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Tennessee Williams

UM BONDE CHAMADO DESEJO


Arthur Miller
A MORTE DO CAIXEIRO-VIAJANTE
Tennessee Williams
UM BONDE CHAMADO DESEJO
Tradução de Brutus Pedreira
Arthur Miller
A MORTE DO CAIXEIRO-VIAJANTE
Tradução de Flávio Rangel

1980 EDITOR: VICTOR CIVITA


CIP Brasil. Catalogação-na-Fonte Câmara Brasileira do Livro,
SP
Williams, Tennessee, 1911
W691u Um bonde chamado desejo / Tennessee
Wil-
liams ; tradução de Brutus Pedreira. A morte do caixei ro-
viajante / Arthur Miller ; tradução de Flávio Ran gel. São Paulo
: Abril Cultural, 1980.
1. Teatro estadunidense I. Pedreira. Brutus, 1904-1964. II.
Miller, Arthur, 1915 III. Rangel. Flávio, 1934- IV. Título: Um
bonde chamado desejo. V. Título: A morte do caixeiro-
viajante.
78-0912
CDD-812.5
Índices para catálogo sistemático:
1. Século 20 ; Teatro ; Literatura estadunidense 812.5
2. Teatro : Século 20 : Literatura estadunidense 812.5
TENNESSEE WILLIAMS
(1914- )
VIDA E OBRA
(Introdução a Um Bonde Chamado Desejo)
Títulos originais:
A Streetcar Named Desire
Death of a Salesman
Copyright Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo, 1980.
Texto publicado sob licença de Tennessee Williams, Nova
York (Um
Bonde Chamado Desejo), copyright 1947 by Tennessee
Wlliams. Tradução publicada sob licença da Sociedade
Brasileira de Autores
Teatrais, Rio de Janeiro (Um Bonde Chamado Desejo). Texto
publicado sob licença de Arthur Miller, Nova York) A Morte
do Caixeiro- Viajante), copyright 1948, 1949, 1951, 1952,
1975 by
Arthur Miller.
Tradução publicada sob licença de Flávio Nogueira Rangel,
Rio de Janeiro (A Morte do Caixeiro- Viajante).
A humanidade é uma grande esperança perdida. Cada ho-mem
está trancado dentro de si mesmo e sua alma é semelhante a um
poço onde só o sofrimento vive e se agita. Solidão. loucura e
marginalidade são os destinos das criaturas que se corrompem
no dinheiro e no desejo — carcereiros da alma. Não há
liberdade fora da morte. A vida é violência e ritual
antropofágico. Os úni cos companheiros do indivíduo são o
medo e a solidão. E. para eles. não há remédio;
conseqüentemente, não há cura.
Foi a partir dessa terrível visão de mundo que Tennessee
Williams escreveu quase toda a sua obra. Pessimista e
moralista, ele não consegue enxergar seu semelhante como
alguém capaz de engendrar uma nova sociedade — menos
atraente, talvez, mas com sentimentos e valores menos
condenáveis.
Suas personagens são criaturas tristes c solitárias: bêbados,
poetas vagabundos, operários humilhados, mulheres
reprimidas, homossexuais atordoados pela perseguição, atores
sem papel, damas decadentes, virgens loucas, prostitutas
feridas. Sem exceção, um mesmo estigma os tortura: estão sós.
Sua dramaturgia caracteriza-se como uma longa e penosa
confissão solta no tempo e no espaço. Acreditando que a
natureza humana é basicamente corrompida e miserável, ele
juntou ao pessimismo filosófico uma neurose pessoal que nem
a psicanálise conseguiu arrefecer. Mas se as personagens
pertencem ao mundo dos marginais e dos doentes, também são
fruto da mais sincera compaixão humana. Assim, o público
sempre recebeu seus dramas de braços abertos. Os recalques
apresentados no palco pur-gam os espectadores de seus
próprios recalques: nas neuróticas criaturas, cada um projeta a
sua própria neurose.
No entanto, se essa confissão obsessiva tornou Tennessee
Williams cúmplice do público, ela conseguiu separá-lo da
crítica. Os críticos o julgaram várias vezes como um autor
superficial, distante da realidade nos temas que aborda.
Arthur Millcr (1915). dramaturgo norte-americano de idêntico
sucesso, chegou a afirmar que enquanto Tennessee Williams
não mergulhasse suas personagens na história, elas jamais
seriam verdadeiramente humanas. Não passariam de ficção
novelesca e o dramaturgo teria sempre que usar o artifício
formal da cruel-dade para manter vivo o interesse do público.
UMA INFÂNCIA INFELIZ
Para Tennessee Williams, escrever é mais que um modo de
expressão: além de um meio para se comunicar com a vida e
um salto para a fama. tem sido um ritual subjetivo em que ele
exorciza seus demônios e supera a perniciosidade da angústia.
Filho do sofrimento e do preconceito (teve uma infância
marcadamente repressiva), sua vida está sempre presente em
sua obra literária. Em cada personagem que cria há um pouco
dos fantasmas que povoam sua memória.
Batizado como Thomas Lanier Williams, a própria escolha de
seu pseudônimo representa um recuo no passado. Nascido em
Columbus, sul dos Estados Unidos, em 1914, foi viver em St.
Louis, Mississípi, para acompanhar o pai. Ali. por causa de seu
sotaque sulino, os amigos lhe deram o apelido de "Tennessee".
Em homenagem à sua origem, bem como ao sobrenome dos
pais, ele passou a se assinar Tennessee Williams.
A imagem prepotente do pai foi a principal marca que se fixou
em sua personalidade. Cornellius Williams jamais deu im-
portância a Tennessee. Ele lhe parecia um menino frágil e
inconseqüente. Foi para Darkin, o filho mais novo, que se
dirigiram todas as atenções e carinhos. Incompreendido,
acusado e constantemente escarnecido pelo pai. Tennessee
Williams refugiou-se na doçura da mãe. também submissa ao
velho patriarca.
Dos avós maternos guardou lembranças mais amenas. Aris-
tocratas decadentes, os velhos acobertavam a precariedade eco-
nômica e o ocaso social através de requintes cotidianos, fineza
nos gestos e formalismo nas relações pessoais. Todo esse uni-
verso, caracterizado pelo autoritarismo paterno e sensibilidade
materna, seria revivido na obra de Tennessee Williams.
Em Um Bonde Chamado Desejo (A Streetcar Named Desire,
1947) uma de suas peças mais famosas, Stanley Kowalsky, o
principal personagem masculino, tem muito da violência do ve-
lho Cornellius. Blanche Dubois, a protagonista, é sobretudo
uma criatura sensível, semelhante à figura da mãe.
Em 1919, Cornellius abandona o Sul e vai para St. Louis. Um
trabalho modesto, numa fábrica de calçados, leva a família a
alterar o orçamento doméstico e mudar seu padrão de vida. Até
então, Tennessee não conhecera a pobreza, nem a feiúra que
havia nela. Os avós maternos fazem de tudo para esconder do
menino a lamentável situação da família. Mas a miséria de St.
Como um animal acuado, Blanche rejeita o mundo sórdido e
mesquinho que o rude Stanley Kowalskv a obriga a ver.

Louis, com seus bairros pobres e sua gente cansada, humilhada


pelo desemprego e pela fome, salta à vista. Agora não eram
apenas a prepotência e a ignorância de Cornellius que
atormentavam o menino. Um outro estigma viria juntar-se: o
da pobreza.
Para fugir à miséria e à insensibilidade paterna, Tennessee
refugiou-se em seu quarto. Pintou-o de branco e enfeitou-o
com um zoológico de animaizinhos de vidro. Só saía de seu
refúgio para comer. O episódio marcou de tal forma sua
sensibilidade que serviu de base para uma de suas peças mais
famosas:À Margem da Vida (The Glass Menagerie, 1945).
Em St. Louis. Tennessee Williams apaixonou-se pela primeira
e única vez. Cornellius não permitiu o namoro, usando de todos
os subterfúgios para impedi-lo. A jovem era neta de um
empregado da loja onde trabalhava e sua mãe era divorciada —
o que, para ele, não lhe conferia qualquer respeito moral.
Tudo isso significava, para o preconceituoso Cornellius um
sinal de fraqueza. Apaixonar-se por uma moça de origem social
inferior e de passado moral pouco recomendável só podia ser
mais uma humilhação a que o filho queria submetê-lo.
Impedido de prosseguir seu romance, Tennessee fechou-se
no mutismo. Só muito tempo depois escreveria o conto O
Campo das Crianças Tristes, onde desafogou o sofrimento
desse período de repressão. O texto seria publicado na revista
Weird Tales, onde o autor usaria pela primeira vez seu
pseudônimo. Isso o esti-mulou a seguir a carreira jornalística.
Assim, em 1931, ingressou na faculdade.
Sofreu nova ofensiva do pai quando foi recusado pelo exér-
cito. Cornellius. veterano de guerra, considerou a isenção do
filho na carreira militar como uma afronta pessoal. Para puni-
lo, obrigou-o a abandonar o jornalismo e empregou-o como
auxiliar na fábrica de calçados.
Como reação, Tennessee passou a freqüentar bares onde
marginais de todo tipo promoviam orgias e bebedeiras. Vician-
do-se pouco a pouco no ócio e no álcool, sofreu um penoso
processo de degradação física e mental. E acabou interno num
sanatório — bêbado, inútil e ocioso como seus companheiros.
DO ANONIMATO AO SUCESSO
Ainda no sanatório, Tennessee esboçou seu primeiro texto
teatral, Cairo!Xangai! Bombaim! (1925), onde mostrava o
mundo marginal que o conduzira ao esgotamento nervoso.
Sempre sobre o mesmo tema, Tennessee escreveu mais três
peças: The Magic Tower (1936). Candles to the Sun (1936) e
The Fugitive Kind (1937).
Sem uma estrutura equilibrada, esses primeiros trabalhos,
apesar de terem sido bem recebidos pelo público da cidade de
Memphis — onde Tennessee convalescia —, não arrancaram
seu autor do anonimato.
Ansioso por promover-se além do amadorismo, Tennessee
Williams fez nova tentativa, enviando quatro peças de um ato
para um concurso de dramaturgia de Nova York. A coletânea,
reunida sob o nome de American Blues, foi premiada com a
quantia de 100 dólares e uma agente de Hollywood, entusias-
mada com a qualidade dos textos, chamou seu autor para escre-
ver roteiros de cinema. Mas o cinema não seria ainda a porta
definitiva do sucesso: o único roteiro que conseguiu concluir
foi recusado e ele perdeu o contrato.
Um novo momento de angústia seguiu-se ao episódio de
Hollywood. Tennessee, porém, reagiu à depressão e escreveu
sua
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A chegada de Blanche:
cansada, destruída, ela
procura manter a aparência
de uma aristocrata do Sul.
Logo, porém, o choque
com a realidade fará
com que se desagregue.
(Nas fotos, cenas do
espetáculo dirigido por
Elia Kazan em 1947, com
Marlon Brando, Jessica
Tandy, Kim Hunter e
Karl Malden.)

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primeira peça realmente estruturada em termos teatrais: À Mar-
gem da Vida. Encenada com estrondoso êxito de público e
crítica, a peça colocava-o, finalmente, na vanguarda teatral,
chamando a atenção dos principais produtores dos Estados
Unidos.
Procurado com insistência pelo meio teatral, e elogiado pela
imprensa, Tennessee Williams entrou na roda viva do sucesso.
Mas este não foi tão agradável como ele imaginara. Tornar-se
homem público exigia compromissos e alianças muitas vezes
desprezíveis, que violentavam a sua sensibilidade.
Bombardeado incessantemente pela publicidade, devassado em
sua vida íntima, o jovem dramaturgo chegou a ter saudade do
tempo em que era apenas um poeta anônimo, amargando suas
angústias no meio da madrugada.
Em 1944 submeteu-se a uma operação de catarata e foi con-
valescer no México onde, pela primeira vez depois do sucesso
de À Margem da Vida, conseguiu um pouco de tranqüilidade.
Autocriticou-se e comentou o mal que a fama lhe fizera num
artigo belíssimo, "A Catástrofe do Sucesso". Mais duas peças
nasceram desse período de crítica e repouso: Um Bonde Cha-
mado Desejo e Anjo de Pedra (Summer and Smoke).
Em 1947 Anjo de Pedra é montada em Dallas. Mais uma vez
Tennessee conhece o sucesso. Desta vez, mais preparado
emocionalmente, o barulho dos aplausos não o ensurdeceu.
"Acho que será impossível escrever outra peça", disse para
Carson McCullers (1917-1967), escritora que foi sua melhor
amiga. Na época, trabalhavam juntos na adaptação teatral de
um romance de Carson, The Memher of the Wedding (A
Testemunha de Casamento).
Não havia nenhuma indicação de que ele estivesse incapacitado
para criações futuras: Anjo de Pedra nem bem acabara de
estrear, e pouco tempo se passara entre o trabalho de
elaboração daquele texto e a adaptação do romance de Carson.
Um período tão curto longe da máquina de escrever não po-
deria significar, para alguém menos angustiado, senão o
descanso ou o tempo necessário para a interiorização profunda
de um novo tema. Mas Tennessee se sentia estéril, apesar de o
teatro ser a única expressão de seus sofrimentos pessoais.
"Sim, eu já me senti bloqueado como autor. Mas o meu desejo
de escrever sempre foi tão forte que consegui ultrapassar esse
bloqueio", respondeu numa entrevista.
E era verdade. "O desejo de escrever ao mesmo tempo o
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Slanlev vasculha a mala de
Blanche e o pouco que restou
da fortuna de Belle Rève:
jóias falsas, peles ordinárias
e perfumes baratos.

tortura — pois é voraz c insaciável — e o liberta, pois é seu


meio de comunicação com a vida."
Mas de outros desejos falaria em suas peças. Anjo de Pedra e o
desejo sexual reprimido, a alma torturada. John e Alma —
personagens principais do drama — são as figuras antagônicas
da peça. John é a personagem materialista e mesquinha. Alma é
o espirito, puro e torturado pelo desejo.
Um Bonde Chamado Desejo também possui como tema cen-
trai a mesma luta moralista e obsessiva. Blanche é a alma e
Stanley o corpo. Se Anjo de Pedra foi sucesso. Um Bonde
Chamado Desejo foi além do esperado. Encenada em todo o
mundo, a peça foi traduzida em várias línguas e deu a
Tennessee os prêmios Pulitzer e Critc's Award.
FRACASSO E PSICANÁLISE
Laureado, elogiado, sem nenhum obstáculo profissional. tendo
nas mãos os produtores e diretores de teatro mais importantes
do mundo, Tennessee foi descansar em Roma.

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Pela primeira vez não se sentia estéril ao término de uma peça,
pois já estava produzindo um romance: A Primavera da Sra.
Stone (The Roman Spring of Mrs. Stone, 1950) e uma nova
peça, A Rosa Tatuada (The Rose Tattoo, 195 1).
A Rosa Tatuada é seu primeiro texto onde não se vê apenas o
sofrimento e a marginalidade. Tennessee fez essa comédia num
período feliz e no auge do sucesso.
Mas a montagem de 1951 trouxe o primeiro fracasso: "A Rosa"
não foi bem recebida pela crítica, que detestou seu otimismo
lírico.
Deprimido com o fracasso, o escritor tentou novamente o
sucesso. Retomou uma antiga peça em um ato, Ten Blocks on
Camino Real e escreveu Camino Real (1953). Mas os aplausos
não vieram. A peça foi considerada vazia e idealista.
Em 1955 escreveu Gata em Teto de Zinco Quente (Cat on a
Hot Tin Roof). Dirigida por Elia Kazan, "Gata" deu novamente
a Tennessee a alegria perdida dos aplausos. E os prêmios
Pulitzer e Critc's Award. Menos ansioso que nas duas estréias
anteriores, escreveu a peça de que mais gosta: A Descida de
Orfeu (Orpheus Descending, 1955), recolocando nela o tema
da alma torturada pelo desejo.
Desta vez, com mais veemência, a crítica o arrasou. "Orfeu" foi
considerada uma peça moralista e superficial, e Tennessee
saiu-se das acusações gravemente abalado em sua
autoconfiança. Afinal, se "Orfeu" é, em sua opinião, a melhor
coisa que escrevera, por que esse repúdio da crítica?
Temendo, mais que a esterilidade, a incapacidade de julgar o
próprio trabalho, entrou em crise de depressão. Com a morte do
pai, em 1956 — e tendo perdido o avô em 1958 —, Tennessee
decidiu fazer psicanálise. Era insuportável a tensão diária em
que vivia. Preferiu mergulhar em seus fantasmas interiores,
mesmo que esse mergulho o ferisse mais que o fracasso.
Com a psicanálise mais uma fase se iniciou. De Repente, no
Último Verão (Suddenly Last Summer, 1958) é a primeira peça
da chamada fase "psiquiátrica". Sebastian, principal perso-
nagem, é um homossexual que é devorado por uma turba de
rapazes. Interrogado sobre o porquê desse terrível episódio.
Tennessee afirmou: "O indivíduo é um antropófago da pior
espécie(. . .). Todo mundo está disposto a devorar todo mundo
..."
Devido a essa afirmação, a fase "psiquiátrica" foi também
chamada de "fase antropofágica". E acabou exatamente quando
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Na barulhenta e miserável casa dos Kowalsky, surge uma réstia
de esperança para a patética Blanche: o amor de Mitch. De
maneira implacável, porém, ela vê destruída sua última possibilidade
de recuperação.
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a psicanálise acabou. Recebendo alta de seu analista,
Tennessee ingressou numa nova etapa, fusão de todas as
anteriores.
Doce Pássaro da Juventude (Sweet Bird of Youth, 1959).
Período de Ajustamento (Period of Adjustment, 1960) e Noite
do Iguana (The Night ofthe Iguana, 1962) são as principais
peças escritas depois da psicanálise. Elas contêm os mesmos
temas dos outros textos — solidão, marginalidade, violência —
mas não agradaram à crítica.
Doce Pássaro de Juventude conta a história de uma velha atriz
e seu amante. Praticamente a mesma trama reaparece em The
Milk Train Doesn't Stop Here Anymore (1964), que mais tarde
seria adaptada por Joseph Losey para o cinema, com Liz
Taylor, Richard Burton e Noel Coward nos papéis principais.
Quando Tennessee escreveu The Seven Descendents of Myr-
tle (1968), os jornais simplesmente tentaram destruí-lo.
Somente em 1970 ele encontraria forças para voltar a expor-se
publicamente. Nesse ano decidiu procurar um novo rumo para
sua dramaturgia e um novo estilo para suas personagens.
Os temas centrais foram mantidos: morbidez, marginalidade e
repressão sexual. A linguagem mudou: tornou-se fria, distan-
ciada. E as personagens também são mais desgrenhadas que as
anteriores, não lhes sobrando uma ponta de dignidade.
Nas peças anteriores, apesar de contundidas, as criaturas de
Tennessee mantinham certa decência pessoal, dentro de um có-
digo de ética muito particular. Agora elas são predominante-
mente mesquinhas e medíocres — sendo a mediocridade o que
Tennessee considera o pior de todos os defeitos.
Mas Dragon Country (1970), volume que contém uma série de
peças em um ato, não o reconciliou com a crítica. Inseguro e
temendo a esterilidade — fantasma que o perseguira durante
toda a vida —, Tennessee relembra sucessos e fracassos afir-
mando: "Cada escritor, ao longo de sua vida, exprime um único
tema. Para mim, esse tema é a necessidade de compreensão".
A MULHER QUE ESPERAVA O AMOR
Blanche Dubois, protagonista de Um Bonde Chamado Desejo,
é a personagem mais rica de Tennessee Williams. Tem co-
movido platéias de todo o mundo com sua ambígua neurose,
sua fome de amor, sua ânsia de compreensão.
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O interesse de Blanche é despertado por pequenos e sensíveis
detalhes: Mitch fuma cigarros finos, possui uma cigarreira de
prata e gosta de poesia.

A peça conta uma estória simples. Mas é na descrição apai-


xonada e cúmplice das personagens que reside sua grande força
dramática. A irmã de Blanche, Stella, casara-se com Stanley
Kowalsky, homem pobre e rude. Para Blanche é muito difícil
compreender que a irmã, educada de maneira aristocrática e
sensível, tenha se apaixonado por um polonês ignorante e
grosseiro.
Após a ruína da família cada uma das irmãs seguira um destino
próprio. Stella adaptou-se ao mundo de seu marido. Blanche
manteve a postura aristocrática, os gestos finos, a sensibilidade
exacerbada. No entanto foi profundamente infeliz na sua
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vida amorosa: seu marido homossexual acabara por suicidar-se.
O episódio da morte do jovem provocou-lhe violenta depressão
e, a partir de então, ela se prostituiu. Mas a prostituição não foi
para Blanche um meio de remendar a miséria econômica. An-
tes de mais nada serviu como desrecalque sexual de uma
mulher que queria amor e nunca pôde encontrá-lo.
A peça começa quando Blanche — recém-expulsa do colégio
onde lecionava — vai pedir auxílio a Stella. Acusada de tentar
seduzir um aluno adolescente, ela fora demitida como imoral.
E o que se passou entre esse fato e a sua chegada à casa da
irmã permanece obscuro e fantasioso.
Stanley sente-se agredido com a visita daquela mulher refinada
que todo o tempo ironiza a sua rudeza. Começa então a
investigar seu passado. E descobre que Blanche havia se prosti-
tuído num hotel de marginais. A descoberta causa alívio — ao
invés de perplexidade —, pois ele encontra finalmente o argu-
mento que precisava para expulsar a cunhada de casa.
Quando concluiu a investigação, Blanche fazia a última ten-
tativa para encontrar o amor na pessoa de Mitch, amigo de
Stanley. Ela havia mentido sobre o passado para não perder o
respeito do rapaz. Stanley é impiedoso: conta o que sabe a
Mitch, que imediatamente desfaz o noivado e abandona
Blanche.
Enquanto Stella está dando à luz na maternidade, Stanley se
embriaga e atira por terra o que resta de são na personalidade
da cunhada. Violenta-a, e daí por diante ela vai enlouquecendo
até o momento final da peça, quando ele chama os médicos de
um hospício vizinho para interná-la.
"Sempre dependi da delicadeza de estranhos", diz Blanche ao
médico que a conduz suavemente para fora de cena.
Sem saber que vai para um hospício, ela sorri para o médico e
elegantemente se deixa levar.
Quando entrevistaram Tennessee sobre essa personagem, ele
contou que a primeira imagem que tivera de Blanche foi a de
uma mulher sentada numa cadeira, olhando o vazio, à espera de
qualquer coisa. "Talvez o amor". . .
Um Bonde Chamado Desejo é principalmente o drama das
ilusões e frustrações de uma mulher hipersensível,
traumatizada por uma decepção amorosa. Frente a um homem
vigoroso e verdadeiramente primitivo em sua rude
espontaneidade, ela se sente ferida e, ao mesmo tempo,
irremediavelmente atraída. É um forte e reprimido desejo
sexual que a incomoda e repugna.
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Stanley violenta Blanche, atirando por terra o que restava de
são em sua personalidade. Daí por diante ela enlouquecerá
gradativamente.
Tennessee Williams afirmou ser Blanche sua personagem mais
racional. Blanche é, de fato, uma figura singular. Refinada e
nostálgica de seu meio social — onde as mulheres, seres
delicados, são protegidas pelos homens —, ela se considera
superior a todos os que a rodeiam. Reagindo dessa forma, ela
recusa a realidade do sórdido mundo em que se viu obrigada a
viver.
Quando Mitch destrói as lanternas de papel que ela colocara no
apartamento de Stella, ela explode: "Não quero realismo. Eu
quero magia. Sim, sim, magia. É o que tento dar às pessoas.
Não digo a verdade, digo o que deveria ser verdade. E se isso é
pecado, que eu seja amaldiçoada para sempre".
Blanche recusa a pobreza. Não aceita as necessidades criadas
pela miséria. Assim, ela rejeita o mundo e o caráter rude e
imediatista das pessoas que a rodeiam. Sua fragilidade, suas
roupas, sua linguagem e sua vontade de manter a integridade
são valores agressivos num mundo onde as pessoas estão
preocupadas fundamentalmente com a luta pela sobrevivência.
Essa postura a isola de todos, inclusive de sua irmã, Stella.
Adaptando-se de maneira prática e realista à sua vida com
Stanley, Stella aprendeu a aceitar a pobreza e o meio social em
que vive. É a forma que encontrou para manter-se viva. Stella é
cúmplice do internamento da irmã. Sente-se culpada quando o
médico vem buscá-la. Mas, quando Blanche finalmente é
levada para o hospício, ela se apóia em Stanley — seu refúgio,
seu presente e seu futuro —, sabendo que, ao livrar-se de sua
irmã, sua vida retomará o curso normal.
Verdadeiro contraponto à figura de Blanche, Stanley é uma
personagem permanentemente voltada para o presente. Ele é a
resposta viril e sem arestas à decadência aristocrática de
Blanche. Stanley vive quase ao "rés-do-chão". Importa-lhe o
presente e suas necessidades primárias: comer, dormir, fazer
amor, jogar e beber com os amigos. Para viver a seu lado é
preciso ser forte. Ele não compreende as sutilezas, a
sensibilidade ou a poesia. Quando denuncia o passado da
cunhada, cumpre uma sentença que julga necessária para si e
para todos os outros que o rodeiam: é preciso que a vida
continue.
Cada personagem da peça exprime, na realidade, um único
tema, comum a toda obra de Tennessee Williams: a
necessidade de compreensão para indivíduos atingidos pela
marginalidade.
Tennessee Williams não divide o mundo entre o bem e o mal.
Ele se revolta fundamentalmente contra o puritanismo
20
Vivien Leigh (Oscar de melhor atriz, 1951) e Marlon Brando,
os extraordinários intérpretes da versão cinematográfica de Um
Bonde Chamado Desejo.

dentro do qual ele próprio foi criado e assinala


permanentemente o caráter ambíguo da natureza humana. Mas
não consegue evitar o moralismo, a nostalgia da pureza perdida
e a colocação quase alegórica das personagens, símbolos da
carne e do espírito. De qualquer forma, as perversões são para
ele uma forma de purgação dentro de uma concepção cristã. O
próprio final trágico de Um Bonde Chamado Desejo reflete
esse sentido de purgação.
A primeira montagem da peça foi realizada em 1947 e dirigida
por Elia Kazan, fundador do Actors Studio de Nova York.
Kazan deu a Jessica Tandy o papel de Blanche e a Marlon
Brando — que estreava profissionalmente — o papel de
Stanley. Dois anos depois, o espetáculo estreava em Londres,
no Aldwych Thealre, sob a direção de Laurence Olivier e com
Vivien Leigh
21
no papel de Blanche. Na versão cinematográfica, realizada em
1951 por Elia Kazan, os intérpretes escolhidos foram Vivien
Leigh e Marlon Brando.
No Brasil, tivemos duas atrizes que conseguiram interpretações
marcantes no papel de Blanche Dubois: Henriette Morineau, na
direção de Ziembinski. no início da década de 1950, e Maria
Fernanda, dirigida por Augusto Boal, no espetáculo levado
pelo Teatro Oficina de São Paulo em 1965. Nossa última
Blanche foi Eva Wilma, dirigida por Kiko Jaess em 1975.

"Sempre dependi da delicadeza de estranhos ", diz Blanche ao


médico e à enfermeira que a conduzem suavemente para fora
de cena.

