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A BRUXA DE FLORENÇA

(de Vitor Maradei)

Capítulo 1

Florença, 1348. Naquele ano a primavera parecia tão cinzenta quanto o pior dos invernos. As
flores não tinham cor, o sol brilhava pálido e as sombras se projectavam assustadoras sobre as
casas abandonadas. Cães vagavam pelas ruas, disputando a carne dos cadáveres que se
espalhavam por todos os cantos. De um lado e outro procissões melancólicas atravessavam a
cidade, carregando cruzes e pedindo a Deus a redenção. O mundo parecia ter chegado ao fim.
Pessoas solitárias vestidas com suas roupas de dormir caminhavam a esmo, os rostos
inexpressivos, como sonâmbulos, fantasmas saídos de um pesadelo. Seguiam silenciosos,
como quem já não tem mais esperanças, enquanto o vento frio levava embora o resto de vida
que havia dentro delas.

Pouco a pouco, um ruído vindo de longe começou a destoar daquele contexto. Eram passos.
Seguiam de maneira firme e resoluta. Vinham em direcção ao centro da cidade. Caminhavam
como que imunes ao desespero que havia ao seu redor. Logo a figura de uma jovem surgiu na
estrada que vinha de fora da cidade. Trazia um pano preto ao redor da cabeça, seu rosto era
vivo, corado, iluminado por dois olhos verdes, que pareciam ser os únicos a refletir a beleza e o
colorido da estação. Ela seguia apressadamente, desviando-se dos corpos e dos roedores.
Seguia em direcção ao mercado. Ao chegar na praça, parou. As lojas estavam fechadas. Franziu
o rosto. Olhou ao seu redor, tentando entender o que estava acontecendo. Virou de um lado a
outro. Hesitou, por alguns instantes, em seguida decidiu tomar o caminho de volta. As ruas
estavam molhadas pela chuva que havia caído. Ao cruzar a esquina, uma carruagem negra
passou à sua frente a toda velocidade. Tão próxima, que lhe espirrou água por todo o corpo e
a fez cair por terra.

- Maldito! - gritou ela.

- Ninguém mais se importa com os outros! - respondeu outra voz.

Era de um homem que estava por perto e assistiu à cena. Estava curvado, como se fosse
corcunda, encostado na parede de um edifício. Suas roupas eram sujas e rasgadas e seus
dentes todos podres. Tinha uma fisionomia repugnante. A moça não lhe respondeu nada.
Assim mesmo ele continuou:

- Mais um que está deixando a cidade. É o medo da peste.

- Peste? - perguntou finalmente, intrigada.

- Você não está vendo? Todos estão morrendo. Eu perdi minha família. Provavelmente irei
também em breve. O mal está em toda parte. Minha sobrinha, Amélia, tinha apenas 12 anos.
Um pouco mais jovem que você, creio. Começaram a aparecer umas bolas no corpo dela,
manchas escuras. Ela tremia, seu corpo estava quente... E não havia nada a fazer. Deus está
nos castigando.

- E por que não enterram esses corpos? - perguntou ela, dando um passo para trás, a fim de
livrar-se do cheiro de urina e fezes que vinha do velho.

- Oh, eles são muitos. São muitos cadáveres. Há poucos padioleiros. Ninguém quer se
aproximar dos corpos. Têm medo de adoecer também. Estão cavando buracos e enterrando
todos juntos. Muitos não recebem nem o último adeus de seus familiares. Eles são
abandonados mesmo antes de morrer... A senhorita não mora em Florença?

Ela abanou a cabeça. Estava com pressa e não queria se prender em conversa com aquele
homem. Ele, porém, continuou.

- E como se chama?

- Laura.

- Sabe, você se parece muito com minha sobrinha, coitadinha. Ela tinha os cabelos como os
seus. Era viçosa, alegre... Uma pena o que aconteceu. Não sei por que Deus quis levá-la. Era
uma boa menina, ajudava a todos que via. Tinha um grande coração. Um dia chorou porque
viu uma formiguinha morrer. Que gracinha! Disse que a formiga tinha filhinhos e ia deixá-los
órfãos. Ah! Imagine só, que criança doce...

O homem havia levantado. Conforme falava, ia chegando cada vez mais perto. Pingos de sua
saliva chegavam a atingir o rosto de Laura, que não conseguia desvencilhar-se.

- ... ela havia acabado de fazer a primeira comunhão quando adoeceu. Pelo menos isso é um
consolo. Deve ter ido directo para o céu, sem parar no purgatório. Virou um anjinho lindo.

Laura começou a andar. O homem, porém, a seguia. Andava com dificuldade, arrastando uma
perna. Mas esforçava-se para não deixá-la distanciar-se.

- ... a mesma coisa aconteceu com a mãe de Amélia, minha cunhada. Adoeceu e três dias
depois estava morta. Foi fulminante. Nunca vi nada igual. Queimamos todas as roupas dela
para evitar que a doença atingisse outros membros da família, mas foi em vão. Logo todos
morreram, menos eu. Não sei por quê. Mas de que me vale viver agora? Não tenho mais nada.
Talvez Deus tenha me poupado para que eu pudesse sofrer mais que os outros. Devo estar
pagando meus pecados. Não me lembro de ter cometido tantos, mas, enfim...

Laura mudou de direcção. Foi para um lado e para outro, tentando livrar-se. Ele, porém, se
colocava à sua frente e por vezes tentava segurá-la. Impaciente, ela se virou com tanta
violência que acabou por jogá-lo ao chão. O homem escorregou e caiu de rosto sobre a sarjeta,
machucando o nariz e a boca. Aproveitando a chance, ela fugiu. Antes, porém, arriscou um
último olhar. Viu que ele estava sangrando e começara a chorar. Mas não teve coragem de
parar para ajudá-lo.
No caminho de volta, Laura percebeu que sua perna estava sangrando. Fora a roda da
carruagem que a pegara de raspão. Parou no lago próximo à sua casa, a fim de lavar o corte.
Sentou-se junto à margem, colocou a perna machucada dentro da água e começou a lavá-la. Já
estava anoitecendo. A água escura. Ao seu redor, o silêncio triste e a sensação estranha que o
sol deixa para trás ao se pôr. Com a perna, Laura fazia ondas suaves na superfície do lago. De
repente, teve um sobressalto. O sangue ao se espalhar parecia formar imagens. Eram coisas
estranhas. Afastou-se, com medo de olhar. Logo, porém, se convenceu de que se enganara.
Olhou mais uma vez. As cenas estavam ainda mais nítidas. Havia rostos, pessoas rindo.
Pareciam estar batendo em alguém. Então Laura viu algo que a encheu de pavor e a fez correr
de volta a casa.

Sentiu um alívio ao avistar o casebre em que morava, encravado em uma floresta próxima a
Florença. Lisa, sua mãe, dava comida a Ola, seu pássaro de estimação.

- Ah, chegou, filha! Eu já estava ficando preocupada.

Lisa tinha um aspecto fino e delicado, apesar da vida rude que levava. Seus cabelos eram
negros e bastante lisos. Apesar de não ser mais tão jovem, tinha ainda uma aparência bastante
atraente.

- Não pude comprar nada...

- Você não conseguiu encontrar?

- Estava acontecendo algo na cidade. Um homem me falou que era a peste. Algo como um
castigo... Havia gente morta, Lisa, nas ruas... (Laura chamava a mãe pelo nome.)

- Mortas?

- Sim.

- Mas... Oh, minha filha, eu não deveria tê-la deixado ir sozinha... Peste. Que coisa horrível!

- Acha que estamos a salvo aqui? Seremos castigadas?

- Ninguém nos castigaria, querida. Mas acho que é melhor não voltarmos para lá tão cedo. Seu
corpo é feito de carne. Não se esqueça disto.

- Não estou me referindo apenas ao que vi na cidade, Lisa, é que...

- O que foi?

- No caminho de volta, eu parei no lago e...

- Diga.

- ... Não, esqueça. Na verdade, não é nada...


- Bem, vamos comer, que já é tarde. Amanhã você se sentirá melhor. Imagino que não deve ter
sido muito fácil o dia para você.

Algumas horas depois as duas foram dormir. Dividiam a mesma cama, que ficava em um canto
da casa. Laura não conseguia pegar no sono. Seus olhos percorriam o cómodo, olhando a
sombra das paredes. Uma luz penetrava pelas frestas. Era lua cheia. Cortando o silêncio, o som
de algum animal, o pio de algum pássaro e o barulho do vento sobre as árvores chegavam-lhe
aos ouvidos. Ela começou a lembrar do dia em que saiu à noite, escondida de sua mãe, para
assistir aos ritos da fertilidade. O povo da floresta se reunia em certas épocas do ano para
saudar a Grande Deusa. Laura sabia onde se realizava a cerimónia e não resistiu à vontade de
espiá-la. Descoberta por um dos participantes, foi chamada para tomar parte dos ritos de
iniciação. Houve uma espécie de oração, em seguida todos falaram muito, contando histórias.
Deram-lhe algo para beber. Aos poucos foi ficando fora de si... As pessoas começaram a dançar
e abraçar-se, e em seguida deitaram no chão, umas sobre as outras. Alguém se aproximou
dela... Um homem coberto com a cabeça de um animal... Ela estava ajoelhada, com as mãos
na terra... Ele veio por trás... Movia-se ritmadamente como se acompanhasse a música que
tocava ao fundo... Laura sentia-lhe o cheiro, o corpo suado... Enquanto mexia, o ouvia rosnar
suavemente em seu ouvido. Um calor começou a crescer em seu ventre. O coração acelerou-
se. Os músculos se enrijeceram. As unhas do homem arranhavam suas costas... Havia sangue...
Escorria de seu ventre, descendo por suas coxas...

Ainda podia sentir aquela sensação em seu corpo. Um misto de dor e prazer. Então acariciou a
marca que possuía no ombro esquerdo. Ganhara-a naquele dia. Fazia parte do ritual. Era azul e
tinha a forma de um pequeno animal. Inflamara logo depois e doera muito. Agora já estava
seca. Laura tinha orgulho dela. Lisa, quando viu a marca no ombro da filha, ficou irritada e
discutiu muito. Mas Laura sabia que fora justamente num ritual como esse que sua mãe
engravidara dela. Lisa, na verdade, pertencia a uma das mais ricas e respeitadas famílias de
Florença. Sua mãe morrera e o pai estava sempre viajando a negócios, deixando-a, a maior
parte do tempo, sozinha com a pajem, Filomena. De espírito inquieto, Lisa entediava-se de sua
vida reclusa e recatada. Ao saber que Filomena frequentava os ritos pagãos, insistiu
seguidamente para que ela a levasse. Acabou engravidando e quando seu pai descobriu,
mandou espancar e enxotar a pajem da cidade. Logo depois, não suportando mais a pressão
de todos na cidade, Lisa fugiu também à procura de Filomena. Passaram a viver naquela casa
da floresta desde então. Acostumada ao conforto e à riqueza, Lisa teria voltado logo depois,
mas ficou sabendo que seu pai fora assassinado por inimigos políticos.

Laura vivera toda sua vida lá naquele casebre. O mesmo cujas paredes agora seus olhos
percorriam, perdidos em pensamentos íntimos. Estava preocupada. Aquelas imagens do
lago..."Eram tão nítidas..." Teve medo novamente, não queria lembrar-se do que vira. Laura
virou os olhos na direcção de Ola. O pássaro estava imóvel. Provavelmente dormia. Ola vivia
solto, às vezes desaparecia, voava pela floresta, mas sempre retornava. Um dia machucou a
asa. Elas trataram dele. Passou um longo tempo sem voar, mas conseguiu se recuperar.
"Gostaria de poder voar como você, Ola", pensou Laura. Fechou os olhos e começou a
imaginar seu corpo se levantando no ar, flutuando, livre. Viu-se atravessando a janela do
quarto, subindo cada vez mais alto, pairando sobre as árvores, os campos... Começou a sentir
um vento frio soprar sobre seu corpo. Intrigada, abriu os olhos. Não estava mais dentro de
casa. Sobre si apenas o céu coberto de estrelas e ao longe, na escuridão, as sombras da
cidade... Sua camisola branca brilhava, parecia emitir luz própria. Vagou para várias direcções.
Viu a sombra negra formada pelo lago onde costumava banhar-se, alguns castelos situados nas
colinas, os muros da cidade... Sentia-se extremamente feliz. O vento forte tirava lágrimas de
seus olhos, um gostoso frio vinha de sua barriga e seu rosto estampava um sorriso alegre e
nervoso. Então deu-se conta da altura em que se encontrava. E logo seu corpo começou a
perder sustentação. Tentava concentrar-se, recuperar a sensação anterior, mas uma aflição foi
crescendo em seu peito e não conseguiu mais manter-se no ar. Ela começou a cair. Não sabia
como reagir e descia cada vez mais rápido. Fechou os olhos, franzindo a face, sentindo o chão
aproximar-se e, de repente, seu corpo todo estremeceu. Ela abriu novamente os olhos. Estava
em sua cama, ao lado da mãe, dentro de casa. Ola havia acordado. Observava Laura e mexia as
asas. Ela ainda sentia o corpo frio.

O dia amanheceu ensolarado. Fazia um pouco de calor, aliviado por uma suave brisa. Laura
aproveitou para dar um passeio. Embrenhou-se pela trilha de costume, mas em um certo
ponto resolveu desviar-se. Queria passar longe do lago, com medo de rever as imagens que a
assustaram no dia anterior. A nova trilha era bastante longa e levou-a para fora da floresta,
diante de um campo. Não se lembrava de ter estado lá anteriormente. Mais adiante algumas
cabras pastavam. Do outro lado, um castelo fincado no alto da colina completava a paisagem.
Laura gostou do local. Era limpo, bonito e bem tratado. Sentou-se, acariciou a relva e deitou-se
gostosamente, com os braços estendidos sobre a cabeça. Mas, mal teve tempo de espreguiçar-
se, e um barulho de patas de cavalo, vindo de dentro da floresta, a assustou. Virou-se
subitamente, desajeitada. Era um homem velho, barrigudo, mas elegantemente vestido. Trazia
um animal semimorto junto à cela. Ao vê-la, o homem sorriu, exibindo dentes extremamente
amarelados.

- O que faz por aqui, minha cara? Foge da peste?

Laura ficou muda.

- Você sabia que essas terras me pertencem? - disse ele, apeando do cavalo. - De onde você
vem?

Ela continuou em silêncio.

O homem aproximou-se e Laura sentiu-lhe o hálito amargo. Sua barriga pareceu maior ainda
ao descer do cavalo. O sorriso continuava estampado no rosto. Laura ficou se perguntando por
que ele ria tanto. Mas um pequeno ruído a fez desviar os olhos em direcção ao animal que
jazia sobre o cavalo. Viu que se tratava de um pequeno veado e ainda estava vivo. Seu focinho
estava ensanguentado. Ele tinha o olhar fixo, profundo, que transmitia dor e, ao mesmo
tempo, resignação. Como se soubesse que nada mais lhe restava fazer, senão esperar a morte.
- Ele parece sofrer - disse finalmente Laura, referindo-se ao veado.

- Oh, sim. Ele ficou preso na armadilha de lobos. Vai render uma boa ceia esta noite. Mas me
diga, onde você mora?

Laura continuava ignorando as perguntas do homem. Aproximou-se do veado e acariciou-lhe a


testa.

Olhando-a de costas, o homem examinou-lhe os contornos do corpo sob o vestido. Um caldo


branco de saliva acumulava-se nos dois cantos da boca.

- Sabe, você é uma moça de sorte. Gostei de você. Estava muito bela, deitada aí na grama.
Poderia oferecer-lhe um lugar em meu palácio como uma de minhas servas. O que me diz?

- O que faz uma serva?

- Ora, o que faz uma serva. Ela cuida de seu senhor. Prepara sua cama, seu banho, sua roupa.
Em troca, mora no palácio, com comida e abrigo de graça.

- Eu já tenho comida e abrigo sem ter que cuidar de ninguém.

- Então você está recusando uma oferta do Conde ângelo D'Arace? - disse, aproximando-se
dela. Os olhos buscavam no decote do vestido de Laura o caminho de seus seios. Ela percebeu
e tentou afastar-se. Antes, porém, que tivesse tempo de se mover, as mãos dele a agarraram.
Sentiu o seu corpo colar-se ao ventre do velho, que tentou beijá-la. Laura cuspiu em sua cara.
Ele a olhou enfurecido por alguns segundos e em seguida soltou uma gargalhada, jogando-a no
chão. Deitou-se em cima dela, enquanto Laura se debatia e tentava arranhá-lo. A língua leitosa
do conde percorria seus lábios, sua nuca e descia até os seios. A mão grossa subia-lhe pelas
coxas até o ventre, tocando-lhe os pêlos. Ele abriu as calças. Tentava penetrar no corpo de
Laura. Ela contorcia-se sem parar. O conde continuava a lambê-la e a sugar-lhe o pescoço. De
repente, os gemidos de prazer do velho deram lugar a um forte grito de dor. Um pedaço de
sua orelha havia sido arrancado. Da boca de Laura escorria um filete de sangue, enquanto um
naco de carne pendia de seus dentes. Urrando de dor, ele se levantou e Laura aproveitou para
fugir em direcção à floresta.

Os espinhos e galhos dos arbustos fechavam o caminho e arranhavam-na em sua corrida de


volta. Seu rosto e corpo iam-se marcando com riscos vermelhos. E quanto mais se machucava,
mais aumentava sua agonia e a velocidade de seus passos, tornando os ferimentos cada vez
mais profundos. Praticamente esgotada, ela chegou em sua casa e contou a Lisa o acontecido.

- O Conde Ângelo D 'Arace - disse Lisa. - Ele é o senhor dessas terras e sei que seria capaz de
fazer isso.

- Ele virá atrás de mim?

- O conde não sabe onde moramos, Laura. Além do mais, não poderá contar a ninguém o que
ocorreu, pois teria que revelar suas intenções. De qualquer forma, não quero vê-la sair de casa
nos próximos dias, entendeu? Vamos esperar tudo isso passar.
Laura assentiu. Abaixou a cabeça e foi sentar-se muda, junto a um tronco. Seu corpo ainda
estava trémulo. As feridas ardiam. Olhou a floresta ao seu redor e para o corpo delicado de sua
mãe. Sentiu como eram vulneráveis e fracas diante do mundo que havia lá fora. Quando
pequena, pensava que sua mãe podia protegê-la de todos os males e de tudo que a
ameaçasse... Um nó apertou o estômago de Laura e ela temeu que as pessoas um dia
pudessem obrigá-la a fazer o que não queria.

Do outro lado da casa, enquanto alimentava os porcos, Lisa viu ao longe a filha chorar, mas
preferiu não importuná-la. Ela também estava preocupada e poderia deixar transparecer sua
insegurança. Lisa conhecia o Conde Ângelo desde pequena. Ele costumava frequentar a casa
de seu pai, Francesco Strezzi. Tinham muitos negócios juntos, mas de uma hora para outra os
dois ficaram inimigos. Ela não sabia bem por quê. O fato é que seu pai ficava furioso só de
ouvir falar o nome dele. Quando morreu, na cidade diziam que os homens do conde o haviam
assassinado. Agora sabia que ele viria atrás de Laura. E talvez ainda pudesse reconhecê-la
também. Todos passariam a saber onde Lisa estava. Lembrou com aflição de todas as
acusações que ouvira antes de deixar Florença. "Prostituta!", "Bruxa!", "Perdida!". Ao saber
que ela ainda estava viva e morava por perto, poderiam vir atrás dela também. Mas fazia já 15
anos... Laura ainda estava em seu ventre. Tentou acalmar-se. Voltou para a frente da casa, em
direcção a Laura.

- Filha!

Laura não estava mais sobre o tronco.

Lisa foi para dentro do casebre. Estava vazio.

Correu para fora e gritou: Laura!

Nenhuma resposta. Olhou em todas as direcções. Seu coração começou a bater mais rápido.
Correu de um lado a outro. Nada. Parou um pouco mais adiante defronte da trilha. Mas já
estava ficando escuro. Não conseguia ver nada. O céu se tornara cinza. Lisa foi perdendo o
fôlego. Estava sozinha. "Pegaram minha filha!" Sentiu-se cercada. A floresta como que se
fechava sobre ela, a ponto de fazê-la recuar assustada. Um passo para trás, mais outro...
esbarrou em alguém atrás de si. Voltou-se surpresa.

- Lisa!

- Oh, Laura, onde você estava, minha filha?

- Fui atrás do Ola. Queria ver o que ele ia fazer. Nossa, você parece nervosa! Aquele homem
veio aqui?

- Não, não, filha. É que você sumiu e então... Bem, deixa para lá. Não importa. Vamos esquecer
o conde. Você deu uma boa lição nele. Ele não vai nos importunar.
Dois dias haviam se passado e nada acontecera. As duas respiravam mais tranquilas. Como não
havia muita comida para o almoço, Laura resolveu aproveitar a manhã para ir pescar no lago.
Pegou a trilha, colocou a tralha próxima à margem e sentou-se de cócoras. Jogou a linha. Logo
sentiu os peixes pequenos mordiscarem a isca, mas não o suficiente para serem fisgados.
Tinham a boca pequena demais para o anzol. Laura foi ficando impaciente. Olhava de um lado
a outro, sem saber o que fazer. Aos poucos as mordidas foram diminuindo até cessar de vez.
Ela tirou a linha fora d'água. Haviam consumido toda a isca. Depois de fazer uma careta,
apanhou outra e a prendeu bem firme ao anzol, jogando a linha de volta. Sentou e procurou
ficar atenta. Mas um ruído diferente vindo da mata chamou sua atenção. Parecia o barulho de
um galho ao quebrar-se, como se alguém o tivesse pisado. Enquanto se virava para verificar,
sentiu um peixe morder firmemente a isca. Parecia ser grande. Laura atrapalhou-se toda
tentando olhar para trás e puxar o peixe ao mesmo tempo. Enquanto recolhia a linha, pensou
ter visto alguém atrás de si. Tirou o peixe da água. Era bem menor do que imaginara. Olhou
para trás novamente, não viu nada.

Ela permaneceu ainda algumas horas no lago, que lhe renderam mais três peixes, até que
decidiu voltar para casa. O caminho era curto, mas bastante tortuoso e fechado. Ao chegar na
clareira, avistou sua mãe. Lisa encontrava-se em pé, em frente à casa, olhando para o outro
lado. Estava a menos de cinquenta metros e Laura surpreendeu-se de que a mãe ainda não a
tivesse visto. Arriscou, então, um grito:

- Lisa! - e exibiu a cesta com os peixes. A mãe voltou-se para ela, mas sua expressão não se
alterou. Parecia que não a tinha visto ou não queria vê-la. Seus olhos guardavam-na em
silêncio. Laura aproximou-se mais e finalmente entendeu. Do outro lado, vinham chegando
três homens a cavalo. Um deles ela reconheceu ser o velho que tentara violentá-la. A
expressão de Lisa era de medo e tentava dizer-lhe para voltar. Mas já era muito tarde.

- Bom dia, senhora. Sou o Conde Ângelo D'Arace, dono dessas terras em que mora. Estes são
meus servos, Umberto e Matteo.

- O que quer?

- Estamos a procura de uma moça... Ah! Vejo que ela está aqui... Esta jovem me agrediu como
um animal. É sua filha, creio.

Laura correu para dentro do casebre.

- Sim, é minha filha e tenho certeza de que não faria nada de mau, se não estivesse ameaçada.
Ela reagiu como qualquer criança que se vê atacada por alguém.

- Tem razão, minha senhora. Ela é uma criança. E por isso não pretendo vê-la condenada pelo
que fez. No entanto, como toda criança, precisa de uma lição.

- Eu já conversei com ela a esse respeito. Agora, por favor, vá embora!

- Embora?! Não sabe que está dentro das minhas terras? Como pode mandar que eu saia de
minha propriedade?

- Essas terras de nada lhe servem.


- Isso quem decide sou eu.

O velho apeou do cavalo, passou por Lisa e entrou no casebre. Ela o seguiu. Laura estava
encolhida sobre o leito.

- Ah, então nos reencontramos! - disse ele.

Laura continuou calada.

- Deixe-a em paz! - disse Lisa com a voz alterada.

O conde voltou o rosto:

- Me diga, quem é a senhora? Por que mora aqui escondida com sua filha? Dizem que esta
floresta está infestada de bruxas. Seria a senhora também uma bruxa? Tem poderes
sobrenaturais? Talvez tenha feito um pacto com o diabo!

Ao dizer isto, o conde soltou uma gargalhada.

E voltando-se para Laura:

- Vamos, minha jovem, venha. Pensava que poderia fazer o que fez e depois esconder-se?

- Ela não teve culpa, o senhor a atacou! - retrucou Lisa desesperada.

- Cale-se! - gritou o velho. - Eu vou levá-la!

- Levá-la para onde? O que pretende fazer?

- Puni-la pelo mal que me fez. Mas depois, se ela mostrar arrependimento, poderei perdoá-la e
mantê-la em meu palácio como uma de minhas servas. Em troca, a senhora poderá continuar
morando aqui.

E, ao dizer isso, avançou em direcção a Laura.

- Não se aproxime dela! - gritou Lisa, colocando-se na frente da filha.

- Oh! Quanta ferocidade! Talvez a senhora pretenda lançar-me um feitiço, transformar-me em


algo!

- Afaste-se!

- Não entendo por que se comporta dessa forma. Posso dar a ela uma vida muito melhor do
que a que tem aqui. Estou disposto até a perdoá-la pelo que fez. Mas já que prefere assim,
terei de levá-la à força!

Nesse instante, Lisa pegou uma foice que guardava na cinta e o ameaçou.

- Isso de nada servirá! - reagiu o conde. - Matteo! Umberto! Venham até aqui! - gritou,
chamando seus servos.
Alguns segundos se passaram sem que viesse qualquer resposta.

- Venham já! - gritou mais uma vez.

Nada aconteceu. Lisa o olhava fixamente.

O conde ficou intrigado.

- Eles se foram, meu senhor. Está sozinho aqui.

- Bobagem, eles jamais me deixariam sem que eu ordenasse.

- Creio que é melhor que o senhor se vá também.

- O que está falando?! Vou chamá-los! - o conde virou-se e olhou para fora do casebre. Não
havia ninguém. Percebeu um clima pesado no ar. Não havia vento, o céu parecia mais escuro.

- Onde diabo eles se meteram? - gritou em voz alta o conde, irritado. Saiu e caminhou alguns
passos. Os cavalos continuavam lá. Mas não havia sinal deles. Ao invés dos servos, viu um
homem muito pequeno, de pele escura, com barba grisalha e vestindo um gorro azul. Ola
estava apoiado em seu ombro.

- Quem é você? - perguntou o conde.

- Sou Danielo.

- O que está fazendo aqui? Onde estão meus servos?

- Servos? Eles não podem ajudá-lo no momento.

- Seu velho maluco! Me diga logo onde eles foram ou lhe cortarei a língua fora e a darei aos
lobos!

