
maior intensidade com os acordes agressivos dos compasso 472 e com sextas maiores e assim por diante, sempre mantendo
subseqüentes; depois desse clímax de fusão a música gradualmen- um trítono entre eles (Ex.12).
te se esvai (SCHIFF, 1983, p.217).
O compositor faz uso desses 88 acordes de todos os in-
Uma execução criteriosa da obra Night Fantasies deve tervalos das maneiras mais variadas. Algumas vezes ape-
possibilitar ao ouvinte a percepção dessa transferência de nas uma classe de intervalos se manifesta, outras vezes
materiais do primeiro para o segundo plano e vice-versa, e acordes de três notas predominam. Há passagens em que
me perguntei o que eu poderia fazer para evidenciar esse Carter recorre ao seu aparentemente favorito tetracorde
aspecto. Inicialmente procurei enfatizar o contraste entre (0,1,4,6).9 O processo compositivo foi, obviamente, muito
as passagens rápidas e lentas, no entanto percebi que esse mais complexo do que apenas escolher alguns interva-
caminho estava colocando em risco os tempos corretos los predominantes para cada seção e uma análise desse
e as modulações métricas que eu havia trabalhado com aspecto vai além dos objetivos deste trabalho. Por outro
tanto afinco. Busquei então me concentrar nesse contraste lado, do ponto de vista do performer, considero impor-
com o cuidado de não exagerar a diferença de andamen- tante estar ciente de pelo menos alguns pontos estraté-
tos, definidos com precisão pelo compositor. Acredito que gicos nos quais determinados intervalos predominam e
cada intérprete, ao executar essa obra, estará em busca como eles são transformados nas passagens que seguem.
constante por precisão técnica, entretanto o caráter único Por exemplo, foi-me útil saber que intervalos de quar-
da sua interpretação nunca se perderá. Detalhes interpre- ta e quinta predominam no início, enquanto sétimas e
tativos serão adicionados, sem dúvida, e, por conseguinte, nonas ocorrem mais freqüentemente no final da peça, e
cada intérprete fará da sua interpretação de Night Fan- que na seção central caprichoso que acontece a partir
tasies o seu próprio auto-retrato sonoro. O constante in- do compasso 195, um acorde de três notas predomina
tercâmbio de funções entre as passagens rápidas e lentas (0,1,5). Acima de tudo, considero importante estar ciente
produz em Night Fantasies um clímax extraordinário com das transformações pelas quais passam os intervalos de
a repetição de um acorde (Ex.11) na seção final da peça. uma seção a outra.

Ex.12 – Night Fantasies – acorde principal entre os 88 acordes de todos os intervalos (SCHIFF, 1983, p.214)

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CARDASSI, L. Night Fantasies de Elliott Carter: estratégias de aprendizagem e performance. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.60-73.

4 - Comentários finais Existem, sem a menor dúvida, muitos obstáculos técnicos


A discussão aqui apresentada é o resultado de minhas a serem vencidos pelo pianista que se aventura por esta
reflexões durante e após o aprendizado desta obra mo- peça, entretanto esses desafios não devem desencorajar
numental de Elliott Carter. Tive que trabalhar exaustiva- o performer interessado nesse repertório. Ao contrário, as
mente em diversas questões técnico-pianísticas, além de dificuldades técnicas devem ser encaradas como ferra-
desafios rítmicos que eram, de certa forma, novos para mentas para o performer aprimorar seu desenvolvimento
mim, e que provavelmente o são para muitos músicos. musical. O objetivo deve ser sempre a busca pela per-
Considero essencial desenvolver total controle sobre as formance ideal e que proporcione ao ouvinte uma expe-
polirritmias e modulações métricas, assim como absolu- riência perceptiva ideal. Enquanto nos preparamos para
ta independência das mãos, já que cada linha melódica essa performance ideal, muitos caminhos terão que ser
ocorre freqüentemente com um tipo de articulação, ritmo percorridos, e é nessa fase de definição de estratégias
e níveis de intensidade diferentes. Depois de superadas as de aprendizado que trabalhos como este encontram a
dificuldades técnicas, o performer pode focar seu estudo sua razão de ser. Questões técnicas discutidas neste ar-
na realização eficaz da justaposição de caracteres con- tigo podem parecer sobre-humanas para alguns. Prefi-
trastantes e no intercâmbio de funções dos episódios em ro, no entanto, salientar que a peça musical em estudo
segundo e primeiro plano. foi concebida para ser executada por um pianista, não
por uma máquina. Deslizes de performance e pequenas
Os detalhes e, conseqüentemente, os desafios que Night imperfeições acontecerão indubitavelmente, e devem
Fantasies oferece são muitos. De fato, para Carter, cada ser encarados como oportunidades para criação de uma
detalhe é essencial: performance pessoal, diferenciada, única. Apesar dos pro-
blemas aqui discutidos terem sido originados na minha
Todo momento deve, de alguma forma, se fazer importante, assim experiência prática e as soluções técnicas apresentadas
como todo detalhe (...). Estou sempre interessado nas frases de um
compositor, no conteúdo e forma dessas frases, na maneira como
terem, certamente, um enfoque pessoal, espero que este
ele as une, o tipo de articulação que utiliza, assim como no fluxo trabalho possa ser útil a outros colegas pianistas que de-
geral e continuidade de uma seção longa e na construção da obra cidam se dedicar ao estudo desta peça de Elliott Carter,
como um todo (CARTER, 1967). uma das mais desafiadoras e fascinantes do repertório
para piano do século XX.

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Notas
1 A música complexista apresenta 3 elementos principais: grande quantidade de informação, tanto quantitativa: (uma massa de eventos sonoros
acontecendo de maneira rápida e densa), quanto qualitativa (uma massa de relações subcutâneas exibindo diferentes dimensões, riqueza semântica
e grande habilidade em formar contatos mútuos); polivalência dos níveis de significado e um alto nível de energia de coesão entre as partes e o todo
(MAHNKOPF, 2002, p. 54).
2 “What Next”, a única ópera de Carter, estreou na Staatsoper Unter den Linden, em Berlim, em 16 de setembro de 1999. A estréia norte-americana
aconteceu no Tanglewood Music Centre em Lenox, Massachusetts, em 26 de julho de 2006.
3 Cada um dos quatro pianistas que comissionaram a peça realizou a sua estréia da obra em 1980 e 1981. Oppens foi a primeira a estrear a peça em
1980 (em Bath, England) e a lançar Night Fantasies em CD, em 1981, tendo revisitado a obra desde então e lançado sua nova versão em 2008. Além de
gravações de Oppens, Rosen, Jacobs e Kalish, a obra foi lançada em CD por vários pianistas, incluindo Aleck Karis, Stephen Drury e Pierre-Laurent Aimard.
4 Técnica através da qual uma obra literária apresenta momentos em que a realidade ou o significado profundo de algo é percebido de forma súbita,
causado por um acontecimento banal.
5 Textura se refere aos aspectos sonoros de uma estrutura musical. Pode estar relacionado tanto aos aspectos verticais de uma obra ou passagem
como, por exemplo, a maneira pela qual as partes individuais ou vozes se inter-relacionam, ou a atributos tais como cor e ritmo, ou ainda a carac-
terísticas de performance como articulação e níveis de intensidade. Embora o controle textural tenha sido de grande importância para compositores
desde a Idade Média, com o advento do dodecafonismo e do serialismo no século XX e com o subseqüente colapso do sistema tonal na música
ocidental, textura passou a ser um elemento ainda mais importante na composição (SADIE, 2001, p. 323).
6 Polirritmia é uma manifestação simultânea de diferentes divisões de uma unidade de tempo, ou de uma duração temporal maior. Com polirritmias
simples, tais como 3 contra 2, os pulsos coincidem com freqüência. Carter, no entanto, recorre a polirritmias lentas que raramente coincidem (SCHI-
FF, 1983, p. 44).
7 Modulação métrica é uma mudança proporcional de tempo que ocorre através da re-escrita de um tempo metronômico como na indicação “nova
mínima igual à semínima pontuada anterior”. O termo modulação métrica foi usado pela primeira vez por Richard Franko Goldman em 1951 ao
descrever a Cello Sonata de Carter, mas o compositor tem utilizado esse recurso desde a sua Sinfonia n. 1 de 1942. Em Night Fantasies, modulações
métricas ocorrem em toda a peça.
8 A Cartilha rítmica para piano do compositor Almeida Prado (GANDELMAN, 2006) oferece vários exercícios progressivos para o aprendizado de po-
lirritmias. O valor artístico e pedagógico destas peças curtas é imenso e recomendo aos alunos de piano e outros instrumentos que se familiarizem
com essa obra antes de se aventurarem por obras tais como a discutida neste artigo.
9 Utilizo aqui o conceito de classe de intervalos em que as notas são consideradas sem ordem específica. Dessa maneira, os 12 intervalos possíveis
em uma oitava são reduzidos a um grupo de 7 classes de intervalos numerados de 0 a 6. Cada classe de intervalos é formada pela menor distância
entre duas notas, não importando a ordem delas.

Luciane Cardassi, pianista, é Doutora em Música (Contemporary Piano Performance) pela Universidade da Califórnia,
San Diego (EUA) e Mestre em Música pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi bolsista da CAPES. Tem artigos
publicados em importantes revistas nacionais na área de performance da música contemporânea, além de palestras e
concertos no Brasil e exterior.

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SONODA, A. V. Tecnologia de áudio na etnomusicologia. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.74-79.

Tecnologia de áudio na etnomusicologia

André Vieira Sonoda (UFPB, João Pessoa, PB)


sonodadoc@gmail.com

Resumo: Estudo sobre a relação da etnomusicologia com a tecnologia de áudio adentrando nos principais desenvolvi-
mentos tecnológicos e conceituais dessas duas áreas desde o final do século XIX. Objetiva resumir a história da primeira
área, desde a musicologia sistemática até hoje com base na tecnologia que permeou seu percurso, chamando atenção
para questões pouco contempladas. Foram subsídios metodológicos: a pesquisa bibliográfica e de campo, análises de
documentos e comportamentos em estúdio de gravação e análises acústicas. Verificou-se a existência de marcos delin-
eadores do processo histórico ocorrido. Sugere que qualquer fator relacionado com um processo de produção fonográ-
fica pode influenciar o resultado acústico de uma manifestação musical gravada. Sugere também uma maior atenção
em pesquisas frente à influência de elementos técnicos e conceituais de produção fonográfica em manifestações de
transmissão oral.
Palavras-chave: etnomusicologia; produção fonográfica; música de tradição oral; tecnologia de áudio; Pernambuco.

Audio Technology in Ethnomusicology

Abstract: Study about the relation of the ethnomusicology with the audio technology covering the main technologi-
cal and conceptual developments of these two areas since the late nineteenth century. It aims at covering the history
of the former since the systematic musicology until the present centering on the technology that characterized the
way, calling attention to less covered questions. The methodological procedures were: bibliographic and field research,
document and behavior analysis in recording studio and acoustic analysis. It suggests the existence of some landmarks
in the historical process and that any factor related with the phonographic production process may exert influence
on the acoustic result of a recorded musical manifestation. It also calls attention to the need of more research on the
influence of technical and conceptual elements of phonographic production on oral transmission manifestations.
Keywords: ethnomusicology; phonographic production; oral tradition music; audio technology; Pernambuco (Brasil).

1- A era mecânica da história do áudio e a


musicologia comparativa
Desde seus primeiros passos a etnomusicologia tem a o fonógrafo de Thomas Edison que, naquele fim de século,
tecnologia de áudio como elemento chave e de grande já se configurava como uma importante tecnologia em
importância para o seu desenvolvimento. Mesmo após o pesquisas antropológicas.
importante trabalho de Guido Adler (1855-1941) no sen-
tido de tratar formalmente a música não ocidental como O fonógrafo de cilindro mecânico de Thomas Edison foi o
objeto de estudos da musicologia sistemática em 1885 primeiro dispositivo prático de gravação e reprodução so-
(PINTO, 2004, p.104), algumas descobertas ainda esta- nora. Tendo sido inventado em 1877, chegando ao Brasil
riam por acontecer para delinear as bases fundamentais em 1879 (SILVA, 2001, p.1-2), este dispositivo utilizava
do trabalho musicológico comparativo que, posterior- cilindros de cera como mídia para gravação dos sons que
mente, se chamaria “etnomusicologia”. eram gravados em forma de cavidades.

A conclusão de Alexander John Ellis de que o sistema so- O registro sonoro mecânico acontecia a partir de um cone
noro ocidental não era um “padrão natural”, mas uma de metal que tinha em sua extremidade um diafragma.
“concepção cultural” (BLACKING, 1974, p.56), conduziu à Este comandava a agulha que cavava os sulcos na cera.
constatação de Carl Stumpf de que a “desafinação” era, Portanto, era necessário potência sonora para se ter cer-
então, um conceito etnocêntrico por pressupor um “erro” teza de que houve a gravação do som. [...] (CAZES, 1999,
do outro em relação a uma “verdade” sua (OLIVEIRA PIN- p.41. Apud SILVA, 2001).
TO, 2004, p.107). Tais acontecimentos, contudo, além de
reconhecidamente importantes para a estruturação da O cilindro de cera foi a principal mídia para consumidores
etnomusicologia, apresentavam uma relação direta com em larga escala entre 1890 e 1910, sendo utilizado no

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010 Recebido em: 13/05/2008 - Aprovado em: 02/11/2009
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SONODA, A. V. Tecnologia de áudio na etnomusicologia. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.74-79.

Brasil para gravações etnográficas até 1937 (OLIVEIRA de desenvolvimento das sociedades e passa a considerar
PINTO, 2004, p.119). Em 1902, inicia-se a gravação de pontos de vista culturais distintos sem o anterior julga-
discos comerciais no Brasil, dando início à “era mecâni- mento de valores.
ca” (CARDOSO FILHO; PALOMBINI, 2006), denominação
relacionada ao princípio de funcionamento desse proces- Outro fato característico desta nova musicologia e
so de gravação e reprodução sonora. Esta durou, aproxi- imprescindível de se lembrar nesta abordagem, é a
madamente, até o final da década de 1920 (1928-1929), assimilação das novas tecnologias como indício de
quando os gravadores de fita magnética começaram a se renovação da disciplina que, com isso, passava a se
disseminar. Vale ainda salientar a existência de casos que aproximar dos moldes das ciências exatas e se contra-
não se enquadram nessas datas como a Missão de Pes- por às tradições filológicas das ciências humanas que
quisas Folclóricas organizada por Mário de Andrade em desde a segunda metade do século XIX buscavam, sem
1938, que ainda realizou gravações com discos no Norte nenhuma unanimidade, um modelo ou metodologia de
e Nordeste do Brasil. pesquisa científicos mais adequados à sua condição.
Modelo este, classificado de “qualitativo” ou “visão
No início do século XX, com os norteadores artigos de idealista/subjetivista” (QUEIROZ, 2006, p.88). Aliás, a
HORNBOSTEL (1905) para a musicologia comparativa, assimilação de novas tecnologias na etnomusicolo-
evidencia-se a utilidade desta tecnologia para os arquivos gia como ferramentas auxiliares se tornariam, duran-
fonográficos e, consequentemente, para a disciplina que te todo o século XX, uma espécie de característica na
já delineava uma história paralela à dos gravadores de disciplina (BOHLMAN, 2003, p.03). Neste aspecto, vale
áudio. A criação de tais arquivos, possibilitada, sobretu- lembrar a ótica visionária de Hornbostel, já em 1905,
do, pela criação e desenvolvimento do fonógrafo, passa a realçando a importância da tecnologia de gravação de
representar, na história da musicologia comparativa, uma imagens em movimento nos registros fonográficos, o
era marcada por registros musicais de todos os pontos que se chamaria mais tarde na antropologia de “per-
do planeta, mesmo que realizados por pessoas externas à formance studies” (PINTO, 2004, p.113).
área desta musicologia. Sob a influência do evolucionis-
mo, busca-se representar uma história da musicalidade 2- A era magnética e o realinhamento da
da humanidade como um contínuo se estendendo desde etno-musicologia
seus “primeiros estágios de desenvolvimento”, ou seja, Com a invenção da gravação elétrica (1927) e o conse-
sociedades economicamente não desenvolvidas, até está- qüente desenvolvimento dos gravadores de fita magnéti-
gios tidos “mais evoluídos” como sinônimo de sociedades ca na década de 1930, seguidos pela popularização desta
ocidentais econômica e politicamente dominantes. tecnologia na década de 1940 com a difusão do gravador
Ampex, diminuíram os custos e inconvenientes para a re-
Ao observar a história do fonógrafo por esta ótica, pa- alização dos processos de gravação, além, evidentemente,
rece razoável concluir que durante o século XX o desen- do aumento da qualidade de áudio imposta por esta nova
volvimento de equipamentos de gravação de áudio para tecnologia. Nesta época, surgem consagrados gravadores
trabalhos em campo foi influenciado de alguma forma de fita magnética equipados com baterias e específicos
pela crescente demanda dessa tecnologia entre pesquisa- para trabalhos de campo, a exemplo dos conhecidos Na-
dores e interessados em gravação etnográfica. Contudo, gra e Stellavox (MYERS, 1992, p.54).
supondo a veracidade dessa hipótese, se durante a época
dos arquivos fonográficos observa-se um aumento de in- O desenvolvimento da gravação elétrica simultaneamen-
teresse por gravadores de campo, vale lembrar que um te ao da tecnologia de gravação de imagens, tornaria
fato posterior parece ter sido ainda mais responsável por possível, alguns anos mais tarde, a criação do filme como
este aumento de demanda tecnológica. Ou seja, a defini- o conhecemos hoje, associando duas importantes dimen-
tiva mudança de paradigma na musicologia comparativa sões da percepção humana, o som e a imagem. Esta nova
dando ênfase ao trabalho de campo, fato este que termi- possibilidade configurou um grande avanço para análises
naria por aproximar a disciplina dos novos direcionamen- científicas e, consequentemente, para a área da antropo-
tos antropológicos, distanciando-a, cada vez mais, das logia e musicologia. A partir dessa época (últimos anos da
características musicológicas “comparativas” nos moldes década de 1930), o registro de imagens em movimento
conhecidos do final do século XIX. na produção de etnografias se tornaria mais comum, fato
que vem sendo observado até a atualidade com consecu-
Com a crescente importância da teoria da relatividade de tivos avanços tecnológicos.
Albert Einstein (1905) e o desenvolvimento do difusionis-
mo na antropologia, a exemplo dos estudos de Franz Boas Como exemplos de célebres trabalhos utilizando imagem,
sobre os Inuit das ilhas de Baffin e os estudos de Horn- podemos citar a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938
bostel sobre indígenas norte-americanos, surge uma nova organizada por Mário de Andrade com objetivo de reali-
consideração sobre a cultura do “outro” na musicologia zar gravações sobre a música do Norte e Nordeste do Bra-
comparativa. Isto coincide cronológica e ideologicamen- sil; as gravações de Jean Rouch na “Mission Niger 1950-
te com o desenvolvimento dos princípios modernistas, 1951 de L´Institut Français de L´Afrique Noire” e “Les
se despoja da velha visão oitocentista de uma via única Maitres Fous (1956)”, além de muitos outros trabalhos

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SONODA, A. V. Tecnologia de áudio na etnomusicologia. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.74-79.

desenvolvidos por pesquisadores e etnomusicólogos em subsídio auxiliar para estudos e pesquisas. Seja porque
todo o planeta com a mesma tecnologia. Como exemplo o áudio isoladamente não fornece informações sufi-
mais recente, vale mencionar o documentário Tambours cientes para se constatar algo sobre uma cultura, seja
et Djembés du Burkina Faso. porque, geralmente, a música em contextos de trans-
missão oral apresenta-se como elemento indissociável
Por volta da década de 1950, a musicologia comparativa de outros aspectos humanos e sociais como, indire-
sofre um realinhamento conceitual e paradigmático, o que tamente, afirma Bohlman: [...] ao contrário das bases
resultou na mudança do termo para “etno-musicologia” etnográficas dos anos 1950, baseadas em tecnologias
e, posteriormente, etnomusicologia. O novo termo, além de gravação sonora, nos anos 1990 tais conceitos et-
de simbolizar este realinhamento disciplinar, coincidiu nográficos baseavam-se raramente só em gravações
cronologicamente com outras mudanças durante as pri- (BOHLMAN, 2003. p.3).
meiras décadas que seguiram a segunda guerra mundial,
a exemplo da mudança do centro de pesquisa de campo Ainda para corroborar a idéia central, Rafael José de Me-
etnomusicológica da Europa para os Estados Unidos da nezes Bastos se referindo, especificamente, à música in-
América; da maior afinidade disciplinar da etnomusico- dígena, afirma:
logia com a antropologia cultural e social por conta de
etnomusicólogos americanos; de uma maior aproximação A música, nas terras baixas da América do Sul, não é simplesmen-
te um veículo para dizer-se algo, mas o cerne do dizer. [...] está
de práticas etnográficas por parte da etnomusicologia congenitamente ligada à dança, à poesia e a outros universos de
asiática e européia; da mudança de método científico; do sentido, não necessariamente auditivos [...] (BASTOS, 2005. p.11).
acompanhamento das revoluções tecnológicas por pes-
quisadores desta área, etc. (BOHLMAN, 2003, p.1-3). Ou- Neste novo contexto temático mais abrangente, as
tro importante fato para a segunda metade do século XX pesquisas passam a abordar questões outras que
foi a criação do transistor, facilitando o desenvolvimento envolvem, por exemplo, os usos e funções da músi-
das tecnologias e possibilitando, sobretudo, o desenvolvi- ca para aqueles que a produzem (MERRIAM, 1964);
mento e aprimoramento dos computadores. interpretações de contextos culturais variados (GE-
ERTZ, 1978); música popular (CAZES, 1998; SANDRO-
Durante a segunda metade do século XX, o direcionamen- NI, 2001; KUBIK, 1981); música indígena americana
to do enfoque etnomusicológico no sentido de constituir (TRAVASSOS, 1986; SETTI, 1985); contextos religiosos
uma imagem mais abrangente de fenômenos relativos à (BRAGA, 1998); relações entre vida musical, regras
música, termina por distanciar a disciplina dos velhos ob- sociais e sistema musical (NETTL, 2003); mito e hie-
jetivos observados nos anos 1950 que privilegiavam uma rarquia na música (BLUM, 1991); abordagens etno-
investigação minuciosa de uma única cultura musical musicológicas macro e microcósmica sobre músicas
(BOHLMAN, 2003, p.03). O fenômeno global do concei- variadas (NETTL, 2003; BASTOS, 2005); análises so-
to de estado nação favorece assim o desenvolvimento bre a música culta ocidental (NETTL, 2003); relação
da pesquisa musical intensiva e extensiva, conduzindo à da música com a violência ou como arma (CUSICK,
adaptação das práticas políticas e institucionais da etno- 2006); etc., ou seja, no final do século XX, os etno-
musicologia (BOHLMAN, 2003, p.03). musicólogos se voltam para a constituição de uma
imagem tão completa quanto possível dos diversos
No âmbito das tecnologias de gravação de áudio e vídeo fenômenos que constituem a música, indo em direção
após a segunda guerra, vemos o surgimento do cassete quase completamente oposta aos objetivos dos anos
em 1963 (GOHN, 2001, p.05) como tecnologia holan- 1950 de investigação detalhada de uma única cultura
desa da Phillips; o VHS (Video Home System) criado em musical. Dessa forma, a incompatibilidade do rotulo
1976 pela JVC; o DAT (Digital Audio Tape) criado pela “etnomusicologia” às novas abrangências da discipli-
SONY em 1977 (GOHN, 2001); o CD (Compact Disk) em na conduziu a Sociedade de Etnomusicologia (SEM) a
1977 (GOHN, 2001, p.05); o desenvolvimento dos com- discutir uma substituição para esse termo em 1990,
putadores pela IBM durante a década de 1980; o ADAT só vindo, contudo, a enfatizar a disciplinar revolução
(Alesis Digital Audio Tape), com 8 canais simultâneos de 1950 (BOHLMAN, 2003, p.03-04).
desenvolvido pela empresa Alesis em 1991; o DV (Di-
gital Video) em 1996, além de tecnologias como o MD 3- A era digital e a influência da tecnologia
(Mini Disk), Mini DV, formatos compactados de arquivos de áudio na etnomusicologia
digitais de áudio e vídeo, os conhecidos MP3, MP4, etc. Indiscutivelmente o século XX foi um divisor de águas
Todos estes subsídios tecnológicos contribuíram e ainda no âmbito das ciências humanas. Mesmo porque, essa
contribuem para a realização de etnografias e pesquisas mudança ocorreu na ciência em geral como resultado
em diversas áreas científicas. de uma modificação conceitual no pensamento do ho-
mem enquanto ser que questiona. Não se tratava mais
Apesar de todo este desenvolvimento tecnológico, as- de atribuir um status maior para as ciências exatas em
sociado à diversificação dos objetos, objetivos e abor- detrimento das “outras”. Essa condição hierárquica das
dagens nas pesquisas etnomusicológicas, o emprego ciências, aliás, parece nunca ter tido muito sentido, uma
dessas tecnologias ainda representava, apenas, um vez que a ciência é um produto do pensamento humano,

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SONODA, A. V. Tecnologia de áudio na etnomusicologia. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.74-79.

portanto, considerações de graus de importância entre c) A performance dos produtores, técnicos e/ou pesquisa-
ciências só refletiam a parca consciência do homem em dores durante a gravação – Indiscutivelmente, um fator de
relação à sua própria capacidade de imaginação e inteli- forte influência no produto final de uma gravação de áudio.
gência. Além disso, o próprio conceito de “importância” é Como é comum, entre produtores fonográficos, o desconhe-
contextual, ou seja, relativo a algo, em algum momento e cimento de detalhes dos processos técnicos de gravação de
para alguém definido. áudio, a figura do técnico de gravação, por exemplo, exerce
influência direta no resultado acústico obtido.
Ao pensarmos nas mudanças conceituais ocorridas na
antropologia, traçando uma nova lógica para entender d) A idéia de que os conceitos de uma cultura só exis-
o ser humano, sobretudo com base na importância que tem, em plenitude, entre os indivíduos dessa cultura
o trabalho de campo assume no século XX, podemos (insiders) - Como seriam tais gravações, pós-produções,
imaginar um paralelo desta área com a etnomusicolo- etc. se realizadas por nativos produzindo suas próprias
gia. Esta última tratou de trazer para a área da música músicas, segundo seus próprios conceitos culturais e mu-
uma dimensão antropológica, nesta acepção, nunca sicais, principalmente? Sem dúvidas, seriam muito mais
antes experimentada. Estudos de educação musical, realistas para eles e, talvez, representassem melhor seus
performance, teoria musical, etc. não mais poderiam conceitos acerca daquilo que chamamos “música”!
ser encarados da forma como o eram antes do que po-
deríamos chamar de fase de reconhecimento da condi- e) O que é considerado essencial em música? – Para um
ção étnica da música. indivíduo qualquer, certos parâmetros são considerados
primordiais para se considerar esta sonoridade como “sua
Neste aspecto, vale lembrar que se a etnomusicologia música”. Isso, evidentemente, se aplica para realização de
realmente foi responsável por esta revolução na área uma gravação coerente. Sobretudo, frente à realidade e
da música, internamente permaneceu sem uma abor- às considerações culturais daquele povo, ou seja, cada et-
dagem convincente de alguns âmbitos importantes. As nia tem parâmetros que os julga necessários para que se
consequências da utilização das tecnologias de áudio possa considerar uma música como “sua própria”.
na gravação de tradições não escritas foram um desses
pontos. Pouco se discutiu sobre a influência que um pro- Intitulada “Processos Fonográficos e Música de Tradição
cesso de gravação (etnográfica ou mercadológica) pode Oral em Pernambuco”, a pesquisa trata a relação dos con-
causar em uma cultura. Com a devida consideração dos ceitos de produção fonográfica com a música de trans-
trabalhos realizados sobre temas semelhantes, venho missão oral gravada, apesar de considerar, também, a
realizando uma pesquisa que aborda, especificamente, repercussão desta relação na sociedade.
esta questão com ênfase nos resultados acústicos de-
correntes de processos de gravação de áudio relativos Respostas para a questão central desta investigação, se
à culturas de transmissão oral. Com base nos dados le- mostram de especial importância, sobretudo, quando esta
vantados neste processo de pesquisa, é possível per- relação se configura como algo capaz de modificar a ima-
ceber uma certa influência dos conceitos de produção gem desses estilos musicais para a sociedade. Infelizmente,
fonográfica, não apenas nos resultados acústicos dos esse fato, na grande maioria dos casos, acaba por consti-
materiais gravados, mas, principalmente, nas próprias tuir uma visão equivocada dessas tradições, perpetuando
manifestações culturais. padrões musicais comerciais em detrimento da manuten-
ção de características importantes e singulares da música
Nesta pesquisa, tento considerar, sobretudo, conceitos de tradição oral brasileira. Isso proporciona uma modifi-
norteadores mais condizentes com a especificidade da cação na estrutura musical e social do contexto inicial da
questão, a exemplo de considerações como: manifestação, o que tem reflexo direto na estrutura da so-
ciedade local e, indiretamente, em toda a sociedade.
a) A impossibilidade de registro de uma “realidade
acústica” em gravações - Esta dita realidade não é Com todo o desenvolvimento tecnológico do século XXI vol-
real, ou seja, ela é essencialmente contextual e não tado para etnografias e gravações em contexto específico,
apresenta parâmetros de comparação. Além disso, é espera-se agora um avanço em sentido diverso do almejado
variável entre indivíduos devido, tanto às diferenças até aqui. Avanço este que, não mais se voltando para ques-
entre os sistemas auditivos humanos, quanto, princi- tões de áudio diretamente, tende a seguir para o desenvolvi-
palmente, aos respectivos legados culturais das diver- mento de conceitos sobre procedimentos de gravação mais
sas sociedades. pertinentes em relação aos anseios, tanto de uma etnografia
responsável, quanto de grupos sociais que prezam pela ma-
b) Consciência de que o produto de uma gravação de nutenção das características de sua música.
áudio deriva, essencialmente, da influência do produ-
tor (pesquisador), além dos fatores técnicos e con- Neste sentido, vale lembrar que mesmo considerando a
textuais - Além disso, sua interpretação depende dos impossibilidade de manutenção das características bási-
conceitos ou pré-conceitos do ouvinte que a assimila e cas de um elemento musical após um processo de produ-
interpreta de forma singular. ção fonográfica, sobretudo no que diz respeito às mudan-

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SONODA, A. V. Tecnologia de áudio na etnomusicologia. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.74-79.

