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Fábio Belo
que endereça a ela, algo que se recusou a viver com o marido que morreu de câncer e a
mãe que morreu idosa. Não sabemos por que Maudie, por qual razão: sabemos que Jane
começa cuidar dela e segue com ela até o fim. Temos, na forma de um diário, uma espécie
de Bildungsroman, uma travessia de abertura narcísica à alteridade.
A vida da mulher economicamente ativa requer o recalcamento da doença e da
velhice, não apenas na prática, mas também simbolicamente. O ideal do eu da
empreendedora exige a independência máxima: isso implica em não ter filhos ou sempre
que possível delegá-los a alguém; implica também a não cuidar excessivamente do outro.
Dependência é o grande fantasma da trabalhadora classe média: cuidar de alguém é uma
perda de tempo, trabalho e dispêndio não remunerado. É incrível, mas o capitalismo
transforma o amor numa espécie de potlatch.
Jane, tomada por esse ideal da self made woman, no entanto, é capturada por
Maudie e começa a se abrir para a alteridade improdutiva, esse resto que resiste ao
recalcamento na sociedade dos autônomos / autômatos. Se a infância se pode evitar
renunciando aos filhos, a velhice e a doença se apresentam a Jana. É aos poucos que ela
começa a se questionar: “Não acha estranho, Joyce, que todos nós tenhamos a ideia
preconcebida de que todos os velhos são algo que deve ser sobrepujado, como um inimigo
ou uma armadilha? E não como pessoas a quem devemos alguma coisa?” (Lessing, 1983,
p. 120).
O imperativo da autonomia destrói a gratidão. Dever cuidado aos mais velhos só
pode existir como ideal ético se a lógica da retribuição e da gratidão operarem. No modo de
produção capitalista, no entanto, parece que tal lógica é inviabilizada. Se o sujeito vale o
que produz, o velho não vale nada. A velha, então, é retirada do campo das trocas
simbólicas: infértil, improdutiva, doente, dependente. A mulher velha é o avesso grotesco do
ideal de eu viril e produtivo do self made man. A self made woman não deve muito a esse
ideal. Aliás, cai sobre ela também o imperativo ambivalente da maternidade: gerar relações
de dependência extrema, mas mantendo-se o mais independente possível. Não é por acaso
a visão de Jana sobre a solidão:
Não é milagre, é privilégio de classe, raça e gênero. Estar bem sozinha é a alegria
do narcisismo bem adequado ao ideal do eu que coincide com os códigos político-libidinais
que informam nossa subjetividade, preenchidas condições materiais (políticas e
econômicas) que situam esse corpo sozinho num lugar protegido, tranquilo, revigorante. A
banheira restauradora de Jane não é metáfora do útero materno, mas de um escafandro
político-libidinal que só funciona recusando fortemente a presença do outro. Assim como
Maudie não revê seu racismo (cf. Lessing, 1983, p. 198) até o fim da vida, Janna não
consegue ir além do meramente individual. Ela continuará, até o fim, apesar de mais tocada
pela alteridade, ainda recusando todo desarranjo que ela traz. Vale para a solidão como
milagre, vale também para sua reflexão acerca da morte:
Sonhei com uma linda cerejeira, como a que havia aqui nos fundos
da casa, antes de ser derrubada por um temporal. Cerejas grandes e
negras, macias, bonitas e brilhantes. Eu estava de um lado da árvore
e o pobre Johnnie do outro, nós dois tentando alcançar as cerejas;
tentamos e tentamos, mas por mais que puxássemos os galhos para
baixo, eles voltavam, com um estalo, e as cerejas estavam fora do
nosso alcance… E ali ficamos, Johnnie e eu, nós dois chorando.
(Lessing, 1983, p. 99).
pulsional e simbólica. Quando Maudie descreve as relações sexuais que tivera, ela
descreve estupros e não algo do qual poderia tirar algum proveito. Obviamente estamos
considerando o fato de que seu marido efetivamente a estuprava, quero apenas ressaltar
que mesmo depois desta relação, a genitalidade não operou qualquer papel na vida dela. A
primazia da oralidade aponta para um modo primitivo de se relacionar com o objeto:
internalizando-o, destruindo-o, identificando-se com ele, mas não se separando dele. É este
o terreno da melancolia.