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Tennessee Williams

UM BONDE CHAMADO DESEJO


Tradução de Brutus Pedreira
Peça em onze cenas
PERSONAGENS
BLANCHE
STELLA
STANLEY
MITCH
EUNICE
STEVE
PABLO
UMA MULHER NEGRA
UM MÉDICO
UMA ENFERMEIRA
UM JOVEM COBRADOR
UMA MULHER MEXICANA
A ação da peça se desenvolve durante a primavera, o verão e o
começo do outono, em Nova Orleans.
C EN A I
O exterior de um edifício de esquina de dois andares em uma
rua de Nova Orleans, entre os trilhos da L & N e o rio. A
região é pobre mas, ao contrário de regiões correspondentes em
outras cidades americanas, tem um certo charme que emana de
sua própria condição de lugar mal-afamado. As casas, em sua
maioria, são estruturas brancas, desbotadas e cinzentas, com
escadas externas a desmoronar e com galerias e cumeei-ras
singularmente ornamentadas. Este edifício tem dois
apartamentos, um no andar superior e outro no de baixo.
Escadas de um branco esmaecido conduzem às entradas de
ambos.
Estão surgindo as primeiras sombras de uma noite do começo
de maio. O céu que aparece ao redor do sombrio prédio branco
é de um azul singularmente delicado, quase um azul-turquês a,
o que veste a cena com uma espécie de lirismo e graciosamente
atenua a atmosfera de decadência. Pode-se quase sentir o ar
quente que vem do rio escuro, para além dos armazéns situados
à beira do rio, com suas leves fragrâncias de
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bananas e café. Uma atmosfera correspondente é evocada pela
música de artistas negros que freqüentam um bar perto da es-
quina. Nessa parte de Nova Orleans, na realidade, sempre se
está próximo de uma esquina e sempre se ouve, algumas portas
mais abaixo, na rua, o som de estanho de um piano que está
sendo tocado com a apaixonada fluência de dedos escuros.
Esse piano tocando blues expressa o espírito da vida que se
leva nesse lugar.
Duas mulheres, uma branca e outra negra, estão tomando ar
nos degraus do edifício. A mulher branca é Eunice, que ocupa
o apartamento de cima; a mulher negra é uma vizinha, pois
Nova Orleans é uma cidade cosmopolita, e existe um relaciona-
mento relativamente caloroso e descontraído de raças na parte
velha da cidade.
Acima da música do piano blue podem ser ouvidas as vozes de
pessoas da rua sobrepondo-se ao som que vem do piano.
(Dois homens estão dobrando a esquina, Stanley Kowalsky e
Mitch. Eles têm entre vinte e oito e trinta anos de idade e estão
vestidos rusticamente, com macacões azuis de trabalho.
Stanley carrega sua jaqueta de boliche e um pacote manchado
de vermelho que está trazendo do açougue. Eles param ao pé
da escada)
STANLEY
Eh!Stella!Stella!
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(Stella aparece no patamar; é uma jovem amável, tem cerca de
vinte e cinco anos e uma formação obviamente muito diferente
da de seu marido.)
STELLA (ternamente)
Não grite comigo desse jeito. Alô, Mitch.
STANLEY Apanhe!
STELLA
Que é?
STANLEY Carne!
(Ele atira o pacote para ela. Ela grita, protestando, mas
consegue apanhá-lo; então ela ri quase sem fôlego. Seu marido
e o amigo já estão se dirigindo de volta à esquina.)
STELLA (chamando por ele) Stanley ! Aonde é que você vai?
STANLEY
Jogar boliche!
STELLA
Posso ir ver?
STANLEY Venha! (Sai.)
29
STELLA
Vou já. (Para a mulher branca) Alô, Eunice, como vai?
EUNICE
Vou bem. Diga a Steve que arrange o que comer por lá, porque
aqui não sobrou nada.
(Todos riem; a mulher negra não pára de rir. Stella sai.)
MULHER NEGRA
O que é que tinha no pacote que ele jogou para ela?
(Ela se levanta dos degraus, rindo mais alto.)
EUNICE
Quieta aí, agora!
MULHER NEGRA Apanhar o quê!
(Continua a rir. Blanche aparece na esquina, carregando uma
valise. Olha para uma tira de papel, a seguir para o edifício,
novamente para o papel e em seguida de novo para o prédio.
Sua expressão é de incredulidade, e ela parece chocada. Seu
aparecimento destoa nesse cenário. Ela está elegantemente
vestida, com um vestido branco de corpinho leve, colar e
brincos de pérola, luvas e chapéu brancos, com a aparência de
quem estivesse chegando a um chá de verão ou a um coquetel
no parque do distrito. Ela
tem cerca de cinco anos mais que Stella. Sua delicada beleza
deve evitar a luz forte. Há qualquer coisa em relação às suas
maneiras e em relação às suas roupas claras que lembram uma
mariposa.)
EUNICE (finalmente)
Que é que há, meu bem, anda perdida?
BLANCHE (com um tom levemente histérico)
Disseram-me que eu tomasse um bonde chamado Desejo,
depois passasse para um outro chamado Cemitério, andasse
seis quarteirões e desceria nos Campos Elisios!
EUNICE
É onde está, agora.
BLANCHE
Nos Campos Elisios?
EUNICE
É aqui, os Campos Elisios.
BLANCHE
Eles não devem ter compreendido muito bem o número que eu
estou procurando. . .
EUNICE
Que número procura?
(Blanche olha com enfado para a tira de papel.)
BLANCHE
Seiscentos e trinta e dois.
31
EUNICE
Não precisa ir mais longe.
BLANCHE (sem compreender)
Estou procurando minha irmã, Stella Dubois — quero dizer —
a senhora Stanley Kowalski.
EUNICE
É aqui mesmo. Por pouco se desencontrou dela.
BLANCHE
Ela mora aqui?
EUNICE
No andar de baixo e eu no de cima.
BLANCHE.
E ela não está?
EUNICE
Não reparou naquela cancha de boliche, antes de virar a
esquina?
BLANCHE
Não, acho que não.
EUNICE
Pois é lá que ela está, vendo o marido jogar boliche. (Pausa.)
Não quer deixar sua mala e ir lá procurá-la?
BLANCHE
Não, obrigada.
MULHER NEGRA
Vou dizer a ela que a senhora chegou.
32
BLANCHE Obrigada.
MULHER NEGRA
Seja bem-vinda. (Sai.)
EUNICE
Ela não estava esperando a senhora essa noite?
BLANCHE
Não, não. Essa noite não.
EUNICE
Bem, então porque é que não entra e fica à vontade até eles
chegarem?
BLANCHE
Como poderia eu entrar?
EUNICE
Esta casa é nossa. Posso fazer a senhora entrar.
Levanta-se e abre a porta do andar de baixo. Há uma luz atrás
da veneziana, o que a torna azul-claro. Blanche lentamente a
segue para o apartamento do andar de baixo. As áreas que o
cercam escurecem à medida que o interior se ilumina. Podem-
se ver dois aposentos, não muito bem definidos. O aposento em
que elas entram primeiro é realmente uma cozinha, mas contém
uma cama dobrável a ser usada por Blanche. O aposento além
desse é um dormitório. Ao lado desse aposento há uma porta, a
do banheiro.)
33
EUNICE (como que se desculpando, reparando no olhar de
Blanche)
Está um pouco desarrumada agora, mas, depois de limpa,
fica muito agradável mesmo.
BLANCHE É?
EUNICE
Hum, hum, eu acho. Então é irmã de Stella?
BLANCHE
Sou. (Querendo livrar-se dela) E obrigada por me ter feito
entrar.
EUNICE
No hay de que, como dizem os mexicanos, no hay de que!
Stella falou-me da senhora.
BLANCHE
Falou?
EUNICE
Acho que ela me disse que a senhora ensinava na escola.
BLANCHE
Sim, lecionava.
EUNICE
E é do Mississípi, não é?
BLANCHE
Sou.
34
EUNICE
Ela me mostrou um retrato do lugar em que moravam, a
fazenda.
BLANCHE
Belle Rêve?
EUNICE
Uma casa grande e bonita, com colunas brancas.
BLANCHE
É. . .
EUNICE
Uma casa como aquela deve ser bem difícil de manter.
BLANCHE
Se me dá licença, estou quase caindo.
EUNICE
Claro, meu bem. Por que não descança um pouco?
BLANCHE
Não, o que eu quis dizer é que eu gostaria de ficar só.
EUNICE (ofendida)
Ah ! bom, nesse caso eu vou dar o fora.
BLANCHE
Eu não quis ser rude, mas. . .
EUNICE
Vou dar um pulo à cancha de boliche e digo à Stella que venha
já.
35
(Sai. Blanche se senta em uma cadeira, em posição bastante
ereta, com seus ombros levemente arqueados, as pernas
apertadas, bem juntas e as mãos segurando firmemente a bolsa,
como se estivesse sentindo muito frio. Após algum tempo, um
olhar sem brilho sai de seus olhos, e ela começa vagarosamente
a olhar em volta. Um gato mia. Ela retém a respiração com um
gesto de espanto. Subitamente nota alguma coisa em um ar-
mário entreaberto. Levanta-se e cruza o aposento em direção a
ele, apanhando uma garrafa de uísque. Enche meio copo de
uísque e bebe rapidamente. Recoloca cuidadosamente a garrafa
no seu lugar e lava o copo na pia. Em seguida, volta a se sentar
em frente à mesa.)
BLANCHE (em voz baixa, para si mesma) Preciso controlar-
me!
(Stella, apressada, dobra a esquina do prédio e corre para a
porta do apartamento do andar de baixo.)
STELLA (chamando alegremente) Blanche!
(Por um momento elas se fitam uma à outra. Então Blanche
salta e corre para ela com um grito ansioso.)
BLANCHE
Stella, oh, Stella, Stella! Stella que é Estrela! (Começa
36
a falar com vivacidade febril, como se temesse que qualquer
uma delas parasse para pensar. Apertam-se num abraço
impulsivo.)
BLANCHE
Deixe-me olhar para você. Não, mas não olhe para mim agora.
Não, até mais tarde, quando eu tiver tomado um banho e
estiver mais descansada. E apague essa luz de cima, apague
essa luz que eu não quero que ninguém me veja nesse fulgor
impiedoso! (Stella ri e aquiesce.) Agora venha cá, Stella! (Ela a
abraça mais uma vez.)Eu pensei que nunca você chegasse a
este lugar horrível! Mas o que é que eu estou dizendo? Não
quis dizer isso. Eu quis ser amável e dizer: "Que lugar
confortável e tão. . ." Mas, queridinha, ainda não me disse nem
uma palavra!
STELLA
Você não me deu tempo, querida! (Ri, mas a maneira como
olha para Blanche demonstra certa ansiedade.)
BLANCHE
Bem, agora é a sua vez de falar. Abra a sua linda boquinha e
fale, fale enquanto eu vou procurar alguma coisa para beber.
Vocês devem ter uísque nesta casa, não? Onde estará? Onde
estará? Ah, achei!
(Corre para o armário e retira a garrafa; ela está com o corpo
todo trêmulo e com a respiração arquejante. A garrafa quase
lhe escapa das mãos.)
STELLA (reparando)
Blanche, sente-se e deixe-me servir a bebida. Não sei o que e
que temos para misturar com o uísque. Talvez haja uma Coca-
Cola na geladeira.
37
BLANCHE
Não, Coca-Cola não, meu bem. Com os nervos no estado em
que eu estou hoje. Stella, onde está?
STELLA
Quem, Stanley? Jogando boliche. Ele adora jogar boliche.
Estão concorrendo num campeonato. . . encontrei uma soda!
BLANCHE
Só água, meu bem. E agora, não fique preocupada. Sua irmã
não se transformou numa beberrona. Ela está apenas um pouco
agitada, com calor, cansada e suja. Agora, sente-se aqui e
explique-me este lugar! Mas o que é que você está fazendo
num lugar como este?
STELLA
Blanche. . .
BLANCHE
Não, eu não vou ser hipócrita. Eu vou criticar tudo, ho-
nestamente. Nunca, nunca, nos meus piores pesadelos, eu
poderia imaginar uma coisa dessas. Lá fora, eu imagino, estão
as florestas mal-assombradas de Weir! (Ri)
STELLA
Não, querida, isto são os trilhos da L & N.
BLANCHE
Não, não. Agora, falando sério, sem brincadeira. Por que você
não me disse, por que você não me escreveu, querida, por que
você não me contou?
STELLA (servindo-se cuidadosamente de bebida) Não te
contei o quê, Blanche?
BLANCHE
Ora, que você tinha de viver nessas condições !

STELLA
Ah, você está exagerando. Não é tão mau assim ! Nova Orleans
não é como outras cidades.
BLANCHE
Isso não tem nada a ver com Nova Orleans. Você poderia
mesmo dizer. . . oh, perdoe-me, meu bem ! (Ela pára de
repente.) O assunto está encerrado !
STELLA (com uma certa secura) Obrigada.

(Durante a pausa, Blanche olha para ela. Ela sorri para


Blanche.)
BLANCHE (olhando para seu copo, que está se agitando
devido ao tremor de suas mãos)
Você é tudo que eu tenho no mundo, e você não está contente
em me ver !
STELLA (com sinceridade)
Ora, Blanche, você sabe que isso não é verdade.
BLANCHE
Nao? Eu tinha me esquecido como você era quieta.
STELLA
Você nunca me deu uma chance de dizer muita coisa, Blanche.
Por isso é que eu acabei me habituando a ficar quieta perto de
você.
39
BLANCHE (vagamente)
Aí está um bom hábito. . . (Então, abruptamente) Mas não me
perguntou ainda como foi que consegui sair cia escola antes de
terminar o período da primavera.
STELLA
Bem, em pensei que você mesma iria me dizer. . . se você
quisesse.
BLANCHE
Você pensou que eu tinha sido despedida?
STELLA
Não, eu... pensei que você poderia ter ... pedido demissão. . .
BLANCHE
Fiquei de tal modo exausta com tudo que me aconteceu, que
meus nervos não resistiram. (Apagando nervosamente o
cigarro) Estive mesmo à margem da demência. Então, senhor
Graves — o senhor Graves, é o diretor do colégio — sugeriu
que eu tirasse umas férias. Claro que eu não poderia pôr todos
esses detalhes no meu telegrama. (Bebe rapidamente.) Ah, isso
passa através de mim até a última gota e faz com que eu sinta
tão bem!
STELLA
Quer mais um?
BLANCHE
Não, não. Um é o limite.
STELLA
É mesmo?
40
BLANCHE
Mas você não me disse ainda nem uma palavra sobre o meu
aspecto. Que tal estou?
STELLA
Você está ótima.
BLANCHE
Que Deus a abençoe, pela mentira. A luz do dia jamais expôs
uma ruína tão completa. Mas você. . . você engordou um
pouco, sim, você está mesmo bem gordinha! E está bem assim!
STELLA
Ora, Blanche. . .

BLANCHE
Está sim, ou eu não o diria.' Você só tem que tomar um
pouquinho de cuidado com os quadris. Agora deixe-me ver
você. Fique de pé.
STELLA
Agora não.
BLANCHE
Não ouviu o que eu disse? Fique de pé. (Stella se levanta com
relutância.) Ah, menininha descuidada. Você deixou cair
qualquer coisa nessa sua linda gola de renda branca! E esses
cabelos, Stella, você deve mandar arrumá-los me-lhor para
sobressair seus traços tão delicados. Stella, Você tem
empregada, não?
41
Não. Só com dois quartos. . .
BLANCHE
Dois quartos, você disse?
STELLA
Sim, este e. . . (Fica embaraçada.)
BLANCHE
E o outro? (Ri com rispidez. Há um silêncio embaraçoso.)
BLANCHE
Eu vou tomar só mais um golinho, só a saideira, é isso mesmo,
a saideira. Aí eu vou guardar a garrafa para não sentir mais a
tentação. (Levanta-se.) Eu quero que você veja se eu estou em
forma. (Vira-se.) Você sabe que eu não engordei uma grama
em dez anos, Stella? Eu ainda tenho o mesmo peso que naquele
verão em que você deixou Belle Rêve. O verão em que papai
morreu e você nos deixou . . .
STELLA (com certo enfado)
Mas é incrível, Blanche, como você está bem.
BLANCHE (ambas riem constrangidas)
Mas se só há dois quartos, Stella, eu não vejo onde e que eu
vou dormir!
STELLA
Você vai dormir aqui.
BLANCHE
Que espécie de cama é esta — é uma daquela que costumam
desabar? (Senta-se na cama.)
42
STELLA
Não está legal?
BLANCHE ( ambiguamente)
Maravilhosa, meu bem. Eu não gosto de camas muito moles. E
se não há porta entre os quartos, Stella, e Stanley — isso vai
ser decente?
STELLA
Stanley é polonês, você sabe.
BLANCHE
Oh, sim. Eles se parecem um pouco com os irlandeses, não é?
STELLA Bem. . .
BLANCHE
Só que eles não são tão. . . metidos?
(Ambas riem novamente, da mesma maneira.)
BLANCHE
Ah! Bem, de qualquer maneira eu trouxe uns vestidos
lindíssimos para ser apresentada a todos os seus encantadores
amigos.
STELLA
Receio que você não os ache encantadores.
Como são eles?
STELLA
Amigos de Stanley.
BLANCHE
Polacos?
STELLA
É um grupo misturado, Blanche.
BLANCHE
Tipos . . . heterogêneos?
STELLA
Tipos, é isso.
BLANCHE
Bem... de qualquer forma... eu trouxe umas roupas bonitas e
vou usá-las. Eu acho que você está esperando que eu diga que
vou para um hotel, mas eu não vou não. Eu quero ficar perto de
você. eu preciso ficar com alguém, eu não posso ficar sozinha!
Porque . . . como você deve ter notado ... eu não estou muito
boa. . .
(Sua voz se abaixa até se calar, e seu olhar parece assustado.)
STELLA
Você parece um pouco nervosa, exausta ou coisa parecida.
BLANCHE
Será que Stanley vai gostar de mim, ou vai me olhar só como
uma parente que está visitando vocês? Eu não poderia agüentar
isso.
44
STELLA
Vocês vão se dar muito bem; basta que você não tente. . . bem.
. . não tente compará-lo com os homens que saíam conosco
quando estávamos lá em casa.
BLANCHE
Ele é tão . . . diferente assim?
STELLA
É sim. Ele é uma espécie diferente.
BLANCHE
Mas em que sentido? Como ele é?
STELLA
Oh, não dá pra descrever uma pessoa por quem você está
apaixonada. Veja, aqui tem uma foto dele !
(Entrega uma fotografia a Blanche.)
BLANCHE
Ele é oficial?
STELLA
Sargento-mestre do Corpo de Sapadores. Aquilo ali são
condecorações que ele ganhou !
BLANCHE
Ele as usava quando você o conheceu?
STELLA
Eu te garanto que não me deixei impressionar só por essa
lataria.
45
BLANCHE
Isso não é o que eu ...
STELLA
É claro que depois eu tive que me acostumar a certas coisas.
BLANCHE
Como a mentalidade dele na vida civil!
(Stella ri sem convicção.)
BLANCHE
Como foi que ele reagiu, Stella, quando você disse que eu
viria?
STELLA
Oh, Stanley ainda não sabe.
BLANCHE (assustada)
Como, você ainda não lhe disse nada?
STELLA
Ele passa a maior parte do tempo viajando.
BLANCHE
Ah, ele viaja?
STELLA Sim.
BLANCHE
Bom. Eu imagino, não é mesmo?
STELLA (um pouco para si mesma)
Mal posso suportar quando passa uma noite fora.
46
BLANCHE Por que, Stella?
STELLA
. . . Quando ele passa uma semana fora fico desespe-rada. E,
quando volta, choro no colo dele, como uma criança. . . (Sorri
para si mesma.)
BLANCHE
Acho que é a isso que se chama estar apaixonada. . . (Stella
olha para cima com um sorriso radiante.) Stella. ..
STELLA O quê?
BLANCHE (numa agitação descontrolada)
. . Stella, eu não lhe perguntei as coisas que você, pro-
vavelmente, pensou que eu lhe perguntaria. Por isso, eu espero
que você seja compreensiva a respeito do que eu tenho a lhe
dizer.
STELLA
O que, Blanche?
(Sua face demonstra ansiedade.)
BLANCHE
Eu sei que você vai me censurar por isso. Estou certa de que
vai, mas antes de fazê Io, leve em consideração que você
abandonou Belle Rêve. Eu fiquei e lutei. Você veio para Nova
Orleans e tratou de arranjar-se!. . . Eu fiquei em Belle Rêve e
tentei mantê-la! Não estou lhe dizendo isso como uma censura,
mas todo o peso caiu nas minhas costas.
47
STELLA
Eu me sustentei. Que mais você queria que eu fizesse,
Blanche?
(Blanche começa novamente a tremer com intensidade.)
BLANCHE
Eu sei, eu sei. Mas foi você quem abandonou Belle Rêve, não
eu! Fiquei em Belle Rêve e lutei por ela, sangrei-me por ela,
quase morri por ela!
STELLA
Pare com essa explosão de histeria e conte-me o que
aconteceu! Que quer você dizer com isso de lutei e sangrei?
BLANCHE
Eu sabia, Stella, eu sabia que você ia reagir assim a respeito
desse assunto . . .
STELLA
A respeito de que. . . por favor !
BLANCHE (lentamente) A perda, Stella, a perda !
STELLA
Belle Rêve, perdida, é isso? Não !
BLANCHE
Sim, Stella é isso.
(Elas se olham por cima do linóleo de xa-
48
drez amarelo da mesa. Blanche lentamente balança a cabeça e
Stella olha lentamente para baixo, para suas mãos entrelaçadas
em cima da mesa. A música do piano blue se torna mais alta.
Blanche passa o lenço na testa.)
STELLA
Mas como foi que aconteceu?
BLANCHE (levantando-se)
Muito engraçado, você perguntar-me como foi que aconteceu !
STELLA
Blanche!
BLANCHE
Muito engraçado você aí sentada me acusando !
STELLA
Blanche!
BLANCHE
Eu tive que receber todos os golpes sozinha. Todas aquelas
mortes. . . O longo desfile para o cemitério. Papai, mamãe,
nossa irmã, daquela maneira horrível! Você só vinha para casa
à hora dos enterros, Stella. E os enterros são belos, comparados
com a morte... Os enterros são calmos, e com lindas flores.
Mas as mortes nem sem-pre. . . Às vezes a sua voz é rouca.
Outras vezes pare-cem mesmo gritar: "Não, não me deixem
morrer!" Como se nós fôssemos capazes de fazê-lo! A menos
que se tenha estado lá, ao lado da cama quando eles grita
49
vam, jamais se poderá imaginar que houve luta por ar e sangue!
Mas eu vi, Stella. Eu vi, eu vi. E agora você fica aí sentada
acusando-me por eu ter perdido a propriedade ! Mas como é
que você pensa que eu paguei por todas aquelas doenças e
aquelas mortes? — A morte custa caro, Stella. E ela já tinha
armado a sua tenda defronte a nossa porta. Belle Rêve era o seu
quartel-general. E qual deles nos deixou um centavo que fosse
da sua fortuna? E eu com meu ordenado ridículo de professora
de escola! Sim, sente-se aí e acuse-me por ter deixado perder a
propriedade. Eu deixei a propriedade perder-se? Mas onde
estava você? Na cama com o seu "polaco"!
STELLA (levantando-se)
Blanche, fique quieta! (Caminha como se fosse sair da sala.)
BLANCHE
Stella, aonde você vai?
STELLA
Vou ao banheiro lavar o rosto.
BLANCHE
Oh, Stella, Stella, você está chorando. . .
STELLA
Blanche, isto a surpreende?
BLANCHE
Perdoe-me, Stella, eu não quis. . .
(Ouve-se o som de vozes de homens. Stella entra no banheiro,
fechando a porta
50
atrás de si. Quando os homens aparecem, Blanche, percebendo
que deve ser Stanley voltando do boliche, caminha desorien-
tada da porta do banheiro à penteadeira, olhando
apreensivamente para a porta da frente. Stanley entra, seguido
por Steve e Mitch. Stanley faz uma pausa perto da porta de sua
casa, Steve fica ao pé da escada em espiral, e Mitch fica
ligeramente acima e à direita deles, querendo ir embora.
Enquanto os outros homens entram, ouve-se parte do seu
diálogo.)
STANLEY
Foi assim que ele ganhou?
STEVE
Claro. Seguiu o palpite que eles lhe deram e ganhou tre-zentos
dólares, com um bilhete de seis números.
MITCH
Não lhe diga essas coisas. Ele é capaz de acreditar. (Faz
menção de se retirar.)
STANLEY (impedindo Mitch de sair) Ei, Mitch, venha cá.
(Blanche, ao som das vozes, retira-se para o quarto. Ela apanha
a foto de Stanley na penteadeira, olha para ele e a põe
novamente no lugar. Quando Stanley entra no aparta-mento,
ela se move rapidamente e se esconde atrás da tela na cabeceira
da cama.)
51
STEVE (para Stanley e Mitch) Ei, jogamos pôquer amanhã?
STANLEY
Claro que sim, na casa de Mitch.
MITCH (ouvindo e voltando-se rapidamente, apoiado ao
corrimão) Não, na minha casa, não. Minha mãe ainda está
doente.
STANLEY
Está bem. Na minha casa, então. . . Mas. vocês trazem a
cerveja.
(Mitch finge não ouvir, diz "boa noite para todos" e vai
embora, cantando. Ouve-se, vindo de cima, a voz de Eunice.)
EUNICE
Fiz um prato de espaguete e comi sozinha.
STEVE (subindo as escadas)
Eu disse a você e telefonei que estávamos jogando. (Para os
homens) Cerveja Jax !
EUNICE
Você não telefonou nem uma vez . . .
STEVE
Eu disse de manhã e telefonei na hora do almoço. . .
EUNICE
Bem, isso não tem importância. Veja se aparece aqui em casa
de vez em quando. . .
52
STEVE
Quer que saia nos jornais?
(Mais risadas e gritos de despedidas vêm de onde estão os
homens. Stanley abre num repelão a porta de tela da cozinha e
entra. Tem estatura média, entre 1,72 m e 1,75 m, e é de
compleição robusta e compacta. Uma alegria animal que está
implícita em todos os seus movimentos e atitudes. Desde os
primeiros anos de sua idade adulta, o centro de sua vida tem
sido o prazer com as mulheres, o dar e o receber do jogo do
amor, não com uma fraca atitude de concessão, de maneira
dependente, mas sim com o poder e o orgulho de um galo
emplumado de ricas penas em meio às galinhas. Espalhando-se
a partir desse centro absoluto e capaz de satis-fazê-lo estão
todos os canais auxiliares de sua vida, tais como sua
amabilidade para com outros homens, seu gosto pelo humor
grosseiro, seu amor por bebida, comida e jogos, seu carro, seu
rádio, tudo que lhe pertence, que traz seu emblema de macho
rom-pante. Ele avalia as mulheres num só olhar, com
classificações sexuais em que imagens cruas faíscam em sua
mente e determinam a maneira como ele sorri para elas.)
BLANCHE (tentando involuntariamente evitar seu olhar
fixo) Você deve ser Stanley, não? Eu sou Blanche.
STANLEY
A irmã de Stella?
53
BLANCHE Sim.
STANLEY
Alô!
BLANCHE
Alô!
STANLEY
Onde está ela?
BLANCHE
No toalete.
STANLEY
Ah, não sabia que você vinha. De onde você é, Blanche?
BLANCHE
Eu ... eu moro em Laurel.
(Ele atravessa o aposento em direção ao armário e retira a
garrafa de uísque.)
STANLEY
Em Laurel, é? Ah, sim, sim, em Laurel, é verdade, não é da
minha região. A bebida vai embora depressa quando faz calor.
(Segura a garrafa contra a luz para observar o nível do líquido.)
Quer um gole?
BLANCHE
Não, não. Eu ... raramente toco em bebida. . .
STANLEY
Muita gente raramente toca em bebida, mas a bebida, muitas
vezes, os deixa tocados.
54
BLANCHE (com voz abafada) Ha, ha.
STANLEY
Estou com a roupa grudada no corpo. Você se incomoda se eu
fico à vontade? (Começa a tirar a camisa.)
BLANCHE
Não, por favor.
STANLEY
Ficar a vontade é o meu lema!
BLANCHE
Ah, é o meu também. E é tão difícil manter uma aparên-cia
limpa com este calor! Eu ainda não me lavei nem botei um
pouco de de pó-de-arroz e você já está aí.
STANLEY
A gente pode apanhar um resfriado ficando com a camisa
molhada no corpo, principalmente quando se faz exercício
pesado, como o boliche. Você é professora, não
é?
BLANCHE Sou.
STANLEY
O que é que você ensina, Blanche?
BLANCHE
Literatura inglesa.
STANLEY
Nunca fui bom em literatura inglesa. Quanto tempo vai ficar
aqui, Blanche?
55
BLANCHE
Eu ainda não sei.
STANLEY
Vai morar aqui com a gente?
BLANCHE
Eu gostaria, se não fosse muito inconveniente para vocês todos.
. . Viajar me deixa tão cansada!
STANLEY Bem, descanse.
(Um gato mia perto da janela. Blanche se assusta.)
BLANCHE
Que é isso?
STANLEY
Gatos. . . Stella!
STELLA (do banheiro, com voz abafada) Já vou, Stanley.
STANLEY
Você não caiu no vaso, hein? (Sorri maliciosamente para
Blanche. Ela tenta sem êxito retribuir o sorriso. Há um
silêncio.) Receio que você fique chocada por eu ser um tipo
vulgar. Stella falou muito a seu respeito. Você já foi casada,
não foi?
(O som de uma polca torna-se audível, abafado pela distância.)
56
BLANCHE
Fui, quando eu era muito jovem.
STANLEY
Que aconteceu?
BLANCHE
O rapaz morreu. (Ela ameaça cair.) Tenho medo, eu... estou
passando mal! (Sua cabeça pende para a frente.)
57
CENA II
São seis horas da tarde seguinte. Blanche está tomando banho.
Stella está completando sua toalete. O vestido de Blanche, es-
tampado com flores, está estendido sobre a cama de Stella.
Stanley entra na cozinha, vindo de fora, deixando a porta
aberta. Por ela entra o som do perpétuo piano blue que vem do
lado da esquina.
STANLEY
Pra que é toda essa palhaçada?
STELLA
Oh! Stan! (Salta e o beija, ele aceita o beijo com uma calma
arrogância.) Vou levar Blanche para jantar no Ga-latoire e,
depois, a um espetáculo, porque esta é a sua noite de pôquer.
STANLEY
E o meu jantar, como é, hein? Não vou jantar em nenhum
Galatoire!
STELLA
um prato de frios para você na geladeira.
59
STANLEY
Puxa! Quanta gentileza.
STELLA
Quero ver se fico fora com Blanche até o pôquer acabar. Não
sei o que ela acharia desse jogo aqui em casa. Por isso. nós
vamos depois a um desses lugarzinhos do bairro e eu vou
precisar de dinheiro.
STANLEY
Onde é que ela está?
STELLA
De molho, num banho quente, para acalmar os nervos. Está
terrivelmente descontrolada.
STANLEY Por quê?
STELLA
Depois da prova de fogo que teve que suportar. . .
STANLEY É?
STELLA
Stan, nós perdemos Belle Rêve.
STANLEY
A propriedade lá no campo?
STELLA
Sim.
STANLEY Como?
60
STELLA (vagamente)
Oh! Teve de ser sacrificada ou coisa parecida. (Há uma pausa
enquanto Stanley reflete. Stella veste e ajeita seu vestido.)
Quando ela vier não deixe de dizer-lhe qualquer coisa amável
sobre a sua aparência. E — ah! — não fale do bebê. Ainda não
lhe disse nada, estou esperando que se acalme um pouco.
STANLEY (sombrio) Ah!é?
STELLA
Procure compreendê-la e ser gentil com ela, Stan.
BLANCHE (cantando no banheiro) "Da terra de água azul
como o céu, Eles trouxeram uma donzela cativa!"
STELLA
Ela não esperava encontrar-nos num apartamento tão pequeno.
Nas minhas cartas procurei melhorar um pouco as coisas.
STANLEY
É?. . .
STELLA
E elogie o seu vestido e diga que está encantadora. Isto tem
muita importância para Blanche. É o seu fraco !
STANLEY
compreendo. Agora vamos voltar atrás um pouqui-nho, onde
você disse que a propriedade do campo foi Perdida.
61
STELLA
Ah! Sim. . .
STANLEY
Que tal lhe parece? Arranje-me uns detalhes sobre esse
assunto.
STELLA
É melhor não falar muito nisso, enquanto ela não se acalmar.
STANLEY
Então é assim, é? A irmã Blanche não pode aborrecer-se com
negócios agora?
STELLA
Você viu como ela estava ontem à noite.
STANLEY
Hum, hum, vi como estava! Agora vamos dar uma espiada no
recibo de venda.
STELLA
Não vi nenhum recibo.
STANLEY
Ela não te mostrou nenhum papel, nenhuma escritura de venda
ou nada parecido, hein?
STELLA
Parece que não foi vendida.
STANLEY
Bem, então que diabo fizeram, deram de presente pra alguma
organização de caridade?
62
STELLA
Psst! Ela pode ouvir você!
STANLEY
Pouco importa que me ouça. Quero ver os papéis.
STELLA
Não há papéis, ela não me mostrou nenhum papel e não me
importam os papéis.
STANLEY
Você já ouviu falar no Código Napoleônico?
STELLA
Não, Stanley, não ouvi falar no Código Napoleônico e, se ouvi,
não vejo o que ele. . .
STANLEY
Deixe-me esclarecer você, num ponto ou dois, menina.
STELLA
Está bem.
STANLEY
No Estado de Luisiana, temos o Código Napoleônico, de
acordo com o qual o que pertence a mulher, pertence ao marido
e vice-versa. Por exemplo: se eu tivesse uma propriedade, ou
você tivesse uma propriedade. . .
STELLA
Eu já estou ficando tonta!
STANLEY
Muito bem. Vou esperar até que ela deixe de ficar de
63
molho no banho quente, para perguntar-lhe se ela está
familiarizada com o Código Napoleônico. Está me pare-cendo
que você foi tapeada, meu bem; quando você é tapeada, de
acordo com o Código Napoleônico, eu também sou. E não
gosto de ser tapeado.
STELLA
Há tempo de sobra para você fazer-lhe perguntas mais tarde,
mas, se as fizer agora, ela vai ficar com os nervos em pedaços
outra vez. Não compreendo o que foi que aconteceu com Belle
Rêve, mas você sabe como está sendo ridículo quando dá a
entender que minha irmã ou eu ou qualquer pessoa que seja da
família poderia ter roubado o que quer que fosse.
STANLEY
Então, onde está o dinheiro, se a propriedade foi vendida?
STELLA
Vendida não — perdida, perdida! Stanley !
(Ele abre bruscamente o baú que está no meio do quarto, onde
estão as roupas de Blanche, e tira dele uma porção de vestidos.)
STANLEY
Abre seus olhos para isto ! Você acha que foi com o ordenado
de professora que ela comprou isto tudo?
STELLA
Fica quieto!
STANLEY
Veja estas plumas e peles que ela trouxe para exibir-se
64
aqui. O que é isto? Um vestido de ouro maciço, acho eu. E
este! O que é isto? Peles de raposa! (Sacode-as.) Peles de
raposa legítimas, um quilômetro de compri-mento! Onde estão
suas peles de raposa, Stella? Peludas e brancas como a neve !
Onde estão suas peles de raposa branca?
STELLA
São peles baratas de verão que Blanche já tem há muito tempo.
STANLEY
Tenho um conhecido que trabalha com esta espécie de
mercadoria. Vou trazê-lo aqui para avaliar isto. Sou capaz de
apostar com você que há milhares de dólares investidos nisto
aqui!
STELLA
Não seja idiota, Stanley !
(Ele joga as peles em cima do sofá-cama e em seguida abre
com violência uma pequena gaveta que há no baú e dela retira
um punhado de jóias de fantasia.)
STANLEY