ças entre performances e gravações musicais, podemos 4- Considerações Finais


considerar que um limiar mínimo de variação acústica Apesar do grande desenvolvimento tecnológico alcan-
na sonoridade do objeto é desprezível se considerarmos çado desde o século XIX, os processos de produção fo-
as capacidades auditivas humanas como ponto de refe- nográfica podem influenciar os resultados acústicos dos
rência. Além disso, esta variação acústica seria desprezí- fonogramas de manifestações musicais de tradição oral,
vel, principalmente, se quem produziu (tocou) a música, proporcionando diferenças entre a sonoridade do con-
considera que a gravação é digna de representá-lo, ou texto de performance e a sonoridade da mídia após o
seja, se, para o músico, aquela gravação pode, enfim, ser processo fonográfico. Tais diferenças, em geral, decorrem
considerada “a” sua música gravada. dos diversos fatores que compõem este processo. Estes
fatores possibilitam influências, também, sobre alguns
Outra importante questão é que a tecnologia de gravação aspectos da própria manifestação musical.
de áudio atual já é perfeitamente capaz de manter carac-
terísticas musicais e acústicas da maioria dos elementos Como os mecanismos da mídia têm profunda relação
e/ou contextos sonoros inalteradas ou com alterações com algumas mudanças culturais e os processos fono-
mínimas após um processo de gravação. Evidentemente, gráficos relacionam-se diretamente com estes mecanis-
com base em processos de gravação pautados nos co- mos, por consequência, os processos fonográficos são in-
nhecimentos teóricos de acústica. Assim, as mudanças timamente relacionados com algumas dessas mudanças,
nos aspectos musicais e acústicos, como anteriormente principalmente, no âmbito da música de tradição oral.
mencionado, parecem ser decorrentes, principalmente, Assim, conceitos impróprios para a produção desse tipo
do emprego de conceitos equivocados de produção fo- de música, parecem contribuir, também, para mudanças
nográfica na produção de músicas de transmissão oral, nas estruturas sociais destas manifestações musicais.
processos estes que geralmente apresentam interesses
econômicos e/ou políticos como objetivo principal. Neste sentido, a análise dos processos fonográficos não
só representa tópico de considerável importância para
Sob esta ótica, então, a presente pesquisa terá papel a etnomusicologia, alertando para questões de mudan-
fundamental no esclarecimento dessa influência e, con- ças na música decorrentes desses processos de grava-
sequentemente, em propiciar o desenvolvimento de al- ção, como também denunciam uma lacuna na disciplina
ternativas conceituais para contornar o problema, já que, acerca de considerações sobre estruturas de poder (quem
apesar da contribuição da tecnologia de áudio para a determina o resultado do fonograma) e pertinência (di-
etnomusicologia, poucas pesquisas são voltadas para a ferenças entre performance e mídia) relacionadas ao
forma como esta é utilizada e suas consequências para processo de produção musical. Ou seja, mediante influ-
as manifestações de tradição oral. ência das variáveis do processo fonográfico, o resultado
acústico de gravações de músicas de tradição oral pode
Nesta pesquisa, os interesses se voltam exatamente para sofrer alterações que, em alguns casos, contribuirão para
esta dimensão, por entender o conceito de produção fo- a modificação de características estéticas da própria tra-
nográfica como um dos aspectos determinantes dos re- dição musical, podendo apresentar, inclusive, reflexos em
sultados acústicos de gravações musicais. Sobretudo, no âmbitos da estrutura social dessa cultura.
caso da música transmitida de forma não textual.
Desde o final do século XIX a tecnologia de áudio tem
Sem dúvida, a influência das tecnologias utilizadas na contribuído para o desenvolvimento da etnomusicologia
etnomusicologia ao longo do século XX foram determi- enquanto disciplina. O avanço tecnológico observado
nantes para conseguirmos o nível de consciência antro- neste período foi imprescindível para o aprimoramento
pológica e filosófica; a abrangência dos métodos e obje- da área. Contudo, o emprego destas tecnologias e suas
tos tratados; uma ética profissional e, principalmente, o consequências para a música, raramente figuram como
respeito às diferenças entre culturas de que agora des- objetos de estudo em pesquisas.
frutamos. Resta-nos, porém, desenvolvermos um parâ-
metro conceitual de utilização desta tecnologia de áudio Finalmente, vale lembrar que a necessidade de um apri-
em nossa área que seja mais adequado às características moramento conceitual e técnico na área da etnomusico-
e necessidades inerentes à mesma. Este passo, certamen- logia acerca da tecnologia de áudio é visível. Iniciativas
te, abrirá um novo horizonte para tais pesquisas, tornan- de pesquisa neste âmbito, certamente, contribuirão para
do mais evidente não apenas a necessidade de maiores o desenvolvimento da disciplina. Assim, um importante
conhecimentos sobre acústica e engenharia de áudio na aprimoramento para cursos de etnomusicologia no Brasil,
área, mas, principalmente, de utilização desses conheci- seria a criação de disciplinas que pudessem contemplar,
mentos de forma específica e direcionada para contextos de forma mais apropriada, estudos de acústica, engenharia
etnomusicológicos segundo uma perspectiva de produ- de áudio e tecnologia musical. Tópicos estes, igualmente
ção fonográfica mais realista em relação às sonoridades importantes em graduações e pós-graduações para toda a
peculiares de cada cultura. área de música no país.

78
SONODA, A. V. Tecnologia de áudio na etnomusicologia. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.74-79.

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André Vieira Sonoda possui graduação em Música Licenciatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE - 1999),
Pós-Graduação em Etnomusicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE - 2003), Mestrado em Etnomusi-
cologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB - 2008), trabalha como Analista em Tecnologia de Áudio no Estúdio
de Gravação do Centro de Difusão e Realizações Musicais (CDRM – SESC - Pernambuco) e é Professor do Curso de Áudio
Profissional – André Sonoda. Atua principalmente nas áreas de ensino e pesquisa de Tecnologia de Áudio, Acústica,
Sistemas de Gravação de Áudio e Etnomusicologia, com especificidade em Música Erudita e de Tradição Oral Brasileiras.
Em 2008, foi o primeiro colocado no concurso público para Professor de Tecnologia de Áudio do Conservatório Pernam-
bucano de Música (CPM).

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BRAGANÇA, G. F. F. Parâmetros para o estudo da sinestesia na música. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.80-89.

Parâmetros para o estudo da sinestesia


na música
Guilherme Francisco Furtado Bragança (Coral ALMG, Belo Horizonte, MG)
guifrancisco@hotmail.com

Resumo: Estudo sobre a relação entre sinestesia como condição neurológica e a metáfora sinestésica. Propõe-se uma
escuta sinestésica do 5º movimento Joie du sang des étoiles de Turangalîla de Olivier Messiaen, seguida de uma análise
da relação entre os elementos apontados na escuta sinestésica e a estrutura da obra. A partir desta análise e da fenom-
enologia, sugere-se a sistematização de categorias sinestésicas, tomando-se a sensação sonora como primária entre as
sensações sinestésicas mais comuns.
Palavras-chave: sinestesia, escuta, análise musical, composição, Messiaen.

Parameters for the study of synaesthesia in music


Abstract: This paper studies the relationship between synaesthesia as a neurological condition and synaesthesic meta-
phor. It aims at investigating synaesthesia as a way of conscious listening and proposes a synaesthesic listening of the
5th movement Joie du sang des étoiles of Olivier Messiaen’s Turangalîla, including an analysis of the relationship between
the elements found in the synaesthesic listening and the structure of the work. Relating analysis and phenomenology, it
also suggests a systematization of synaesthesics categories, departing from the sound as the primary sensation among the
most common sensations.
Keywords: synaesthesia, listening, music analysis, composition, Messiaen.

1 – Conceito de sinestesia
No presente artigo, pretendo discorrer sobre a importân- relatos de pacientes, procedimento considerado pouco
cia da sinestesia na escuta, análise e composição musi- confiável para sustentar uma pesquisa empírica. Os de-
cais, estabelecendo parâmetros gerais para o seu estudo na poimentos costumam ser imprecisos, pois muitos entre-
música. A palavra “sinestesia” deriva do grego antigo, pela vistados se sentem inseguros em declarar que percebem
justaposição da preposição syn (σύν), denotando união, algo que sabem não existir (o sinesteta tem plena cons-
com a palavra aisthēsis (αἴσθησις), que significa sen- ciência da realidade) e muitas vezes acabam atribuindo
sação (CUNHA, 2001). A sinestesia significa o cruzamento sua percepção à mera imaginação. Outros fantasiam suas
de sensações, ou seja, a capacidade da estimulação de um percepções, mascarando a distinção entre a condição
sentido despertar a sensação de outro. Ela é estudada por neurológica e a metáfora sinestésica.
médicos e psicólogos como um transtorno da percepção,
quando esta sensação secundária se dá de forma involun- Nas duas últimas décadas do século XX, tecnologias de
tária e intensa, como uma sensação real. O neurologista imageamento cerebral, principalmente a ressonância mag-
RICHARD E. CYTOWIC (2002) menciona que o relato médi- nética e a tomografia por emissão de pósitrons, que regis-
co sobre sinestesia mais antigo de que se tem notícia data tram as variações do fluxo sangüíneo nas regiões do córtex
de 1710, e que o primeiro trabalho que chamou a atenção em função de estímulos recebidos naquela área, amplia-
da comunidade científica para o assunto foi a publicação, ram de forma significativa as pesquisas e levaram a con-
por Sir Francis Galton, de um artigo na revista Nature, em clusões bem mais precisas sobre a condição neurológica
1880, com o título Visualized Numerals. da sinestesia (BARON-COHEN e HARRISON, 1997, p. 5-6).
Além disso, foram criados testes capazes de diagnosticar
De acordo com CYTOWIC (2002), há poucas referências alguns tipos de sinestesia. Um teste eficaz para um tipo
importantes sobre sinestesia durante a maior parte do de sinestesia (grafema-cor) é mostrado no Ex.1, em que é
século XX, principalmente porque havia poucos recursos apresentado um quadro com todos os numerais grafados
tecnológicos, exames ou testes para comprovar experi- em cinza, como o primeiro quadro abaixo (podem ser letras
mentalmente a existência dessa habilidade perceptiva ou outros tipos de grafemas). O sinesteta grafema-cor, por
incomum. Os cientistas dependiam apenas da coleta de enxergar cada caractere com uma cor diferente, identifica

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010 Recebido em: 03/04/2009 - Aprovado em: 10/08/2009
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BRAGANÇA, G. F. F. Parâmetros para o estudo da sinestesia na música. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.80-89.

os numerais 2 com a mesma velocidade e acerto que uma Um experimento idealizado pelo psicólogo gestaltista
pessoa de percepção normal e não dotada de capacidade Wolfgang Köhler demonstra a presença da sinestesia em
sinestésica responderia ao ver um quadro com os numerais todos nós, indicando ainda que estas percepções sines-
2 destacados, como o segundo quadro abaixo. tésicas possam ser compartilhadas, ou seja, a maioria
de nós experimentaria alguns aspectos da sinestesia de
forma semelhante. O experimento consiste em solicitar
que associemos cada uma das figuras abaixo (Ex.2), aos
nomes booba ou kiki.

Ex.1 – Lâmina de teste para diagnosticar de sinestesia


grafema-cor.
Fonte: RAMACHANDRAN; HUBBARD (2003).
Ex.2 – O experimento criado pelo psicólogo Wolfgang
Köhler, que consiste em associar os nomes kiki ou
Há diversos tipos de sinestesias, sendo que alguns sines-
booba às figuras, demonstra a presença de traços de
tetas apresentam sinestesias múltiplas. O lingüista SEAN
sinestesia em não-sinestetas.
DAY (2007) enumera 54 tipos de sinestesias. O tipo mais
Fonte: RAMACHANDRAN; HUBBARD, 2001.
freqüente é o grafema-cor, mas são muito comuns tam-
bém sinestesias envolvendo sons e cores, sons musicais
e cores, nomes de notas musicais e cores. São encon-
Aproximadamente 95 a 98% das pessoas escolhe kiki para
tradas também, tendo o som como estímulo primário,
a forma angular e booba para a arredondada. Segundo
as sinestesias som-movimento, som-odor, som-sabor,
RAMACHANDRAN e HUBBARD (2001, p.19) a razão para
som-temperatura, som-tato, dentre outras. Estudos des-
esta forte convergência de resultados está na tendência a
se pesquisador apontam a audição como o sentido que
associar o desenho pontiagudo da primeira figura a uma
mais desperta sinestesias. Segundo DAY (2007), alguns
inflexão fonética mais aguda, como em kiki, além de uma
músicos e pintores possuíam, provavelmente, a sinestesia
tendência maior à contração da língua contra o palato,
como condição neurológica, tais como Olivier Messiaen,
propensões conduzidas por uma espécie de sinestesia
Ligeti, Sibelius, Duke Ellington e Charles Blanc-Gatti.
visual-sonora-motora. Esta sinestesia do sensório para o
Outros utilizavam idéias sinestésicas em seus trabalhos,
motor explicaria também a dança, que é a imitação do
embora, possivelmente, não possuíssem essa condição
ritmo ouvido em movimentos.
neurológica. Dentre estes podemos citar Scriabin, Miles
Davis, Kandinsky, Paul Klee e Mondrian.
2 – Sinestesia e significação musical
Para o objetivo deste artigo, abordamos a sinestesia no Na dissertação de mestrado (BRAGANÇA, 2008), reali-
seu sentido estilístico, de alusões voluntárias a outras zada sob orientação do compositor OILIAM LANNA, es-
percepções ao se verbalizar determinada sensação. A si- tabelecemos relação entre a sinestesia e a significação
nestesia como figura de linguagem é um recurso quase musical. Para chegar a tal relação, procuramos entender
obrigatório ao se discorrer sobre a percepção musical, como se realiza o processo de significação na música.
uma vez que as sensações sonoras escapam, freqüente- JEAN-JACQUES NATTIEZ, em seu artigo Etnomusicologia
mente, a uma definição mais objetiva. Algumas pesquisas e Significações Musicais, publicado na revista Per Musi
no campo da neurologia apontam para uma proximidade número 10 (2004a, p.6), propõe três pontos que são basi-
entre a sinestesia congênita e a metáfora sinestésica. lares para o entendimento da significação musical:
(...) Aquilo que denominamos ”significações”, quaisquer que
Os pesquisadores da Universidade da Califórnia, V.S. RA- sejam as formas simbólicas (linguagem, música, mito, cinema,
MACHANDRAN e EDWARD M. HUBBARD (2003 p.53), pintura, etc.) em que aparecem, explicam-se semiologicamente
por três princípios: todo signo é a remissão de um objeto a uma
afirmam que um processo semelhante à sinestesia pode
outra coisa (Santo Agostinho); o signo remete a seu objeto pelo
ser responsável pela capacidade humana de criar metá- intermédio de uma cadeia infinita de interpretantes (Peirce); es-
foras e pode explicar também a atividade criativa: tes interpretantes se repartem entre as três instâncias que ca-
racterizam todas as práticas e as obras humanas: o nível neutro,
Uma característica compartilhada por muitas pessoas criativas é o poiético e o estésico (Molino).
a habilidade em utilizar metáforas. É como se seus cérebros esti-
vessem programados para fazer ligações entre domínios aparente- As instâncias apresentadas por JEAN MOLINO (s.d.) são
mente dissociados. Assim como a sinestesia tece ligações arbitrá- dimensões de existência de um mesmo objeto simbólico.
rias entre entidades sensoriais como cores e números, a metáfora
envolve a conexão de campos conceituais aparentemente desvin-
A dimensão poiética do fenômeno musical refere-se ao
culados. Talvez isto não seja apenas coincidência. processo de criação, às intenções e estratégias composi-

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BRAGANÇA, G. F. F. Parâmetros para o estudo da sinestesia na música. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.80-89.

cionais; o nível estésico se refere ao modo como o objeto gressões. Rege também os padrões rítmicos e métricos.
simbólico (musical) é percebido; nível neutro é o fenô- Mais uma lei importante para Meyer é a da completude
meno simbólico como matéria, submetida a uma forma e ou fechamento, que faz com que busquemos completar
pode ser comparado e categorizado no conjunto de ou- uma forma ou padrão. Tal lei nos faz, por exemplo, sen-
tros objetos semelhantes. NATTIEZ propõe, ainda, que na tir a necessidade de conclusão de uma cadência. Outro
música existem dois tipos de remissões: intrínsecas e ex- principio é o do retorno, a tendência a voltarmos a um
trínsecas. As primeiras se referem às relações formais en- ponto anterior. Esta lei rege desde primitivas melodias
tre estruturas musicais e é onde NATTIEZ situa o “sentido1 até a macroestrutura de uma peça complexa.
musical”, termo que o autor identifica com a sintaxe mu-
sical, um sistema de relações formais entre os constituin- A presença das leis da Gestalt confere sensação de or-
tes de um evento musical, delineando sua estruturação. ganização à música, mas não indica a qualidade musi-
As remissões extrínsecas estão associadas à “semântica cal, pelo contrário, são os adiamentos e desvios a essas
musical”, na qual NATTIEZ relaciona as vinculações que leis que geram expectativas e interesse à música, pois
o compositor (ou o executante ou o ouvinte) faz entre a a correspondência às leis da Gestalt produz uma músi-
música e alguma sensação, emoção, imagem, ideologia ca em que o nível de tensão e expectativa tende a zero.
ou qualquer outra referência. Mesmo que a semântica É central na teoria de MEYER a idéia de que as emo-
musical seja recriada a cada momento (pelo compositor, ções são aumentadas quando a tendência de resposta
intérprete e ouvinte), “não existe peça ou obra mu- é suspensa. Seu vínculo entre emoções e expectativas
sical que não se ofereça à percepção sem um cortejo de implica a necessidade de se conhecer o estilo, que o
remissões extrínsecas, de remissões ao mundo. Ignorá-las autor define da seguinte forma: “estilos musicais são
levaria a perder uma das dimensões semiológicas essen- sistemas mais ou menos complexos de relações sono-
ciais do fato musical total” (NATTIEZ, 2004a, p.7). ras entendidas e usadas por um grupo de indivíduos.”
(MEYER, 1992, p.45)2 Em outros termos, podemos dizer
NATTIEZ apresenta duas posições quanto ao funciona- que o estilo é um conjunto de expectativas aprendidas.
mento das remissões extrínsecas. A primeira – reputada a O estilo fornece as normas para que os eventos mu-
LEONARD MEYER (1992), que a denomina “expressionista sicais possam ser considerados esperados ou surpre-
absolutista” – defende que as significações expressivas endentes. Para Meyer, se surge um evento inesperado,
nascem em resposta à música, veiculadas pelo próprio a expectativa aumenta, mas se nenhuma clarificação
significante musical. MEYER percebe relação entre as es- subseqüente da expectativa aparece, a mente rejeita
truturas formais e algumas expectativas e respostas emo- todo o estímulo, que dá lugar à irritação.
cionais. A outra posição apresentada por Nattiez é de que
as remissões extrínsecas existem em função de referên- Apresentamos outra abordagem, menos ligada ao co-
cias externas à música, ou seja, as relações entre o even- nhecimento do estilo musical, para a compreensão das
to musical e as significações percebidas pelo ouvinte são relações entre as estruturas formais e as remissões ex-
construídas por convenções. NATTIEZ admite que as duas trínsecas, já que podemos atribuir significações mesmo a
posições sejam possíveis: “existem significantes musicais músicas de sonoridades novas, sobre as quais não temos
que levam imediatamente a associações semânticas ex- conhecimento prévio de seu estilo musical (BRAGANÇA,
trínsecas e existem aqueles que só o fazem em função de 2008). Assim, levantamos a hipótese de que existiriam
codificações convencionais”. Segundo NATTIEZ, o trabalho dois níveis (ou dois passos) para a remissão extrínseca:
de Meyer consiste em descrever relações entre as estru- o primeiro nível seria a transposição do estímulo sono-
turas formais e as expectativas e realizações emocionais: ro para outras sensações, fenômeno que é definido como
“as significações musicais imanentes à matéria musical sinestesia no seu sentido lato, o segundo nível das remis-
nascem da confirmação, da consolidação ou da decepção sões extrínsecas estaria relacionado ao que normalmente
das expectativas do ouvinte” (NATTIEZ, 2004b, p.8). reconhecemos como as remissões extrínsecas propria-
mente: associações a sentimentos, imagens, referências,
LEONARD MEYER adota as leis da Gestalt descritas em memórias, etc. A sinestesia seria um primeiro passo para
seu livro Emotion and Meaning in Music (1992) como a remissão extrínseca, sugerindo que as significações ex-
base para a compreensão das expectativas e aumen- ternas à estrutura musical passam, geralmente, por as-
to da carga emocional. Uma lei da Gestalt que MEYER sociações entre a sensação sonora e outras sensações,
considera importante para o entendimento das emoções como visuais (brilhos, cores, claro/escuro), movimentos
na música é a da pregnância, que estabelece que a or- (direcionais, circulares, estáticos, dinâmicos), densidades
ganização perceptiva seja a melhor que as condições (denso, rarefeito), peso (leve, pesado) ou texturas (liso,
prevalentes permitirem, sendo considerada boa orga- áspero). Mesmo que tais associações nem sempre che-
nização a percepção que abarca condições de simpli- guem a se mostrar conscientes, elas influenciariam nossa
cidade, simetria, regularidade, entre outras. Outra lei percepção.3 Um forte indicativo dessa hipótese está na
da Gestalt importante no estudo de MEYER é a da boa terminologia que geralmente utilizamos para descrever
continuidade, que é a tendência a uma forma ou padrão o sonoro, recheada de termos oriundos de outras sensa-
continuar no mesmo modo de operação se outras forças ções, como os mencionados acima. Mesmo na descrição
não atuarem. Tal princípio rege, por exemplo, as pro- de estruturas musicais, ou seja, do nível imanente, recor-

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BRAGANÇA, G. F. F. Parâmetros para o estudo da sinestesia na música. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.80-89.

remos a termos como “texturas”, “densidades”, “verticali- a sujeição da avaliação artística aos sentimentos susci-
dade”, etc., que são referências sinestésicas. tados no ouvinte e propõe que a estética deve se voltar
para o objeto de beleza (a obra) e não para o efeito,
3 – A sinestesia e o formalismo musical investigando os aspectos técnicos que qualificam uma
O que propomos é tornar conscientes as percepções si- música como bela. Para tal, a fruição da música deve se
nestésicas na audição, acompanhando sua condução em dar pela contemplação, um ouvir atento e com enten-
uma obra musical, identificar como esta sinestesia está dimento, acompanhando a movimentação das formas
presente como escrita musical e sugerir como idéias si- sonoras. O esteta deve retirar de seu campo de estudo
nestésicas podem auxiliar no processo composicional.4 tudo o que é transitório ou contingencial. HANSLICK foi
Uma abordagem de análise e composição que parte das o precursor de uma estética formalista, que atribui o
remissões extrínsecas, particularmente das sensações, valor da música às suas relações internas e define como
buscando relações entre elas e a sintaxe musical, parece seus conteúdos as interações entre os elementos cons-
estranha para o músico educado no formalismo do século tituintes da sintaxe musical.
XX. No entanto, tal abordagem era comum no romantis-
mo, como defende LIAN (2005, p.1-2): A estética inaugurada por HANSLICK tornou-se pratica-
mente consenso durante boa parte do séc. XX, influen-
Até meados do século XIX, além do plano expressivo, o conteú- ciando a Musicologia e mesmo a composição. NATTIEZ
do sentimental e evocativo da música constituía inquestionável
ponto de partida para a criação sonora, destacando-se os compo-
(2004b, p.9) afirma que:
sitores que, de uma ou outra forma, mostravam-se bem sucedidos
no estabelecimento de uma comunicação emocional e intelectual Antes de 1968, eram poucos os compositores notáveis que não
com os ouvintes, sugerindo-lhes estados de espírito, idéias e des- tinham aderido à concepção estética da música como “forma
crições a partir do discurso musical, com ou sem a concorrência de em movimento” (...) ou à concepção semiológica da música
um texto verbal subjacente. como ‘sistema autotélico’, isto é, que se remete a si próprio (...).
Stravinsky afirmava: A música é, por sua essência, impotente
para exprimir qualquer coisa. (...) A expressão não foi jamais
Foi nesse contexto que EDWARD HANSLICK publicou, propriedade imanente da música. (...) Varèse: Minha música não
em 1854, o livro Do Belo Musical, que contém ainda o pode exprimir outra coisa senão ela mesma. (...) Boulez: A mú-
seguinte subtítulo: Uma contribuição para a Revisão da sica é uma arte não significante.
Estética Musical. O objetivo do autor é fazer uma refor-
mulação das bases da estética musical, criticando a es- A partir de HANSLICK, considera-se mais “correto e evoluído”
tética do sentimento em voga e construindo um concei- concentrar a escuta musical nas estruturas e suas relações
to de belo musical autônomo. Sua crítica se volta para (em contraposição a uma escuta “primitiva” das sensações):

Ex.3 - Excerto de Sept Haïkaï – nº V, de Olivier Messiaen.


Fonte: Messiaen (1966, p.58).

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BRAGANÇA, G. F. F. Parâmetros para o estudo da sinestesia na música. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.80-89.