- Sua ira lhe será prejudicial, meu senhor. Não deve abusar de seu poder; ele se torna mais
fraco cada vez que é usado.

O conde puxou uma faca de sua bainha e a ergueu diante do velho.

- Talvez acredite no poder desta lâmina, velho estúpido!

Ola soltou um som agudo, agitou as asas e voou em direcção ao conde.

Atrapalhado, tentando livrar-se do pássaro que lhe bicava a face, ele acabou se ferindo com a
própria faca.

- Corvo maldito!

- Faça como seus servos, Conde Ângelo, fuja daqui antes que seja tarde demais - disse Lisa.

Ola parou de agredi-lo e foi até ela, que lhe havia estendido a mão.

O conde então desviou o olhar para Lisa.


- Você não me mete medo, mulher! - Um ruído de dentes rangendo porém o fez emudecer
mais uma vez. Desviou novamente a vista. O pequeno homem sumira e no seu lugar estava um
enorme lobo, todo preto, com os dentes à mostra, pronto para atacar.

O rosto do conde cobriu-se de terror.

- Bruxa maldita! Bruxa maldita! - Assim dizendo, montou em seu cavalo, partindo em
disparada.

Laura e Lisa divertiram-se ao lembrar da fisionomia de medo do conde. Foram salvas pela
chegada oportuna de Danielo, um velho conhecido das duas. O pequeno homem vivia também
na floresta isolado e raramente aparecia. Mas a fama dele era conhecida em toda a região. Na
cidade diziam que ele se transformava em lobo e assim atacava suas vítimas. Afirmavam que
ele era o chefe de todas as bruxas. Por isso, toda vez que alguém desaparecia na floresta ou
era ferido por algum lobo, a responsabilidade era atribuída a Danielo.

Embora o vissem muito pouco, Lisa e Laura sabiam que podiam confiar nele. Algumas vezes lhe
serviram comida e ele sempre foi muito gentil. Apesar da idade, Danielo demonstrava ainda
uma grande agilidade e sabia esgueirar-se pela floresta sem ser visto. Possuía um lobo que o
acompanhava por toda parte e por esta razão muitas vezes confundiam o animal como sendo
ele próprio. Naquela manhã, Danielo encontrara Ola e o achara muito agitado. Pensou que
fosse porque o tempo iria mudar. De qualquer forma, resolveu segui-lo para ver o que havia.
Chegou até o lago e viu Laura pescando. Decidiu ficar por perto. Seguiu-a até sua casa e viu
quando o conde entrou no casebre atrás dela. Aproveitou então para aproximar-se dos servos
que montavam guarda do lado de fora. Ao vê-lo, os olhos dos dois arregalaram-se de medo.
Não foi necessário dizer muita coisa para que eles partissem correndo. Deixaram os próprios
cavalos, enquanto corriam pela floresta, com medo até mesmo de olhar para trás e serem
fulminados. Quando o conde saiu, os servos já haviam partido. Ele próprio conhecia a fama do
velho homenzinho, mas creditava tudo à fantasia do povo mais humilde.

- Ele não voltará mais? - perguntou Laura à sua mãe.

- Esperemos que não, Laura.

Capítulo 2

Sentado em sua cadeira, com o Conde Ângelo à sua frente, o gonfaloneiro olhava de um lado a
outro, tentando desvencilhar-se do assunto incómodo de seu interlocutor. O conde não parava
de falar.

- ... de repente surgiu aquele lobo. O homem pareceu se transformar num lobo. Meus servos
haviam sumido. Eu lhe digo, Fabrízio, precisamos fazer algo contra aquela gente. O povo da
cidade tem medo. Eles destroem plantações, roubam crianças... Fabrízio... Você está me
ouvindo?

- Conde Ângelo. Com todo o respeito que o senhor merece... Nós estamos vivendo um período
de calamidade absoluta. O senhor viu as ruas. A peste está matando toda a população. Eu
mesmo tenho medo de que alguém de minha família seja atingido por esse mal. Que Deus
misericordioso nos poupe desta desgraça. Estamos tentando limpar a cidade, combater a
peste, embora saiba que, contra a vontade divina, nada se pode fazer... Não estamos nem
conseguindo enterrar os cadáveres. O senhor se mudou para seu castelo no campo. Tem
estado um pouco afastado da situação e, para o seu bem, aconselho-o mesmo a manter-se
longe, até que tudo isso passe.

- Fabrízio, quero apenas...

- Então, sr. Ângelo, temos que deixar essas questões menores...

- Questões menores?! Com quem você pensa que está falando, seu traidor de uma figa! Já se
esqueceu de quem foi que o colocou nesta cadeira? Pois saiba que posso tirá-lo daí com um
piscar de olhos e não hesitarei um só instante em fazê-lo se não me der ouvidos. Entendeu
bem? Eu quero que me arrume alguns homens para expulsar todo aquele povo de lá.

- Acalme-se, por favor, conde. Tente entender...

- Ela é uma bruxa, Fabrízio. Tem uma filha que parece uma fera. Me atacou como um animal.
Estão morando nas minhas terras.

- Conde, se der uma volta pela cidade, verá que são inúmeras as casas saqueadas,
abandonadas. As pessoas estão fugindo, deixando todos os seus pertences e muitas vezes os
próprios parentes doentes para trás. Mesmo que eu queira ajudá-lo, não há nada que eu possa
fazer. A situação está fora de controle. Não existe mais lei, não existe mais ordem, apenas
desespero e desgraça. Todos estão rezando para encontrar o fim deste sofrimento, o perdão
de Deus, seja lá qual tenha sido nossa falta.

Conde Ângelo saiu irritado do palácio da magistratura. Na carruagem de volta para casa, não
conseguia conter sua revolta. "Canalha!" e "Traidor!" eram as únicas palavras que saíam de sua
boca. Em sua mente, a imagem de Lisa o atormentava. Era como se, lá de seu casebre,
estivesse a par de tudo e escarnecesse de sua impotência diante dela. Ele a via rindo,
vangloriando-se de como fora capaz de afrontar o grande Conde Ângelo dentro de suas
próprias terras! Sua orelha havia sido parcialmente arrancada. Ficara com aquele defeito pelo
resto de sua vida. E as pessoas acabariam sabendo a causa. Ele seria zombado onde quer que
fosse. Não poderia permitir que aquela mulher perigosa e sua filha selvagem continuassem
habitando aquele lugar. Precisava pensar em algo. E, no entanto, ele não conseguia raciocinar
direito. Talvez devesse levar uma dezena de homens e queimar o casebre. Amarrá-las com
uma corda e arrastá-las pela estrada... Mas onde arrumar os homens necessários? Os poucos
servos que lhe restaram recusavam-se a penetrar na floresta e arriscar qualquer aproximação
com os espíritos do lugar. Preferiam morrer a enfrentá-los. E tinham medo de que qualquer
coisa que fizessem pudesse causar-lhes a peste.

Mas aceitar calado a ofensa que recebera era demais. A imagem de Lisa zombando dele
continuava em sua cabeça, Ângelo remoía-se de ódio. Cada curva do rosto dela parecia
humilhá-lo. Aqueles olhos, o sorriso sarcástico... Onde já vira aquela face? Procurou formar
uma imagem mais nítida em sua mente. Mas agora a imagem lhe fugia. Como se tivesse sido
acuada. Não estava mais ameaçadora; parecia tentar escapar-lhe. Ele a perseguia. E cada vez
que tentava formar o rosto de Lisa novamente, este se desmanchava como fumaça. Quem é
ela? "Aquele rosto... Lisa... Lisa é o nome dela... Onde já o ouvi?" De repente, antes mesmo de
passar por sua mente, uma palavra lhe veio directo à boca:

- Os Strezzi!

Mas sem que tivesse tempo de pensar a respeito, sua atenção foi desviada por uma multidão
que passava à frente da carruagem. O condutor havia parado.

- O que está havendo? - perguntou, colocando a cabeça para fora da janela.

- É uma procissão, senhor! É para pedir a Deus que nos perdoe e pare de nos castigar com a
peste...

Por alguns instantes, o conde mostrou-se exasperado, mas manteve-se em silêncio. E


calmamente esperou que a procissão passasse, enquanto olhava os rostos das pessoas à sua
frente. Eram tristes, melancólicos... Pessoas humildes e ricas, jovens e velhos misturados.
Carregando cruzes e orando. Lágrimas, cabeças baixas, penitentes. Crianças davam a mão às
suas mães e seguiam também, compenetradas, sérias, como se já fossem adultas. Todos
rezavam em voz alta, pedindo misericórdia e exaltando a glória de Deus.

Os gritos eram tão fortes e sofridos que o próprio Conde sentiu-se comovido. Triste ao ver o
cenário de morte e destruição em que se transformara sua cidade. A cidade de que tanto se
orgulhava e da qual ele era um de seus mais nobres representantes. Florença... Nenhuma
outra possuía um espírito tão alegre, uma vida tão animada e uma economia tão próspera...
No entanto, tudo parecia ter-se perdido... Agora ele raramente vinha até lá... Os negócios
haviam praticamente cessado. Não saía de seu castelo. E lá também em sua capela ordenava
que fossem rezadas missas. O que todos queriam era algo que lhes desse esperança. Alguém
que lhes dissesse como acabar com toda essa desgraça. Algo que trouxesse o perdão de
Deus...

- ... Nos livre das garras do Demónio... - Gritava naquele momento a multidão.

Os pensamentos começavam a se embaralhar novamente na mente do Conde. Lisa. "Sim, Lisa


é a Filha de Francesco Strezzi!" ...Mas de que isto lhe serviria agora? Ela saberia que foi ele
que... Dificilmente... Mas se souber, talvez queira prejudicá-lo ainda mais. Os bens de Strezzi.
Ela ainda teria direito a seus bens?

- ... Livrai-nos do mal! - Continuava o coro.


De repente os olhos do Conde se iluminaram. Com uma determinação quase lunática dirigiu-se
ao condutor e gritou:

- Vamos voltar ao palácio da magistratura!

Naqueles mês as regras de Laura chegaram um pouco atrasadas, acompanhadas de cólicas


fortíssimas. Lisa preparou-lhe compressas de água quente e a fez deitar. O volume de sangue
também estava intenso.

- Nossa, filha, creio que de dessa vez suas regras vieram por nós duas.

- Você também está atrasada, Lisa?

- Um pouco.

- As vezes eu gostaria de ficar grávida, só para não ficar menstruada.

- Laura, eu lhe garanto que uma gravidez é mais incómoda do que uma menstruação.

- Você teve que deixar a cidade por causa disso.

- Laura, minha filha, não vamos falar disso de novo. Já faz tanto tempo...

- Você já pensou, Lisa. Se aquele homem, o Conde tivesse conseguido me...

- Conseguido o que?

- Você sabe... Eu poderia ter ficado grávida.

- Laura, Deus sabe quando nos deve dar filhos. Se ficamos grávidas é por que assim tem de ser.

- Aquele homem asqueroso... Você o conhecia?

- O Conde?

- Sim.

- Ele costumava frequentar a casa de seu avô. Mas eu era muito pequena aquela época. Só sei
que depois os dois brigaram e seu avô não parava de xingá-lo. Ficaram inimigos.

- E ele sabe quem é você?

- Não, ele não se lembraria.

- O vovô a expulsou de casa, não é?

- Laura, não vamos recomeçar com essa história de novo. Quando as pessoas da cidade
descobriram como eu fiquei grávida, começaram a me tratar mal. Seu avô culpou Filomena;
ela apanhou e foi expulsa da cidade por minha causa. Quase a mataram. Eu então fugi, vim
atrás dela, ela me acolheu aqui e o resto você já sabe. Eu já lhe contei isso dezenas de vezes.
Agora chega! Não há mais nada a saber.

- Te chamaram de bruxa.

- Laura!

- Mãe... Sabe, desta vez, quando eu vim da cidade, eu tinha me machucado. Parei no lago para
me lavar. O sangue se espalhou pela água e então eu vi uma coisa horrível!

- Não se preocupe com isso, filha.

- Acho que aquelas imagens têm algo a ver com o que esse conde fez comigo.

- É só um mau pressentimento - respondeu Lisa, tentando acalmá-la.

- Eu estou com medo, Lisa. Não quero que nada de mau aconteça.

- Fique calma, não vai acontecer nada com você, minha filha.

- Como você poderá detê-lo?

- Não sei. Mas há mais de uma maneira de se sair vencedor numa batalha.

Lisa e Laura não se afastaram do casebre por vários dias. A própria chuva que caía prolongada
as desestimulava a sair. Demorou muito até que o sol aparecesse, trazendo com ele um novo
alento. Laura sorriu, espreguiçando-se gostosamente. Virou-se e olhou a mãe. Lisa também
parecia estar de bom humor. Ola já não estava mais no seu poleiro. Laura levantou-se e foi até
a porta.

- O dia está lindo, Lisa!

- É, está - Lisa respondeu da cozinha, sem se virar.

Laura saiu. Sentiu a grama ainda húmida sob seus pés e o cheiro delicioso de mato que se
realça após a chuva.

- Lisa, você viu Ola?

Não houve resposta. Ela já havia se afastado a ponto de a mãe não poder mais ouvi-la. Olhou
para o céu. Ainda estava cheio de nuvens, algumas cinzentas, mas podia-se ver o azul entre as
brechas e os raios de sol que se projectavam através delas. Laura respirou fundo e fechou os
olhos. Abriu os braços e começou a girar. Nos seus lábios o sorriso continuava. Foi ficando
tonta. Seus pés tropeçaram em algo e ela caiu. Ficou de lado, quase deitada sobre a relva, o
cabelo sobre o rosto, rindo de si própria. Desajeitadamente tirava o cabelo da face, tentando
ver o que a havia feito cair. De repente seu corpo inteiro teve um sobressalto. A figura
ensanguentada de um animal jazia a um palmo de seu nariz. Afastou-se rapidamente, com os
calcanhares. Os olhos fixos. Era um pássaro. Logo percebeu que se tratava de Ola. Alguma
coisa o havia atingido. O rosto de Laura se desfigurou. Aflita, gritou pela mãe.

Lisa ouviu e dirigiu-se correndo até ela, enquanto Laura permanecia imóvel ao lado da ave.
- Oh, Laura. É Ola! Ele está morto!

- Filomena...

- Céus! Isso não é um bom sinal, minha filha!

- Morto...

- ... Não é possível! Quem fez isso?

As duas se olharam em silêncio. Começaram a ouvir ao longe barulho de patas de cavalo. E


vozes, gritos misturados. Os sons vinham se aproximando, tornando-se a cada minuto mais
fortes. Tentavam desembaraçar os sons e o pouco que entendiam soava desesperador.

- Laura, fuja agora e, aconteça o que acontecer, não olhe para trás!

Laura ficou paralisada por alguns instantes, sem saber o que decidir. Até que ouviu sua mãe
repetir a ordem em um tom que jamais ouvira. Uma voz tão grave, profunda, quase rouca, que
não parecia ser de Lisa. Como se viesse de outro mundo. Laura não pôde fazer outra coisa
senão obedecer. Ao encontrar-se numa posição segura, porém, deteve-se. Não quis partir sem
Lisa.

Então, o que vira apenas em pedaços confusos nas águas do lago se concretizou bem diante de
seus olhos. Superava em horror tudo o que Laura jamais pudera imaginar. Uma multidão
enfurecida chegou até onde estava sua mãe. Eram centenas de pessoas. Agarraram Lisa e a
espancaram, torturaram e judiaram das formas mais atrozes. Em seguida, prenderam-na em
um poste sob o qual ardia uma fogueira. As imagens ficaram estampadas diante de seus olhos
por um longo tempo, realçadas pelo cheiro de carne queimada que impregnava suas narinas.

Sentiu como se ela própria estivesse queimando naquele fogo. No entanto, Laura estava salva.
De qualquer forma, não tinha certeza se isso fazia alguma diferença. Nada mais lhe restava.

Eles ainda procuraram longamente por Laura e por pouco não a encontraram. Acabaram
dando-se por satisfeitos em apanhar apenas sua mãe. Havia muita gente. Era como uma
procissão. Homens, mulheres, velhos e até crianças fizeram aquela peregrinação floresta
adentro apenas para prender e matar sua mãe, tendo, à frente, o velho Conde D'Arace. Eles
carregavam paus. Gritavam de olhos arregalados: "Morte à Bruxa!", "Maldita!". E falavam da
peste. Tudo parecia estranho e irreal para Laura. Fizeram discursos ao lado do fogo. Diziam
que Lisa havia disseminado o mal para destruí-los. E que, se acabassem com as "lacaias do
diabo", Deus traria de volta a saúde a todos. Enquanto sua mãe queimava nas chamas, o povo
rezava ao redor.

Laura vagou por vários dias. Seu corpo caminhava a esmo, sem comando. Na mente, apenas
aquelas cenas. Sentia uma dor diferente de tudo o que já havia sentido. Como se algo estivesse
arranhando suas entranhas. Estava só, totalmente só. Passou noites sem dormir e sem comer.
Esquecera-se de seu corpo. Apenas seus pensamentos existiam e o resto não passava de uma
carcaça vazia andando para lugar nenhum.
Sem saber como nem por que, chegou à cidade. Sua roupa estava rasgada e suja. Seu corpo
em frangalhos mal conseguia manter-se em pé. Somente os olhos conservavam um brilho
intenso, mirando o infinito. Mas ninguém a notava. Era apenas mais uma desesperada
vagando entre tantos outros desesperados, em meio à peste. A movimentação na cidade
acabou fazendo com que ela saísse de dentro de si mesma. E pela primeira vez sentiu as dores
em seu corpo e a fome que a abatia. Uma fome enorme. Olhou de um lado a outro, sem saber
o que fazer para arrumar comida. Continuou caminhando, mas quase não tinha mais forças.
Parou em frente a uma casa para pedir um pedaço de pão. Bateu, mas não obteve resposta.
Dirigiu-se a outra, e mais outra, até chegar a uma cujo portão estava entreaberto. Foi entrando
vagarosamente, aproximando-se da porta de entrada. Levantou o braço para bater, mas
mudou de idéia. Decidiu dar a volta e espiar pela janela. Não viu nada. No entanto, tudo estava
arrumado. A casa não parecia ainda ter sido invadida, como outras que vira. Caminhou mais
um pouco até a outra janela. Estava fechada. Encostou o ouvido... Nada, ou talvez algo, quase
imperceptível. Não conseguia distinguir muito bem. Parecia um choro bem fraco, quase um
gemido. Laura voltou para a porta da frente. Ficou alguns segundos imóvel, até que girou a
maçaneta. Estava aberta. Ela entrou vagarosamente. Viu uma sala ricamente decorada. Nada
estava fora do lugar. Mas a casa parecia estar vazia. Vindo do fundo, por detrás de uma das
portas, Laura continuava ouvindo o choro. Ela atravessou a sala. Aproximou-se da outra porta.
Podia ouvir o som um pouco mais forte. Abriu. Então Laura percebeu claramente que o choro
parecia ser de uma jovem. Ainda não podia vê-la. Vinha do fundo do corredor. Abriu outra
porta e mais outra, até que finalmente a encontrou. Era uma jovem magra, aparentando não
mais que 15 anos. Tinha o rosto pálido, angelical, os cabelos lisos e loiros. Estava deitada na
cama. Vestia uma camisola branca, que quase se confundia com a cor de sua pele. Parecia
muito fraca. Mas ainda conservava uma aparência delicada, realçada por algumas sardas. Ao
ver Laura, ela interrompeu seu choro. Ficou olhando-a fixamente por alguns segundos, até
arriscar a pergunta:

- Você veio me roubar?

Laura não respondeu. Olhou a cesta de frutas na mesa de cabeceira ao lado e apanhou uma
maçã. Em seguida, sentou-se numa cadeira, em frente à cama.

- É melhor você ir embora. Eu estou doente, vou morrer e você pode acabar morrendo
também.

Laura continuou comendo a fruta, ignorando as frases da menina.

- O que você quer? - perguntou ela.

- A porta estava aberta.

- Foram todos embora. Minha mãe, meu pai, meus irmãos. Eles me deixaram, porque estou
com a peste. Eles disseram que se ficassem comigo iriam ficar doentes como eu... - sem fôlego,
a jovem se calou. Começou a ter um ataque de tosse.
Laura parou de mastigar, levantou-se e foi socorrê-la. Arrumou-lhe o travesseiro e o lençol
sobre seu corpo.

Ao recuperar o fôlego, a jovem continuou.

- Eu me chamo Paola, sou filha de Lorenzo Pizzi. E você?

- Sou Laura.

- Você é de Florença? Por que veio até aqui?

Laura parou de prestar atenção nas perguntas e olhou ao redor. Havia muitas imagens de
santos espalhadas pelo quarto, velas e um cheiro de mofo. Ela começou a circular pelo quarto
examinando cada objecto. Então, voltou a ouvir a jovem chorar. Dessa vez de modo
compulsivo e desesperado.

- Oh! Você entrou aqui só para roubar! Eu vou morrer sozinha. Ninguém vai estar ao meu lado!
Nem mesmo minha mãe estará aqui para se despedir de mim! Eu não quero morrer! Eu não
quero morrer!

- Sua mãe a deixou aqui para morrer? - perguntou Laura, finalmente interessada no que
ouvira.

- Oh, sim - respondeu em meio aos soluços.

- Minha mãe... - Laura interrompeu a frase no meio.

- O que tem sua mãe? - perguntou a jovem.

- ...está morta.

- Sinto muito.

Por um momento a menina esqueceu-se de sua própria desgraça e fitou Laura.

- Sua mãe morreu de quê? Oh, que pergunta tola a minha. É claro que ela morreu da peste,
como todo mundo. Você está sozinha?

A jovem continuou falando por um longo tempo, ante o olhar passivo de sua interlocutora, até
finalmente adormecer, vencida pelo cansaço. Laura pensou em pegar o que pudesse e ir
embora. Mas então uma sensação estranha apoderou-se de seu corpo, lembrando de que não
tinha aonde ir. Não tinha mais lar, família ou qualquer pessoa que se preocupasse com ela.
Estava inteiramente só. Sentiu um nó na garganta, seus lábios começaram a tremer. As
lágrimas escorriam silenciosas sobre seu rosto. Logo a figura repugnante do conde lhe veio à
cabeça. Seus dentes amarelados sorrindo para ela. A barriga enorme. A língua percorrendo-lhe
o corpo... E então começou a imaginá-lo preso ao fogo, despido, amarrado como sua mãe. Sua
pele deformando, enrugando ao calor, murchando... O sorriso sendo desfigurado aos poucos,
à medida que os lábios eram consumidos pelas chamas. Ouvia seus gritos de dor, perdendo
força, esvaindo-se com sua vida, até que as chamas consumissem todo seu ser e não restasse
nada além de um amontoado de cinzas. Fazia-o, então, voltar à vida novamente, para mais
uma vez torturá-lo, de outras formas brutais.

O ódio pelo conde tomava conta de seu coração. Desejou ser a mais poderosa das mulheres
para vingar a morte de sua mãe. "Talvez devesse pedir ajuda ao povo da floresta, a Danielo",
pensou. Mas logo a idéia a desanimou. "Afinal, o que poderia ele fazer?"

Passaram-se muitas horas, até que Paola acordou novamente. Assustou-se, mas logo se
acalmou e sorriu ao ver que Laura ainda estava lá.

- Você ainda não foi embora?

- Tome isso - disse Laura, levando uma xícara de chá até a boca de Paola.

- O que é?

- Você não quer ficar boa?

- Eu não ficarei boa. Eu vou morrer.

- Talvez.

- Do que é feito este chá?

- Ervas. Eu fui longe buscá-las.

- Não vi você sair.

- Você dormiu por um longo tempo.

- Elas vão me curar mesmo?

- Não sei... Costumava dar certo.

- Como assim?

- Minha mãe preparava quando eu ficava doente.

- Mas não deu certo com ela.

- Ela quem?

- Sua mãe. Ela não morreu com a peste?

- Não.

Paola engasgou com o chá e teve outro acesso de tosse, derramando parte da bebida sobre si.
Laura apanhou um lenço para enxugá-la.

Enquanto a limpava, viu que Paola a olhava assustada.

- Você não tem medo de me tocar...


Laura sorriu. Em seguida, pôs o lenço de lado e arrumou-lhe os cabelos.

- Obrigada, Laura. Você é muito gentil. Faz dias que estou sozinha nesse quarto... Nem minha
mãe tinha coragem de se aproximar...

As mãos de Laura continuaram percorrendo-lhe o rosto. Paola inclinava levemente a cabeça


em direcção às carícias, buscando as mãos da companheira.

- Você está com febre e toda suada. Precisa de um banho.

Laura então foi até a cozinha, esquentou a água e despejou-a em uma grande bacia que havia
no quarto de Paola.

- Deixe-me ajudá-la.

Ao tirar a camisola de Paola, Laura notou como estava magro e debilitado o corpo dela.
Ajudou-a a entrar na banheira. Ao entrar e sentir a água quente em seu corpo, Paola fez uma
expressão de prazer. Laura ajoelhou-se próximo a ela e começou a lavá-la. Enquanto fazia isto,
a outra apenas a fitava, alegre, desfrutando as massagens em seu corpo e esquecendo por um
momento sua doença e as dores que sentia.

- Laura, de onde você vem?

- Para que você quer saber?

- Porque sim. Vamos, conte.

- Fique quieta.

- Você é diferente das meninas que eu conheço. Aposto que não mora em Florença.

- É verdade.

- O seu jeito... Você parece... uma bruxa!

Ao ouvi-la, o sangue subiu à face de Laura que, num impulso, esbofeteou-a. Afastou-se,
virando-se de costas e respondeu:

- Não quero que você repita esta palavra!!

Paola desatou a chorar e a dizer várias frases sem terminá-las. Estava confusa.

- Eu não queria... eu não queria... Você... vai... mas você é... ou não... Se você for, então...

- Minha mãe morreu sendo acusada disso. O que há de tão terrível no significado dessa
palavra? E se isto é tão mau, o que tem a ver com minha mãe?

Paola continuava chorando. Não ouvia mais o que Laura dizia. Ainda estava dentro da
banheira. A cabeça baixa, os cabelos caindo-lhe sobre a face. Os ombros mexendo com os
soluços que aos poucos se tornavam baixos, quase mudos, mas sem diminuirem o ritmo.
Laura olhou para trás e viu o estado de Paola. Apesar de não ter a menor vontade de
aproximar-se dela, decidiu retirá-la da banheira e vesti-la novamente

- Laura... me desculpe.

- Cale-se. Você fala demais, sabia?

- Me dê sua mão.

- Para quê?

- Para eu sentir que você me perdoou.

- Eu te perdoei.

- Não. Dizer apenas não basta.

De mau humor, Laura pousou a mão sobre as de Paola, que segurou-a firmemente.

- Não me deixe... Não quero morrer sozinha.

Laura olhou-a. Ficaram sentadas na cama, viradas de frente uma para a outra. Então os olhos
de Paola se desviaram para a marca no ombro de Laura. Ela passou levemente os dedos sobre
o sinal.