A melancolia de Maudie se expressa através dos mecanismos de defesa apontados
por Klein (1971 [1959]), citados no início do texto: a idealização do passado e uma aguda
recusa da dependência. Tais mecanismo a deixa presa no tempo. O passado não passa. O
presente, neste caso, é apenas uma sucessão de obstáculos que impedem o sujeito de
gozar imaginariamente do que já teve e lamentar compulsivamente o que sofreu. Não há
perlaboração, apenas repetição. O trabalho de melancolia é trabalho da pulsão sexual de
morte: o sujeito sobrevive no máximo de sua passividade, repetindo-a, impedindo que
qualquer um se aproxime e o ajude. O masoquismo aqui não tem um ganho secundário, é
pura perda, pura dor. O ganho é apenas a manutenção do eu como sobrevivente: quanto
mais dor, mais comprovada fica sua onipotência, seu poder miserável de sobreviver aos
ataques colossais e impiedosos do outro.
Se Maudie está presa no tempo, Jane Somers tem mais recursos simbólicos e
sublimatórios para fazer frente à alteridade que tanto recusa. Tendo escapado à reflexão
sobre sua própria passividade diante da mãe e do marido mortos, ela não consegue se
desviar de Maudie. Esta, por alguma razão desconhecida, lhe endereça a potência sedutora
da máxima passividade travestida de onipotência. É esse arranjo que ela precisa
destraduzir. Como nos alerta Jean Laplanche (1999) o trabalho de tradução-destradução é
o que situa o sujeito no tempo, é o que temporaliza efetivamente o sujeito. Um antes e um
depois, o passado que se diferencia do presente, o futuro que é mantido razoavelmente
aberto: toda essa temporalização é absolutamente libidinal. Nada disso é automático e
garantido.
A impressão final é que Janna consegue fazer mover algo em si a partir de sua
intensa relação com Maudie. Não muito, mas algo. E ela escreve e nos endereça essa
história para que também o enigma da velhice e da falência do corpo nos convoque ao
trabalho de traduzir. Ou bem aprendemos a destraduzir-retraduzir a partir do enigma do
corpo que se desfaz, ou ficamos presos ao trabalho de melancolia, idealizando o corpo
imortal, recusando ajudar e ser ajudado. Jane transforma Maudie num personagem de um
romance seu, dá a ela um novo futuro, repara e conserta as coisas, empresta a Maudie a
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capacidade simbólica que ela nunca teve. E, ao fazer isso, Jane repara a si mesma: diminui
a compulsão ao trabalho, acolhe a sobrinha em casa, diminui os banhos intermináveis… em
outras palavras: deixa o escafandro um pouco de lado, abre-se para a alteridade.
A solidão da velhice me parece fruto de uma série de processos de defesas que
formatam nosso pacto social hoje. A velhice vai sendo ao longo do tempo identificada como
dependência vergonhosa e passividade abjeta. A improdutividade do corpo envelhecido é
alvo de um ódio proporcional à idealização da performatividade capitalizada do sujeito
neoliberal. Tal cisão só faz aumentar a solidão na v elhice, pois ficamos sem recursos
simbólicos para lidar com a passividade: pedir ajuda é imoral, recebê-la é a comprovação
de nossa condição de inelutável desamparo.
É neste sentido que estudos sobre a velhice são absolutamente necessários.
Recentemente, orientei a escrita de vários artigos sobre este tema (Biscardi; Santos) e
acredito que há ainda muita pesquisa a ser feita. Os códigos simbólicos que utilizamos para
metabolizar a velhice ainda parecem profundamente comprometidos com o recalcamento e
muito atrelados a ideais empobrecidos. Como fez Jane Somers, é preciso dirigir-se até as
pessoas mais velhas e ouvir o que elas têm a nos dizer.
Bibliografia
Biscardi, V. …
Freud, S.
Klein, M. (1971 [1959]). Sobre o sentimento de solidão. In Klein, M. O sentimento de
solidão: nosso mundo adulto e outros ensaios. (Correa, P. , Trad.). Rio de Janeiro: Imago,
pp.
Laplanche, J. (1999). Le temps et l'autre. In Laplanche, J. La révolution copernicienne
inachevée. Paris: Aubier, pp. 359-384.
Lessing, D. (1983). O diário de uma boa vizinha. (Rodrigues, A., Trad.) Rio de Janeiro:
Record.
Santos, M. ….
Winnicott, D. (1958). A capacidade de estar só. In. Winnicott, D. O ambiente e os processos
maturacionais. pp.