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A solidão da e na velhice: a náufraga e a escafandrista

Fábio Belo

Há dois momentos no texto “Sentimento de Solidão”, de Klein (1971 [1959]), nos


quais ela menciona a velhice. No primeiro, ela diz que, na velhice, o sujeito poderá ainda se
identificar com os prazeres das gratificações dos outros, apesar de não poder mais
vivenciá-las. Para a autora, a condição para isso ocorrer é o fato de ter havido “gratidão
pelos prazeres passados, sem excessivo ressentimento, de vez que aqueles não podem
mais ser alcançados” (p. 152). Em outras palavras, diante das inevitáveis perdas trazidas
pela velhice, o sujeito pode ainda obter prazer através da identificação projetiva e sentir
gratificado quando percebe no outro o prazer que outrora fora capaz de gozar.
Na segunda passagem na qual menciona a velhice, Klein (1971 [1959]) nos recorda
da idealização do passado como defesa contra as frustrações do presente. A autora adverte
que os jovens também podem manejar a angústia do mesmo modo, idealizando o futuro. A
questão aqui está relacionada à necessidade de proximidade, interna e externa, de pessoas
amadas. Tal proximidade é sempre um risco e idealizar o passado ou o futuro pode ser um
modo de se desviar do presente, tempo no qual a presença do outro é ameaçadora, violenta
ou excessiva.
É a partir desses dois breves trechos que gostaria de tecer meu comentário sobre a
obra ​O diário de uma boa vizinha​, de Doris Lessing (1983). O romance tem o formato do
diário da jornalista Jane Somers e narra sua amizade com Maudie Fowler. Jane é uma
mulher de quarenta e poucos anos, no auge de sua vida produtiva, como editora de uma
revista feminina. Maudie é uma idosa de um pouco mais de 90 anos e vive sozinha num
apartamento gelado em Londres. As duas têm em comum o desejo pela solidão. Jane
encontra seu melhor momento quando está tomando banho em sua banheira. Sozinha e
narcisista, ela parece viver no automático: trabalha muito, é produtiva, é um modelo de
mulher independente, sem filhos e autônoma. Maudie é uma mulher que passou pela
segunda grande guerra e todo século XX sofrendo muitas formas de violência endereçadas
a uma mulher pobre da classe operária inglesa: abandono pelo marido agressivo;
impossibilidade de cuidar do filho; exploração trabalhista sem limite; fome; falta de moradia.
A impressão que temos é que tanto sofrimento a leva a preferir ficar sozinha e idealizar
momentos do passado, mesmo que permeados de horror e dor.
A chave de leitura que uso para interpretar o romance é o conceito de identificação
projetiva. Jane, por alguma razão, vê-se capturada por Maudie. Revive, através do cuidado
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que endereça a ela, algo que se recusou a viver com o marido que morreu de câncer e a
mãe que morreu idosa. Não sabemos por que Maudie, por qual razão: sabemos que Jane
começa cuidar dela e segue com ela até o fim. Temos, na forma de um diário, uma espécie
de ​Bildungsroman​, uma travessia de abertura narcísica à alteridade.
A vida da mulher economicamente ativa requer o recalcamento da doença e da
velhice, não apenas na prática, mas também simbolicamente. O ideal do eu da
empreendedora exige a independência máxima: isso implica em não ter filhos ou sempre
que possível delegá-los a alguém; implica também a não cuidar excessivamente do outro.
Dependência é o grande fantasma da trabalhadora classe média: cuidar de alguém é uma
perda de tempo, trabalho e dispêndio não remunerado. É incrível, mas o capitalismo
transforma o amor numa espécie de ​potlatch.
Jane, tomada por esse ideal da ​self made woman,​ no entanto, é capturada por
Maudie e começa a se abrir para a alteridade improdutiva, esse resto que resiste ao
recalcamento na sociedade dos autônomos / autômatos. Se a infância se pode evitar
renunciando aos filhos, a velhice e a doença se apresentam a Jana. É aos poucos que ela
começa a se questionar: “Não acha estranho, Joyce, que todos nós tenhamos a ideia
preconcebida de que todos os velhos são algo que deve ser sobrepujado, como um inimigo
ou uma armadilha? E não como pessoas a quem devemos alguma coisa?” (Lessing, 1983,
p. 120).
O imperativo da autonomia destrói a gratidão. Dever cuidado aos mais velhos só
pode existir como ideal ético se a lógica da retribuição e da gratidão operarem. No modo de
produção capitalista, no entanto, parece que tal lógica é inviabilizada. Se o sujeito vale o
que produz, o velho não vale nada. A velha, então, é retirada do campo das trocas
simbólicas: infértil, improdutiva, doente, dependente. A mulher velha é o avesso grotesco do
ideal de eu viril e produtivo do ​self made man. A ​self made woman não deve muito a esse
ideal. Aliás, cai sobre ela também o imperativo ambivalente da maternidade: gerar relações
de dependência extrema, mas mantendo-se o mais independente possível. Não é por acaso
a visão de Jana sobre a solidão:

É um milagre. Solidão, aquela grande dádiva, depende da saúde, ou


de algo muito parecido com saúde. Quando acordo de manhã, sei
que possa fazer compras, cozinhar, arrumar meu apartamento,
escovar meu cabelo, encher a banheira e ficar de molho dentro
dela… e agora saúdo cada dia com ​Que privilégio! Que maravilha!
Que coisa preciosa, não precisa de ninguém para me ajudar a passar
este dia, poder fazer tudo sozinha!​ (Lessing, 1983, 146-7).
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Não é milagre, é privilégio de classe, raça e gênero. Estar bem sozinha é a alegria
do narcisismo bem adequado ao ideal do eu que coincide com os códigos político-libidinais
que informam nossa subjetividade, preenchidas condições materiais (políticas e
econômicas) que situam esse corpo sozinho num lugar protegido, tranquilo, revigorante. A
banheira restauradora de Jane não é metáfora do útero materno, mas de um escafandro
político-libidinal que só funciona recusando fortemente a presença do outro. Assim como
Maudie não revê seu racismo (cf. Lessing, 1983, p. 198) até o fim da vida, Janna não
consegue ir além do meramente individual. Ela continuará, até o fim, apesar de mais tocada
pela alteridade, ainda recusando todo desarranjo que ela traz. Vale para a solidão como
milagre, vale também para sua reflexão acerca da morte:

Imagino, deliberadamente, todo o tipo de pânico, de pavor; procuro


me ver, a mim, Janna, apoiada nos travesseiros, muito velha, sendo
destruída de dentro para fora. Reduzo minhas fronteiras externas,
retrocedendo, primeiro minha carapaça de roupas, minha aparência;
depois meu corpo saudável, que não deixa - ainda - escapar
subitamente sujeira e urina contra minha vontade, mas que é ainda
bem-feito e cheio de saúde; e retrocedo para dentro de mim, para o
conhecimento desse corpo, e imagino essa carcaça como uma
mistura desordenada de carne e ossos. Mas não adianta. Não temo
a morte. Não temo. (Lessing, 1983, p. 206).

Maudie também teima diante da morte, da dependência, da dor. É como se ambas


não precisassem de ninguém, ambas não cedem. Apenas a dor mais excruciante (a do
câncer de estômago, no caso de Maudie e a das costas, no caso de Jane) faz com que
aceitem, a contragosto, a ajuda do outro. Em Maudie, compreendemos melhor essa recusa:
é uma vida de traumatismos sucessivos e cumulativos. É mesmo impossível confiar em
alguém: a morte da mãe aos 15, um pai muito pouco confiável, uma madrastra e irmãs
perversas, um marido ciumento e violento que acaba por lhe tomar o filho, Johnny, ainda
pequeno.
Freud ( ) advertia quanto à impossibilidade de análise para os mais velhos
baseando-se justamente nesta inflexibilidade. Sabemos, no entanto, que há matizes
importantes aqui e que muitos velhos podem sim usufruir ganhos de um processo analítico.
As condições de possibilidade para a análise estão dadas não no presente, mas sempre na
história libidinal do sujeito que a ela se submete. Nossa hipótese é que nesta história da
inflexibilidade há um excesso traumático frente ao qual resta apenas a construção de uma
couraça simbólica, uma armadura (ou um escafandro) subjetiva de pura solidão. A diferença
radical aqui é que Maudie não teve recursos simbólicos para se proteger e permanece
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náufraga no mar da alteridade; já Jane constroi seu escafandro e consegue se relacionar