- O que é?

- A marca de minha iniciação.

- Iniciação?

- É uma cerimónia do povo da floresta...

- Como é ela?

- Chega de perguntas!

Paola interrompeu-se, por alguns instantes, para não irritar Laura novamente. E logo depois
prosseguiu:

- A marca... parece uma unhada... de animal... - disse, afastando os dedos do sinal, como que
assustada.

Olhou novamente Laura e tocou-lhe a face.

- Você é bonita.

Ao dizer isto, aproximou-se lentamente e beijou a testa da amiga. Em seguida, pegou


novamente a mão de Laura e trouxe-a até seu peito.

- Meu coração, Laura... está batendo rápido.


Ela fechou os olhos e continuou movendo a mão de Laura em seu corpo. A respiração
começou a alterar-se e, num estremecimento repentino, sentiu a boca molhada de Laura
tocar-lhe os lábios. Não teve coragem de abrir os olhos. Por alguns segundos ficou tensa,
quase paralisada. Mas a boca da companheira continuava a provocar-lhe, percorrendo-lhe a
nuca, o ombro, mordendo-a. Seus corpos começaram a tocar-se. Mãos com mãos, boca com
boca, seios com seios, pernas com pernas. Os pêlos de uma roçando os da outra.

Febre, calafrios, dor. Paola piorara muito nos dias que se seguiram. Sua pele estava mais
branca do que nunca. Mal tinha forças para falar. Os olhos fundos. Laura guardava-a sentada
no chão ao lado da cama.

- ...Pe... pecado!

- Quê? - perguntou Laura.

- Pecado, Laura. O que fizemos.... pecado mortal. Agora Deus vai me castigar. Não terei direito
...de ir ...ao paraíso.

- Pare um pouco de falar e descanse, Paola. Você está sofrendo à toa, como se...

- Como se o quê?

- ...Como se houvesse ainda alguém que se importasse com o que você faz ou deixa de fazer.

- O que está dizendo?

- Fique quieta e termine de tomar o chá.

- Você tem razão - continuou Paola. - Meu pai me abandonou, minha mãe também... e meus
irmãos... Agora até Deus está me abandonando.

Paola olhava para Laura esperando algum consolo. Porém tudo o que obtinha era um olhar
vazio, que a confundia. Queria continuar falando, mas o cansaço a impedia. Sentiu um frio
percorrer-lhe o corpo. Foi perdendo a consciência. Olhou ao seu redor e não viu mais nada.
Ouviu Laura dizer algo, mas não foi capaz de entender. Por algum tempo tudo permaneceu
escuro, silencioso. De repente sentiu como se estivesse sendo chicoteada. Paula viu-se
acorrentada, suspensa no ar, dentro de uma cela. Seus olhos vislumbravam um homem, ele a
golpeava com força. Ria-se dela. Logo percebeu que havia outras pessoas ao fundo, assistindo
à cena. Paola não era capaz de ver; aos poucos, porém, os rostos começaram a se revelar.
Eram pessoas conhecidas. Seus familiares também estavam lá. Todos riam, menos seus pais.
Eles estavam sérios. Tristes, porém impassíveis frente ao que viam. Como se aceitassem o
castigo a que sua filha estava sendo submetida. De algum lugar uma voz ia lendo com detalhes
todos os atos libidinosos que Paola havia cometido com Laura...

"Abraçada nua com a amiga na cama, as duas se beijaram, se acariciaram, sua língua
percorrendo os seios da companheira, como se fossem amantes, tocando-lhe o sexo, sem
pudor, rindo uma para outra de suas brincadeiras demoníacas e então recomeçando, cada vez
de forma mais ousada."

Sua vergonha diante de toda aquela gente e de seus pais era ainda maior que sua dor. E aquilo
tudo parecia não ter fim. A voz descrevendo seus atos, o chicote ferindo seu corpo. As risadas.
O olhar decepcionado de seus pais...

Percebeu então que, numa das paredes da sala, havia uma pequena janela que dava para um
jardim florido, bastante verde. E nele estava uma jovem, que assistia de longe ao que se
passava dentro da sala. Fixando atentamente, percebeu que era Laura. Estava olhando para
Paola e parecia tentar dizer-lhe algo... Ela a estava chamando... Pedindo que viesse até ela.
Paola olhou, mostrando-se impotente ao chamado da amiga, mas Laura continuava insistindo.

Então Paola olhou para o outro lado e viu a si própria. Seu corpo continuava lá acorrentado,
mas ela já não pertencia mais a ele. Estava livre. Os golpes não lhe doíam. Sentia-se bem. Não
tinha mais vergonha. Ninguém a via. Ela podia ir para onde quisesse. Atravessou a janela,
como se flutuasse no ar. A multidão continuava vendo apenas seu corpo. Então Paola olhou
novamente para Laura e sorriu-lhe. Viu-se num campo lindo, sem fim. Os olhos das duas se
cruzaram. Aproximaram-se e juntas começaram a caminhar. Os pés descalços pisando o chão
macio.

- Está na hora do chá!

- Hãã?

Paola foi acordando aos poucos. Estava em sua cama. Laura, ao seu lado, tentava fazê-la tomar
mais uma xícara de chá.

- Está se sentindo melhor?

- Você... Eu tive um sonho... Pensei que tivesse morrido.

- Você esteve delirando. Estava com muita febre.

- Eu tive medo...

- Deixe isso para lá.

- Há quantos dias estamos juntas aqui?

- Quase uma semana, creio.

- Eu estou me sentindo melhor.

- Você já passou o pior. Logo estará boa.


- E, quando ficar boa, você vai embora?

- ... Creio que sim.

- Para onde?

- ... Não sei ao certo.

- Eu vou ficar sozinha!

- Claro que não. Você tem sua família. Irá procurá-los.

- Venha comigo, Laura!

- ... Talvez, mas antes eu tenho que ir num lugar.

- Eu vou junto.

- Não.

- Você me odeia!

- Não.

- Odeia sim! Preferia até que eu tivesse morrido!

- Não.

- Você só ficou aqui em casa para poder comer e dormir à vontade!

- Não!

- Eu odeio você! Eu odeio você!

Laura olhou a amiga com ar de enfado. Pegou um pão e enfiou-o na boca da companheira para
fazê-la parar de falar.

- Coma.

Em seguida, preparou-se para sair.

- Aonde você vai?

- Eu tenho que ver alguém. Mas logo estarei de volta.

- Promete?

- Prometo.

O caminho que levava de volta à floresta já não parecia mais o mesmo. As árvores estavam
diferentes e até o céu mudara de cor.
Laura passou pelo lago. Estava calmo. Nenhum movimento na superfície. Procurou as imagens
que outrora a assustaram. Mas não havia nada. Nada além de seu próprio rosto refletido. Um
rosto ainda triste, mas que ia endurecendo à medida que o tempo passava.

Continuou caminhando. No lugar onde havia o casebre, restavam apenas cinzas e entulho. Não
teve coragem de se aproximar. Tinha medo de encontrar alguma lembrança que a fizesse
sofrer ainda mais. Olhou do outro lado, procurando o local onde sua mãe havia sido queimada.
Não havia nada. Aproximou-se. Nenhum traço. Colocou-se na posição exacta onde ela havia
sido presa. Mas não pôde notar nenhum sinal. Como se nada tivesse acontecido. De repente,
porém, notou ao redor de si um círculo onde a terra estava mais escura. Um frio veio-lhe ao
peito. E, por um momento, todas as imagens voltaram-lhe à mente. Sentiu o estômago
embrulhar. Cruzou os braços sobre o ventre, curvando-se, como se estivesse sendo atacada.
Uma expressão de dor transformava-lhe a face. Então, suas pernas começaram a mover-se em
passadas longas, desajeitadas, desesperadas, cada vez mais rápidas, correndo para longe dali.
Um tronco queimado, no meio do caminho, a fez cair por terra. Ela permaneceu por alguns
segundos parada no chão, como que para tomar fôlego, até que seus olhos foram
surpreendidos por alguém que a observava, em pé, um pouco mais adiante.

- Danielo!

- Menina Laura. Por onde andou?

- Minha mãe...

- Eu sei...

- Não entendo por que quiseram matá-la. Fui eu quem agrediu o conde.

- É verdade. Mas talvez sua mãe quisesse que as coisas acontecessem dessa forma. Ela deu a
própria vida para aplacar a ira do poderoso conde e em troca salvou a sua.

- E todas aquelas pessoas que estavam lá... Por quê?

- O conde usou de artimanha para trazer aquele povo atrás de si.

- Como assim? Todos gritavam como se minha mãe fosse uma pessoa muito má.

- Querem matar todas as bruxas. Dizem que elas são responsáveis pela peste.

- Mas...

- Ele convenceu o gonfaloneiro a ajudá-lo. Reuniram a população, convocaram voluntários.


Houve outras mortes.

- Isso é horrível.

- Mas ele queria apenas se vingar de mim?

- Não é bem assim, minha filha. Você não conhece toda a história.

- Me conte, Danielo. Eu quero saber.


- O conde era um grande amigo de seu avó e também sócio. Um dia eles brigaram por um
motivo que ninguém se lembra mais qual é. Possuíam disputas de todos os tipos. Até que seu
avô morreu, dizem que assassinado pelos homens do conde. Sua mãe já havia deixado a casa
quando isso aconteceu. Você era bem novinha. Ninguém sabia onde Lisa estava. Concluíram
que morrera e todos os bens de seu avô foram confiscados. Se descobrissem a identidade de
Lisa, isso prejudicaria muita gente... e também o próprio conde, entende? Além disso, a
história da morte de seu avó...

- Então... Quer dizer... Mas quem lhe contou isso?

Danielo sorriu.

- Um velho como eu sabe de muitas coisas, minha filha.

- Danielo, me ajude!

- Eu sempre estarei aqui para ajudá-la, minha filha. Mas sou temido apenas aqui dentro dessa
floresta, Laura, minha jovem. Lá fora, na cidade, não passo de um pobre velho indefeso à
espera da morte.

- O que eu devo fazer? Me sinto só... Eu não saberei viver assim... Não tenho nem para onde
ir...

- Há momentos em que nossa vida chega em uma encruzilhada e temos que tomar uma
decisão. Você agora terá que tomar a sua.

- Que decisão?

- Você poderia conseguir abrigo aqui. Talvez pudesse passar toda sua vida longe do perigo. Sua
mãe afastou-se do convívio da cidade para poder criá-la em paz, com segurança. Fez como os
animais que procuram um lugar tranquilo para ter seus filhotes. Ela enfrentou a solidão e uma
vida rude, pois não queria que você fosse tratada como um fruto mau, porque sabia que você
não era nada disso. Ela quis protegê-la e conseguiu até o final. Agora o filhote de sua mãe está
criado. Virou uma bela moça, inteligente e corajosa. Lisa soube também transmitir-lhe toda a
educação fina que teve. É hora deste filhote decidir se aquele mundo lá fora será seu também
ou se o deixará apenas para os seus inimigos. Se decidir se afastar, tome cuidado, pois seus
inimigos são insaciáveis, vão conquistar cada canto de terra, cada pedaço de chão, cada árvore
da floresta e cedo ou tarde não haverá mais para onde fugir.

- Estão todos morrendo lá na cidade...

- Estão morrendo por aqui também, Laura. Mas a peste passará e as flores brotarão
novamente. Pode estar certa disso.

- Mas o conde pode vir atrás de mim. Acha que devo enfrentá-lo? Sozinha? Não, eu não sei...
Eu não saberia...
- Não tenha medo dos seus inimigos. Eles são menos perigosos que os amigos. O traidor é
sempre alguém que está do nosso lado. Siga seu coração e a oportunidade lhe dirá o que fazer.

Danielo então virou-se para partir. O lobo que o acompanhava estava deitado aos pés dele.
Olhava qualquer coisa ao fundo, parecia disperso, alheio. No entanto, bastou um leve
movimento do dono para que o animal se levantasse imediatamente.

Quando Laura voltou para a casa de Paola, já não encontrou mais ninguém. A casa estava
vazia. Havia sido inteiramente saqueada. Os móveis estavam revirados. Vários objectos
espalhados pelo chão. Laura sentiu-se mais uma vez como se tivesse perdido um ente querido.
Encontrou no meio das coisas uma boneca de pano que Paola segurava o tempo todo quando
estava enferma. Estava rasgada. Um olho havia sido arrancado. Laura segurou-a. Tentou
arrumá-la, procurando no chão o olho para colocá-lo de volta. Mas não foi capaz de encontrá-
lo. Sentou-se na cama e chorou mais uma vez. Em silêncio, com costumava fazer. Afinal, não
haveria ninguém para ouvi-la.

No meio do choro, Laura viu, caída no chão, junto da cabeceira, uma folha de papel dobrada.
Estava pisoteada e rasgada. Laura abriu-a. Era uma carta de Paola:

" Laura, sinto que você não voltará mais. Queria agradecer-lhe por ter-me curado. Gostaria de
levá-la até meus pais, que você viesse morar comigo, como uma irmã. Mas temo que nunca
mais irei vê-la. A casa vazia me trouxe uma sensação esquisita. Estas paredes parecem me
condenar à solidão. Estou sufocada. Fiquei um longo tempo na escada da porta te esperando,
mas em vão. Estou com medo de partir, mas não tenho alternativa. A comida acabou e
algumas pessoas estão rondando a casa. Espero que você seja feliz e que Deus nos perdoe pelo
que aconteceu aqui dentro desta casa.

De sua eterna amiga,

Paola"

Capítulo 3

Com uma coxa de frango na mão, os dedos e a boca lambuzados de gordura, o conde falava
em voz alta, mastigando ao mesmo tempo. Ao seu lado, a esposa e os filhos ouviam-no em
silêncio. Ângelo queixava-se da ausência do segundo filho, Marco.
- É um vagabundo! Mas se ele pensa que irei sustentá-lo, está enganado... (arroto). Não manda
notícias... Se diz poeta... (lava a garganta com um gole de vinho) Há! Poeta.... Sempre viajando.
Gastando meu dinheiro! Meu dinheiro! Há mais de um ano que não manda notícias. Você,
Federico, é um bom filho. Você também, Carlo, embora ainda seja muito pequeno. Doze? -
perguntou para a esposa.

- Dez.

- Mas logo vai crescer.

- E eu? - perguntou a filha.

Antes que o conde tivesse que falar, a mãe respondeu.

- Você também, Giovanna. Além disso é linda e graciosa, vai encontrar um belo marido. Quem
sabe um príncipe! Morar num castelo ainda maior que esse. E terá uma porção de servas.

- Isso mesmo! - aprovou o conde. - Boas falas, Alice, boas falas - disse para a esposa, enquanto
se servia do guisado.

- Pai, você já sabe o que vai fazer com aquele problema dos Ferruzzi? - perguntou Federico.

- Vamos ficar com a terra deles.

- Como?

- Eu fiz um acordo. Não tinham dinheiro para pagar.

- Muito bem feito! - aplaudiu Federico.

- No entanto, você ficou meses para resolver o caso e não foi capaz de fazer nada.

- ....

Federico silenciou e abaixou a cabeça, ressentido com a reprimenda do pai.

- Ora, deixa para lá! - disse o conde, largando o guisado no prato e experimentando o veado.
Ficou comendo por algum tempo em silêncio. Irritava-se ao pensar que Federico não tinha
habilidade para negócios. Em seguida continuou:

- De qualquer forma, a essa altura, as terras não valem mais nada. Essa peste...

- Querido, você não acha que nós deveríamos mudar...

- Não, Alice, nem pense nisso. Nós não vamos deixar Florença. Aqui no campo o mal não irá
chegar. É preciso apenas tomar cuidado. Ao menor sinal de algum doente, precisamos afastá-
lo.

- Nós quase não temos mais servos. Além disso eu temo que as crianças...
- Elas não podem sair de casa. Deus terá piedade de nossa família... Passe-me a torta.

- Você também não deveria sair de casa - protestou Alice.

- Certos assuntos não podem ser postergados. Terei que viajar até Siena em breve. Dizem que
o mal também se alastrou por lá. Está por todo lado. Federico, meu filho, quero que você
venha comigo.

- Sim, senhor.

Ao ver o marido partir, no dia seguinte, Alice sentiu um alívio no peito. Há muito tempo a
presença dele deixara de ser agradável. Seus modos grosseiros, seu jeito de falar, de comer,
seu cheiro... Tudo nele a incomodava. Não conseguia sequer dormir direito ao seu lado. A
simples presença do conde, o calor emanando de seu corpo a fazia sentir-se mal. E no entanto
ela estava presa a ele. Sabia que teria de suportar isso e não poderia rejeitar o próprio marido.
Não se lembrava de quando começou a sentir esta aflição. Mas já ia longe o tempo em que ele,
em algum momento, lhe dera prazer. O prazer tornou-se indiferença e a indiferença foi aos
poucos dando lugar à repugnância. No entanto ela sabia disfarçar seus sentimentos, de tal
modo que ninguém os percebesse, principalmente ele. Com habilidade, tratava também de
manter-se o máximo do tempo afastada do marido. Quando ele a chamava, aproximava-se,
calmamente. Enquanto os dedos do conde tocavam-lhe os braços, puxando-a para junto de si,
Alice sorria-lhe, deixando-se levar. Mantinha os olhos vagos, evitando cruzar com os dele. Seus
movimentos eram suaves de forma a parecerem carinhosos, e assim o satisfazia. Em seguida,
com habilidade, tratava de afastar-se dele o mais rapidamente possível.

Agora que ele tinha partido, teria mais alguns dias de sossego e poderia respirar tranquila.
Ficara apenas com as crianças, pois Federico o acompanhara. E Alice não conseguia conter
uma ponta de remorso ao pensar que também se sentia bem com a ausência do filho. Ela o
amava... Mas Federico era de tal modo apegado ao pai... que por vezes era como se ele a
espionasse e desconfiasse dos seus sentimentos em relação ao conde. Alice sentia como se
tivesse que representar para ele também. Já com Marco era diferente. Alice o amava muito.
Não queria que ele ficasse tanto tempo afastado de casa, mas sua convivência com o pai era
quase impraticável. Quando se viam, sempre brigavam. O conde queria pô-lo a par dos
negócios, ensiná-lo a manusear armas, a caçar, mas em vão.

Ao vê-lo desafiar o pai, Alice tinha um certo prazer, embora não estivesse de acordo com as
idéias do filho. Seu grande consolo eram as duas crianças. Para elas dedicava a maior parte de
seu tempo e era delas que recebia toda sua recompensa.

Depois de ver a carruagem do marido fazer a primeira curva e desaparecer na estrada, Alice
voltou para dentro do castelo. Entrou em seu quarto e despiu-se. Colocou sobre o corpo
apenas um camisolão de dormir. Isso a fez sentir-se ainda mais à vontade, como se tivesse se
liberado de todas as amarras que a prendiam. Emília, a criada que cuidava das crianças,
admirou-se ao ver sua ama vagando pelo castelo naqueles trajes. Chegou a perguntar se ela se
sentia bem. Alice apenas sorriu e garantiu que há tempos não se sentia tão bem. Pediu um
pouco de vinho e chamou o músico para tocar-lhe algo. Passou a manhã assim, rindo e
dançando sozinha. Estava até meio zonza quando vieram perguntar se podiam servir o almoço.

- Mande servir - disse, sem parar de dançar. - E pode deixar que eu mesma chamo as crianças.

Colocou uma capa e saiu atrás de Carlo e Giovanna. Estavam brincando no jardim. Apanhavam
frutos de uma árvore. Ou melhor, alguém os estava jogando para eles de cima da árvore. Alice
curvou-se um pouco para tentar reconhecer a pessoa, mas não pôde. Resolveu chegar mais
perto. Ao vê-la aproximar-se, a pessoa desceu da árvore e saiu correndo.

- Giovanna, Carlo. Já lhes disse para não conversarem com estranhos! Como foi que essa
criatura conseguiu entrar em nosso próprio jardim? Meu Deus, ninguém mais cuida de nada
por aqui! Quem era essa pessoa com quem vocês estavam falando, afinal?

- Ela é nossa amiga, mãe.

- Ah, uma amiga... Sei. Provavelmente era alguém querendo nos roubar!

- Não, mãe, ela vem sempre aqui.

- Sempre?! Como ninguém sabe disso?

- Ela conhece um jeito de passar o muro escondida.

- Ah! Essa agora!

- O nome dela é Laura.

- Então vocês já sabem até mesmo o nome dela. Pois eu não sei onde estou com a cabeça que
não dou um cascudo nos dois. Aliás, nos três, pois Emília também merece uma bela surra!
Deixar vocês falarem com estranhos. Em tempos como os de agora, meu Deus!

- Calma, mãe. A Laura é boazinha.

- É, ela disse que não tem pai nem mãe.

- Muito bem. Pois então você diga a essa Laura, quando ela aparecer de novo, que eu quero
conhecê-la. Está bem? Vou falar sobre isso também com Emília. Agora os dois já para dentro!

Depois de certificar-se de que as crianças haviam entrado, Alice foi até Emília, a pajem.

- Dona Alice, eu juro que não sabia. Eles falavam dessa tal moça mas pensei que fosse
invenção. A senhora sabe, eles vivem inventando coisas. Falam de fadas, de bruxas e
monstros...

- Pois você deveria ficar sempre perto deles para evitar que se metam em encrencas.

- Sim, senhora!

- Eles estão lá dentro, agora. Vá até lá e sirva-lhes o almoço.


- Sim, senhora.

Emília saiu apressada em direcção à parte interna do castelo. Era bastante jovem. Tinha um
rosto bastante humilde e o corpo calejado pelo trabalho, mas ainda conservava uma aparência
bela e delicada.

Alice ficou mais algum tempo do lado de fora, olhando para o jardim. De repente uma
sensação estranha brotou-lhe de dentro. Era tudo muito perfeito. As plantas, a grama, a fonte
de mármore... O castelo em que morava. Havia construído o paraíso na terra e no entanto não
era feliz. Voltou para dentro do castelo. Não quis almoçar. Decidiu deitar-se e descansar um
pouco.

Algumas horas se passaram até Emília retornar esbaforida procurando a sua ama. A fisionomia
deformada pela preocupação.

- Dona Alice, Dona Alice! Nossa Senhora de Jesus! Ai meu Deus do céu, que desgraça!

- O que foi, criatura? Fale logo, vamos.

- As crianças... Dona Alice! Ai, é minha culpa! Eu mereço ser morta, queimarei no inferno!

- Fale de uma vez! O que aconteceu?

- Eles sumiram, Dona Alice! Já procurei por toda a parte. Perguntei à Alberta, aos rapazes da
vila... Ninguém os viu. Ninguém sabe onde eles foram.

- Oh, não, isso não! - exclamou Alice, transtornada. - Você tem certeza de que eles não estão
brincando, escondidos em algum lugar?

- Não, Dona Alice, eu já procurei por tudo. Eles não estão no castelo.

- Céus! Como isso pode acontecer? Temos de achá-los. Mande os rapazes atrás deles. Não
podem estar longe.

- Sim, senhora. Ai de mim! Se acontecer alguma coisa com eles...

- Fique quieta, menina. Você já me atazanou demais por hoje. Vá logo... Eles têm de estar aqui
por perto.

Durante o dia inteiro todos os servos se mobilizaram à procura das duas crianças. Dividiram-se,
procuraram pelos campos, pelas casas, dentro do próprio castelo novamente e até mesmo na
floresta. Nenhum sinal. Já começava a escurecer. Alice não conseguia mais acalmar-se.
Imaginar que eles fossem passar a noite perdidos por aqueles campos ou que talvez tivessem
sido sequestrados a fazia suar frio. Estava inquieta, apertava as mãos constantemente, de olho
na janela, esperando alguma notícia dos criados. Olhava o céu como se pedisse para parar de
escurecer. E no entanto ele nunca lhe parecera tão sombrio. "De que serviria meia dúzia de
homens frente ao poder esmagador daquele céu?"
Emília, com a mão na cabeça, corria de um lado para outro chorando o tempo todo. Os
homens começaram a preparar tochas para continuar a busca durante a noite.

Mas a agonia enfim cessou.

- Eles vêm vindo! Eles vêm vindo! - veio gritando um dos filhos dos servos, ao entrar no
castelo.

- Graças a Deus! - exclamou Alice.

- Eles não estão sozinhos. Vem uma moça junto deles.

- Quem?

- Não sei. É uma moça bonita.

- Isso são modos de falar, menino? - ralhou Emília. - Já para fora!

Alice correu até a janela, mas não conseguiu ver nada. Saiu do castelo e foi ao encontro dos
filhos. Emília corria atrás.

- Mãe!

- Carlo, Giovanna! Por Deus, onde vocês andaram?

- Estavam comigo, senhora. Tentaram me seguir. Eu então os trouxe aqui de volta.

- Quem é você?

- Laura.

- Sim, mãe. Você disse que queria falar com ela, nós fomos buscá-la.

- Onde você mora, Laura?

- ... Não tenho mais casa.

- Entendo... Mas seus pais...

- Eles morreram.

- Mãe, deixa ela ficar com a gente!

- Carlo, deixa eu conversar com a moça. Vocês dois fizeram muito mal em sair assim sem
avisar. Vão levar uma surra por isso! Emília, leve-os e dê-lhes um belo banho. Eles estão
imundos.

- Mas e a Laura, mamãe? Ela não pode dormir com a gente só hoje?

- Eu vou conversar com a Laura. Agora, para dentro e mais nenhum pio.
- Você vai mandar ela embora?

- Ela irá se despedir de vocês antes de partir. Vamos, para dentro!

- Senhora - começou Laura -, não queria...

- Eu fiquei muito preocupada com eles. Mas vejo que você os tratou bem. E isso para mim é o
que importa. Eles disseram que você vem sempre aqui...

- Não, eu...

- Não se acanhe, minha filha. Eu entendo. Vinha pegar algumas frutas no pomar para comer.
Não poderia recriminá-la por estar saciando sua fome. Principalmente em tempos difíceis
como os de hoje.

- Sim... Eles...

- Já imagino que os pães e doces que tiravam da cozinha levavam também a você. Não é
verdade?

- Creio que sim.

- Pois bem, você não terá mais que pegar às escondidas nossa comida e nossas frutas. Posso
imaginar o que esteja passando. Essa peste... Oh, meu Deus! Não tenho mais coragem de ir a
Florença. Deus não me permitiria deixar que uma alma ainda tão jovem como você parta
daqui, deste lar onde nada falta, para um destino sem rumo, em meio a tanta desgraça. Não
poderia deixá-la sair assim, após ter trazido meus filhos sãos e salvos de volta para casa.

- Não se preocupe comigo, senhora.

- Você passará a noite connosco. Eu lhe darei também um pouco de comida.

- Não, realmente, eu...

- Eu insisto.

- Não, não posso.

- Vamos, venha. Além do mais, Carlo e Giovanna ficariam muito tristes se fosse embora assim,
sem dizer nada.

