Você está na página 1de 13

SEGURANÇA

MÁXIMA
Robert Muchamore
Tradução de Jorge Freire

Oo
SEGURANÇA MÁXIMA

O que é a CHERUB?

A CHERUB é uma agência que pertence aos Serviços


Secretos Britânicos. Os seus agentes têm entre dez e dezassete
anos. Todos os querubins são órfãos recrutados de lares de aco‑
lhimento e treinados para trabalharem como agentes secretos.
Vivem no campus da CHERUB, cujas instalações secretas se
localizam num lugar escondido, algures numa região rural de
Inglaterra.

Que fazem estes miúdos?


Muito. Ninguém imagina que uma criança possa realizar
missões secretas, o que significa que podem fazer muitas coisas
sem que desconfiem delas, ao contrário dos adultos.

Quem são?
Vivem cerca de trezentas crianças no campus da CHERUB.
James Adams é o nosso herói e tem doze anos. No fundo, é um
bom rapaz, mas tem o hábito de se meter em sarilhos. A sua
irmã mais nova, Lauren, também é uma agente. Kerry Chang
é uma campeã de karaté e nasceu em Hong Kong. Gabrielle
O’Brien é a sua melhor amiga. Bruce Norris, também cam‑
peão de karaté, vê­‑se como um homem duro, mas ainda dorme

5
SEGURANÇA MÁXIMA

agarrado a um urso de peluche azul. Kyle Blueman é um agente


com mais experiência. É dois anos mais velho do que James,
mas é um bom amigo.

E as t­‑shirts?
Os querubins estão divididos por postos, de acordo com a
cor da t­‑shirt que usam no campus. As cor­de­laranja são para os
visitantes. As vermelhas para as crianças que vivem no cam‑
pus, mas que são demasiado novas para serem agentes. As
t­‑shirts azuis são para quem faz a difícil recruta de cem dias.
Quem está apto para realizar missões usa uma cinzenta. As
azuis­‑escuras são uma recompensa por um desempenho exce‑
cional numa missão. Um agente de sucesso terminará a carreira
na CHERUB usando a t­‑shirt preta, a maior honra de todas,
atribuída a quem realizou feitos notáveis. Quando os querubins
se reformam, recebem uma t­‑shirt branca, igual à que é usada
pelo pessoal do campus.

6
1. Frio

Antes de iniciares a recruta, terás ouvido histórias contadas por


agentes CHERUB que já a completaram, mitos sobre os cem dias
de treino. Apesar de em cada incorporação termos como objetivo
desenvolver as mesmas capacidades de resistência física e mental,
deves ter em conta que a tua recruta será diferente da dos teus ante‑
cessores, de forma a não perder o elemento surpresa.
Excerto do «Manual de Recruta da CHERUB»

Para onde quer que se olhasse, tudo parecia igual. O brilho


do sol refletido na neve fazia com que as duas raparigas de dez
anos não conseguissem ver a mais de vinte metros de distância,
apesar de usarem óculos escuros para a neve.
– Quanto falta até chegarmos ao posto de controlo? – gri‑
tou Lauren Adams, parando de caminhar, para olhar para o
aparelho de GPS que a amiga tinha em volta do pulso.
– Só mais dois quilómetros e meio – respondeu Bethany
Parker, também a gritar. – Se o terreno se mantiver assim nive‑
lado, devemos chegar ao abrigo dentro de quarenta minutos.
As raparigas tinham de gritar para que as suas vozes se
fizessem ouvir acima do barulho do vento que uivava e das três
camadas de roupa que lhes protegiam as orelhas.

7
SEGURANÇA MÁXIMA

– Isso é muito perto da hora do pôr do sol – berrou Lauren.