isso aqui? O tesouro de um pirata?


STELLA
Oh! Stanley!
STANLEY
Pérolas ! Fios de pérolas! O que é esta sua irmã, um es-
cafandrista? Braceletes de ouro maciço ! Onde estão suas
Pérolas e seus braceletes de ouro maciço?
65
STANLEY
E isso aqui? O tesouro de um pirata?
STELLA
Psst! Fique quieto, Stanley.
STANLEY
E diamantes ! Uma coroa para uma imperatriz !
STELLA
Uma tiara de pedras falsas, que ela usou num baile a fantasia.
STANLEY
Falsas, por quê?
STELLA
São quase todas de vidro.
STANLEY
Você está brincando? Tenho um conhecido que trabalha numa
joalheria. Vou trazê-lo aqui para avaliar isto. Aqui está a sua
fazenda, ou o que sobrou dela, aqui!
STELLA
Você não faz idéia de como está sendo estúpido e horrendo!
Agora feche esta mala, antes que ela saia do banheiro !
(Ele fecha o baú parcialmente, com um chute, e senta-se na
mesa da cozinha.)
STANLEY
Os Kowalski e os Dubois têm idéias bem diferentes.
STELLA (com raiva)
Eles têm, realmente, Graças a Deus! Vou sair. (Apanha
66
seu chapéu e suas luvas brancas e cruza o aposento, em direção
à porta da rua.) Você sai comigo enquanto Blan-che se veste.
STANLEY
Desde quando você me dá ordens?
STELLA
Você vai ficar aqui e insultá-la?
STANLEY
Não tenha dúvidas de que vou ficar !
(Stella sai para o alpendre. Blanche sai do banheiro, vestindo
um roupão de cetim vermelho.)
BLANCHE (alegremente)
Alô, Stanley! Aqui estou eu, saindo de um banho quente,
perfumado, e sentindo-me completamente outra. (Acende um
cigarro.)
STANLEY Issoé bom.
BLANCHE (puxando as cortinas das janelas)
Você me dá licença enquanto eu visto o meu lindo ves-tido
novo.
STANLEY
vai em frente, Blanche.
(Ela fecha os reposteiros que separam os dois aposentos.)
67
BLANCHE
Ouvi dizer que esta noite vai haver aqui um joguinho de pôquer
para o qual as damas não foram gentilmente convidadas!
STANLEY (sombriamente) É?
(Blanche tira o roupão e põe um vestido estampado com
flores.)
BLANCHE
Onde está Stella?
STANLEY
Lá fora, na porta.
BLANCHE
Daqui a pouco vou lhe pedir um favor.
STANLEY Que será?
BLANCHE
Uns botões, aqui atrás! Agora pode entrar! (Ele atravessa os
reposteiros, com um olhar ardente.) Que tal estou?
STANLEY
Muito bem!
BLANCHE
Muito obrigada. Agora os botões !
STANLEY
Não posso fazer nada com eles.
68
BLANCHE
Vocês, homens, com esses dedos enormes, fortes e desa-
jeitados. Posso dar uma tragada no seu cigarro?
STANLEY
Fume um, você mesma.
BLANCHE
Oh, obrigada!. . . Parece que minha mala explodiu. . .
STANLEY
Eu e Stella estávamos ajudando você a desfazer a bagagem.
BLANCHE
Fizeram, certamente, um trabalho rápido e eficiente !
STANLEY
Parece que você andou invadindo algumas lojas elegantes em
Paris.
BLANCHE
Ha, ha! Roupas é a minha paixão !
STANLEY Quanto custa uma estola de peles como esta?
Esta foi presente de um grande admirador meu.
STANLEY
Ele deve ter tido uma grande . . . admiração !
Oh, na minha juventude tive muitos admiradores, mas
69
olhe para mim agora! (Sorri para ele, radiante.) Você poderia
imaginar que eu fui uma mulher atraente?
STANLEY
Você está em forma.
BLANCHE
Eu estava apenas querendo um elogio, Stanley.
STANLEY
Eu não me incomodo com essas bobagens.
BLANCHE
Que. . bobagens?
STANLEY
Elogios. Mulheres. Nunca encontrei uma mulher que não
soubesse se era bonita ou não, sem precisar que lhe dissessem,
e algumas delas julgam-se mais do que realmente são. Uma
vez, saí com uma boneca que costumava dizer: "Eu sou o tipo
glamour"E eu respondi: "E daí?"
BLANCHE
E que foi que ela lhe disse?
STANLEY
Não disse nada. Ela se fechou como uma ostra.
BLANCHE
E acabou o romance?
STANLEY
Acabou a conversa — só isso. Alguns homens são apa-nhados
por esse negócio de fascinação de Hollywood, outros não.
70
BLANCHE
Estou certa de que o senhor pertence à segunda categoria.
STANLEY Isso mesmo.
BLANCHE
Não posso imaginar que alguma bruxa dessas possa lançar um
feitiço sobre você.
STANLEY
Está bem.
BLANCHE
O senhor é simples, direto e honesto, pendendo um pouquinho
para o lado primitivo. Para interessá-lo uma mulher teria de. . .
(Faz uma pausa, com um gesto indefinido.)
STANLEY (lentamente) Pôr. . . as cartas na mesa.
BLANCHE (sorrindo)
Foi por isso que, quando o senhor entrou aqui, ontem à noite,
eu disse para mim mesma: — "Minha irmã casou com um
homem". Naturalmente isso era tudo que Podia dizer a seu
respeito.
STANLEY (levantando a voz) Agora, vamos deixar de
frescura!
BLANCHE (apertando as orelhas com as mãos)
Ouuuu!
71
STELLA (chamando da escada)
Stanley! Venha para cá e deixe Blanche acabar de vestir-se !
BLANCHE
Mas eu já estou vestida, meu bem.
STELLA
Então, venha.
STANLEY
Sua irmã e eu estamos tendo uma conversinha.
BLANCHE (despreocupadamente)
Meu bem, faça-me um favor. Vá até o bar e traga-me um
refresco de limão com bastante gelo moído. Quer fazer isso
para mim, querida?
STELLA (hesitante)
Está bem. (Dobra a esquina do prédio.)
BLANCHE
A pobrezinha estava lá fora ouvindo toda a nossa conversa, e
eu estou certa senhor Kowalski, que ela não o compreende tão
bem quanto eu. Muito bem ! Vamos falar sem rodeios. Estou
pronta para responder a todas as perguntas. Não tenho nada que
esconder. Que é que há?
STANLEY
Há uma coisa neste Estado de Luisiana chamado Código
Napoleônico, de acordo com o qual, tudo o que pertence a
minha mulher é também meu e vice-versa.
BLANCHE
Senhor Kowalski, o senhor tem um ar impressionantemente
judicial !
72
(Perfuma-se com o vaporizador; em seguida, brincando,
perfuma-o também com o vaporizador. Ele pega o vaporizador
e o atira com força sobre a cômoda. Ela atira a cabeça para trás
e ri.)
STANLEY
Se eu não soubesse que você é irmã de minha mulher, eu
pensaria certas coisas de você !
BLANCHE
Tais como?
STANLEY
Não se faça de boba. Você sabe o quê!
BLANCHE (põe o vaporizador sobre a mesa)
Pois bem. Cartas na mesa. Isso me convém. (Volta-se para
Stanley.) Eu sei que minto muito. Afinal, o encanto de uma
mulher é, cinqüenta por cento, ilusão, mas quando se trata de
coisa importante, digo sempre a verdade — e a verdade é a
seguinte: eu nunca enganei ninguém. Nem o senhor nem minha
irmã; nem a quem quer que seja, em toda a minha vida.
STANLEY
Onde estão os documentos? Lá na mala?
BLANCHE
Tudo quanto possuo agora guardo nessa mala. (Stanley cruza o
aposento em direção ao baú, abre-o com violên-cia e começa a
abrir seus compartimentos.) Mas que está Pensando! Que é que
o senhor tem nessa cabecinha de menino? O senhor pensa que
estou escondendo alguma
73
coisa? Deixe-me fazer isso. Será mais rápido, fácil e eficiente.
(Ela cruza o aposento em direção à mala e retira uma caixa de
metal.) Guardo os meus papéis nesta caixa. (Abre a caixa.)
STANLEY
Que são aqueles ali? (Indica outro maço de papéis.)
BLANCHE
Cartas de amor, amarelando com o tempo, todas de um mesmo
rapaz. (Ele as apanha. Ela fala impetuosamente.) Dê-me essas
cartas.
STANLEY
Primeiro quero dar uma olhada!
BLANCHE
O toque de suas mãos é um insulto para elas.
STANLEY Deixe disso!
(Rasga a tira do maço e começa a examinar as cartas. Blanche
as tira de suas mãos e elas se espalham pelo chão.)
BLANCHE
Agora que o senhor as tocou, vou queimá-las.
STANLEY (olhando fixamente, perplexo) Que diabo são elas?
BLANCHE (com as mãos no chão, reunindo as cartas) Poemas
escritos por um rapaz que morreu. Eu o
74
como você gostaria de me magoar agora mas não pode. Já não
sou mais jovem nem vulnerável. Mas meu marido era e eu ...
Não se incomode com isso. Dê-me essas cartas de volta.
STANLEY
Que é que você pensava quando disse que teria de queimá-las?
BLANCHE
Desculpe-me. Devo ter perdido a cabeça, por um momento.
Todos nós temos coisas que não queremos que os outros
toquem, dada sua natureza íntima. (Ela agora parece quase
desmaiar de exaustão, senta-se com o cofre nas mãos, coloca os
óculos e examina metodicamente uma grande pilha de papéis.)
Ambler & Ambler, hummm. . . Crabtree. . . Mais Ambler &
Ambler.
STANLEY
O que é Ambler & Ambler?
BLANCHE
Uma firma que fez empréstimos sobre a propriedade.
STANLEY
Então ela foi perdida na hipoteca?
BLANCHE (passando a mão na testa) Deve ter sido o que
aconteceu.
Não quero saber de "ses", de "es" nem de "mas"! O
STANLEY que aquele resto de papéis?
(Ela lhe entrega a caixa com todo o seu
75
conteúdo. Ele a leva para a mesa e começa a examinar os
papéis.)
BLANCHE (apanhando um grande envelope que contém
mais papéis)
Há milhares de papéis referentes a fatos de centenas de anos
relacionados com Belle Rêve, à medida que, lote por lote,
nossos imprevidentes avós, pais, tios e irmãos trocavam a terra
por suas épicas fornicações, para falar mais claro! (Tira os
óculos com um riso cansado.) E foram essas bacanais que nos
despojaram da nossa fazenda, até que, {"malmente, tudo o que
sobrou, e Stella pode confirmar isso, foi a casa propriamente
dita, e mais ou menos vinte hectares de terras, incluindo um
cemitério particular para o qual, atualmente, exceto Stella e eu,
todos se retiraram. (Esparrama o conteúdo do envelope sobre a
mesa.) Aqui estão todos, todos os papéis. E eu, por este ato,
faço-lhe presente deles. Tome-os, examine-os, decore-os
mesmo, se quiser! Acho maravilhosamente adequado que Belle
Rêve seja, finalmente, esse maço de papéis velho, em suas
grandes e capazes mãos!. . . Será que Stella já voltou com a
minha limonada?. . . (Curva-se para trás e fecha os olhos.)
STANLEY
Tenho um conhecido que é advogado. Ele vai estudar isso.
BLANCHE
Dê-lhe tudo de presente, acompanhado de um tubinho de
aspirinas.
STANLEY (revelando um certo acanhamento)
Você sabe. De acordo com o Código Napoleônico, um
76
homem tem de interessar-se pelos negócios de sua mulher. . .
especialmente agora que ela vai ter um bebê. (Blanche abre os
olhos. O piano blue soa mais alto.)
BLANCHE
Stella? Stella vai ter um bebê? (Cismando.) Eu não sabia que
ela ia ter um bebê. (Levanta-se e cruza o aposento em direção à
porta da rua. Stella aparece na esquina com uma caixa de
papelão, vindo do bar. Stanley vai para o quarto com o
envelope e a caixa. Os aposentos interiores desaparecem na
escuridão e a parede externa da casa torna-se visível. Blanche
encontra Stella ao pé da escada que conduz à calçada da rua.)
Stella, minha irmã! Que felicidade ter um bebê. Está bem.
Tudo está bem.
STELLA
Estou triste por ele ter feito isso a você.
BLANCHE
Oh! Creio que ele não é propriamente o tipo que gosta de
perfume de jasmim, mas talvez seja o que nós precisamos para
misturar com o nosso sangue, agora que perdemos Belle Rêve.
Pusemos tudo em pratos limpos. Sinto-me um pouco trêmula,
mas acho que manejei o caso lindamente; ri e tratei de tudo
como se fosse uma brincadeira. (Steve e Pablo aparecem
carregando uma caixa de cerveja.) Ri e chamei-o de menino e
até flertei com ele. estava flertando com o seu marido.
(Enquanto os homens se aproximam.) Os convidados para o
pôquer es-tão chegando. (Os dois homens passam entre elas e
en-tram em casa.) Por onde nós vamos, Stella. . . por aqui?
STELLA
Não, por aqui. (Leva Blanche consigo.)
11
BLANCHE (rindo)
Os cegos conduzem os cegos!
(Ouve-se o pregão de um vendedor de ta-males.)
VOZ DO VENDEDOR Tá quentinho!
78
CENA III
A NOITE DO PÔQUER
Há uma reprodução de um quadro de Van Gogh, representando
um salão de bilhar à noite. A cozinha sugere aquele tipo de
pálida claridade da noite, com as cores simples do espectro da
infância. Sobre o linóleo amarelo da mesa da cozinha está
pendurada uma lâmpada elétrica, com uma forte sombra de
vidro verde. Os que estão jogando pôquer — Stanley, Steve,
Mitch e Pablo — usam camisas coloridas, de azul berrante,
púrpura, xadrez vermelho e branco, verde-claro; eles são
homens que se encontram no auge de sua masculinidade física,
tão rudes, diretos e poderosos como essas cores primárias. Há
pedaços vermelhos de melancia, garrafas e copos de uísque
sobre a mesa. O quarto de dormir está relativamente escuro
iluminado apenas pela luz que se filtra entre os reposteiros e
através da ampla janela que dá para a rua. Por um momento os
homens permanecem em absorto silêncio, enquanto jogam uma
rodada.
STEVE
Blefe não vale!
79
PABLO
Quem pra falar?
STEVE
Me dá duas cartas.
PABLO
Você, Mitch?
MITCH Passo.
PABLO
Uma.
MITCH
Alguém quer um trago?
STANLEY Sim. Eu.
PABLO
Porque não vai alguém até o China e não traz de lá uma
travessa de picadinho?
STANLEY
Quando eu estou perdendo você quer comer! Ninguém na
mesa. Quem abre? Vamos, abram! Tire a bunda de cima da
mesa, Mitch. Numa mesa de pôquer só pode haver cartas,
fichas e uísque.
(Levanta furtivamente os olhos das cartas e atira algumas
cascas de melancia no assoalho.)
80
MITCH
Você está com tudo, hein?
STANLEY Quantas?
STEVE Me dá três.
STANLEY Uma.
MITCH
Passo outra vez. Tenho de ir para casa daqui a pouco.
STANLEY Cala a boca!
MITCH
Minha mãe está doente. Ela não dorme enquanto eu não chego.
STANLEY
Então porque você não fica com ela em casa?
MITCH
Ela diz para eu sair e eu saio, mas não me divirto. Todo o
tempo fico pensando em como é que ela está.
STANLEY
Oh ! Pelo amor de Deus, vá para casa, então!
PABLO
é que você tem?
81
STEVE
Flash de espadas.
MITCH
Vocês todos são casados. Mas eu vou ficar sozinho quando ela
morrer. Vou ao banheiro.
STANLEY
Volte depressa e vamos arranjar para você uma chupeti-nha.
MITCH
Oh! Vão para o diabo! (Cruza o aposento, passando pelo quarto
em direção ao banheiro.)
STEVE (dando as cartas)
Mão de sete cartas. (Contando uma piada enquanto dá as
cartas.) Um velho fazendeiro tava sentado no quintal da casa
dele jogando milho pras galinhas quando de repente ele ouviu
um cacarejo alto. Então, uma galinha nova veio assustada e se
separou das outras, circulando o lado da casa, com o galo bem
atrás dela e chegando cada vez mais perto.
STANLEY (impaciente com a história) Dá as cartas, vamos!
STEVE
Mas, quando o galo topou com o fazendeiro jogando milho,
parou de correr, deixou a galinha escapar e começou a bicar os
grãos de milho. Aí o velho fazendeiro disse: "Ai, meu Deus,
tomara que eu nunca fique com uma fome dessa!"
(Steve e Pablo riem. As duas irmãs aparecem na esquina do
prédio.)
82
STELLA
O jogo ainda não acabou?
BLANCHE Que tal estou?
STELLA
Linda, Blanche!
BLANCHE
Eu estou sentindo muito calor e muito cansaço. Espere até eu
passar um pouco de póde-arroz antes de você abrir a porta. Eu
estou parecendo cansada?
STELLA
Claro que não. Você está mimosa como uma margarida.
BLANCHE
E. Como uma que foi apanhada há dias.
(Stella abre a porta e elas entram.)
STELLA
Oi, vocês ainda não pararam de jogar, hein?
STANLEY
Onde estiveram?
STELLA
Blanche e eu fomos ver um espetáculo. Blanche, este é o
senhor Gonzales e este o senhor Hubbell.
Por favor, não se levantem.
83
STANLEY
Ninguém vai levantar-se, não se preocupe.
STELLA
Quanto vai durar ainda este jogo?
STANLEY
Até que a gente esteja com vontade de acabar.
BLANCHE
Eu acho o pôquer um jogo tão fascinante. Posso sapear um
pouquinho?
STANLEY
Não pode não. Por que vocês, mulheres, não vão lá para cima
conversar com a Eunice?
STELLA
Porque são quase duas e meia. (Blanche cruza o aposento em
direção ao quarto e fecha parcialmente os re-posteiros.) Vocês
poderiam parar depois de mais uma mão? (Uma cadeira se
arrasta. Stanley dá uma sonora lambada com a mão na coxa
dela.)
STELLA (rispidamente)
Não achei graça, não, Stanley.
(Os homens riem. Stella vai para o quarto.)
STELLA
Eu fico louca quando ele faz isso na frente de outras pessoas.
84
BLANCHE
Acho que vou tomar um banho.
STELLA Outra vez?
BLANCHE
Meus nervos estão em frangalhos. O toalete está ocupado?
STELLA
Não sei.
(Blanche bate na porta. Mitch abre a porta e sai, ainda
enxugando as mãos numa toalha.)
BLANCHE Oh! Boa noite.
MITCH
Alô! (Olha fixamente para ela.)
STELLA
Blanche, este é Harold Mitchell, minha irmã, Blanche Dubois.
(com desajeitada cortesia) Como tem passado, senhorita
Dubois?
85
STELLA
Como vai sua mãe agora, Mitch?
MITCH
Quase o mesmo, obrigado. Ela gostou muito de você ter
mandado aquele pudim. Com licença, por favor.
(Cruza o aposento de novo, lentamente, de volta à cozinha,
virando-se' para olhar Blanche e tossindo, um pouco
timidamente. Ele percebe que ainda está com a toalha nas mãos
e, com um riso embaraçado, entrega-a a Stella. Blanche o olha
com certo interesse.)
BLANCHE
Este parece superior aos outros.
STELLA
Sim, ele é.
BLANCHE
Achei que tinha um olhar tão sensível.
STELLA
A mãe dele está doente.
BLANCHE É casado?
STELLA
Não.
BLANCHE
É um gavião?
STELLA
Ora, Blanche! (Blanche ri.) Não creio que seja.
86
BLANCHE
O que é que ele faz?
(Começa a desabotoar a blusa.)
STELLA
Ele trabalha na banca de testes do departamento de peças de
reposição. Na fábrica para a qual Stanley viaja.
BLANCHE
Isso tem alguma importância?
STELLA
Não. Stanley é o único dessa turma que tem possibilidade de
chegar a ser alguma coisa.
BLANCHE
O que te faz pensar que ele vai conseguir?
STELLA Olhe pra ele.
BLANCHE
Já olhei.
STELLA
Então você devia saber.
esculpe-me, mas não notei a marca do gênio nem mesmo na
testa do Stanley.
(Tira a blusa e fica de pé, com seu sutiã de seda cor-de-rosa e
sua saia branca, à luz
87
que se filtra entre os reposteiros. O jogo continua e as vozes se
tornam mais baixas.)
STELLA
Não está na testa dele e ele não é um gênio.
BLANCHE
Oh! Bem, então o que é, e onde está? Eu gostaria de saber.
STELLA
É uma energia que ele tem. Você está bem sob esta luz,
Blanche!
BLANCHE
Oh, estou sim!
(Sai de debaixo da faixa amarela de luz. Stella tirou o vestido e
colocou um quimono de cetim azul-claro.)
STELLA (com uma risada de menina) Você devia ver as
mulheres deles.
BLANCHE (rindo)
Eu posso imaginar. Mulheres grandes e gordas, suponho-
STELLA
Você conhece a de cima? (Mais risadas.) Uma vez (rindo)
o estuque. . . (rindo) rachou . . .
STANLEY
Vocês, galinhas. Parem com essa conversa aí dentro!
88
STELLA
Vocês não nos estão ouvindo.
STANLEY
Bem, vocês me estão ouvindo e eu disse que calem a boca!
STELLA
Estou na minha casa e vou falar tanto quanto quiser!
BLANCHE
Stella, não provoque uma briga.
STELLA
Ele está meio bêbado ! Já volto.
(Entra no banheiro. Blanche se levanta e se dirige
vagarosamente para um pequeno rádio branco e o liga.)
STANLEY
Tudo bem, Mitch, você vai?
MITCH
O quê? Oh ! Não, não vou !
(Blanche volta por baixo da faixa de luz. Ela levanta os braços
e se espreguiça, enquanto volta, indolente, para a cadeira. Do
rádio vem a música de uma nimba. Mitch se levanta da mesa.)
STANLEY
Quem ligou isso aí dentro?
f
89
BLANCHE
Eu. Você se incomoda?
STANLEY Desligue!
STEVE
Oh ! Deixe as meninas ouvirem a sua música.
PABLO
Claro, isso é bom, deixe tocar!
STEVE
Parece que é Xavier Cugat.
(Stanley levanta-se e, dirigindo-se ao rádio, desliga-o. Pára
bruscamente ao ver Blanche na cadeira. Ela lhe devolve o olhar
sem vacilar. Em seguida, ele se senta novamente à mesa de
pôquer. Dois dos homens começaram a discutir
acaloradamente.)
STEVE
Você pediu?
PABLO
E eu não pedi?
MITCH
Eu não estava ouvindo.
PABLO
Que estava fazendo então?
STANLEY
Olhando pelas cortinas. (Salta e se move bruscamente
90
fechando as cortinas com um gesto violento.) Agora dê as
cartas de novo e vamos jogar ou acabar de uma vez. Certa
gente, quando ganha, parece que tem um formigueiro, não pára
quieta. (Mitch se levanta enquanto Stan-lev volta a seu lugar e
grita.) Sente-se!
MITCH
Vou ao mictório. Não quero cartas.
PABLO
Claro que está com formigueiro agora. Sete notas de cinco
dólares dobradinhas no bolso.
STEVE
Amanhã vocês vão ver eles no guichê do caixa trocando as
notas por moedinhas.
STANLEY
E quando ele for para casa, vai depositá-las, uma por uma,
naquele cofrezinho do feitio de porco que a mãe deu para ele
no Natal. (Dando cartas) Essa rodada é simples.
(Mitch ri constrangido e atravessa os reposteiros. Detém-se
dentro do quarto.)
BLANCHE (suavemente) O toalete agora está ocupado.
MITCH
Nós estávamos . . . bebendo cerveja. . .
Blanche
Detesto cerveja.
MITCH
E. . . bebida para quando está quente.
BLANCHE
Eu não acho, não. Sempre me deixa com calor. Tem cigarros?
(Vestiu o roupão de cetim vermelho-escuro.)
MITCH
Tenho.
BLANCHE
Que marca?
MITCH
Luckies.
BLANCHE
Luckies? Oh ! é a minha marca preferida. Que cigarreira tão
bonita! É de prata?
MITCH
Sim, é; leia a inscrição.
BLANCHE
Tem uma inscrição? Não consigo ver bem. (Acende um fósforo
e se aproxima.) Oh ! (Lendo com dissimulada dificuldade) "E
assim Deus o quisesse, ainda mais te amarei. Depois da morte"!
É de meu soneto favorito de Eli-zabeth Barret Browning.
MITCH
Você conhece o soneto?
92
BLANCHE
Claro que conheço.
MITCH
Há uma história ligada a essa inscrição.
BLANCHE
Parece um romance.
MITCH
Uma história muito triste. A moça morreu. Ela sabia que estava
morrendo quando me deu isso. Era uma moça muito estranha e
muito meiga. . .
BLANCHE
Ela deve ter gostado muito de você. As pessoas doentes têm
afeições profundas e sinceras.
MITCH
É verdade, têm mesmo.
BLANCHE
Acho que a tristeza conduz à sinceridade.
MITCH
Faz com que ela apareça nas pessoas.
pouca sinceridade que ainda existe no mundo pertence as
pessoas que passaram por alguma tristeza.
Acho que você tem razão nisso.
93
BLANCHE
Estou certa de que tenho. Mostre-me uma pessoa que não tenha
passado tristeza e eu mostrarei a você um superficial...
Desculpe-me! Minha língua está um pouquinho . . . pesada!
Vocês rapazes é que são responsáveis por isso. O espetáculo
acabou às onze horas e nós não podíamos voltar para casa, por
causa do jogo de pôquer. Fomos então beber alguma coisa. Não
estou habituada a beber mais que uma dose. Duas são o limite
e. . . três! (Ri.) Esta noite bebi três.
STANLEY Mitch !
MITCH
Não quero cartas. Estou conversando com a senhorita. . .
BLANCHE
Dubois.
MITCH
Senhorita Dubois?
BLANCHE
É um nome francês. Quer dizer floresta e Blanche dizer branca;
assim, os dois juntos significam floresta branca. É como um
pomar na primavera, se algum dia você quiser se lembrar de
mim.
MITCH
Você é francesa?
94
BLANCHE
Somos franceses de descendência. Nossos primeiros an-
tepassados americanos eram huguenotes franceses.
MITCH
Você é irmã de Stella, não é?
BLANCHE
Sou. Stella é minha preciosa irmãzinha. Eu a chamo de
irmãzinha apesar de ela ser um pouco mais velha que eu. Muito
pouco, menos de um ano. Quer fazer-me um favor?
MITCH
Claro. Que é?
BLANCHE
Comprei esta adorável lanterninha de papel colorido numa loja
chinesa em Bourbon. Ponha-a sobre a lâmpada ! Faça-me este
favor, sim?
MITCH
Com prazer.
BLANCHE
Não posso suportar a luz crua duma lâmpada, assim como não
posso suportar uma observação rude ou uma ação vulgar.
MITCH (ajeitando a lanterninha)
Acho que você deve julgar-nos uma turma grosseira.
Sou tão adaptável... às circunstâncias.
95
MITCH
Isso é uma boa coisa. Veio visitar Stanley e Stella?
BLANCHE
Stella não tem passado muito bem, ultimamente, e eu vim
ajudá-la um pouco. Ela está muito esgotada.
MITCH
Você não é . . .
BLANCHE
Casada? Não, não. Sou uma velha professora solteirona.
MITCH
Você pode lecionar na escola, mas não é, decerto, uma velha
solteirona.
BLANCHE
Obrigada, cavalheiro ! Agradeço a sua galanteria!
MITCH
Quer dizer que a sua profissão é lecionar?
BLANCHE
É.
MITCH
Escola primária, secundária ou ...
STANLEY (berrando) Mitch !
MITCH Já vou.
96
BLANCHE
Santo Deus, que força de pulmões. Eu leciono na escola
secundária, em Laurel.
MITCH
Que é que ensina? Que matérias?
BLANCHE
Adivinhe!
MITCH
Aposto que ensina arte ou música. (Blanche ri delicadamente.)
Talvez eu tenha errado. Pode ensinar aritmética.
BLANCHE
Nunca aritmética, nunca, meu senhor. (Com uma risada) Não.
Eu tenho a infelicidade de ser professora de litera-tura inglesa.
Procuro instilar, num grupo de brotinhos e de Romeus de
confeitaria, o respeito pelos nossos grandes escritores e poetas
Hawthome e Whitman e Poe.
MITCH
Aposto que alguns deles estão interessados em outras coisas.
Blanche
Nisso você tem razão. A sua herança literária não é o que eles
estimam acima de tudo o mais. Mas são encanta-dores! E na
primavera, sobretudo, como é tocante vê-los fazer a sua
primeira descoberta de amor. Como se nin-suem a tivesse feito
antes. (A porta do banheiro se abre Stella sai. Blanche continua
falando com Mitch.) Oh! Já acabou? Espere, vou ligar o rádio.
97
(Aciona os botões do rádio, este começa a tocar Wien, Wien,
nur du allein. Então ela começa a dançar a valsa com gestos
românticos. Mitch está encantado e se move, em tímida
imitação, como um urso dançarino. Stanley se dirige
bruscamente, através dos reposteiros, para o quarto. Ele chega
até onde está o pequeno rádio e o retira da mesa. Gritando uma
praga, ele o atira pela janela.)
STELLA
Bêbado, bêbado. . . seu pedaço de animal! (Precipita-se para a
mesa de pôquer.) Todos vocês. . . por favor, vão embora! Se
houver um pingo de decência em vocês. . .
BLANCHE (rispidamente) Stella, cuidado, ele está. . .
(Stanley parece a ponto de atacar Stella.)
OS HOMENS (timidamente)
Tenha calma, Stanley. Calma, rapaz. . . Vamos todos!
STELLA
Ponha você as mãos em mim e eu . . .
(Volta para o lado, fora da vista. Ele avança e também
desaparece. Há o som de um tapa. Stella chora. Blanche grita e
corre para a cozinha. Os homens investem, e ha o som de luta
corpo-a-corpo e xingamentos. Algo é derrubado e se quebra
ruidosamente.)
BLANCHE
Minha irmã vai ter um bebê.
98
MITCH
Que coisa terrível!
BLANCHE
Lunáticos. São uns lunáticos !
MITCH
Tragam ele para cá.
(Stanley é forçado a entrar no quarto, com os homens lhe
segurando os braços. Ele quase consegue se livrar dos que o
prendem. Depois, de repente, ele se acalma e se abandona à
pressão. Eles falam baixinho e terna-mente com ele, e ele
encosta sua face no ombro de um deles.)
STELLA (em voz alta e descontrolada, fora de vista) Quero ir
embora, quero ir embora!
MITCH
A gente não devia jogar pôquer numa casa em que há
mulheres.
(Blanche entra apressadamente no quarto.)
BLANCHE
Onde é que estão as roupas da minha irmã? Nós vamos Para
cima, para a casa daquela mulher !
MITCH
Cadê as roupas?
99
BLANCHE (abrindo o armário)
Aqui estão! (Corre ao encontro de Stella.) Stella, Stella,
querida ! Minha maninha, não tenha medo !
(Com seus braços envolvendo Stella, Blanche a conduz para a
porta da rua e para o apartamento do andar de cima.)
STANLEY (com a voz arrastada) Que foi, que aconteceu?
MITCH
Bebeu mais do que devia, Stan.
PABLO
Ele está bem agora.
STEVE
Claro. O meu rapaz está bem !
MITCH
Deite ele na cama e arranje uma toalha molhada.
PABLO
Acho que agora um café seria muito bom para ele.
STANLEY (com a voz pastosa) Quero água.
MITCH
Botem ele debaixo do chuveiro !
(Os homens conversam baixinho, enquanto o conduzem ao
banheiro.)
100
STANLEY
Vão à merda, seus filhos da puta.
(Ouvem-se sons de tapas. A água começa a cair com/orça.)
STEVE
Vamos embora daqui depressa!
(Eles correm para a mesa de pôquer e recolhem seus ganhos,
antes de sair.)
MITCH (triste, mas com firmeza)
Não se deve jogar pôquer em casa que tem mulheres.
(A porta se fecha quando eles saem e o lugar fica em silêncio.
Os artistas negros do bar da esquina tocam Boneca de Papel,
triste e lentamente. Depois de alguns momentos, Stanley sai do
banheiro, com água escorrendo por seu corpo e ainda com suas
ceroulas de bolinhas coloridas coladas a seu corpo.)
STANLEY
Stella! (Pausa.) A minha bonequinha me deixou! (Começa a
soluçar. Em seguida, vai até o telefone e disca, estremecendo
ainda com os soluços.) Eunice? Eu quero a minha mulherzinha,
Eunice! (Espera um momento; em seguida repõe o fone no
gancho, levanta-o novamente e torna a discar.) Vou ficar
chamando, até que a minha mulherzinha fale comigo ! (Ouve-
se uma voz aguda e in-distinguível. Ele atira o telefone no
chão. Metais e piano dissonantes soam enquanto os aposentos
desaparecem
101
na escuridão, e as paredes externas aparecem à luz da noite. O
piano blue toca por um breve intervalo. Finalmente, Stanley sai
cambaleando, semi vestido, para a entrada e desce com
dificuldade os degraus de madeira que conduzem à calçada, na
frente do edifício. Lá, ele atira sua cabeça para trás como um
cão ao uivar e berra o nome de sua mulher: Stella, Stella!
Stella! Stellaaaa!)
STANLEY Stel-laaaa!