- É que...

- Vamos, o que diz?

- ...

- Muito bem, então venha!


Nem mesmo Laura sabia ao certo por que estava lá. Já há algum tempo rondava o castelo. Era
como se aquela fosse a família mais próxima que lhe restara depois da morte de sua mãe. O
único elo que ainda a vinculava ao resto do mundo. Lá sentia a imagem de sua mãe mais
próxima ao ver diariamente seu algoz. Perguntava-se se estava lá apenas esperando o
momento certo para vingar-se. Só o que sabia é que não queria se afastar. Acabou sendo
flagrada pelas crianças filhas do conde. Elas se tornaram sua fonte de alimento. Quando as
crianças fugiram do castelo e vieram atrás dela, pensou em matá-los. Seria uma boa vingança.
Porém logo afastou essa idéia. Ao contrário, pediu para que elas voltassem. Os dois então
insistiram para que ela viesse junto. Agora lá estava ela. Dentro da casa de seu maior inimigo.
Desfrutando do aconchego e do carinho de sua família. Não podia aceitar aquilo. Instalar-se lá
não estava em seus planos. Era muito arriscado. Alguém poderia reconhecê-la. O conde
poderia chegar. Enfim, pensou, seria apenas por uma noite...

Alice a apresentou a Emília, que lhe arrumou os aposentos e trouxe-lhe um pouco de sopa.

Laura agradeceu. Emília surpreendeu-se com os modos dela, que contrastavam fortemente
com os trajes sujos e esfarrapados que usava.

- Como está a sopa? - perguntou Emília.

- Deliciosa, obrigada. Você cuida das crianças, não é? - perguntou Laura a Emília.

- Faço um pouco de tudo. Eu nasci aqui. Minha mãe trabalhava para o conde antes de morrer e
meu pai também. A Dona Alice sempre cuidou muito bem de mim. Ela é muito boa.

- É verdade - respondeu Laura.

As duas tinham aproximadamente a mesma idade. Emília, porém, era mais baixa. Então Laura
notou que a moça tinha o ventre inchado.

- Você está grávida?

- Oh, isso...

Emília corou ante a pergunta de Laura.

- Não... creio que... não sei. Oh, isso seria muito ruim!

- Há quanto tempo suas regras não vêm?

- Faz tempo, faz muito tempo. Mas elas sempre atrasaram.

- Emília, creio que você está grávida.

De repente, Emília irritou-se com o atrevimento de Laura.

- O que você sabe a respeito? Não quero falar sobre isso com uma estranha! - e, ao dizer isso,
levantou-se apressada.
Laura acompanhou-a com os olhos. Intrigou-se com a atitude da outra. Pensou em pedir-lhe
desculpa mas ela já havia saído. Terminou de tomar a sopa e em seguida foi deitar-se. Embora
estivesse muito cansada, não conseguia dormir. A idéia de que estava dormindo dentro da
casa daquele que foi o principal responsável pela morte de sua mãe, servindo-se de sua
comida, brincando com seus filhos e valendo-se da bondade de sua esposa a deixava confusa.
Não tinha certeza do que pretendia fazer. Sua consciência lhe dizia que devia fugir o quanto
antes daquele lugar. Mas podia sentir claramente que, dentro daquele castelo, o conde não
obtinha mais do que o simples respeito das pessoas. Não era querido nem mesmo por sua
esposa ou por seus filhos. Era temido e sua ausência, um alívio.

Sem conseguir relaxar, Laura detinha-se nos ruídos que povoavam o castelo. Ora e meia passos
em algum lugar, alguma coisa estalando, um ruído... Já devia ser tarde, o tempo passara
rápido. Todos provavelmente dormiam. Deixaram-na sozinha em um aposento. Era
razoavelmente grande e havia lugar para mais pessoas, mas o castelo estava quase vazio. Os
ruídos continuavam... madeira rangendo. Eram passos. Alguém estava caminhando pelo
corredor... Caminhava lentamente. E vinha em sua direcção. Não... Talvez... De repente, a
porta se abriu. Laura levantou-se assustada.

- Emília!

- Desculpe acordá-la, mas eu preciso falar com você. Não posso confiar em mais ninguém.

- O que houve?

- Até agora só você percebeu que...

- Que você está grávida.

- Sim! Mas você não sabe ainda...

- Fale.

- Não quero que ninguém saiba... Não apenas porque não sou casada, mas também porque...

- Vamos, diga. Eu não tenho motivos para trair sua confiança.

- O pai da criança...

- É o conde?

- Hã?

- ....

- Como você sabe?

- Eu não sei, apenas perguntei.


- Laura, eu não quero que ninguém saiba. Eu gosto muito da Dona Alice. Ela sempre me tratou
como uma filha. Além disso, todos iriam me olhar diferente. E o conde jamais reconheceria a
criança como seu filho. Ele me expulsaria daqui. Ninguém mais se interessaria por mim. Oh,
minha vida seria ainda mais desgraçada!

- Acalme-se.

- Eu quero tirar esta criança! Quero tirá-la antes que ela nasça!

- Você não pode...

- Me ajude, Laura.

- Emília...

- Ai de mim! Por que foi acontecer comigo?

- É muito perigoso tentar tirar uma criança do ventre antes de seu nascimento. Você pode
morrer. Tem de afastar essa idéia da cabeça.

- Laura, deve haver alguma forma...

- Esqueça...

Ao ver que não conseguiria o apoio de Laura, Emília revoltou-se.

- Você é igual aos outros! Não sei por que achei que poderia confiar em você! Agora mesmo,
em seus pensamentos, deve estar me julgando, me considerando uma perdida. Quando todos
souberem do meu estado, vai se juntar ao coro dos que irão me crucificar. Pois fique sabendo
que ele me obrigou. Ele sempre vem atrás de mim. Não há nada que eu possa fazer para detê-
lo, entende? Oh, eu o odeio. Odeio todos vocês!

- Emília, pelo amor de Deus, o que você está dizendo? Mesmo que eu quisesse, não saberia
como ajudá-la. Entenda.

Emília não disse mais nem uma palavra. Mantinha a cabeça baixa, e com a mão enxugava as
lágrimas do rosto. Ficou assim por algum tempo, então levantou-se, pedindo desculpas pelo
que dissera e retirou-se, apressada, como se quisesse livrar-se o mais rápido possível daquela
situação constrangedora a que se submetera.

Na manhã seguinte, Laura acordou resolvida a partir. Foi procurar Alice para agradecer a
acolhida.

- Já pretende ir?

- Sim.

- Mas para onde vai?

- Não se preocupe, eu...


- Vamos fazer o seguinte. Estamos quase sem servos no castelo, depois que o mal assolou essa
região. Por que você não fica por mais algum tempo? Poderá ajudar Emília com as crianças.

- Não creio que...

- Ora, Laura, posso ver que você é uma boa moça. Mas para que todo esse orgulho? Fique
connosco. Pelo menos por mais alguns dias.

- Receio que o conde não seja tão compreensivo quanto a senhora. Quando voltar e souber
que há uma estranha em seu castelo...

- O conde ainda demora a voltar. Mas não precisa ficar preocupada. Ele presta pouca atenção
ao que se passa dentro desta casa. Eu me entenderei com ele.

Pestanejando contra si própria, Laura acabou aceitando a oferta de Alice. Durante o dia ajudou
Emília com as crianças e nos trabalhos domésticos, mas evitou tocar no assunto da noite
anterior. Não queria incomodá-la ainda mais. Sentia pena pela outra, embora lamentasse sua
submissão aos desejos do conde. Uma conduta de um servilismo absoluto. Era como um
animal domesticado, sujeito aos humores e às vontades de seu dono. "Emília deveria sentir-se
feliz se for expulsa daqui", pensou Laura. "Ao menos teria uma vida para viver." Alice, ao ver as
duas fazendo as tarefas da casa, notou o humor de Emília e perguntou se ela sentia-se mal.
Esta lhe respondeu com um resmungo, de cabeça baixa. Laura arrumou uma desculpa para a
companheira e empenhou-se em fazer também a parte dela no trabalho, para evitar maiores
problemas.

Em poucos dias, Laura já dominava todo o serviço que lhe fora reservado e conquistara a
simpatia de todos. Alice estava satisfeita e deixava cada vez mais as crianças à vontade
brincando com ela. Mas o tempo estava passando. Todas as manhãs acordava resoluta a partir
e acabava permanecendo. Estava confusa. De um lado gostava da acolhida que recebera e de
Alice, e se dava bem com as crianças. Era como se voltasse a ter um lar. De outro lado, sabia
que em breve o conde voltaria. Tinha medo, embora ficasse excitada com a idéia de encará-lo
mais uma vez frente a frente. Surpreendê-lo dentro de seu próprio lar. Seria sua chance de
precipitar-se sobre ele e cravar-lhe um punhal sobre o peito. Vingar tudo o que fez com sua
mãe.

- Vamos, Laura! - disse Carlo, tentando puxá-la pelo braço.

- Não!

- Ah, vai... Tá quente! - insistiu Giovanna.

- Se sua mãe nos vir, vamos acabar apanhando os três.

- A gente não conta para ela.

- Peçam para a Emília.

- Ela não vai. Tem medo...


- Você são duas pestinhas mesmo, hein?

- Então vamos?

- Tá bom, mas não deixem Dona Alice saber.

- Uau!!

Depois de conseguirem convencer Laura a levá-los, tomaram a trilha que dava até a cachoeira.
A vegetação perto do rio era mais densa e o caminho tortuoso, mas Laura sabia que havia
pouco perigo e o calor daquele dia a fizera sentir vontade de banhar-se também, como fez
tantas vezes na floresta, no tempo em que morava com sua mãe. Logo chegaram à beira do
pequeno lago que se formava na base da cachoeira. A água era transparente e o fundo
formado por pequenas pedras. Atrás da vegetação podia-se ver pedaços da estrada que dava
para o castelo. Era um lugar muito bonito.

As crianças se despiram e pularam na água. Laura sentou-se na beira e as ficou vigiando,


enquanto aproveitava para molhar os pés.

- Você não vai entrar, Laura?

Ela sorriu para os dois, olhou para os lados e começou também a despir-se.

- Não contem para sua mãe!

Ela juntou-se aos dois, mergulhando o corpo e girando-o dentro d'água.

- Eu vi! - disse Carlo.

- Viu o quê? - perguntou Laura.

- Você tem pelinho lá! - exclamou Carlo, rindo e olhando para Giovanna.

- Quando vocês crescerem, também vão ter.

- E meu peito vai ser como o seu? - perguntou Giovanna.

- Ele vai crescer e seu corpo vai chamar a atenção dos meninos - continuou Laura. - Carlo vai
ficar musculoso, a barba irá crescer-lhe...

Os dois riam-se ao ouvir Laura falar. Carlo então ergueu a mão e aproximou os dedos
vagarosamente em direcção aos seios de Laura. Queria tocá-la. Os bicos pontudos pelo
contato com a água o intrigaram. Ela se manteve imóvel, testando a coragem do garoto,
enquanto Giovanna olhava curiosa.

Porém, antes que Carlo chegasse a encostar sua mão, um barulho vindo de trás surpreendeu
os três. Um homem a cavalo os olhava, com uma fisionomia séria.

- O que vocês dois estão fazendo aqui? - falou, sem alterar a expressão do rosto.
Laura deu um pulo para trás assustada e tentou cobrir o corpo dentro d'água.

O homem a cavalo era Federico, o filho que havia partido com o conde. Seu olhar, um misto de
indignação, surpresa e curiosidade diante do corpo nu de Laura ao lado das crianças.

- Nós só viemos tomar um banho! - respondeu Giovanna.

Federico começou a discutir com os pequenos, enquanto mantinha os olhos fixos em Laura.
Intrigado, esperava uma resposta, uma explicação sobre quem era aquela moça, de onde viera
e por que estava ali, nua, se banhando com as crianças. Ela, por sua vez, sabia quem ele era e
temia que junto dele estivesse o conde.

- O Conde Ângelo está de volta também? - perguntou Laura, antes mesmo que Federico lhe
dirigisse a palavra. O rapaz surpreendeu-se com a ousadia da moça em indagar-lhe qualquer
coisa sem antes explicar o que fazia naquele local. Mesmo assim, respondeu.

- O conde se demorará mais alguns dias... Agora, se a senhorita pudesse me esclarecer o que
faz aqui... assim... com... estas crianças que, por acaso, são meus pequenos irmãos...

As crianças responderam por ela, numa profusão de frases misturadas, cujo sentido ele só
entendeu depois, quando, na frente de sua mãe, ouviu toda a história.

- Não lhe parece, minha mãe, que esta... moça... que não sabemos de onde vem...

- Oh, não, ela é uma boa pessoa, Federico. Já pudemos perceber isso. Além de tudo, é muito
educada.

- Mas este episódio de hoje...

- ...Oh, foi uma criancice, uma traquinagem, meu filho. Já lhe dei uma boa bronca.

- ...Ela estava se banhando... também... junto deles, mãe. Estava sem as roupas.

- Federico, eu sei que não foi uma boa coisa o que ela fez. Mas não se preocupe. Tenho certeza
de que você acabará gostando dela também. Agora me diga: quando retorna o conde?

- Em breve. Dentro de dois ou três dias. Disse que tinha alguns assuntos para resolver sozinho.
Mandou que eu voltasse na frente.

- Ótimo, prepararemos um belo banquete para sua volta.

Laura recolhera-se em seus aposentos, envergonhada. O que mais a preocupava, no entanto,


era a idéia da chegada do conde. Passou o dia todo fechada. Então Emília veio chamá-la.

- A condessa quer saber se você... O que é isso?

- O quê?

- O seu cabelo! Você o cortou!


- Estava me incomodando.

- O seu cabelo era lindo. Como teve coragem?

- Achei melhor assim.

- Bem, vá até a sala, a Dona Alice quer vê-la.

Laura já ia saindo quando Emília a chamou de volta.

- Você não contou para ninguém, não é?

- O quê?

- Sobre minha gravidez.

- Emília, eu não contei e em breve não precisarei contar, pois todos irão perceber que você
está grávida. Não sei mesmo como ainda ninguém notou.

- Por favor, Laura, guarde esse segredo para mim.

Laura olhou-a com pena. Até quando ela pensava que poderia esconder aquilo? Sorriu e saiu.

No salão estavam reunidos Alice, Federico e as duas crianças. Haviam terminado o jantar.

- Minha querida, não posso imaginar por que cortou seu cabelo, que era tão bonito. Enfim...
bem... a chamamos aqui para dizer que não vamos mandá-la embora. As crianças gostam
muito de você, assim como todos aqui. Mas você precisa entender que certas coisas...

- Isso não vai mais acontecer, Dona Alice, me desculpe. Quero pedir desculpas também ao sr.
Federico.

Laura o olhou, buscando alguma condescendência, mas a fisionomia dele se manteve


inalterada. Parecia que Federico não simpatizara com ela.

- Bem, vamos esquecer este incidente - continuou Alice. - Emília me contou que você sabe
tocar a flauta. As crianças insistiram em ouvi-la antes de dormir. Pois bem, mostre para nós o
que sabe.

- Oh, não, não, realmente eu não saberia...

- Vamos, minha querida, deixe sua vergonha de lado. Tenho certeza de que se sairá bem.

- Na realidade, eu...

- Vamos, Laura, toque aquela música que você tocou para gente no jardim - insistiu Carlo,
emendado por Giovanna.

Laura olhou mais uma vez para Federico. Tinha vergonha de tocar na frente dele. Ele parecia
incomodado com a sua presença.

- Creio que incomodaria o sr. Federico com minha música infantil.


- Ora, o que é isso! Federico também quer ouvi-la. Não é mesmo, meu filho? - perguntou-lhe
Alice.

Federico, que tentava ignorar a conversa, viu-se obrigado a manifestar-se. Demorou um pouco
para responder. Vendo que todos o aguardavam, virou meio pescoço em direcção a Laura,
esboçou um meio sorriso rápido e disse: "toque", voltando logo depois a cabeça para o outro
lado.

Laura enfim cedeu. Aprendera a tocar com Danielo. Começou a tocar músicas simples,
alegrando as crianças. Aos poucos, porém, suas notas foram se tornando mais densas e
profundas. Era como se revelassem o estado de solidão e tristeza que se escondia em sua
alma. Pareciam confessar todo o sofrimento pelo qual havia passado. Federico aos poucos foi
saindo da sua indiferença. Ao ver seu ar surpreso, por um momento Laura temeu que pudesse
ter realmente deixado transparecer algo. Percebeu que Federico olhava directo nos seus olhos.

Laura então tremeu, a flauta escorregou de seus dedos, fazendo-a desafinar ruidosamente.
Pediu desculpas e tentou continuar, mas já não conseguia mais tocar. A cada nova tentativa
desafinava ainda mais e embaralhava as notas. Alice veio acudi-la.

- Creio que a deixamos cansada, Laura. Você toca lindamente. Talvez um pouco triste demais
para uma jovem como você. Mas, sem dúvida, toca lindamente.

Federico ficou intrigado. Ela o surpreendera mais uma vez. No entanto, desconfiava dela. A
forma como apareceu... Seu comportamento na cachoeira... deixando Carlo quase tocá-la nos
seios... Federico nem teve coragem de contar a Alice. E agora aquela música... estranha...
Havia algo mais... "Ela cortara o cabelo. Por quê?" Com certeza, Laura não contara sua
verdadeira história à sua mãe.

Laura pousou delicadamente a flauta junto à almofada sobre a qual estava sentada e já se
preparava para retirar-se quando Federico a interpelou.

- Muito bonita sua música, Laura.

- Obrigada.

- Creio que não a conhecia. Onde você a aprendeu?

- Ah... Foi... meu tio. Ele que me ensinou.

- Seu tio?

- Sim.

- E como ele se chama?

- Ele já faleceu...

- Sinto muito. Mas qual era mesmo o nome dele? Talvez nossa família o conheça.
- Oh, não, vocês não devem conhecer minha família. Somos pessoas muito simples.

- Mas diga assim mesmo. Quem sabe são parentes de algum de nossos criados?

- Federico, pare de importunar a menina - disse Alice, vindo ao socorro de Laura. - Ela tem
passado por maus bocados. Nós, como bons cristãos, estamos dando-lhe abrigo e comida. Não
nos cabe ficar investigando seu passado.

- Só perguntei o nome de um parente dela...

As crianças haviam pegado a flauta e começaram a tentar tocá-la, produzindo sons agudos e
desconexos.

- Está na hora de ir para a cama! Vamos, já! - disse Alice.

Laura se ofereceu para levar as crianças, aproveitando-se para esquivar-se. Ela estava
preocupada com Federico. Notara sua desconfiança. Com certeza descobririam tudo quando o
conde chegasse. Xingou a si mesma pela idéia estúpida de vir instalar-se ali. Não teria tempo
de fazer nada quando o conde chegasse. Eram muito mais fortes que ela. Eles a dominariam e
prenderiam e seu fim acabaria sendo igual ao de sua mãe. Foi até a cozinha. Não havia
ninguém. Os criados já haviam se recolhido. Sentou-se num banquinho junto a uma mesa e
começou a comer um pouco de pão. Arrancava pedaços com a mão e mergulhava num cálice
de vinho que havia sobrado do jantar. Em seus pensamentos não encontrava outra solução:
teria de fugir dali. E quanto mais cedo melhor! Era a única saída. Fugiria naquela noite mesmo.
Sim! Enquanto todos estivessem dormindo. Dormiria na floresta. Precisava apenas tomar
cuidado com os lobos. Levaria tudo o que pudesse e nunca mais apareceria. Levantou resoluta.
Tinha pressa. Não ficaria naquele lugar nem mais um minuto. Como suportaria ver aquele
velho outra vez, com sua boca pastosa rindo-se dela? Estava servindo o prato daqueles que
mataram sua mãe e a torturaram da forma mais cruel que se pode conceber. Não entendia o
que a levara a fazer tudo aquilo. Correu até seus aposentos para juntar o que era seu. No
caminho, porém, escutou um gemido. Não sabia localizar ao certo de onde vinha. Parecia sair
de trás das paredes da cozinha. Estava escuro. Encontrou uma pequena escada que descia
para uma câmara onde nunca havia entrado. O ruído vinha de lá. Era uma voz familiar.
Começou a descer. O chão estava húmido e sujo. Havia uma porta no fim da escada. Teve
receio de abrir. Mas então escutou uma voz lá dentro gritar:

- Pelo amor de Deus, alguém me ajude!

- Emília!

Uma poça de sangue escorria do corpo dela. Ela estava encolhida num canto da sala. Ao seu
lado um espeto, também ensanguentado. Sua barriga se contraía fortemente e a respiração
era ofegante. Tentava expulsar o feto de seu ventre. Laura chocou-se com aquela cena e por
alguns instantes ficou paralisada. Logo depois correu para junto de Emília. Mas não sabia o que
fazer.

- Me ajude a tirá-lo, Laura! - pediu Emília.


Laura então começou a pressionar-lhe a barriga com as mãos, apertando fortemente, seguidas
vezes, e golpeando-a cada vez com mais violência, enquanto a mandava fazer força.

- Vamos Emília, força! Ele vai sair. Nós vamos tirá-lo!

Finalmente um pequeno corpo disforme foi expelido em meio ao sangue. Estava feito. Laura
enrolou aquela massa de carne avermelhada num pano e jogou fora. Em seguida, buscou
panos para tentar estancar a hemorragia de Emília, que não queria parar.

A noite inteira se foi sem que as duas saíssem daquele lugar. Emília estava muito fraca, quase
inconsciente. Mas a hemorragia havia cessado. Antes que o dia amanhecesse, Laura começou
a limpar o lugar e então tentou levar Emília para seu quarto.

- Tudo vai ficar bem, Emília. Diremos que você veio dormir comigo. E que está se sentindo mal.
Que suas regras estão produzindo cólicas muito fortes e que precisa ficar de cama. Dona Alice
não irá se incomodar.

- Eu pensei que...

- Você foi uma louca de fazer o que fez. Tem muita sorte de estar viva! Usar um espeto, Emília!
Que coisa!

- ... Obrigada, Laura. Sem você, acho que não teria...

- Esqueça.

- Onde você jogou o...

- Não pense nisso, Emília.

Emília não quis permanecer em repouso por muito tempo. Embora Alice não houvesse se
importado com isso, quis logo voltar ao trabalho e cumprir sua rotina diária. Queria esquecer o
acontecido e apagar de sua mente a sensação ruim e a angústia pelo que fizera. E não
demorou muito tempo para que o sorriso maroto voltasse a seus lábios, readquirindo o ar
alegre e o jeito moleque que lhe eram característicos. O segredo da gravidez permaneceu
escondido dos demais. Laura cuidou para que ninguém soubesse. Pouco mais de uma semana
se passou até que algo fizesse com que Laura voltasse a preocupar-se com seus próprios
segredos.

- O conde está chegando! O conde está chegando! - gritou um menino que vinha da estrada.

Nesse instante Laura segurava uma bandeja onde trazia um chá para Alice. Sentiu-se
desmanchar por dentro. As pernas bambearam e um raio percorreu seu peito. Lutou com
todas as suas forças para manter-se com uma aparência natural. Apenas um leve tremor nos
braços fez com que uma gota de chá escorresse para fora da xícara, enquanto a expressão no
rosto mostrou um pequena ruga junto à boca. Foi apenas por alguns segundos, o suficiente
porém para serem notados pelos olhos de Federico, sempre atentos a todos os seus
movimentos.
- Desculpe - disse Laura, referindo-se ao chá que derramara. A mão, ainda trémula, tinha
dificuldade para continuar a operação.

- Deixe a bandeja aí por enquanto, minha filha - disse Alice. - Vamos nos preparar para receber
o conde.

O tom da voz de Alice era calmo e distante. Laura observou-a levantar-se e dirigir-se até a
porta do castelo, acompanhada de Federico e das crianças. Sem saber o que fazer Laura ficou
algum tempo imóvel e então resolveu correr ao seu aposento. No caminho cruzou com Emília.

- Onde você está indo, Laura? O conde está chegando. Temos de ir até a porta recebê-lo.

- Emília, ele não pode me ver!

- O que você está dizendo?

- É uma longa história. Mas você precisa me ajudar a evitar que ele me veja.

- Mas Laura...

- Por favor, Emília...

- ... Sim, mas ...

- Depois eu lhe explico.

Ainda confusa, Emília concordou e foi se juntar aos outros.

A carruagem parou defronte do castelo. Alguns segundos depois a porta se abriu. O conde
desceu de mau humor.

- Diabos! A estrada estava cheia de buracos. Quebramos a roda... Demorou para consertar...

Então, olhando para Alice: - Enfim estou de volta!

Alice esboçou-lhe um sorriso. O conde passou a mão sobre a cabeça das crianças e em seguida
olhou para Federico, fazendo um cumprimento mudo. Emília e os demais criados foram cuidar
da bagagem.

- Que notícias nos traz, meu senhor? - perguntou Alice.

- Boas notícias, minha cara. Boas notícias. A peste parece estar cedendo... pelo menos não
morre mais tanta gente como antes...

- Fez bons negócios, pai?

- Oh sim, Federico, mas disso falaremos depois. Estou com muita fome e preciso me lavar.

- Eu vou mandar Laura preparar-lhe o banho - disse Alice.

- Laura? Quem é Laura?


- Ah, você ainda não a conhece. É uma jovem desamparada. Está aqui connosco... Seus pais
morreram na peste. Ela está ajudando Emília com as crianças. É uma boa menina.

- Você e sua mania de ajudar todos os infelizes que passam pela sua frente, Alice...

- Não se preocupe. Ela tem bons modos e as crianças a adoram. E afinal, nos tempos de hoje...
Não seria cristão abandonar uma jovem indefesa à própria sorte... E além disso...

O conde já havia deixado de prestar atenção no que Alice dizia. Entrou no castelo, recostou-se
na poltrona e pediu algo para beber.

Logo Emília apareceu com uma garrafa de conhaque.

- Onde está Laura? - perguntou Alice.

- Ah... ela... lá dentro... eu...

- Peça para ela ajudá-la a preparar o banho do conde. Mostre-lhe como fazer, sim?

- Sim, senhora!

Instruída por Emília, Laura foi encher a banheira. Que destino absurdo ela própria escolhera
para si, pensou. Preparar o banho daquele homem. Cuidar para que a água esteja quente e
tudo o mais em ordem, para o seu conforto. Por que não fugiu antes? Por que não fugir agora?
Enquanto os pensamentos cruzavam sua mente, seu corpo executava as ordens que lhe eram
dadas. Com um balde derramava água quente dentro da banheira, media a temperatura e
juntava os utensílios que Emília lhe indicara.

- Quanta moleza, Laura! - disse Emília. - Desse jeito o banho do conde irá esfriar antes mesmo
que ele chegue.

- Está pronto - disse ela, sem se virar.

- Ótimo, eu vou avisar.