MESSIAEN (2008) escreve em uma nota de programa:


Este regalar-se de sentimento é, no mais das vezes, coisas da-
queles ouvintes que não são evoluídos o bastante para a com- Turangalîla é uma palavra em sânscrito. Como todos os vocábulos
preensão artística do belo musical. Ouvindo música, o leigo ‘sen- pertencentes às línguas orientais antigas, é muito rico de senti-
te’ o máximo; o artista culto, o mínimo. Ou seja, quanto mais dos. Lîla significa literalmente jogo: mas jogo no sentido da ação
significativo é o elemento estético junto ao ouvinte (exatamente divina sobre o cosmos, o jogo da criação, o jogo da destruição, da
como na obra de arte), mais indiferente se torna o efeito pura- reconstrução, o jogo da vida e da morte. Lîla é também o Amor.
mente elementar (como o autor denomina os sentimentos des- Turanga: é o tempo que corre, como o cavalo à galope, é o tempo
pertados) (HANSLICK, 1992, p.128). que flui, como a areia da ampulheta. Turanga: é o movimento e
o ritmo; Turangalîla quer, então, dizer ao mesmo tempo: canto de
amor, hino a alegria, tempos, movimento, ritmo, vida e morte. A
HANSLICK propõe uma escuta principalmente tempo- Sinfonia Turangalîla é um canto de amor, é um hino à alegria.5
ral – importa acompanhar as transformações estrutu-
rais que geram a forma, atendo-se ao nível imanente da O quinto movimento de Turangalîla tem o título Joie du
música, sem se “desviar” em remissões extrínsecas. No sang des étoiles (Alegria do Sangue das Estrelas). Seu
entanto, não nos restringimos a esta escuta, geralmen- caráter enérgico e seus coloridos despertam no ouvinte
te uma música nos gera impressões, desperta sensações as mais variadas sensações. Procurarei descrever uma
não sonoras, remete a imagens, idéias, lembranças. Longe escuta sinestésica deste movimento. Destacarei, em ne-
de ser um problema, é em tal audição que “saboreamos” grito, as principais sensações despertadas, para depois
realmente uma música. Essa forma de escuta se “impõe”, listá-las, acrescentando outras sensações. Tal listagem
porque a sinestesia está constantemente presente, mes- pode ser útil para uma futura sistematização de uma
mo quando não tomamos consciência dela. abordagem sinestésica de análise. Nesta descrição, em-
A escuta sinestésica consiste numa percepção que privi- prego termos tradicionais de análise, como frases, se-
legia o instantâneo: a percepção das transposições das mifrases, períodos, melodias e temas para dar destaque
sensações sonoras em outras sensações. Essa forma de ao aspecto fortemente discursivo deste movimento da
percepção é subestimada por estar associada a uma es- sinfonia, muito semelhante a uma conversa onde vários
cuta primitiva. Apesar de sua característica eminentemen- personagens, representados principalmente por diferen-
te pontual, podemos “temporalizar” a escuta sinestésica, tes combinações tímbricas, concordam ou discordam,
tomando consciência das sinestesias que surgem a cada reforçando ou contrapondo sensações.
momento e acompanhando como as transformações si-
nestésicas vão conduzindo a forma musical. Ao olharmos a Logo nos 17 segundos iniciais,6 somos capturados pelo
música a partir da perspectiva sinestésica, percebemos que diálogo enérgico e brilhante dos naipes orquestrais,
as elaborações estruturais só têm sentido e geram forma à em que percebemos frases afirmativas interrogativas,
música se têm a função de criar e transformar sinestesias. exclamativas e conclusivas. Nestas frases, “conversam”
Sob este ponto de vista, uma elaboração estrutural será os sopros e as cordas, junto com as ondes de martenot7
considerada ineficaz se não for capaz de conduzir trans- em pergunta e resposta, seguidas por um comentário
formações sinestésicas no ouvinte. de piano e sopros mais cordas, e, por último o piano
numa escala ascendente e tutti numa escala descen-
Como mencionei acima, é provável que OLIVIER MESSIA- dente pontuam a “conversa”. Este trecho é bastante
EN possuísse a condição neurológica da sinestesia, sendo simétrico, direcional e conclusivo, sendo logo repe-
suas obras fortemente marcadas pelas sensações visuais tido com uma clareza clássica. A direcionalidade é
que eram nele despertadas. MESSIAEN estabeleceu rela- reforçada principalmente pela relação dominante tô-
ções entre sons e cores de forma bastante explícita em nica das frases, mas também pela regularidade rítmica.
alguns textos que escreveu sobre suas obras: em Vingt Além do andamento vivo e da energia do ritmo, as
Regards sur L’Enfant Jésus, para piano (1944), definiu co- constantes mudanças de timbre reforçam a sensação
res para cada umas das partes, como azul-violeta para de movimentação. O calor e o brilho parecem estar
a parte V ou laranja, roxo e azul para a XIII (NAVARRO, muito presentes neste trecho. As frases musicais pare-
2008). Também na partitura dos Sept Haïkaï (Ex.3) en- cem soltar “faíscas”, pela presença do prato em cada
contramos, no nº V, indicações de cores: uma delas. Este trecho, com sua repetição, expõe o
primeiro tema e dura, ao todo, 34 segundos.
4 – Escuta sinestésica de Turangalîla - Joie
du sang des étoiles A seguir, inicia-se uma dança, em que os motivos se al-
A Sinfonia Turangalîla, de OILIVIER MESSIAEN, é uma ternam rapidamente nos metais e nas cordas. A frase ter-
obra orquestral em grande escala, em dez movimentos, mina como um desenho mais circular do piano, celesta,
repleta de cores, matizes, texturas, densidades e sensa- madeiras e cordas. Esta frase é logo repetida. A sensação
ções de movimentos. Ela foi escrita entre os anos de 1946 de simetria continua neste trecho: os motivos angulares
e 1948, em virtude de uma encomenda feita por Serge nos metais e cordas têm o mesmo número de tempos que
Koussevitzky para a Orquestra Sinfônica de Boston. Para o desenho circular do piano. Logo em seguida é a vez da
esta encomenda, não foram estabelecidos parâmetros de alternância entre madeiras e metais, que funciona como
duração, orquestração ou estilo, dando total liberdade ao uma “quase imitação”, na forma de pequenos arranques,
compositor. A estréia aconteceu em 2 de dezembro de também repetidos. Há uma pontuação de pandeiros, com
1949, em Boston, sob a regência de Leonard Bernstein. o cintilar das pratinelas. Segue um motivo ondulante nas

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BRAGANÇA, G. F. F. Parâmetros para o estudo da sinestesia na música. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.80-89.

trompas. Este trecho contrasta-se com o primeiro, por trompas, que se estende para o restante da orquestra e
não ser tonal, mais anguloso e menos direcional. acumula tensão para preparar a reexposição.
Uma grande escala ascendente em crescendo faz emergir
novamente o primeiro tema, após cerca de 50 segundos Aos 4 minutos e 14 segundos, o primeiro tema é reex-
de música. Esta reexposição do tema acontece num “am- posto no mesmo “ambiente” mais agitado que aconteceu
biente” mais agitado, porque o piano e a celesta fazem aquela exposição do quinqüagésimo segundo de música.
um movimento contínuo e rápido, num sobe e desce Apenas o primeiro tema é apresentado. Em seguida, há
que fica ao fundo do tema. O segundo tema também é uma parte muito semelhante à finalização da primei-
apresentado com modificações. Há um peso maior, pela ra parte da música, mas que se estende, surgindo dois
presença do bombo pontuando a primeira frase. Alguns grandes glissandi das ondes de maternot, que dialogam
motivos em notas rápidas são substituídos por notas um com os trombones, numa retenção do fluxo. Temos, en-
pouco mais longas em crescendo, gerando uma ten- tão, uma interrupção do tempo, para a realização de uma
são que se represa e cresce. Há o tema ondulante nas cadência de piano. Após um ruflar do bombo, toda a or-
trompas e a escala ascendente, fazendo ressurgir, com questra toca acordes finais, sendo o último mais longo,
1 minutos e 27 segundos de música, o início do primeiro num crescendo que despeja, fulgurante, toda a energia
tema, mas apenas para iniciar uma seção de finalização da orquestra.
dessa seção. Aqui temos a primeira semi-frase do tema,
repetida em progressão, a escala descente da orquestra Dentre as palavras destacadas, a maioria conota sensa-
junto com um movimento ascendente no piano, moti- ções sinestésicas (sensações não-sonoras despertadas
vos angulares, motivos não tonais justapostos ao acorde pelo evento sonoro). Outras, como a palavra angústia, si-
de tônica, mesclando, assim elementos do primeiro e do tuam-se no campo dos sentimentos, relacionando-se ao
segundo temas. O movimento contínuo do piano e das segundo nível de remissão extrínseca que apresentamos,
cordas no final dessa seção conduz toda a energia para provavelmente porque o primeiro nível de remissão, o das
a finalização num acorde de tônica, pontuado pelo tam- sensações físicas, permaneceu inconsciente. Neste artigo,
tam. Há também uma aceleração no pandeiro que acu- vamos nos limitar às sensações sinestésicas.
mula energia para o final.
5 – A sinestesia na análise e composição
Após um minuto e 50 segundos de música, há a maior A análise sinestésica consiste em procurar entender
articulação até o momento, iniciando a segunda grande como as estruturas se relacionam com as sensações si-
parte do movimento. Esta seção contrasta muito com a nestésicas e como as transformações estruturais modi-
primeira pelo caráter muito mais desordenado. O piano ficam as sinestesias e geram a forma musical.8 Não se
é tocado freneticamente, enquanto os instrumentos da pretende, na análise sinestésica, construir uma relação
orquestra fazem motivos que parecem ser tirados dos te- única de causa e efeito entre sensações e estruturas.
mas iniciais, mas soltos na massa sonora. A sensação é de Certamente há outras sinestesias possíveis para esta
discussão acirrada entre os instrumentos, surgindo, por música e as descritas podem ser despertadas por even-
algumas vezes, gemidos dos glissandi das ondes de mar- tos sonoros diversos do que poderiam ser encontrados
tenot. O piano, junto com as cordas graves, produz sons numa análise. Estamos aqui num campo de tendências
semelhantes a trovões. e possibilidades, não de leis composicionais. Por outro
lado, acreditamos ser possível mapear relações entre o
Apesar de haver muitos sons agudos soando todo o tem- nível neutro e o estésico, o que parece ser algo bastan-
po (a celesta parece tocar quase continuamente nesta te óbvio, já que o oposto seria conceber que qualquer
seção), não há o brilho alegre anterior, pelo contrário, a estrutura poderia despertar qualquer sensação e as es-
alternância muito próxima de agudos e graves gera ten- colhas composicionais não teriam qualquer repercussão
são e angústia. Aos 2 minutos e 26 segundos de música no resultado musical.
há um leve afrouxamento da densidade sonora e surge
nas ondes de martenot e nas cordas, dois fragmentos do A análise a partir da sinestesia pode ser entendida como
primeiro tema. Logo após, três fragmentos do primeiro um ramo da abordagem fenomenológica da análise mu-
tema aparecem mais fortes, principalmente nos metais. sical. A fenomenologia retoma a questão da relação entre
Voltam os graves, com a intervenção do bombo, e então sujeito e objeto, fazendo frente à visão positivista, que
aparece, aos 2 minutos e 47 segundos, um fragmento do considera reais somente os conhecimentos resultantes de
segundo tema. Há uma aceleração e voltam a se instalar fatos observados. Esta corrente de pensamento postula
a tensão e o caos, com muitos elementos semelhantes que a verdade é encontrada quando um sujeito observa
aos momentos que antecedem o ressurgimento do pri- com neutralidade o mundo externo, munido de rigoroso
meiro tema. Novamente, há um relaxamento da densi- método científico. Apresenta-se, assim, uma dicotomia
dade e um fragmento do primeiro tema surge nas ondes entre sujeito e objeto, na qual o mundo externo existe
de maternot, aos 3 minutos e 30 segundos. Ele aparece como uma verdade independente, à espera de um sujeito
outra vez nas ondes de maternot e mais duas vezes nos que, de fora desse mundo, decifre suas leis fundamentais.
metais e madeiras. Outros elementos do primeiro e se- O positivismo manifesta-se no estudo musicológico quan-
gundo temas aparecem, como o motivo ondulante das do se isola uma partitura da percepção musical e de todo

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o contexto, para estudá-la com uma minuciosa metodolo- menos numa mesma época e cultura, cabendo até a
gia de análise, descobrindo suas leis composicionais. criação de um sistema de classificação: seria possível
relacionar objetos sonoros a sensações sinestésicas
A palavra “fenômeno” deriva do grego phainómenon, sig- que estes despertam.
nificando “tudo que é percebido pelos sentidos ou pela
consciência” (CUNHA, 2007, p. 353). A fenomenologia A primeira contribuição que podemos dar para a compo-
estuda o objeto não como algo independente, mas como sição a partir da perspectiva sinestésica seria a elabora-
um fenômeno, aquilo que se apresenta à consciência. ção de um sistema de classificação que relacionaria pro-
Esta, por sua vez, não é um ente abstrato, mas consciên- cedimentos e objetos sonoros a resultados sinestésicos
cia de algo. Supera-se, assim, a dicotomia sujeito-objeto: possíveis de serem despertados. É claro que não preten-
o mundo da fenomenologia é o mundo experienciado por demos construir um sistema fechado, em que somente
uma consciência que sempre visa algo, tem uma inten- um determinado procedimento conduziria a apenas um
cionalidade. Essa intencionalidade da consciência doa tipo de sinestesia, mas categorias de possibilidades si-
sentido ao mundo. nestésicas. Categorias mais amplas e gerais seriam mais
objetivas (mais consensuais, porém menos interessantes
A palavra intencionalidade não significa outra coisa senão essa
musicalmente), já categorias mais sutis e musicais te-
característica geral da consciência de ser consciência de alguma
coisa, de implicar, na sua qualidade de cogito, o seu cogitatum em riam maior grau de subjetividade. Por exemplo, podemos
si mesmo (HUSSERL, apud COELHO JÚNIOR, 2002). classificar eventos musicais em grandes categorias si-
nestésicas como “brilhante” e “escuro” ou então “denso”
Para a fenomenologia não há por que estudar a músi- e “rarefeito”. No entanto, existem muitas formas e gra-
ca como um conjunto de elementos que se organizam dações de “brilho” sonoro ou de “densidades”, existem
numa sintaxe. A música existe como um fenômeno que inúmeras combinações sinestésicas (brilhos, densidades,
se apresenta para um ouvinte e é a partir desta instân- texturas, movimentos) nas mais variadas gradações,
cia que ela é investigada. Uma análise fenomenológi- podendo haver ainda variadas formas e velocidades de
ca não terá a finalidade de explicar a música ou dela transformações de uma sinestesia em outra. A maes-
derivar leis fundamentais, mas procurará descrever a tria composicional, do ponto de vista sinestésico, signi-
vivência do fenômeno musical. Nas palavras de KOELL- fica o domínio dessas formas, gradações, combinações
REUTTER (1989, p.1): e transformações que tornam a música menos óbvia e
muito mais rica.
A análise fenomenológica não visa uma explicação teórica da
obra, mas sim, exclusivamente, uma interpretação da mesma,
A sistematização de categorias sinestésicas é uma ta-
apontando um único objetivo: o de vivenciar as idéias musicais
e de conscientizá-las de acordo com o entendimento terórico- refa longa, não sendo possível desenvolvê-la no âm-
musical e estilístico, conforme o grau de sensibilidade de quem bito de um artigo. Pretendemos aqui apenas lançar a
a analisa. proposição de tal sistematização. Um caminho para
isso seria distinguir pólos de sensações secundárias
A composição a partir da perspectiva sinestésica sus- (sinestésicas) despertadas pela sensação sonora. As-
tenta-se, como a análise sinestésica, na hipótese apre- sim, na categoria de sinestesia visual teríamos proce-
sentada anteriormente de que as remissões extrínsecas dimentos de matizes – do claro ao escuro. Podemos ter
são de dois níveis: o primeiro de remissões sinestésicas também categorias de cores. As relações entre cores
e o segundo de evocações externas ao fenômeno mu- e elementos musicais têm geralmente um grau mui-
sical. Estes níveis atuariam como dois “passos” da re- to alto de subjetividade, mas podemos perceber uma
missão extrínseca. Dessa forma, uma música (sensação tendência geral de cores de faixa de freqüência mais
sonora) desperta outras sensações (visuais, cinéticas, baixa (próximas ao vermelho) serem despertas por ele-
táteis, etc.) que podem evocar uma imagem, um poema, mentos musicais mais agitados, densos e “quentes”. Ao
uma vivência pessoal, etc. contrário, elementos musicais mais calmos, rarefeitos
e “frios” tendem a associar-se a cores de freqüências
No processo composicional pode acontecer o mesmo mais altas (como o azul ou violeta).
(em ordem inversa): um poema, um programa ou lem-
branças despertariam sensações (de claro e escuro, Além de cores e matizes, são muito comuns na descrição
direcionamento ou circularidade, por exemplo) que de eventos musicais o emprego de referências a densida-
seriam transpostas para eventos musicais. O segun- de, pressão, movimento, calor e textura (como sensação
do nível de remissões extrínsecas realiza-se não só de superfície e como trama). Em cada uma destas sensa-
na criação, mas refaz-se a cada interpretação e au- ções, podemos encontrar, pelo menos, dois pólos opos-
dição de forma idiossincrática, ou seja, compositor, tos, que são, geralmente, extremos de um contínuo de
intérprete e ouvinte fazem remissões extrínsecas de possibilidades. Podemos construir a tabela abaixo (Ex.4),
segundo nível a partir de suas histórias pessoais. Já incluindo algumas sensações descritas na escuta de Tu-
o primeiro nível de remissões extrínsecas, de relações rangalîla, além de outras:
sinestésicas, é relativamente compartilhado, pelo

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BRAGANÇA, G. F. F. Parâmetros para o estudo da sinestesia na música. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.80-89.

Sensação secundária Pólos opostos


Brilho Claro Escuro
Brilhante (fulgurante) Apagado, sombrio
Transparência Transparente Opaco
Cores Violeta Vermelho
Densidade Rarefeito Denso
Energia Débil Enérgico
Figura Fundo
Espaço
Amplo Constrito
Pressão Leve Pesado
Não-direcional Direcional
Acelerado Retardado
Crescer Decrescer
Movimento Circular Angular Linear
Subir Descer
Calmo Agitado
Lento Rápido
Regular Irregular (caótico)
Ordenação
Simétrica Assimétrica
Temperatura Frio Quente
Textura – superfície Liso Áspero
Textura – trama Unilinear Intrincada
Ex.4 - Sensações secundárias que comumente decorrem da audição musical e os pólos opostos de cada uma delas.

6 – Conclusão sensação de leveza pode ser construída pela combinação


Algumas qualidades sinestésicas são intercambiáveis, ou de parâmetros de intensidade, timbre, registro e rítmica.
seja, um mesmo trecho musical pode ser percebido como
transparente, numa sinestesia visual, ou leve, numa refe- A sinestesia tem uma aplicação direta na análise feno-
rência tátil de pressão, ou gélido, pela sinestesia tátil de menológica da música, ao criar as bases para uma me-
calor. Os parâmetros sonoros contribuem de forma conjun- todologia de análise musical a partir da percepção sines-
ta, porém, muitas vezes, com pesos diferentes, na produ- tésica da música e da compreensão das construções que
ção de uma sinestesia. Assim, uma sinestesia de movimen- condicionam tais percepções. A abordagem sinestésica
to como a percepção de agitação em trecho musical tem pode ainda auxiliar o estudante de composição a rela-
uma forte contribuição do parâmetro rítmico, mas pode cionar determinados resultados sonoros (sinestésicos) a
ser reforçado por determinado timbre ou registro. Uma determinados sistemas de construção musical.

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BRAGANÇA, G. F. F. Parâmetros para o estudo da sinestesia na música. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.80-89.

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BRAGANÇA, G. F. F. Parâmetros para o estudo da sinestesia na música. Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.80-89.

Notas
1 A palavra”sentido” tem muitos empregos e é por demais corriqueira para que seja reservada apenas a um significado
definido por determinado autor. Assim, tal palavra continuará sendo utilizada no texto em seus múltiplos significados
comuns, aparecendo entre aspas na expressão “sentido musical” quando designar, como faz Nattiez, a sintaxe musi-
cal.
2 Musical Styles are more or less complex systems of sound relationships understood and used in common by a group
of individuals.
3 Em 1953, o psicólogo britânico E. C. CHERRY estudou um processo de audição seletiva que denominou “fenômeno
da festa de coquetel”, que consiste na capacidade de focar em uma conversa no meio de várias outras, mesmo que
a conversa focada não seja a de maior intensidade. Em 1958, o psicólogo DONALD BROADBENT desenvolveu estudos
relacionados ao foco da atenção, criando a teoria do filtro de que temos uma capacidade limitada de apreender in-
formações sensoriais, selecionando as que julgamos mais importantes. Teorias posteriores postularam que a audição
seletiva não é um processo tudo-ou-nada, mas opera por múltiplos estágios onde algumas informações são filtradas,
não chegando à consciência, embora possam alterar a percepção final. (GAZZANIGA; HEARTHERTON, 2005).
4 Na dissertação de mestrado, discorro sobre a relação entre a sinestesia e as três dimensões de existência do objeto
simbólico, definidas por Molino: dimensões estésica, neutra e poiética.
5 Tradução do autor do texto original em francês: Turangalîla est un mot sanskrit. Comme tous les vocables apparte-
nant aux langues orientales antiques, il est très riche de sens. Lîla signifie littéralement le jeu : mais le jeu dans le
sens de l’action divine sur le cosmos, le jeu de la création, le jeu de la destruction, de la reconstruction, le jeu de la
vie et de la mort. Lîla est aussi l’Amour. Turanga : c’est le temps qui court, comme le cheval au galop, c’est le temps
qui coule, comme le sable du sablier. Turanga : c’est le mouvement et le rythme ; Turangalîla veut donc dire tout à la
fois : chant d’amour, hymne à la joie, temps, mouvement, rythme, vie et mort. Turangalîla-Symphonie est un chant
d’amour. Turangalîla-Symphonie est un hymne à la joie.
6 Como referência para a descrição realizada neste trabalho, utilizei duas gravações: 1) Messiaen - Turangalila - 05
- Joie du sang des étoiles – Jeanne Loriod e Seiji Ozawa, Boston SO, Tanglewood 1975. 2) Messiaen’s Turangalîla
Symphonie, 5th Movt “Joy of the Blood of the Stars”. Pierre Laurent Aimard, Cynthia Millar, Andrew Davis, and the
National Youth Orchestra of Great Britain at the 2001 Proms. (disponível no Youtube). A minutagem foi realizada a
partir desta última referência. Nela, há 13 segundos antes do início da música, que foram descontados.
7 É um dos primeiros instrumentos musicais eletrônicos (o primeiro foi o Theremin), inventado em 1928 por Maurice
Martenot, que produz sons por meio de um teclado que controla freqüências de um oscilador. As capacidades do
instrumento sonoro foram posteriormente ampliadas por meio da adição de controles de timbres e alto-falantes co-
mutáveis. Produz apenas um som de cada vez, de freqüência ondulante, sendo também, capaz de produzir glissandi.
8 No presente artigo restringimo-nos à descrição de uma escuta sinestésica, sem recorrer à partitura da obra. Para ver
um exemplo de análise sinestésica, consulte o trabalho A sinestesia e a construção de significação musical (BRAGAN-
ÇA, 2008) onde, além de relatar a escuta da música Baku Pari, de Guilherme Nascimento, dentro de uma perspectiva
sinestésica, realizamos a análise daquela música a partir das sinestesias percebidas.

Guilherme Francisco Furtado Bragança graduou-se em Composição pela UFMG (1989), concluiu os cursos de Pós-Gradu-
ação Lato-Sensu para o Magistério Superior pela FUMA (1990) e “Musicologia Histórica Brasileira”, pela UFMG (1994). Es-
tudou regência coral com Carlos Alberto Pinto Coelho e Hans Joachin Koellreuter. Em 2008, concluiu o mestrado em Música
pela UFMG. Lecionou, por dois anos, no curso superior de música da UEMG as matérias Acústica e Música Contemporânea
e para o curso básico, Harmonia I e II. Atualmente, rege o Coral da Assembléia Legislativa de Minas Gerais.

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MORILA, A. P. Antes de começarem as aulas: polêmicas e discussões... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.90-96.

Antes de começarem as aulas: polêmicas


e discussões na criação do Conservatório
Dramático e Musical de São Paulo
Ailton Pereira Morila (UNICEP, São Paulo, SP)
apmorila@gmail.com

Resumo: O Conservatório Dramático e Musical de São Paulo foi fundado em 1906, fruto da iniciativa de vários músicos
do Estado de São Paulo. O caminho para sua fundação foi de conflitos, lutas e opiniões divergentes, mas também de as-
sociações e objetivos comuns. O objetivo deste artigo é ressaltar esta trajetória, procurando destacar sua intima ligação
com as discussões acerca do papel da música e dos músicos na sociedade em transformação.
Palavras-chave: Conservatório Dramático e Musical de São Paulo; música e sociedade; organização profissional, ensino
musical.

Before lessons begin: controversies and quarrels around the creation of the Conservatório Dra-
mático e Musical of São Paulo

Abstract: The Conservatório Dramático e Musical of São Paulo was established in 1906 as an initiative of some musi-
cians of the State of São Paulo, Brazil. The way for its foundation was one of divergent opinions, fights and conflicts,
but also of common associations and objectives. This article aims at to tracing its trajectory, focusing on the quarrels
concerning the position of music and musicians in a society in transformation.
Keywords: Conservatório Dramático e Musical of São Paulo; music and society; professional organization, music teaching.

1- Introdução
Atrás do Teatro Municipal, com entrada na Avenida Luigi Chiaffarelli, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Macha-
do e Silva Junior, João Gomes de Araújo, Giulio Bastiani, Paulo
São João existe um edifício que normalmente passa
Florence, Felix Otero, Dr. Luiz Pinheiro da Cunha, Dr. Wenceslau
despercebido. Observando algum tempo, é possível no- de Queiroz, Augusto César Barjona, Hyppolito da Silva. Todos,
tar um entra e sai de pessoas com seus instrumentos membros de destaque do ambiente artístico daquelle1 tempo.
musicais protegidos por caixas das mais variadas for- (ALMEIDA, 1931, p.57).
mas e tamanhos. É o Conservatório Dramático e Musi-
cal de São Paulo. Os primeiros no departamento musical, enquanto que
os quatro últimos no departamento artístico a quem se
Se hoje ele é só mais um prédio no centro velho de São soma ainda o fundador, Pedro Augusto Gomes Cardim.
Paulo, só mais uma escola de música dentre tantas ou- Além destes nomes, ainda outros como Guido Rocchi,
tras que povoam e proliferam em uma metrópole que não Paulo Tagliaferro, Adolpho de Araújo, Gomes Cardim,
para de crescer, outrora foi a escola onde Mário de An- Henri Ruegger e G. Foschini fizeram parte da primeira
drade e Francisco Mignone – só para citar dois importan- congregação, enquanto outros como Zulmira de Andra-
tes nomes – estudaram e lecionaram. da Machado, Anna Freymann, Olympia Catta Preta, Olga
Massucci, Felippe De Lorenzi, Gervazio de Araújo e José
O Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, de Souza Lima foram contratados. (ALMEIDA, 1931, p.57).
inaugurado em 12 de março de 1906 com a presença
do então Presidente do Estado Jorge Tibiriçá e outras Estes e outros nomes – que por motivos vários não par-
autoridades, funcionou inicialmente na Rua Brigadeiro ticiparam da fundação do conservatório – foram sujeitos
Tobias, onde morou a Marquesa de Santos, mudando- das transformações sofridas por São Paulo e pelo Brasil
se para a Av. São João em 1909. Seu fundador oficial nas últimas décadas do século XIX e na primeira do século
foi Pedro Augusto Gomes Cardim e no primeiro corpo XX. Transformações não só no aspecto visível, nas casas,
docente encontramos nomes como: ruas, avenidas, prédios, praças e transportes, mas tam-

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010 Recebido em: 22/02/2009 - Aprovado em: 10/09/2009
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bém nos aspectos culturais e sociais. Coelho Neto (Apud como observou VENTURA (1991, p.152), na tentativa “de
ALMEIDA, 1931, p.74-75), ao assinar o livro de ouro do se formarem distinções teóricas e políticas...”2
Conservatório, em 1913, sintetiza:
Portanto, as disputas em torno da música realizadas atra-
Entrando nesta casa sob flores tive a suave fortuna de ouvir os vés das polêmicas – mormente publicadas nos periódicos
alumnos que nella estudam e delles tive a prova de que o sonho
de meus irmãos em Arte começa a tornar-se realidade. Conheci
– eram disputas em torno do papel da música na socie-
São Paulo no tempo das construcções coloniaes e, á noite, por dade, muito embora algumas delas encobrissem disputas
entre a nevoa da garôa, soavam docemente as serenatas romanti- por público, alunos e prestígio.
cas. Retirei-me, como que foi commigo o som da ultima guitarra...
Annos depois tornei. A cidade das taipas era a maravilha de hoje...
Os palacios porem, pelo silencio que os cercava, na espessura do
Deixemos a polêmica por enquanto. Entremos na casa
arvoredo, lembravam o da lenda da princesa adormecida... Agora de Antonio Carlos de Andrada e sua esposa, a “distinc-
resôam vozes, vibram melodiosos instrumentos, a musica desperta ta professora D. Zulmira”. Na noite de 15 de agosto de
a cidade... É a nova cultura artistica que opera o desencantamento 1897 confraternizavam-se vários convidados, entre eles
e, graças a este instituto, dentro em breve, o genio paulista, que
soube fazer o ninho formoso, de marmore e de ouro, soltará delle,
Chiaffarelli que acompanhou ao piano juntamente com
para gloria da Arte brasileira, o bando de rouxinóes que afinam as Antonio Carlos, D. Zulmira cantando composições várias
vozes nesta casa que, modestamente, sem rumor, está preparando e entre elas algumas do cônjuge. A notícia foi escrita por
um nucleo de artistas dignos da terra de Carlos Gomes. C. d. M3., que também foi convidado.
São Paulo trabalha como as abelhas - mysteriosamente... e, como
appareceu, do dia para a noite, grande no progresso ha de surgir Era comum, segundo Pelágio Lobo, Elias Alvares Lobo ou-
improvisamente, grande na cultura: tem o que é necessario: talen- vir na sua janela:
to, iniciativa e o amor de seus filhos.
— Elias! Elias! ... é o Américo. [Américo de Campos]
Para Coelho Neto a São Paulo “das taipas” transformou- Pouco depois estavam os dois na sala.
O que é que você tem de bom para tocar? Missa, não!
se em São Paulo dos Palácios da “noite para o dia”. Apesar Vamos ouvir uma toada antiga, uma valsa de Itú, uma cantiga
de assim parecer para quem permaneceu longe de São qualquer, uma modinha da sua invenção. Começava a tocata e
Paulo por um tempo, a transformação perpetrada em São Américo descobrindo a um canto um violino, tomava-o, punha-se
Paulo não se fez isenta de polêmicas e conflitos como a encaixar suas arcadas nos compassos do piano, ornamentando-
o de variações inesperadas. Entusiasmavam-se, riam, folgavam,
mostra a historiografia. A organização musical que cul- despertavam a vizinhança com aquelas tiradas boemias. (Correio
minou na inauguração do Conservatório Dramático e mu- Paulistano, 1950 apud SERGL, 1991, p.102-103)
sical de São Paulo também não.
Em A Música para todos foi escrito um artigo humorís-
2 - Entre polêmicas e confraternizações: or- tico sobre um banquete oferecido pelos músicos de São
ganização e profissionalização Paulo a concertistas portugueses, em 1897, revelando de
Na “Capital Artística”, como costumavam chamar São forma bem humorada as características dos presentes. As
Paulo, o viver de música encontrava-se longe de ser fácil referências, quer seja o modo de falar – Chiaffarelli e sua
e as rivalidades afloravam: “original linguagem” – quer seja a profissão – Antonio
Leal “esquecera” seu martelo de leiloeiro – mostram tra-
Assim, as relações dos músicos com o público paulistano, muitas ços pessoais que só a convivência é capaz de perceber. (A
vezes tensas, envolviam igualmente algum tipo de atrito entre os Música para todos, 1896 n. 32-33, p.267).
próprios músicos, implicado nas disputas por clientela e aceitação
social. ‘Trabalhando para viver’, os músicos por vezes relaciona-
vam-se de forma bem pouco fraterna. (GONÇALVES, 1995, p.1863) Estes episódios mostram a existência, para além das po-
lêmicas, de um círculo de amizades, ou pelo menos de
Entretanto, ou até mesmo por isso, as polêmicas gesta- conhecidos e colegas reunidos em torno da música.
das no final do século XIX – e que permanecem, embora
ressignificadas, no século XX – não podem ser vistas sim- Se em muitos assuntos eles divergiam, em um ponto to-
plesmente como disputa por público ou alunos. Devem dos concordavam: havia chegado o momento de se orga-
ser encaradas também como disputas em torno do papel nizar. Vejamos esta passagem de outro artigo:
da música nesta sociedade em transformação, e com ela
Uma tarde um compositor de ‘couplets’ entrou n’uma café con-
o papel do músico. Há que se lembrar ainda o que VENTU- certo onde estavam muito em voga as suas cançonetas e sentou
RA (1991, p.80) percebeu para as polêmicas entre Romero se a uma mesa.
e seus contemporâneos: O creado perguntou-lhe o que queria.
— Nada, vim simplesmente assistir á interpretação das minhas
Afinal, na ótica de Romero e de seus contemporâneos, cabia a canções.
polêmica contribuir para o processo de seleção e depuração das — Mas é necessario ‘consumir’, diz-lhe o creado.
obras e escritores, lançados ao público na luta pela existência. Interveio no caso o dono do café que convida egualmente o fre-
gues a ‘consumir’ ou abandonar o local que tinha tomado.
Inserida no contexto da ciência evolucionista, a polêmi- — Mas, senhor, eu sou o auctor das canções.
— Deilal-o ser.
ca – típica do final do século XIX – inicia também um Pois bem, tragam-me um copo d’agua com assucar, mas por meu
debate que não é apenas entre gerações, entre o novo e turno, prohivo-os que cantem as cançonetas de que sou ou [sic]
o velho, como antes, mas no interior da própria geração, auctor e que estão annunciadas no programma.

