Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo: Trata-se de um estudo tipo descritivo de caráter qualitativo em que pretendemos evidenciar as
disputas e tensões, campos de agência e processos de subalternização associados à semântica dos termos: “saber
tradicional”, “saber comunitário”, “práticas alternativas”, “capacitação técnica”, dentre outros, a partir do relato
das parteiras rurais e remanescentes quilombolas que vêm se configurando como interlocutoras de nossa
pesquisa de doutoramento, indagando sobre suas percepções sobre essa linguagem regulatória do saber e como
essas injunções científicas e institucionais vêm impactando sua atuação no partejar, sua relação com as
parturientes e crianças e seu protagonismo nas comunidades a que pertencem. Os resultados revelam que a
história dessas mulheres se inscreve em um saber milenar que ao longo do tempo oferece significativa
contribuição para a construção de um novo olhar em busca da humanização do parto e das relações no contexto
da saúde, embora muito desse saber tenha sido desqualificado pela institucionalização dos cuidados com o parto
e nascimento.
Palavras-chave: Parteira tradicional. Saber comunitário. Subalternização. Agências culturais.
Abstract: It is a descriptive study of qualitative character in which we intend to highlight the disputes and
tensions, agency fields and processes of subjection of semantic related terms: "traditional knowledge", "know",
"community practice" alternatives, "technical training", among others, from the account of rural midwives and
remnant quilombolas coming shaping up as speakers of our doctoral research, inquiring about their perceptions
about this regulatory language of knowledge and how these scientific and institutional orders are impacting
you‟re in deliver, their relationship to the women and children and its role in the communities to which they
belong. The results reveal that the story of these women subscribes to a millennial know that over time provides
a significant contribution to the construction of a new look in search of humanization of childbirth and relations
in the context of health, although much of this knowledge has been disqualified with the institutionalization of
care with labor and birth.
Keywords: traditional Midwife. Know community. Neutralising. Cultural agencies.
1. Introdução
Num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que seus
pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora
pensamos já não sermos, ora pensamos não termos deixado ainda de ser,
sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos
nunca virmos a ser. (SANTOS, 1988. p.1)
Verificamos que até hoje essas metas ainda encontram-se no plano teórico, pois essas
garantias ainda não foram efetivadas, embora a existência da PL nº. 2354/2003 que
regulamenta o exercício da profissão de parteiras tradicionais ainda tramita no Congresso
Nacional.
3.2. Os Cursos de Capacitação de Parteiras Tradicionais: medicalização e higienização do
parto no Amapá-AP.
A preocupação com partos higiênicos e seguros faz com que surja uma parceria
governamental para promover treinamentos para parteiras tradicionais/leigas como forma
alternativa de saúde de mulheres sem acesso a serviços modernos. As parteiras treinadas são
na maioria oriundas de áreas rurais e ribeirinhas, são chamadas na cidade pelo poder público
que de forma articulada trocam suas experiências e socializam suas práticas com outras
parteiras sob o controle do poder médico.
Os cursos de capacitação promovidos pelo Governo do Estado do Amapá seguem uma
lógica de continuidade que acontece desde 1996, são realizados cursos através da Secretaria
de Estado de Inclusão e Mobilização Social e desde 2012 faz parceria com a Rede Cegonha
da Secretaria de Estado da Saúde e Ministério da Saúde do Governo Federal, para promover
atividades de capacitação e treinamentos.
Para tanto, utilizam-se de uma metodologia participativa, organizada em forma de
palestras, aulas expositivas, dinâmicas de apresentação, simulação de parto, higienização, etc.,
enfatizando a interação entre o saber empírico das parteiras e o conhecimento técnico
obstétrico. Essas atividades são executadas por médicos, enfermeiras e psicólogos, com
intuito a nosso ver, de tornar mais urbano o atendimento a mulher rural. Nesses cursos segue-
se um ritual utilizando o “livro da parteira” mostrando cada situação do processo do parto,
apresentam-se mais figuras e fotos do que texto escrito, vez que a maioria das participantes
dos cursos não consegue acompanhar as leituras. Essa metodologia facilita o
acompanhamento pelas parteiras. Nesse ritual, encontra-se o trabalho de higienização do
corpo da mulher (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2012).
Nesses cursos, as parteiras são orientadas a ajudam e acompanhar o estado de saúde da
mulher e do bebê, encaminhar casos urgentes para o serviço de saúde, além de orientar as
mulheres a tomar os medicamentos médicos e se alimente bem. Algumas parteiras que
participam desses cursos contestam em parte essas práticas afirmando a eficiência das ervas
para curar a mulher e o bebê. Assim relata uma parteira tradicional:
Nós já existia antes desses médicos da cidade e de criarem a farmácia, agora
eles vem ensinar o que agente já sabe, só dão nome esquisito de quem
estudou, nós temo experiência e conhece muitas plantas boa pra mulher e pra
criança (J.S. Parteira tradicional, remanescente quilombola).
Agente aprende com os médicos, embora eles não confiem na gente, mais
eles também aprendem com nós. Nós existiam antes deles, eles vieram e nós
caímos na clandestinidade, agora eles nos chama para conversar e
reconhecer que fazemo parto muito bem e cuidamos da mulherada e das
crianças no interior, o erro é querer que agente use só o remédio de farmácia,
mais se não tiver agente usa nosso matinho, que é bom. (M. P. Parteira
tradicional, remanescente quilombola rural).
Às vezes não se tem tesoura pra cortar o imbigo. Muitas vezes, nosso
material de trabalho no interior acaba sendo uma faca qualquer, fervida não
dava „teto‟ no „imbigo‟ da criança, é Deus que protege (J. S. parteira
tradicional remanescente quilombola).
Para as parteiras rurais, os kits são válidos, porém acabam muito rápido então recorrem
ao recurso que retiram da natureza, pois as comunidades que atuam são pobres e em muitos
locais não existe se quer um posto médico. Isso se verifica na fala de uma parteira:
Sem o material que nós recebe do governo, nós recorre ao alho assado, sarro
de cachimbo, não deixo de usar meu azeite de andiroba pra fazer massagem
na mulher e curar o „imbigo‟ do bebê (L. M. parteira tradicional, rural).
Referências