Na volta, Laura foi obrigada a cruzar pela sala onde estava o conde. Parou um pouco antes da
travessia para tomar fôlego. Podia ouvir a voz dele. Conversava com Alice. Sua voz rouca,
sonora... Laura pensou em recuar. Mas não tinha alternativa. Tinha que passar para atingir o
outro lado do castelo, onde ficavam seus aposentos. Tomou coragem e prendeu a respiração.
Com passos rápidos e a cabeça baixa tentou cruzar o mais rápido possível a distância que a
separava do próxico cómodo. No entanto, não podia acelerar demais os passos, para não
chamar a atenção. Logo se viu no meio do caminho. Totalmente descoberta. Ele poderia notá-
la a qualquer instante. Alice poderia querer chamá-la... Um frio percorreu-lhe a barriga. A
distância parecia interminável e suas passadas tornavam-se cada vez mais largas. Quando
chegou ao extremo oposto, sentiu seu corpo inteiro dormente. Não conseguia sequer andar
mais de forma normal. Resolveu ir até seus aposentos e ficar lá. Só sairia se alguém a
chamasse. Precisava pensar... Aquela noite seria sua última chance de fugir ou de... vingar-se!
Poderia envenenar-lhe a comida, esgueirar-se até seus aposentos enquanto estivesse
dormindo... Tinha a vantagem da surpresa. Ele jamais imaginaria que em sua própria casa
dormia aquela cuja mãe morrera pela sua prepotência. Estava confusa. Caminhou até a janela
estreita. Tentou ver a lua, mas não conseguiu. Apenas seu clarão, refletido em algumas
nuvens. Mirou o infinito e naquela posição permaneceu. Horas sem se mover. O olhar na
mesma direcção, em busca de uma resposta.

"- A menina estava na floresta colhendo frutos e então apareceu o lobo e... uau!", avançou
sobre ela. 'Socorro! Socorro!', gritou, enquanto corria em disparada. O lobo vinha atrás,
mostrando os dentes e tentando mordê-la. Esperta, ela subiu em uma árvore..."

- Não, Laura, o lobo tem de pegar a menina! - disse Carlo, transtornado.

- Deixa de ser bobo! - retrucou Giovanna.

- Muito bem, vamos então deixar sem final, assim não tem briga, pronto. Acabou a
brincadeira!

Laura deixou de lado as marionetes com as quais tentava entreter as crianças e sentou-se na
grama.

- Ah, Laura, continua... vai!

- Não. Vocês, em vez de prestarem atenção na história, ficam dando palpite o tempo todo.

Olhando-os de longe estava Federico. Laura já havia notado sua presença. Tinha o mesmo
olhar desconfiado com o qual o vira pela primeira vez. Ele a observava o dia inteiro, sempre
guardando uma certa distância. Era como se soubesse de tudo e apenas aguardasse a melhor
hora para desmascará-la. Demorou até que Laura percebesse a razão verdadeira do seu
comportamento. No início sentia-se amedrontada. Receava que ele descobrisse algo, mas
então viu que Federico se sentia atraído por ela. Provavelmente desde quando a vira pela
primeira vez, nua, tomando banho na cachoeira... No entanto, isso o fazia sentir-se mal. Lutava
contra seus instintos. Não podia admitir que uma jovem de classe tão baixa pudesse provocar
tal rebuliço em seu peito. Eram sensações novas para ele. Nunca conhecera outra mulher.
Sempre fora tímido. As poucas jovens de família que conhecera não lhe davam a menor
atenção. Laura sabia que não precisava temê-lo. Mas ainda assim a presença dele a
incomodava.

Fazia quase uma semana que o conde havia chegado. Não prestara ainda atenção em Laura.
Ela se mantinha longe de seus olhos quase todo o tempo. Quando devia passar por ele, o fazia
com a cabeça baixa, de forma a esconder-se. Até então havia dado certo. Laura sabia que não
poderia continuar daquela forma por muito tempo, ainda sim algo a fazia ficar. Partir seria
como abandonar de vez a imagem de sua mãe. Embora não tivesse força para enfrentá-lo, não
queria desistir.

Depois de entreter as crianças, foi auxiliar Emília nas tarefas domésticas.

- Me conte, Laura!

- O quê?

- Não se faça de desentendida. Eu a estou ajudando a esquivar-se do conde, mas se você não
me falar por que tem de fugir dele, não vou mais continuar com isso. Daqui a pouco todos vão
começar a desconfiar...

- Emília, é melhor você não saber... Mas não se preocupe. Eu vou-me embora.

- Por quê, criatura? Aqui você tem tudo: comida, abrigo... Para onde você vai?

- Não sei...

- Laura, eu sou sua amiga. Você pode confiar em mim. Conte-me!

- Me deixe sossegada, Emília. Sim?

Nesse momento, entrou Alice.

- Oh, céus. Como é horrível viver sem criados! Vocês duas são praticamente as únicas para
cuidar desse castelo inteiro. Espero que Deus acabe logo com esta peste e as coisas voltem
logo ao normal. Enfim... O conde deseja comer agora. Peçam para Alberta preparar a comida.
Mas é preciso que vocês a ajudem. Ela está tão velha... Mal consegue andar.

- Sim, senhora!

As duas fizeram como mandado.

- Dessa vez não vou servir a mesa sozinha, Laura. Ou você me conta por que tem tanto medo
do conde, ou cuidarei para que você tenha de servir-lhe o vinho. Vai ficar a dois palmos de
distância dele, e ainda terá de aturá-lo olhar-lhe os seios sob o decote...

- Ora, Emília, eu não tenho medo dele!

- Não? Muito bem, aqui está. Tome! Leve até a mesa.

Emília colocou o garrafão de vinho nas mãos de Laura e olhou-a desafiadora.

Laura tentou manter a pose firme, mas não conseguia decidir-se sobre o que fazer.

Alberta estava lá também. Mas a pobre velha já não era capaz de acompanhar uma conversa.
Vivia num mundo particular, que se resumia em executar sua rotina diária, junto ao fogo,
mexendo no caldeirão, tudo o que fizera durante toda a sua vida.
Alice surgiu novamente.

- Por que vocês estão demorando tanto para... Ah, muito bem, o vinho! Leve até o conde,
Laura, ele já está reclamando.

Laura não se moveu.

- O que há com você, minha filha? - perguntou Alice.

- Nada, é que...

- Pode deixar que eu levo - disse Emília, tentando socorrer a amiga.

- Não, ajude Alberta na sobremesa.

- Venha, Laura, rápido!

Emília ia inventar ainda alguma desculpa qualquer para tomar o lugar de Laura. Mas esta,
então, virou-se resoluta em direcção à porta e acompanhou Alice até a sala, carregando o
vinho. Sentiu seu estômago queimar. A respiração foi ficando difícil e os músculos cada vez
mais tensos. Tentava manter a fisionomia natural, mas sua face estava alterada. Os lábios
trémulos. Do pescoço, uma veia saltava como se Laura estivesse gritando, mas seu grito era
para dentro de si mesma, um grito de guerra contra o inimigo que iria enfrentar.

Na mesa estavam todos já sentados. Carlo, Giovanna, Federico e o conde. Federico foi o
primeiro a vê-la entrar. O conde já estava comendo uma codorna. A cabeça baixa, os dedos
sujos de gordura. Laura aproximou-se. Ele pegou a taça e ergueu-a para que ela a enchesse.
Enquanto despejava o vinho, Laura sentiu-lhe novamente o cheiro azedo, igual ao da primeira
vez que o vira, porém dessa vez misturado ao da comida. Ele não a olhava directamente.
Continuava comendo e falando sozinho enquanto os outros apenas escutavam. Laura
terminou de encher-lhe a taça e ergueu a garrafa. Nesse movimento, algumas gotas de vinho
caíram sobre a mão do conde. Ele então a olhou e, em seguida, virou-se para Alice:

- Quem é?

- É Laura, a jovem de quem eu lhe falei; ela perdeu os pais...

Laura continuou servindo o vinho aos demais.

Enquanto ouvia Alice, o conde continuou a examiná-la. Laura, porém, já não estava mais
totalmente de frente.

- Mais vinho! - O conde ergueu a taça novamente para que Laura a enchesse.

Ela então virou-se e foi caminhando até ele novamente. Agora estavam frente a frente, olhos
nos olhos. Foram alguns segundos... e, de repente, a expressão do conde se alterou.
Transfigurou-se em espanto e horror. Começou a gritar:

- Brux..!
Mas, ao tentar falar, engasgou. Um pedaço de osso prendeu-se na garganta. Ele levantou
tossindo, apontando para Laura. Tinha os olhos arregalados. O rosto vermelho. Começou a
sentir falta de ar. Federico levantou-se correndo para tentar socorrê-lo. Bateu-lhe nas costas.
O osso continuava preso. O conde curvou-se até cair no chão. Continuava tossindo. Não
conseguia mais respirar. Laura ficou imóvel sem saber o que fazer, com o vinho na mão. Alice
segurou as crianças, enquanto Federico se sentou sobre o conde e tentou enfiar a mão em sua
garganta, para retirar o osso. Mas ele estava muito agitado, não parava de se debater.

- Ele está sufocando! - gritou Federico. - Me ajudem! - O rosto do conde foi ficando roxo. Seus
olhos cada vez mais esbugalhados. - Não consigo enfiar a mão! Sua língua não deixa. Segurem
sua língua!

Emília chamou alguns servos para ajudar.

- Temos de tirar o osso! Ele não consegue respirar!

Começaram todos a se amontoar em volta do conde.

- Segurem o braço dele!

- Não adianta!

- O coração dele está disparado!

- Ajudem, ele está morrendo!

Capítulo 4

- Ficaram ótimas! Você está linda assim.

Laura riu-se envergonhada e agradeceu as roupas que ganhara.

- Não precisava se incomodar, Dona Alice. Eu não tenho onde usar o vestido...

- Ora, minha querida, as festas de fim de ano estão chegando. Serão uma boa oportunidade.
Além disso, você não poderia passar o inverno com as roupas que tinha. Morreria congelada!

- Obrigada.

Alice ajeitava alguns detalhes no vestido de Laura e então a fitava, alegre por vê-la tão bela.
Estavam cada vez mais apegadas. Desde a morte do conde, a posição de Laura na casa mudara
muito. Não era mais tratada como uma serva, mas como alguém da família. A própria Emília a
considerava numa posição superior à dela. O jeito meigo com que tratava as crianças e os
modos educados cativaram o coração da condessa, até então acostumada apenas com a rude
companhia de Emília. Durante as noites de inverno, Laura estava sempre presente no salão
principal, tocando algum instrumento, cantando ou brincando com as crianças no chão, em
frente à lareira. Laura, por sua vez, sentia-se cada vez mais à vontade no castelo. Gostava de
Alice e das crianças. Emília era também uma boa companheira. Nada mais ela tinha para
temer. Poderia viver lá para sempre, se quisesse, excepto por Federico. Seu olhar continuava
inquiridor. Quando o conde morreu, Federico insistiu com a mãe que o pai se assustara ao ver
Laura, pouco antes de engasgar. Alice, porém, não dava atenção ao filho. Por mais que ele
tentasse argumentar que havia algo errado, era em vão. Ela se sentia muito bem tendo Laura
ao seu lado e não queria que isso acabasse. Mesmo se ela própria também tivesse percebido
algo no rosto do conde ao guardar Laura naquele dia, ou no comportamento dela, jamais
levaria em consideração. Mas para Federico era diferente. Laura o perturbava, era um
incómodo aos seus sentimentos. Queria saber exactamente quem era ela, de onde veio e por
que seu pai teve medo ao vê-la. Sim, ele tinha certeza de que o conde se assustara. Ela tentou
cortar o cabelo para disfarçar... Relembrando os dias que antecederam o acontecido, percebeu
que Laura evitava encontrar-se frente a frente com o conde. Porém nada disso era suficiente.
Federico aguardava um passo em falso, alguma prova irrefutável, diante da qual Alice não
tivesse outra escolha senão exigir de Laura toda a verdade.

Ao ver a forma como a mãe tratava Laura, Federico irritava-se ainda mais.

- Bonito vestido - disse Federico, ao ver Laura usando a roupa da mãe. - Um pouco alegre
talvez para o momento que nossa família vem passando. Afinal, não faz nem três meses que
meu pai se foi ...

Laura podia entender o significado das palavras de Federico. Ao mesmo tempo que a
irritavam, deixavam-na temerosa.

- Creio que tem razão, sr. Federico. Vou tirá-lo imediatamente.

Nesse instante entrou um menino na sala gritando:

- Está chegando! Está chegando!

- Quem está chegando, criatura? Fale! - perguntou Federico.

- O sr. Marco, seu irmão!

Federico demorou algum tempo para reagir.

- Que seja bem-vindo - disse ele finalmente, tentando esboçar alguma satisfação na face.

Alice, ouvindo de longe a notícia, correu para a sala a fim de conferi-la.

- Oh, Deus ouviu nossas preces! Há quanto tempo não o víamos. Meu filho está de volta! Ele
deve ter recebido a carta que falava de seu pai. É pena que retorne para casa numa situação
como esta, mas enfim... Vamos aguardá-lo lá fora! Quero vê-lo. Venha Federico. Venha Laura!
Vamos!
A chegada de Marco alegrou todos os servos. Ele era bastante querido. Tinha o jeito alegre,
brincalhão e sabia cativar as pessoas. O momento, porém, não permitia manifestações muito
expansivas. Estava sério. Guardou o sorriso maroto somente até o momento em que pôs os
olhos em sua mãe. Carlo e Giovanna pulavam ao seu redor, enquanto Federico o guardava,
mantendo-se um pouco mais atrás. A ele, Marco fez uma saudação simples, que a retribuiu da
mesma forma.

Logo depois, já dentro do castelo, colocou-se mais a par da morte do conde.

- Não posso crer que meu pai tenha morrido de forma tão banal - comentou, ao ouvir toda a
história.

- Talvez não tenha sido tão banal assim - disse Federico.

- O que quer dizer?

- Oh, de novo não, meu filho. Essa história... - protestou Alice. - Laura é um doce de criatura.

- Laura? - perguntou Marco.

- Sim, uma jovem que está morando connosco há pouco tempo. Ela perdeu a família na
peste... Mas, aí vem ela - disse a condessa.

Laura então fez uma reverência a Marco, curvando-se. Estava ainda usando o vestido que Alice
lhe dera. Sentiu que o agradara.

- Que bela jovem tens em casa, mãe. Mas... creio que... eu a conheço!

- Você a conhece? - perguntou Federico.

- Você... não é... Não, não, creio que me enganei.

Por um momento Laura temeu ser desmascarada. Mas não se lembrava de jamais ter visto
Marco anteriormente. Intrigou-se com a reacção dele.

- Mas o que você dizia mesmo, irmão, sobre a morte de nosso pai? - perguntou Marco.

Federico desistiu de expor suas dúvidas e mudou o rumo da conversa:

- Veio para ficar?

- Não se preocupe, meu caro, não venho roubar-lhe o controle dos negócios de nosso pai.
Venho apenas em respeito à morte daquele que me gerou. Embora minhas relações com ele
tenham sido sempre as piores possíveis, não posso esquecer o fato de que o conde foi meu
pai, e, como tal, devo-lhe todo o respeito. Partirei em breve novamente e não pretendo levar
nada além do que trouxe comigo.

- Meu filho - disse Alice. - Por que você não fica connosco? Sentimos todos a sua falta.
- Eu também senti falta da senhora, minha mãe, e de todos aqui. Mas a estrada é o meu
destino. A vida seria tediosa demais para mim se permanecesse em um só lugar.

- Nem por isso é necessário que viva com pouco dinheiro - emendou Federico. - Você é um
D'Arace e tem direito à herança de nosso pai.

- Obrigado, irmão. Mas, por enquanto, nada me falta.

Alice não conteve sua decepção ao ouvir que Marco pretendia partir novamente.

- Bem, não é hora de falarmos em partida. Você acaba de chegar, meu filho, isso é o que
importa no momento.

Marco, Federico e Alice ficaram até tarde conversando na sala, defronte à lareira. O filho
recém-chegado contou todas as suas histórias sobre os lugares por que passara e como tinha
vivido todo aquele tempo.

Emília e Laura, na cozinha, enquanto descascavam cebola, conversavam sobre as qualidades


de Marco e a forma especial com que ele tratava todos os servos.

- É um homem e tanto. Nem um pouco parecido com o irmão. Existe um monte de moças
loucas para roubar-lhe o coração e esposá-lo. Ele, porém, não é do tipo que gosta de se casar.

- Ele não se parece em nada com o irmão - disse Laura.

- Realmente, são com água e vinho. Marco sempre foi melhor em tudo. Federico tem inveja
dele. O conde queria que ele cuidasse dos negócios, embora Federico seja o filho mais velho...
Mas Marco nunca se deu bem com o pai.

- Não o culpo por isso - disse Laura.

Emília aproximou-se e em voz baixa disse:

- Você continua sem explicar essa sua aversão ao conde. Um dia vou fazê-la me contar essa
história direitinho.

- Esqueça, Emília. Não basta o que aquele homem fez com você?

- É, mas foi comigo, Laura. Você, que eu saiba, não conhecia o conde antes.

- Esqueça.

A chegada de Marco trouxe um novo ritmo ao castelo. Estava sempre divertindo todos ao seu
redor. Até mesmo as visitas aumentaram. Muitas jovens, ao saberem da chegada de Marco,
encontraram logo um pretexto para ir vê-lo. Laura e Emília acabaram tendo de trabalhar em
dobro. Entravam e saíam da cozinha, levando doces e bebidas aos visitantes.

Algumas vezes, Marco convidava Laura para sentar-se na sala, junto às visitas. Embora ela
timidamente sempre procurasse esquivar-se, ele a fazia ficar. Algumas das moças que
visitavam o castelo ficavam enciumadas ao ver a forma carinhosa como ele a tratava, mas
procuravam a todo custo dissimular. Uma das jovens mais interessadas em Marco era
Verónica, filha de um importante político de Florença. Verónica estava frequentemente no
castelo sob diferentes pretextos, acompanhada da mãe. Certa vez, Marco estava na sala
acompanhado dela e de outros convidados, quando Laura veio servir vinho. Ele puxou uma
banqueta e pediu-lhe que se sentasse.

- Tome um gole connosco, Laura! - disse, enchendo-lhe um copo de vinho.

Depois de tentar em vão safar-se, Laura cedeu. Sentou-se. Tomou meio cálice e fez menção de
levantar-se. Não que Laura desgostasse de Marco. Achava-o bonito e atraente, mas não podia
esquecer de quem ele era filho. Além disso, sentia-se constrangida aos olhos das outras moças
que visitavam o castelo.

- Laura é como uma irmã para nós - repetiu Marco a todos, como fazia frequentemente. Em
seguida, pôs a mão sobre os ombros dela, impedindo-a de escapar.

Verónica, que estava mais perto de Marco, também insistiu para que ela ficasse.

- Laura, minha querida, tome seu vinho. Os músicos que Marco trouxe da vila vão começar
uma cantiga agora. Fique para ouvi-la connosco.

- Srta. Verónica, não desejo atrapalhar a conversa de vocês. Tenho de ajudar Dona Alice em
algumas coisas...

- Ora, Laura, você vive paparicando minha mãe. Fique aqui connosco e divirta-se.

Nesse momento, os músicos começaram a tocar. Alguns dos casais presentes iniciaram a
formação para uma dança. Marco então puxou Laura e juntou-se a eles.

- Oh, não, sr. Marco, creio que...

- Vamos, Laura! - insistiu ele, obrigando-a a aceitar.

Laura, envergonhada, não conseguia acompanhá-lo. Logo as brincadeiras dele e dos demais
casais foram deixando-a mais à vontade. Riam e giravam pelo salão, aos olhos enciumados de
Verónica, que, sem par, ficara assistindo, cantarolando também, para não parecer enciumada.

Atraído pelo barulho, Federico entrou no salão. Conteve sua ira ao ver o irmão se entretendo
com Laura. Aproximou-se de Verónica e ficou assistindo.

- Vejo que meu irmão a deixou desamparada, srta. Verónica.

- Oh, sr. Federico, não, não. Ele está apenas dançando com a... serva.... quero dizer.... com
Laura.

- Não sabia que Laura, além de todos os dotes que conhecemos, é também uma excelente
dançarina - disse Federico, ironicamente.

- Muito simpática, esta moça Laura. O senhor não acha, sr. Federico?
- Oh sim, muito simpática.

- Dona Alice disse que ela perdeu os pais...

- Sim, é verdade. Minha mãe apiedou-se da sorte de Laura e a fez morar no castelo.

- Vejo bem que ela tem muito mais regalias que uma simples serva.

- Ah, sem dúvida. Minha mãe a trata quase como uma filha.

- E Marco, sem dúvida, a trata como uma irmã.

Federico percebeu onde Verónica queria chegar e emendou-a.

- Creio até que a trata melhor que a uma irmã.

- O que quer dizer?

- Quero dizer que ele tem cuidados especiais para com ela.

- Ele estaria talvez interessado nela?

Federico conteve o riso ao ver a aflição na face de Verónica.

- Srta. Verónica. Não creio que Marco fosse capaz de interessar-se por Laura, com tantas
jovens lindíssimas do mais fino trato e da mais alta linhagem ao seu redor.

Verónica ruborizou-se. Ficou alguns segundos em silêncio e, em seguida, arriscou uma


pergunta directa a Federico:

- Me corrija se estiver enganada, sr. Federico, mas me parece que a única pessoa a quem Laura
não agrada nesse castelo é o senhor.

- Talvez tenha razão, minha cara.

- E poderia saber a razão?

Federico silenciou por alguns instantes e então falou:

- Há um mistério sobre ela que me perturba.

- Mistério?

- Sim, creio que...

Nesse momento, Marco e Laura se aproximaram. Estavam alegres e sorridentes, contrastando


com o clima gélido de Federico e Verónica.

- Irmão - disse Marco a Federico. - Por que você e Verónica não dançam também? Este grupo é
muito divertido.
Federico já ia puxar sua parceira para a dança quando esta declinou da sugestão de Marco.

- Creio que hoje não estou com muito entusiasmo para a dança, sr. Federico. Talvez num outro
dia.

Verónica estava decepcionada com Marco. Pensara que, após terminar com Laura, ele iria
chamá-la para dançar, mas ao invés disso empurrou-a para o irmão, demonstrando total
desinteresse nela. Sentiu que não conseguiria conter seu desapontamento e, antes que o
choro tomasse conta de seu rosto, decidiu afastar-se.

- Acho melhor ir ao encontro de minha mãe. Ela já deve estar me procurando para partirmos.
Senhores, com licença.

Enquanto Marco e Laura voltavam para mais uma dança, Federico ficou olhando Verónica sair
da sala. Mais uma vez ele se perguntava por que esta jovem jamais se interessara por ele. Por
que preferia alguém que a humilhasse dançando com uma criada, ao invés dele que, afinal, era
o primogénito, principal herdeiro do conde? Não que Federico tivesse qualquer afeição
especial por ela. Mas revoltava-lhe ver que todas as damas que frequentavam o castelo se
interessavam apenas pelo seu irmão.

A afeição de Marco por Laura ficava cada vez mais notória de todos no castelo. Emília não
continha seu entusiasmo ao ver que o filho do conde tinha cuidados para com sua
companheira.

- Ele é lindo, Laura. Um homem e tanto. Você é uma felizarda.

- Sinto decepcioná-la, minha amiga, mas não tenho o mesmo entusiasmo que você. Não desejo
Marco.

- E você espera que eu acredite nisso? Todas as jovens do vale sonham em poder esposá-lo e
você simplesmente não se importa com ele. Ah, essa é boa!

Laura ignorava as provocações de Emília e tentava manter-se o mais longe possível de Marco.
Não esperava, porém, que um fato novo mudasse completamente o rumo das coisas.

Era uma tarde movimentada; havia muitas pessoas na casa. Laura vinha trazendo uma bandeja
com chá. Quando se abaixou para servir, seu vestido cedeu, mostrando uma parte maior do
ombro e a marca de sua iniciação, feita durante os rituais da fertilidade.

Marco, ao notá-la, começou a indagar: - Onde conseguiu essa... - Mas então interrompeu-se.
Na sala estavam, além dele, Verónica com a mãe e Alice. Laura percebeu que ele notara o sinal
em seu ombro e aproveitando sua relutância em continuar a pergunta retirou-se
apressadamente.

Quando, porém, se viu sozinho com ela, Marco voltou ao assunto.

- Eu sei quem você é, Laura.


- Como?

- Eu a conheço.

- Creio que não...

- A marca em seu ombro. É um símbolo mágico. Você a conseguiu nos rituais da fertilidade.

Laura não sabia o que dizer. A voz dele era tranquila, mas o que sabia era suficiente para
revelar toda sua origem. Poderia ser presa, chamada de bruxa e ser morta como sua mãe! De
repente, um enorme medo apoderou-se dela. Tentou fugir, mas a mão de Marco segurou-a
firmemente pelo braço. Ele a olhou fixamente nos olhos e disse em voz baixa:

- Por favor, acalme-se.

Laura diminuiu um pouco a resistência.

- Seus cabelos, Laura, eram longos...

- Você....

- Sim, eu estava lá.

- Não me lembro de ...

- Estava usando uma máscara.

Marco não revelou mais, porém Laura entendera. Fora ele quem... Sim, aquelas mãos... Aquele
corpo que se movia atrás dela, arranhando-a, sangrando-a, era de Marco. Os braços fortes,
cujo suor escorria, pingando-lhe nas costas... a respiração ofegante em seus ouvidos. Era dele
o líquido que a inundou de prazer, e fez seus músculos enrijecerem, desvendando os segredos
mais íntimos de seu sexo.

Agora aquele homem estava ali na sua frente. Laura desvencilhou-se mais uma vez dos braços
dele e correu para seus aposentos. Dias se passaram sem que ela ousasse encará-lo.

Federico, que já andava incomodado com os cuidados do irmão para com Laura, percebeu algo
diferente se passando entre os dois. Pensar na hipótese de seu irmão interessar-se justo por
ela, aquela moça de quem tanto suspeitava... aquela moça cujo corpo nu vira na cachoeira.
Imaginá-lo acariciando-a... Uma moça de passado desconhecido... Seria uma afronta ao nome
da família. Sabia que o pai se assustara ao vê-la no dia em que morreu. Sua mãe não queria
admitir isso. Mas Federico viu bem nos olhos do pai a expressão de horror que tinha ao
guardar o rosto de Laura. Não... ela não era quem dizia ser... Tinha de prevenir o irmão.

- Marco, precisamos conversar.

- Diga lá, irmão.

- É sobre Laura.
- Sim?

- Tenho notado que você vem lhe dando uma certa atenção.

- Creio que isso não seja da sua conta.

- Tenha certeza de que sim.

- O que está dizendo?

- Essa jovem. Nós não a conhecemos muito bem e eu tenho fortes razões para acreditar que...

- Poupe seu discurso, irmão. Sei de suas prevenções contra a moça. Não há nada de errado
com Laura.