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O dono do café não fez caso da prohibição e isso deu origem a que sociedade, entretanto, não logrou, e a imprensa da época
intentassem um processo cujo resultado foi elle condenado a cem não conseguiu identificar o porquê. (SERGL, 1991, p.87).
francos de indemnização.
Logo que se lhes offereceu ensejo reuniram-se diversos escripto-
res, que acordaram nas bases para formnar uma associação. Em 1883 aparece uma nota n’A Provincia de São Paulo:
Eis porque é costume dizer-se que d’um copo d’agua com assucar
nasceu a sociedade actual de auctores, editores e compositores de Sociedade Artística Beneficente
musica. (A Paulicéia, 1896, p.7) Pergunta-se aos membros da directoria d’esta associação quando
pretendem convocar Assembléia Geral para darem conta de seus
Este episódio, colocado em tom de humor pelo periódi- atos: pois que, ha trez annos, mais ou menos, nada sabemos rela-
co, expõe a situação dos músicos e indica que associação tivamente á marcha da mesma sociedade.
Alguns sócios inimigos das directorias em prorrogação.” (p.1)
entre eles parecia ser uma solução viável para problemas
de ordem autoral, entre outros. A profissionalização tra-
Trata-se da mesma associação ou era outro caso de orga-
ria certos direitos, enquanto as associações garantiriam e
nização frustrada?
expandiriam esses direitos. Este humorismo coloca bem,
não só a posição do músico na sociedade, como também
Em 1889, uma tentativa de se criar um conservatório por
serve como paradigma da profissionalização do período:
iniciativa de alguns professores liderados por Antonio
existia uma preocupação em criar associações, agremia-
Carlos Junior, da qual participaram Antonio Carlos Junior,
ções, organizações que assegurassem direitos e criassem
João Gomes de Araújo, Antonio Leal, Santini, Hollender,
um sentido de profissionalismo partindo dos mais diver-
Gabriel Giraudon, Bastiani, Gustavo Wertheimer, Barrei-
sos setores da sociedade.
re, também fracassou. Esta tentativa frustrada gerou por
parte da imprensa, uma crônica carregada de humor:
VENTURA (1991, p.102-103) procura evidenciar como as
disputas políticas e sociais que cerceavam o debate dos Antonio Carlos Junior, presidindo a reunião, nem bom a declara
literatos cede lugar a preocupação puramente classista. aberta e já é contestado por João Gomes; ato contínuo, se retira.
Reunidos em torno da Revista Brasileira, estes escritores4 João Gomes pede a palavra ao presidente sem que haja presiden-
te; a palavra lhe é concedida mas as interrupções são constantes:
fundaram a Academia Brasileira de Letras em 1897: em vários momentos exige-se que retire ou corrije afirmações que
fez, e o Sr. Festa pede até mesmo licença ‘para cantar uma aria
Com a estabilização política a partir de 1898, os escritores dei- dramatica de sua composição’. No momento da ária, Antonio Car-
xaram de lado a luta pela regeneração nacional, característica da los, que inexplicavelmente volta a estar presente, sussurra para
‘geração de 1870’. Sua missão se tornara literária no sentido estri- Américo de Campos, em seu português acentuadamente lusitano:
to, relacionada à afirmação profissional do critico e do escritor, o ‘O Amareico, o Festa não é de festa! Hom’esta? Isto não presta!’. E
que se manifestou na criação da Academia em 1897. A iniciativa se retira ‘com uma revista franceza em baixo do braço e um sorri-
partiu do grupo que se refletia na Revista Brasileira, da qual Ve- so nos labios’. João Gomes continua como orador até que Santini
ríssimo era diretor, para debater temas estéticos e literários, sem peça para falar ‘due palavri’; seu português macarronico provoca
o envolvimento de questões políticas. Os acadêmicos buscavam o protestos dos demais: ‘Falle portuguez, do contrario apanha!’ Ven-
reconhecimento da criação literária e adotavam certa distância cido, Santini volta a sentar-se, choroso. O adiantado da hora faz
entre a sociedade e a sua própria esfera, mas não mais aceitavam com que Wertheimer informe, em português de acento germânico:
a marginalidade ou o engajamento. ‘Eu va emborra porque eu va a Strasella!’; aproveitando a brecha,
Hollender pede ‘parra lerr um artigue de critica musicale!’. Frente
Da mesma maneira, Denice CATANI (1989) apresenta o a essa verdadeira ameaça, ‘todos saem correndo’. Todos, com ex-
ceção de Américo de Campos que, ao som das primeiras palavras
quadro para os professores em São Paulo, que em torno do artigo de Hollender, desperta do sono que tirava nas galerias.
da Associação Beneficente do Professorado Público de (Apud GONÇALVES, 1995, p.190-191)
São Paulo criada em 1901 e da Revista de Ensino, órgão
da associação, criada em 1902, procuraram nortear suas Mas o humor é apenas uma parte do discurso: o artigo
práticas educacionais, servindo também como porta-voz culpa a inabilidade dos músicos pelo fracasso da tenta-
dos interesses de classe. tiva. Diferentemente do texto publicado pela A Música
para todos que ressaltava as idiossincrasias dos presen-
Quanto aos músicos de São Paulo, uma das primeiras tes no intuito de mostrar como foi animado e concorrido
tentativas foi empreendida por Elias Alvares Lobo e seu o banquete (1896 n. 32-33, p.267), neste, descambando
cunhado, Tristão Mariano da Costa. Através de ofícios en- para o sarcasmo aponta características que impedem a
viados de Itu, onde residiam, convocaram os músicos da realização de algo concreto. A falta de comunicação, a
província para um congresso a realizar-se no dia 26 de desorganização, as intrigas internas, a incapacidade de
setembro de 1875. (SERGL, 1991, p.86-87). pensar noutra coisa a não ser música, e até mesmo a
existência de várias nacionalidades são apontadas como
Segundo SERGL (1991, p.87) o “congresso coroou-se de fatores do fracasso.
pleno êxito”, sendo apresentados dois métodos de ensino
e criada uma comissão que ficou encarregada de regis- Em 1897, um movimento que contava com Luigi Chia-
trar os estatutos da nova sociedade. Participaram deste ffarelli, Felix de Otero, Antonio Leal, Mello Abreu, Luiz
congresso além de Elias Alvares Lobo e Tristão Mariano Levy, Victor Rondelli, Leopoldo de Freitas, João Escobar,
da Costa, Antonio José de Almeida, Luis Mauricio, Gabriel Almeida Junior, Ezequiel Ramos Junior, Augusto Barjona,
Giraudon, Melchiades da Boa-Morte Trigueiros e Américo Antonio Carlos, Rugger e Carlos de Campos tentava criar
de Campos, entre outros. (GONÇALVES, 1995, p.189). Esta um club artístico. Até mesmo uma comissão para análise

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do projeto de estatuto foi criada. (A Música para todos, Estas tentativas de organização – frustradas ou não
1897, 288). Em agosto de 1898 o mesmo periódico se – implicam em uma tentativa de redefinição do cam-
mostrou estupefato: po de atuação dos próprios envolvidos. BASTOS (1995,
p.54) afirma que a música ocidental encontra nos con-
A sociedade que alguns musicos pretendiam fundar na Capital
Artistica foi enterrada. Por quem e porque? (A Música para todos,
certos – que a reinventa – e nos conservatórios – que a
1898, p.412) conserva – “os templos ideais de sacralização, cultivo
e consensualização”.
Exceção a estas tentativas frustradas é a própria exis-
tência do periódico A Música para todos, que de 1896 a VENTURA (1991, p.116) vem alertar, para o campo literá-
1899, circulou na capital de São Paulo, trazendo a agen- rio, esta condição:
da artística da cidade, discussões e assuntos referentes a
Para reconhecer a autoridade da crítica e do ensino da literatura,
música. Este mesmo periódico, através de seus colabora- era preciso definir o seu campo de competência, de acordo com a
dores, encampou as expectativas dos músicos na organi- identidade ‘natural’ de seus objetos. O estabelecimento de ativi-
zação profissional. Por ocasião da fundação da Academia dades profissionais, relacionadas à literatura, depende da rede de
Livre de Música do Rio de Janeiro, em 1897 publicou, em inclusões e exclusões, por meio da qual se formam as matrizes
institucionais que regulamentam as práticas de leitura e o cânone
tom de lamento: das obras integradas à história literária.
Aqui continuamos sem conservatório official, nem academia livre;
ainda vivemos na espectativa de melhores tempos para se cogitar Como esta rede de inclusões e exclusões se manifesta no
da educação artística do povo. campo musical? Qual seria o cânone das obras musicais
Pobre ‘Capital artística’! (A Música para todos, 1897, p.181)
aceitas pelas “matrizes institucionais”?
No mesmo tom, A Paulicéia publicara um ano antes: Em São Paulo, no final do século XIX e início do XX, a
Pensou-se, discutiu-se e cremos que até se projectou n’esta terra posição social do músico em relação a seus pares é objeto
um theatro municipal. Um jornal, que não se publica já, pediu con- de disputa que frequentemente extravasa do círculo de
servatório, aulas de música e, por essa epocha d’aqui dissemos que conhecidos para a imprensa.
theatro apenas era um bom começo mas que provavelmente nem
isso não teremos tão cedo.
Infelizmente o tempo veio demonstrar que prophetisamos. O principal objeto de discussões gira em torno das apre-
(A Paulicéia, 1896, p.7) sentações musicais. Emilio do Lago, ainda em 1866,
quando era regente da Orquestra do Teatro, recusou-se a
Os músicos teriam de aguardar, até 1906, a criação do tocar em bailes do Hotel das Quatro Estações, afirmando
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. que “desde que veio para São Paulo ainda não tocou em
bailes públicos”, posição esta referendada por José Jovita
Pedro Augusto Gomes Cardim, então vereador munici- Correa do Lago: “não toco em bailes públicos e não faço
pal, apresenta um projeto para a criação do Conservató- parte do numero dos que se contractão para esse fim”
rio Dramático e Musical de São Paulo. Este projeto, que (GONÇALVES, 1995, p.180).
inicialmente propunha o custeio por parte da municipa-
lidade, sofreu alterações, e ao município caberia apenas Em lado oposto, Gabriel Giraudon não se importava em
uma subvenção. Também foi frustrada a tentativa de tocar em bailes, chegando mesmo a dirigir a orquestra do
fazê-lo funcionar, provisoriamente, no Teatro Munici- mal-afamado “Alcazar Lyrique”5 no Rio de Janeiro, antes
pal. Tentativas de loterias – proibidas na Constituição, de vir morar em São Paulo. (GONÇALVES, 1995, p.182).
mas abriu-se uma exceção – se mostraram infrutíferas.
O porquê, entretanto não foi explicado. Após a primeira Da mesma maneira Chiaffarelli se bateu n’A Música
reunião, realizada no Club Internacional, foi nomeada para todos com Felix Otero e Gustavo Wertheimer,
uma comissão assim constituída: Presidente, A. de La- estes últimos acusando o primeiro de realizar mara-
cerda Franco; Tesoureiro, Carlos de Campos; Diretor se- tonas pianísticas com suas alunas, mais ao modo do
cretário, Pedro Augusto Gomes Cardim e para o primeiro espetáculo circense do que de concerto de arte musical
caixa, companhias teatrais e líricas cederam a bilheteria (A Música para todos, 1897).
de alguns dos seus espetáculos, bem como uma quer-
messe foi realizada. A primeira reunião foi realizada em Entre a luta pela sobrevivência e a luta pela profissiona-
1/02/1906 no antigo prédio da Marquesa de Santos, e lização, os músicos caminhavam do baile ao concerto, e
foi inaugurado oficialmente em 12 de março de 1906. também do popular ao erudito, como o fez paradoxal-
(ALMEIDA, 1931, p.53-56). mente o próprio Emilio do Lago ao compor músicas mais
afeitas ao gosto popular.
Os cursos inicialmente abertos foram: italiano, arit-
mética, literatura, dicção no curso dramático, rudi- De forma similar, Elias Alvares Lobo transitava entre
mentos de música, solfejo, harmonia, piano, canto óperas e canções populares, colocando-se ainda entre
coral, canto, harpa e instrumentos de sopro. Realiza- a República e a Igreja, compondo hinos republicanos e
do, enfim, o antigo sonho dos músicos de São Paulo. músicas sacras, em um momento em que a Igreja era
(ALMEIDA, 1931, p.56). sinal de monarquia.

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Apesar de o cânone ser composto por obras de caráter sina outros acordes, outros tons. A falta de nomenclatura
erudito, baseadas nas escolas européias6, alguns músicos erudita é também alvo de piada:
transitavam entre este cânone e música popular, servindo
como instrumentos de ligação entre a cultura popular e a Continua a estudar, apenas com os elementos que possue, auxi-
liando o furabolos com o pai de todos e o seu vizinho. No fim de
cultura erudita (MORILA, 2004). três mezes já o nosso maestro faz passos oitavados, empregando
o míminho e o matapiolhos.
Se a disputa entre o que compor e aonde se apresentar Um dia, n’um arroubo inspirado, deu taes reviravoltas com tres
não era consenso, outra questão era um pouco mais clara. dedos, que dá com o mordente. Acha sublime e, como na estudou
a artinha, baptisa este passo com o nome de saca-rolhas. Dálli em
Tomemos este artigo intitulado “Entendidos Musicais”: diante não há meio que não acabe pelo tal saca-rolhas. (A Música
para todos, 1899, p.554)
Não há cidade que não apresente alguns especimens de en-
tendidos em tudo, pseudo-sabios que em tudo mettem o be-
delho, intrometendo-se em conversas, apresentando uma alta Aqui, revela o nome dos dedos e dos movimentos pia-
opinião, em ar dogmático, como quem pisa em terreno seguro, nísticos no jargão popular. Na seqüência do artigo, e em
comquanto a socapa, de si para si, se considera uma nullidade determinado momento o autor sentencia:
na matéria em que discute.
Se o leitor tiver a desgraça de se encontrar com um destes ama-
O artigo continua citando um exemplo jocoso que teria dores, dê-lhe desapiedadamente com um cacete, que eu compro-
metto-me a ir advogar-lhe a causa, comprometendo-me também
acontecido no dia seguinte da representação da ópera Ri- a faze-lo sahir do tribunal em triumpho das bênçãos de todas
goletto. Estando o “entendido musical” na casa Levy, tra- as famílias de S. Paulo e arrabaldes! (A Música para todos, 1899,
va diálogo com Alex. Vale a pena transcrever um trecho: p.554)

— Já viu você que tamanha porcaria? Aquelle Rigoletto que apre- É notável a forma como, neste artigo, ao mesmo tem-
sentaram hontem? Aquilo não é Rigoletto, não é nada, justamente
os melhores pedaços da opera foram cortados! Você não acha?...
po em que promove a separação entre duas classes de
— Como! Creio que não cortaram grande cousa... músicos – os profissionais e os amadores, estes devendo
— Hom’essa...Espere, que já lhe digo qual é um delles... Diabo! Não ser metaforicamente espancados “com cacete”, ou seja,
me lembro bem... excluídos do universo musical paulistano – Alfredo Ca-
—?
— Ah, sim! Agora achei. Eu bem vi que os patifes cortaram o me-
marate deixa registrado todo o processo de aprendiza-
lhor pedaço! Aquelle...você conhece... Olhe, é aquelle...(cantando) do informal que o músico popular enfrenta, registrando
‘E che buccano sul caso strano e che commenti per la città!’ inclusive nomes populares para movimentos musicais
... e che commenti per la città!... (Sacarrolhas, soluço), melodias e ritmos consagrados no
— Ora vá plant... Isso é do Baile de Mascaras!!!
— Homem! Espere, então é outro, enganei-me!...
popular (lundu, polca, modinhas, contradanças, trechos
Nisso passa um amigo do melro, aproveitando este a boa ocasião de óperas), e comparando-o a outros saberes populares
de seguil-o, assim como quem precisa falar de negocio urgente. (A como o curandeirismo.
Música para todos, 1897, p.206)
É mesmo interessante esta analogia do músico popular
Quem poderia ser considerado um crítico musical? Quem com o curandeiro. Ao analisar a produção da razão médi-
poderia ser considerado um músico? No artigo “Músicos ca no século XIX, J. G. GONDRA (2000, p. 521-522) apon-
amadores”, Alfredo Camarate busca separar os músicos ta um combate aberto pelos médicos em duas frentes: a
profissionais, artistas que aprenderam seu ofício de ma- interna, onde se combatiam a homeopatia, a helvética
neira formal, em escolas, conservatórios ou com reno- e a medicina oriental e; a externa, onde os alvos eram
mados professores, e os músicos amadores que apren- o curandeiro, a benzedeira, os bruxos, mágicos, indíge-
deram na prática. Comparando o músico amador com os nas, escravos e curiosos. Assim, ao mesmo tempo em
tuberculosos pulmonares (pois não há cidade populosa que produziam uma razão médica e com ela garantiam
que não os tenha), explica em tom sarcástico sua origem: o “monopólio sobre a arte de curar”, criavam – por assim
Como nasce o musico amador?
dizer – os charlatães, i.e., todos que estivessem fora das
Homem, nasce como todos os outros: chorando e chuchando no práticas ditas científicas.
dedo.
Musico, desenvolve-se com a velocidade dos cogumelos. Pôe um A ironia deste procedimento de criação do charlatanismo
dia o dedo n’um teclado de piano e fez-se musico amador; o que
é muito differente de amador de musica.
e deste artigo em especial, talvez o mais crítico em rela-
Inicia as suas lides artísticas com o lundu, o lundu clássico, que se ção à música e ao músico popular 7– é que ele é também
chama lundu, como se poderia chamar outra cousa. o que melhor registra o aprendizado deste músico. Outros
registros são por vezes simples demais:
Depois de castigar as oito teclas, em que se desenvolve o lundu,
o musico amador conhece que pode manejar dous accordes; dó, No Natal todo mundo tocava violão, tocava flauta, as crianças
mi, sol, dó e sol, si, ré, fá. Animado com estes progressos, de que gostavam de tocar flautinha de bambu, não sei como tocavam
é que suppõem que o amador se lembra? (A Música para todos, tudo bonitinho naquela flautinha. Quase todo mundo tocava vio-
1899, p.554) lão de ouvido, a criançada dançava, era bem divertido antigamen-
te (BOSI, 1994, p.375) [grifos meus]
O autor continua ridicularizando e menosprezando este
músico que aprende na prática. Outro elemento entra na No número seguinte de A Música para todos (1899,
história: um músico amador mais adiantado, que lhe en- p.562), Camarate dá continuidade a sua explanação,

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porém em texto muito mais comedido que o anterior. 3- Considerações finais


Talvez por ter sido criticado, ou talvez por ter percebido Em 1906 estava delineado um caminho para a música
que esta casta de músicos é de um lado potencial públi- e seu papel na cultura paulista. Os músicos e a música
co dos músicos “educados”, e de outro lado, constitutivo erudita tinham seu lugar privilegiado: o Conservatório
de grande parte das agremiações musicais brasileiras, Dramático e Musical de São Paulo. A música popular que
ele diminuí o tom de crítica e assume uma postura con- anteriormente perpassava a cidade começava a se res-
ciliatória, e às vezes, adulatória: tringir somente à cultura popular.
Não conheço paiz onde as senhoras cheguem a tão alto grao de
aperfeiçoamento musical, como no Brazil. Alem do talento natural
Aquele músico que escrevia ao mesmo tempo música sa-
que possuem para a música, denotão uma educação musical, que cra, música popular e música erudita estava em vias de
não parece a que lhes pode ter fornecido um pais relativamente extinção. Elias Alvares Lobo morreu em 1901, e Tristão
atrasado no estado theorico da música. Conheço dezenas de se- Mariano da Costa em 1908. O paradigma do músico ec-
nhoras brasileiras que, não só tocão peças difficilimas com summa
perfeição, como até leiem, muito discretamente, qualquer música
lético, da qual ambos eram casos exemplares, chegava
à primeira vista. a um termo. Inaugurava-se uma nova fase, a do músico
especialista. É claro, alguns músicos da antiga tradição
As senhoras e as moças de família merecem aqui um tra- continuariam por algum tempo dentro do ecletismo, mas
tamento diferenciado visto que elas constituem parte do este não era mais o paradigma hegemônico.
público dos concertos, como também consumidoras das
partituras editadas. No entanto, eles mesmos iniciaram esta especialização,
esta racionalização musical. Lembremos que Elias Alvares
Mesmo procurando adular determinada parcela destes Lobo e Tristão Mariano da Costa organizaram o primeiro
músicos amadores, Alfredo Camarate sintetiza uma pro- congresso de músicos. Elias Alvares Lobo foi também o
fissionalização crescente do músico no Brasil e em espe- criador do primeiro método de ensino nacional aprovado
cial em São Paulo, profissionalização esta que incluem para as escolas públicas republicanas paulistas.
uns e excluem outros, valoriza gêneros e estilos em de-
trimento de outros, em um movimento semelhante ao Em um período de intensas transformações, os músicos
descrito por VENTURA (1991) para o campo literário e se perguntaram qual o papel que seria destinado à mú-
CATANI (1989) para o campo educacional. sica, e, por conseguinte qual o papel que eles desem-
penhariam na sociedade. Mas se esta pergunta ecoava
Se não se pode eliminá-los – como propôs no primeiro no círculo musical paulistano, as propostas não foram
artigo – pode-se separá-los como propõe o final deste unânimes: o caminho foi de conflitos, lutas e opiniões
segundo artigo: divergentes. Cada qual procurava expor suas idéias da
maneira que podia. Artigos na grande imprensa, artigos
E, demais, eles já não devem estar macios, com esta critica e faço em publicações especializadas, conferências, concertos,
ponto no assunto; não porque receie que me desacompanhão, mas
porque temo que me venhão dar uma serenata, em frente a janela!
todos os meios disponíveis eram utilizados.
(A Música para todos, 1899, p.562)
O quase despercebido prédio da Av. São João, atrás do
Cantem, toquem e componham, mas longe do ouvido agu- Teatro Municipal tem muita história para contar. Foi alvo
çado do músico e do crítico profissional, que se comporta de muitas polêmicas e discussões, mesmo antes de ser
como o autêntico “botafogano” descrito por Lima Barreto8. fundado. Bem antes das aulas começarem.

95
MORILA, A. P. Antes de começarem as aulas: polêmicas e discussões... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.90-96.

Referências
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BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
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Público de São Paulo: 1902-1918). 1989. Tese (Doutorado em educação) - FEUSP, São Paulo, 1989.
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MORILA, A. P. Dando o tom: música e cultura nas ruas, salões e escolas da cidade de São Paulo (1870-1906) 2004. Tese
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.
Relatório do Conservatório Dramatico e Musical de São Paulo. São Paulo: Typographia Fiume, 1930- 931.
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VENTURA, R. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo: Cia das Letras, 1991.

Notas
1 Optou-se por manter a grafia original de todas as citações.
2 Apesar de Ventura colocar a polêmica como tentativa de se formar distinções teóricas, em um contexto da ciência
evolucionista, ele não se esquece de dizer, entretanto, que esta polêmica teria também a influência dos desafios
populares, tão comuns em diversos gêneros da época.
3 Provavelmente Carlos de Mello.
4 Entre eles: Joaquim Nabuco, Visconde de Taunay, Carlos de Laet, José do patrocínio, Lúcio de Mendonça, Graça Ara-
nha, Rui Barbosa, Medeiros e Albuquerque, Oliveira Lima, Machado de Assis. (VENTURA, 1991, p.102 e 113).
5 Famoso Café-concerto na cidade do Rio de Janeiro.
6 As escolas italiana, francesa e alemã foram, respectivamente os modelos para a música erudita. É interessante notar
que a maior parte dos compositores do período compuseram, ou tentaram compor óperas, expressão máxima da
escola italiana.
7 A exemplo do que descreveu Peter BURKE (1989, p. 92) para a cultura popular européia, quando afirma que a Inquisi-
ção, no intuito de destruir a cultura popular, acabou eternizando-a nos autos inquisitoriais: “Outras atividades popu-
lares estão documentadas simplesmente porque as autoridades da Igreja ou do Estado estavam tentando eliminá-las.
A maior parte do que sabemos sobre as rebeliões, heresias e feitiçarias do período foi registrada porque os rebeldes,
hereges e bruxas foram levados a julgamento e interrogados.”
8 Em debate com Oscar Lopes, Lima Barreto escreve: “tu que queres fugir à nossa grosseria, à nossa fealdade, à nossa
pobreza agrícola, comercial e industrial, és um botafogo. Botafogano é o brasileiro exilado no Brasil; é o homem que
anda, come, dorme, sonha em Paris.” (COSTA, 2000, p. 151)

Ailton Pereira Morila é Bacharel em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, Mestre e Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Atualmente, é
docente do Centro Universitário Central Paulista (UNICEP). Atua na área de História, com ênfase em História da Cultura,
Educação e Música.