EUNICE (gritando para ele, da porta de seu apartamento,


no andar de cima) Deixe de estar berrando aí em baixo e volte
para a cama!
STANLEY
Quero minha mulherzinha cá embaixo. Stella! Stella!
EUNICE
Ela não vai descer, não, e fique quieto senão eu chamo a
polícia!

STANLEY

Stella!
EUNICE
Você não pode bater numa mulher e depois querer que ela
volte. Ela não vai, não! E a mulher está grávida, seu nojento!
Seu filho de polaco! Tomara que eles levem você e joguem
água em cima, com a mangueira de incên-dio, como fizeram da
outra vez !
102
STANLEY (humildemente)
Eunice, eu quero que a minha mulherzinha venha cá para baixo
e fique comigo.
EUNICE
Ah! (Bate aporta.)

STANLEY (com uma violência ostentórea) Stellaaaaa!


(O clarinete lamenta, em tom baixo. A porta do andar de cima
se abre novamente. Stella começa a descer as frágeis escadas,
vestida com seu roupão. Seus olhos estão cheios de lágrimas e
seu cabelo está solto sobre sua garganta e ombros. Eles se
olham fixamente um ao outro. Em seguida, abraçam-se
ansiosos, com gemidos baixos, semelhantes aos de animais. Ele
se ajoelha nos degraus e aperta seu rosto contra a barriga dela,
que começa a apresentar a curva da maternidade. Os olhos dela
se cegam de ternura enquanto ela toma a cabeça dele entre as
mãos e o levanta até a altura em que ela está. Ele abre a porta
de tela e a levanta do chão, carregando-a em seus braços para
dentro do apartamento escuro. Blanche aparece no patamar
superior, vestida com seu roupão, e desce medrosamente os
degraus.)
Onde está minha irmãzinha? Stella? Stella?
(Pára à entrada escura do apartamento de
103
sua irmã. Em seguida ela retém o fôlego, como se tivesse sido
atingida. Ela olha à direita e à esquerda, como se estivesse
procurando um refúgio. A música se desvanece. Mitch aparece,
vindo da esquina.)
MITCH
Senhorita Dubois.
BLANCHE Oh!
MITCH
Tudo em paz?
BLANCHE
Ela desceu e voltou com ele para lá.
MITCH Claro!
BLANCHE
Estou apavorada!
MITCH
Oh! Oh ! Não há o que temer. Eles são loucos um pelo outro.
BLANCHE
Eu não estou acostumada com tal...
MITCH
Ahn, é uma vergonha que isso tivesse de acontecer justo
104
quando a senhora acabou de chegar. Mas não leve a sério.
BLANCHE
Que violência! É tão. . .
MITCH
Sente-se nos degraus e vamos fumar um cigarro.
BLANCHE
Eu não estou convenientemente vestida.
MITCH
Isto não faz diferença aqui no bairro.
BLANCHE
Que cigarreira tão bonita... é de prata!
MITCH
Eu lhe mostrei a inscrição, não mostrei?
BLANCHE
Mostrou. (Durante a pausa ela olha para o céu.) Há tantas...
tanta confusão no mundo. . . (Ele tosse timidamente.) Obrigada
por ter sido tão bom comigo. Eu preciso agora de muita
bondade.
105
CENA IV
Bem cedo, na manhã seguinte. Há uma confusão de vozes de
rua como em um canto coral. Stella está deitada em seu quarto.
Seu rosto está sereno no sol das primeiras horas da manhã.
Uma de suas mãos repousa sobre sua barriga, que vai se
arredondando aos poucos com sua gravidez recente. Da outra
mão pende uma revista em quadrinhos colorida. Seus olhos e
seus lábios têm aquela tranqüilidade meio narcotizada que
existe nas faces dos ídolos orientais. A mesa está desordenada,
com os restos do desjejum e as coisas quebradas na noite
anterior, e o pomposo pijama de Stanley está jogado na porta
do banheiro. A porta da rua está ligeiramente aberta, mostrando
um céu com a luminosidade do verão. Blanche aparece nessa
porta. Ela passou a noite sem dormir e sua aparência contrasta
inteiramente com a de Stella. Ela aperta os nós dos dedos
nervosamente contra os lábios enquanto olha atra-vés da porta,
antes de entrar.
107
Blanch
Stella!
STELLA (mexendo-se preguiçosamente) Humm?
(Blanche deixa escapar um gemido lamentoso e corre para
dentro do quarto, atirando-se ao lado de Stella em um ímpeto
de ternura histérica.)
BLANCHE
Oh, Stella, minha irmã querida!
STELLA (afastando-se dela)
Blanche, que é que há com você?
(Blanche se recompõe e levanta lentamente, ficando em pé ao
lado da cama e olhando para a irmã, com os nós dos dedos
apertados contra os lábios.)
BLANCHE
Ele saiu?
STELLA
Stan? Saiu.
BLANCHE
Vai voltar?
STELLA
Foi lubrificar o carro. Por quê?
BLANCHE
Por quê? Fiquei desesperada, Stella! Quando descobri que você
tinha sido louca de voltar para cá depois do que aconteceu.
Quase corri atrás de você.
108
J
STELLA
Ainda bem que você não veio.
BLANCHE
No que é que você estava pensando? (Stella faz um gesto
indefinido.) Responda-me! O quê? O quê?
STELLA
Por favor, Blanche! Sente-se a pare de gritar.
BLANCHE
Está bem, Stella. Vou repetir a pergunta, agir calmamente.
Como pôde voltar para esta casa a noite passada? Você deve
ter dormido com ele!
(Stela levanta-se calma e vagarosamente.)
STELLA
Blanche, eu tinha esquecido como você é excitável. Está dando
demasiada importância a isso.
BLANCHE
Estou?
STELLA
Sim, está, Blanche. Eu sei o que deve ter parecido a você e
sinto muitíssimo que tenha acontecido, mas não foi nada tão
sério como está imaginando. Em primeiro lu-gar, quando
homens bebem e jogam pôquer, tudo pode acontecer. Stanley
sempre quebra coisas. Na noite do nosso casamento — logo
que entramos aqui — ele apanhou uma das minhas chinelas e
correu pela casa que brando as lâmpadas.
109
BLANCHE Ele fez. . . o quê?
STELLA
Quebrou todas as lâmpadas com o salto de minha chi-nelal
(Ri.)
BLANCHE E você. . . você deixou? Não correu, não gritou?
STELLA
Eu fiquei meio excitada com isso. (Espera um momento.) Você
e Eunice tomaram café?
BLANCHE Você acha que eu iria querer café?
STELLA Há um pouco de café ainda no fogão.
BLANCHE Você aceita isso como se fosse normal, Stella.
STELLA
Que mais poderia ser? Ele levou o rádio para o conserto. Ele
não caiu na calçada, e assim só uma válvula quebrou.
BLANCHE E você fica aí parada, sorrindo?
STELLA
Que quer você que eu faça?
11 0
BLANCHE
Caia em si e encare a situação.
STELLA
Qual é, na sua opinião?
BLANCHE
Na minha opinião?. . . Você está casada com um louco!
STELLA
Não!
BLANCHE
Sim, você está casada com um louco. Sua situação é pior que a
minha. A única coisa é que você não está sendo sensata. Eu
vou fazer alguma coisa. Dar um jeito em mim e começar vida
nova!
STELLA
Sim?
BLANCHE
Mas você, você já se entregou. E isso não está certo, você não é
velha! Você pode dar o fora.
STELLA (lenta e enfaticamente)
Eu não estou querendo dar o fora coisa nenhuma.
BLANCHE (incrédula) O quê. . . Stella?
STELLA
Eu disse que não quero dar o fora de jeito nenhum. Veja a
bagunça nessa sala! E aquelas garrafas vazias! Eles
111
liquidaram com duas caixas delas a noite passada! Ele me
prometeu hoje de manhã que ia deixar de fazer essas reuniões
para jogar pôquer, mas você sabe por quanto tempo ele vai
conseguir cumprir essa promessa. Oh, bem, é a diversão dele,
assim como as minhas são o cinema e o bridge. As pessoas têm
de aprender a tolerar os hábitos umas das outras, puxa vida!
BLANCHE
Eu não compreendo você! (Stella vira-se para ela.) Eu não
compreendo a sua indiferença. Isso aí é uma filosofia chinesa
que você anda praticando?
STELLA
É o quê ... o quê?
BLANCHE
Essa história de ficar se arrastando por aí e resmungando . . .
"Uma válvula quebrada, garrafas de cerveja vazias, bagunça na
cozinha!" — como se nada fora do comum tivesse acontecido!
(Stella ri vagamente e, apanhando a vassoura, fá-la girar em
suas mãos.)
BLANCHE
Você está sacudindo essa coisa na minha frente de propósito?
STELLA
Não.
BLANCHE
Pare com isso. Largue essa vassoura. Eu não vou permitir que
você limpe essa bagunça para ele!
112
STELLA
Então quem é que vai limpar? Você?
BLANCHE
Eu? Eu!
STELLA
Não, acho que não.
BLANCHE
Deixe-me pensar. Se ao menos a minha cabeça funcionasse !
Temos que arranjar algum dinheiro, é a única saída!
STELLA
Acho que é sempre bom arranjar dinheiro.
BLANCHE
Ah! Tive uma idéia (Trêmula, torce um cigarro dentro do
maço.) Você se lembra de Shep Huntleigh? (Stella sacode a
cabeça.) Foi meu namorado no colégio.
STELLA Sim?
BLANCHE
Encontrei-me com ele no inverno passado. Você sabia que eu
fui a Miami nas férias do Natal?
STELLA
Não.
BLAHCHE
Bem. Eu fui. Realizei a viagem como um investimento.
113
pensando encontrar alguém que tivesse um milhão de dólares.
STELLA
E você encontrou?
BLANCHE
Sim. Encontrei Shep Huntleigh. . . em pleno Boulevard
Biscayne, na véspera do Natal, ao anoitecer, entrando em seu
carro, um Cadillac conversível que devia ter um quarteirão de
comprimento!
STELLA
Teria sido um desses imprevistos do trânsito!
BLANCHE
Você já ouviu falar em poços de petróleo?
STELLA
Sim. . . ligeiramente.

BLANCHE
Ele os possui, espalhados em todo o Texas. O Texas esta
literalmente derramando ouro nos bolsos dele.
STELLA
Vejam só!
BLANCHE
Você sabe como sou indiferente a dinheiro. Pense em dinheiro
em termos do que ele possa fazer por nós. Não, ele poderia
fazê-lo, certamente, poderia fazê-lo!
STELLA
Fazer o que, Blanche?
1 14
BLANCHE
Ora. . • montar uma loja. . . para nós !
STELLA
Que espécie de loja?
BLANCHE
Oh ! Uma. . . loja qualquer! Ele poderia fazer isso com a
metade do que a mulher dele gasta nas corridas.
STELLA É casado?
BLANCHE
Oh! E, querida, e eu estaria aqui se o homem não fosse casado?
(Stella ri um pouco. Blanche subitamente salta e se dirige ao
telefone e fala com uma voz aguda.) Como é que ligo para a
Western Union? Telefonista! Western Union!
STELLA
Este é um telefone de disco, querida.
BLANCHE
Não consigo discar. Estou tão...
STELLA
Basta discar "O"
Blanchf
O"?
STELLA
Sim, "O" de Operadora !
115
(Blanche reflete por um momento; em seguida, põe o fone no
gancho.)
BLANCHE
Onde há um pedaço de papel? Tenho que escrever. . . o
telegrama. (Vai à penteadeira e apanha um lenço de papel e um
lápis de sobrancelha a fim de escrever.) Deixem ver, agora. . .
(Morde o lápis.) "Querido Shep, irmã e eu em situação
desesperada."
STELLA
Espere um pouco! Que é isso?

BLANCHE
"Irmã e eu em situação desesperada. Explicarei detalhes depois.
. . Estaria interessado em..." (Morde novamente o lápis.)
"Estaria interessado em..." (Esmaga o lápis na mesa e se
levanta.) Nunca se consegue algo com pedidos diretos!
STELLA (rindo)
Não seja ridícula, querida!

BLANCHE
Mas eu vou pensar em alguma coisa, eu preciso pensar em. . .
alguma coisa! Não, não se ria de mim, Stella! Por favor, por
favor, não se ria, eu, eu... quero que você olhe o que tem dentro
da minha bolsa! Veja o que há aqui! (Abre rapidamente a
bolsa.) Sessenta e cinco míseros centavos em moeda corrente!
STELLA (dirigindo-se à cômoda)
Stanley não me dá uma quantia regular, ele próprio gosta de
pagar as contas, mas. . . esta manhã ele me deu dez
116
dólares para ajudar a ajeitar as coisas. Pegue cinco para você,
Blanche, e eu ficarei com o resto.
BLANCHE
Oh, não. Não, Stella.
STELLA (insistindo)
Eu sei o quanto o moral da gente melhora só por a gente ter um
pouquinho de dinheiro no bolso.
BLANCHE
Não, obrigada... eu vou consegui-lo nas ruas!
STELLA
Que é isso? Fale direito! Como é que você foi ficar assim tão
sem recurso?
BLANCHE
Simplesmente o dinheiro some, desaparece em qualquer lugar.
(Esfrega a testa.) Ainda hoje mesmo preciso tomar um
antiácido.
STELLA
Vou já preparar um para você.
BLANCHE
Ainda não. . . Eu preciso continuar pensando!
STELLA
Eu gostaria que você deixasse as coisas andarem ao menos por
algum tempo . . .
BLANCHE
Stella, não posso viver com ele! Você pode, é seu marido.
1 17
Mas como eu poderia ficar aqui, com ele, depois do que
aconteceu ontem à noite, só com aquela cortina entre
nós?
STELLA
Blanche, você o viu no pior momento dele, ontem à noite.
BLANCHE
Ao contrário, eu o vi no melhor! O que um homem desses tem
para oferecer é a força animal, e disso ele nos deu uma
excelente exibição! Mas a única maneira de viver com um
homem assim, é. . . ir para a cama, com ele ! E isso é tarefa
sua, não minha.
STELLA
Depois de descansar um pouco vai ver que tudo acabará bem.
Você não terá que preocupar-se com coisa alguma, alguma,
enquanto estiver aqui. Refiro-me... às despesas.
BLANCHE
Tenho de arranjar um plano para nós duas, nós duas, não eu,
sairmos daqui.
STELLA
Você meteu na cabeça que estou em alguma coisa de que quero
fugir.
BLANCHE
Eu meti na cabeça que você tem suficiente memória para
lembrar-se de Belle Rêve e achar impossível viver neste lugar e
com estes jogadores de pôquer.
STELLA
Bem, você está contando demais com certas coisas.
118
BLANCHE Eu não acredito que você esteja sendo sincera.
STELLA
Não?

BLANCHE
Eu compreendo como isso aconteceu. . . um pouco. Você o
viu de uniforme, ele é um oficial, não aqui,
mas. . .
STELLA
Não tenho muita certeza de que teria feito alguma diferença o
lugar onde eu o vi.
BLANCHE
Agora, não me diga que foi uma dessas misteriosas coisas
eletrizantes que acontecem entre duas pessoas! Se você o
disser, eu vou rir na sua cara.
STELLA
Eu não vou dizer absolutamente mais nada a respeito disso!
BLANCHE
Está bem, então não diga.

STELLA
Mas existem coisas que acontecem entre um homem e uma
mulher no escuro. . . que de certa forma fazem todo o resto
parecer . . . sem importância. (Pausa.)
Você está falando é sobre desejo brutal. . . apenas
isso. . . Desejo!. . . o nome do bonde — um verdadeiro
calhambeque — que atravessa, barulhento, o quarteirão,
subindo uma velha rua estreita e descendo outra. . .
STELLA
Você nunca viajou naquele bonde?
BLANCHE
Foi ele que me trouxe aqui. . . Onde eu não sou bem-vinda e
onde eu tenho vergonha de estar. . .
STELLA
Então você não acha que a sua atitude superior está um
pouquinho fora de lugar?
BLANCHE
Eu não estou sendo nem me sentindo superior, absolutamente,
Stella. Acredite-me, não estou! É só isso. É assim que eu vejo
isso. Com um homem como Stanley, a gente sai uma, duas, três
vezes quando está com o diabo no corpo. Mas viver com ele?
Ter um filho dele?
STELLA
Já disse a você que o amo.
BLANCHE
Então tremo de medo, por você! E. . . Tremo de medo por
você.. .
STELLA
Não posso impedir que você trema. Se insiste em tremer . . .
(Pausa.)
BLANCHE
Stella, posso falar. . . francamente?
120
STELLA
Sim, pode. Vá em frente. Com a maior franqueza.
(Fora, um trem se aproxima. Elas ficam em silêncio até que o
ruído se extingüa. Ambas estão no quarto. Sob a proteção do
barulho do trem, Stanley entra, vindo de fora. Ele fica, sem ser
visto pelas mulheres, segurando alguns pacotes nos braços, e
ouve por acaso a conversa que se segue. Ele usa uma camiseta
e calças de pano leve, riscado de azul e branco, e sujas da
graxa.)
BLANCHE
Bem — com licença da má palavra — ele é ordinário!
STELLA
Ora, sim, suponho que sim.
BLANCHE
Supõe! Você não pode ter esquecido tanto assim a educação
que .recebeu, Stella, para estar só supondo que exista qualquer
indício de cavalheiro na natureza desse homem! Nem sequer
uma partícula, não! Oh, se ele fosse apenas. . . comum! Apenas
simples. . . e bom e saudável, mas, não. Existe alguma coisa
francamente bestial nele! Você está me odiando por dizer isso,
não
está?
(friamente) em frente e diga tudo, Blanche.
Ele age como um animal. Tem hábitos de animal. Come,
121
fala, anda como um animal. Há nele qualquer coisa de sub-
humano, qualquer coisa de gorila como nesses quadros
antropológicos que a gente vê por aí. Milhares e milhares de
anos se passaram e aí está ele: Stanley Ko-walski, o único
sobrevivente da Idade da Pedra trazendo para casa a carne
fresca da matança da floresta! E você. . . você aqui. . .
esperando por ele? Talvez ele a ataque ou talvez grunha e beije
você! Isto é, se já tiver descoberto o beijo. A noite cai e os
outros gorilas se reúnem lá na cova da frente — todos
grunhindo, bebendo; estraçalhando-se com ele. A sua "noite de
prazer" como você chama a sua reunião de gorilas! Alguém
rosna. . . alguma criatura bota a mão em alguma coisa. . . e lá
vem a briga! Meu Deus, Stella, talvez nós estejamos muito
longe de sermos feitos à imagem de Deus. Mas, Stella, minha
irmã, houve algum progresso no mundo desde então. Coisas
como a arte, a poesia, a música. . i uma espécie de nova luz
apareceu. . . Em algumas pessoas sentimentos mais nobres
começaram a surgir. . . E são esses sentimentos que devemos
cultivar. E fazer com que eles cresçam em nós, e agarrarmo-
nos a eles, e fazer deles a nossa bandeira, nossa marcha escura,
para onde quer que estejamos indo. . . Não, Stella. Não fique
para trás com os brutos.
(Outro trem passa lá fora. Stanley hesita, lambendo os lábios.
Então, subitamente ele se volta, furtivo, e se afasta da porta ao
frente. As mulheres ainda não perceberam
sua presença. Quando o trem termina
de
passar, ele chama através da porta da frente, que está fechada.)
STANLEY Ei, Stella!