- Marco, você não entende. Laura é bela, concordo, e embora notemos que possui uma certa
educação, não podemos permitir a presença em nossa casa de alguém cujo passado
desconhecemos. Ela conquistou o coração mole de nossa mãe, cuida bem das crianças, mas
pode estar apenas esperando o momento certo para...

- Ora, você está procurando chifre em cabeça de cavalo. Me parece, irmão, que sua desavença
com ela tem outra origem...

- Como?

- Talvez não estivesse acostumado com a presença de uma jovem bonita por perto e isso o
incomode...

- Ora, Marco, do que você está falando?

- Sei que não faz muito sucesso com as mulheres.

- Seu... Você... tem de entender... Entenda uma coisa: nosso pai antes de morrer...

- Você está errado, Federico. Laura é uma ótima jovem e me admira que você, ao invés de
alegrar-se com a presença de uma moça tão agradável, perca seu tempo procurando
desvendar segredos do passado dela.

- Você continua o mesmo irresponsável fanfarrão de sempre. Corre atrás de todo rabo de saia
que vê pela frente e nem sequer se preocupa com o fato de que tem um nome a zelar!

- Nome a zelar?!

- Você é um D'Arace, ainda que frequentemente se esqueça disso. E não quero vê-lo colocando
em risco a segurança de nossa família!

- Me parece estar ouvindo a reencarnação de meu pai! Ora, Federico, você não pode estar
falando sério. Sabe muito bem quem era nosso pai. Agora vem me falar em respeito ao nome
dos D'Arace, simplesmente porque fantasiou em sua cabeça uma história maluca com essa
jovem. Temer pela segurança de nossa família. Por Deus, homem, onde está com a cabeça?
Que mal uma pessoa como ela poderia fazer à nossa família?

- Me diga se é verdade ou não que está interessado nela.

- Ora...

- Então, confesse.

- E o que haveria de mais nisso?

- Você poderia desgraçá-la. Tomar-lhe a única chance de realizar um casamento honesto e ter
uma vida feliz.

- Agora o vejo preocupado com o futuro dela. Há, essa é boa!

- Afaste-se dela!

- Cale-se, de uma vez!

Marco virou um soco no rosto de Federico, que caiu para trás. O golpe fez sua boca sangrar.
Transtornado, Federico tentou levantar-se para revidar, mas o irmão passou-lhe uma rasteira,
fazendo -o cair novamente. Vermelho de ódio, precipitou-se novamente sobre Marco
tentando atingi-lo, mas este, com um jogo de corpo, fez Federico golpear o vento, ao mesmo
tempo que lhe aplicava um chute no traseiro.

Alice, acompanhada de alguns servos, correu para apartar a briga. Federico sentia-se mais uma
vez humilhado pelo irmão. E ainda aparecia perante os outros como o causador da discussão.

Logo o ocorrido chegou aos ouvidos de Laura. Isto a deixou ainda mais transtornada. Xingou-se
mais uma vez por permanecer naquele castelo, a despeito de todos os motivos que tinha para
nunca sequer ter pisado naquele local. E, agora, seus riscos eram ainda maiores. Marco,
embora bastante diferente, era também filho do conde. Poderia descobrir tudo sobre ela.
Laura poderia ser acusada de ter matado o Conde Ângelo para vingar a mãe. Como convencer
então aquelas pessoas de que não era uma bruxa... Nem ela nem sua mãe... Participara
daquelas reuniões apenas por curiosidade. Eles estavam enganados... Sim, enganados... Com
certeza...

De repente um frio percorreu-lhe a espinha. Talvez ela fosse mesmo uma bruxa... E tivesse
realmente matado o conde. Quando ele a olhou, reconhecendo-a, Laura revidou-lhe o olhar
atirando de uma só vez, como um raio, todo o ódio guardado que sentia por ele. Foi como se o
ódio se materializasse apertando-lhe o pescoço, sufocando-o até que morresse. Sim, talvez
eles estivessem certos. Ela era uma bruxa. E sua mãe também! Era verdade, ela o havia
matado! Como fora capaz de tal proeza? Nem um instrumento, nem uma gota de sangue
derramada, não moveu sequer um dedo. Foi apenas um olhar... e estava feito.

"Talvez pudesse usar a mesma arma para tentar livrar-me de Federico", pensou. Na verdade,
ele nunca fizera nada contra ela. Laura não tinha por ele o ódio que tinha do conde. Quanto a
Marco, os sentimentos dela eram confusos. Gostava dele. Ao mesmo tempo, era também filho
do conde e não sabia até que ponto podia confiar nele. Afinal, o que ele queria? Possuí-la
novamente, como o fizera no ritual da fertilidade? Por que ele esteve lá? Laura sabia que
muitos cristãos costumavam frequentar aquelas festas, escondidos através de máscaras.
Talvez este fosse o caso de Marco. Os pensamentos de Laura invadiam seu sono, impedindo-a
de descansar... Começara a ter sonhos sensuais. Por vezes acordava no meio da noite, suada,
ofegante e demorava a dormir novamente. Numa dessas noites, um episódio estranho
encheu-a ainda mais de dúvidas, trazendo mais confusão a seus sentimentos. Estava na cama,
não sabia se dormindo ou acordada. Notou uma pedra ser atirada em sua janela. Levantou-se
para espiar e foi então que viu, embaixo, no jardim, um vulto. Parecia um homem; ele fazia um
gesto com a mão, chamando-a. Laura fechou a janela e sentou-se na cama. Estava assustada.
Quem seria? Queria olhar novamente para ver quem era, mas tinha medo. Levantou-se.
Aproximou-se novamente da janela e parou, relutante. Em seguida, pôs a mão no trinco.
Deteve-se por mais alguns segundos e abriu-a novamente, bem devagar. Espiou, tentando
esconder-se. O homem ainda estava lá. Tão logo a viu, começou a acenar novamente. Ele deu
um passo. Seu corpo ficou parcialmente iluminado pela luz da lua. Parecia Marco! Tinha quase
certeza de que era ele. Mas não conseguia ver direito. O que poderia querer àquela hora?
Laura olhou a porta do seu quarto. Queria sair. Sua mente a mandava deter-se, mas seu corpo
não obedecia. Lentamente se aproximou da porta e saiu. Logo estava do lado de fora do
castelo. O vento frio e forte do outono cortava-lhe a pele. Olhou por entre as árvores,
procurando-o. Estava muito escuro. De repente, um corpo enorme surgiu atrás dela. Ele usava
uma máscara. Não disse nada. Laura notou que vestia uma roupa diferente, toda negra. Seu
corpo musculoso e forte contrastava com a fragilidade feminina de Laura. Ela tentou balbuciar
algumas palavras, perguntar-lhe por que estava lá àquela hora da noite, mas antes que
dissesse qualquer coisa, viu-se presa em seus braços. Ele segurou-lhe os cabelos entre os
dedos, apertou-a junto de si, mordendo-lhe os ombros descobertos. Em seguida, deitou-a
sobre o chão e a possuiu ali mesmo. Novamente aquela sensação de prazer percorreu o corpo
de Laura, que se deixou tomar nos braços daquele homem, permitindo-lhe todas as vontades,
escravizada pelo gozo incontrolável que ele a fazia sentir.

Laura não sabia quanto tempo permaneceu ali com ele, nem como voltou aos seus aposentos.
Não estava certa se fora sonho ou realidade. Tinha sido tudo tão estranho, incompreensível.
No dia seguinte, ao avistar Marco, tentou buscar em seus olhos alguma indicação se o que
ocorrera havia sido real ou não. Mas em vão. Sua expressão não confirmava nem desmentia o
ocorrido. Ele a guardou um pouco mais longamente que de costume e só. Ela pensou em falar-
lhe a respeito, porém teve medo.

A seguir, durante seus afazeres, qualquer um podia notar que algo estava errado com ela.
Nunca esteve tão estabanada, esbarrava em tudo, esquecia as coisas e, na hora do almoço,
acabou derramando vinho no colo de Federico. Marco fizera um gracejo qualquer, ela foi
prestar atenção no que ele dizia e sem querer desviou a jarra do copo em que servia Federico.
Ao notar o que havia feito, Laura curvou-se para tentar enxugá-lo e remediar a situação, mas
nesse movimento acabou se chocando com a cabeça dele que tentava levantar-se. Foi então
que a jarra caiu e molhou-o completamente. Federico ficou furioso e pediu à mãe que desse
um jeito em Laura. Ralhou com as crianças que se riam às escâncaras com o episódio.

Laura só foi acalmar-se mesmo no fim da tarde, quando se convenceu de que tudo não passara
de um sonho. E assim teriam acabado as coisas, não fosse Emília aparecer carregando as
roupas com que vira Marco vestido naquela noite.

- O que é isso, Emília?

- Isso o quê?

- Essas roupas...

- Ah, estão sujas... Tenho de limpá-las.

- Elas estão sujas!

- O que há com você, Laura?

- ...Nada... Nada, oras. Apenas fiz uma pergunta. Nada mais, uma pergunta. Essas roupas, você
vai lavá-las, certo?

- Laura, que diabos isso importa?

- Muito bem, certo. Então está bem.

Emília riu-se da atitude despropositada da companheira e seguiu para a outra ala do castelo.

Laura decidiu que tinha de falar com Marco, de qualquer maneira. Esperou alguns dias até
tomar coragem e quando se viu a sós com ele abordou-o com cautela:

- Bom dia, meu senhor.

- Ora, se não é a doce Laura que vejo diante de mim! Finalmente ela perdeu a vergonha e veio
falar comigo.

- Creio que precisamos conversar...

Marco percebeu que Laura estava bastante ansiosa e deixou um pouco de lado as
brincadeiras.

- Sem dúvida, Laura. Por que não damos um passeio pelo jardim? Está bem assim?

- No jardim?

- Sim, por quê? Há algo errado com ele?

- Com quem?

- Com o jardim! Você não quer conversar no jardim?

- Oh, não. Não há nada de errado com o jardim.


- Está bem.

Enquanto se dirigiam à parte externa do castelo, Laura adiantou-se na conversa:

- Sr. Marco, nós dois sabemos bem que nossas vidas já haviam se cruzado anteriormente, fora
deste castelo...

- É verdade.

- Não sei exactamente o que o senhor fazia lá durante aquela celebração. Para mim foi a
primeira e única vez que frequentei aquele lugar... estava curiosa... E de repente tudo aquilo
aconteceu... Eu não sabia... foi ...

- Laura, aquilo para mim também foi muito estranho, mas não devemos nos arrepender do
que fizemos. O povo da floresta é muito simples, têm suas próprias crenças, mas são boas
pessoas. Não creio no que os padres dizem sobre eles. Não são maus. Muitas vezes ajudei
alguns deles a escapar da perseguição e acabei também me envolvendo em seus rituais.

- Não quero que pense que eu...

- Federico tem sérias dúvidas a seu respeito. Se ele soubesse, provavelmente obrigaria Alice a
expulsá-la daqui. Seria considerada uma má influência para os pequenos...

- O senhor pretende contar-lhe?

- E deixar que você saia daqui e vá viver onde eu não possa mais vê-la? Nunca! Fique sabendo,
Laura, que você é a única razão pela qual ainda não parti novamente deste castelo.

- Creio que não estou entendendo, senhor.

- Laura, você e todos neste castelo sabem do que estou falando. Após nosso primeiro encontro
naquela festa pagã, por muitas vezes sonhei em vê-la novamente. Lembro-me do prazer que
sentimos. E foi tudo tão... espontâneo... tão natural. Você me conquistou sem dizer uma
palavra sequer.

Laura estava totalmente enrubescida. Não sabia o que dizer, nem para onde olhar. A última
coisa que esperava era ouvir essas declarações de Marco.

- Por favor, Marco. Não diga mais nada!

- Mas tenho de lhe dizer, Laura. Você possui uma naturalidade que não se encontra mais nas
pessoas. Essas jovens que conheço e que frequentam nossa casa. Não consigo ver nelas nada
além de mentiras, afectação, gestos estudados, palavras estrategicamente escolhidas. Elas
mentem para si próprias. No fundo não são felizes. Tudo o que querem é alguém para cuidar
delas pelo resto da vida. Depois de casadas continuarão mentindo. Fingirão ter prazer para
agradar o marido, fingirão devoção absoluta, mentirão sobre suas próprias emoções. Logo
estarão permitindo-se alguns pecados para enganar a própria solidão. Não, eu não quero isso,
Laura. Nós só deixamos de ser sozinhos se aprendemos a compartilhar nossas verdadeiras
emoções com os outros.

- Todos nós temos nossos segredos, sr. Marco.

- Talvez eu não saiba tudo a seu respeito, Laura, mas sinto que minha presença a deixa muito
perturbada...

- Por que sua presença me perturbaria, sr. Marco?

- Essa pergunta caberia bem na boca daquelas jovens dissimuladas de que lhe falei. Não na
sua, Laura. Você sabe do que estou falando.

Laura sorriu e abaixou a cabeça, timidamente. Em seguida, encarou Marco e disse:

- E a minha presença, perturba o senhor?

- Não apenas sua presença, mas a simples lembrança de sua existência já é suficiente para
ferver-me o sangue.

- Como há alguns dias, no jardim?

- Laura, eu...

Federico, que observava a distância os dois, resolveu se aproximar e interrompeu a conversa:

- Lindo dia, não, irmão? Bastante quente para um início de inverno.

Federico tinha um ar cínico e afetado.

- O que você quer, Federico?

- Nada, estava apenas passeando pelo jardim. É preciso aproveitar o pouco que nos resta de
sol, antes que o frio chegue. - Virando-se para Laura, disse: - Como vai?

Ela lhe respondeu com a cabeça.

- Você não acha, Marco, que devemos ter mais servos trabalhando no castelo? Esta manhã
vieram a mim dois antigos servos de meu pai. Ele os havia mandado para bem longe, depois de
uma ofensa que lhe fizeram. Chamam-se Matteo e Umberto. Queriam meu perdão para voltar
a viverem no castelo. Veja, eles estão ali. E apontou para os dois que se encontravam a alguns
metros de distância. De longe, os servos fizeram uma reverência

- E o que isso nos interessa, Federico? - perguntou Marco, impaciente.

- ... Eu lhes perguntei qual havia sido a razão de meu pai tê-los expulsado...

- Federico.... quer parar com esse assunto?!


- Eles não me explicaram muito bem.... Parece que foram atrás de uma bruxa que habitava em
nossa terras. Mas creio que tem razão, irmão. Por que, afinal, estou aqui interrompendo sua
conversa particular com Laura, para falar sobre assuntos que não lhes dizem respeito?

Em seguida, Federico retirou-se. Laura estava petrificada. Sabia que Federico não havia
contado aquela história à toa. Os servos deviam tê-la reconhecido. Percebeu o tom irónico em
seu olhar. Buscou no rosto de Laura alguma fisionomia que denunciasse sua culpa. No entanto,
não se atrevera a contar nada ao irmão. Por quê? A troco do que desperdiçaria uma chance
como aquela de desmascará-la diante de todos? Talvez ele ainda não estivesse totalmente
seguro e aguardasse uma confirmação qualquer...

- Laura, o que houve? - perguntou Marco, intrigado com a sua imobilidade.

- Nada, Marco, estou bem. Mas não posso continuar nossa conversa. Estou muito confusa.

- Apenas diga que me ama.

- Não posso lhe dizer isso...

- Então não me quer.

- Até logo, Marco.

Naquela mesma noite, Laura juntou suas coisas e fugiu do castelo.

Capítulo 5

O tempo parecia tramar contra a fuga de Laura. Desde que saíra do castelo, o inverno
começara a apertar. O vento gelado cortava-lhe os lábios e a pele, enquanto uma neve fina
molhava-lhe a roupa. Laura havia tomado a estrada para o Sul. Decidira partir para bem longe
de Florença. Morar em uma terra onde ninguém a conhecesse. Ao pensar como pudera ficar
tanto tempo naquele lugar, indignava-se consigo mesma. Agora que estava longe, não via
qualquer sentido em sua permanência na casa do conde. Por que se sujeitara a isso? Nunca
entendera bem. Estava pela primeira vez, em muito tempo, feliz.

No entanto, o caminho era longo e difícil. Logo o cansaço e a fome fizeram Laura enxergar a
realidade com outros olhos. Onde estava a próxima cidade? "Talvez não consiga chegar",
pensava ela. A peste a essa altura já havia cedido bastante. Eram agora poucos os casos novos
na região. Havia, porém, outros perigos. Se não fosse assaltada por bandidos, poderia morrer
de frio, de fome ou até mesmo de cansaço. Mas Laura não via outra alternativa. Não tinha
como voltar. Seu destino não podia ser outro senão seguir em frente. Ao ouvir qualquer sinal
de carruagem ou de cavalo, tratava de esconder-se, temendo que alguém viesse atrás dela.
Logo decidiu deixar a estrada e caminhar pelos campos, para evitar ser encontrada. Isso
tornou seu caminho ainda mais difícil. Laura não sabia bem aonde ir. Esperava que a trilha
desse em algum lugar. Torcia ainda para que não nevasse forte e acabasse perdendo a
referência do caminho.
Depois de alguns dias de caminhada, percebeu que tinha poucas chances de sobreviver. Não
conseguia avistar no horizonte qualquer vestígio de aldeia ou vila onde pudesse parar. Mas
para onde seguir? Quanto mais caminhava, mais fechada se tornava a mata, ao ponto em que
Laura se viu totalmente cercada por uma densa floresta. Seguira provavelmente a trilha de
algum animal. Logo o caminho se acabou. Estava perdida e sozinha. Olhou ao redor, não sabia
mais sequer como voltar. Percebeu que a noite chegava mais uma vez e uma tristeza tomou
conta do seu coração. Ela começou a chorar baixinho, como se escondesse o choro de alguém.
Mas não havia ninguém. Estava só, completamente só. Como jamais se imaginara. Era como se
não pertencesse ao mundo. Pensou que seria muito melhor se já estivesse morta.

Passou a noite junto a um tronco de árvore. Fizera uma pequena fogueira para tentar aquecer-
se. Mas o chão húmido fez com que o fogo durasse pouco. Acordou gelada. Os pés doíam-lhe.
Os lábios estavam secos e o nariz congelado. Tinha fome. Comeu o último pedaço de pão que
ainda lhe restava, enquanto decidia o que fazer. Precisava encontrar outro caminho. Mas não
poderia se enganar de novo. Decidiu tentar voltar para a estrada. Já não estava mais certa do
caminho de volta, mas era sua única chance. Talvez na estrada encontrasse alguém que
pudesse ajudá-la, indicar-lhe o caminho para a próxima aldeia ou dar-lhe um pouco de comida.

Laura começou a caminhar. Tentou seguir a mesma trilha pela qual viera, mas em vão. Depois
de horas de caminhada, a floresta ao seu redor continuava tão fechada, que não conseguia
sequer ver direito a luz do sol e avaliar há quanto tempo estava andando. Como pudera se
perder daquele modo? Para onde fora a trilha que seguira? Era como se tivesse desaparecido,
apagada da noite para o dia. Aquela floresta não poderia ser tão grande e, no entanto, não era
capaz de encontrar a saída. De repente, notou que as próprias árvores pareciam estranhas.
Suas folhas e galhos tinham formas totalmente diferentes das que jamais vira. Pareciam quase
humanas. Era como se a olhassem. Tinham um ar ameaçador. Sem perceber, Laura estava
correndo. Sem rumo, sem saber por que, ela corria, como se alguém estivesse atrás dela. Seu
peito ofegante, faltava-lhe o ar, enquanto suas pernas já fracas se moviam desordenadas. No
rosto, uma fisionomia de pavor. Olhava em todas as direcções, imaginando-se cercada, e
continuava a correr. Tropeçava, caía, levantava-se e corria. Até que seu corpo trombou com
algo grande e inflexível. Laura caiu de boca no chão. Ficou estatelada de bruços. Então
começou a mover os olhos, para ver no que tinha se chocado. Tinha medo de olhar. Não sabia
o que poderia ser. Quando levantou os olhos do chão, a primeira coisa que viu foram duas
enormes botas, paradas a um palmo de seu nariz. Imaginou que elas poderiam esmagar-lhe a
cabeça com a maior facilidade. Não tinha coragem de olhar o que havia além delas, pois já se
sentia suficientemente impressionada. Aos poucos foi levantando a cabeça. O corpo do
homem que estava à sua frente parecia não terminar. Era enorme. Estava vestido com trapos.
Só conseguiu ver-lhe o rosto depois de inclinar-se bastante. Ele tinha uma face larga,
protuberante. O queixo era grande, o nariz achatado no rosto. Seu traços eram disformes. Ele
continuava mudo, parado diante dela. Laura, após vê-lo, encolheu-se e, antes mesmo de se
levantar totalmente, buscou afastar-se. Viu, no entanto, que o homem não se movia e parecia
sorrir-lhe. Os dois permaneceram ainda por algum tempo se olhando e Laura teve a impressão
que ficariam ali todo o resto do dia, se ela não tomasse qualquer iniciativa.
- Meu nome é Laura.

- Urggg! - foi a resposta que ouviu.

- Você, como se chama?

O homem não fazia mais que ruídos.

- Você pode falar?

A expressão dele tomou então um ar mais triste, seus olhos voltaram-se para o chão, como se
estivesse tímido, e então ele balançou a cabeça negativamente, soltando mais alguns rugidos
indecifráveis.

- Você vai me ferir?

Ele olhou-a indignado. Soltou uma nova profusão de sons e então aproximou-se. Laura a
princípio recuou, mas controlou-se. Tinha medo de enfurecê-lo se mostrasse qualquer
repúdio. Ele estendeu sua mão até o rosto dela. Laura tentou conter seu quase terror em
senti-lo aproximar-se. Era uma mão enorme. Maior que sua face. Ele tocou-a levemente,
examinando um arranhão. Laura percebeu que não queria machucá-la. Porém não sabia até
onde podia confiar. Parecia um tanto instável. Ela temia fazer algo que pudesse contrariá-lo.

- Onde você mora? - perguntou ela.

Grunhindo sempre, ele indicou um ponto da floresta.

- Você vive sozinho?

Ele respondeu afirmativamente com a cabeça, fazendo uma expressão triste. Ficou algum
tempo em silêncio e depois fez uma pergunta. Laura não conseguiu entender. Olhou-o um
tanto aflita. Ele pareceu então repetir a pergunta. Fazia gestos. Ela deduziu que a estava
convidando para ir até a casa dele.

- Oh, não, não - respondeu Laura. - Tenho de ir.

Ele continuou insistindo. Laura negava-se e foi se afastando, como quem estivesse de partida.
O homem então começou a grunhir mais alto. Aproximou-se e pegou-a no braço, como se
fosse puxá-la. Ao ver o pavor de Laura, porém, ele parou. Soltou-a e olhou-a nos olhos. Não fez
qualquer gesto ou barulho. Calou-se e deu a entender a Laura que esperava uma decisão. Ou o
acompanhava até a casa dele ou, se quisesse, que fosse embora.

Laura relutou por alguns instantes, mas na verdade não tinha alternativa. Não sabia como
voltar, estava com fome, cansada e o frio cada vez mais forte. Permanecer sozinha naquela
situação seria o fim. Embora relutante, acabou cedendo.

No caminho até a casa do homem, Laura pôde observá-lo com mais cuidado. Vendo-o
caminhar à sua frente, notou que ele brincava com os passos, como uma criança. O físico
grande e seu aspecto rude contrastavam com o seu jeito infantil de agir. Um jeito que a
tranquilizava e que a fazia perder um pouco o medo. No entanto, era um homem muito
estranho. Não sabia falar. Morava sozinho na floresta. Laura tentou imaginar o que teria
ocorrido na vida dele para torná-lo daquele jeito. Não sabia se era uma pessoa boa ou má.
Tinha receio sobre as suas intenções. Por que estaria querendo ajudá-la?

Ele caminhava muito rápido. Laura tinha dificuldade para acompanhá-lo. O caminho não tinha
nenhuma trilha. À sua frente, ele ia quebrando com as mãos os galhos que atravessavam o
caminho. Depois de algum tempo, chegaram a uma pequena cabana, feita de paus. Era tão
pequena que mal comportava duas pessoas dentro. Não tinha praticamente nenhum móvel.
Apenas uma mesa, alguns troncos que serviam de cadeira e, em um dos lados, uma forração
de palha, já bastante escurecida pelo uso. O cheiro no interior da cabana era terrivelmente
azedo. Laura mal pôde suportar. Tentando mostrar hospitalidade, o homem ainda procurou
arrumar a cabana. Tirou o prato com restos de comida que havia sobre a mesa, reagrupou a
palha sobre o chão e em seguida olhou-a satisfeito, como quem estivesse exibindo algo
extremamente confortável. Laura tentou sorrir-lhe da melhor forma. Sentou em um dos
troncos junto à mesa, mas sem realmente descansar, mantendo-se em posição erecta. O
cheiro ruim vinha também dele. Imaginou se seria capaz de passar uma noite com aquele
cheiro impregnando suas narinas. De qualquer forma, era melhor do que congelar no frio.

- Obrigada - disse ela.

O homem havia sentado em um canto, o mais longe possível de Laura. Estava de frente para
ela. Ficou olhando-a mudo, como se admirasse um quadro novo colocado em sua casa.

- Você ainda não me disse seu nome - continuou Laura, tentando fugir do silêncio.

O homem abaixou a cabeça.

Laura percebeu que estava envergonhado por não saber falar.

- Vamos, tente falar devagar. Eu sei que você pode - incentivou-o.

O homem ergueu os olhos e balbuciou:

- Hu..

- Vamos, continue!

- Huca..

- Luca?

Nesse momento, a expressão dele se encheu de uma alegria contagiante. Seus olhos
brilharam.

- É isso, Luca?

Ele afirmou positivamente com a cabeça. Mal podia conter-se de emoção por ouvir alguém
pronunciar seu nome.
- Luca, você tem um pouco de água para eu beber?

Luca pôs a mão na testa, como quem lamentava seu esquecimento. Ficara tão excitado com a
presença dela que se esquecera de servi-la. Saiu e voltou logo depois com uma moringa d'água
e uma garrafa empoeirada de vinho. Ele colocou também um prato semilimpo sobre a mesa e
pediu para que ela esperasse um pouco. Laura viu-o acender o fogo, do lado de fora. Pouco
tempo depois, Luca apareceu e derramou uma sopa no prato. Era um caldo escuro, com alguns
pedaços de ossos e gordura.

Laura não comia há dias. Apesar do aspecto, o prato caiu-lhe bem no estômago. Enquanto isso,
Luca abriu a garrafa de vinho e serviu-o em uma caneca. Ela se surpreendeu com a qualidade
da bebida. Era tão bom quanto os que havia na casa do conde.

Laura encheu várias vezes a caneca. Sentia-se bem melhor. Já não percebia mais o cheiro
azedo no interior da cabana. Estava um pouco alta pela bebida. Olhou sorrindo para Luca. Ele
estava em seu canto, agachado, sorrindo contente por ver que Laura estava satisfeita.