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ROCHA, S. F. Memória: uma chave afetiva para o sentido na performance musical... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.97-108.

Memória: uma chave afetiva para o


sentido na performance musical numa
perspectiva fenomenológica
Sérgio de Figueiredo Rocha (UFSJ, São João del Rey, MG)
sergiorocha@ufsj.edu.br

Resumo: Relato de experiência sobre a rotina de prática e atuação do quarteto de trombones Trombominas, no qual
se propõe uma interlocução entre três eixos: performance musical, fenomenologia e a memória musical, enquanto
função cognitiva. São descritos procedimentos sob o referencial fenomenológico, a partir das impressões subjetivas dos
participantes do grupo, coletadas através de entrevistas. Busca-se explicar como a memória pode agir como uma chave
na construção do sentido para os sujeitos da performance.
Palavras-chave: performance musical, memória, fenomenologia, fenomenologia da música.

Memory: An affective key to the meaning of musical performance in a phenomenological


perspective

Abstract: Descriptive study about the routines of practice and performance by the Brazilian trombone quartet called
Trombominas, according to three axes: musical performance, phenomenology and musical memory as a cognitive func-
tion. The group’s procedures are described within the perspective of the phenomenological referential, departing from
interviews with the members of the group and their subjective impressions. It aims at explaining how memory can act
as a key in the construction of musical meaning for the subjects of the performances.
Keywords: musical performance, memory, phenomenology, musical phenomenology.

Introdução
O presente trabalho tem como perspectiva a experiência A estruturação do artigo se deu através da conexão entre
na performance musical. A experiência na música de câ- a prática musical, o entendimento da memória enquanto
mara tem se mostrado enriquecedora e poderia contribuir função cognitiva e o relato das experiências vividas pelos
para a elaboração de questões a serem aprofundadas no componentes do Grupo Trombominas (referencial feno-
ambiente acadêmico. Por outro lado, a conexão das ex- menológico). Foram, então, organizadas duas seções no
periências na prática musical em grupo com outras áre- artigo, sendo uma sobre a memória e sua relação com a
as pode tornar mais clara a compreensão desse processo. performance musical, e a outra sobre a fenomenologia e
As funções psíquicas têm sido largamente pesquisadas e sua aplicação na vivência musical.
essas, juntamente com a fenomenologia, têm se articula-
do de forma muito freqüente no campo da saúde mental. Na abordagem da memória e na descrição de suas ca-
O presente artigo pretende se aprofundar no universo da racterísticas inerentes, tomei como fontes principais os
performance musical se valendo de referenciais de outras trabalhos do Professor Daniel Schacter, chefe do Depar-
áreas, o que pode vir a enriquecer a discussão. tamento de Psicologia da Faculdade de Artes e Ciências
da Universidade de Harvard (E.U.A.). Fazendo a conexão
Dentro da rotina do Grupo Trombominas há uma questão entre a memória e a performance musical, me baseei nos
que potencialmente fornece material para uma investiga- trabalhos do Professor John Sloboda, atualmente atuan-
ção científica. A memória tem sido um importante foco do na Universidade de Keele (U.K.), o qual desenvolve pes-
de discussões informais entre os integrantes do grupo, quisas na área da psicologia cognitiva aplicada à música
praticamente desde sua criação. Sendo, então, a memó- há pelo menos três décadas.
ria e sua relação no grupo um tema a ser desenvolvido,
criou-se a demanda para uma articulação teórica que O campo das ciências humanas que lida com o estudo dos
viesse a contribuir para um entendimento mais amplo fenômenos em si é a fenomenologia. Foi o filósofo ale-
acerca da performance musical. mão Edmund Husserl quem formulou as bases teóricas da

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010 Recebido em: 20/11/2008 - Aprovado em: 13/10/2009
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ROCHA, S. F. Memória: uma chave afetiva para o sentido na performance musical... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.97-108.

fenomenologia no início do século XX. Thomas CLIFTON dos a esse tipo de memória são processados em estruturas
(1983), fez a “transposição” da fenomenologia aplicando- denominadas Cerebelo, Putâmen e Núcleo Caudado.
a à música ao produzir o livro Music as heard: a study in
applied phenomenology. A memória semântica é como um arquivo de coisas que
sabemos independentemente de relações pessoais que
Seguindo-se à exposição teórica de cada um dos temas, estabeleçamos com elas. Quando tomamos contato com
quais sejam: 1) Memória e memorização; 2) Memória e um objeto qualquer, como um telefone, por exemplo, o
performance musical e 3) fenomenologia e fenomenolo- estímulo é pessoal, mas com o tempo as relações asso-
gia da música, haverá um tópico – A experiência feno- ciativas com esse objeto vão se perdendo a ponto de nos
menológica num grupo de trombones -, onde serão le- relacionarmos apenas com o vocábulo telefone. Memó-
vantadas questões relativas aos referenciais teóricos que rias semânticas registradas no Córtex são codificadas no
tragam à tona discussões aplicadas à performance. Lobo Temporal e recuperadas no Lobo Frontal. Por outro
lado, a memória episódica nos remete a acontecimentos
pessoais vivenciados e relevantes. É como se guardás-
2. Memória
semos o número do telefone de uma pessoa com quem
2.1- Memória e Memorização mantemos contato freqüentemente. Memórias episódicas
É oportuna a divisão nesse subtítulo uma vez que a me- são processadas em estruturas denominadas Hipocampo
mória será abordada enquanto uma função cognitiva, um e armazenadas no Córtex.
processo fisiológico do funcionamento mental; por outro
lado, a memorização nos remete à idéia de intenção de se No caso das memórias de longo e curto prazo, há um
valer da memória com algum fim. processo de “sedimentação” de informações. Quando o
estímulo é recente, ele é codificado no Córtex e, na medi-
Definições acerca desses termos são encontradas nos da em que é “regerado” tal padrão, outras estruturas vão
mais diferentes campos. FERREIRA (1999, p.1315), entre se envolvendo nesse processo, como o Hipocampo. Essa
outras conotações, propõe a seguinte para a memória: estrutura se liga a inúmeras estruturas corticais, fazendo
“faculdade de reter idéias, impressões e conhecimentos com que seja criada uma representação global dos even-
adquiridos anteriormente”. Esse autor ao se referir à me- tos. Tamanha associação de idéias (em última análise) é
morização, aponta: “reter na memória, aprender de cor”. estímulo suficiente para a manutenção das lembranças
O termo aprender é aqui grifado por ir ao encontro da do evento. Um caso particular da memória de longo pra-
idéia de intenção, empregada no parágrafo anterior. Entre zo é a memória do medo, chamada de flashback e fobia,
outros sentidos, memorização é definida por como “reter relacionada a fatos desagradáveis e negativamente mar-
na memória, mediante o estudo, a observação ou a expe- cantes. Nesse caso, as memórias são armazenadas numa
riência”. Há também definições mais poéticas como a de estrutura cerebral denominada amígdala.
SARAMAGO (1991, p.168), quando se refere ao tempo:
“(...) o tempo não é uma corda que se possa medir nó a Segundo CARTER (1999), há fatores que podem contribuir
nó, o tempo é uma superfície oblíqua e ondulante que só para que determinado pensamento ou percepção seja
a memória é capaz de fazer mover e aproximar”. armazenado na memória. Quanto maior o esforço para
definirmos as características de algum objeto, seja ele vi-
No campo das neurociências, há também concepções sual, auditivo ou uma descrição a respeito deles, maior
acerca da memória, como que a subdividindo em várias será a associação entre os neurônios ligados a eles. Isso
categorias. Segundo CARTER (2002, p.316), “cada tipo significa dizer que, após ocorrer esse empenho de especi-
diferente de memória é armazenado e recuperado em ficação, um esforço mínimo para lembrar desses “objetos”
um caminho diferente, e dúzias de áreas cerebrais es- já será suficiente para detectá-lo instantaneamente. Por
tão envolvidas numa complexa rede de interações”. O outro lado, Morton, citado por CARTER (1999), assina-
processo se inicia a partir de um estímulo que “dispa- la fatores que podem inibir a lembrança, entre os quais
ra” uma reação química na unidade básica do sistema destaco a falta de “dicas” relevantes, que seriam como
nervoso, que é o neurônio. Quanto maior o estímulo, pistas associativas. SCHACTER (2003) ressalta que dividir
maior o número de neurônios afetados. Hebb, citado por a atenção influencia o processo de armazenamento na
SCHACTER (2003), postulou uma teoria segundo a qual memória. Contudo, esse processo tem pouco efeito sobre
as memórias têm relação com a intensidade e freqüên- a impressão subjetiva de conhecimento prévio de algo, ou
cia das conexões sinápticas. As memórias são padrões seja, sobre a “familiaridade”.
específicos de estímulos que podem ser codificados e
permanecem “arquivados” mesmo após a cessação do O processo de registro na memória não é algo fiel como
estímulo. Há regiões que “gerenciam” por assim dizer os uma fotografia. Segundo SCHACTER (2003, p.21), “ex-
diferentes tipos de memória. traímos elementos fundamentais de nossas experiên-
cias e os arquivamos; então recriamos ou reconstruímos
A memória procedimental caracteriza-se por evocar o nossas experiências em vez de resgatar cópias exatas
“como fazer”, como, por exemplo, “andar de bicicleta”. Essa delas”. No processo de reconstrução há como uma dis-
memória diz respeito a hábitos cotidianos. Os dados liga- torção, impregnada de emoções, sentimentos, crenças,

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ROCHA, S. F. Memória: uma chave afetiva para o sentido na performance musical... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.97-108.

conhecimentos e associações, obtidas muitas vezes, se- primeiros psicólogos a estudar a situação em que a pes-
gundo o autor, até mesmo de conhecimentos “obtidos soa reconhece que sabe a palavra, porém, naquele mo-
após a experiência”. mento não consegue lembrá-la, o que foi denominado de
“situação de ponta de língua” (SPL) em 1966. Os autores
Há características da memória que contribuem para esse demonstraram que, apesar de tal situação ocorrer mais
processo “fluido” e “re-criativo”. SCHACTER (2003) deli- freqüentemente com nomes próprios, acontecem tam-
mitou tais características, a saber: transitoriedade, dis- bém ao tentarmos evocar nomes de lugares, por exemplo,
tração, bloqueio, atribuição errada, sugestionabilidade, e substantivos comuns. Estudos mais recentes demons-
distorção e persistência. tram que o que contribui mais fortemente para as SPLs é
o fato de as palavras serem usadas menos freqüentemen-
Por transitoriedade entende-se o fato de o passado inexo- te. Além disso, os nomes próprios são particularmente
ravelmente se perder na medida em que se vivenciam no- susceptíveis ao bloqueio e SPLs porque são isoladas do
vas experiências. Ebbighaus, citado por SCHACTER (2003), conhecimento conceitual, ou seja, têm menos associa-
já havia pesquisado tal característica da memória nos fins ções funcionais acerca do significado da palavra.
do século XIX, ao formular uma curva gráfica do esque-
cimento. Tal medição apontava que cerca de 60% das Experimentos revelam que o ato de resgatar informações
informações recém adquiridas são perdidas nas primeiras da memória também inibe a recordação posterior de in-
horas. O índice de perda é gradativamente menor com o formações relacionadas (SCHACTER, 2003). Por exem-
passar do tempo. Thompson, citado por SCHACTER (2003) plo, para que nos lembremos de uma associação como
encontrou achados semelhantes em estudo realizado em vermelho/sangue, é necessário suprimir a lembrança de
1990 na Universidade do Kansas. Pontos iniciais da curva outras “coisas vermelhas”, evitando assim uma sobrecar-
coincidem com descrições ricas e pormenorizadas dos fa- ga com informações irrelevantes, as quais poderiam vir a
tos. Na medida em que se distanciam do início da curva, as comprometer o processo de “busca” da palavra desejada.
memórias tendem a ficar cada vez mais gerais, formando Segundo Anderson, citado por SCHACTER (2003, p.106),
mais uma impressão genérica do que uma enunciação pre- ao recordarmos uma situação específica e não falarmos
cisa. Tal processo pode se constituir numa vantagem, como sobre outros fatos ocorridos durante essa mesma situa-
ressaltam Bjork e Bjork, citados por SCHACTER (2003): ção, esses poderão ser suprimidos da memória; é o que é
informações que deixam de ser importantes e tornam-se denominado de “inibição de informações não recordadas”.
desnecessárias são como que “progressivamente deleta-
das”, sendo cada vez menos acessíveis com o tempo. Outra característica significativa da memória é a atribui-
ção errada. Ela foi discutida pela primeira vez em fins do
A distração, outra característica da memória, é, segundo século XIX. A atribuição errada foi definida como um tipo
SCHACTER (2003), o esquecimento da informação que de “julgamento equivocado”, atribuindo-se erroneamente
nunca foi codificada de forma adequada (se é que o foi) sensações e experiências do presente ao passado. O termo
ou está guardada na memória, mas indisponível quando empregado em 1896 pelo psiquiatra francês ARNAUD foi
tentamos resgatá-la. A falta de atenção no momento de o “déjà vu” (SCHACTER, 2003). WHITTLESEA (1993) sugere
codificar uma informação tem sido postulada como prin- que o “déjà vu” pode ocorrer em função de características
cipal causa de distração. Essa falta de atenção pode se do presente que evocam respostas atribuídas erradamen-
atribuir, por exemplo, às “pré-ocupações” que desviam o te a uma experiência passada. Estudos demonstram que
foco de prioridades de informações gerenciadas no lobo a falta de detalhes em lembranças pode funcionar como
frontal. Assim é que SCHACTER (2003, p.75) aponta: lacunas que por vezes são preenchidas com “atribuições
“Quando estamos concentrados em outros assuntos que erradas na fonte”. “As pessoas podem lembrar, por exem-
exigem atenção, as associações freqüentemente não con- plo, que viram um rosto que já apareceu antes, mas não
seguem nos fazer lembrar o que precisamos”. se lembram da hora ou lugar em que viram esse rosto”
(SCHACTER, 2003, p.119).
O bloqueio se constitui naquela situação em que a pala-
vra ou nome, os quais sabemos conhecer, não nos vêm à Segundo SCHACTER (2003), vários estudos demonstram
mente. É, portanto, uma característica distinta da transi- que a simples imaginação de um fato pode ser, num outro
toriedade, já que a informação não foi apagada, ela está momento, evocado como um fato que realmente aconte-
apenas “escondida”; tampouco se relaciona à distração ceu. Quando há uma atribuição errada com uma sugestão
uma vez que no bloqueio a palavra ou nome foi codifica- clara, ocorre o que é chamado de sugestionabilidade, ou-
do e armazenado na mente, e, por vezes, até existem “pis- tra característica da memória.
tas” ou associações que normalmente seriam suficientes
para a lembrança. Segundo Burke e Mackay, citados por Segundo SCHACTER (2003, p.143), a sugestionabilidade
SCHACTER (2003), há uma grande diferença entre nomes da memória pode ser descrita como uma tendência do
próprios e substantivos. Os primeiros têm um leque asso- indivíduo a incorporar informações enganosas de fontes
ciativo mais específico enquanto os substantivos podem externas – “outras pessoas, material escrito, imagens, até
ser substituídos com palavras de mesmo valor conotativo. mesmo meios de comunicação” – a recordações pesso-
Brown e Mcneill, citados por SCHACTER (2003) foram os ais. Há outros fatores que podem se somar aos descritos,

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ROCHA, S. F. Memória: uma chave afetiva para o sentido na performance musical... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.97-108.

como tensão emocional, pressões sociais e a sugestão, experiências negativas mais do que positivas, e, com isso,
os quais podem até fazer com que alguém admita que também corremos o risco de recordar, com persistência,
cometeu um crime sem que isso tenha, realmente, ocor- detalhes dolorosos de experiências que na verdade querí-
rido (Munsterberg, citado por SCHACTER, 2003). Hyman, amos esquecer. O problema é que sabendo que queremos
citado por SCHACTER (2003, p.156) observou que ocorre esquecer, acabamos nos lembrando, e o que é pior, lem-
um número menor de falsas memórias quando as pessoas bramo-nos mais intensamente (WEGNER, 1994). Segundo
podem “sentar-se em silêncio e pensar se o evento havia, Pennebaker, citado por SCHACTER (2003, p.217), “a curto
de fato, ocorrido”. prazo, a persistência é praticamente uma conseqüência
inevitável de experiências difíceis”. Por outro lado, apon-
Ross, citado por SCHACTER (2003, p.173), observou uma ta, a longo prazo a forma de se abordar a persistência en-
característica da memória chamada distorção. Segundo o volve “enfrentar, revelar e integrar essas experiências”. Há
autor, muitas vezes as pessoas não têm lembranças claras uma estrutura ligada às experiências difíceis: a amígdala.
e exatas sobre o que achavam ou sentiam no passado.
Em vez disso, aponta, “suas conclusões sobre seus jul- Finalmente, parece haver uma integração entre as carac-
gamentos e atividades passadas são feitas com base no terísticas da memória de forma a permitir uma melhor
presente”. Há dois tipos de distorção: a distorção de com- adaptação àquilo que nos cerca. Assim aponta SCHACTER
preensão tardia, que se caracteriza pela tendência a ver (2003, p.250):
um resultado de um acontecimento como inevitável em
retrospectiva (“eu já sabia”); e a distorção de coerência, A memória recorre ao passado para informar o presente, preserva
elementos de experiências atuais para futura referência e permite
onde se reconstrói o passado para torná-lo coerente com que voltemos ao passado quando desejamos. Os vícios da memória
o que sabemos no presente. são também virtudes, elementos de uma ponte através do tempo,
que permite que façamos uma ligação da mente com o mundo.
Com relação à distorção de compreensão tardia, as pes-
soas podem, por exemplo, lembrar mais facilmente inci- 2.2- Memória e Performance Musical
dentes e situações que confirmam um episódio já ocor- A relação entre o nível de performance e compreensão de
rido. Por outro lado, segundo Carli, citado por SCHACTER obras musicais parece estar bem documentada. Segundo
(2003, p.183), “quanto maior são as memórias falsas, FRANÇA (2001, p.03):
maior é a distorção de compreensão tardia”. Temos a ten-
dência em confirmar o que nos “diz” a nossa memória, (...) só podemos avaliar mais efetivamente a extensão da com-
ainda que seja uma grande distorção, a acreditarmos na preensão musical do indivíduo quando ele toca aquilo que pode
realizar confortavelmente. Desta forma o problema da técnica é de
versão de outrem. Outro problema advindo da distorção é alguma forma neutralizado para que a pessoa possa ter oportuni-
o que Allport, citado por SCHACTER (2003, p.190) aponta dades de revelar o limite de sua compreensão musical.
como categorização feita pelo estereótipo. Pesquisas re-
centes demonstram que as distorções estereotipadas po- Em outro estudo realizado por FRANÇA e MARGUTTI
dem ocorrer automaticamente, “sem que estejamos cons- (2002), onde se objetivou identificar eventuais padrões
cientes disso”. Além disso, os estereótipos distorcem não de desenvolvimento da compreensão musical, a memó-
somente a maneira como pensamos e nos comportamos, ria/memorização foi correlacionada a níveis mais altos de
mas também como nos lembramos. Gazzaniga, citado por performance. Desse modo, a memória tem sido muito fre-
SCHACTER (2003) propôs uma teoria neurofisiológica so- qüentemente empregada no campo da performance mu-
bre o controle da memória. Segundo esse autor, há no sical. Em entrevista publicada na Revista Per Musi (CA-
hemisfério esquerdo do cérebro uma espécie de “intér- VAZOTTI e GANDELMAN, 2002), Janet Schmalfeldt, ao ser
prete” que utiliza o conhecimento geral na tentativa de perguntada sobre sua abordagem inicial numa peça, diz:
organizar coerentemente nossa percepção psíquica do “Busco memorizar uma nova peça, frase a frase, desde
mundo. Ocorre que o hemisfério esquerdo, ao tentar essa o princípio; o que requer um pensamento analítico (...)”.
organização, se vale de generalizações, deduções e racio- Segundo CASTRO (1997, f.150), “em seu relacionamento
nalizações que acabam por cometer distorções de coe- estabelecido com a música, a memória se mostra funda-
rência e de compreensão tardia. A vantagem é que, para mental no processo de constituição do sentido musical”;
contrabalançar esse desequilíbrio, o hemisfério direito e argumenta: “(...) cabe à memória proceder a interliga-
atua regulando nossas percepções do mundo exterior, ção daquilo que de seu próprio material (música) é expos-
fazendo-as realistas, como um mediador crítico. to, de modo que o sentido seja estabelecido”.

Outra importante característica da memória é a persis- O processo de como se dá essa interligação música/me-
tência. Essa tem uma estreita ligação com vivências que mória é objeto de pesquisas há várias décadas. A primeira
envolvem emoção. A emoção atua como que polarizando descrição sistematizada acerca da correlação da memória
a atenção para determinado foco. Tal “foco” permane- enquanto função cognitiva na música foi o relato feito
ce claramente distingüível na memória. Por outro lado, pelo pai de Mozart (Leopold Mozart) em 1770 (Anderson,
informações periféricas, ainda que importantes, são per- 1966 citado por SLOBODA, 1985). Nessa passagem, o jo-
didas em função do efeito do desvio da atenção. OCHS- vem Mozart, então com cinco anos de idade, proibido de
NER (2000) aponta que temos a tendência em lembrar ter acesso às partituras do Miserere de Gregorio Allegri

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ROCHA, S. F. Memória: uma chave afetiva para o sentido na performance musical... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.97-108.

(1582-1652), escutou por duas vezes tal música tocada dos que procuraram demonstrar que tipo de interferência
numa missa e então a escreveu de memória. A questão é poderia haver sobre a memória musical (Deutsch, Sérge-
entender como se deu esse processo, se o mesmo é uma ant, Cuddy, citados por SLOBODA, 1985). Verificou-se que
habilidade treinável ou nata e de que forma se estabele- o reconhecimento das alturas é parte fundamental desse
cem conexões entre o saber musical e as funções cogni- processo. A adoção de um sistema padronizado de alturas
tivas na performance. (modos e escalas) possibilitou a nomeação dos mesmos
(cada um numa determinada freqüência). Houve, a partir
Há evidências de que a identificação da forma do ma- de então, uma correlação direta entre o som e o nome
terial, sistematizado em unidades menores (organizado atribuído a esse.
em pequenos grupos), otimiza a possibilidade de memo-
rização. Um musicista experiente pode fazer isso reco- Apesar disso, a capacidade de reconhecimento de cada
nhecendo padrões de linguagem numa peça musical. Por altura isoladamente (chamada de “ouvido absoluto”) não
exemplo, a repetição do tema é um fundamento em mui- se traduz necessariamente numa boa memória musical.
tas músicas, assim como certas progressões harmônicas. Mais importante que esse, é o “ouvido relativo”, ou seja,
a capacidade de correlacionar intervalos sonoros. Essa
A identificação da forma do material pode se dar a partir habilidade facilita o processo de conexão das estruturas
de uma percepção rítmica, visual (observação da nota- numa peça musical. Felizmente, demonstrou-se que essa
ção na partitura), sonora, entre outras. Há uma conexão capacidade é treinável (Siegel e Siegel, 1977, citados por
de muitas informações que contribuem para o reconhe- SLOBODA, 1985). Isso é particularmente válido para o
cimento de um idioma (tonal, modal ou atonal) ou um idioma tonal. Muitas evidências apontam para a impor-
estilo musical. tância de se estabelecer o tom ou centro tonal para a
memorização de seqüências melódicas (Dowling, Bartlett,
Quanto mais familiarizado com essas informações está o Cuddy citados por SLOBODA, 1985).
indivíduo, mais facilmente poderá disponibilizar tais da-
dos na memória, tornando a preparação da peça mais ágil Outros parâmetros, além da percepção das alturas (melo-
e eficiente. Algumas vezes a mesma música é literalmen- dia e harmonia), são importantes para a formação de co-
te repetida, mas, quando essa é transposta ou transfor- nexões na memória musical. As estruturas rítmicas, assim
mada, a música inicial fornece uma estrutura para otimi- como a percepção subjetiva sobre o caráter fraseológico,
zar a percepção. Os Ex.1 e 2 ilustram questões relativas à fornecem material na construção dos nexos musicais.
forma, ritmo, estímulo visual e sonoro.
Na música, tais relações estão em grande parte presen-
Embora os dois excertos tenham os mesmos tons, métri- tes na estrutura da composição. Geralmente, um com-
ca e notas, o segundo apresenta-se mais difícil de me- positor, deliberadamente, escreve pequenos segmentos
morizar porque suas partes são menos familiares, além que têm similaridades entre si e se conectam formando
de também ter princípios de construção ou de movi- unidades maiores. É justamente descobrindo tais simi-
mento mais complexos. laridades e conexões que os limites da memória são ex-
pandidos. Assim é que musicistas mais experientes são
A memória dá sentido à performance conectando as es- capazes de memorizar peças extensas. Parece haver um
truturas menores dentro de uma unidade maior. Há estu- exercício que gradativamente vai se otimizando, uma

Ex.1 - Excerto de natureza mais familiar

Ex.2 - Excerto de natureza menos familiar

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ROCHA, S. F. Memória: uma chave afetiva para o sentido na performance musical... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.97-108.

economia de decodificação que pode ser alcançada se 3.1 Fenomenologia e Fenomenologia da


as repetições (melódicas, harmônicas, rítmicas e de ca-
Música
ráter) são identificadas e anotadas. Portanto, mesmo
Em fins do século XIX e princípios do século XX, havia uma
que haja ocorrências similares na seqüência musical,
crise entre o Positivismo e o Irracionalismo. Edmund Hus-
essas podem ser codificadas uma vez apenas na me-
serl (1859-1938), filósofo alemão, postulou uma terceira
mória e evocadas nos vários pontos ao longo da peça.
via, uma possibilidade que nos colocaria no mesmo plano
Talvez, numa primeira escuta, o ouvinte não tenha como
da realidade, antes de todo raciocínio (DARTIGUES, 1973),
estabelecer todas as diferenças, mas se lembrará disso
preocupando-se em conhecer as coisas a partir delas mes-
como algo que já tenha escutado.
mas, sem preconceitos ou argumentações (CARVALHO,
1997). A esse respeito, LYOTARD (1954, p. 9) comenta: “O
No meio acadêmico, sobretudo no universo composicional,
célebre “por entre parênteses” consiste em primeiro lugar,
a notação musical tem grande relevância e é preponderan-
em dispensar uma cultura, uma história, em refazer todo o
te na estruturação das unidades musicais. Por outro lado,
saber elevando-se a um não saber radical”.
ao se considerar a linguagem oral (ou sonora), podemos
estabelecer caminhos diferentes e complementares com Husserl propôs o entendimento dos fenômenos. Tal enten-
relação à memória musical na performance. Quando se dimento teria como meta o conhecimento da vivência de
fala em “aprender de ouvido”, está em questão a apreensão determinada realidade por meio da descrição dos fenôme-
de estímulos que muitas vezes ocorrem em bloco: estímulo nos, feita de forma mais completa e fiel possível, isenta
visual, corporal e sonoro. Parece ser uma linguagem que se do juízo dos fatos (RIBEIRO, 2003). Uma vez conseguida
caracteriza pelo global, pela unidade do conjunto enquan- a descrição do fenômeno, chega-se à sua essência. A es-
to que o discurso literário (inclusive o da notação musical) sência é o objeto da pesquisa fenomenológica. Segundo
traz consigo as vantagens complementares daquilo que se RIBEIRO (2003), a essência é o conceito universal ou forma
pode observar em partes, analisar em estruturas, células capaz de se verificar invariavelmente em diferentes indiví-
que compõem o todo. duos, aquilo que permanece idêntico através das variações
(LYOTARD, 1954).
Conforme se aguça a percepção musical, não só estí-
mulos concretos como a notação ou os próprios sons O método fenomenológico parte da intuição ou da consci-
vão formando a memória, mas, também, estímulos ência dos objetos. A redução é o recurso da fenomenologia
complexos e elaborados relacionados às emoções. Es- para se chegar ao fenômeno como tal, ou à essência. A
sas podem ser produzidas a partir da música, criando- redução fenomenológica consiste em retornar à experi-
se uma relação afetiva, ou podem ser evocadas para ência vivida e sobre ela fazer uma profunda reflexão que
contribuir para o melhor entendimento de uma deter- permita chegar à essência do conhecimento. Esse conhe-
minada peça; é o que é denominado de indução per- cimento tem como objetivo a apreensão do sentido ou do
ceptiva (SLOBODA, 1985). significado da vivência subjetiva (FORGUIERI, 1993). Sobre
a vivência subjetiva, LYOTARD (1954, p.21) aponta: “Todo
A memória é, portanto, parte de um complexo processo objeto é objeto para uma consciência (...) importa descre-
de apreensão do sentido musical. Tal processo é treiná- ver neste momento o modo como eu conheço o objeto e
vel e envolve estímulos que vão do concreto ao abstrato como o objeto é para mim”.
conforme o grau de elaboração e sofisticação da perfor-
mance musical. A fenomenologia foi, assim, sistematizada no início do
século XX (1901) com o primeiro trabalho sobre o as-
3- Fenomenologia sunto. A partir de então, outras áreas do conhecimento
O presente trabalho propõe um melhor entendimento passaram a se valer da fenomenologia. Na área da psi-
da vivência musical pertinente ao grupo Trombomi- quiatria, a investigação fenomenológica surgiu na Euro-
nas. Para tanto, é necessária uma abordagem que se pa, com Karl Jaspers (1913), que, com a publicação de
aproxime essencialmente da experiência musical, sem, sua obra Psicopatologia Geral, marcou o surgimento da
contudo, se distanciar do contexto mais amplo ao qual psiquiatria fenomenológica. Na área da psicologia, os pri-
estão inseridos os indivíduos em questão. Nesse sentido, meiros trabalhos surgiram nos Estados Unidos na década
a fenomenologia é o referencial apropriado. A fenome- de 1970 (FORGHIERI, 1993). Em outros domínios também
nologia é um campo da filosofia que busca descrever os houve a influência fenomenológica, notadamente nas
fenômenos a partir da consciência subjetiva dos objetos. áreas da vida afetiva e religião (SCHELER), artes (GEIGER
Da mesma forma, a fenomenologia da música trata de e INGARDEN), direito, sociologia, etc (DARTIGUES, 1993).
abordar essas questões de maneira mais particularizada.
Partindo desses referenciais, foi empregada uma entre- Em 1928, Roman Ingarden, após publicar A Obra de Arte
vista como forma metodológica para o registro das im- Literária, expandiu sua discussão também para a música.
pressões referentes ao processo da performance musical A fenomenologia, no contexto do presente trabalho, é
assim como questões relativas à memória e seu papel na algo que potencialmente nos permite aproximarmo-nos
preparação individual. da vivência dos sujeitos enquanto artistas, captando