122
STELLA (que esteve ouvindo Blanche atentamente) Stanley!
BLANCHE
Stella, eu...

(Mas Stella já se foi para a porta da frente. Stanley entra


descuidado, com seus pacotes.)
STANLEY
Olá, Stella, Blanche voltou?
STELLA
Sim, ela voltou.
STANLEY
Olá, Blanche. (Sorri ironicamente para ela.)
STELLA
Você deve ter entrado embaixo do carro.
STANLEY
Os malditos mecânicos do Fritz não sabem distinguir o rabo
deles de... — Eh !
(Stella o abraça com ambos os braços, com paixão, e bem à
vista de Blanche. Ele ri e aperta a cabeça dela contra a sua. Por
cima da cabeça dela ele ri ironicamente para Blanche através
das cortinas. Enquanto as
123
luzes vão diminuindo com uma luminosidade que permanece
mostrando o abraço dos dois, a música do piano blue, com
trom-pete e bateria, se faz ouvir.)

124
C ENA V
Blanche está sentada no quarto, abanan-do-se com um leque de
folha de palmeira enquanto lê uma carta que acabou de
completar. De repente ela sofre um acesso de riso Stella está se
vestindo no quarto.
STELLA
De que está rindo, meu bem?

BLANCHE
De mim mesma, de mim mesma, por ser tão mentirosa! Estou
escrevendo uma carta ao Shep. (Apanha a carta.) 'Querido
Shep: estou passando um verão movimentadís-simo, voando de
um lado para outro. E, quem sabe, talvez me venha, de repente,
a idéia de estourar aí em Dal-las! Que é que você acha? Ha-ha!
(Ri nervosamente e com vivacidade, tocando em sua garganta
como se esti-vesse realmente falando com Shep.) Um homem
prevenido vale por dois, diz o ditado", Que tal? (Mais nervosa)
maioria das amigas de minha irmã vai para o norte no verão,
mas algumas têm casas na praia e a ronda de diversões não
pára: chás, coquetéis, almoços. . ."
(Ouve-se um tumulto no andar de cima, no apartamento dos
Hubbel.)
125
STELLA
Acho que está havendo complicações, entre Eunice e Steve.
(A voz de Eunice se eleva com uma terrível ira.)
EUNICE
Já ouvi falar de você com aquela loura.
STEVE Mentira!
EUNICE
Não pense que você vai tapar os meus olhos. Eu não me
importaria que você ficasse lá embaixo, no Quatro Naipes, mas
você sempre vai para cima.
STEVE
Quem foi que me viu lá em cima?
EUNICE
Eu vi você perseguindo ela quase nua, na sacada.

STEVE
Não me ameaça com isso!
EUNICE (gritando)
Você me bateu ! Vou chamar a polícia!
(Ouve-se o ruído de alumínio atingindo uma parede, seguido
pelo urro irritado de um homem, gritos e mobília revirada. Ou-
ve-se um estrépito de coisa que quebra; e, em seguida, faz-se
relativo silêncio.)
BLANCHE(com vivacidade) Ele a matou?
126
(Eunice aparece nos degraus, em demoníaca desordem.)
STELLA
Não ! Ela vem descendo a escada.
EUNICE
Chamar a polícia, eu vou chamar a polícia!
(Dirige-se correndo para a esquina. Elas riem levemente.
Stanley vem da esquina com sua camisa de seda verde e
escarlate, própria para jogar boliche. Ele sobe depressa os de-
graus e entra ruidosamente na cozinha. Blanche registra sua
chegada com gestos nervosos.)
STANLEY
Que é que há com Eunice?
STELLA
Ela e Steve brigaram. Ela chamou a polícia?
STANLEY
Não. Está tomando um drinque.
STELLA
E muito mais prático.
(Steve desce, apalpando cuidadosamente um ferimento em sua
testa e olha para dentro.)
STEVE Ela está aí?
STANLEY
Não, não. No Quatro Naipes.
127
STEVE
Essa minha mulher é uma vaca no cio.
(Olha para o lado da esquina um pouco timidamente, então se
volta com afetada arrogância e vai atrás dela.)
BLANCHE
Preciso tomar nota disso no meu caderninho. Ah! Ah! Estou
compilando um caderninho de palavrinhas e frases esquisitas
que aprendi aqui. V-a-c a-n-o-c-i-o.
STANLEY
Você não vai aprender nada aqui que não tenha ouvido antes.
BLANCHE
Posso contar com isso? Vaca no cio.
STANLEY
Pode contar até quinhentos.
BLANCHE
Eis um número bem alto. (Ele abre rapidamente a gaveta da
cômoda, fecha-a com estrondo e atira sapatos em um canto. A
cada ruído Blanche estremece levemente. Finalmente, ela fala.)
Stanley, sob que signo você nasceu?
STANLEY (enquanto se veste) Signo?
BLANCHE
Signo, astrológico. Aposto que você nasceu sob o signo de
Áries. As pessoas que nascem sob Áries são poderosas e
dinâmicas. São loucos por barulho ! Adoram atirar coisas em
redor com estrondo! Você deve ter feito muito
128
barulho no Exército, e agora, que está fora de lá, quer continuar
tratando os objetos inanimados com essa fúria!
(Stella está constantemente entrando e saindo do banheiro
durante esta cena. Neste momento ela põe a cabeça para fora
do banheiro.)
STELLA
Stanley nasceu cinco minutos depois do Natal.
BLANCHE
Capricórnio. . . o bode.

STANLEY
Em que signo nasceu você?
BLANCHE
Eu faço anos dia 15 de setembro, logo, eu nasci sob o signo de
Virgo.
STANLEY Que é Virgo?
BLANCHE
Virgo é Virgem.
STANLEY (desdenhosamente)
Ahhh! (Avança um pouco, enquanto dá o nó na gravata.) Diga-
me uma coisa: Você conhece alguém chamado Shaw?
(O rosto dela exprime um pouco de choque. Ela apanha o vidro
de colônia e ume-dece seu lenço enquanto responde cuidado-
samente.) BLANCHE
Bem, todo o mundo conhece alguém chamado Shaw. Por quê?
129
STANLEY
Bem, é que esse alguém chamado Shaw tem a impressão de
que conheceu você em Laurel. É, mas eu acho que ele deve ter
confundido com essa "outra pessoa", porque esta outra pessoa é
alguém que ele encontrou num hotel chamado Flamingo.
(Blanche ri sem fôlego, enquanto passa o lenço umedecido de
colônia em suas têmporas.)
BLANCHE
Temo que ele tenha me confundido com essa "outra pessoa". O
Hotel Flamingo não é o tipo de estabelecimento em que eu me
arriscaria a ser vista!
STANLEY
Você conhece esse hotel?
BLANCHE
Sim, eu o vi uma vez e senti-lhe o cheiro.
STANLEY
Você deve ter estado muito perto, se pôde sentir o cheiro.
BLANCHE
O odor de perfume barato é penetrante.
STANLEY
Esse que você usa é caro?
BLANCHE
Vinte e cinco dólares um vidrinho. Aliás, já está quase
acabando. É apenas uma sugestão, se quiser lembrar-se do meu
aniversário!
(Fala com certa descontração, mas em sua voz há um tom de
medo.)
130
STANLEY
Shaw deve ter confundido você com alguém. Ele vive indo a
Laurel e voltando de lá, assim pode verificar e esclarecer
qualquer engano.
(Volta e se dirige para os reposteiros. Blanche fecha os olhos
como se estivesse desmaiando. Sua mão treme enquanto ela
levanta o lenço novamente para passá-lo na testa. Steve e
Eunice vêm caminhando da esquina. O braço de Steve está em
volta dos ombros de Eunice, e ela está soluçando co-
piosamente; ele está murmurando palavras de amor. Há um
murmúrio de trovão à medida que eles sobem lentamente a
escada, fortemente abraçados.)
STANLEY (para Stella)
Stella, vou esperar você no Quatro Naipes !
STELLA
Hi! Não mereço um beijo?
STANLEY
Diante de sua irmã, não.

STELLA Hein?
(Sai. Blanche se levanta da cadeira. Ela parece exausta; olha ao
redor com uma expressão quase de pânico.)
! Que foi que ele ouviu a meu respeito?
foi que lhe contaram de mim?
131
STELLA
Contaram?

BLANCHE
Você não ouviu ninguém falar mal de mim?
STELLA
Ora, Blanche ! Claro que não !
BLANCHE
Sabe, Stella, corria em Laurel, uma porção de mexericos.
STELLA
Sobre você, Blanche?
BLANCHE
Eu não fui muito bem comportada, nestes dois últimos anos,
depois que Belle Rêve começou a escapar -me por entre os
dedos.
STELLA
Todos nós fazemos coisas que. . .
BLANCHE
É. . . Mas eu nunca fui bastante forte. Quando as pessoas
delicadas como eu precisam de calor humano, elas têm de usar
cores suaves e pôr uma lanterna de papel na lâmpada para
amortecer a luz, mas basta ser delicada ! Não sei por quanto
tempo ainda poderei enganar os outros.
(A tarde já chegou ao crepúsculo. Stella entra no quarto e
acende a luz sob a lanterna de papel. Ela segura uma garrafa de
refnge-rante.)
Você está me ouvindo?
132
STELLA
Eu não ouço você quando você fica mórbida!
(Adianta-se com a garrafa de refrigerante na mão.)
BLANCHE (com uma abrupta mudança de ânimo, mostrando-
se mais alegre) Essa Coca-Cola é para mim?
STELLA Para ninguém mais!
BLANCHE
Obrigada, meu anjo. É só Coca-Cola?
STELLA (voltando-se)
Você quer misturar alguma coisa?
BLANCHE
Bem, uma misturazinha nunca fez mal a nenhuma Coca-Cola.
Deixe comigo. Você não precisa ficar me dando atenção o
tempo todo !
STELLA
Mas eu gosto de lhe dar atenção, Blanche. Assim fica mais
parecido com a nossa casa.
(Vai à cozinha, apanha um copo e põe nele uma dose de
uísque.) BLANCHE
Eu tenho de admitir que adoro quando os outros me dão
atenção...
(Corre para o quarto. Stella vai se encontrar com ela, com o
copo na mão. Blanche subitamente agarra a outra mão de Stella
e com um tom lamentoso aperta a mão da
133
irmã contra seus lábios. Stella fica embaraçada por sua
demonstração emotiva. Blan-che fala com voz sufocada.)
Stella, você é. . . tão boa para mim ... e eu ...
STELLA
Blanche.
BLANCHE
Eu sei, Stella. Você detesta que eu fale dessas coisas sen-
timentais, mas, meu bem, acredite, eu sinto as coisas mais do
que lhe digo. Não vou demorar-me aqui. Não vou, prometo,
eu...
STELLA
Blanche!

BLANCHE (histericamente)
Não me demoro, prometo, vou embora. Vou logo, vou mesmo.
Não vou ficar aqui até que ele... me ponha para fora.
STELLA
E agora quer parar de dizer tolices?
BLANCHE
Sim, meu bem. Veja como põe. . . esses líquidos eferve-centes
transbordam facilmente.
(Blanche ri um riso agudo e agarra o copo, mas sua mão treme
tanto que ele quase lhe escapa. Stella põe a Cola-Cola no copo.
Ela espuma e derrama. Blanche dá um grito lancinante.)
STELLA (chocada com o grito) Meu Deus do Céu !
134
BLANCHE
Oh ! Bem no meu vestido novo !
STELLA
Oh . . . Pegue o meu lenço. Limpe com cuidado.
BLANCHE (recuperando-se lentamente) Sim, sim, com
cuidado . . .
STELLA
Manchou?
BLANCHE
Nem um pouquinho. Ha-ha! Que sorte, hein? (Senta-se,
trêmula, tomando a bebida com evidente alívio. Segura o copo
com ambas as mãos e continua a rir um pouco.)
STELLA
Por que foi que gritou desse jeito?
BLANCHE
Não sei porque gritei! (Continuando nervosamente.) Mitch. . .
Mitch virá às sete. Acho que estou meio nervosa por causa das
nossas relações. (Começa a falar rapidamente, sem tomar
fôlego.) Eu ainda não lhe dei nada a não ser um beijo de
despedida, foi tudo o que lhe dei, Stella. Quero que ele me
respeite. E os homens não querem o que podem conseguir com
facilidade. Mas, por outro lado, perdem o interesse muito
depressa. Especialmente, quando a moça já passou dos. . .
trinta. Eles acham que uma mulher de mais de trinta anos. . .
deve ceder. . . não estou "cedendo". É claro que ele não sabe. . .
Quero dizer que eu não lhe disse qual era a minha verdadeira
idade!
135
STELLA
Por que é que você se preocupa tanto com a idade?
BLANCHE
Por causa dos duros golpes que a minha vaidade já recebeu. O
que quero dizer é . . . que ele pensa que eu sou . . . pura e
correta. Quero enganá-lo o bastante para fazer com que com
que ele... com que ele... me deseje.
STELLA
Blanche, você o deseja?
BLANCHE
Eu desejo descansar! Respirar calmamente de novo! Sim... eu
desejo Mitch. . . desejo muito ! Pense só em isso acontecer!
Posso sair daqui e não ser problema para mais ninguém . . .
(Stanley aparece na esquina com uma garrafa sob o cinto.)
STANLEY (berrando)
Ei, Steve! Ei, Eunice! Ei, Stella!
(Ouvem-se gritos alegres vindos de cima. Ouvem-se também,
vindo da esquina, o som de trompete e bateria.)
STELLA (beijando Blanche impulsivamente) Isso vai
acontecer!
BLANCHE (duvidando)
Vai?
STELLA
Vai! (Vai até a cozinha, voltando-se para olhar para Blanche.)
Vai, meu bem, vai. . . mas não tome outro drinque ! (Sua voz
se apaga enquanto ela sai pela porta
136
para encontrar o marido. Blanche se afunda, exausta, na
cadeira, com o copo na mão. Eunice ri alto e desce correndo as
escadas. Steve corre atrás dela com gritos de prazer e a
persegue até dobrar a esquina. Stanley e Stella se abraçam
enquanto os seguem, rindo. O crepúsculo escurece ainda mais.
A música que vem do Quatro Naipes é lenta e triste.)
BLANCHE
Ai de mim, ai de mim, ai de mim.
(Seus olhos se fecham e o leque de folha de palmeira cai de
seus dedos. Ela golpeia com a mão o braço da cadeira uma
porção de vezes. Há um pequeno vislumbre de relâmpago
sobre o prédio. Um jovem atra-vessa a rua e toca a campainha.)
BLANCHE
Entre. (O jovem aparece através dos reposteiros. Ela o olha
com interesse.) Oh ! Que posso fazer por você?
O JOVEM
Estou cobrando para A Estrela da Tarde.
BLANCHE
Não sabia que as estrelas agora cobravam.
O JOVEM É o jornal.
BLANCHE
Eu sei, estava apenas brincando. . . quer um drinque?
137
O JOVEM
Não, madame. Não, obrigado. Não posso beber en-quanto
trabalho.
BLANCHE
Mas claro. Então vejamos. . . Eu não tenho um centavo. Não
sou a dona da casa. Sou a irmã dela, de Mississípi. Sou uma
dessas parentas pobres de que você deve ter ouvido falar.
O JOVEM
Não tem importância. Volto mais tarde.
(Faz menção de sair. Ela se aproxima um pouco.)
BLANCHE
Ei! (Ele se volta timidamente. Ela põe um cigarro em uma
longa piteira.) Tem um fósforo? (Caminha em direção a ele.
Eles se encontram na porta que separa os dois aposentos.)
O JOVEM
Pois não! (Tira um isqueiro do bolso.) Isto nem sempre
funciona.
BLANCHE
É temperamental? (O isqueiro acende.) Ah ! Muito obrigada.
(Ele tenta sair novamente.) Ei! (Ele se volta novamente, ainda
mais tímido. Ela se aproxima dele.) Que horas são?
O JOVEM
Sete e quinze, madame.
BLANCHE
Tão tarde assim? Você não gosta dessas longas tardes
138
chuvosas de Nova Orleans, quando uma hora não é apenas uma
hora, mas um pedacinho de eternidade caindo-lhe nas mãos. . .
e quem sabe o que fazer com ele? (Ela toca no ombro dele.)
Você. . . não se molhou com a chuva?
O JOVEM
Não, madame. Eu me abriguei.
BLANCHE
Numa confeitaria? E tomou uma soda?
O JOVEM Hunn, hunnn.

BLANCHE De chocolate?
O JOVEM
Não, madame. De cereja.
BLANCHE (sorrindo) Cereja?
O JOVEM
Uma soda de cereja.
BLANCHE
Você me deixa com água na boca. (Toca a face dele ligei-
ramente e sorri. Então se dirige para o baú.)
O JOVEM
Bem, é melhor eu ir andando . . .
139
BLANCHE (detendo-o)
Jovem1. . . (Ele se volta. Ela retira do baú um xale grande de
gaze e o coloca sobre os ombros. Na pausa que se segue ouve-
se o piano blue que continua pelo resta desta cena e na abertura
da cena seguinte. O jovem limpa a garganta e olha
ansiosamente para a porta.) Jovem! Jovem! Jovem! Ninguém
nunca lhe disse que você parece um príncipe saído das Mil
Uma Noites? (O jovem ri desajeitadamente e fica em pé como
um garotinho tímido. Blanche fala suavemente com ele.) Pois é
o que você parece, meu bem ! Venha cá. Eu quero dar um beijo
leve e suave na sua boca. (Sem esperar que ele aceite, ela vai
até ele rapidamente e aperta seus lábios contra os dele.) Agora
vá, vá. Eu gostaria de retê-lo, mas tenho de ser boa e não tocar
em meninos. Vá, vá, vá. . . (Ele olha fixamente para ela por um
momento. Ela abre a porta para ele e envia-lhe um beijo com a
mão enquanto ele desce os degraus com um olhar perplexo. Ela
continua lá, como que sonhando, depois de ter ele desapare-
cido. Então, Mitch aparece na esquina com um punhado de
rosas.) Vejam quem vem aí! Monsieur Rosen Cheva-lier
Primeiro, incline-se diante de mim. . . Agora apre-sente-as!
Ahhhh. . . Merciiii!. . .
(Olha para ele por sobre as rosas, apertan-do-as de maneira
coquete contra os lábios. Ele sorri para ela autoconfiante.)
140
CENA VI
São cerca de duas horas da madrugada, da mesma noite. A
parede externa do prédio está visível. Blanche e Mitch entram.
A completa exaustão que somente uma personalidade
neurastênica pode conhecer é evidente na voz e nas maneiras
de Blanche. Mitch está impassível, mas deprimido. Provavel-
mente eles estiveram no parque de diversões do lago
Pontchartrain, pois Mitch está carregando, de cabeça para
baixo, uma estatueta de gesso de Mae West, tipo de prêmio que
se ganha em galerias de tiro ao alvo e em jogos de sorteio.
BLANCHE (parando desanimada nos degraus) Bem . . . (Mitch
ri com embaraço.) Bem . . .
MITCH
Acho que deve ser bastante tarde. E você está cansada.
BLANCHE
Até mesmo o homem do tamale quente já não está mais na rua,
ele costuma ficar até o fim (Mitch ri embaraça-damente outra
vez.) Como é que você vai para casa agora?
141
MITCH
Vou até Bourbon e lá tomo um bonde que funciona de noite.
BLANCHE (sorrindo nervosamente)
Esse bonde chamado Desejo ainda anda por aí, gastando os
trilhos a estas horas?
MITCH (com pesar)
Receio que você não tenha se divertido muito esta noite,
Blanche.
BLANCHE
Eu estraguei a sua noite.
MITCH
Não, você não estragou a noite, mas eu senti o tempo todo que
eu não estava lhe dando muita. . . diversão.
BLANCHE
Eu simplesmente não conseguia me animar. Só isso. Acho que
eu nunca tentei tanto ficar alegre, e acabei estragando tudo.
Mas ninguém pode dizer que eu não tenha tentado !. . . Eu
tentei mesmo.
MITCH
Por que você tentou, se você não estava a fim, Blanche?
BLANCHE
Eu estava apenas obedecendo à lei da natureza.
MITCH
Que lei é essa?
142
BLANCHE
A lei que diz que a mulher deve agradar o homem. . . ou então
desistir! Veja se você consegue encontrar a chave da porta
nesta bolsa. Quando eu estou muito can-sada meus dedos ficam
todos desajeitados.
MITCH (procurando na bolsa de Blanche) É esta?
BLANCHE
Não, meu bem, esta é a chave do meu baú. Aliás, eu vou
começar a arrumá-lo logo, logo.
MITCH
Quer dizer que você vai embora já?
BLANCHE
Eu já Fiquei mais do que eles podem suportar.
MITCH
É esta?
(A música se desvanece.)
BLANCHE
Heureca! Benzinho, abra a porta enquanto eu dou uma última
olhada para o céu. (Debruça-se no parapeito do alpendre. Ele
abre a porta e fica, sem jeito, atrás dela.) Estou procurando as
Plêiades, as Sete Irmãs, mas as garotas, ao que parece, não
saíram hoje. Ah, não, saíram sim, lá estão elas! Deus as
abençoe! Todas elas, num bando só, voltando pra casa depois
de um joguinho de bridge... Já abriu a porta? Você é legal!
Acho que você

143
r
vai querer ir embora agora. . . (Ele arrasta os pés e tosse um
pouco.)
MITCH
Posso. . . hunnnnn. . . dar-lhe um beijo de despedida?
BLANCHE
Por que sempre pergunta antes se pode?
MITCH
Não sei se você quer ou não.
BLANCHE
Por que você não sabe?
MITCH
Aquela noite em que eu estacionei o carro perto do lago e a
beijei, você. . . BLANCHE
Benzinho, não foi o beijo que eu recusei. Eu gostei muito do
seu beijo. Foi a outra pequena familiarida-de... que eu... me
senti obrigada a... desencorajar. ... Eu não me ofendi! Nem um
pouquinho! Prá falar a verdade, eu até fiquei lisonjeada por
você... ter me desejado! Mas, benzinho, você sabe tão bem
quanto eu que uma garota solteira, uma garota sozinha no
mundo precisa saber controlar suas emoções, ou então ela está
perdida!
MITCH (solenemente) Perdida?
BLANCHE
Acho que você deve estar acostumado a garotas que gos-
144
tam de se perder. Do tipo daquelas que se perdem ime-
diatamente, no primeiro encontro!
MITCH
Eu gosto que você seja exatamente do jeito que você é, porque
em toda a minha. . . experiência... eu jamais conheci alguém
como você.
(Blanche olha gravemente para ele. Em seguida, ela sofre um
acesso de riso e então bate rapidamente em sua boca com uma
das mãos.)
MITCH
Você está rindo de mim?
BLANCHE
Não, querido. Olhe, o senhor e a senhora da casa ainda não
voltaram, portanto, entre. Vamos tomar o último drinque
juntos. Com a luz apagada.
MITCH
Como você quiser.
(Blanche vai à frente dele em direção à cozinha. A parede
externa do prédio desaparece e os interiores dos dois aposentos
podem ser vistos vagamente.)
BLANCHE (permanecendo no primeiro aposento)
Por que não vai para o outro quarto? É mais confortável. Este
estrépito no escuro quer dizer que estou procurando uma
bebida.
MITCH
Você quer beber?
145
BLANCHE
Quero que você beba! Você esteve tão ansioso e solene toda a
noite. Estivemos os dois ansiosos e solenes a noite inteira e
agora, quero criar. . . a joie de vivre! Agora estou ascendendo
uma vela.
MITCH Boa idéia.
BLANCHE
Vamos ser muito boêmios esta noite. Vamos fazer de contas
que estamos sentados num pequeno café de artistas, na Rive
Gaúche, em Paris. (Acende um toco de vela e o coloca em uma
garrafa.) Moi, je suis la Dame aux Camélias! Vous êtes. . .
Armand! Você entende francês?
MITCH
Não. Não, eu...
BLANCHE
Voulez vous coucher avec moi ce soir. Vous ne compre-nez
pas? Ah, quelle dommage! Quero dizer, ainda bem. Achei um
pouco de bebida! O suficiente para nós dois.
MITCH (com pesar) Isto. . . é bom.
(Ela entra no quarto com as bebidas e a vela.)
BLANCHE
Sente-se. Por que não tira o paletó e desabotoa o colarinho?
146
MITCH
É melhor que eu fique como estou.
BLANCHE
Queria que ficasse apenas mais à vontade.
MITCH
Tenho vergonha por transpirar tanto, estou com a camisa
grudada no corpo.
BLANCHE
Transpirar faz bem à saúde. Se a gente não transpirasse
morreria em cinco minutos. (Tira o paletó dele.) Ah, que
casaco tão bonito! Que tecido é este?
MITCH
Eles chamam de alpaca.
BLANCHE Oh! Alpaca.
MITCH
É uma alpaca muito leve.
BLANCHE
Oh! Uma alpaca muito leve.
MITCH
Não gosto de usar camiseta. Mesmo no verão porque o suor
aparece.
BLANCHE Oh!
147
MITCH
E, não dá a impressão de limpa. Um homem forte tem que
tomar cuidado com a roupa que veste, para não parecer muito
desajeitado.
BLANCHE
Você não é demasiadamente corpulento.
MITCH
Acha que não sou?
BLANCHE
Não é do tipo delicado. Tem uma ossatura forte e um físico
muito imponente.
MITCH
Obrigado. No Natal passado ganhei uma carteira de sócio do
Clube Atlético de Nova Orleans.
BLANCHE
Não diga.
MITCH
Foi o melhor presente que já recebi. Lá, eu levanto pesos e
nado e me mantenho em forma. Quando comecei, estava
ficando com a barriga mole, mas agora minha barriga está dura.
Está tão dura que um homem pode me dar um soco e não sinto
nada. Me dê um murro, Vamos ! (Ela o golpeia levemente.)
Está vendo?
BLANCHE
Meu Deus! (A mão dela toca o peito dele.)
MITCH
Adivinhe quanto eu peso, Blanche?
148
MITCH
E, não dá a impressão de limpa. Um homem forte tem que
tomar cuidado com a roupa que veste, para não parecer muito
desajeitado.
BLANCHE
Você não é demasiadamente corpulento.
MITCH
Acha que não sou?
BLANCHE
Não é do tipo delicado. Tem uma ossatura forte e um físico
muito imponente.
MITCH
Obrigado. No Natal passado ganhei uma carteira de sócio do
Clube Atlético de Nova Orleans.
BLANCHE
Não diga.
MITCH
Foi o melhor presente que já recebi. Lá, eu levanto pesos e
nado e me mantenho em forma. Quando comecei, estava
ficando com a barriga mole, mas agora minha barriga está dura.
Está tão dura que um homem pode me dar um soco e não sinto
nada. Me dê um murro, Vamos ! (Ela o golpeia levemente.)
Está vendo?
BLANCHE
Meu Deus! (A mão dela toca o peito dele.)
MITCH
Adivinhe quanto eu peso, Blanche?
148
BLANCHE
Oh! Eu diria. . . lá pelos. . . oitenta quilos?

MITCH
Adivinhe de novo.
BLANCHE
Menos?
MITCH
Não, mais.
BLANCHE
Bem, você é um homem alto e pode carregar bastante peso sem
parecer desajeitado.
MITCH
Peso noventa e quatro quilos e tenho um metro e oitenta e
quatro centímetros descalço — sem sapatos. E isso é o que eu
peso nu.
BLANCHE
Oh, meu Deus. Chega até a me dar medo.
MITCH (embaraçado)
Meu peso não é assunto muito interessante. (Hesita por um
momento.) Qual é o seu?
BLANCHE Meu peso?
MITCH
Sim.
149
BLANCHE
Adivinhe!!
MITCH
Deixe-me levantar você.
BLANCHE
Sansão ! Vamos, levante me. (Ele vem por trás dela, põe as
mãos em sua cintura e a levanta levemente do chão.) Então?
MITCH
Você é leve como uma pena.
BLANCHE
Ha, ha! (Ele a abaixa, mas mantém suas mãos na cintura dela.
Blanche fala com uma afetação de gravidade.) Você pode
soltar-me agora.
MITCH Hein?
BLANCHE (alegremente)
Eu disse, cavalheiro, que agora pode soltar-me. (Ele a abraça
desajeitadamente. A voz dela soa gentilmente re-provadora.)
Só porque Stella e Stanley não estão em casa, não é motivo
para que você não se comporte como um cavalheiro.
MITCH
Dê-me um tapa sempre que eu passar dos limites.
BLANCHE
Isso não vai ser necessário. Você é, por natureza, um ca-
150
valheiro, aliás um dos poucos cavalheiros que ainda restam no
mundo. Não quero que" você pense que sou uma dessas
professoras solteironas e severas. O que há. . . é que...
MITCH Hein?
BLANCHE
Bem, acho que tenho. . . idéias um pouco antiquadas. (Revira
os olhos de prazer, sabendo que ele não pode ver sua face.
Mitch vai até a porta da frente. Há um considerável silêncio
entre eles. Blanche suspira e Mitch tosse, autoconfiante.)
MITCH
Aonde foram Stanley e Stella esta noite?
BLANCHE
Saíram com o senhor e a senhora Hubbell.
MITCH
Aonde foram?
BLANCHE
Acho que foram a uma sessão de cinema à meia-noite.
MITCH
Vamos sair juntos qualquer noite destas.
BLANCHE
Não. Acho que não seria uma boa idéia.
MITCH Por quê?