- Pegue uma caneca você também, Luca, vamos brindar!

Luca relutou por alguns instantes, mas depois cedeu. Encheu uma caneca de vinho para ele.

- A você, Luca, por ter salvo minha vida!

A bebida fez um bem enorme a Laura. Há muito tempo não se sentia daquela forma. Desde a
morte de sua mãe e por todo o tempo em que esteve no castelo do conde, sua vida era uma
sequência de angústia, tristeza e medo. Durante aquele momento na cabana, porém, sentiu-se
feliz novamente. Esqueceu a solidão, o medo e o cansaço.

Começou a cantarolar e a brincar com Luca. Logo puxou-o e começou a dançar com ele. Os
dois beberam e riram por longas horas.

Quando acordou no dia seguinte, Laura não se lembrava ao certo do que havia acontecido.
Viu-se sozinha deitada sobre a palha. Luca não estava dentro da cabana. Ela levantou e abriu a
porta. Luca dormia do lado de fora, junto à fogueira que havia feito.

- Luca! - exclamou indignada.

Ele se mexeu. Guardou-a com os olhos pequenos de sono.

- Não me diga que você dormiu aqui fora neste frio, enquanto eu passei a noite
confortavelmente na sua cama!

Luca murmurou qualquer coisa e começou a olhá-la com carinho. Foi se levantando aos
poucos. Enquanto continuava ouvindo os protestos de Laura por sua atitude, começou a
preparar algo quente para ela tomar.

- Luca, não! - Laura interrompeu-o, fazendo-o sentar-se. - Dessa vez eu vou preparar algo para
nós, está bem?
Sorrindo, Luca assentiu e ficou observando a movimentação de Laura.

Ela, por sua vez, fuçou a cabana à procura de algo que pudesse preparar. Não encontrou nada.
Apenas algumas folhas para fazer chá.

- Luca, o que você costuma comer pela manhã?

Ele mexeu os ombros como quem não soubesse o que responder. Pensou alguns instantes e
depois deu a entender que havia lembrado de algo. Fuçou um canto da cabana e levou para
Laura um pequeno saco cheio de farinha.

- Onde você arrumou isso, Luca?

Pelos murmúrios dele, Laura deduziu que havia trazido de uma vila.

- Há uma vila perto daqui?

Ele assentiu.

- Muito bem, Luca. Vamos preparar um pão com essa farinha, está bem? Depois eu quero que
você me fale... ou melhor, que você murmure um pouco mais sobre essa vila.

Algum tempo depois, Laura colocou sobre a mesa uma caneca de chá e um pão quentinho
para Luca.

Ele gemia de satisfação a cada mordida. Com se nunca tivesse comido pão em sua vida. Olhava
agradecido à Laura. Sentia-se num verdadeiro banquete.

- Luca, você nunca aprendeu a falar?

Ele silenciou.

- Tente dizer "pão"... Bem devagar...

- Pu...

- Vamos, com calma... "Pão".

- Paaaal.

- Melhor... Tente mais uma vez. Pão.

- P...

- Vamos!

Luca levantou-se bruscamente, aborrecido.

Laura foi até ele.

- Desculpe, Luca. Não quis magoá-lo. Vamos, sente-se e termine de comer o pão. Venha.

Ele obedeceu. Ficaram mudos por alguns instantes.


E então Luca tentou falar alguma coisa.

Laura não conseguia entender o que ele queria dizer desta vez.

- Não estou conseguindo entender, Luca...

Ele pegou o saco de farinha.

- O que tem o saco?

Ele continuou grunhindo e agitando os braços.

- A vila?

- Quer que eu...

- Você vai viajar?

- Você vai até a vila?

- Eu vou até a vila?

- Ah! Quer me levar até a vila! Mas isto seria ótimo, Luca! É muita bondade sua! Sozinha eu
creio que jamais conseguiria chegar. Mas... você vai deixar sua cabana abandonada?

Ele mexeu os ombros mais uma vez, como quem faz pouco caso.

Laura se comoveu.

- Você é uma boa pessoa, Luca.

Estava emocionada com a bondade daquele homem. Era um selvagem. Poderia ter feito dela o
que quisesse. Ela estava à sua mercê. E, no entanto, a preocupação maior dele era agradá-la
da melhor forma possível. Respeitando-a a ponto de dormir fora de sua própria casa para que
ela pudesse ficar mais à vontade. Pensou que talvez a simples presença de uma pessoa, uma
jovem como ela, era uma satisfação tão grande para alguém como ele, habituado a viver
sozinho, rodeado apenas por animais, que ele nem sequer ousava desejar mais do que aquilo
que tinha obtido.

Passaram mais uma noite na cabana e, no dia seguinte, partiram bem cedo em direcção à vila.
Luca havia feito uma trouxa com alguns mantimentos e oferecido sua capa a Laura e, em
seguida, partiram por uma trilha estreita. Não demorou muito até saírem da floresta.
Chegaram em um grande descampado. Luca deu a entender que aquele caminho levaria à
estrada. O tempo estava frio, mas bem menos que nos dias anteriores. Não havia neve no
chão, apenas um vento forte que gelava o rosto de Laura. Caminharam durante todo o dia até
chegarem à beira da estrada. Laura estava exausta e pediu a Luca para descansar.

- Já está escuro, Luca, e eu não aguento mais dar um passo.


Luca concordou, mas foi buscar abrigo um pouco distante da estrada para evitar serem
surpreendidos por algum ladrão. Fizeram uma fogueira e se acomodaram para dormir.

Apesar do cansaço, Laura, porém, estava sem sono.

- Como é esta vila, Luca?

Entre os grunhidos dele, Laura entendeu que não era muito grande, embora possuísse uma
boa feira, onde Luca comprara vários utensílios para sua cabana.

- Você nasceu por lá, Luca?

Ele balançou a cabeça negativamente.

- De onde você é?

A fisionomia de Luca fechou, como sempre acontecia quando Laura lhe perguntava sobre sua
vida. Ele não respondeu.

- Vamos, Luca, me conte algo sobre você. Pode confiar em mim. Eu sou sua amiga.

Ele olhou-a nos olhos, sorrindo emocionado ao ouvi-la dizer que ela era sua amiga. Tocou com
a mão levemente seu rosto e em seguida virou-se para dormir.

Laura permaneceu na mesma posição. Ergueu os olhos até o céu. Lembrou de que há tempos
não olhava as estrelas. Este era seu passatempo predilecto quando morava com a mãe. Lisa
dizia que se prestasse atenção poderia ver os espíritos da noite cruzando o céu. Quando era
pequena, passava horas tentando surpreendê-los. Então, quando julgava ter visto alguma
coisa, corria até sua mãe, para que ela certificasse que era uma fada ou coisa parecida. Porém,
conforme crescia, foi ficando mais difícil avistá-los.

Desta vez a noite estava propícia. Não havia quase nuvens e era tempo de lua cheia. Percorreu
com os olhos a imensidão à sua frente, na esperança de encontrar alguns desses espíritos
novamente. Mas não havia nada. Apenas sombras e algumas nuvens pequenas, refletidas.
Convenceu-se, mais uma vez, de que eles nunca existiram. "Você mentiu para mim, Lisa." A
mãe queria apenas mostrar-lhe a vida mais bonita do que era na realidade.

- Eu sinto tanto sua falta... - disse isso em voz alta, embargada pela emoção.

Viu então uma estrela cadente cruzar o céu diante dela. E não pode mais conter o pranto. Não
sabia quantas vezes havia chorado nos últimos dias. Luca a ouviu. Teve o desejo de levantar-se
e consolá-la mas não se mexeu. Continuou deitado, como se dormisse. Sabia que era o melhor
que podia fazer naquele momento.

Eles caminharam por mais três dias até avistarem a vila. Ficava em um vale. Ao vê-la de longe,
do alto da colina, Laura percebeu que possuía muitas casas grandes.

- Parece uma bela vila, Luca.


Ele estava silencioso. Preocupado.

- O que há?

Luca não disse nada. Apenas chamou Laura para que continuassem o caminho. Desceram a
colina e deram em uma estrada maior, bem mais movimentada. Gente indo e vindo todo o
tempo. As pessoas, ao cruzarem com Luca, não escondiam sua repugnância à aparência dele.
Faziam comentários maldosos ou riam de suas deformidades. Laura incomodava-se, sentia-se
constrangida por ele. Luca, porém, parecia ignorar. Continuava seu caminho tranquilo, como
se não houvesse ninguém ao redor. Ao chegarem às portas da cidade, Luca parou.

- O que foi? Não quer entrar?

Ele relutou por alguns instantes. Queria que Laura seguisse sozinha. Parecia estar com medo
de entrar na cidade.

- Vamos entrar em alguma taberna, Luca. Eu tenho um pouco de dinheiro. Poderemos tomar
uma sopa quente.

Luca balançou a cabeça negativamente. Fez um gesto insistindo para que ela continuasse e
virou-se como se fosse voltar.

- Você vai me deixar sozinha?

Luca voltou a cabeça. Olhou-a por alguns segundos e então cedeu. Sob os olhares curiosos das
pessoas, os dois caminharam em direcção ao centro. Laura estava satisfeita por ter chegado,
mas, ao mesmo tempo, uma certa angústia apoderava-se dela. Todas aquelas pessoas, aquelas
casas... Era tudo tão estranho. Tão distante dela. E agora teria de viver lá. Não tinha outra
opção. Esta seria sua vida dali para frente. Uma existência solitária no meio de pessoas que
não conhecia. Trabalhando para poder garantir um pouco de comida no final do dia e um
abrigo do frio em algum canto sujo qualquer. Se tivesse sorte, talvez encontrasse uma família
bondosa que a tratasse bem. Mas por melhor que fosse, ela continuaria sendo uma estranha,
vivendo no meio de estranhos. Teria de agradá-los, servi-los e manter-se eternamente
submissa. Talvez pudesse um dia casar, constituir sua própria família. Mas em seu peito
machucado ainda havia pouco espaço para o amor. Marco agora lhe parecia alguém distante.
A idéia de um marido soava-lhe incómoda. Seria como entregar-se a um dono, ao qual deveria
total obediência e sujeição. Suas emoções e vontades, tolhidas, se esconderiam nos recônditos
de sua alma. Sua liberdade perdida para satisfazer novamente um estranho. Teria de dormir ao
lado desse estranho e entregar-lhe seu corpo mesmo quando não estivesse disposta. Deveria
fingir prazer. Esconder seu asco e repugnância e sorrir-lhe, acariciá-lo e fazer o que ele
mandasse. Não, essa seria uma escravidão ainda maior.

- Ele parece um suíno como o focinho ao avesso! - falava em voz alta o homem sentado diante
de Laura e Luca. Os dois haviam encontrado uma taberna barata e tomavam seu prato de
sopa.

- Ei, moça, não é permitido animais aqui na taberna! - dizia outro em tom de chacota.
Luca e Laura continuavam ignorando as ofensas. Logo, porém, outros se juntaram ao homem e
continuaram a fazer gozações.

- Talvez seja a esposa dele. Ela se apaixonou pelo seu queixo!

Não passou muito tempo e toda a taberna estava rindo deles.

- Ei, moça, ele grunhe quando está na cama?

- Moça! Por que você não vem para minha casa? Posso lhe mostrar que deitar com um homem
é melhor do que com um animal!

- Olha o leitão tomando sopa! Parece que o líquido entra pelo nariz!

Laura já estava totalmente aflita.

- Acabe logo a sopa, Luca - disse ela.

Nesse momento um homem veio se aproximando dos dois. Estava rindo. Era o que mais fazia
piadas.

- Bom dia! - disse de forma falsamente gentil, enquanto lançava um olhar no decote do vestido
de Laura.

- A moça está de passagem pela cidade?

Laura não respondeu.

- De onde vem?

Nenhuma resposta.

- Estão à procura de um quarto para descansar? ...Eu poderia...

- Não, obrigada - respondeu Laura secamente, tentando encerrar a conversa.

O homem olhou para os companheiros que observavam ao longe e sorriu para eles. Em
seguida dirigiu-se a Luca.

- Bonita a sua namorada, meu amigo. Fazem um belo par! - ao dizer isto, a gargalhada foi geral.

O homem então colocou-se face a face com Luca e examinou-o por alguns segundos.

- Você é realmente feio! - disse isto sem tirar o rosto defronte ao de Luca. Estava testando-o.
Então derramou-lhe a sopa no colo.

Luca não reagiu. Pegou o pano e começou a limpar-se.

- Afaste-se! - gritou Laura para o homem.

- Vamos embora, Luca!

Os dois começaram a levantar-se, mas o homem segurou o braço de Laura.


- Ora, moça. Já vai embora assim, nós nem terminamos nossa conversa. Você é bonita. Com a
outra mão, o homem acariciou-lhe o rosto, tirando suavemente os fios de cabelo que cobriam
o rosto de Laura. Em seguida, seus dedos começaram a descer em direcção aos seios. Antes
disso, porém, Luca segurou-lhe o braço com força, impedindo-o. Os dois se olham fixamente.
O homem sorriu e fez como quem iria afastar-se, mas então cuspiu no rosto de Luca. Antes
que alguém pudesse fazer algo, ele o arremessou a alguns metros de distância sobre uma
mesa no outro lado do salão. Os outros avançaram e uma confusão tomou conta da taberna.
De repente, alguém veio por trás e enterrou uma faca no abdome de Luca.

Logo o sangue começou a jorrar e escorrer pelo chão. Luca estava caído. Laura debruçou-se
sobre ele, gritando aos prantos. Abraçou-o.

- Olhe o que vocês fizeram com ele! - exclamava indignada. Seu vestido e seus braços iam-se
tingindo de vermelho.

- Foi minha culpa! - disse ela no ouvido dele, inconformada. - Não devia ter insistido para que
você entrasse na cidade!

Luca a olhava com candura. Acariciava o rosto dela. Estava feliz por ver que Laura se
preocupava com ele, por ver que ela se importava. Uma lágrima escorreu-lhe do rosto. Não
por dor, nem por tristeza, mas por emoção, pois tinha sido capaz de despertar o amor e a
atenção de alguém para si.

- Viveu como um porco e agora vai morrer como um porco! - gritou alguém do fundo.

Não demorou muito até que a guarda da vila chegasse. Laura ainda estava deitada sobre Luca.
Os guardas procuraram saber o que acontecera, mas as histórias eram todas desencontradas.
Alguns acusavam Luca, outros diziam que fora um acidente. Muitos diziam não ter visto nada e
houve até quem culpasse Laura. Ela, porém, silenciara. Não respondia a qualquer pergunta. A
taberna estava cheia de curiosos. Toda a vila se aglomerara ao redor da cena. Os que não
conseguiam entrar, tentavam espiar do lado de fora. Havia gritos, acusações e comentários
maldosos vindos de todos os lados. Os guardas finalmente decidiram retirar o corpo e levar
Laura até o gonfaloneiro. No caminho, uma multidão de curiosos acompanhava atenta, como
se assistisse a um cortejo. Laura vinha cercada pelos guardas, parecendo prisioneira. O sangue
de Luca começava a secar em sua pele. Logo atrás vinha o corpo dele, enrolado em um pano.
Laura não olhava. Sua mente estava vazia. Não pensava em nada. Não se preocupava com o
que iria acontecer-lhe ou para onde ia. Apenas fazia o que lhe mandavam, como se estivesse
hipnotizada.

De repente uma voz feminina vinda da multidão a fez sair de seu desligamento. Era um grito
que destoava do resto, pois parecia ser um grito amigo, familiar.

- Laura! - repetiu a voz ainda mais uma vez.

Laura tentou buscá-la no meio daqueles rostos. Mas não conseguia. Os corpos dos guardas
tampavam boa parte de sua visão.
Mas a voz insistia:

- Laura! Laura! Laura!

Laura foi ficando ansiosa. Não conseguia distinguir a pessoa. Já estava quase na porta do
palácio municipal. A multidão foi ficando para trás. Laura voltou a cabeça para uma última
tentativa. Diminuiu a velocidade de seus passos. Mas foi empurrada por um guarda. E foi
exactamente quando seu corpo era jogado e sua cabeça fazia um arco para a frente que por
uma fracção mínima de tempo visualizou o rosto amigo que gritara seu nome. Era de Paola.
Sim, tinha certeza, era Paola. A jovem que ajudou a curar da peste, em Florença, logo depois
da morte de sua mãe. O olhar das duas se cruzou por pouco tempo, mas foi o que bastou para
que Laura sentisse que não estava sozinha. Logo em seguida, estava dentro do prédio.

O gonfaloneiro estava nervoso. Tinha um problema nas mãos e não sabia como resolver.
Interrogou Laura e logo viu que ela não tinha culpa de nada. Por outro lado não queria criar
inimizades na vila para fazer justiça pela morte de um estranho, miserável e sem importância.
Preferia que tudo fosse considerado um acidente. Mas temia que a presença de Laura na vila
pudesse gerar novos conflitos. Ela, no entanto, não parecia em condições de partir. E fazê-la
sair da vila naquela época do ano e no estado em que se encontrava era o mesmo que
condená-la à morte. Determinou então que ela passasse a noite no fórum, até que
encontrasse uma solução para o caso.

Do lado de fora, muita gente ainda aguardava, para saber se haveria algum enforcamento.
Laura, por sua vez, sentada no chão, em um canto de uma das salas do palácio municipal,
aguardava, resignada, a decisão sobre seu destino. A imagem de Paola servira para recuperar a
esperança de ver sua vida tomar um rumo melhor. Mas sua mente ainda estava demais
abalada pela morte de Luca, um certo distanciamento a fazia ficar um pouco alheia ao que
acontecia ao seu redor. Logo a noite chegou. Laura recebeu um cobertor para se aquecer. Seus
olhos agora estavam voltados para a janela que se estendia do outro lado da sala. Embora já
estivesse olhando há bastante tempo, somente depois percebeu surpresa que estava nevando.
Isso a fez sair um pouco de seu vazio interior. Sempre gostou de ver a neve cair. Não demorou
a recordar das brincadeiras, junto de Lisa, fazendo bonecos e bolas. Lembrou de que fora feliz.
E isso a entristeceu ainda mais. Nunca mais teria aquela vida de volta. Fazia tão pouco tempo...
e agora tudo estava tão distante: sua mãe, sua infância, sua alegria... Apenas os flocos de neve
continuavam lá... Como antes, suaves e delicados. Lembrou de quando tentava pegá-los com
as mãos enquanto caíam e eles se desmanchavam imediatamente, como um sonho ao entrar
em contato com a realidade. Sim, os flocos de neve continuavam iguais, pensou novamente
Laura, consolando-se um pouco. Afinal, o mundo lá fora continuava igual como sempre, as
mesmas árvores, os mesmos pássaros, os mesmos rios. Tudo o que precisava era de paz para
poder desfrutar de tudo aquilo novamente. Mas agora parecia tarde demais.

Na manhã seguinte, Laura foi acordada com uma surpresa. Os guardas a puxaram e a levaram
até o gabinete do gonfaloneiro. Havia duas pessoas com ele na sala. Uma delas era Paola.
Estava sentada mais atrás com a cabeça baixa. Parecia triste. Seu corpo fino e branco escondia-
se por trás de um vestido negro, que a cobria até o pescoço. Mais à frente, também de negro,
porém com uma roupa muito mais espalhafatosa, estava uma senhora. Nervosa, a fisionomia
alterada, enrijecida. Quando Laura entrou na sala, a mulher desviou o olhar. Paola, por sua
vez, abaixou ainda mais a cabeça, quase mergulhando-a nos joelhos. Estava chorando.

Após a entrada de Laura, o gonfaloneiro dirigiu-se à mulher de negro à sua frente e perguntou:

- Sua filha tem certeza?

Alguns momentos de silêncio se seguiram, até que a mulher gritou com a filha:

- Vamos, Paola, diga se foi ou não esta moça...

Sem levantar a cabeça, Paola confirmou. Sua mãe, então, voltou-se novamente ao
gonfaloneiro.

- Não há dúvida, é ela.

O gonfaloneiro não queria acreditar que fosse verdade, pois o que as duas tinham acabado de
lhe contar traria ainda mais complicações para ele.

- Senhorita - começou o gonfaloneiro dirigindo-se a Laura -, conhece aquela jovem sentada


naquela cadeira?

Laura, sem entender o que estava se passando, respondeu.

- Sim, nos conhecemos em Florença... Ela estava doente.... a peste.... e então...

O gonfaloneiro deu um longo suspiro.

- A senhorita está sendo acusada de ter praticado bruxaria para a cura desta moça, sendo a
filha de uma conhecida bruxa queimada recentemente, em Florença e mais: é acusada de ter
seduzido esta jovem, forçando-a a ter relações libidinosas, levando-a a cometer um pecado
mortal, provavelmente com a ajuda do demónio... E ainda...

O gonfaloneiro continuou enumerando uma série de acusações, algumas que nem sequer
tinham algum vínculo com a realidade. Mas Laura já havia parado de ouvi-lo. O que mais a
perturbava não eram as possíveis consequências daquelas acusações, pois já não tinha mais
esperanças, mas a atitude da amiga. Atirou o olhar na direcção de Paola, tão incisivo e directo
que a forçou a levantar a cabeça. Queria uma resposta para tanta ingratidão, entender o que a
levara a fazer aquilo, a acusá-la de coisas que nem sequer existiram. Com os olhos vermelhos,
Paola pedia misericórdia, como se ela própria fosse a acusada. Em seu rosto, uma expressão de
dor, desespero e arrependimento. Na verdade fora induzida pela mãe. Jamais tomaria a
iniciativa de fazê-lo sozinha. Agora, implorava o perdão de Laura. E abaixou novamente a
cabeça, resignada em sua própria condenação. Desta vez curvara-se, não por vergonha da
amiga, mas por vergonha de si própria.

Após terminar suas acusações, o gonfaloneiro quis ouvir de Laura sua defesa. Mas ela preferiu
silenciar.
- A senhorita sabe da gravidade das acusações que estão sendo feitas?

- Não conheço suas leis. Só sei que vivia feliz com minha mãe e tudo o que queríamos era paz e
tranquilidade. Por causa disso ela foi morta da maneira mais brutal que se pode imaginar. Eu
ajudei a livrar da morte aquela moça à minha frente, que havia sido abandonada pela família, e
agora também serei condenada. Não sei o que é bruxaria nem nunca vi o demónio, ou talvez o
tenha visto uma vez, na forma do homem que matou minha mãe. Façam de mim o que
quiserem, mas me poupem da tarefa de defender-me, pois isso não faz o menor sentido.

- Não me recordo de ter havido um caso de bruxaria em nossa vila anteriormente. Mas creio
que estas questões devam ser julgadas conjuntamente pelo tribunal civil e eclesiástico.
Teremos de mandar chamar o Bispo de Florença para que ele nos instrua como proceder.
Enquanto isso, a moça será recolhida à prisão. Quanto a senhora, Dona Maria Antonia, creio
que já tenha sido uma dor suficientemente grande vir até aqui nos relatar estes fatos terríveis,
principalmente num momento em que ainda veste o luto pela recente morte de seu marido.
Creia que a justiça será feita e faremos o possível para reparar o mal que esta jovem possa ter
feito à sua filha.

A mãe de Paola levantou-se satisfeita. Tinha no rosto a expressão dura e insensível de quem
age em nome de alguma justiça que julga verdadeira. Mas também não ousava olhar para
Laura. Temia que ela não lhe parecesse tão má e perversa quanto imaginara. Isso poderia
abalar sua determinação em castigá-la. Tinha de castigar Laura, pois esta era a única forma de
inocentar a filha.

Saiu da sala puxando Paola. Esta lançou um último olhar à ex-amiga e se foi. Dois guardas
aproximaram-se de Laura e a levaram para a prisão.

- Pobre moça - disse o gonfaloneiro ao vê-la deixar a sala. Ele próprio não podia crer nas
acusações feitas. Laura era uma criança, assim como Paola. Mas não podia agir diferente. As
acusações eram fortes, ele tinha de cumprir a lei. Além disso, sabia que logo o assunto correria
por toda a vila e naquela altura manter Laura prisioneira era a única forma de garantir que
permanecesse viva. Do contrário, poderia ser linchada pela população.

Semanas se passaram até que se resolvesse o que iria ser feito. O bispo chegara à vila. Ficou
estabelecido que o julgamento seria em Florença, uma vez que os atos de bruxaria haviam sido
praticados naquela cidade. A forma do interrogatório seguiria os costumes adotados para
estes casos, ouvindo-se as testemunhas, a acusada e, em seguida, caso se chegasse à
conclusão de que a ré é culpada, seria forçada a confessar, para que, então, a justiça temporal
pudesse aplicar-lhe a pena capitular.

Laura estava confinada numa cela, inteiramente fechada, sozinha, alimentada a pão e água.
Tudo o que queria era morrer o mais rapidamente possível. Matar-se... Mas nem isso lhe fora
permitido. A cela vazia e escura não lhe oferecia nenhum meio para que pudesse por fim à
própria vida. Era como se já tivesse sido condenada.... a continuar vivendo, embora nada mais
lhe restasse. Se tentasse qualquer coisa, haveria ainda o guarda do lado de fora que a
impediria.
Estava quieta, quando uma movimentação diferente do lado de fora da cela chamou-lhe a
atenção. Talvez tivesse chegado a hora de levá-la para Florença. Podia ouvir alguns resmungos.
Falavam dela. Mas não sabia o quê. Alguém vinha vindo. Pelo barulho parecia que estava
acompanhado de outros guardas. Logo a porta da cela começou a ser destravada. Laura teve
um calafrio.

- Você tem um advogado - gritou de repente o guarda.

Antes mesmo que Laura tivesse tempo de raciocinar, a figura de Marco estava na sua frente.
Os olhos tristes do moço mostravam a dor que sentia por vê-la naquela situação. Os dois se
olharam por alguns momentos até que Laura se desmanchou em prantos. Chorou porque
ganhara uma nova esperança mas temia que isso só lhe trouxesse mais decepções e
sofrimentos. Marco abraçou-a, sob o olhar suspeito do guarda.

- Não se preocupe, Laura, eu estou aqui. Vou ajudá-la - disse ele repetidas vezes ao ouvido
dela.

Desde que Laura fugira do castelo, Marco estivera à sua procura. Alice, as crianças, todos
estavam preocupados em saber o que lhe havia acontecido. Quando soube onde ela se
encontrava, Marco partiu em disparada até seu encontro. Não podia acreditar em tudo o que
diziam a respeito de Laura. Prometeu à sua mãe que a traria de volta sã e salva. Mas não
imaginava que as acusações contra ela fossem tão fortes. Decidiu usar toda sua influência para
tentar liberá-la.

Durante semanas, Marco tentou retardar a saída de Laura da vila. Queria evitar o julgamento.
O peso das acusações, porém, e a pressão da família de Paola foram mais fortes. Laura foi
colocada em uma espécie de gaiola e levada a Florença.