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aquilo que essencialmente os conduz na performance 3.2 A Experiência Fenomenológica num


musical. A esse respeito, CLIFTON (1983) busca aplicar o Grupo de Trombones
método fenomenológico à vivência musical. Para tanto,
estabeleceu essências que constituem o fenômeno musi- 3.2.1 Breve Histórico do Grupo
cal: tempo, espaço, elemento lúdico e sentimento. O Grupo Trombominas surgiu em fev/2000, a partir da
disciplina Música de Câmara na Escola de Música da
A percepção temporal (o tempo) na música diz respeito à UFMG. Quatro colegas em vários períodos do curso, com
vivência subjetiva de um tempo que não é o cronológico, a mesma demanda – constituir um grupo para se preparar
e, sim, o das lembranças evocadas a partir de mecanis- ao longo do semestre letivo – se reuniram para organizar
mos de reconhecimento de estruturas musicais. Tal reco- tal atividade, muito incentivados pelo então Prof. Pau-
nhecimento pode ser imediato (retenção) ou uma expec- lo Lacerda, o qual já tinha tido experiência semelhante,
tativa daquilo que reconduz a algo conhecido há pouco participando do Quarteto Trombonias na década de 1990.
(protensão) ou mais remotamente (reprodução).
Felizmente, o grupo não se limitou às formalidades
O espaço, segundo CLIFTON(1983) emana da percepção curriculares e continuou sistematizando sua forma de
das texturas. Esse, portanto, não é geométrico ou palpá- preparação. Desde então, vem participando de varia-
vel. É o resultado da percepção simultânea da percepção dos eventos, entre os quais se destacam os Encontros
das alturas, timbre e textura, que registra profundidade. A Latino-Americanos de Trombonistas, que ocorrem anu-
estruturação composicional determina o espaço fenome- almente, e diversos Festivais de Inverno em Minas Ge-
nológico na música, descrito como relevos. rais (Ouro Preto, Diamantina, São João Del Rei, etc.). Em
2001, participando do I Concurso de Jovens Cameristas,
O elemento lúdico nos remete à idéia de jogo. É o jogo promovido pela Escola de Música da UFMG, o Grupo
que ocorre na construção composicional, no processo de Trombominas foi premiado com o segundo lugar ge-
reconhecimento de formas, na preparação na performan- ral. Nesse momento já havia uma “consciência” de que
ce e na apreciação musical. É como um quebra-cabeça, aquele grupo tinha certos aspectos especiais, particula-
que se revela conforme as peças vão se encaixando. Vi- ridades que refinavam a vivência musical.
venciar cada “encaixe” faz parte da experiência do ele-
mento lúdico na música. Nesse contexto, o grande diferencial, pelo menos dentro
desse universo em que o grupo atua, foi a preparação se
O sentimento é como uma decorrência das outras essên- valendo da memorização. Não há partitura na apresen-
cias, na medida em que se traduz no sentimento de pos- tação: a peça é apresentada em bloco, na tentativa de
se, a sensação recíproca e irreversível de fazer parte um uma comunicação integral. Por várias oportunidades já
do outro: Música e Sujeito. se falou sobre isso, fazendo uma analogia com o teatro:
os atores se valem de um texto para comunicarem algo,
O trabalho de captar essas essências na rotina de um gru- texto esse, que, no caso do teatro, é inexoravelmente
po e conectá-las ao cotidiano dos indivíduos requer um abandonado. O Grupo Trombominas, de forma análoga ao
instrumento que traduza não só aspectos específicos re- teatro, também abandona a partitura musical e se apro-
lativos à música, mas que, também, de forma igualmente pria da música, deixando-se, ao mesmo tempo, que essa,
importante, revele vivências que possam ser detectáveis por sua vez, se aposse do Trombominas.
em âmbitos progressivamente mais abrangentes.
Em 2002, por ocasião do Encontro Latino-Americano
Assim sendo, tem-se que a fenomenologia da música está de Trombonistas (Salvador/BA), houve a oportunidade
contida no universo da fenomenologia. A questão é que de construir uma performance meio “híbrida”, com ele-
os sujeitos aos quais será aplicada uma entrevista não mentos cênicos, de dança, e, essencialmente, musical.
têm uma experiência apenas musical. Na unidade de cada Na ocasião, houve uma preparação realizada por um
sujeito estabelecem-se seus vários laços com os mais di- diretor de teatro que abordou aspectos como a presen-
versos campos, inclusive com a música. Não bastaria, por- ça de palco, as questões gestuais, o figurino (vide Ex.3)
tanto, “pinçar” apenas aspectos relativos à música, ainda para transformar a Suíte para quatro trombones de
que esses, supostamente, sejam a ênfase de determina- Enerst Mahle num espetáculo musical com elementos
do discurso. A fenomenologia da música seria, então, no visuais. Foi, realmente, uma mostra consistente dessa
contexto das entrevistas, algo que possa auxiliar na inter- nova proposta de trabalho.
pretação de aspectos aplicados à música. Entretanto, ao
nos aproximarmos dos sujeitos em questão, o fazemos da Atualmente, o Grupo Trombominas é integrado pelos
forma mais integral e autêntica possível, buscando revelar seguintes músicos: Marcos Flávio de Aguiar Freitas, Pe-
aspectos não só musicais, mas também vivências outras dro Aristides de Castro, Sérgio de Figueiredo Rocha e
que se integram ao processo da performance musical. Renato Rodrigues Lisboa.

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Ex.3 – Figurino da performance do Trombominas em Salvador, Bahia em 2002 (da esquerda para direita: Ednilson Go-
mes, Sérgio Rocha, Marcos Flávio Aguiar e Renato Lisboa.

3.2.2-Entrevistas
Para que a vivência subjetiva dos componentes do Grupo Para preservar as informações pessoais, de forma a torná-
Trombominas pudesse ser registrada e manipulada como las anônimas, os entrevistados serão denominados de A, B,
dados, havia a necessidade de se empregar um instru- C e D. Obviamente, aquele que seria o quinto entrevista-
mento que preservasse as impressões de cada um. do não foi incluído por ser o próprio entrevistador. Serão
transcritas passagens de cada entrevista, as quais, pela
A técnica escolhida para a coleta de informações foi a sua relevância, podem traduzir as impressões e concep-
entrevista semi-estruturada. Tal técnica corrobora com ções subjetivas, constituindo-se num material que revela
a abordagem fenomenológica desse estudo, ao privile- as características gerais de cada entrevistado em cone-
giar o subjetivo, aquilo que parte da vivência do sujeito. xão com o grupo, ou seja, fornece “noções da totalidade”
Segundo LAVILLE e DIONNE (1999, p.188), a entrevista (Bogda e Biklen, citados por DEL BEN, 2001, p.82).
semi-estruturada se caracteriza por: “(...) uma série de
perguntas abertas, feitas verbalmente em uma ordem 4- Discussão
prevista, mas na qual o entrevistador pode acrescentar A idéia básica do trabalho foi correlacionar um aspecto
perguntas de esclarecimento”. relevante presente na rotina do Grupo TROMBOMINAS e
fazer uma reflexão fundamentada em questões relativas
Além disso, parece ter vantagens sobre o questionário, já à fenomenologia. Dessa forma, a memória foi eleita como
que permite uma flexibilidade, o que pode vir a esclare- um ponto de conexão com o fazer musical do grupo. Cer-
cer pontos importantes no transcorrer da entrevista. Por tamente poderia haver inúmeras outras possibilidades.
outro lado, tal flexibilidade pode tornar menos uniformes
tanto as perguntas quanto as respostas. Para evitar esse O fato de as entrevistas serem feitas pelo pesquisador que
problema, foram estabelecidas categorias de informações ao mesmo tempo fazia parte do grupo não trouxe uma
as quais se enquadram em eixos temáticos, denominados contaminação do estudo uma vez que o mesmo não foi
de enfoques (vide anexo, p.16). entrevistado. Além disso, as perguntas foram as mesmas,
As entrevistas foram gravadas em MD (num total de cerca colocadas de forma isenta para todos os componentes.
de duas horas) e transcritas literalmente. Em um segundo
momento da entrevista, foram acrescentadas perguntas A elaboração das sínteses permitiu que se observas-
complementares a fim de tornar mais claros alguns pon- sem objetivamente aspectos relevantes da vivência do
tos. A estrutura final da entrevista encontra-se no anexo. Grupo Trombominas. A valorização da formação artís-

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tica foi um aspecto muito comentado enquanto parte tação no palco é diferente (...) posso ver mais meus amigos e a
da contextualização pessoal na performance musical. interação é maior”.
“No Trombominas há muitas particularidades, uma delas é a faci-
Por outro lado, revelaram-se dicotomias presentes no lidade de tocar junto, a convivência (...) a facilidade é em função
cotidiano de cada um, mostrando conflitos profissio- da simpatia”.
nais: Ao mesmo tempo em que o aspecto econômico é “(...) quando junta é uma experiência complementada pelo conjun-
priorizado por questões de “sobrevivência”, o “prazer” to, naquilo que cada um tem de melhor”.
é apontado como fundamental na escolha das ativida-
4 Entre o grupo e o público: corolário de uma conjunção
des profissionais. Além disso, esse mesmo “prazer” foi
de fatores que se estabelece idealmente entre o pró-
reincidentemente colocado como algo que acompanha
prio grupo e o público.
a vivência musical do Grupo. Nesse contexto, o prazer
correlaciona-se com uma das essências fenomenológi- “Acho que o Trombominas é um grupo muito coeso... pra mim é
cas descritas por CLIFTON (1983): o sentimento, trazen- uma experiência fantástica, porque é o grupo mais performático
do na “posse”, enquanto uma “simbiose” entre a música entre todos que eu participei”.
e o sujeito, conhecimento que fornece a sensação recí- “O que mais se diferencia entre os grupos onde participo é o Trom-
bominas, pela forma como a gente lida com isso, a maneira de
proca de possuir e ser possuído. estar no palco (...)”.
“Performance é o tocar ao vivo, é necessário o público, alguém se
A “posse” parece viabilizar outro aspecto enfatizado nas apresenta para outrem”.
entrevistas com relação ao entendimento pessoal a res-
peito da performance musical: a comunicação. Ao longo O ambiente amistoso no grupo realmente tem trazido
das entrevistas, observam-se vários níveis de comunica- uma cumplicidade no aprendizado e tem contribuído para
ção, os quais se dão de forma gradativamente mais com- a otimização do rendimento dos ensaios. Nesse contexto,
plexa e ampla, como proponho a seguir: é possível coexistirem várias linguagens (escrita, oral, so-
nora, corporal, etc) na performance musical. A respeito do
Seguindo-se a cada nível, são transcritas passagens das corpo e sua vinculação à percepção, é adequada a noção
entrevistas. de Merleau-Ponty sobre a participação corporal enquanto
1 Entre o indivíduo e a música: Estabelecendo-se cone- constituinte mesmo das coisas, “algo que se dissolve no
xões entre informações contidas na música e o enten- mundo de modo que não se possa mais separá-los” (MA-
dimento do indivíduo sobre ela. CIEL, 1997, p. 132).

“Percebo a música caminhando e fazendo parte de mim,


sem muletas”. 5- Conclusão
“(...) estabelecidas as peças, tenho sempre em mente, principal- A memória, no contexto do Grupo Trombominas, tem atu-
mente nos últimos dois anos, a questão da memorização mesmo, ado como um determinante facilitador do sentido mu-
a preparação começa aí”.
“(...) o estudo da peça com e sem instrumento, o processo, enfim...
sical, e, enfim, da comunicação, nos seus vários níveis,
é a performance”. como dito. É a construção, permanente, diária e persis-
“Há momentos em que eu vejo a partitura na minha frente [men- tente de uma possibilidade. É necessária, realmente, uma
te], eu sei a contagem, vejo a partitura na minha cabeça”. conjunção de fatores, como se estivéssemos à espera de
“(...) o mais importante é trazer a música para dentro de mim, ficar
íntimo da música (...)”.
um fenômeno natural, na expectativa de que algo raro e
“(...) o mais importante é a vivência do artista com a músi- fascinante como o “arco-íris” pode, de fato, a qualquer
ca que vai ser tocada”. momento, acontecer: Há uma série de eventos que, coe-
xistindo no momento certo, permitem que a “música”, em
2 Consigo próprio: O indivíduo estabelece associações sua plenitude, aconteça.
cada vez mais complexas para o entendimento da mú-
sica, porém, tais informações já não partem apenas da A memória também permite e viabiliza a intimidade. So-
música, mas do seu próprio background. mos íntimos de muitas coisas que às vezes nem nos da-
mos conta. SACKS (2000, p.70) descreve um caso de um
“Na preparação da peça eu não pego só o tocar, eu pego a prepa-
ração corporal e mental... procuro tocar imaginando as pessoas”.
paciente chamado Greg, cuja lesão cerebral destruía toda
“Quando possível, me preparo no local onde vou me apresentar”. possibilidade de se tornar íntimo de alguém ou de algo:
“A preparação física eu acho muito importante na performance”.
“Cada dia que eu estou tocando, estou pensando na apresen- A memorização de ordem superior é um processo de múltiplos está-
tação (...) como se estivesse tocando na hora, e isso vai me gios, envolvendo a transferência de percepções, ou sínteses percepti-
deixando tranqüilo”. vas, da memória de curta duração para a de longa duração. É apenas
essa transferência que deixa de ocorrer em pessoas com lesões do
lobo temporal. Portanto, Greg pode repetir uma sentença complicada
3 Entre o indivíduo e o grupo: a conexão entre os compo- com total exatidão e entendimento no momento em que a ouve, mas
nentes permite que o “algo mais” aconteça e que haja em três minutos, ou antes de se distrair por um instante, não guardará
como que uma cumplicidade na performance. nenhum vestígio dela, ou qualquer idéia de seu sentido, ou qualquer
lembrança de que tenha alguma vez existido.
“Eu e o Trombominas somos a mesma coisa”.
“Tocando de cor consigo perceber com mais nitidez os instrumen-
tos que estão à minha volta”.
A comunicação entre o indivíduo e a música (partitura/
Comentando sobre o “tocar de cor”: “Isso faz com que eu esteja texto) e aquela envolvendo o indivíduo consigo mesmo
bem seguro (...) sinto mais prazer tocando assim (...) a movimen- é o que se estabelece na preparação individual frente ao

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coletivo. Nesse contexto, a “preparação corporal” aparece pessoas se relacionam, valorizando funções que, apesar de
para um indivíduo como importante fator adjuvante na fundamentais, passavam despercebidas e continuavam,
performance, já para outro indivíduo, foi a apreensão au- mesmo assim, influenciando o grupo de forma vital e “re-
ditiva o aspecto mais relevante, e assim por diante. DAR- criativa”. Desvendar aquilo que era “quase óbvio” tem sido
TIGUES (1973, p.143), ao se referir à fenomenologia como motivo de surpresa para muitos. Nesse processo, conhe-
acesso ao mundo das pessoas, aponta: ceu-se outra faceta de um mesmo grupo, redescobriram-
se pessoas e ficaram mais claros os “papéis” de cada um
(...) a relação da pessoa com o mundo será tão singular quanto o
é a pessoa, o que permite dizer que, se cada pessoa é uma voca-
como “atores” da performance musical. Nessa experiência
ção, haverá tantos mundos pessoais, ou “microcosmos”, quanto reveladora percebem-se sutilezas na construção do senti-
vocações. Mas esses mundos singulares não são fechados uns aos do musical em grupo. A esse respeito, é oportuna e apro-
outros a ponto de sua multiplicidade tornar impossível a unidade priada a citação de Merleau-Ponty (1908-1961, citado por
de um mundo comum. Este se enriquece, ao contrário, com a mul-
tiplicidade das perspectivas pessoais e cada uma dessas perspec-
CHAUÍ, 1980, p.XIII):
tivas se enriquece, por sua vez, no mundo comum, com todas as
outras perspectivas complementares (...). Como meu corpo, que, entretanto é apenas um pedaço de maté-
ria, se unifica em gestos que visam além dele, assim também as
palavras da linguagem, que, consideradas uma a uma, são apenas
Aspectos dessa intimidade, revelados nas entrevistas, re- signos inertes aos quais corresponde alguma idéia vaga ou ba-
fletem um outro conhecimento compartilhado entre os nal, inflam-se subitamente com o sentido que extravasa no outro
componentes do grupo. É como se dar conta de como as quando o ato de falar os ata em um único todo.

5. Anexo
Protocolo de Entrevista Semi-estruturada
Categoria de Informações Enfoque
Formação e atuação profissional
a- Fale sobre sua formação musical.
b- Descreva suas atividades profissionais. Contextualização pessoal na performance
c- Como é distribuído seu tempo para tais atividades? musical.
d- Existe alguma priorização entre as atividades?
e- Caso positivo, o que contribui para isso?

Concepções / Performance Musical


a- O que você entende por performance musical?
b- Na sua prática, para quem tem sido ofertada tal atividade? (o
público)
c- Você encontra conotações diferentes para a performance?
d- Em sua vivência musical, há diferenças na forma de apresen-
Caracterização pessoal sobre o universo da
tação (performance/atuação) em função do tipo de grupo em
performance musical.
que atua? Dê exemplos.
e- Como tem sido a vivência musical no Grupo Trombominas?
f- Como você percebe e descreve a performance do Grupo Trom-
bominas?
g- Como você se sente numa performance em que toca “de cor”?

Concepções sobre a preparação


a- De um modo geral, como você se prepara para uma apresen-
Descrição de elementos constitutivos da prepa-
tação (o processo)?
ração performática individual em conexão com
b- Na sua prática, há diferenças em função do tipo de grupo em
o coletivo.
que atua (particularidades)?
c- Descreva sua rotina relacionada ao Grupo Trombominas.

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ROCHA, S. F. Memória: uma chave afetiva para o sentido na performance musical... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.97-108.

Notas
1 Grupo de Trombones criado em 2000. Para detalhes, vide Tópico 3.2: A experiência fenomenológica num grupo de trombones.
2 Entendida como função cognitiva.
3 Na verdade, Roman Ingarden já havia feito isso 55 anos antes, porém, Clifton empreendeu essa tarefa de forma mais específica
e sistemática. Para mais detalhes vide Tópico 3.1 – Fenomenologia e Fenomenologia da Música.
4 Sinapse é o ponto de ligação entre neurônios.
5 Córtex é a substância cinzenta que se dispõe em uma camada fina na superfície do cérebro e do cerebelo.
6 Essa característica da memória será abordada mais à frente.
7 Importante pianista do cenário acadêmico, atuando como professora em várias instituições de ensino superior nos E.U.A.
8 Para detalhes ver fonte: HUSSERL, E. Investigações lógicas. Tradução de Zeljko Loparic e Andréia Maria Altino de Campos
Loparic. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 224 p. Título original: Logishe untersuchungen.
9 Filósofo polonês (1893-1970), aluno de Husserl.
10 Paulo Roberto Lacerda (Paulão) (1958-2003), atuou como professor na Escola de Música/UFMG no período de 1990-2003.
11 O Quarteto Trombonias era formado por músicos integrantes da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais (OSMG).
12 Espetáculo “Suíte Brasileira”, baseado na Suíte para Quatro Trombones do compositor Ernst Mahle, dirigido por Anderson Aníbal.

Sérgio de Figueiredo Rocha é Graduado em Educação Física (1988), Medicina (1995) e Música (2002), todas pela UFMG;
Residência Médica em Psiquiatria pelo Hospital das Clínicas da UFMG (1999), Especialização em Música Brasileira pela
UEMG (2001) e Mestrado em Música pela UFMG (2005). Atualmente cursa o Doutorado em Psiquiatria na USP. Desde
1990, tem atuado em variadas formações musicais, entre as quais se destacam a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, o
Coral de Trombones da UFMG e o Grupo Trombominas. Foi professor na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG),
onde implantou os cursos de Bacharelado e Licenciatura em Trombone em 2006. Na UFSJ é docente nos cursos de Música
e Educação Física. Implantou a disciplina Corporeidade e Música, a qual é oferecida em ambos os cursos. Atrua em pro-
jetos de extensão, como o “Coral de Trombones”, e na organização de eventos cuja principal proposta é pensar a prática
musical a partir de vários olhares do saber. Em fevereiro de 2008 coordenou o XIV Festival Brasileiro de Trombonistas na
cidade de São João del Rei.

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MACHADO, M. I. L. Um roteiro atemporal: reflexões sobre a música... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.109-120.

Um roteiro atemporal: reflexões sobre a


música, os músicos e o ensino musical

Maria Inêz Lucas Machado (UFMG, Belo Horizonte, MG)


marinez@musica.ufmg.br

Resumo: Trata-se de um estudo reflexivo e comparativo a partir de textos de três principais referências, o poeta por-
tuguês Fernando Pessoa (1888 – 1935), o maestro italiano Sérgio Magnani (1914 – 2001), radicado em Belo Horizonte
em 1950, e o educador inglês Keith Swanwick (1931). Algumas concepções destes autores - e de outros autores e
músicos - foram analisadas e diretamente correlacionadas com a prática e a reflexão sobre a música e o ensino musi-
cal. O processo comparativo entre as diversas ideias e manifestações possibilitou o estabelecimento de parâmetros,
apontando fundamentos para as considerações apresentadas sobre a música e também sobre temas como o ensino e o
desenvolvimento musical, a performance, a criação e a apreciação.
Palavras-chave: autores e idéias, estudo comparativo, música e práticas interpretativas, ensino musical.

A timeless script: thoughts on music, musicians and music teaching

Abstract: This is a reflective and comparative study of texts from the three main references, the portuguese poet Fern-
ando Pessoa (1888 - 1935), the italian conductor Sérgio Magnani (1914 - 2001), based in Belo Horizonte, Brazil, in
1950, and the English music educator Keith Swanwick (1931). Some ideas of these authors – as well as of other writers
and musicians – were analyzed and correlated directly with the practice and thinking about music and music teaching.
The comparison process between the various ideas and events enabled the establishment of parameters, indicating rea-
sons for the considerations made about the music and also on issues such as music teaching, development, perform-
ance, composition and appreciation.
Keywords: authors and ideas, comparative study, music and performances practices, music teaching.

1 - Introdução Escola de Música da UFMG. O terceiro autor é o educador


Estou sempre me despedindo inglês Keith Swanwick, (1931), professor emérito do Insti-
do ponto de partida que me lança de si, tuto de Educação da Universidade de Londres, que acumula
do ponto de chegada que nunca é aqui. (LUFT, 2005, p.15) ainda as experiências como regente, músico de orquestra e
organista em igrejas.
A busca de afinidades e similaridades entre conceitos sobre
a atividade artística, constantes no legado de alguns pen- Outras referências de pensadores e músicos, independente-
sadores, estimulou-nos a delinear um roteiro, com o qual mente da contemporaneidade destes com o trio principal,
fosse possível transitar em vários sentidos, através de inter- foram acrescidas e entrelaçadas através de aproximações
penetrações. Na visão do todo ou no exame dos pequenos entre os seus discursos, como num contraponto de vozes.
detalhes, procuramos um percurso circular que realimen- Algumas manifestações verbais às quais tivemos acesso, em
tasse novas possibilidades, para uma reflexão abrangente. situações diversas como palestras ou entrevistas, também
Com o foco introdutório detalhado em alguns de seus tex- foram analisadas como elementos constitutivos deste con-
tos, escolhemos três autores como principais referenciais junto multifacetado de pensamentos.
neste estudo. O primeiro, por ordem cronológica de suas
vidas, é o poeta português Fernando Pessoa, nascido no sé- Partindo dos três autores mencionados, selecionamos
culo XIX e falecido no século XX, em Lisboa (1888 - 1935). O textos de caráter diferente, que contêm reflexões sobre
segundo é o maestro Sérgio Magnani (1914 - 2001), músi- o ser humano diante do objeto artístico, a interpretação
co italiano graduado também em Letras e Direito. Magnani e a formação artísticas. Os discursos detiveram a nossa
veio para o Brasil em 1950 e radicou-se em Belo Horizonte, atenção por aspectos tais como o conteúdo expresso, o
cidade em que se destacou como músico influente e profes- tratamento poético das idéias e a organização conceitu-
sor de várias gerações, inclusive na Faculdade de Letras e na al. Nosso intuito foi o de evidenciar ressonâncias, con-

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.21, 120 p., jan. - jul., 2010 Recebido em: 20/06/2009 - Aprovado em: 15/10/2009
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MACHADO, M. I. L. Um roteiro atemporal: reflexões sobre a música... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.109-120.

vergências e complementaridades entre as convicções los, é o de relacionar no alto o que está de acôrdo com
apresentadas, cujos fundamentos nasceram de vivências a relação que está embaixo. Não poderá fazer isto se a
e escopos específicos, com os quais os autores discorre- simpatia não tiver lembrado esta relação, se a intuição
ram sobre alguns temas e suas interseções. Este caminho não a tiver estabelecido. Então a inteligência, de dis-
apontou-nos interconexões entre formas aparentemente cursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o
distintas de descrever aspectos inerentes à atividade ar- símbolo poderá ser interpretado.
tística, contidas nos textos produzidos em diferentes cul-
turas e períodos do século XX. A aproximação entre elas A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra
significou o encontro de novos paralelos para a compre- o conhecimento de outras matérias, que permitam que o
ensão de aspectos que, isoladamente, já carregam uma símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com
densidade própria, quando justapostos ou sobrepostos, vários outros símbolos, pois que no fundo, é tudo o mesmo.
denotam maior complexidade em interligações e seus Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição
desdobramentos. Neste tipo de triangulação, no qual in- é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma sín-
cluímos outros coadjuvantes, há sempre um trânsito livre tese; e a compreensão é uma vida. Assim certos símbolos
e contínuo, como se um pensamento elucidasse o outro e não podem ser bem entendidos se não houver antes, ou
nele estivesse imanente. no mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes.