151
BLANCHE
Você é um velho amigo de Stanley?
MITCH
Estivemos juntos no Exército, no regimento 241.
BLANCHE
Suponho que ele fala com você francamente.
MITCH Claro.
BLANCHE
Ele falou com você a meu respeito?
MITCH
Não. . . não disse muita coisa.
BLANCHE
Mas o que é que ele disse? Na sua opinião, qual é a atitude dele
para comigo?
MITCH
Por que me pergunta isso?
BLANCHE Bem. . .
MITCH
Não se dá bem com ele?
BLANCHE
O que é que você acha?
MITCH
Acho que ele não compreende você.
152
BLANCHE
Essa é a maneira suave de dizer. Se não fosse por Stella que
está esperando bebê, eu não seria capaz de suportar certas
coisas aqui.
MITCH
Ele não é. . . bom, para você?
BLANCHE

Não. Ele é insuportavelmente rude. Faz questão de ofender-me.


MITCH
De que maneira, Blanche?
BLANCHE

Ora, de qualquer maneira que se possa imaginar.


MITCH É uma surpresa para mim ouvir isso.
BLANCHE É mesmo?

MITCH
Bem, eu... não consigo imaginar como é que alguém Pode ser
rude com você.
BLANCHE
E, de fato, uma situação muito difícil. Como você vê, ninguém
pode ter sua vida íntima aqui! Com essa cortina entre os
quartos. E à noite ele anda por aqui vestido só com a roupa de
baixo. E eu tenho que pedir-lhe que feche a porta do banheiro.
Essa espécie de vulgaridade não é
153
necessária. Você, provavelmente, está se perguntando por que
é que não me mudo. Bem, vou dizer-lhe franca mente. O
ordenado de uma professora mal dá para viver, e eu não
economizei um centavo o ano passado, e por isso tenho que
agüentar o marido de minha irmã. Decerto, ele deve ter contado
a você tudo isso e, ainda, quanto me detesta!
MITCH
Não penso que ele deteste você.
BLANCHE
Detesta, sim. Senão, por que me insultaria? A primeira vez que
o vi pensei comigo mesma: esse homem é o meu carrasco! Ele
me destruirá, a não ser que . . .
MITCH Blanche. . .
BLANCHE
Que é, meu bem?
MITCH
Posso perguntar uma cousa?
BLANCHE Sim. O que é?
MITCH
Que idade tem você?
(Ela faz um gesto nervoso.) 154
BLANCHE
Por que quer saber minha idade?

MITCH
Falei com minha mãe sobre você e ela perguntou-me "que
idade tem Blanche?" E eu não pude responder. (Pausa.)
BLANCHE
Você falou com sua mãe a meu respeito?

MITCH
Falei. Contei a ela que você era muito simpática e que eu
gostava de você.
BLANCHE
E estava sendo sincero?
MITCH
Você sabe que estava.
BLANCHE
Mas eu não compreendo por que é que sua mãe quer saber a
minha idade?
MITCH
Minha mãe é doente.
BLANCHE
Sinto muito. É grave?
MITCH
Não vai viver muito. Talvez só uns poucos meses. Ela se
preocupa porque ainda não me casei. Ela quer que
155
eu esteja casado antes que ela. . . (Sua voz é rouca, e ele limpa
a garganta duas vezes, arrastando os pés nervosamente de um
lado para o outro, pondo e tirando as mãos dos bolsos.)
BLANCHE
Você gosta muito dela, não?
MITCH Gosto.
BLANCHE
Acho que você tem uma grande capacidade de devota-mento.
Você vai ficar muito só, quando ela morrer, não é? (Mitch
limpa a garganta e balança a cabeça afirmati-vãmente.) Eu
compreendo o que isso significa.
MITCH Ficar só?
BLANCHE
Também amei alguém, e perdi a pessoa que amei.
MITCH
Morreu? (Ela vai até a janela e senta-se no peitoril, olhando
para fora; põe mais uma dose no copo.) Um homem?
BLANCHE
Não. Era um menino. Apenas um menino, quando eu ainda era
muito jovem. Aos dezesseis anos fiz uma grande descoberta —
o amor! Foi tudo tão simples, tão completo. Foi assim como se
acendesse uma luz intensa, num lugar que estivesse sempre no
escuro. Foi assim que
156
ele iluminou esse mundo para mim. Mas não tive sorte.
Desiludi-me logo. Havia nele qualquer coisa muito estranha. . .
Um nervosismo, uma doçura, uma delicadeza que não eram
próprios de um homem — se bem que ele não tivesse nada de
efeminado. Mas havia qualquer coisa. . . Ele me procurava em
busca de ajuda. E eu não sabia disso. Não descobri nada, até
depois do nosso casamento . . . Foi então, que eu percebi que o
havia enganado de uma maneira misteriosa e que eu não lhe
estava dando a ajuda de que ele necessitava, mas da qual não
podia falar! Ele estava num atoleiro e agarrava-se a mim. Mas
eu não o estava puxando para fora. Eu estava afundando com
ele. E eu não sabia de nada. Exceto que eu o amava acima de
todas as coisas. Foi então que eu descobri. E da pior maneira
possível. Entrando, de repente, num quarto que julgava estar
vazio, mas que não estava. Havia nele duas pessoas. O jovem
com quem eu me casara e um senhor de mais idade que tinha
sido amigo dele durante anos e anos seguidos. . . (Ouve-se fora
uma locomotiva quese aproxima. Blanche tampa os ouvidos
com as mãos e dobra o corpo. O farol da locomotiva ilumina o
aposento enquanto ela vai passando. A medida que o barulho
desaparece, Blanche se recompõe lentamente e continua a
falar.) Mais tarde, fizemos de conta que nada disso tinha
acontecido. Fomos os três juntos ao cassino Moon Lake,
bêbados, rindo e cantando o tempo todo. (Soa a música de uma
polca, em tom baixo, meio sumido na distância.) Dançamos a
varso-viana. . . De repente, no meio da dança, o jovem com
quem eu tinha me casado afastou-se de mim e saiu correndo
pelo salão. Poucos momentos depois, ouviu-se um tiro. (A
polca pára abruptamente. Blanche se levanta com firmeza. Em
seguida, a polca retorna, em tom alto.) Saí correndo. Todos
saíram correndo e aglome-
157
raram-se em torno daquela coisa horrível, à beira do lago. Eu
não podia ver nada, pois havia tanta, tanta gente! Foi então que
alguém me tomou pelo braço e disse: "Volte, volte. Não vai
querer ver, vai?" Ver? Ver o quê?. Então ouvi vozes que
diziam: Allan, Allan, Al-lan ! Oh ! Allan !!! Ele tinha metido o
revólver na boca e atirado e a parte de trás de sua cabeça tinha
voado pelos ares ! (Ela balança a cabeça e cobre o rosto.) Tudo
porque, meu Deus, durante a dança, incapaz de con-ter-me eu
lhe havia dito: "Eu vi, Allan, eu sei tudo. Você me repugna".
Desde então, a luz que vinha iluminando a minha vida apagou-
se de repente. E nunca mais houve outra luz em minha vida que
fosse mais forte que esta pobre luz de vela. . .
(Mitch levanta-se desajeitadamente e se aproxima um pouco
dela. A polca aumenta de intensidade e som. Mitch fica de pé
ao lado dela.)

MITCH (atraindo-a lentamente para seus braços)


Você precisa de alguém. E eu também preciso de alguém.
Poderia ser ... você e eu, Blanche?
(Ela o fita vagamente por um momento. Em seguida, com um
leve suspiro, aconchega-se nos braços dele. Ela faz um esforço,
em meio aos soluços, para falar, mas as palavras não vêm. Ele
beija a testa dela, depois seus olhos e, finalmente, seus lábios.
A melodia da polca desaparece. Ela respira lentamente, em
meio a longos soluços de alívio.)
BLANCHE
Às vezes . . . Deus vem. . . tão depressa!
158
CENA VII
É um fim de tarde, em meados de setembro. Os reposteiros
estão abertos e a mesa está posta para um jantar de aniversário,
com bolo e flores. Stella está completando a decoração quando
Stanley entra.
STANLEY
Pra que todas essas palhaçadas? . . .
STELLA
Meu bem, é o aniversário de Blanche.
STANLEY Ela está aqui?
STELLA
No banheiro
STANLEY (imitando Blanche) "Lavando algumas coisas?"
STELLA
Calculo que sim.
STANLEY
Quanto tempo faz que ela está lá?
159
STELLA
Toda a tarde.
STANLEY (imitando Blanche) "De molho num banho
quente?"
STELLA Sim.
STANLEY
Temperatura 40° à sombra e ela se põe de molho num banho
quente.
STELLA
Ela diz que isso a refresca para a noite.
STANLEY
E você vai lá fora comprar coca-colas para ela, não é? E as
serve para Sua Majestade no banho? (Stella encolhe os
ombros.) Sente-se aqui um minuto.
STELLA
Stanley, tenho que fazer uma porção de coisas.
STANLEY
Sente-se! Eu já tenho a ficha de sua grande irmã, Stella.
STELLA
Stanley, pare de implicar com Blanche.
STANLEY
E é ela que me chama de ordinário!
STELLA
Ultimamente, você tem feito tudo o que pode para irri-
160
tá-la, Stanley, e Blanche é sensível e você tem que com-
preender que Blanche e eu fomos criadas em circunstâncias
muito diferentes das suas.
STANLEY
Foi o que me disseram. Aliás, não me disseram outra coisa.
Você sabe que ela nos está fazendo engolir um montão de
mentiras aqui?
STELLA
Não, não sei, e . . .
STANLEY
Bem, é o que ela tem feito. Mas, agora, o gato saiu do saco!
Descobri algumas coisas!
STELLA
Que coisas?

STANLEY
Coisas de que eu já desconfiava, mas agora tenho provas!
(Blanche está cantando no banheiro uma melosa canção
popular, que é usada como contraponto para a fala de Stanley.)
STELLA (para Stanley) Abaixe a voz!
STANLEY
Que canarinho, hein?
161
STELLA
Agora faça o favor de dizer-me calmamente, o que você pensa
que descobriu a respeito de minha irmã.
STANLEY
Mentira número um: Todos esses melindres que ela finge!
Você devia ver como ela está paquerando o Mitch. Ele pensava
que ela só tinha sido beijada por um homem. Mas a irmã
Blanche não é nenhum lírio. Ha, ha! Que lírio que ela é!
STELLA
Que foi que você ouviu e quem lhe contou?
STANLEY
O nosso fornecedor — lá da fábrica — tem viajado durante
anos e sabe tudo a respeito dela. Ela é tão famosa em Laurel,
como se fosse o presidente dos Estados Unidos, só que não é
respeitada por nenhum partido! 0 nosso fornecedor se
hospedava num hotel chamado Fla-mingo.
BLANCHE (cantando alegremente) "Diga, é só uma lua de
papel, Velejando num mar de papelão. . . Mas não seria pura
tapeação, Se você acreditasse em mim!"
STELLA
Que é que há com o Flamingo?
STANLEY
Ela também se hospedava lá.
162
STELLA
Minha irmã morava em Belle Rêve.
STANLEY
Isso foi depois que a propriedade escapou por entre os dedos
dela. Mudou-se para o Flamingo ! Um hotel de segunda classe
que tem a vantagem de não interferir na vida social privada das
personalidades que vão lá. O Flamingo é usado para toda
espécie de coisa, mas mesmo a gerência do Flamingo ficou tão
impressionada com Lady Blanche, que pediram que ela
entregasse a chave do quarto, definitivamente! Isto aconteceu
duas semanas antes que ela aparecesse por aqui.
BLANCHE (cantando)
"E um mundo de mentiras, como um circo. Tão falso quanto
pode ser... Mas não seria pura tapeação, Se você acreditasse em
mim!"
STELLA
Que. . . mentiras. . . desprezíveis!
STANLEY
Claro, eu compreendo que você fique chateada com isso. Ela
tapeou você, como tapeou Mitch !
STELLA
É pura invenção! Não há uma palavra de verdade nisso e se eu
fosse um homem e esse sujeito tivesse a ousadia de inventar
coisas dessa na minha presença. . .
BLANCHE (cantando) Sem teu amor,
163
É um desfile de sons irritantes !
Sem teu amor,
É uma melodia tocada num parque de diversões
STANLEY
Meu bem, eu disse a você que verifiquei a fundo essas
histórias; agora, espere até que eu acabe. A complicação com
Lady Blanche foi que não podia mais agir em Lau rei! Eles
manjavam tudo, depois de dois ou três encontros com ela e,
então, davam o fora, e ela ia para outro com a mesma técnica, o
mesmo jogo, a mesma besteira! Mas a cidade era pequena
demais, para que isso continuasse toda a vida! E, passando o
tempo, ela virou "figurinha" da cidade. Olhada não como
diferente, mas como completamente maluca, doida. (Stella
recua.) E, nos últimos anos, tem sido evitada como veneno. Por
isso é que está aqui, este verão, representando toda esta cena. . .
porque o prefeito praticamente disse a ela que sumisse da
cidade! Sim, você sabia que havia um acampamento do
exército perto de Laurel, e a casa de sua irmã era um dos
lugares chamados Fora dos Limites?
BLANCHE
"É apenas uma lua de papel, Tão falsa quanto pode ser... Mas
não seria uma tapeação, Se você acreditasse em mim!"
STANLEY
Bem, basta isso para ela ser um tipo refinado e particular de
moça. O que nos leva à mentira número dois.
STELLA
Não quero ouvir mais!
164
STANLEY
Ela não vai voltar a ensinar na escola! Para falar a verdade,
estou querendo apostar com você que ela jamais teve a idéia de
voltar a Laurel! Ela não se demitiu temporariamente do ginásio
por causa dos nervos. Chutaram ela de lá. . . e detesto ter que
lhe dizer a razão por que tomaram essa medida! Um rapazinho
de dezoito anos . . . ela se meteu com ele !
BLANCHE
"É um mundo de mentiras, como um circo, Tão falso quanto
pode ser..."
(No banheiro, a água continua a correr com ruído; gritinhos de
prazer e acessos de riso se alternam, como se uma criança esti-
vesse se divertindo na banheira.)
STELLA
Isto está dando-me. . . náuseas!

STANLEY
O pai do rapazinho soube do caso e falou com o diretor do
ginásio. Ah! menina, como eu gostaria de ter estado naquele
gabinete quando chamaram Lady Blanche para se explicar.
Gostaria de ter visto ela tentando livrar-se dessa! Mas desta vez
ela estava numa enrascada dos diabos, e ela sabia que não tinha
jeito. Disseram que era melhor ela se mudar para outras
bandas. Sim, senhor! Foi praticamente um decreto da cidade
contra ela!
(A porta do banheiro se abre e Blanche põe a cabeça para fora,
segurando uma toalha que lhe envolve os cabelos.)
165
BLANCHE Stella!
STELLA (debilmente) Que é, Blanche?
BLANCHE
Quer me dar outra toalha de banho, para enxugar meu cabelo.
Acabei de lavá-lo?
STELLA
Sim, Blanche. (Passa, meio sonâmbula, da cozinha à porta do
banheiro, levando uma toalha.)
BLANCHE
Que é que há meu bem?
STELLA
Há, o quê?
BLANCHE
Você está com uma expressão tão estranha no rosto!
STELLA
Oh!. . . (Tenta sorrir.) Acho que estou um pouco cansada!
BLANCHE
Por que não toma um banho também, assim que eu sair daqui?
STANLEY (da cozinha) Quando vai ser isso?
166
BLANCHE
Não vai demorar muito! Conforme-se em esperar com
paciência!
STANLEY
Não é a minha paciência, é a minha bexiga. (Blanche bate a
porta. Stanley ri cruelmente. Stella volta lentamente para a
cozinha. Para Stella) Bem, o que é que você me diz disso?
STELLA
Não acredito em nenhuma dessas histórias e acho que o seu
fornecedor foi muito reles e ordinário em contá-las. É possível
que alguma dessas coisas que ele disse sejam, em parte,
verdadeiras. Minha irmã faz coisas que eu não aprovo. . .
coisas que nos preocupavam em casa. Ela sempre foi... avoada.
STANLEY Avoada!
STELLA
Mas, quando era ainda muito moça, muito moça, casou com
um rapaz que escrevia poesia. . . Ele era extremamente bonito.
Acho que Blanche não só o amava, mas adorava o chão que ele
pisava. Ela o adorava e o julgava demasiado perfeito para ser
humano! Depois ela descobriu.
STANLEY O quê?
Que o belo e talentoso jovem era um degenerado. O seu
fornecedor não lhe deu essa informação?
167
STANLEY
O que nós discutimos são histórias recentes. Isto deve ter
acontecido faz muito tempo.
STELLA
Sim . . . faz muito tempo. . .

(Stanley se levanta e a toma pelos ombros de maneira muito


gentil. Ela delicadamente se afasta dele e começa
automaticamente a fincar pequenas velas cor-de-rosa no bolo
de aniversário.)
STANLEY
Quantas velas vai pôr nesse bolo?
STELLA
Vou parar em vinte e cinco.
STANLEY
Haverá visitas?
STELLA
Convidamos Mitch para comer um pedaço de bolo e tomar
sorvete.
(Stanley parece pouco à vontade. Acende um cigarro no toco
do que estava fumando.)
STANLEY
Eu, se fosse você, não esperaria a visita de Mitch esta noite.
(Stella faz uma pausa em seu trabalho
168
com as velas e volta os olhos lentamente para Stanley.)
STELLA
Por quê?
STANLEY
Mitch é meu camarada. Estivemos juntos na Intendência do
mesmo regimento, o 241 de Engenharia. Trabalhamos na
mesma fábrica e agora jogamos no mesmo time de boliche.
Você acha que eu teria coragem de olhar para a cara dele se...
STELLA
Stanley Kowalski, você repetiu o que aquele. . . ?
STANLEY
Ora, claro que contei para ele. Eu ficava com isso na
consciência para o resto da minha vida se soubesse e deixasse
meu melhor amigo cair na esparrela!
STELLA
E Mitch terminou com ela?
STANLEY
Você não terminaria se. . . ?
STELLA
Eu perguntei: Mitch terminou com ela?
(A voz de Blanche se eleva novamente, serena como o som de
um sino. Ela canta: "Mas não seria pura tapeação, se você acre-
ditasse em mim ".)
169
STANLEY
Não, não acho que ele tenha terminado com tudo, só que agora
esta avisado!
STELLA
Stanley, ela pensava que Mitch ia. . . ia casar com ela. E eu
desejava isso também.
STANLEY
Bem, ele não vai casar com ela. Talvez fosse, mas não vai
pular num poço cheio de tubarões agora! (Levanta-se.)
Blanche, Blanche! Posso, por favor, entrar no banheiro?
(Pausa.)
BLANCHE
Pode sim, cavalheiro! Podia esperar um segundinho en-quanto
me enxugo?
STANLEY
Depois de esperar por uma hora, acho que um segundi-nho vai
passar depressa.
STELLA
E ela não perdeu o emprego? Bem, que é que ela vai fazer?
STANLEY
Ela vai ficar aqui só até terça-feira. Eu mesmo comprei a
passagem, pra ter mais certeza. Passagem de ônibus!
STELLA
Em primeiro lugar, Blanche não iria de ônibus.
STANLEY
Ela vai de ônibus e vai gostar.
170
STELLA
Não, ela não vai, não, ela não vai, Stanley !
STANLEY
Ela vai! Ponto final P.S. Ela vai terça-feira.
STELLA (lentamente)
Que é. . . que ela vai fazer? Que é que há nesse mundo que ela
possa fazer?
STANLEY
O futuro dela já está traçado.
STELLA
Que é que você quer dizer?
(Blanche canta.)
STANLEY
Ei, canário ! Dê o fora do banheiro !
(A porta do banheiro se abre e Blanche sai com um riso alegre,
mas, quando Stanley cruza com ela, um olhar assustado
aparece em sua face, quase um olhar de pânico. Ele não olha
para ela, mas, ao entrar no banheiro, bate a porta com
estrondo.)
BLANCHE (apanhando uma escova de cabelo)
Ah! Eu me sinto tão bem depois de um banho quente e
perfumado. Sinto-me tão descansada!
(triste e hesitante, da cozinha) Você se sente bem, Blanche?
171
BLANCHE (escovando vigorosamente os cabelos)
Sim, sinto-me. (Faz tinir seu copo de uísque com soda.) Um
banho quente e um bom copo de bebida gelada sempre me dão
uma perspectiva otimista da vida. (Olha através dos reposteiros
para Stella, que está de pé entre eles, e lentamente pára de
escovar os cabelos.) Aconteceu alguma coisa, Stella? Que foi?
STELLA (virando-se rapidamente)
Por quê? Não aconteceu nada, Blanche.
BLANCHE
Você está mentindo. Alguma coisa aconteceu! O que foi?
(Fita Stella medrosamente. Stella finge estar muito ocupada na
mesa. O piano distante toca uma melodia barulhenta e frené-
tica.)

172
CENA VIII

Três quartos de hora depois. A vista que se divisa através das


grandes janelas está desaparecendo gradualmente na sombra
dourada do crepúsculo. Um fraco raio de sol ilumina ainda o
lado de um grande reservatório de água ou de gasolina que se
vê adiante do terreno baldio, na direção do bairro comercial,
que está agora pontilhado de minúsculos fachos provenientes
de janelas iluminadas ou de janelas que refletem a fraca luz do
crepúsculo. As três pessoas estão terminando uma desanimada
ceia de aniversário. Stan-ley parece mal-humorado. Stella está
embaraçada e triste. Blanche tem um sorriso apertado e
artificial em sua face cansada. Há um quarto lugar na mesa que
permanece vago.
BLANCHE (subitamente)
Stanley, conta uma piada! Uma história engraçada que nos faça
rir. Não sei o que há que estamos todos tão solenes. Será que é
por que meu namorado me abando-nou? (Stella ri debilmente.)
É a primeira vez em toda a minha experiência com os homens
— e eu tive muitos e variados — que alguém me abandona. Eu
não sei o
173
f
que fazer. . . mas conte-nos uma história, Stanley. Alguma
coisa engraçada que nos faça rir.
STANLEY
Eu não sabia que você gostava das minhas histórias, Blanche.
BLANCHE
Gosto delas quando são divertidas, mas não indecentes.
STANLEY
Não sei nenhuma fina para seu gosto.
BLANCHE
Então deixem-me contar uma, Stella.
STELLA
Sim, conte uma, Blanche. Você costumava saber uma porção
de histórias boas.
(A música desaparece lentamente.)
BLANCHE
Deixe-me ver, agora. Preciso lembrar o meu repertório. Ah !
sim... eu adoro histórias de papagaio! Todos vocês gostam de
histórias de papagaio? Bem, esta é a historia de uma solteirona
que tinha um papagaio. Um papagaio que blasfemava e sabia
mais palavrões que o senhor Kowalski!
STANLEY Hunnn!
BLANCHE
E o único meio de fazer o papagaio calar-se era cobrir
174
a gaiola com um pano, porque assim ele pensava que era de
noite e dormia. Um belo dia a solteirona tinha acabado de
descobrir a gaiola, quando — quem é que ela viu entrando pela
porta da frente? O padre ! A solteirona correu e cobriu a gaiola.
O papagaio ficou absolutamente silencioso, quieto como um
rato. Mas de repente quebrou o silêncio e disse: "Padre dos
diabos, como o dia ficou curto".
(Atira a cabeça para trás e ri. Stella também faz um inútil
esforço para parecer divertida. Stanley não presta atenção à his-
tória, mas estica o braço sobre a mesa para espetar seu garfo no
pedaço de carne que sobrou, que depois passa a comer
segurando com os dedos.)
BLANCHE
Bem. Pelo que eu vejo o senhor Kowalski não gostou da piada.
STELLA
O senhor Kowalski está demasiado ocupado em se en-gordurar
e se emporcalhar um pouco para pensar no que quer que seja!
STANLEY
É isso mesmo, meu bem.
STELLA
Seu rosto, seus dedos, dão nojo, de tão engordurados. Vá lavar-
se e venha ajudar-me a tirar a mesa.
(Ele atira um prato ao chão.)
175
STANLEY
É assim que vou tirar a mesa! (Agarra o braço dela.) Nunca
mais fale assim comigo! "Porco — polaco — nojento — vulgar
— engordurado" — essa espécie de palavras tem andado muito
por aqui, na sua língua e na da sua irmã! Que pensam que são?
Um par de rainhas? Lembrem-se do que Huey Long disse:
"Cada homem é um rei!" E eu sou rei aqui dentro, é bom que
não se esqueçam disso. (Atira ao chão uma xícara e um pires.)
Meu lugar está limpo. Querem que eu limpe o de vocês?
(Stella começa a chorar debilmente. Stanley sai com passos
largos para o alpendre e acende um cigarro. Ouve-se a música
dos artistas negros que tocam além da esquina.)
BLANCHE
Que aconteceu quando eu estava no banho, meu bem? Que foi
que ele lhe disse, Stella?
STELLA
Nada, nada, nada!
BLANCHE
Eu acho que ele disse qualquer coisa a você sobre Mitch. Você
sabe por que Mitch não veio, mas não quer dizer. (Stella
balança a cabeça, como que desamparada.) Vou chamá-lo.
STELLA
Eu não o chamaria, Blanche.
BLANCHE
Vou, chamá-lo pelo telefone.
176
STELLA (com tristeza)
Gostaria que você não fizesse isso.
BLANCHE
Eu quero que alguém me dê uma explicação !
(Corre para o telefone do quarto. Stella sai para o alpendre e
olha com ar de reprovação para o marido. Ele resmunga e se
afasta dela.)
STELLA
Espero que esteja satisfeito com o que fez. Nunca tive tanta
dificuldade em engolir a comida em toda a minha vida,
olhando para o rosto dela e para a cadeira vazia. (Chora
baixinho.)
BLANCHE (ao telefone)
Alô. O senhor Mitchel, por favor. . . Oh ... eu gostaria de deixar
o número do meu telefone, se possível. Magnó-lia 9047. E diga
que é importante. . . que ele telefone. . . Sim, muito importante.
. . Obrigada. (Permanece ao lado do telefone com um olhar
perdido e assustado. Stanley se volta lentamente para sua
mulher e a toma desajeitadamente nos braços.)
STANLEY
Stella, tudo vai ficar bem, depois que ela for embora e que você
tiver o bebê. Tudo vai ficar bem, de novo, entre mim e você,
como era antes. Lembra-se como era? As noites que tínhamos
juntos? Puxa vida, meu bem, como vai ser bom, quando a gente
puder fazer barulho de noite, como nós fazíamos, sem
nenhuma irmã atrás das cortinas para ouvir a gente! (Ouvem-se
os vizinhos do andar
177
superior rindo alto de alguma coisa. Stanley dá uma risa-
dinha.) Steve e Eunice . . .
STELLA
Venha para cá, Blanche ! (Volta para a cozinha e começa a
acender as velas no bolo branco.)
BLANCHE
Já vou. (Retorna do dormitório à mesa da cozinha.) Oh ! Tão
bonitas ! Oh, não as acenda todas, Stella.
STELLA
É claro que eu vou queimá-las. (Stanley volta para dentro.)
BLANCHE
Você devia guardá-las para os aniversários do bebê. Espero que
muitas velas brilhem na sua vida e que seus olhinhos sejam
como duas velas azuis num bolo branco.
STANLEY (sentando-se) Que poesia!
BLANCHE (faz uma pausa e reflete um pouco) Eu não devia
ter telefonado para Mitch.
STELLA
Pode ter acontecido uma porção de coisas.
BLANCHE
Isso não tem desculpa, Stella. Não estou disposta a aturar
insultos. Não sou tão fácil assim.
178
STANLEY
Com todos os diabos, está quente aqui dentro, com o vapor do
banheiro.
BLANCHE
Já pedi desculpas três vezes. (O som do piano desaparece.)
Tomo banhos quentes para acalmar os meus nervos.
Hidroterapia, como eles chamam. Você, polaco saudável, sem
um nervo no corpo, é natural que não saiba o que é estar
angustiada.
STANLEY
Não sou polaco. Mas o que eu sou é cem por cento americano,
nascido e criado no maior país do mundo e muito orgulhoso
disso. Por isso não me chame mais de polaco.
(O telefone toca. Blanche se levanta esperançosamente.)
BLANCHE
Oh ! E para mim, tenho certeza.
STANLEY
Eu não tenho tanta certeza. Fique no seu lugar. (Vai pre-
guiçosamente até o telefone.) Alô. Ah ! Sim, alô, Mac !
(Encosta-se na parede, fitando Blanche com insolência. Ela
afunda de novo na cadeira com um olhar assustado. Stella se
inclina e toca no ombro dela.)
BLANCHE
Tire as mãos de cima de mim, Stella. Que é que há com você?
Por que olham com esse olhar de piedade?
179
STANLEY (berrando)
Fique quieta aí. (Ao telefone) Temos uma mulher barulhenta
aqui em casa. Continue, Mac. No Riley? Não, não quero jogar
boliche no Riley. Tive uma briguinha com o Riley na semana
passada. Sou o capitão do time, não sou? Está certo, então não
vamos jogar no Riley, vamos jogar no West Side ou no Gala!
Combinado, Mac. Até depois. (Põe o fone no gancho e retorna
à mesa. Blanche se controla tenazmente, bebendo rapidamente
seu copo d'água. Ele não olha para ela mas enfia a mão num
bolso, procurando alguma coisa. Em seguida, fala lentamente e
com falsa amabilidade.) Querida Blanche, tenho uma
lembrancinha de aniversário para você.
BLANCHE
Tem, Stanley? Muito gentil, eu não estava esperando nada.
Eu... eu não sei por que Stella quis comemorar meu
aniversário! Eu bem que preferia esquecê-lo. Quando a gente
faz vinte e sete anos, a idade é. . . bem. . . um assunto que a
gente prefere. . . ignorar!
STANLEY
Vinte e sete?
BLANCHE (rapidamente) O que é isso? É para mim?
(Ele está segurando um pequeno envelope na direção dela.)
STANLEY
Sim. Espero que você goste.
BLANCHE
O que é? Diga o que é.
180
STANLEY
Passagem de volta para Laurel! No ônibus de terça-feira ! (A
música de uma varsoviana penetra suavemente e continua
tocando. Stella se levanta abruptamente e vira as costas.
Blanche tenta sorrir. Em seguida, tenta rir. Por fim, desiste de
ambos, levanta-se rapidamente da mesa e corre para o aposento
contíguo. Põe as mãos na garganta e em seguida corre para o
banheiro. Ouvem-se sons de tosse e de sufocamento.) Bem !
STELLA
Você não precisava fazer isso !
STANLEY
Você já esqueceu tudo que agüentei dela?
STELLA
Não precisava ser tão cruel com uma criatura assim, sozinha no
mundo.
STANLEY
Que coisinha mais delicada que ela é !
STELLA
É mesmo. Sempre foi. Você não conheceu Blanche, quando
menina. Ninguém, ninguém foi mais terna e confiante do que
ela. Mas gente como você abusou dela e fez com que ela
mudasse. (Ele vai até o quarto, tira a camisa e coloca outra,
uma camisa brilhante de jogar boliche. Ela o segue.) Você
pensa que vai jogar boliche agora?
STANLEY Claro que vou.
181
STELLA
Você não vai jogar boliche. (Agarra-o pela camisa.) Por que
fez isso com ela?
STANLEY
Não fiz nada a ninguém. Me larga, você rasgou minha camisa.
STELLA
Quero saber por quê. Responda por quê!
STANLEY
Quando nós nos vimos pela primeira vez, eu e você, você me
achou vulgar. Você acertou, minha filha. Eu era vulgar mesmo.
Era sujo. Você me mostrou o retrato da casa com as colunas.
Eu tirei você de cima daquelas colunas, e você gostou!. . . E
não fomos felizes juntos? Não estava tudo certo até que ela
chegou? (Stella faz um ligeiro movimento. Seu olhar se volta
subitamente para dentro como se alguma voz interior tivesse
chamado seu nome. Ela começa a se mover lenta, arrastando-se
do dormitório à cozinha, inclinando-se e descansando nas
costas da cadeira e em seguida na borda da mesa, com um
olhar opaco e uma expressão atenta. Stanley, que está termi-
nando de ajeitar a camisa, ainda não percebeu sua reação.) E
não éramos felizes juntos? E tudo não andava direito até que
ela apareceu aqui? Metida a besta, di-zendo que eu era um
gorila. (Subitamente ele percebe a mudança que se operou em
Stella.) Ei, que é que há, Slella? (Vai até ela.)
STELLA (baixinho)
Leve-me para o hospital.
(Ele está ao lado dela agora, amparando-a com o braço,
murmurando indistintamente à medida que vão saindo.)
182
BLANCHE
Quem é?
CENA IX
Um pouco mais tarde, na mesma noite, Blanche está sentada
em posição tensa e curva numa cadeira do quarto que ela reco-
briu com listras diagonais verdes e brancas. Ela está vestida
com o roupão vermelho de seda. Sobre a mesa, do lado da
cadeira, há uma garrafa de bebida e um copo. Ouve-se, em
rápida e febril melodia de polca, a varso-viana. A música está
na mente dela; ela está bebendo para fugir à música e à
sensação de um desastre que se aproxima e parece murmurar as
palavras da canção. Um ventilador elétrico varre
metodicamente o lugar em que ela está. Mitch aparece do lado
da esquina, com roupas de trabalho: camisa e calças azuis de
sarja. Está com a barba por fazer. Sobe as escadas que levam à
porta e toca a campainha. Blanche se assusta.
MITCH (com voz rouca) Eu. Mitch.
(A melodia da polca se interrompe.)
183
BLANCHE
Mitch! Um minuto. (Movimenta-se pelo aposento,
freneticamente, escondendo a garrafa em um armário,
agachando-se em frente ao espelho e dando pancadinhas no
rosto com colônia e pó-de-arroz. Ela está tão excitada que se
pode ouvir sua respiração enquanto ela se movi-menta para lá e
para cá. Por fim, ela corre para a porta da cozinha e o deixa
entrar.) Mitch! Sei que não devia deixar você entrar depois do
tratamento que me dispensou esta noite! Tão pouco
cavalheiresco. Mas. . . como vai, meu bem? (Oferece-lhe os
lábios. Ele a ignora e passa por ela, dirigindo-se ao interior do
apartamento. Ela o segue medrosamente enquanto ele entra no
quarto com passos largos.) Meu Deus, que indiferença. E que
traje tão grosseiro! Nem mesmo fez a barba! Que insulto
imperdoável para uma dama! Mas eu o perdôo meu bem,
perdôo porque é um alívio ver você aqui. Você fez parar a
polca que estava martelando a minha cabeça. Você já teve
alguma coisa martelando a sua cabeça? Não, claro que não
teve, não. Você nunca teria nada horrível marte-lando na sua
cabeça. (Ele a fita; ela o segue enquanto fala. É óbvio que ele
já tomou alguns goles pelo caminho.)
MITCH
Precisa ficar com esse ventilador ligado?
BLANCHE
Não!
MITCH
Eu não gosto de ventiladores.
BLANCHE
Então vamos desligá-lo, querido. Eu não faço questão!
184
(Aperta o botão e o ventilador lentamente vai parando. Limpa a
garganta, constrangida, enquanto Mitch, no quarto, se joga na
cama e acende um cigarro.) Não sei o que há para beber, ainda
não procurei.
MITCH
Não quero a bebida de Stanley.