– É melhor despacharmo­‑nos.
Tinham partido de madrugada, arrastando os seus trenós
leves que, caso atravessassem terreno acidentado, podiam ser
colocados aos ombros, como uma mochila. A boa notícia era
que as duas recrutas tinham todo o dia seguinte para percorre‑
rem os quinze quilómetros de terreno carregado de neve do
Alasca até ao próximo posto de controlo. As más notícias eram
que àquela hora, em abril, a luz do dia durava apenas quatro
horas; e arrastarem­‑se por um terreno com meio metro de neve
a desfazer­‑se em pó era um esforço físico extremamente exi‑
gente para as coxas e tornozelos. Cada passo que davam era
fonte de dor.
Lauren ouviu um som uivante à distância, que parecia
estar a aumentar.
– Vem aí mais uma rajada de vento – gritou ela.
Aninharam­‑se, puxaram os trenós para perto de si e abra­
çaram­‑se à cintura uma da outra com força. Tal como é possí‑
vel ouvirmos ondas a aproximarem­‑se da costa, nos campos de
neve do Alasca conseguimos ouvir à distância as rajadas fortes
do vento.
Ambas usavam roupa própria para aguentarem temperatu‑
ras extremas. Por cima da roupa interior normal, Lauren vestia
uma camisola de manga comprida e ceroulas. A camada de
roupa seguinte era um fato de fecho de correr, feito de tecido
polar, que cobria todo o seu corpo, com exceção de uma
pequena faixa para os olhos. O fato era também feito de um
outro material, que tinha como objetivo não permitir que o

8
SEGURANÇA MÁXIMA

calor corporal se perdesse. Lauren parecia um coelhinho da


Páscoa: só lhe faltavam o pompom da cauda e as orelhas arrebi‑
tadas. Usava ainda uma balaclava, óculos para a neve e três
pares de luvas, incluindo um à prova de água, que lhe chegava
até aos cotovelos e terminava num elástico que o prendia com
segurança. Por fim, por cima de tudo isto, Lauren usava um fato
para a neve almofadado e botas com crampons.
A roupa permitia­‑lhes manterem­‑se confortáveis enquanto
caminhavam, apesar de a temperatura ser de 18 °C negativos,
descendo mais quinze graus quando soprava uma rajada forte.
O vento fazia com que as camadas de ar quente que o fato não
deixava escapar se deslocassem para sítios onde não eram
necessárias, deixando apenas alguns centímetros de fibra sinté‑
tica entre os seus corpos e o ar gelado e feroz. De cada vez que
o vento entrava e lhes tocava no corpo, provocava­‑lhes uma
dor extrema em qualquer área exposta.
Lauren e Bethany usaram os trenós como para­‑ventos,
enquanto o vento soprava com força. Um pouco do ar gelado
entrou para os óculos de Laura, apesar de o rebordo estar bem
apertado. Ela encostou a cara ao fato de Bethany e fechou os
olhos com força, sentindo a neve e o gelo a serem arremessados
de forma ensurdecedora contra o seu capuz.
Quando a rajada passou e a neve assentou, Lauren sacudiu
a neve fina do fato e ergueu­‑se a custo.
– Tudo bem? – gritou Bethany.
Lauren levantou os polegares.
– Já passaram noventa e nove dias, só falta mais um – res‑
pondeu ela.

9
SEGURANÇA MÁXIMA

*
O abrigo de Lauren e Bethany para aquela noite era um
contentor de metal, pintado num tom de cor de laranja que o
tornava visível à distância. Era o tipo de contentor que se espe‑
rava ver passar na autoestrada, no atrelado de um camião.
Havia uma antena de rádio e uma bandeira desfeita presas no
topo.
As raparigas tinham conseguido chegar antes que a noite
caísse. O sol longínquo já tocava na linha do horizonte, e a luz
que brilhava através da neve que caía polvilhava a paisagem de
um tom leve de amarelo. As raparigas estavam exaustas, inca‑
pazes de apreciar aquela beleza; a sua única preocupação era
aquecerem­‑se.
Demorou alguns minutos a remover a neve que tapava as
portas de metal de um dos lados do contentor. Depois de as abri‑
rem, Lauren puxou os dois trenós para dentro, enquanto Bethany
estudava uma prateleira de madeira, até finalmente encontrar
um candeeiro a gás. Lauren fechou as portas de metal, tão ruido‑
samente, que teriam ensurdecido, não fossem os seus ouvidos
estarem cobertos pelas várias camadas de roupa.
– Temos ainda menos combustível para esta noite – gritou
Lauren, vendo a chama do candeeiro brilhar com um tom azul
tremeluzente. Fixou a botija de gás que lhes restava, enquanto
tirava os óculos e as luvas exteriores. Tinha as mãos geladas,
mas era impossível manejar o que quer que fosse com três pares
de luvas calçadas.
Na primeira noite que passaram naquela região inóspita do
Alasca, as raparigas tinham encontrado duas botijas de gás no