2 - Ideias e reflexões: a interpretação, a cria- A quinta é menos definível. Direi talvez, falando a uns
que é a graça, falando a outros que é a mão do Superior
ção, a apreciação e o ensino musical
Incógnito, falando a terceiros que é o Conhecimento e
Começamos com um apontamento de Fernando Pessoa,
Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada
publicado no livro Fernando Pessoa obra poética: organi-
uma destas coisas, que são a mesma da maneira como as
zação, introdução e notas (GALHOZ, 1960). O apontamen-
entendem aquêles que delas usam, falando ou escrevendo.
to escolhido é uma das Notas Preliminares catalogadas
(grifos nossos)
pela organizadora do livro, em trabalho de pesquisa do-
cumental e de entrevistas com familiares do poeta, que
lhe cederam material inédito, anexado ao corpo da Obra Para usufruir mais intensamente das considerações do au-
Poética. Dada a universalidade do conteúdo deste apon- tor, com as quais tivemos uma empatia imediata, fizemos
tamento e o alcance que a ele aferimos, tanto nos aspec- várias releituras que nos reportaram às concepções de ou-
tos conceituais da arte como também na aplicabilidade tras pessoas. Durante este trajeto, buscamos2 a origem eti-
destes em alguns fundamentos da educação musical, mológica de algumas palavras, seus diversos significados.
Pessoa será o elo mais evidente e uma constante referên- Procuramos sentir as aproximações e equivalências entre
cia, projetada direta ou indiretamente. Apresentamos, a as conjecturas do poeta e as nossas próprias, com relação
seguir, a transcrição integral da Nota Preliminar, que será à diversidade nas possibilidades de experiência com a lin-
um ponto de partida no processo comparativo ao qual guagem da música e com o ensino. Este processo trouxe
nos propusemos (GALHOZ, 1960, p.5): à tona várias influências do que já ouvimos, aprendemos,
lemos e compartilhamos, na contínua transformação dese-
nhada pela música em nossa trajetória pessoal.
NOTA PRELIMINAR 1
“O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) Símbolo, do grego symbolon, pelo latim symbolu, é o que,
exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condi- ‘pela sua forma ou natureza, evoca, representa ou substitui,
ções, sem as quais os símbolos serão para ele mortos e êle em determinado contexto, algo abstrato ou ausente’; ‘obje-
um morto para êles. to material usado para representar coisas imateriais’; ‘tem
valor mágico e místico’. Em Wisnik encontramos um outro
A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, esclarecimento: o símbolo é “o que joga unindo”, e se opõe
mas a primeira conforme vou citando, e cito por graus de etimologicamente, na sua raiz grega, ao diabulus, ou “o que
simplicidade. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo joga cortando, o que joga para dividir” (WISNIK, 2001, p.82-
símbolo que se propõe interpretar. A atitude cauta, a irô- 83). Julgamos que uma das formas de jogar unindo, ou apro-
nica, a deslocada - tôdas elas privam o intérprete da pri- ximando, é o ato de tecer, com os fios disponíveis no exame
meira condição para poder interpretar. dos símbolos, as texturas impregnadas de significados espe-
ciais. Para entender os símbolos e os rituais simbólicos - que
A segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela poderíamos considerar no caso da música como requisito
já existe, porém não criá-la. Por intuição se entende aque- primordial para a performance, a apreciação e criação -,
la espécie de entendimento com que se sente o que está Pessoa cita cinco condições indispensáveis a um intérprete,
além do símbolo, sem que se veja. apontando-as, segundo sua própria explicação, por ‘graus de
simplicidade’ e não por uma organização temporal. De fato,
A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, de- ele discorre sobre as suas premissas, partindo da simpatia
compõe, reconstrói noutro nível o símbolo; tem, porém, pelo objeto - condição prévia de quem gosta da atividade
que fazê-lo depois que se usou da simpatia e da intui- que visa realizar - e segue, gradativa e poeticamente, até
ção. Um dos fins da inteligência, no exame dos símbo- pousar no campo sensível e elevado da ‘conversação com

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o anjo da guarda’, ou da ‘graça’. Diante da sua organização interpretado e reinterpretado. Na sua origem latina, in-
expositiva, imaginamos que Pessoa tenha evitado o risco teligência significa “intus legere”, ou seja, ler do lado de
de seu texto ser tomado como uma receita que estabelece dentro. Com este tipo de leitura, a inteligência musical
uma forma padronizada para aquisição dos ingredientes, ou constrói relações do ‘lado de dentro’ e em outros patama-
uma seqüência pré-determinada para a sua utilização, com res. Aproximar o que aparentemente não está relacionado,
momentos estanques. Após essas considerações iniciais, ele ou explícito na partitura, é uma abordagem da obra musi-
enfatiza que, se o intérprete for desprovido das tais cinco cal que a simpatia suscita e a intuição celebra.
qualidades ou condições, qualquer tentativa de aproximação
se mostrará inútil, pois ele será ‘um morto’ para os símbolos, A compreensão é o conceito apresentado por Pessoa para
que igualmente permanecerão na condição de ‘mortos’. Es- se referir ao conhecimento de outras matérias que ilumi-
taria assim configurada a impossibilidade de uma verdadeira nam o símbolo e o relacionam com outros. Apreendemos
relação vital nos rituais, justamente pela existência de uma disto que essas luzes provêm de outros tipos de objetos
barreira real entre o intérprete e a obra diante dele: nada do conhecimento, de outras conversações, correlações e
poderia ser revelado ou vivificado. temáticas. Para se compreender certos símbolos, ele julga
ser preciso, antes ou ao mesmo tempo, o entendimento,
A Simpatia, do grego Sympátheia e pelo latim sympa- a vivência de símbolos diferentes. Compreender, do latim
thia, tem significados tais como ‘afinidade de espírito’; comprehendere, significa ‘assimilar mentalmente, ter do-
‘participação em’; ‘sensibilidade ao sofrimento do outro’; mínio intelectual de um assunto’; ’ter percepção e enten-
‘conformidade de gênios’; ‘compaixão’; ‘atração que uma dimento’; ‘conter em si, incorporar’, ‘perceber as inten-
coisa ou uma ideia exerce sobre alguém’. De fato, o intér- ções ou o sentido’, ‘dar-se conta de alguma coisa’. Nessa
prete tem que ter simpatia pelo que vai interpretar e estar perspectiva de incorporação podemos incluir o interesse
livre de atitudes impeditivas como a ‘ironia, a cautela ou por símbolos transportados num diálogo entre formas de
o deslocamento’, pois estas o privam da simpatia. O pro- arte distintas, que, ao se integrarem podem arquitetar
cesso de escolha de repertório para um músico é crucial novas associações, outros significados, reflexões e desco-
e exemplifica, de forma clara, esta questão. Ele tem re- bertas subjetivas. Cremos que, por isto, a compreensão foi
lação direta com o comprometimento pessoal no estudo o termo escolhido, como justifica Pessoa, e não a erudição
da obra, com o resultado expressivo e o valor aferido à significando ‘soma’, nem a cultura, significando ‘síntese’.
interpretação. Da mesma forma, o interesse e a afinida- A compreensão dá autenticidade às realizações expressi-
de movem quem está envolvido com a criação ou com a vas, na performance e na criação, e permite uma escuta
apreciação da música. Trata-se, como preconiza Pessoa, musical sensível e ativa. É um resultado de vida interior
de preservar pela simpatia uma condição de entrega, ine- intensa, da experiência profunda e da incorporação.
rente à relação afetiva que nasce quando o intérprete, o
compositor e o ouvinte se sentem atraídos, ou arrebata- A Graça, ou a mão do Superior Incógnito, ou Conheci-
dos pelo símbolo (ou pelos rituais simbólicos). mento e Conversação do Santo Anjo da Guarda: para Pes-
soa, estas são algumas das denominações possíveis para
A Intuição, do latim intuitione, ‘percepção que se adianta a menos definível das cinco condições. Elas designam a
ao raciocínio’; é o ato de ver, pressentir, ‘ter percepção mesma coisa - ou recurso, captado em outra dimensão
ou conhecimento, claros e imediatos, de um objeto na de valor - e são acolhidas da maneira como esta condição
plenitude da sua realidade, seja este de ordem material, pessoal é entendida por quem, mesmo na impossibilidade
ou espiritual’. É quando da contemplação emana uma ver- de descrevê-la ou compartilhá-la, dela se vale para lidar
dade plena, de natureza diversa daquela obtida através com a linguagem simbólica.
da razão ou do conhecimento analítico. Segundo o poeta,
a simpatia não cria a intuição, ela vem auxiliá-la, se esta Observamos que as cinco condições necessárias ao in-
é uma qualidade que o intérprete já possui. Acreditamos térprete contemplam as dimensões afetiva, intelectual e
que a intuição permite ao intérprete pressentir algo que espiritual do fazer artístico. Na filosofia e na psicologia
está além do símbolo, por conseguinte, se apossar daquilo da educação musical, os pensadores, de uma forma ou
que não é igualmente perceptível por cada um que venha de outra, mesmo com desdobramentos teóricos especí-
a se aproximar do objeto. Muitas decisões interpretati- ficos e terminologias diferentes, afins às distintas áreas
vas musicais acontecem em domínios onde não existem do conhecimento, tratam sempre estas dimensões como
confortáveis evidências, pois, tais revelações não podem essenciais nos fundamentos filosóficos, sociológicos e
se dar e nem prevalecer, senão em níveis mais profundos. psicológicos da música e da educação musical.3
A Inteligência, do latim Intelligentia, é a ‘faculdade de
aprender, perceber, apreender’; ‘astúcia’; ‘capacidade de Em outras notas soltas, constantes da Obra Poética Fer-
penetração, agudeza e perspicácia’. Como afirma Pessoa, nando Pessoa escreve sobre necessidades humanas e so-
a inteligência analisa, decompõe e reconstrói o material bre paisagens interiores e exteriores. Ao comentar sobre
no processo da interpretação, depois que o artista já se uma frase gloriosa dos antigos navegadores portugueses
valeu da simpatia e da intuição. De discursiva e descritiva, - ‘Navegar é preciso: viver não é preciso’ - ele faz a sua
a inteligência passa a ser analógica; engendra recursos e adaptação: “Quero para mim o espírito desta frase, trans-
estabelece novas conexões para que o símbolo possa ser formada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não

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é necessário; o que é necessário é criar” (GALHOZ, 1960, olhos”. O único elemento misterioso, para ele, é a fonte
p.XIII). Tendo em conta que a música não pode ser usada de uma ideia inicial, os temas parecem dons vindos do
para comunicar significados explicitamente, atribuímos o céu, como na escrita automática. Saint-Saëns compara o
seu poder à necessidade humana de criar e se comunicar processo da criação ao de uma macieira que produz ma-
através de sistemas simbólicos. Em sintonia com a convic- çãs e Arnold Shoenberg acredita que qualquer ocorrência
ção do poeta, podemos confirmar essa necessidade pelo de uma peça musical “nada é além do que um infindá-
registro permanente da música no fio condutor da história vel remodelar de uma forma básica”, ou nada além “do
da humanidade. Ela está presente, com grandiosa varie- que vem do tema, brota dele e pode ser traçado de volta a
dade, em todos os períodos já rastreados pelo homem em ele” (GARDNER, 1994, p.80). Gardner acrescenta ainda ao
seus estudos e - resguardadas as distintas atribuições de seu texto o pensamento de Schopenhauer: “O compositor
valor e função -, em todas as culturas, de ontem e de hoje. revela a essência mais íntima do mundo e profere a mais
profunda visão em uma linguagem que seu raciocínio
Ao analisar certas necessidades humanas, instaladas em não entende, assim como um hipnotizado revela coisas
seu universo interior e expostas no mundo exterior, F. Pes- das quais não tem nenhuma idéia quando está desperto”
soa faz uma descrição sobre toda atividade mental, espe- (GARDNER, 1994, p.81).
cialmente a da criação, e aponta para o que ele chama de:
Parece haver alguma semelhança entre os pontos de vista
(...) duplo fenômeno de percepção: ao mesmo tempo acima mencionados e o pensamento do compositor bra-
que temos consciência dum estado de alma, temos, sileiro, Camargo Guarnieri, que equipara os mistérios da
diante de nós, impressionado-nos os sentidos que estão gênese e os processos criativos da composição musical e
virados para o exterior, uma paisagem qualquer, en- da literatura, conforme informações que obtivemos re-
tendendo por paisagem, para conveniências de frases, centemente, em depoimento4 de Vera Guarnieri. Pessoa
tudo o que forma o mundo exterior num determinado e Gardner apontam para a necessidade interna e a busca
momento da nossa percepção. Todo estado de alma é de satisfação pessoal no ato de lidar com as estruturas
uma paisagem. Isto é, todo estado de alma é não só re- composicionais, seja na música, pelos sons, ou na litera-
presentável por uma paisagem, mas verdadeiramente tura, pelas palavras. A ‘apreensão de ideias germinais’, no
uma paisagem (GALHOZ, 1960, p.31). nosso entendimento, é uma outra forma de se referir ao
que acontece pela conjunção da simpatia com a intuição.
Na sua conceituação, Pessoa declara que a arte é a repre- Na exploração deliberada e consciente do material, o ar-
sentação simultânea dessas duas paisagens, a interior e tista se vale de ambas as qualidades e da sua inteligência.
a exterior. Ele discute que, mesmo não se aceitando que A realização ou a percepção da ‘combinação de aspectos
um estado de alma seja considerado uma paisagem, a emocionais e conceituais’ depende da compreensão dos
arte pode ser admitida como a interseção de “um esta- significados, alcançada nos patamares superiores da sen-
do de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem sibilidade e da inteligência. A nosso ver, assim também
exterior”(GALHOZ, 1960, p.31). acontece a experiência musical profunda dos composito-
res, dos intérpretes ou dos ouvintes ativos. Segundo Gard-
Esta consideração nos leva a Howard Gardner, que em ner, as questões das diferenças das personalidades são
sua teoria das inteligências múltiplas trata da inteligên- determinantes para a busca das fontes pessoais de prazer.
cia musical e faz uma interessante comparação entre a Ao comparar as capacidades musicais com outras compe-
gênese da composição musical e a da poesia (GARDNER, tências intelectuais, ele sugere haver evidências de que
1994). O seu pensamento nos permite uma associação “assim como a linguagem, a música é uma competência
com as paisagens apresentadas por Pessoa, as quais o intelectual separada, que também não depende de objetos
processo artístico permite conjugar. Na análise da inteli- físicos no mundo” (GARDNER,1994, p.95). Ele explica que
gência musical Gardner sugere que compositores e poe- na música e na linguagem a destreza pode ser elaborada
tas se parecem “na súbita apreensão das idéias germinais até um grau significativo, apenas através da exploração e
iniciais, na necessidade de explorá-las, realizá-las e no aproveitamento do canal oral-auditivo. Não acredita ser
entrelaçamento de aspectos emocionais e conceituais” mero acidente o fato de que as duas competências, desde
(GARDNER, 1994, p.90). Entendemos que essas ideias sú- o início do desenvolvimento, procedam sem relação com
bitas tendem a encontrar uma forma de representação no objetos físicos e baseiem-se ambas, de maneiras neuroló-
mundo exterior, que é apreendido por meio dos sentidos. gicas distintas, no sistema oral-auditivo.
Através da manifestação artística, os sentidos direciona-
dos ao meio exterior utilizam e também criam recursos Parece-nos que as competências artísticas correspondem
necessários para nele interferir. à vitalidade de um mundo interior independente, com
suas próprias paisagens, apesar de conectado com o meio
Gardner inclui em seu texto as seguintes descrições de exterior, no qual encontra múltiplas formas de se expres-
outros compositores sobre os processos nos quais se en- sar. Cecília Meireles, no prefácio do livro Cartas a um Jo-
gajam. Para Aaron Copland compor é tão natural quanto vem Poeta (RILKE, 1999), depura alguns aspectos tratados
comer ou dormir: “É algo que o compositor nasceu para pelo autor, que nos parecem condizentes com a conquista
fazer, por isto perde o caráter de virtude especial aos seus de um espaço criativo internalizado. Ao comentar sobre a

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essência dos conselhos dados por Rilke ao jovem escritor, Para Magnani, o bom ouvinte deve esperar do intérprete
ressalta algumas atitudes que ela considera como pre- que este não invada indevidamente a obra com a sua
valentes, e, por isto, devem ser cultivadas e valorizadas personalidade. O equilíbrio está em se respeitar os mes-
pelos artistas: “um gosto pela solidão constante e inte- tres, a tradição, as escolas e o meio cultural, visto que
ligente” e “uma disciplina poética humilde e vagarosa” estes não podem ser ignorados, mas, tão pouco, devem
(RILKE, 1999, p.12). ser aceitos sem reservas, ou questionamentos. Se a
obra musical tem vida própria, a relação é de fato de-
Em seu livro Expressão e Comunicação na Linguagem licada:
da Música, (MAGNANI, 1996, p.61-67), o maestro Sér-
Parece, às vezes, que o intérprete revela a obra, acrescentando algo
gio Magnani explica: interpretar (do latim inter petras, que é só dele. Isso, porém, é ilusão: ele apenas descobriu uma po-
ou entre as pedrinhas) é “o ato de descobrir e comunicar tencialidade da obra que aos outros havia escapado. Um grande
significados que podem estar ocultos por detrás de uma mérito, sem dúvida, mas sempre subsidiário ao conteúdo implícito
série de significantes fundamentais” (p.61). Ler nas en- no texto (MAGNANI,1996, p.66).
trelinhas, ou ‘ler do lado de dentro’, é perceber o que não
está explícito. Ele compara esta leitura com a dos adivi- Quanto a esta consideração, acrescentaríamos que é
nhos, que nas configurações de pedrinhas, borras de café muito tênue, ou impreciso, o limite entre a invasão in-
ou cartas do baralho percebem sinais do destino e fa- devida e as descobertas individuais. É difícil se estabe-
zem previsões do futuro. A interpretação para o maestro lecer o ponto onde uma começa e a outra termina, com
pode ser descrita como: “Atividade, portanto, de intuição objetividade e argumentação irrefutável. Na verdade,
e técnica, baseada no reconhecimento dos símbolos e dos com alguma frequência é possível observar avaliações
caminhos misteriosos da sua gênese, a fim de se chegar à tão apaixonadas quanto contrastantes a respeito de
tradução dos símbolos em eventos ou fenômenos, em nos- performances que se destacam pela ousadia e inovação.
so caso, sonoros” (MAGNANI, 1996, p.61). Músicos experientes realizam diferentes apreciações e
julgamentos de valor e, felizmente, a não ser no caso
Segundo o autor, são apoios para o intérprete a cultura, de deturpações evidentes, essa variedade corresponde a
a sensibilidade e a tradição. A cultura, que em Pessoa uma riqueza de possibilidades que boa obra encerra e o
também é ‘síntese’, é conceituada por Magnani como bom intérprete ressalta.
preparo filológico e conhecimento estilístico. Mas, com
a ressalva de que este último requer uma penetração Na visão do maestro Magnani, o papel do intérprete exi-
com o espírito, livre de preconceitos arraigados, das ge constante “auto-educação, renovação da juventude
“falsas e pomposas regras” e da rigidez preconizada por de espírito, (...) consciente superação do epidérmico para
determinados historiadores. Desta forma, o intérpre- a conquista de zonas mais profundas da sensibilidade”
te deve alcançar o equilíbrio entre cada estilo e a sua (p.67). Tais zonas talvez sejam aquelas acessadas através
própria sensibilidade, além de ser capaz de integrá-la à da graça, da conversação com o Santo Anjo da Guarda,
sensibilidade do autor e da obra. Semelhante ao expres- na visão poética de Pessoa. 5
so no pensamento de Pessoa, esse processo apontado
pelo maestro nos confirma a inteligência musical analó- Ao abordar filosoficamente a questão, Sandra Abdo co-
gica, a simpatia pelo símbolo e pelos rituais simbólicos loca-nos diante de uma síntese muito feliz sobre o fenô-
e a intuição como agentes motivadores e propulsores meno da interação entre o intérprete e a obra, que ajuda
para uma boa realização musical. a referendar nossas explanações anteriores:
Tratando-se de uma relação dialética, na base da qual estão polos
Também em Magnani reencontramos a avaliação de que orgânicos, constitutivamente multifacetados, plurissêmicos e ine-
a compreensão é a condição para a autonomia e a per- xauríveis, o que, em suma, se pode esperar desse tipo de atividade
sonalidade do intérprete. Referindo-se à tradição, ele é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, a revelação da obra em
uma das suas possibilidades e a expressão da pessoa que in-
também alerta para o fato de que “ela pode alimentar o terpreta, condensada em um dos seus múltiplos pontos de vista
espírito da obra, assim como pode, também, coagulá-lo (ABDO, 2000, p.23). (grifos da autora)
em esquemas sem vida” (p.66). Por isto, esclarece em seu
texto que é preciso integrá-la com lucidez a uma ava- Sonia A. LIMA (2006), entende a música como uma arte
liação crítica e também aos questionamentos culturais. com essência interior temporal, à espera de realização
Neste sentido, na relação entre o intérprete e a compo- (p.60-61) e vê o intérprete como aquele que, de certa
sição musical há aspectos abordados pelo maestro, que forma, a recria: “Ele é o elemento intermediário que dá
merecem a nossa atenção. Quando se refere à produção vida à música, dá-lhe uma temporalidade concreta e dá
do compositor ele ressalta: vida aos símbolos expressos na partitura” (2006, p.60). A
autora menciona a perspectiva de G. Brelet sobre a pro-
(...) a obra acabada se destaca do autor, adquirindo vida própria; blemática existente entre a obra musical, com necessi-
em certo sentido, não mais pertence ao autor. É um campo aber-
to de possibilidades às suas próprias concepções de intérprete. A dade congênita de intérprete, e a diversidade possível de
obra é um novo astro – ou apenas um asteróide – que se acres- interpretações. Segundo BRELET:
centa a uma outra constelação no puro céu da arte: o artista só
começa a viver na obra de amanhã, que está a fecundar a sua O que separa a concepção da realização é, nem mais nem menos, seu
fantasia (MAGNANI,1996, p.65). caráter indeterminado e rico de possibilidades. A concepção é um es-

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quema fecundo, um tema gerador. (...) A obra musical não extingue o visão. Na ocasião, ele fez uma descrição instigante sobre
estado de pensamento puro. A multiplicidade de execuções possíveis,
por meio das quais a obra se realiza, atesta em grande parte, seu cará-
a situação de um pianista que sobe ao palco para uma
ter inacabado e todas as possibilidades que se encontram intactas na apresentação pública. Para o pianista, o momento é único
obra (apud Fubini, 1994, p.119; in LIMA, 2006, p.61). e de tal delicadeza e profundidade que, nessas oportuni-
dades ele próprio se sentia como que ‘despido diante da
Continuando a explanação acerca da plenitude da obra a platéia’. Cohen concluiu a sua análise comparando a vul-
ser vivida pela consciência do intérprete, Lima se apóia na nerabilidade do artista, naquela fração de tempo em que
visão de Brelet a respeito da partitura: uma virtualidade, acontece a performance, com uma espécie de ‘strip-tease
ou campo de possibilidades. A música tem uma tempo- emocional’ feito pelo pianista, que se mostra sem véus
ralidade que é vivente, não esquemática ou abstrata e a diante das pessoas, através da música. Nelson Freire, em
obra se realiza numa subjetividade essencial e constitu- entrevista a uma emissora de rádio, explicou o incômodo
tiva. Para BRELET: que sempre sentia ao ouvir suas próprias gravações. Em
A Música tem a mesma dimensão temporal que nós temos (...) a
sua opinião, a gravação era apenas uma forma de con-
música vive na duração, duração esta que é essencialmente dra- gelar no tempo uma versão que ele havia realizado de
mática, posto que ela resume, acima de todos os dramas particu- alguma música, em dado momento. Pela sua experiência,
lares, o drama puro da existência (...) os grandes esquemas da vida quando ouvia alguma peça que havia gravado, sentia-se
interior (apud Fubini, 1994, p.126; in LIMA, 2006, p.62).
incomodado com a constante autocrítica e a constatação
Keith SWANWICK discorre sobre os parâmetros da edu- de que não tocaria uma ou outra passagem da mesma
cação musical, em seu livro A Basis for Music Education forma, em outra performance. Na ocasião da entrevis-
(1979), e faz um alerta aos professores para que fiquem ta, ele havia lançado um CD recentemente e disse, para
atentos à efemeridade da música. Devido a esta condição, exemplificar a sua particularidade, que não havia tomado
a música deve ser tratada e compreendida enquanto se a iniciativa de ouvi-lo, por falta de interesse. Entretanto,
afasta no tempo, como se fosse guiada em um tipo de vôo. explicou que, alguns dias antes daquela conversa, havia
Esta abordagem - na qual a revelação de uma obra pela se confrontado (não intencionalmente) com o trabalho,
expressão do intérprete é como se fosse a condensação, ao ouvir pelo rádio uma programação musical enquanto
no tempo, de uma das inúmeras possibilidades desse vôo - dirigia o seu carro. Foi quando, de repente, reconheceu
parece se adaptar às concepções de ABDO (2000) e LIMA uma faixa da sua gravação e disse para si mesmo: “Ih!!
(2006), acima mencionadas. De fato, perante a uma mes- Sou eu...” Com bom humor, relatou ao entrevistador que
ma obra, o músico experiente sabe que, em cada ocasião ele “até ficou ouvindo assim, meio de lado”...
diferente, ele vai expressar apenas um dos resultados pos-
síveis do seu ‘exame dos símbolos’; estes, por sua vez, sen- Em geral, os músicos em suas avaliações e conversas,
do constitutivos de um outro pólo orgânico - a obra -, não falam com entusiasmo sobre a experiência que a músi-
se encontram na condição de ‘mortos’ para o intérprete. ca pode representar para cada um e sobre as respostas
Ao aceitarmos que cada obra e cada intérprete têm as pessoais que lhe são dadas. SWANWICK (1979) enfati-
suas idiossincrasias e suas surpresas, somos levados a crer za, entretanto, que não há como construir uma relação
que a apreciação acontece num processo de interação, no concreta entre uma melodia, por mais simples que seja,
qual as experiências de vida e com a música, incorporadas com algo que lhe seja equivalente, ou com qualquer
pelo ouvinte, definem os níveis de impacto desta relação.6 acontecimento extrínseco. Os músicos, ao que parece,
concordam com esta afirmação do professor e vemos
No ato da criação, as experiências e os sentimentos tam- aí a confirmação de que, como nas artes plásticas não
bém se interligam; quem escreve a música, ao mesmo figurativas, o significante sonoro não possui um signi-
tempo a está submetendo à sua própria apreciação. O ficado lógico ou universal. Nas palavras de Swanwick,
julgamento crítico do compositor parece buscar uma mo- falar sobre música “como se ela fosse uma coisa simples
dalidade de interação entre as paisagens do seu mundo e única é correr o risco de subestimar sua força potencial
interior e do mundo exterior. Por sua vez, o intérprete co- e infinita variedade”. O tratamento da linguagem musi-
loca-se diante da peça entregando à sua execução, além cal, em qualquer tipo de atividade, “requer habilidade
do seu conhecimento, a intensidade do seu sentimento, para responder e se relacionar intimamente com o ob-
para estabelecer laços individuais profundos. Este tipo de jeto musical como entidade estética. Isso se assemelha
comprometimento é, simultaneamente, uma ajuda, tanto com um estado de contemplação” (SWANWICK, 1979,
na comunicação da obra para o seu ouvinte, quanto na p.42-43). Adverte o autor que a concentração e o com-
sua própria apreciação musical. prometimento do músico requerem a ‘exclusão virtual’
de tudo o que está à sua volta. Realmente, quando es-
Nas narrativas de dois grandes pianistas brasileiros, de re- tamos inteiramente absorvidos, entregues, somos trans-
nome e carreiras internacionais, há revelações sobre suas formados pela experiência. Neste ponto, novamente nos
sensações pessoais diante do ato da interpretação mu- deparamos com um estado de contemplação, ao qual
sical e suas variáveis temporais e afetivas, sobre o ritual fomos levados pela nossa vontade e pela simpatia, com
diante de uma platéia e sobre a escuta da obra musical, a ‘conquista de zonas mais profundas’ - segundo o ma-
após a gravação em estúdio. Há alguns anos, ouvimos Ar- estro Magnani -, ou com a ação da ‘mão do superior
naldo Cohen em entrevista concedida a uma rede de tele- incógnito’ - de acordo com F. Pessoa.