BLANCHE
Não é de Stanley. Nem tudo o que está aqui é de Stanley. Nas
circunstâncias atuais algumas coisas são até minhas ! Como
está sua mãe, Mitch? Ela está bem?
MITCH
Por quê?

BLANCHE
Alguma coisa não está certa esta noite, mas não se preocupe.
Não vou interrogar a testemunha. Vou apenas. . . (toca a testa
dele levemente; a melodia da polca começa de novo) fazer de
conta que não percebo nada diferente em você. Essa música de
novo . . .
MITCH
Que música?
BLANCHE
A varsoviana. A polca que eles estavam tocando quando Allan
. . . Espere! (Ouve-se à distância um tiro de revólver. Blanche
parece aliviada.) O tiro! Sempre pára depois disto. (A música
da polca torna a desaparecer.) Sim, agora parou.
185
MITCH
Você está ficando maluca?
BLANCHE
Vou ver o que posso encontrar, em matéria de bebida. . . (Vai
até o armário, fingindo procurar a garrafa.) Ah, por falar nisso,
desculpe-me por não estar vestida. Mas para dizer a verdade eu
tinha desistido de esperá-lo. Esqueceu o convite para jantar?
MITCH
Eu não ia ver você nunca mais.
BLANCHE
Espere um minuto. Não ouço o que você está dizendo e você
fala tão pouco que quando diz alguma coisa, não quero perder
nem uma sílaba. . . Que é que estou procurando aqui? Ah! sim.
. . bebida. Passamos por tantas emoções esta noite; Eu estou
mesmo ficando maluca. Finge de repente ter achado a garrafa.
Ele puxa o pé para cima da cama e olha para ela com
desprezo.) Achei qualquer coisa para beber. Conforto do Sul!
Que será isto?
MITCH
Se você não sabe, deve ser do Stan.
BLANCHE
Tire os pés da cama. Ela está só com uma coberta leve por
cima. É claro que vocês rapazes não percebem coisas como
essa. Eu fiz tanta coisa para esse lugar desde que vim para cá.
MITCH
Aposto que sim.
186
BLANCHE
Você o viu antes de eu chegar. Bem, olhe para ele agora! Este
quarto está quase elegante! Eu quero mantê-lo desse jeito. Será
que este troço pode ser misturado com alguma coisa?
Ummmm, é doce, tão doce! É muito, muito doce! Ora, é um
licor, eu acho! Sim, é isso mesmo, um licor! (Mitch resmunga.)
Receio que você não vá gostar, mas experimente. Quem sabe
você gosta?
MITCH
Eu já disse a você que não quero nenhuma bebida dele. Você
devia deixar de tomar as bebidas dele. Ele disse que você
andou tomando o que era dele, durante todo o verão, como uma
gata-do-mato!
BLANCHE
Que expressão tão fantástica! Fantástica da parte dele, por dizê-
la, e fantástica de sua parte por repeti-la. Não vou sequer
descer ao nível dessas acusações baratas para respondê-las.
MITCH
Huhhh.. .
BLANCHE
O que é que você tem, Mitch? Há qualquer coisa de estranho
em seus olhos.
MITCH (levantando-se) Está escuro aqui.
BLANCHE
Eu gosto da escuridão. A escuridão me conforta.
187
MITCH
Acho que nunca vi você à luz. (Blanche ri quase sem fôlego.) É
verdade!
. BLANCHE
É?
MITCH
Nunca vi você de tarde.
BLANCHE
E de quem é a culpa?
MITCH
Você é que nunca quis sair à tarde.
BLANCHE
Mas, Mitch você está sempre na fábrica, à tarde.
MITCH
No domingo de tarde, não. Eu convidei você para sair comigo
algumas vezes, aos domingos, mas você sempre dava uma
desculpa. Você nunca quer sair antes das seis, e assim mesmo
para ir a algum lugar que não tenha muita luz.
BLANCHE
Deve haver algum significado obscuro em tudo isso? Não
consigo compreender.
MITCH
O que significa é que eu nunca pude olhar bem para você,
Blanche. Vamos acender a luz aqui.
188
BLANCHE (medrosamente) Luz? Que luz? Para quê?
MITCH
Essa que está com esse troço de papel. (Rasga a lanterni-nha de
papel da lâmpada. Ela ofega, assustada
BLANCHE
Para que você fez isso?
MITCH
Para ver você bem, como você é!
BLANCHE
Você não está querendo insultar-me !
MITCH
Não, só estou querendo ser realista.
BLANCHE
Não quero realismo. Eu quero magia. (Mitch ri.) Sim, sim,
magia. É o que tento dar às pessoas. Não digo a verdade, digo o
que deveria ser verdade. E se isso é pecado, que eu seja
amaldiçoada para sempre. Não acenda a luz!
(Mitch vai até o interruptor. Acende a luz e olha fixamente para
ela. Ela solta um grito e cobre o rosto. Ele apaga a luz
novamente.)
MITCH (lenta e amargamente)
Eu não me importo de que você seja mais velha do que eu
pensava. Mas todo o resto. . . Meu Deus! Aquelas coisas que
você falava sobre seus ideais serem antiquados, e toda aquela
conversa fiada sobre o que você sofreu
189
durante todo o verão. Oh, eu sabia que você não tinha mais
dezessete anos. Mas fui bastante estúpido para acreditar que
você fosse direita.
BLANCHE
Quem lhe disse que eu não era. . . direita? Meu querido
cunhado? E você acreditou?
MITCH
Primeiro eu o chamei de mentiroso. E depois procurei verificar
o que havia de verdadeiro na história. Primeiro perguntei ao
nosso vendedor que viaja para Laurel. E depois falei
diretamente, pelo interurbano, com aquele comerciante.
BLANCHE
Quem é esse comerciante?
MITCH
Kiefaber.
BLANCHE
O comerciante Kiefaber, de Laurel! Conheço esse homem. Ele
me perseguia. Eu o coloquei no seu lugar. E agora, para vingar-
se, inventa histórias a meu respeito.
MITCH
Três pessoas, Kiefaber, Stanley e Shaw juraram-me!
BLANCHE
Três macacos do mesmo saco! E que saco cheio de buracos !
MITCH
Você não se hospedava num hotel chamado Flamingo?
190
BLANCHE
Flamingo? Não! Chamava-se Tarantula! Eu me hospedava num
hotel chamado Tarantula Negra.
MITCH (com ar de estúpido) Tarantula?
BLANCHE
Sim, Tarantula. É o nome de uma aranha muito grande. Era
para lá que eu carregava as minhas vítimas. (Derrama mais
uma dose no copo.) Sim, eu tive muitas inti-midades com
estranhos. Depois da morte de Allan. . . as intimidades com
estranhos me pareciam ser a única coisa capaz de encher meu
coração vazio. Eu acho que era pânico, somente pânico, que
me levava de um para outro, buscando proteção aqui, ali, até
mesmo nos lugares . . . mais improváveis... até mesmo um
rapaz de dezessete anos, mas alguém escreveu ao diretor da
escola dizendo: "Essa mulher é moralmente incapaz para exer-
cer sua função !" (Atira a cabeça para trás com uma risada
convulsiva e soluçante. Repete então a afirmação do diretor,
ofega e bebe.) Verdade? Sim, suponho, incapaz é a palavra.
Então eu vim para cá. Não havia nenhum outro lugar para onde
eu pudesse ir. Estava acabada. Você sabe o que é estar
acabada? Minha juventude, de repente, tinha ido embora, por
um cano de esgoto. E. . . foi então que encontrei você. Você
disse que precisava de alguém. Eu também precisava de al-
guém. Agradeci a Deus por me ter mandado você. Você
parecia tão bondoso. Um abrigo na rocha do mundo, onde
poderia me esconder. . . Mas acho que estava pedindo,
desejando. . . demais. Kiefaber, Stanley e Shaw já tinham
amarrado uma lata velha na cauda do papagaio.
(Há uma pausa. Mitch olha para ela em silêncio.)
191
MITCH
Você me mentiu, Blanche!

BLANCHE
Não, não diga que eu menti.
MITCH
Mentiras, mentiras, por dentro e por fora, tudo mentiras.
BLANCHE
Por dentro nunca, eu nunca menti no meu coração. . .
(Uma vendedora vem do lado da esquina. É uma mulher
mexicana cega, com um xale preto, carregando braçadas
daquelas espalhafatosas flores de lata que os mexicanos das
classes mais baixas exibem em funerais ou em ocasiões
festivas. Ela está apregoando sua mercadoria de maneira quase
inaudível. Seu vulto é só fracamente visível de fora do prédio.)
A MULHER MEXICANA
Flores. Flores. . . Flores para los muertos. Flores. Flores.
BLANCHE'
Há alguém lá fora. (Vai até a porta, abre-a e olha para a mulher
mexicana.)
A MULHER MEXICANA (está à porta e oferece a
Blanche algumas de suas flores) Flores? Flores para los
muertos?
BLANCHE (assustada)
192
Não, não! Agora não. (Volta correndo para o apartamento,
batendo a porta.)
MULHER MEXICANA (vira-se e começa a descer a rua)
Flores para los muertos.
(A melodia da polca se eleva gradualmente.)
BLANCHE (como se falasse para si mesma)
Desmoronamentos, recriminações, arrependimentos... "Se você
tivesse feito assim, não me teria custado tanto..."
MULHER MEXICANA
Coronas para los muertos. Coronas. . .
BLANCHE
Heranças! E outras coisas como travesseiros manchados de
sangue. . . "A roupa de cima dele precisa ser mudada." Sim,
mamãe. Mas não podíamos arranjar uma ne-grinha para fazer
isso? Não, claro que não podíamos. Tudo tinha desaparecido, a
não ser...
MULHER MEXICANA Flores.
BLANCHE
A morte. . . Eu costumava sentar-me aqui e ela ali e a morte
estava tão perto de nós quanto você está de mim agora. . . e nós
não ousávamos sequer admitir que já tínhamos ouvido falar
nela!
MULHER MEXICANA
Flores para los muertos, flores. . . flores. . .
193
BLANCHE
O oposto da morte é o desejo. Você se admira? Como é
possível que se admire? Não longe de Belle Rêve, antes de
perdermos Belle Rêve, havia um acampamento onde
exercitavam belos recrutas. Nas noites de sábado, eles iam à
cidade, embebedar-se. . .
A MULHER MEXICANA (ao longe) Coronas. . .
BLANCHE
... e na volta, cambaleavam pelo meu jardim e chamavam. . .
"Blanche! Blanche!" A velha surda, que restava, não suspeitava
de nada. Mas, algumas vezes, eu me esgueirava lá para fora,
atendendo aos seus chamados . . . Mais tarde, a patrulha os
apanhava, um por um, como se fossem flores... ao longo do
caminho para casa.. .
(A mulher mexicana vira lentamente a esquina e desaparece
com seus suaves pregões lamentosos. Blanche vai à
penteadeira e inclina-se para a frente. Depois de um momento,
Mitch se levanta e a segue resoluto. A melodia da polca
desaparece. Ele põe as mãos na cintura dela e tenta virá-la.)
BLANCHE
Que é que você quer?
MITCH (tentando desajeitadamente abraçá-la) O que eu estava
querendo todo o verão.
BLANCHE
Então case comigo, Mitch !
194
I
MITCH
Acho que não quero mais casar com você.
BLANCHE
Não?
MITCH (tirando as mãos da cintura dela)
Você não é bastante limpa para entrar na casa de minha mãe.
BLANCHE
Então vá embora. (Ele olha fixamente para ela.) Vá embora
daqui depressa, antes que eu comece a gritar fogo! (A garganta
dela está quase sufocada de histeria.) Vá embora daqui
depressa antes que eu comece a gritar fogo! (Ele ainda fica
olhando fixamente para ela. Ela subitamente corre para a
grande janela com seu retângulo azul pálido da suave luz de
tarde de verão e grita desenfreadamente.) Fogo ! Fogo ! Fogo !
(Ofegante e assustado,Mitch se vira e sai pela porta da rua,
desce desajeitadamente as escadas e desaparece na esquina do
prédio. Blanche se retira da janela cambaleando e cai
ajoelhada. O piano distante é lento e melancólico.)
CENA X
Algumas horas mais tarde, na mesma noite. Blanche esteve
bebendo continuamente desde que Mitch foi embora. Ela ar-
rastou para o centro do quarto seu baú cheio de roupas, que
permanece aberto, com vestidos floridos espalhados por cima.
Enquanto ela bebia e tentatava arrumar a mala, começou a
experimentar uma histérica sensação de libertação, se
embandei-rou com um vestido de noite, de cetim branco, meio
sujo e amassado, e calçou um par de chinelos cor de prata já
gastos, com brilhantes engastados nos saltos.
Agora ela está colocando na cabeça a tiara de fantasia, em
frente ao espelho da penteadeira, e murmurando excitada,
como se estivesse falando a um grupo de admiradores
elegantes.
BLANCHE
Que tal se fôssemos nadar à luz da lua lá perto da pedreira? Se
é que há alguém bastante sóbrio para guiar o carro! Ha, ha, é a
melhor maneira de fazer a cabeça parar de tinir! Só que é
preciso ter muito cuidado e só mergulhar onde a água for
bastante funda. . . se a gente
197
bater com a cabeça numa pedra, só volta à tona no dia seguinte.
. . (Trêmula, ela levanta o espelho de mão para fazer uma
inspeção mais cuidadosa. Retém a respiração e atira o espelho
com tanta violência que o vidro se quebra. Ela se lamenta um
pouco e tenta se levantar. Stanley aparece na esquina do prédio.
Ele ainda veste a camisa de seda de cor verde viva usada para
jogar boliche. Enquanto ele contorna a esquina, ouve-se a
música sincopada do piano rouco. Ela continua em surdina,
durante toda a cena. Ele entra na cozinha, batendo a porta. En-
quanto examina Blanche atentamente, ele dá um assovio não
muito alto. Ele tomou alguns drinques a caminho de casa e
trouxe pequenas garrafas de cerveja para casa.)
BLANCHE
Como está minha irmã?
STANLEY Vai indo bem.
BLANCHE
E o nenê?
STANLEY (sorrindo amavelmente)
O nenê não vai chegar antes de amanhã, por isso me mandaram
para casa dormir um pouco.
BLANCHE
Isso quer dizer que nós dois vamos ter que ficar aqui sozinhos?
STANLEY
É. Só eu e você, Blanche. A menos que você tenha alguém
escondido embaixo da cama. Para que toda essa plumagem?
198
BLANCHE
Ah ! é verdade. Você saiu antes da chegada do telegrama.
STANLEY
Chegou telegrama para você?
BLANCHE
É, eu recebi um telegrama de um velho admirador meu.
STANLEY Boas notícias?
BLANCHE?
Acho que sim. Um convite.
STANLEY
Prá quê? Pro baile do Corpo de Bombeiros?
BLANCHE (jogando a cabeça para trás) Um cruzeiro de iate
pelas Caraíbas.
STANLEY
Não diga!
BLANCHE
Foi a maior surpresa da minha vida !
STANLEY Imagine!
BLANCHE
Foi como se tivesse de repente caído do céu.
STANLEY De quem foi?
199
BLANCHE
De um velho admirador meu.
STANLEY
Aquele que te deu as peles de raposa-branca?
BLANCHE
Shep Huntleigh. Foi meu namorado na universidade. Eu não o
havia visto desde o Natal passado. De repente encontrei-me
com ele em pleno Boulevard Biscayne. Agora, este telegrama,.
. . convidando-me para um cruzeiro pelas Caraíbas. Meu
problema são as roupas. Remexi minhas malas para ver se
encontrava alguma coisa apropriada para os trópicos.
STANLEY
E encontrou essa resplandencente tiara de diamantes. . .
BLANCHE
Essa velha relíquia? Ha, ha. . . pura imitação.
STANLEY
Puxa! Pensei que fossem diamantes verdadeiros. (Desa-botoa a
camisa.)
BLANCHE
De qualquer maneira vou me divertir muitíssimo.
STANLEY
Ha, ha, isso prova que a vida é cheia de surpresas!
BLANCHE
Justamente agora quando pensei que a minha sorte estivesse
me abandonando...
200
STANLEY
Entra em cena este milionário de Miami.
BLANCHE
Esse homem não é de Miami, é de Dallas.
STANLEY De Dallas?
BLANCHE
É, de Dallas onde o ouro jorra da terra.
STANLEY
Bom, contando que ele seja de algum lugar. (Começa a tirar a
camisa.)
BLANCHE
Você não poderia fechar a cortina antes de se despir?
STANLEY (amavelmente)
Por enquanto só vou tirar isso. (Rasga o saco que trouxe e tira
uma pequena garrafa de cerveja.) Viu o abridor de garrafa?
(Ela se dirige lentamente para a cômoda, onde fica com as
mãos entrelaçadas.) Eu tinha um primo que podia abrir uma
garrafa com os dentes. (Batendo a tampa da garrafa no canto da
mesa) Era só para isso que ele prestava: era um abridor de
garrafas humano. Um dia, numa festa de casamento, ele...
arrebentou os dentes da frente. Depois disso ele ficou tão
envergonhado que saía pela porta dos fundos toda a vez que
chegavam visitas. (A tampa da cerveja salta e um jato de
espuma se esparrama. Stanley ri, feliz, segurando a garrafa
sobre a cabeça.) Ha, ha, ha, ha! Chuva do céu! (Estende a
garrafa na direção dela.) Vamos acabar com as brigas se beber
a nossa amizade? Hein?
201
BLANCHE
Não, muito obrigada.
STANLEY
Bem, nós dois temos motivos para festejar hoje. Você pelo seu
milionário do petróleo e eu pelo meu filho!
(Vai até a cômoda no quarto, e agacha-se para retirar alguma
coisa da gaveta do fundo.)
BLANCHE (afastando-se)
O que é que você está fazendo aí?
STANLEY
Tenho aqui uma coisa que só uso em ocasiões especiais. Um
pijama de seda que usei na minha noite de núpcias. Quando o
telefone tocar e alguém disser: "Seu filho nas-ceu", vou
arrancá-lo do corpo e agitá-lo como uma ban-deira! (Agita no
ar um paletó de pijama brilhante.) Acho que nós dois temos o
direito de festejar e de encher a cara. (Volta à cozinha com o
paletó no braço.)
BLANCHE
Quando eu penso no prazer divino que vai ser poder estar a sós
de novo... me dá vontade de chorar de alegria. . .
STANLEY
Esse milionário de Dallas não vai interferir nessa sua so-lidão?
BLANCHE
Não vai ser esse tipo de coisa que o senhor está pen-sando.
Esse homem é um cavalheiro e me respeita. (Me-
202
lhorando sua disposição, aumentando a intensidade até se
tornar febril.) O que ele deseja é a minha companhia, mais
nada! Ser muito rico, às vezes, deixa as pessoas solitárias. Uma
mulher culta, inteligente, e de boa educa-ção pode enriquecer a
vida de um homem. Beleza física é efêmera. Uma posse
transitória. Mas a beleza do espírito e a ternura do coração — e
eu tenho tudo isso — não se pode tirar, ao contrário, elas
crescem. Crescem com os anos! Como é estranho que me
digam que eu sou uma mulher frustada! Quando eu tenho todos
esses tesouros enterrados no coração! (Um soluço sufocado a
interrompe.) Mas tenho sido tola, atirando minhas pérolas aos
porcos.
STANLEY Porcos, hein?
BLANCHE
Sim, porcos, porcos! E quando eu digo porcos, não estou
pensando apenas no senhor, mas também no seu amigo, o
senhor Mitchell. Ele veio me ver hoje à noite. Teve a ousadia
de me visitar em roupas de trabalho e repetir calúnias, histórias,
venenos que ouviu do senhor. Mandei-o daqui para fora.
STANLEY Mandou?