um pouco mais - apesar da intensa recusa - com o outro.
Tanto Klein (1971 [1959]), quanto Winnicott ( ) nos alertaram quanto à imperiosa
necessidade da internalização do objeto bom para que o sentimento de solidão não fosse
patológico e impedisse o desenvolvimento emocional do sujeito. Jane e Maudie são
gradações desse impedimento: ambas sozinhas. Jane consegue usufruir da solidão, já
Maudie permanece profundamente persecutória, restando pouca esperança de encontrar
algum lugar seguro no mundo ou alguém em quem pudesse realmente confiar. Caminhando
em direção à morte, Maudie parece se abrir um pouco mais para Janna, mas ainda distante
de poder construir essa complexa capacidade de estar só na presença de alguém sem ser
atormentada pela persecutoriedade do objeto.
Caminho para a conclusão dessa breve leitura do romance de Lessing interpretando
um sonho que Maudie conta a Jane:

Sonhei com uma linda cerejeira, como a que havia aqui nos fundos
da casa, antes de ser derrubada por um temporal. Cerejas grandes e
negras, macias, bonitas e brilhantes. Eu estava de um lado da árvore
e o pobre Johnnie do outro, nós dois tentando alcançar as cerejas;
tentamos e tentamos, mas por mais que puxássemos os galhos para
baixo, eles voltavam, com um estalo, e as cerejas estavam fora do
nosso alcance… E ali ficamos, Johnnie e eu, nós dois chorando.
(Lessing, 1983, p. 99).