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Quando Swanwick apresenta sua base para a educação suas preocupações quanto à valorização exacerbada
musical, usa o mnemônico C(L)A(S)P para estabelecer re- da aquisição de saberes, que resvala para o culto ao
ferências às atividades de criação (C), apreciação (A) e adestramento dos alunos, sem a construção de um
performance (P) na formação musical, amparadas pelos gosto refinado pela descoberta, ou pela criação de
estudos de literatura da música e sobre a música (L) e sabores. No seu entendimento, a inteligência é a nos-
pela aquisição de habilidades específicas para as práti- sa capacidade de conhecer e manipular o mundo, por
cas musicais (S - Skills). Ele esclarece que este modelo é isto, tem a ver com aquisição do poder. Por outro
somente uma formulação teórica do que acontece numa lado, a sabedoria tem a ver com a felicidade, pois “é
boa prática de ensino musical e do que falta, quando o a graça de saborear o mundo” (ALVES, 1997, p.53).
ensino é ruim. Concordamos com o autor quanto à vali- Revemos em Alves a opinião de que inteligência nos
dade da aquisição de habilidades técnicas, dos estudos fornece os meios importantes, mas é a sabedoria que
teóricos e musicológicos, do treinamento auditivo e de nos dá motivação para viver. Ele compara o cérebro a
leitura. Estes são exemplos de recursos importantes e in- uma caixa de ferramentas e conclui que a inteligên-
dispensáveis, que devem ser considerados como alguns cia não corresponde à posse de um arsenal destas,
dos meios através dos quais se dá a formação musical - mas à capacidade de andar leve, carregando apenas
seja qual for a perspectiva profissional daqueles a quem algumas, escolhidas segundo a necessidade de cada
esta preparação é direcionada. Não devem, entretanto, situação. O que importa é saber como procurar e
constituir-se como uma finalidade em si. Esforços con- onde encontrar aquelas que, eventualmente, vierem
centrados somente nesses enfoques, tratados de forma a faltar (ALVES, 2002, p.183). Vimos que, também no
desarticulada, caracterizam uma educação musical frag- seu entendimento, significados específicos alcança-
mentada e restritiva, a qual, não raro, pode conduzir às dos pela inteligência, que podem ser explícitos em
seguintes situações: a interpretação que não envolve o outras formas de comunicação, não são prioridades
público, que, por sua vez, não percebe o envolvimento no mundo da arte. Ao discorrer sobre suas repetidas
do intérprete; a composição que, mesmo bem estrutura- experiências como apreciador musical e na condição
da, não alcança a comunicabilidade; a escuta superficial, de profundo amante da música, ele apresenta con-
sem impacto significativo. Em outros termos, a ‘soma’ da ceitos tais como “A beleza não precisa do sentido.
erudição, com acúmulo de habilidades e de informações Ela salva sem nada dizer” (ALVES, 1997, p.72). Nesta
sobre música, ou a ‘síntese’, processada no domínio de descrição poética percebe-se uma afinidade implícita
certos aspectos históricos e culturais, não significam, com os autores anteriormente mencionados, quando
tanto em Swanwick, como em Pessoa e Magnani, o al- ele confere à experiência musical, ou à experiência
cance da expressão humana através da linguagem artís- com qualquer outra forma de arte, um valor huma-
tica e a vivência profunda do prazer estético. nístico revelado em estados de interiorização sensí-
vel, de maior proximidade com o insondável. Alves
Para a interseção entre as paisagens interior e exterior, enfatiza o poder da música, transitando, com liber-
descritas por Pessoa, não basta a inteligência, discursiva dade e metáforas, em outras dimensões: “Deus não
ou analógica, que pode se manifestar na contextualização está na letra. Está na música. Ou ainda: “(...) o repicar
histórica da obra, na análise musical minuciosa e descri- dos sinos (...) é um altar construído com sons. Os sinos
tiva, na técnica primorosa de execução instrumental ou fariam o corpo se lembrar de Deus mais que muitos
de escrita composicional. No nosso ponto de vista, para sermões” (ALVES, 1997, p.73-74).
a exploração do universo criativo do indivíduo e expan-
são do seu potencial expressivo, a inteligência deve atuar Retornamos a Swanwick, focalizando a educação musical
com o suporte de um conjunto de condições, tais como: e à procura de ressonâncias entre suas concepções e as
o amor pela arte, a intuição, o prazer das descobertas, a dos demais autores e músicos aos quais estamos nos refe-
liberdade de escolhas, a conquista de zonas mais sensí- rindo. Quando analisamos o Modelo Espiral de Swanwick
veis, ou experiência em estados de contemplação. Sem e Tillman, vemos o desenvolvimento musical - para a per-
estas condições, o intérprete, o ouvinte e o compositor formance, a criação e a apreciação - experimentado num
continuarão distantes dos símbolos e estes, apartados processo evolutivo e circular, em que são agregados pa-
deles; o entendimento pleno e individual não terá como tamares diferentes das condições desabrochadas.7 Neste
desabrochar. É pouco provável que experiências isoladas Modelo, as dimensões cumulativas do discurso musical
na formação musical resultem em um comprometimento são quatro: os Materiais, o Caráter Expressivo, a Forma
pessoal, pois elas não se integram e nem se iluminam. e o Valor, sendo cada uma delas um estágio de desen-
Assim, habilidades técnicas adquiridas e confinadas em volvimento. As mudanças entre os estágios se amparam
certos tipos de adestramentos, servem, a nosso ver, ape- na intuição e na aquisição das capacidades analíticas,
nas para a realização de reproduções musicais impesso- construídas num processo evolutivo, com a interação das
ais, padronizadas e inexpressivas. tendências assimilativas e acomodativas. Cada um dos
quatro estágios tem dois níveis, o primeiro deles no lado
Encontramos em Rubem Alves reiteradas críticas ao esquerdo - assimilação, intuição, jogo espontâneo, moti-
culto dos meios, em detrimento das finalidades, prin- vação interna -, e o segundo, no lado direito - acomoda-
cipalmente com relação à educação formal. Ele revela ção, análise, imitação, adaptação ao social.

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Acatamos o fato de que, aquilo que desabrocha, já está Como uma decorrência das inúmeras variáveis, qua-
internalizado e, num estágio ulterior, passa a ser expres- litativas e quantitativas, justapostas às individuais e
so, ou revelado, desde que haja condições e estímulos interpessoais, a particularidade da avaliação de de-
para que isto ocorra. A mudança de patamares neste sempenho musical dos alunos com base no Modelo Es-
processo evolutivo e circular se dá através dos impul- piral não é a aferição exata do seu patamar de desen-
sos possibilitados pela intuição e pela simpatia. Através volvimento, através de suas manifestações musicais.
do interesse, da motivação - ou simpatia pelo símbolo, Por isto, nos deparamos com as aproximações, quando
segundo Pessoa -, há como se explorar os materiais nos analisamos os resultados produzidos por diferentes
níveis sensorial e manipulativo: é possível viver o as- avaliadores, mesmo que atuem em número reduzido,
pecto lúdico e ter o prazer inicial. É esta experiência a partir do mesmo material. Isto nos confirma que o
que favorece a inclinação pessoal para interligar sons, olhar humano voltado às atividades humanas tem,
fazer imitações ou variações; ela estimula a inteligência felizmente, a propriedade de ressaltar as diferenças
(“intus legere”) para que o principiante comece a lidar e não enrijecer as categorizações. Isto não significa,
com uma dimensão analítica. A inteligência musical, entretanto, que os modelos de avaliação nos sejam
sempre presente, será necessária no controle dos sons e prescindíveis. Na verdade, eles são produtos de olhares
concatenação das ideias e para a aquisição do caráter minuciosos e criteriosos, registrados em organizações
expressivo. A espontaneidade da expressão individual tão maleáveis quanto abrangentes. Na variedade de
nasce da intuição e da simpatia pela atividade, que, am- julgamentos encontra-se a oportunidade de interseção
paradas pela inteligência, conduzem ao amadurecimen- entre diversas paisagens pessoais, expostas num meio
to, galgado em etapas. Nesse percurso, são atingidos exterior. Este processo é comparável ao que ocorre
graus diferenciados ou no emprego, ou na libertação, quando, após percorrermos em conjunto um mesmo
paulatina, das convenções e estereótipos. Para a cons- caminho, ao final do percurso, teremos captado e guar-
trução de uma forma de comunicação individual, com dado como relevantes aspectos diferentes, de acordo
sua dimensão afetiva, os esquemas pré-existentes serão com a influência destes em nossa mente e a resposta
revisitados no estabelecimento dos processos de assi- da nossa sensibilidade individual. O que não existia no
milação e acomodação do desenvolvimento musical, em roteiro não poderá, de fato, ser descrito, mas, as cores
sua dimensão cognitiva. e a intensidade com que faremos as nossas descrições
pessoais - ou os eventos que escolheremos para tal -
A compreensão é uma qualidade fundamental, quando demonstrarão a riqueza humana na variedade implícita
se lida com as dimensões formal e simbólica da música.8 das nossas percepções.
As especulações e os traços idiomáticos, expostos no
emprego criativo da linguagem, correspondem à assi- Julgamos, finalmente, ser possível inferir do Modelo Espi-
milação de convenções, em um campo de imaginação ral que, mesmo nos estágios primários da pura exploração
onde já se desenham paisagens interiores. Novas rela- sensorial por parte dos iniciantes - ou, mais adiante, quan-
ções são construídas (relacionando no alto, de acordo do já são perceptíveis pequenos motivos musicais ou frases
com o que está relacionado em baixo, segundo Pessoa) organizadas em estruturas simples -, a simpatia pela ativi-
e as surpresas (e individualidades) podem integrar-se dade e o prazer encontrado no entrelaçamento dos sons já
em estruturas mais complexas. Na nossa percepção, significam, numa avaliação estritamente contextual, for-
este processo depende da capacidade de compreender, mas superiores de expressão pessoal. Isto porque, aquele
porque ele é mais que somar ou sintetizar. Requer, por- indivíduo, de qualquer idade, que se entrega ao exame ou à
tanto, para cada estágio de desenvolvimento musical, o exploração dos símbolos e dos rituais simbólicos musicais,
amadurecimento, a vivência, e incorporação de proces- não o faz à procura de um significado específico, através
sos e de valores. de habilidades e códigos já assimilados, mas sim, em busca
de uma possibilidade para expressar o seu eu, de revelar as
Ainda analisando o Modelo Espiral, concordamos que é suas paisagens interiores num meio exterior. Essa poderia
perceptível a conquista de um valor simbólico, impor- ser, na visão poética do nosso primeiro interlocutor, uma
tante para a pessoa ou para a coletividade, quando são forma elevada de manter a conversa íntima com o Superior
extrapolados certos padrões e patamares pré-determi- Incógnito, que habita em cada um de nós.
nados. Para atingir essa liberdade e a personalidade na
interpretação musical, parecem-nos também requisitos
fundamentais o impulso do espírito, o desejo de supe- 3 - Concepções de músicos professores e as
ração e a capacidade de ultrapassar superficialidades. qualidades preconizadas por Pessoa
Também nesta análise do Modelo Espiral, somos levados Em entrevista, o pianista e professor Michel BLOCK,9
a agregar os conceitos dos nossos outros dois principais belga naturalizado americano, faz alusão ao que apren-
interlocutores, o maestro Magnani e o poeta Fernando deu sobre a cultura de Camarões, com um amigo africa-
Pessoa. Tentando trazê-los novamente para este diálogo no natural daquele país. Na oportunidade, Block discor-
atemporal, parece ser viável entender cada etapa viven- re sobre a importância social e cultural que aquele povo
ciada na arte musical como vitória da sensibilidade, ou atribui ao talento de “alguém que é capaz de transmitir
momento de graça. do intangível para o tangível”, quando toca um instru-

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mento. Segundo as referências do professor, é preciso o músico deve fazer tudo para alcançar o máximo de
esclarecer que para a cultura de Camarões a atividade suas capacidades pessoais, o que requer mais um dom
dos músicos é muito importante, já que a música existe (p.133). Referindo-se ao seu professor polonês Lesche-
para ser vivida ou sentida e não apenas ouvida. Sobre- tizky, Schnabel faz comentários sobre a sua experiên-
tudo, ela é uma necessidade humana e, portanto, deve cia pessoal no período de estudos, valorizando o que
ser um valor compartilhado. A partir da análise desses aprendeu com seu mestre e reconhecendo a influência
valores e das próprias experiências como músico e como marcante deste em sua vida. Ao ser perguntado sobre o
professor, o pianista apresenta a sua concepção de que método utilizado por Leschetzky, foi enfático ao desta-
o talento musical é “uma identificação natural com a car uma importante característica de trabalho do seu
própria linguagem da música e com os blocos constru- professor, respondendo:
tivos desta linguagem”. A estas ponderações pode ser
acrescida outra dimensão que o compositor Arthur Ho- Não houve um método. Seu ensinamento era muito
negger oferece quando se refere ao talento: “É preciso mais que um método. Era uma corrente que pro-
que se tenha a coragem de recomeçar três, quatro, cinco curava libertar a vitalidade latente em cada estu-
vezes. Esta foi a definição que, respondendo a uma en- dante. Era direcionado à imaginação, ao gosto e à
quete, eu dei sobre o talento: A Coragem de Recomeçar” responsabilidade pessoal; não como uma cópia ou
(Honegger, in RAPIN, J.J.,1980, v.1, p.6) um caminho curto para o sucesso. Ele dava aos seus
alunos uma tarefa, mas não uma receita (SCHNA-
Para a identificação natural entre o sujeito e a música, BEL, 1988, p.125).
apontada por Block, acreditamos na existência de con-
dições favoráveis, comumente encontradas nos perfis Esta avaliação demonstra que suas convicções a res-
dos músicos que se destacam. Dentre elas ressaltamos peito do ensino musical não se restringem apenas à
a aptidão mental - revelada em características pessoais mera discussão sobre métodos específicos. O pensa-
como, por exemplo, inteligência, intuição, sensibilidade, mento de Schnabel parece apontar mais claramente
expressividade, curiosidade, concentração, flexibilida- para a necessidade de reflexão e para a análise de al-
de e disciplina - e uma qualidade de aptidão, ou pré- guns princípios básicos. Com esta perspectiva, perce-
disposição física, que necessita do trabalho direcionado bemos afinidades entre o sentido das manifestações
ao bom aproveitamento de características anatômicas tanto de Schnabel, como as de Block e Honegger, e a
e motoras. Entretanto, por julgarmos não ser esta uma concepção de Fernando Pessoa sobre as cinco quali-
questão objetiva, tampouco imprescindível, não é nossa dades necessárias a um intérprete. Entendemos que
intenção fazer um inventário de habilidades, tendências professor e aluno, na própria atuação, devem alimen-
ou condições pessoais inerentes ao talento. Por este tar e libertar a vitalidade latente e a imaginação. O
motivo, parece-nos interessante, dentre outras, a pos- gosto e a responsabilidade pessoal são qualidades - e
sibilidade de entendermos o talento musical como uma talentos - de quem ensina e de quem aprende, em
capacidade diferenciada de viver, sentir e compartilhar a troca permanente; neste universo não há unanimi-
música, adotando-se um significado semelhante ao que dades confortáveis, caminhos curtos, nem receitas.
essas ações têm na cultura africana mencionada pelo O cuidado com os pequenos detalhes pode propiciar
professor Block. Entendemos, por consequência, que significativas descobertas musicais, além de ser tam-
abordagens pedagógicas talentosas visam estimular os bém uma atitude válida para o relacionamento entre
indivíduos para que persistam - ou recomecem várias as pessoas de forma geral e, especificamente, entre o
vezes, de acordo com Honegger - no desenvolvimento professor e seu aluno. O exame atento das particula-
das suas distintas capacidades. ridades de uma obra favorece a compreensão sobre
as relações - nem sempre aparentes - entre os ele-
O pianista e professor austríaco Artur SCHNABEL (1988), mentos que se articulam no discurso musical. Quando
ao discorrer sobre o mundo da música, menciona os desenvolvemos a nossa percepção da música pode-
mistérios intrínsecos da atração ou da indiferença, que mos realçar as sutilezas que existem nas entrelinhas
a mesma obra pode causar nas pessoas. Ele próprio ar- deste discurso, seja como intérpretes, compositores
gumenta que não consegue enxergar a razão pela qual ou ouvintes. Partindo desta premissa, acreditamos
deveria produzir sons sem nenhuma participação inte- que o professor de música deve valorizar as diferen-
rior neles. Com muita propriedade, estende o assunto e ças e compreender possibilidades e sutilezas do uni-
correlaciona estas observações com as práticas peda- verso musical e também as sutilezas pessoais. Estas
gógicas dos professores, ponderando que, mesmo neste são potencialidades que cada indivíduo descobre no
campo, “devido à impressionante variedade nas dispo- seu próprio tempo e à sua maneira. Mantendo ain-
sições de musicistas, a unidade de julgamento não pode da o foco na educação musical, julgamos pertinente
jamais ser esperada” (p.128). Schnabel acredita que um incluir a mensagem do poeta Manoel de Barros, na
bom músico deve ser capaz de julgar se o resultado da qual percebemos uma espécie de síntese da aborda-
sua interpretação corresponde, realmente, ao que de- gem de ensino que valoriza, em mínimos detalhes, os
seja. Isto depende do seu talento, em cada fase do de- aspectos objetivos e os subjetivos, os pessoais e os
senvolvimento. Quaisquer que sejam os seus talentos, musicais: “É no ínfimo que eu vejo a exuberância”.10

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4 - Considerações finais sobre o ensino da os seus princípios e suas premissas. Não é uma tare-
música fa fácil, se ele não souber interpretar os impactos de
Entendemos que o ensino da música - desde a musicali- suas propostas, na sua prática diária. Mais uma vez, o
zação até formação acadêmica - é um processo situado professor vai precisar do suporte dado pela simpatia e
no campo das relações humanas; pode ser analisado na pela intuição. É preciso gostar das mudanças de rumos,
perspectiva que o coloca como uma forma de interpreta- de escolher rotas ainda inexploradas e ficar atento às
ção e validação da vida. Esta perspectiva requer o exame estratégias: construir no ponto mais alto outras relações
minucioso dos rituais aos quais nos integramos e dos seus possíveis, de acordo com o que já está relacionado em-
significados. Segundo as nossas observações, um bom baixo. O bom profissional sabe que ao observar, inter-
profissional deve estar preparado para interpretar uma pretar e reinterpretar resultados - objetivos ou subjeti-
multiplicidade de situações educacionais e institucionais, vos - as interconexões e analogias suplantam as simples
com o foco nas pessoas, suas distintas personalidades e descrições. Isto é saber ler do lado de dentro - “Intus
interações musicais e sociais. Para o exame e a interpre- legere” -, ou a qualidade da inteligência.
tação deste conjunto mutável de possibilidades, no qual
são apreendidos inúmeros sinais e significados, conside- O tempo e a experiência de um educador parecem im-
ramos indispensáveis as cinco qualidades apontadas por primir no seu íntimo uma generosa disposição para aco-
Fernando Pessoa, em sua Nota Preliminar, transcrita no lher suas convicções e dúvidas, em uma dualidade inte-
início deste texto. As ‘atitudes cautas ou irônicas’ que grada e constante. A soma de informações e vivências,
impedem a interpretação dos símbolos, também afastam ou a sua síntese sempre em reconstrução, não seriam
o professor da interpretação de sinais sobre as necessi- frutíferas se não fossem maturidade do profissional e as
dades e potencialidades, tanto suas quanto dos alunos. É suas impressões pessoais, incorporadas à profundidade
utilizando conotação similar que Rainer M. Rilke aconse- dos seus pensamentos. Isto não acontece no ato super-
lha a um poeta principiante: “Busque o âmago das coisas, ficial de acumular dados estatísticos e referências, mas
aonde a ironia nunca desce; e ao sentir-se destarte como em outros domínios, ou, segundo a visão de Rilke, “não
que à beira do grandioso, examine ao mesmo tempo se talvez no intelecto, que ficará atrás espantado, mas sim
essa concepção das coisas deriva de uma necessidade do na sua mais íntima consciência, que vigia e sabe” (RILKE,
seu ser” (RILKE, 1999, p.28). 1999, p.37). Esta qualidade é a compreensão.

Transpondo as condições primordiais aventadas por F. Chegamos, através do roteiro de Pessoa, a uma espé-
Pessoa para a vivência de quem ensina, diremos que o cie de clarividência que amplia nossa leitura das coisas
bom professor deve, prioritariamente, gostar do que faz do mundo e da arte. Ao olhar para a paisagem exterior,
e manter a esperança ao tentar desvendar, a cada dia, podemos nos sentir como se explicou Mario Quintana,
o mistério do outro. É preciso desejar tocá-lo humana- em uma oportunidade, “Eu não tenho paredes. Só tenho
mente, através de um canal de comunicação aberto pela horizontes...”11 É bom transpor as paredes ou os limites
sensibilidade, e construir laços musicais e afetivos. Esta que se impõem e que, em algumas situações, são cons-
qualidade é a simpatia. truídos por nós mesmos, os professores. Em certos pa-
râmetros, estas limitações podem nos acenar com falsas
Quem ensina sempre está, ao mesmo tempo, imerso no expectativas de segurança. Buscando outra perspectiva,
processo de aprender e, às vezes descobre, subitamen- nosso mundo interior pode ser uma fonte inesgotável
te, caminhos e correlações que antes não eram perce- de paisagens e novos horizontes. Após o rompimen-
bidas. Ficar atento aos pequenos sinais e insistir naquilo to de barreiras internas, surge o espaço reservado para
que parece estar subentendido são atitudes que podem encontros e conversações íntimas, em dimensões pesso-
conduzir à satisfação de soluções convincentes, embora ais pouco exploradas. Afinal, nem tudo é exprimível em
não definitivas. Aquilo que está além do previsível pode palavras, e para qualquer músico esta verdade está na
ser antevisto pelo professor, com o auxílio da simpatia e essência da sua arte. Segundo Fernando Pessoa, a quinta
através de um olhar perscrutador de quem está envolvido qualidade é pouco definível, porém, seja qual for a de-
inteiramente no processo. Esta qualidade é a intuição. nominação que possamos lhe atribuir, acreditamos que
sUm professor analisa, experimenta, compara e integra a sua ausência significa o empobrecimento das relações
métodos, nos quais encontra a sustentabilidade para humanas e dos rituais simbólicos.

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MACHADO, M. I. L. Um roteiro atemporal: reflexões sobre a música... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.109-120.

Referências
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UFMG, p.16-24, 2000.
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GALHOZ, M. A. D. Fernando Pessoa - Obra Poética – organização, introdução e notas. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar
Ltda, 1960.
GARDNER, Howard. Estruturas da Mente A Teoria das Inteligências Múltiplas. Sandra Costa (trad.); Porto Alegre: Artes
Médicas do Sul, 1994.
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WAGNER, Jeffrey. Interview with Michel Block for Clavier Magazine: To Thine Own Self Be Ture, Maurício Veloso (Trad.)
[original não editado]
___________ Passing on the Legacy - interview with Michel Block by Jeffrey Wagner, Clavier Magazine, vol 37, january
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WISNIK, J. M. O Som e o Sentido - Uma outra história das músicas. São Paulo: Editora Schwarcz, 2001.

Notas
1 Apontamento solto de Fernando Pessoa; s.d.; não assinado; inédito (GALHOZ, 1960)
2 Dicionários Aurélio (2ª edição, 1986) e Houaiss (1ª edição, 2001).
3 Para E. WILLEMS (1970, p.10 e 68) não são apenas físicos e formais os elementos constitutivos da música, são elemen-
tos de vida de ordem fisiológica, afetiva e mental; tributários de uma síntese viva e, ao mesmo tempo, constitutivos
dessa síntese. Os aspectos elevados da afetividade ultrapassam em valor artístico as manifestações da inteligência.
Conforme o autor, são elementos afetivos supramentais a intuição (como um princípio de unidade que compreende a
sensibilidade e a inteligência) e a inspiração, “na acepção mais nobre do termo”. Embora o intelecto apreenda os seus
efeitos, a natureza real da intuição transcende a razão.
4 Em abril de 2007, na programação semanal da série de concertos VivaMúsica da EM UFMG, Vera Guarnieri, viúva de
Camargo Guarnieri, fez uma palestra sobre a sua vida e a sua obra. Expôs que, para ele, a criação literária e a musical
se equiparavam no esforço para que as intenções ou impulsos criativos, nascidos da imaginação e sem aviso, resultas-
sem numa obra de valor, resistente à crítica do próprio criador. Com relatos quase que pictóricos, dada a vivacidade
na descrição de detalhes, própria de quem conviveu com o compositor de forma tão próxima, Vera Guarnieri revelou
uma faceta muito especial do processo composicional de Guarnieri, o que nos reportou à avaliação de Gardner, sobre
o fenômeno ou ato da composição musical. Guarnieri tinha o hábito de se levantar à noite e, depois, não se dar conta
claramente do que havia acontecido durante o período em que se ausentava do quarto. No dia seguinte, ele próprio
se espantava ao encontrar partituras manuscritas de fragmentos ou até mesmo de peças completas. Por vezes, após
comentar que havia sonhado à noite com uma determinada composição (ou paisagem sonora?), ele ficava surpreso
diante do seu próprio manuscrito, constatando que não havia sido um sonho. Num exercício de imaginação, podemos
supor que este tipo de episódio talvez não surpreendesse o poeta Pessoa, que o atribuiria às possibilidades de um ar-
tista - possuidor das cinco qualidades indispensáveis -, inclinado a entabular conversações com certo Anjo da Guarda.
5 A nosso ver, o pensamento de H. J. Koellreutter complementa estas concepções: “A obra musical, assim como toda
obra de arte, deveria ser considerada como manifestação do mundo simbólico, do mundo simbólico de um mito. Porque,
como este, não é subjetiva nem objetiva, mas sim onijetiva. A palavra onijetivo refere-se a fenômenos que desconhe-
cem a divisão rigorosa entre as realidades objetiva e subjetiva. Manifestar-se miticamente significa revelar, simbolizar
o real e o irreal, o dito e o não-dito, som e silêncio. É tornar audível o que a alma sente e vive. O mito é afirmação e de-

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MACHADO, M. I. L. Um roteiro atemporal: reflexões sobre a música... Per Musi, Belo Horizonte, n.21, 2010, p.109-120.

poimento. É negação e aprovação. É aceitação e recusa” (KOELLREUTTER,1994, p. 09). 6 H. Koellreutter (1994, p. 09)
apresenta uma reflexão sobre a apreciação musical: “o conteúdo de uma obra musical (...) nunca pode ser assimilado
pela simples audição, mas sim, somente através da plena participação, da participação ativa e da co-autoria, por
assim dizer, do ouvinte.”
6 H. Koellreutter (1994, p. 09) apresenta uma reflexão sobre a apreciação musical: “o conteúdo de uma obra musical
(...) nunca pode ser assimilado pela simples audição, mas sim, somente através da plena participação, da participação
ativa e da co-autoria, por assim dizer, do ouvinte.”
7 Modelo Espiral de Swanwick e Tillman (1986) foi o resultado de um estudo de 745 composições de 48 crianças entre
03 e 11 anos. Este trabalho durou 04 anos e teve a fundamentação teórica ampliada mais tarde, em 1994, quando
Swanwick transformou-o no Modelo Psicológico do Desenvolvimento Musical.
8 Violeta Gainza recomenda que o aluno seja conduzido a viver e compreender a música através da sua prática, par-
tindo do que lhe é próximo e familiar em direção ao conhecimento sistematizado (reconhecer e manejar estruturas
básicas) e à expressão pessoal. Segundo Gainza, a criação surge naturalmente como produto de um saudável meta-
bolismo, quando há a clareza a respeito das estruturas musicais e instrumentais. A autora defende os princípios de
que a compreensão - que favorece a performance - traz extraordinária facilidade para a memorização e ainda, que é
desejável e positivo incluir no repertório de iniciantes os próprios trabalhos de criação musical (GAINZA, 1977, p. 1 e
7).9 Nossas citações baseiam-se também na tradução do Professor Maurício Veloso (UFMG, 2005), feita a partir do
original, não publicado na íntegra, de entrevista concedida por M. Block a Jeffrey WAGNER (1988).
9 Nossas citações baseiam-se também na tradução do Professor Maurício Veloso (UFMG, 2005), feita a partir do origi-
nal, não publicado na íntegra, de entrevista concedida por M. Block a Jeffrey WAGNER (1988).
10 Barros M. Livro Sobre Nada. Rio de Janeiro: Editora Record, 1997; p. 55
11 Do livro Ora Bolas - O Humor de Mario Quintana, de Juarez Fonseca (L & PM Pocket, R.S. 2006; p. 17).

Maria Inêz Lucas Machado é Graduada em Piano, Especialista em Educação Musical e Mestre em Estudos das Práticas
Musicais, pela Escola de Música da UFMG. Professora com experiência pedagógica e administrativa, inclusive em projetos
e cursos diversos de Extensão, exerce atualmente o segundo mandato como Vice-Diretora da Escola de Música da UFMG.
Atua em disciplinas do núcleo comum - percepção musical, treinamento auditivo, piano complementar - com ênfase em
performance e educação musical. Áreas de interesse, estudos e trabalhos publicados em temas tais como as dinâmicas da
formação básica, intermediária e acadêmica em música, a Extensão e a Graduação em Música na Universidade Pública,
com diagnósticos a partir da experiência e de opiniões docentes e discentes, além de estudos documentais.

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