Capítulo 6

"No ano de Nosso Senhor de 1349, no dia 5 do mês de janeiro, em minha presença como
escrivão e na das testemunhas abaixo assinadas, apresentou-se ao Meritíssimo Juiz de nossa
cidade a sra. Leonora Pizzi e sua filha Paola Pizzi, ambas naturais desta mesma diocese, e
ofereceram depoimento nos seguintes termos:

Declarou a depoente Leonora Pizzi que a acusada praticou graves atos de bruxaria contra sua
filha quando esta se encontrava moribunda, sofrendo do mal incurável da peste; que obrigou a
filha a vender sua alma ao demónio em troca de curá-la da doença e que assim o fez, fazendo
com que tomasse uma poção maligna; que a curou em poucos dias e depois disso fez com que
a menina praticasse atos libidinosos como se as duas fossem amantes, tocando as partes
íntimas uma da outra, beijando-se e acariciando-se, tudo com a presença do demónio que
tirou de sua filha toda a consciência, deixando-a completamente fora de si a fim de que a
acusada pudesse dar procedimento às suas intenções perversas, de forma que nunca mais
pudesse viver na fé católica; declarou que até hoje a filha sofre de alucinações, chora
constantemente e tem sua mente transtornada sob o risco de nunca mais se tornar uma moça
normal, tão grande foi o trauma sofrido; acrescentou ainda a depoente que o fato de a
acusada ter salvado a vida da filha não era motivo de alegria para ela, pois temia que o preço
desta cura tivesse sido a venda da alma da jovem ao diabo e que agora sua única esperança de
salvação seria a morte da acusada.

(...) A vítima, Paola Pizzi, confirmou as acusações e declarou que a acusada lhe ofereceu chá,
cuja receita afirmara ter aprendido com sua mãe que era bruxa; declarou que logo após ingerir
a bebida, começou a sentir-se melhor e em poucos dias estava curada. Disse que a acusada em
nenhum momento pareceu temer contrair a doença da depoente, como se soubesse ser
imune ao mal. Que a acusada a ajudava a lavar-se, trocava a sua roupa e ficava sempre junto
da cama; que ao ser perguntada sobre sua mãe a acusada ficava nervosa e dizia que esta foi
presa e morta por pessoas muito más que a acusavam de bruxa. Perguntada se a acusada
havia lhe proposto vender a alma ao diabo, a depoente disse que não se lembra, mas que,
quando tinha febre, o diabo aparecia frequentemente em seus delírios, e parecia querer levá-
la embora e que ela tentava resistir; que, após o contato íntimo que tivera com a acusada, seus
pesadelos se tornaram ainda mais frequentes e que estava muito arrependida do que fizera. A
depoente disse não ter sido forçada a realizar tais atos, mas que uma força incontrolável a
impulsionara. Que o cheiro e a proximidade da acusada excitavam sua libido. Que, durante o
ato, a acusada conhecia os pontos mais eróticos de seu corpo e tocava-os com extrema
habilidade; que, em seguida, ficava profundamente arrependida e temia ser castigada; que, no
entanto, a acusada agia como se não tivesse feito nada de errado; que este desejo obscuro
atormentou a depoente por muito tempo, como um vício. Declarou ainda a depoente que, em
um determinado momento, a acusada decidiu partir, dizendo que havia algo que deveria fazer
e não quis contar-lhe o que era. Que aquela fora a última vez que a vira até o dia em que a
acusada apareceu em sua cidade. Acrescentou que não tinha nenhum rancor contra a acusada
e que gostaria muito que esta não fosse condenada, mas que talvez isso fosse também parte
do feitiço que recebeu, do qual ainda não conseguira libertar-se.

Esta denúncia foi feita sob juramento perante o inquisidor, sobre os quatro evangelhos, para
que o depoente estivesse falando somente a verdade."

Após a oficialização da denúncia, o Bispo de Florença e o Juiz responsável pelo caso iniciaram o
processo contra Laura e passaram a ouvir as testemunhas. Os primeiros a serem chamados
foram Matteo e Umberto, os servos do Conde Ângelo.

"... declaram que reconhecem Laura como sendo a filha da bruxa que foi queimada na última
primavera e que morava dentro das terras do conde. Que, na primeira vez que a viram junto
da mãe, foram atacados pelo próprio diabo em pessoa, acompanhado de seu lobo e os fez
correr até não terem mais pernas. Que, com isso, se separaram do conde, o qual também
acabou sendo atacado, conforme lhes foi relatado mais tarde. Afirmaram também que, por
terem fugido, o conde os expulsara e foram obrigados a viver mendigando na cidade e que só
não morreram de frio e de fome graças à caridade de algumas pessoas que os ajudaram. Que
depois de saberem da morte do conde voltaram à sua casa com o objectivo de oferecerem
seus préstimos e pedirem o perdão da família. Que ao chegarem na casa viram que havia uma
moça nova morando com a família. Que logo a reconheceram e entenderam que ela havia
entrado naquela casa para vingar a morte da mãe e que provavelmente era ela quem tinha
matado o conde, cuja morte fora tão misteriosa quanto era o passado da acusada. Resolveram
então alertar o sr. Federico, filho mais velho do conde, sobre o perigo. Este quis saber se os
servos tinham certeza do que falavam e afirmou que Laura era muito querida pela sua mãe e
também pelo seu irmão Marco e que teria dificuldades em convencê-los daquela história. Que
ao ouvir a confirmação dos dois, Federico pediu-lhes que não contassem aquela história para
mais ninguém e deixassem tudo por sua conta. Que, logo depois, porém, a acusada fugira e
não mais a viram até então."

Toda a cidade estava a par do julgamento e o acompanhava com muita ansiedade, à espera de
seu desfecho. As testemunhas começaram a aparecer em grande número, cada uma contando
histórias fantásticas envolvendo Laura. Pessoas que ela nunca tinha visto acusavam-na de
atrocidades inomináveis. Contavam tê-la visto sobrevoar a cidade em uma noite de lua cheia,
montada nas costas do próprio diabo, e com seus raios, matava as criações das terras vizinhas.
Outros juravam tê-la visto transformar-se em loba e devorar um recém-nascido, começando
pelos seus membros genitais e, em seguida, expondo-lhe as vísceras e arrastando-o mata
adentro, enquanto ele, ainda com vida, grunhia de dor, aos olhos da própria mãe. Laura teria
ainda conduzido várias crianças aos sabás para que lá fossem corrompidas por outras criaturas
perversas, perdendo sua virgindade e sua pureza, sendo ainda convencidas a renegarem a fé
católica.

Laura não podia presenciar os depoimentos, pois temia-se que pudesse enfeitiçar as
testemunhas e evitar que dissessem a verdade. Marco já não sabia como defendê-la de tudo
que a acusavam e, a cada novo depoimento, perdia um pouco mais de sua confiança e de seu
amor por Laura.

A história da morte de seu pai, por exemplo. Embora não gostasse dele e não estivesse
presente quando tudo aconteceu, parecia muito lógico pensar que Laura o tivesse matado por
vingança. Enfim, talvez Federico tivesse razão... Os depoimentos de Umberto e Matteo eram
consistentes... Além disso, não podia aceitar que a mulher por quem estava interessado
tivesse participado de orgias com outra mulher. Isso era demais até para ele. O que o fazia
continuar era a convicção de que essas acusações, assim como todas as outras, eram falsas.
Estavam acusando-a de coisas que ela nunca tinha cometido. Mas a indiferença e a resignação
de Laura quando ele lhe contava sobre as acusações que lhe faziam o estava deixando aflito e
inseguro. Até mesmo Alice, que a princípio também estava do lado de Laura, havia mudado de
opinião. Marco se perguntava por que estava fazendo tudo aquilo por ela. Afinal, não a amava
tanto assim. Estava interessado nela. Achou-a bonita, graciosa, sensível... Mas a Laura que o
atraíra não existia mais. Quando a visitava na cela, via apenas uma mulher suja e desgrenhada,
Seu corpo havia perdido toda a cor e beleza. Estava magra, cheia de feridas e machucada. Seu
olhar era vazio, o rosto sem expressão. Estava tudo acabado. Ela não tinha mais chances.
Nunca voltaria a ser a Laura de antigamente. O que restava a Marco era apenas compaixão. Ou
talvez o medo de dizer-lhe que não a ajudaria mais e acabar com o único resquício de
esperança que ainda restava a ela.

Mas mesmo essa compaixão ficava por vezes abalada. "Talvez ela seja mesmo uma bruxa
assassina", pensava ele. "Talvez tenha matado meu pai. Disseram que ele morreu engasgado
com um osso de codorna... Como uma pessoa pode morrer com um simples osso engasgado
na garganta? Federico disse que ele teve um ataque ao ver Laura..."

Mas ele era a única esperança de Laura. Como chegar e dizer a ela que não iria mais defendê-
la, que não acreditava nela e que na verdade não a amava tanto assim? "Mas, afinal, quem
poderia amar uma pessoa a ponto de continuar ao seu lado numa situação como essa?",
pensava. Laura era uma bruxa e seria morta em breve, quer ele a defendesse ou não. Não
tinha a menor chance e, ficando ao lado dela, ele só estava se prejudicando. Toda a cidade
estava perplexa com sua atitude. Esperavam que logo ele caísse em si, assim como fizera Alice
e os demais, e parasse de tentar ajudá-la. Marco passou alguns dias sem visitá-la, pois não
tinha mais coragem de vê-la. Depois de lutar muito com a própria consciência, decidiu fazê-lo.

Dirigiu-se para a cela de Laura. O caminho nunca lhe pareceu tão tortuoso e sujo. Quando o
guarda lhe abriu a porta da cela, a princípio não viu ninguém. Por um momento achou que ela
não estava lá. Então percebeu-a encolhida, imóvel como um animal rasteiro, em um dos
cantos. Estava com a cabeça entre os joelhos, segurando as pernas como quem procura
proteger-se do frio. Escorrendo pelo chão havia um filete de sangue.

- Laura, você está machucada?

Ela levantou a cabeça ao ver Marco. Mas não mostrou entusiasmo. Parecia prever o que
Marco lhe diria. Ao vê-la novamente, Marco por um momento viu no rosto dela a graça e a
beleza de antigamente. Pensou em voltar atrás, continuar a defendê-la, com todas as suas
forças. Mas já era tarde demais.

Ela se levantou e ficou parada diante dele. Marco, constrangido, segurou-lhe os ombros,
simulando carinho, mantendo-a a uma distância razoável do seu corpo. Preocupou-se em
saber se o guarda havia notado aquela manifestação de afeto. Em seguida, repetiu a pergunta:

- Você está ferida?

Laura ficou sem jeito. Abaixou a cabeça

- Não... exactamente...
Só então ele percebeu que o sangue lhe escorria do ventre. Laura estava menstruada e não
tinha como cobrir o fluxo. Ele então lhe entregou um lenço e virou-se educadamente para que
ela pudesse limpar a perna. Em seguida, recomeçou:

- Laura, estão dizendo coisas terríveis de você... Eu confesso que não sei mais como fazer para
defendê-la... As pessoas estão olhando para mim nas ruas como se eu próprio fosse também
um criminoso... Eu quero ficar do seu lado, minha querida... mas você precisa me ajudar...

- Ajudar?

- Laura, falaram que você matou meu pai...

- Você também vai me deixar, Marco...

- E há aquela história com a filha dos Pizzi...

- Paola?

- Laura, são acusações muito graves. Soube que ela se suicidou. A pobrezinha não aguentou
toda a pressão...

- Paola se matou?

- Sim... Laura, por favor, diga para mim que é tudo mentira, que você é inocente e eu
continuarei ao seu lado.

- Como foi que ela se matou?

- Não sei bem, ela se jogou no rio, ou coisa parecida... Mas, me ouça, está difícil para mim,
entende?

Laura surpreendera-se com a atitude de Paola. Sabia que ela não era culpada do que
acontecera. Não tinha ódio dela. Entristeceu-se com sua morte. Enquanto rememorava o
carinho que tinham uma pela outra e os momentos que passaram juntas, Marco continuava
tentando se explicar, buscando uma forma de dizer que não iria mais defendê-la. Laura,
porém, já não se importava mais. Sabia, antes mesmo de sua chegada, que não poderia mais
contar com ele, que estava só novamente.

- Vá embora! - disse enfim, em voz baixa, quase inaudível.

- Laura, entenda, tudo o que eu quero é ouvir você me dizer que o que estão dizendo não é
verdade. Eu quero ficar do seu lado...

- Cale-se, seu mentiroso. Você veio aqui dizer que não vai mais me defender! - fulminou ela,
com uma raiva repentina.

- Não é verdade...

- Vá embora!
- Laura, eu nunca pensei... Até mesmo Emília testemunhou contra você. Ela disse que estava
grávida e que você arrancou o filho de sua barriga e levou-o embora consigo. Alice ficou
perplexa. Assim como eu, ela não sabe o que pensar. Também já não tem certeza se você foi
ou não responsável pela morte de meu pai...

- Cale-se, por favor - disse Laura, chorando, muito mais pela morte de Paola do que por ele.

Marco ia continuar falando, mas então viu que seria inútil. Calou-se e se foi, vagarosamente,
como se ainda não estivesse totalmente seguro da decisão que havia tomado.

Laura não sofria mais. Não esperava sequer sua morte com ansiedade, pois era como se já
estivesse morta. Não temia a dor do fogo queimando sua pele, pois a dor em sua alma fora
bem maior. Alguns dias se passaram e desde que Marco a deixara, o tratamento que recebia
havia piorado. Estava agora amarrada, suspensa do chão. A cela escura. Ela não conseguia ver
nada. Não conseguia mover-se. De lá sairia para a fogueira. Era como se já estivesse no inferno
antes mesmo de morrer. Confessara tudo o que fizera e o que não fizera. Rendera-se a eles,
humilhara-se. Não valia mais nada. Ninguém se importava com ela. O único interesse que
despertava nas pessoas era o espetáculo que proporcionaria ao ter seu corpo desfigurado em
meio às chamas. Esperavam ouvir seus gritos de dor. Queriam vê-la implorando misericórdia,
para terem a satisfação de negá-la. Usariam-na para encobrir a própria miséria, o próprio
sofrimento, a própria dor. Ao ver alguém sofrer mais que eles, sentir-se-iam felizardos, menos
pecadores, mais próximo de Deus, longe da própria mediocridade. Esqueceriam o profundo
tédio da sua existência e por algum tempo pensariam ser melhores que alguém.

Laura então imaginou sua última vingança. Deixar-se-ia queimar sem emitir um gemido
sequer. Tornaria aquele espetáculo o mais decepcionante possível. Nenhum impropério,
nenhum grito de dor, nenhuma lágrima, nenhum pedido de misericórdia. Apenas o silêncio.
Não saberiam sequer o momento exacto de sua morte. Passaria de uma vida a outra sem que
ninguém percebesse. Todos sairiam frustrados. Ao invés de se sentirem felizes com sua morte,
teriam a estranha sensação de que nada mudara e que continuavam tão miseráveis como
antes. Sim, essa seria sua melhor vingança. Laura sabia que era capaz de resistir em silêncio. Já
estava acostumada à dor. Essa idéia a fez sentir-se melhor, amenizando sua agonia. Percebeu
que ainda estava viva e podia fazer algo para atingir as pessoas. E não tardou até que
finalmente viessem buscá-la. Cortaram seu cabelo, rasparam-lhe todos os pêlos, lavaram-na e
cobriram-na com uma camisola. Foi então levada à praça e presa ao poste, sob o qual havia
sido armada a fogueira. Ao lado, um homem com um tocha ainda apagada na mão. No
palanque, o bispo e algumas autoridades. À sua frente, uma massa uniforme, sem rosto...
gritando. As vozes ecoavam em seu ouvido. Logo avistou o rosto de Marco impassível. Talvez
uma pequena ruga em seu rosto demonstrando sua piedade com relação a ela. Alice não
estava lá. Não conseguiu também avistar Federico. Por que, em seu momento de triunfo,
Federico não estava lá? Finalmente conseguiu provar que Laura era a assassina de seu pai. Ele
que sempre desconfiara dela, indo contra sua mãe e seu irmão, muitas vezes fazendo papel de
tolo...
Um padre começou a rezar. Laura sentia-se como que embriagada. A cabeça girava. Ora e meia
seus olhos cruzavam com os de alguém no meio da multidão. Eram como flechas de ódio
lançadas em sua direcção. Surpreendeu-se de como ainda estava sensível a ponto de magoar-
se com o olhar daquelas pessoas. Olhou para o céu. Imaginou que talvez nunca mais o visse. E
isso a entristeceu verdadeiramente.

O padre havia parado de falar. Laura não olhava mais para nada. Fechou os olhos para
proteger-se da brutalidade e aguardou. Podia sentir o cheiro da tocha já acesa na mão do
carrasco. Seu ouvido filtrou o som da multidão e percebeu o barulho do vento leve que
soprava, acompanhado volta e meia do pio de alguma ave distante. De repente, o silêncio. A
multidão parara de gritar. A respiração do carrasco ao seu lado ficou mais forte. O óleo que
queimava a tocha impregnou suas narinas. Ao fundo ouviu patas de cavalo. Por um momento,
Laura achou que já haviam acendido o fogo. Pareciam todos parados. Ela não ousou abrir os
olhos. Não queria mais olhar aquele mundo hostil. O barulho das patas de cavalo ficou mais
forte. Pareciam vir em sua direcção. Eram muitos. Nenhum outro movimento. Apenas aquelas
patas de cavalo. Então a multidão rompeu o silêncio. Todos gritavam; parecia haver algum
alvoroço. "O carrasco, onde estaria? Iriam começar o fogo?" Laura ouviu barulho de espadas.
Pessoas estavam brigando. Alguns gritos. De repente, seus braços se soltaram da corda que a
amarrava e ela foi carregada por alguém e colocada na garupa de um cavalo. Só então abriu os
olhos. Um homem vestido de preto, com o rosto tampado, a sequestrava para fora dali,
ajudado por outros cavaleiros, também mascarados. Seu cavalo galopava a toda velocidade.
Por vezes sentiu a impressão de que iria cair. Segurava-se firme, abraçando-se ao corpo do
cavaleiro à sua frente.

Após deixarem a cidade, os demais cavaleiros tomaram outra direcção e Laura partiu sozinha
com seu cavaleiro. Cavalgaram o dia inteiro em ritmo acelerado até se encontrarem a uma
distância segura. Já era noite quando o cavaleiro decidiu fazer uma pausa para descansar.
Ainda com o rosto coberto, ele apeou do cavalo e tomou Laura nos braços, fazendo-a descer
também. Improvisou um pequeno fogo e tirou de uma das bolsas de sua cela um coelho para
assar.

Laura ainda não tinha coragem de perguntar-lhe quem era e por que fizera aquilo. Esperou
que ele tomasse a iniciativa. Não haviam trocado uma palavra desde a fuga e só então, quando
o coelho já assava no fogo, ele ousou olhar para Laura. Fixou-a por alguns instantes e então
perguntou:

- Você está bem?

- Sim... Obrigada.

Laura não foi capaz de reconhecer a voz. Fez uma pergunta para tentar ouvi-lo outra vez.

- Você está ferido?

- Apenas um arranhão.
Ele moveu o braço machucado. Laura viu que sangrava bastante e aproximou-se para tratá-lo.
Rasgou um pedaço dos trapos que usava e amarrou firmemente no braço dele para estancar a
hemorragia. Em seguida, olhou-o firmemente nos olhos. Já não tinha mais dúvida de quem
era.

- Federico, por que você fez isso?

Ele fez menção de abaixar a cabeça, como que para esconder-se, mas conteve-se.

Ela então puxou lentamente o pano que cobria o rosto dele, dando-lhe a chance de evitar se
quisesse. Era a mesma face que conhecia, mas viu que o homem por trás dela havia mudado.
Ganhara força e maturidade.

- Creio que... compreendi melhor do que todo mundo o que realmente aconteceu com você,
Laura...

- Você sempre desconfiou de mim...

- Minhas atitudes foram sempre mal interpretadas.

- Então...

- Eu apenas queria saber mais sobre você. Sabia que escondia algo.

- Você acha que eu matei seu pai?

- Não estou certo.

- Acha que eu estava naquela casa para me vingar de todos vocês?

- Creio que não.

- Se for verdade?

- Não importa.

- O que pretende fazer comigo?

- Deixá-la livre.

- E você?

- Voltarei para casa.

Laura estava confusa. Não estava certa de que Federico lhe dizia a verdade. Talvez estivesse
preparando algum plano para traí-la. Mas o que de pior ele poderia desejar a ela do que a dor
da qual ele próprio a libertou?

- Federico, por que você se importa comigo?

- Você ainda ama Marco, Laura?


- Eu... Creio não entender bem o significado desta palavra. Achei que Marco me amava e no
entanto ele me abandonou...

- Amar, Laura, é quando não importa o que o outro diga ou faça, estamos prontos a perdoar. É
sentir o corpo inteiro estremecer quando o vemos. É não saber onde colocar as mãos nem o
que dizer. É sentir o rosto corar de emoção. É ter prazer somente em estar a seu lado. É querer
beijar. É sonhar com o seu cheiro. É gemer à noite enquanto pensamos nele. É considerá-lo
perfeito, lindo. É adorar seus defeitos. É chorar quando o perdemos. É não saber viver sem ele.
É nunca esquecê-lo. É não encontrar ninguém igual. É para sempre, por toda a vida, sem
pausa, sem fim, durante os sonhos, acordado e por toda vida. É não ter medo. É ser feliz. É
conhecer o sentido da vida. É não precisar de mais nada. É mais importante que comer, viver
ou respirar. É absoluto, completo, divino, impossível, irracional, mágico, é tudo...

Laura tentava entender de onde vinham todas aquelas palavras. Jamais poderia imaginá-las
sendo ditas por Federico.

- Não, Federico, acho que na verdade nunca o amei assim, nem ele a mim.

Federico virou os olhos para o fogo, tirou o coelho e cortou um pedaço para Laura. Em seguida
tirou outro para si e começou a comer, em silêncio.

- Federico, eu agradeço o que fez por mim. Mas eu não tenho para onde ir. De uma forma ou
de outra vou acabar morrendo.

- Não se preocupe. Você estará a salvo. Em breve encontraremos dois servos meus. Eu os
incumbi da tarefa de levá-la até Paris.

- Paris? Mas isso não fica muito longe?

- Bastante. Leva algumas semanas até chegar lá. É uma cidade muito bonita. Você vai gostar.

Laura estava cada vez mais surpresa.

- Eu estou muito mal. Federico. Todo meu corpo dói. Eles me torturaram, cortaram meu
cabelo, me feriram. Não suportarei uma viagem dessas.

- Não se preocupe, você viajará numa carruagem muito confortável.

Laura não parava de se surpreender. Federico continuou:

- Meus servos deverão chegar a qualquer momento. Primeiro eles a levarão a uma pequena
pousada. Lá poderá se lavar e tratar seus ferimentos. Você terá roupas novas. Tão logo esteja
melhor, eles a levarão.

- Quem são esses servos?

Federico baixou a cabeça e sorriu:

- Matteo e Umberto.
- Eles!

- Eram os únicos em quem podia confiar, Laura. Você lembra quando vieram a mim pedindo
para readmiti-los em nossa casa? Meu pai os havia expulsado, justo por sua causa. Eles
voltaram pedindo perdão. Eu os recebi de volta mas os fiz jurar lealdade até a morte. Com
certeza, não esperavam que eu fosse pedir-lhes uma tarefa dessas. Mas eles são meus servos
agora. E vão fazer de tudo para me obedecer. Ordenei que a tratassem com o maior respeito e
humildade. E disse-lhes que os mataria pessoalmente se você viesse a sofrer o mais leve
arranhão durante a viagem.

- Mas o que farei lá?

- Eles a levarão até o castelo de alguns parentes nossos. Uma família muito alegre e bem
formada. Eram humildes e tudo o que possuem hoje foi dado pelo meu pai. Eles nos devem
muitos favores. Têm muitas filhas, mais ou menos da sua idade. - Federico foi até o cavalo e
tirou uma carta enorme, com o lacre e o brasão de sua família. - Nesta carta estou pedindo
que a acolham e a tratem como uma filha. Tenho certeza de que farão isso com o maior
prazer. Você vai levar também um pouco de dinheiro para que não dependa mais de ninguém
até o fim de sua vida.

Laura não sabia mais o que pensar.

- E você, Federico?

- Tão logo a entregue nas mãos de Matteo e Umberto, voltarei para minha casa.

Nesse momento, barulhos de patas de cavalo vieram de trás da mata.

- São eles - disse Federico.

Laura sentiu um frio na barriga.

Mais alguns instantes e os dois surgiram. Desceram do cavalo e, ao verem Laura, curvaram-se
em referência.

Federico olhou para eles e disse:

- Vocês já sabem o que têm de fazer. Sigam as minhas instruções e lembrem-se de que só os
aceitarei de volta se ela chegar em segurança até lá.

- Sim, senhor, morreremos, antes que qualquer coisa aconteça à nossa dama durante a viagem
- disseram os dois ao mesmo tempo. Em seguida, dirigindo-se a Laura, curvaram-se
novamente.

Federico tomou Laura pela mão e delicadamente a colocou sobre o cavalo. Arrumou sua capa
preta sobre ela e olhou-a nos olhos.

Só então Laura reconheceu a roupa que Federico usava. Já a tinha visto antes.
- Esta roupa... Federico... Então não era Marco... Aquela noite sensual no jardim... Era você!

Federico sorriu.

- Aquilo foi um sonho, Laura, que nós dois tivemos. Jamais aconteceu na realidade... - disse
Federico, acariciando-a. - Você tem de ir agora. Devem estar atrás de nós. Ficará escondida na
pousada e em seguida partirá na carruagem que mandei preparar. Não tenha medo, tudo
correrá bem.

Então Federico segurou a mão de Laura e beijou-a vagarosamente. Uma lágrima pequena
escorreu de seus olhos. Para escondê-la, ele tentou virar-se, mas Laura não o deixou largar de
sua mão. Fez com que ele olhasse outra vez para ela e perguntou.

- Tudo isso é por amor?

Ele não quis responder. Apenas sorriu. As lágrimas em seus olhos eram bem maiores. Ao
tentar afastar-se novamente, Laura prendeu-o com uma nova pergunta:

- Você não irá mais me ver?

- Isso dependerá de você, Laura. Ao menos agora que está livre, poderei viver com a
possibilidade de revê-la um dia. Bela como sempre foi, doce e suave. Ver o brilho voltar a seus
olhos e senti-la novamente. E então saberei que vale a pena continuar vivo.

Federico atiçou o cavalo de Laura para fazê-lo partir. Alguns passos à frente, Laura virou-se
ainda para vê-lo e com as mãos mandou-lhe um beijo.

O corpo de Federico estremeceu como se uma onda o percorresse dos pés à cabeça. Quis
gritar e trazê-la de volta, mas conteve-se.

- Eu a visitarei! - disse, por fim, ao que Laura respondeu com um sorriso.

FIM

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