Sabemos da quase impossibilidade deste trabalho diante da perda de um filho


amado. No sonho de Maudie, temos um seio bom, repleto de cerejas suculentas, mas que é
também um seio mau, pois toda dádiva é inalcançável e serve apenas para aguçar o
desejo, despertar a inveja dilaceradora e incrementar o desamparo, no caso, duplicado pela
impossibilidade de alimentar o filho. Sonho traumático que repete não apenas a própria
fome outrora sentida por Maudie, mas também o trauma de ter visto o filho passar fome e
nada poder fazer por ele. Vamos insistir no caráter político através do qual o desejo pode se
representar: é um sonho que diz de gênero, classe e raça. É a mulher pobre que chora
impotente, é a mulher, operária branca e pobre, que deve permanecer lutando tentando
alcançar o já sabido inalcançável. Maudie é também seu próprio bebê desnutrido, através
do qual, num raro momento de suspensão da solidão, compartilha com ele o espaço
transicional criado pela dor e pela impotência. O desejo que o sonho realiza - reaver o filho -
reatualiza o trauma de perdê-lo para sempre.
O sonho da cerejeira aponta para a primazia da oralidade na vida psíquica de
Maudie. De fato, a genitalidade nem de longe parece ter sido alçada como via de satisfação
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pulsional e simbólica. Quando Maudie descreve as relações sexuais que tivera, ela
descreve estupros e não algo do qual poderia tirar algum proveito. Obviamente estamos
considerando o fato de que seu marido efetivamente a estuprava, quero apenas ressaltar
que mesmo depois desta relação, a genitalidade não operou qualquer papel na vida dela. A
primazia da oralidade aponta para um modo primitivo de se relacionar com o objeto:
internalizando-o, destruindo-o, identificando-se com ele, mas não se separando dele. É este
o terreno da melancolia.
A melancolia de Maudie se expressa através dos mecanismos de defesa apontados
por Klein (1971 [1959]), citados no início do texto: a idealização do passado e uma aguda
recusa da dependência. Tais mecanismo a deixa presa no tempo. O passado não passa. O
presente, neste caso, é apenas uma sucessão de obstáculos que impedem o sujeito de
gozar imaginariamente do que já teve e lamentar compulsivamente o que sofreu. Não há
perlaboração, apenas repetição. O trabalho de melancolia é trabalho da pulsão sexual de
morte: o sujeito sobrevive no máximo de sua passividade, repetindo-a, impedindo que
qualquer um se aproxime e o ajude. O masoquismo aqui não tem um ganho secundário, é
pura perda, pura dor. O ganho é apenas a manutenção do eu como sobrevivente: quanto
mais dor, mais comprovada fica sua onipotência, seu poder miserável de sobreviver aos
ataques colossais e impiedosos do outro.
Se Maudie está presa no tempo, Jane Somers tem mais recursos simbólicos e
sublimatórios para fazer frente à alteridade que tanto recusa. Tendo escapado à reflexão
sobre sua própria passividade diante da mãe e do marido mortos, ela não consegue se
desviar de Maudie. Esta, por alguma razão desconhecida, lhe endereça a potência sedutora
da máxima passividade travestida de onipotência. É esse arranjo que ela precisa
destraduzir. Como nos alerta Jean Laplanche (1999) o trabalho de tradução-destradução é
o que situa o sujeito no tempo, é o que temporaliza efetivamente o sujeito. Um antes e um
depois, o passado que se diferencia do presente, o futuro que é mantido razoavelmente
aberto: toda essa temporalização é absolutamente libidinal. Nada disso é automático e
garantido.
A impressão final é que Janna consegue fazer mover algo em si a partir de sua
intensa relação com Maudie. Não muito, mas algo. E ela escreve e nos endereça essa
história para que também o enigma da velhice e da falência do corpo nos convoque ao
trabalho de traduzir. Ou bem aprendemos a destraduzir-retraduzir a partir do enigma do
corpo que se desfaz, ou ficamos presos ao trabalho de melancolia, idealizando o corpo
imortal, recusando ajudar e ser ajudado. Jane transforma Maudie num personagem de um
romance seu, dá a ela um novo futuro, repara e conserta as coisas, empresta a Maudie a
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capacidade simbólica que ela nunca teve. E, ao fazer isso, Jane repara a si mesma: diminui
a compulsão ao trabalho, acolhe a sobrinha em casa, diminui os banhos intermináveis… em
outras palavras: deixa o escafandro um pouco de lado, abre-se para a alteridade.
A solidão ​da velhice me parece fruto de uma série de processos de defesas que
formatam nosso pacto social hoje. A velhice vai sendo ao longo do tempo identificada como
dependência vergonhosa e passividade abjeta. A improdutividade do corpo envelhecido é
alvo de um ódio proporcional à idealização da performatividade capitalizada do sujeito
neoliberal. Tal cisão só faz aumentar a solidão ​na v​ elhice, pois ficamos sem recursos
simbólicos para lidar com a passividade: pedir ajuda é imoral, recebê-la é a comprovação
de nossa condição de inelutável desamparo.
É neste sentido que estudos sobre a velhice são absolutamente necessários.
Recentemente, orientei a escrita de vários artigos sobre este tema (Biscardi; Santos) e
acredito que há ainda muita pesquisa a ser feita. Os códigos simbólicos que utilizamos para
metabolizar a velhice ainda parecem profundamente comprometidos com o recalcamento e
muito atrelados a ideais empobrecidos. Como fez Jane Somers, é preciso dirigir-se até as
pessoas mais velhas e ouvir o que elas têm a nos dizer.

Bibliografia

Biscardi, V. …
Freud, S.
Klein, M. (1971 [1959]). Sobre o sentimento de solidão. In Klein, M. ​O sentimento de
solidão: ​nosso mundo adulto e outros ensaios. (Correa, P. , Trad.). Rio de Janeiro: Imago,
pp.
Laplanche, J. (1999). Le temps et l'autre. In Laplanche, J. ​La révolution copernicienne
inachevée. ​Paris: Aubier, pp. 359-384.
Lessing, D. (1983). O diário de uma boa vizinha. (Rodrigues, A., Trad.) Rio de Janeiro:
Record.
Santos, M. ….
Winnicott, D. (1958). A capacidade de estar só. In. Winnicott, D. ​O ambiente e os processos
maturacionais. ​pp.

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