10
SEGURANÇA MÁXIMA

abrigo. Aqueceram o quarto até estar confortável, cozinharam à


vontade e depois aqueceram água para se lavarem. A diversão
acabou de forma abrupta, quando o gás terminou a meio da
noite e a temperatura do abrigo desceu abaixo de zero. Depois
dessa dura lição, esforçaram­‑se ao máximo para racionar o que
restava do combustível.
Bethany encaixou uma mangueira na botija de gás e ligou­‑a
ao pequeno aquecedor, regulando­‑o para o mínimo. Dessa forma,
a temperatura no contentor subiria pouco acima de zero.
Enquanto esperavam que aquecesse, as raparigas mantinham
vestida toda a roupa que pudessem, conforme a tarefa que tinham
de desempenhar o permitisse.
Passaram os minutos seguintes a analisar os mantimentos
que lhes tinham sido deixados. Havia muitos alimentos ricos
em energia, como comida enlatada, bolos de aveia, massa chi‑
nesa instantânea, chocolates e glicose em pó. Encontraram
também os dossiês com a informação acerca da missão, roupa
interior lavada, protetores para os pés e tapetes. Com as pane‑
las, utensílios e sacos­‑cama que traziam nos trenós, tinham
tudo de que precisavam para passarem as dezanove horas que
faltavam até o sol nascer, acolhedor.
Depois de terem a certeza de que possuíam o essencial,
Lauren não resistiu à curiosidade de saber o que estava debaixo
da lona, do outro lado do contentor.
– Deve ser algo de que vamos precisar amanhã, para a mis‑
são – disse Bethany.
Foram até lá e levantaram a lona, vendo que por baixo
havia uma caixa de cartão enorme. Tinha mais de dois metros

11
SEGURANÇA MÁXIMA

de comprimento e chegava quase aos ombros de Lauren. Lim‑


pando a camada de gelo que cobria a caixa, viram o logótipo
da Yamaha e o desenho do contorno de uma moto para a
neve.
– Fixe! – exclamou Bethany. – Acho que as minhas pernas
não aguentavam mais um dia a arrastar­‑me pela neve.
– Alguma vez guiaste uma moto destas? – perguntou Lau‑
ren.
– Nem por isso – respondeu Bethany, acenando que não com
entusiasmo. – Mas não deve ser muito diferente das moto4 que
guiámos no verão passado, na pousada… Vamos abrir os dossiês e
ver o que temos de fazer amanhã.
– É melhor medirmos a nossa temperatura e tirarmos o
rádio primeiro – propôs Lauren.
Havia um aparelho de rádio que já tinha sido ligado à
antena que estava no tejadilho. A bateria estava fria, por isso
demorou alguns segundos até que a luz cor de laranja da fre‑
quência se acendesse. Enquanto esperavam, as raparigas medi‑
ram a temperatura à vez com uma pequena faixa de plástico
que se colocava debaixo do braço.
Ambas tinham entre trinta e cinco e trinta e seis graus, o
que significava que estavam um pouco abaixo da temperatura
normal; isso era de esperar em duas pessoas que tinham passado
as últimas horas num ambiente gelado. Bastava mais uma hora
para que começassem a sofrer os primeiros sintomas de hipoter‑
mia.
Lauren pegou no microfone e marcou a frequência correta.
– Unidade três chama Instrutor Large. Escuto.

12
SEGURANÇA MÁXIMA

– Instrutor Large à escuta… Saudações, meus docinhos.


Era reconfortante escutar a voz de alguém além da de
Bethany, pela primeira vez em vinte e quatro horas, mesmo
que fosse a de Large, o instrutor principal da CHERUB. Não
era fácil lidar com Large. Para ele, garantir que os recrutas
atravessassem um treino rigoroso e exigente não era apenas
um trabalho, mas dava­‑lhe um enorme gozo fazê­‑los sofrer.
– Informo apenas que está tudo bem comigo e com a uni‑
dade quatro – disse Lauren. – Escuto.
– Porque não estão a usar a frequência codificada? Escuto
– perguntou o Instrutor, zangado.
Lauren apercebeu­‑se de que ele tinha razão e rapidamente
ligou o mecanismo de codificação, localizado na parte da frente
do rádio.
– Oh… Desculpe. Escuto.
– Amanhã de manhã, quando te puser as mãos em cima, é
que vais pedir desculpa – disse Large de forma irada. – Menos
dez pontos para os Hufflepuff. Termino.
– Termino – respondeu Lauren com desdém.
Depois, pousou o microfone e pontapeou o contentor.
– Raios, detesto­‑o.
Bethany riu­‑se um pouco.
– Mas não tanto como ele te detesta, por lhe teres dado
com uma pá na cabeça com tanta força que ele caiu naquele
buraco cheio de lama.
– Lá isso é verdade – disse Lauren, rindo ao recordar o inci‑
dente que tinha levado à conclusão abrupta da sua primeira
entrada na recruta. – Acho que é melhor despacharmo­‑nos.

13
SEGURANÇA MÁXIMA

Começa a traduzir as instruções que vêm no dossiê. Vou lá fora


buscar neve para derretermos e bebermos.
Lauren encontrou um balde e pegou na lanterna que estava
no seu trenó. Empurrou a porta do contentor e esgueirou­‑se com
o balde pela pequena fresta, para não deixar escapar calor.
O sol já se pusera e o pequeno arco de luz que vinha do
contentor permitiu a Lauren ver o enorme contorno de algo
que estava deitado na neve. Convencida de que o cansaço a
fizera imaginar aquilo, Lauren acendeu a lanterna.
O que viu não deixava margem para dúvidas. Gritou ao
esgueirar­‑se de novo para entrar no contentor e fechou rapida‑
mente a porta de metal.
– Que foi? – perguntou Bethany, desviando de repente o
olhar das folhas que lia.
– É um urso polar! – exclamou Lauren. – Está deitado na
neve mesmo à nossa porta. Felizmente, acho que está a dormir;
se desse mais uns passos, acho que o pisava.
– Não pode ser – respondeu Bethany.
Lauren apontou a lanterna para o rosto da colega.
– Pega, leva a lanterna. Espreita e vê.
Foi necessária apenas uma olhadela rápida para o confir‑
mar. O monte de pelo branco, com nuvens quentes de respira‑
ção que lhe saíam pelas narinas, estava apenas a cinco metros
das portas do contentor.
*
Depois de recuperarem daquele encontro com a morte, as
raparigas pensaram na melhor forma de resolver a situação e
concluíram que não era grave.

14
SEGURANÇA MÁXIMA

Bastava­‑lhes inclinarem­‑se da porta de metal para apanha‑


rem toda a neve de que precisavam para terem água. Depois de
o fazerem, decidiram deixar o urso gigantesco em paz. Parecia
improvável que o animal decidisse ficar ali exposto ao ar
noturno gelado. De certeza que se afastaria para procurar um
abrigo antes do nascer do sol.
O interior do contentor aquecera ao ponto de as raparigas
não verem as pequenas nuvens de ar a saírem­‑lhes da boca, de
cada vez que expiravam. Depois de terem passado o dia geladas,
parecia­‑lhes perfeito. Tiraram as botas e os fatos exteriores,
pendurando­‑os numa corda de secar, para que o ar quente do
aquecedor fizesse a humidade evaporar­‑se durante a noite.
O chão de metal do contentor era gelado, por isso calça‑
ram as sapatilhas e estenderam os tapetes de espuma isolante,
que retiraram dos trenós. Aumentaram o aquecedor e coloca‑
ram latas de carne de vaca e de fruta à sua frente, enquanto
Bethany derretia uma panela de neve num fogão portátil.
Demoraram uma hora a ler os dados para a etapa seguinte,
que duraria vinte horas, à luz tremeluzente de dois candeeiros a
gás. Havia apenas cinco páginas de informação, mas estas esta‑
vam escritas em línguas com alfabetos não latinos, que as rapa‑
rigas tinham começado a aprender no início da recruta: em
russo para Bethany e em grego para Lauren.
A informação essencial era simples. Tinham de tirar a
moto da caixa e deixá­‑la pronta a ser usada, uma tarefa que
exigia apertar várias peças, lubrificar a lagarta e o motor, além
de encher o depósito com gasolina. Quando o sol nascesse,
teriam duas horas para percorrerem trinta e cinco quilómetros

15
SEGURANÇA MÁXIMA

na moto para a neve, até chegarem a um posto de controlo


onde se encontrariam com os quatro outros recrutas, para faze‑
rem algo que era descrito de forma agoirenta como: “O derra‑
deiro teste de coragem física, em condições climatéricas extre‑
mas”.
– Bem – disse Lauren, ao enfiar a colher na lata de carne
de vaca, que estava quente e gordurosa na orla, mas gelada no
centro. – Pelo menos as instruções para montar a moto para a
neve estão em inglês.

16

Você também pode gostar