BLANCHE
Mas depois ele voltou! Voltou com uma caixa de rosas para
pedir perdão. Há certas coisas imperdoáveis. Crueldade
deliberada, por exemplo. E foi por isso que eu lhe
disse:"Obrigada,meu amigo",mas foi tolice pensar que era
possível nos adaptarmo-nos um ao outro. Nossos ca-
203
minhos são diferentes. Precisamos ser realistas sobre essas
coisas. Portanto, adeus, meu amigo, não me guauxle rancor. . .
Foi isso que eu lhe disse.
STANLEY
Isso foi antes ou depois de chegar o telegrama do milionário do
Texas?
BLANCHE
Que telegrama? Oh, não, não, foi depois. Para ser franca. . .
STANLEY
Para ser franco não houve nenhum telegrama!
BLANCHE
Oh, oh!
STANLEY
Não há nenhum milionário! E Mitch não trouxe rosas porque
eu sei onde ele está. . .
BLANCHE Oh!
STANLEY
Não há nada. Só imaginação.
BLANCHE Oh!
STANLEY
E olhe para você ! Olhe-se nessa fantasia de carnaval alugada
por cinqüenta centavos, de algum trapaceiro. E com essa coroa
maluca. Que rainha você pensa que é?
204
BLANCHE Oh, Deus!
STANLEY
Eu sabia quem você era desde o começo! Você não me
enganou. Você entra aqui e enche o lugar de pó-de-arroz e
perfume e cobre a lâmpada com uma lanterna de papel e
pronto! O lugar se tranforma no Egito e você é a Rainha de
Sabá. Sentada no seu trono e engolindo toda a minha bebida.
Quer saber de uma coisa? Ha! Ha! Ouviu bem? Ha, ha, ha!
(Entra no quarto.)
BLANCHE
Não entre aqui. (Pálidos reflexos aparecem nas paredes, em
volta de Blanche. As sombras são de uma forma grotesca e
ameaçadora. Ela retém a respiração, vai até o telefone e sacode
o gancho. Stanley entra no banheiro e fecha a porta.)
Telefonista! Telefonista! Interurbano . . . Quero uma ligação
para Shep Huntleigh, em Dallas. Ele é tão conhecido que não
preciso dar o endereço. Pergunte a qualquer pessoa que. . .
Espere! Não, agora não dá para encontrar. Por favor.
Compreenda. Eu ... Não. Não, espere! Um momento. Alguém
está. . . Nada! Espere, por favor. . . (Põe o fone sobre a mesinha
e entra cautelosamente na cozinha. A noite está cheia de vozes
inumanas, que soam como gritos em uma floresta. As sombras
e os reflexos pálidos movem-se sinuosamente como chamas ao
longo dos espaços das paredes. Através da parede de trás dos
aposentos, que se tornaram transparentes, pode-se ver a
calçada. Uma prostituta rodeia um bêbado. Ele a persegue ao
longo da calçada, alcança-a, e há uma luta. O apito de um
policial termina a luta. Os vultos desaparecem. Alguns momen-
tos mais tarde a mulher negra aparece no lado da esquina
205
com uma sacola de lantejoulas que a prostituta deixou cair na
calçada. Ela está examinando, excitada, o conteúdo da sacola.
Blanche aperta os nós dos dedos nos lábios e retorna
lentamente ao telefone. Ela fala em um murmúrio rouco.)
Telefonista! Telefonista! Esqueça o interurbano. Ligue-me com
a Western. (Espera com ansiedade.) Western? Eu ... quero. . .
tome nota deste tele-grama! "Circunstâncias desesperadoras.
Ajude-me! Presa numa armadilha. Presa numa..." Oh!. . .
(A porta do banheiro se abre e Stanley sai, vestindo o pijama
de seda brilhante. Ele sorri maliciosamente para ela enquanto
amarra acima da cintura o cinto com borlas. Ela ofega e se
afasta do telefone. Ele olha fixamente para ela durante o tempo
que se leva para se contar até dez. Então, um clique vindo do
telefone torna-se audível, constante e estridente.)
STANLEY
Você deixou o telefone fora do gancho.
(Vai até o telefone propositadamente e recoloca-o no gancho.
Depois de o ter recolocado, ele a fita novamente, com a boca
lentamente curva num sorriso malicioso, enquanto anda entre
Blanche e a porta da rua. O piano blue, até então quase
inaudível, começa a martelar mais alto. Seu som se transforma
no rugido de uma locomotiva que se aproxima. Blanche se
agacha, tampando as orelhas com as mãos até que ele se
afasta.)
206
BLANCHE (recompondo-se finalmente) Deixe-me. . . deixe-
me passar!
STANLEY
Passar? Claro. Pode passar. . . (Dá um passo para trás no
sentido do vão da porta.)
BLANCHE
Não. Você fique. . . fique ali! (Indica uma posição mais
distante.)
STANLEY (sorrindo maliciosamente)
Você tem espaço de sobra para passar por mim agora.
BLANCHE
Não com você aí! Mas eu tenho de sair de alguma forma!
STANLEY
Acha que eu vou interferir? Ha, ha!
(O piano blue soa suavemente. Ela se volta, confusa, e faz um
gesto desalentado. As vozes inumanas, como numa selva, au-
mentam de intensidade. Ele dá um passo em direção a ela,
mordendo a língua, que se espicha entre seus lábios.)
STANLEY (suavemente)
Pensando bem, talvez não seria mau . . . interferir . . .
(Blanche se move para trás, através da porta, em direção ao
quarto.)
207
BLANCHE
Fique aí, não dê nem mais um passo, senão. . .
STANLEY O quê?
BLANCHE
Vai acontecer uma coisa horrível!
STANLEY
Que papel você está representando agora?
(Agora, ambos estão dentro do quarto.)
BLANCHE
Eu estou avisando. Não faça isso. Eu estou em perigo!
(Ele dá outro passo. Ela quebra uma garrafa na mesa e o
encara, agarrando o gargalo quebrado.)
STANLEY
Para que você fez isso?
BLANCHE
Para espetar essa garrafa na sua cara.
STANLEY
Você é bem capaz disso.
BLANCHE
Sou, sim !. . . E é o que vou fazer se...
STANLEY
Ah, então você quer violência? Muito bem, vamos ser
violentos!
208
(Ele salta na direção dela, virando a mesa. Ela dá um grito e o
golpeia com o gargalo da garrafa, mas ele a agarra pelo pulso.)
Largue, vamos! Largue a garrafa, sua gata-do-mato! A gente
tinha esse encontro desde o começo!
(Ela geme. O gargalo da garrafa cai. Ela cai de joelhos. Ele
apanha afigura inerte de Blanche e a carrega para a cama. O
trom-pete e a bateria do Quatro Naipes soam alto.)
209
CENA XI
Algumas semanas depois. Stella está fazendo as malas de
Blanche. Pode-se ouvir o som de água correndo no banheiro.
Os re-posteiros estão parcialmente abertos, mostrando os
jogadores de pôquer — Stanley, Steve, Mitch e Pablo — que
estão sentados em volta da mesa da cozinha. A atmosfera da
cozinha agora é a mesma atmosfera desordenada e sombria da
desastrosa noite de pôquer. O prédio está emoldurado pelo céu
de turquesa. Stella está chorando enquanto arruma os vestidos
floridos no baú aberto. Eunice desce os degraus, vindo de seu
apartamento, e entra na cozinha. Há uma explosão de vozes
que vem da mesa de pôquer.
STANLEY
Oba, puxei a carta que precisava e fechei!
PABLO
Maldita sea tu suerte!
STANLEY
Fale a 1íngua da gente, homem !
211
PABLO
Estou xingando a desgraçada da sua sorte.
STANLEY (muitíssimo exaltado
Sabe o que é sorte? Sorte é acreditar que se tem sorte. Por
exemplo, em Salerno. Eu acreditei que tinha sorte. Pensava que
de cada cinco, quatro iam morrer e eu não. . . e assim é que foi.
. . É assim que a gente tem que fazer pra ficar no primei to
lugar nessa corrida de ratos... a gente tem que acreditar na
sorte. . .
MITCH
Você, você. . . se gaba. . . tudo da boca para fora. . .
(Stella entra no dormitório e começa a dobrar um vestido.)
STANLEY
O que é que há com ele?
EUNICE (andando em volta da mesa)
Eu sempre disse que os homens não têm coração. Não têm
sentimento. Mas isso também já é demais. Vocês são uns
porcos. (Dirige-se, através dos reposteiros, para o quarto.)
STANLEY
O que há com ela?
STELLA
Como está o meu bebê?
EUNICE
Dormindo como um anjo. Toma. Eu te trouxe umas
212
uvas. (Põe as uvas numa cadeira e abaixa a voz.) E Blanche?
STELL.A
Tomando banho.
EUNÍCE
Corno vai ela?
STELL.A
Não quis comer nada, mas pediu um trago.
EUNICE
Que foi que você lhe disse?
STELLA
Eu... só lhe disse. . . que arranjamos um lugar no campo pra ela
descansar. . . Na sua cabeça ela está confundindo o lugar com
Shep Huntleigh.
(Blanche abre discretamente a porta do banheiro.)
BLANCHE Stella!
STELLA
Sim, Blanche?
BLANCHE
Se alguém telefonar enquanto eu estiver no banho, tome nota
do número e diga que depois eu chamo, sim?
STELLA
Sim.
213
BLANCHE
Stella, aquele meu vestido de seda, leve. . . o buclê. Veja se
está muito amarrotado. Se não estiver eu vou usá-lo, com um
alfinete de turquesa na lapela.
(Fecha a porta. Stella volta-se para Eunice.)
STELLA
Não sei se fiz bem.
EUNICE
Que mais você podia fazer?
STELLA
Eu não podia acreditar na sua história e continuar a viver com
Stanley.
EUNICE
Não pense mais nisto. A vida tem de continuar. Não importa o
que aconteça, você tem de ir em frente. (A porta do banheiro se
abre um pouco.)
BLANCHE (olhando para fora) O caminho está livre?
STELLA
Sim, Blanche. (Para Eunice) Diga-lhe que está muito bonita.
BLANCHE
Por favor, feche a cortina antes que eu saia.
STELLA
Está fechada.
214
STANLEY
Quantas?
PABLO
Duas.
STEVE Três.
(Blanche aparece na luz amarelada da porta. Ela está
tragicamente radiante em seu roupão de cetim vermelho que
delineia as linhas esculturais de seu corpo. A varsoviana
aumenta audivelmente de intensidade enquanto Blanche entrar
no quarto.)
BLANCHE (com uma vivacidade ligeiramente histérica)
Acabei de lavar o cabelo.
É?
BLANCHE
Não tenho certeza se tirei o sabão.
EUNICE
Que cabelo bonito!
BLANCHE (aceitando o elogio)
é um problema. Ninguém me telefonou?
Quem, Blanche?
215
BLANCHE
Shep Huntleigh . . .
STELLA
Ainda não, meu bem . . .
BLANCHE
Estranho... Eu...
(Ao som da voz de Blanche, o braço de Mitch que está
segurando as cartas perde a firmeza, e seu olhar se dissolve no
espaço. Stanley dá-lhe um tapinha no ombro.)
STANLEY
Hei, Mitch, acorde!
(O som dessa nova voz choca Blanche. Ela faz um gesto de
espanto, formando o nome dele com os lábios. Stella balança a
cabeça e olha rapidamente em outra direção. Blanche fica bem
quieta por alguns momentos — com o espelho de fundo de
prata na mão e um olhar de triste perplexidade, como se toda a
experiência humana se revelasse em seu rosto. Finalmente fala,
mas com súbita histeria.)
BLANCHE
O que é que está acontecendo aqui?
(Volta-se de Esteia para Eunice e de novo para Stella. Sua voz
que se levanta penetra na concentração do jogo. Mitch abaixa
216
a cabeça, mas Stanley empurra sua cadeira para trás como se
fosse levantar. Steve põe a mão em seu braço para impedi-lo de
se levantar.)
BLANCHE (continuando)
O que aconteceu aqui? Eu quero que me expliquem o que
aconteceu aqui.
STELLA (angustiosamente) Fique quieta! Fique quieta!
EI/NICE
Fique quieta! Fique quieta, querida!
STELLA
Por favor, Blanche.
BLANCHE
Por que é que vocês estão, me olhando desse jeito? Há alguma
coisa errada em mim?
EI/NICE
Você está maravilhosa, Blanche. Ela não está um encanto?
STELLA
Está.
EUNICE
Ouvi dizer que você vai fazer uma viagem.
STELLA
É, Blanche vai. Vai tirar uma férias.
Estou morrendo de inveja.
217
BLANCHE
Ajude-me a me vestir.
STELLA (entregando-lhe o vestido) É este que você . . .
BLANCHE
Sim, este serve! Estou ansiosa por sair daqui. . . Este lugar é
uma armadilha.
EUNICE
Que blusa bonita essa azul!
STELLA
É de cor lilás.
BLANCHE
Vocês duas estão enganadas. É azul Delia Robbia. O azul do
manto da Virgem naqueles quadros antigos. Essas uvas foram
lavadas? (Toca com os dedos os cachos de uvas que Eunice
trouxe.) Essas uvas foram lavadas?
EUNICE Hein?
BLANCHE
Lavadas. Eu perguntei se estas uvas foram lavadas?
EUNICE
São do Mercado Francês.
BLANCHE
Isso não significa que tenham sido lavadas. (Os sinos da
catedral tocam.) Esses sinos da catedral são a única
218
coisa pura neste bairro. Bem, eu já me vou. Estou pronta e vou
embora.
EUNICE (murmurando)
Ela vai sair antes que eles cheguem.
STELLA
Espere, Blanche.
BLANCHE
Não quero passar por aqueles homens.
EUNICE
Então espere até o jogo acabar.
STELLA
Sente-se, e. . .
(Blanche se vira lentamente e de modo hesitante, e deixa que
elas a façam sentar numa cadeira.)
BLANCHE
Chego a sentir o cheiro do mar. O resto da minha vida, vou
viver no mar. E quando morrer, morrerei no mar. Sabem de que
é que vou. morrer? (Arranca uma uva.) Morrerei por ter
comido uma uva que não estava lavada, um dia, no meio do
mar. Morrerei com a minha mão na mão de um jovem médico
de bordo, um jovem com bigodinho muito louro e um grande
relógio de prata no bolso. E todos dirão: "Pobre senhora, o
quinino não faz mais efeito. Aquela uva que não estava lavada,
transportou sua alma ao céu". (Ouvem-se os sinos da catedral.)
E serei sepultada no mar . . . serei costurada dentro de
219
um saco branco e limpo e lançada ao mar, ao meio-dia, no
calor do verão, e a água estará azul. . . Azul (de novo soam os
sinos) como os olhos do meu primeiro amor!
(Um médico e uma enfermeira aparece-rarn do lado da esquina
e subiram os degraus até o alpendre, A gravidade de sua
profissão é exagerada. — eles têm aquela indefectível aura de
instituição estatal, com seu cínico desinteresse. O médico toca
a campainha. O murmúrio do jogo é interrompido.)
EUNICE (murmurando para Stella) Deve ser eles.
(Stela aperta os punhos contra os lábio s.)
BLANCHE (levantando-se lentamente) O que foi?
EUNICE (afetando indiferença)
Dá licença que eu vou ver quem está à porta.
STELLA
Sim.
(Eunice entra na cozinha.)
BLANCHE (com grande tensão) Acho que é para mim.
(Um diálogo murmurado se desenvolve na porta.)
220
EUNICE (retornando, animadamente) Alguém veio procurar
Blanche.
BLANCHE
Então é mesmo para mim! (Olha medrosamente de uma para
outra e em seguida para os reposteiros. A varso-viana toca
quase indistintamente.) É o cavalheiro que eu estava esperando
de Dallas?
EUNICE
Acho que sim, Blanche.
BLANCHE
Ainda não acabei de me arrumar.
STELLA
Peça a ele que espere lá fora.
BLANCHE
Eu. . .
(Eunice volta aos reposteiros. Tambores soam suavemente.)
STELLA
Tudo arrumado? Vamos, Blanche?
BLANCHE
Minhas peças de prata para toalete ainda estão fora.
STELLA
Ah!
EUNICE (retornando)
Eles estão esperando na frente da casa.
221
BLANCHE
Eles? Quem são eles?
EUNICE
Há uma senhora com ele.
BLANCHE
Não posso imaginar quem possa ser essa "senhora"! Como ela
esta vestida?
EUNICE
Com. . um tipo de... conjunto simples. BLANCHE
Possivelmente ela é. . . (Sua voz se apaga nervosamente.)
STELLA
Podemos ir, Blanche?
BLANCHE
É preciso passar por aquela sala?
STELLA
Eu vou com você.
BLANCHE
Que tal estou?
STELLA
Linda, Blanche.
EUNICE (confirmando) Uma beleza.
(Blanche caminha medrosamente para os
222
reposteiros. Eunice os abre para ela. Blanche entra na cozinha.)
BLANCHE (para os homens)
Por favor, não se levantem. Estou apenas passando por aqui.
(Dirige rapidamente para a porta da rua. Stella e Eunice a
seguem. Os jogadores de pôquer ficam de pé, acanhados, em
volta da mesa — todos, com exceção de Mitch, que permanece
sentado, olhando para a mesa. Blanche sai em um pequeno
alpendre ao lado da porta. Ela pára abruptamente e retém a
respiração.)
O MÉDICO
Como vai a senhora?
BLANCHE
O senhor não é o cavalheiro que eu estava esperando. (Ofega
subitamente e começa a voltar pela escada. Pára ao lado de
Stella, que está em pé, perto da porta, e fala com um murmúrio
cheio de medo.) Aquele homem não é Shep Huntleigh.
(A varsoviana está tocando, distante. Stella olha para Blanche.
Eunice está segurando o braço de Stella. Há um momento de
silêncio — nenhum som além do que faz Stanley recolhendo as
cartas. Blanche retém novamente a respiração e volta ao
apartamento. Ela entra com um sorriso estranho, com olhos
bem abertos e brilhantes. Assim que sua irmã passa por ela,
Stella fecha os olhos e entrelaça com força as mãos. Eunice
atira seus braços
223
ao redor dela, confortando-a. Em seguida, ela começa a voltar a
seu apartamento. Blanche pára exatamente na porta. Mitch
continua a olhar para suas mãos sobre a mesa, mas os outros
homens olham curiosamente para ela. Por fim, ela começa a
caminhar em volta da mesa, em direção ao quarto. Enquanto
ela anda, Stanley subitamente empurra sua cadeira para trás e
se levanta, como para bloquear a passagem dela. A enfermeira
entra atrás dela no apartamento.)
STANLEY
Você esqueceu alguma coisa?
BLANCHE (com voz aguda) Sim! Sim, esqueci uma coisa!
(Passa rapidamente por ele e vai ao quarto. Pálidos reflexos
aparecem nas paredes em sombras estranhas e sinuosas. A var-
soviana é como que filtrada em uma estranha distorção,
acompanhada pelos gritos e barulhos da floresta. Blanche
agarra as costas de uma cadeira como para se defender.)
STANLEY (em voz baixa)
Doutor, é melhor o senhor entrar.
O MÉDICO (em voz baixa, fazendo um gesto para a a
enfermeira) Enfermeira, traga-a para fora.
(A enfermeira avança de um lado e Stan-ley do outro. Despida
de todas as outras propriedades mais suaves das mulheres, a
enfer-
224
meira é uma figura particularmente sinistra, com seu vestido
austero. Sua voz é forte, clara e átona como a de uma
campainha de alarma.)
A ENFERMEIRA Alô, Blanche!
(A saudação é ecoada e reecoada por outras misteriosas vozes
detrás das paredes, como se reverberasse através de um desfila-
deiro de pedra.)
STANLEY
Ela diz que esqueceu alguma coisa. (O eco ressoa em
murmúrios ameaçadores.)
A ENFERMEIRA Não tem importância.
STANLEY
O que foi que você esqueceu, Blanche?
BLANCHE
Eu... eu...
A ENFERMEIRA Não importa, podemos pegar mais tarde.
STANLEY
Claro, podemos mandar junto com a mala.
BLANCHE (retirando-se em pânico)
Eu não conheço vocês, não conheço vocês. Quero ficar
sozinha, por favor!
225
A ENFERMEIRA Vamos, Blanche!

ECOS (subindo e descendo,


Vamos Blanche, vamos Blanche, vamos Blanche!
STANLEY
Você só deixou talco derramado e garrafas de perfume vazias,
a não ser que você queira levar a lanterna de papel. Você quer a
lanterna?
(Vai até a penteadeira e apanha a lanterna de papel, separando-
a da lâmpada, e a estende na direção dela. Ela grita como se a
lanterna fosse ela mesma. A enfermeira avança
ameaçadoramente para ela. Ela grita e tenta fugir à enfermeira.
Todos os homens se levantam novamente. Stella sai correndo
para o alpendre, com Eunice seguindo-a para confortá-la,
simultaneamente com as confusas vozes dos homens na
cozinha. Stella atira-se nos braços de Eunice no alpendre.)
STELLA
Oh! meu Deus, Eunice, ajude-me! Não deixe que façam isso
com ela, não deixe que eles a machuquem. O que é que estão
fazendo com ela? Que estão fazendo? (Tenta se libertar dos
braços de Eunice.)
EUNICE
Não, querida, não, não, querida. Fique aqui. Não volta lá
dentro. Fique comigo e não olhe.
226
STELLA
Que foi que eu fui fazer à minha irmãzinha? Oh, meu Deus,
que foi que eu fui fazer à minha irmãzinha?
EUNICE
A única coisa que você podia fazer. Ela não pode ficar aqui, e
não havia outro lugar para ela ir.
(Enquanto Stella e Eunice estão conversando no alpendre, as
vozes dos homens na cozinha se sobrepõem às delas. Mitch
está se dirigindo ao quarto. Stanley cruza o aposento para
bloquear sua passagem. Stanley o empurra para o lado. Mitch
arremete contra Stanley e o atinge. Stanley empurra Mitch.
Mitch cai na mesa, soluçando. Durante as cenas anteriores, a
enfermeira agarra o braço de Blanche e impede que ela escape.
Blanche se volta com violência e arranha a enfermeira. A
pesada mulher imobiliza os braços dela. Blanche solta um grito
rouco e cai de joelhos.)
A ENFERMEIRA
Estas unhas precisam ser cortadas. (O médico entra no
aposento, ela olha para ele.) Camisa de força, doutor?
O MÉDICO Só se for necessário.
(Tira o chapéu e agora se torna personalizado. Sua
característica desumana desaparece. Sua voz é gentil e
tranqüilizante, enquanto ele se dirige a Blanche e se agacha em
frente a ela. Quando ele fala o nome dela, seu terror desaparece
um pouco. Os pálidos reflexos desaparecem das paredes, os
gritos
227
e ruídos inumanos desaparecem, e a própria voz rouca de
Blanche se acalma.)
O MÉDICO
Senhorita Dubois. . . (Ela volta o rosto para ele e o fita com
uma súplica desesperada. Ele sorri e em seguida fala para a
enfermeira.) Não vai ser necessário.
BLANCHE (debilmente) Peça a ela que me largue.
O MÉDICO (para a enfermeira) Largue-a.
(A enfermeira a solta. Blanche estende as mãos na direção do
médico. Ele a atrai gentilmente e a levanta, amparando-a com
seu braço, e a conduz através dos reposteiros.)
BLANCHE (agarrando-se a seu braço)
Seja o senhor quem for. . . eu sempre dependi da bondade dos
estranhos. . .
(Os jogadores de pôquer se afastam quando Blanche e o
médico cruzam a cozinha até a porta da frente. Ela deixa que
ele a conduza como se fosse cega. Quando eles saem no
alpendre, Stella de onde está aga-chada, poucos degraus acima,
nas escadas, grita o nome de sua irmã.)
STELLA
Blanche! Blanche, Blanche!
(Blanche caminha sem se voltar, seguida
228
pelo médico e pela enfermeira. Eles dobram a esquina do
prédio. Eunice desce até onde está Stella e coloca a criança em
seus braços. Ela está envolta em um cobertor azul pálido. Stella
aceita a criança, soluçando. Eunice continua a descer as
escadas e entra na cozinha, onde os homens, com exceção de
Stanley, estão retornando silenciosamente a seus lugares ao
redor da mesa. Stanley saiu do alpendre e está em pé junto aos
degraus, olhando para Stella.)
STANLEY (um pouco hesitante) Stella?
(Ela soluça com triste desolação. Há algo de voluptuoso em sua
completa rendição ao choro, agora que sua irmã se foi.)
STANLEY (sensualmente, acalmando-a)
Ora, meu bem. Ora, amor. Ora, ora, amor. (Ajoelha-se ao lado
dela e seus dedos encontram a abertura da blusa dela) Ora, ora,
amor. Ora, amor. . .
(O voluptuoso soluço e o murmúrio sensual desaparecem sob a
crescente música do piano blue e do trompete em surdina.)
STEVE
Mão de sete cartas.
CAI O PANO
229
ARTHUR MILLER
(1915- )
VIDA E OBRA
(Introdução a A Morte do Caixeiro-Viajante)
Não era sonho. Pela terceira vez seu nome cintilava no lumi-
noso de um teatro da Broadway; a atraente, a implacável, a an-
tropofágica Broadway — meta de todos os autores americanos
de sua geração. Arthur Miller, o menino de Harlem, o jovem da
Universidade de Michigan, o magro, o tímido, o desajeitado
Miller ia estrear mais uma vez.
O Teatro Morosco estava repleto naquela noite fria de 10 de
fevereiro de 1949. Arthur Miller, muito tenso, recebia cumpri-
mentos, abraços, acenos, sorrisos. Daria tudo certo, assegura-
vam-lhe. Tudo saíra muito bem na pré-estréia, realizada em
Filadélfia. Diante da temível Broadway, porém, Miller não
estava certo de coisa alguma, a não ser de que gostava do título
de sua peça — A Morte do Caixeiro-Viajante —, apesar de
tantos o considerarem absurdo.
Havia motivos para tanta apreensão. O espetáculo teria que
agradar à toda-poderosa crítica nova-iorquina ou estaria conde-
nado, em poucos dias, a uma retirada vergonhosa. Passeando os
olhos pela platéia, o dramaturgo pensava na importância que
teria para aquela multidão, vivendo no clima de prosperidade
do após-guerra, a vida e a morte de um homem tão simples e
insignificante como um caixeiro-viajante.
O clima nos bastidores também era de preocupação. Elia
Kazan, diretor do espetáculo, dava ordens impacientes ao
pessoal das coxias. Do iluminador ao cenógrafo, do contra-
regra ao figu-rinista, todos participavam da mesma expectativa.
Ao terceiro sinal, os atores já estavam no palco. Miller viu
Arthur Kennedy, Cameron Mitchell, Mildred Dunnock,
apagados atrás das personagens de Biff, Happy e Linda.
Fingindo que não estavam sendo vistos, os membros da família
Loman existiam e estavam prontos a viver suas vidas na casa
montada em cena. Quando a cortina se abriu e o caixeiro-
viajante entrou em cena carregando duas pesadas malas, não
foi o ator Lee J. Cobb que Miller viu, mas o próprio Willy
Loman, que chegava de mais uma viagem, desesperançado e
perdido.
No momento em que o pano de boca se fechou, a Broadway
ouviu um dos mais longos e entusiásticos aplausos de sua
história. Os críticos saudaram A Morte do Caixeiro-Viajante
como a "melhor e mais importante peça contemporânea
americana".
233
"UM AUTOR ESCREVE COM OS OUVIDOS"
Arthur Miller descobriu muito cedo que, por mais restrito que
fosse o espaço de um homem em Nova York, ele não poderia
se furtar ao contato com mundos diferentes do seu. Nova York
é um grande arquipélago de raças e culturas, pequenas ilhas
particulares de contornos definidos, que vivem praticamente à
margem da cultura americana. Entre o Harlem e o Brooklín,
onde viveu os primeiros dezenove anos de sua vida, Arthur
Miller percebeu que havia, em cada uma daquelas numerosas
ilhas de imigrados, diferentes hábitos, feições, sons e odores.
A cidade ensinou-lhe muitas coisas, mas, principalmente,
aguçou-lhe a audição. E como "um autor escreve com os ouvi-
dos", segundo suas próprias palavras, aqueles anos vividos nos
bairros pobres da cidade teriam enorme importância na
construção de sua obra literária.
Miller também fazia parte de uma daquelas ilhas espalhadas ao
longo do Harlem, Brooklin e Bronx. Sua família era judia.
Isadore Miller, seu pai, foi um daqueles pequenos industriais
arruinados pela crise econômica de 1929. Com a falência, a
família viu-se obrigada a mudar da casa confortável no East
Side Manhattan, onde Arthur nascera a 17 de outubro de 1915,
para uma zona mais modesta, no Harlem.
Quando Arthur terminou o curso secundário, em 1932, todos os
sonhos acalentados pelo velho Isadore em relação ao filho
tinham desmoronado: a família não tinha condições de susten-
tá-lo numa Universidade.
Com o país mergulhado na grande depressão, Arthur Miller
juntou-se aos milhares de desempregados à espera de uma
possibilidade de colocação. Com alguma sorte, conseguiu seu
primeiro emprego: chofer de caminhão. Depois tornou-se,
consecutiva-mente, garçom, marinheiro e, finalmente,
empacotador numa fábrica de autopeças.
Em 1934, com a ajuda da National Youth Association (As-
sociação Nacional da Juventude) e um emprego de redator no
Michigan Daily, ingressa na Universidade de Michigan, para
concretizar um velho sonho: um curso de dramaturgia.
Nos quatro anos de escola, Arthur Miller consegue firmar junto
aos professores e colegas a imagem de um dramaturgo pro-
missor. Escreve algumas peças, ganha dois prêmios de
quinhentos dólares e é convidado, no final de seu curso, para
participar do
234
Não havia quem não se
alegrasse com a companhia
do bem-humorado Willy.
Ele tinha tudo: bons amigos,
uma mulher sensível e
filhos que eram um
sucesso na comunidade.
235
Federal Theatre Project (Projeto Federal de
Teatro).
A estabilidade oferecida por esse emprego deu-lhe condições
para se casar, em 1940, com sua namorada da época da
Universidade, Mary Slattery. Mas a tranqüilidade que desfruta
nessa época é logo desfeita. Miller contrai uma doença
pulmonar que o obriga a demitir-se do Projeto Federal de
Teatro e a afastar-se, durante algum tempo, dos problemas do
teatro americano. Os tempos eram difíceis: Mary trabalhava
enquanto ele convalescia, sem ânimo para nada.
Sem recursos para continuar o tratamento, segue para Nova
York, onde imagina não ser difícil para um homem, mesmo
doente, conseguir trabalho. O país acha-se empenhado no
grande esforço de guerra e Miller acaba por dar a sua
contribuição, em-pregando-se como ajustador no Arsenal da
Marinha.
Sentindo uma vontade irresistível de escrever, registrou esse
tempo de guerra num roteiro para o cinema, Normal Situation
(Situação Normal), publicado em 1944. O teatro também volta
a entusiasmá-lo. Escreve um nova peça, O Homem que Teve
Toda a Sorte (The Man Who Had Ali the Luck), porém sem
muitas esperanças de vê-la montada. Mas criou coragem e
procurou o diretor Joseph Fields. Para sua surpresa, Fields
aceita o desafio e monta a peça no Forest Theatre da
Broadway. A crítica considerou-a "inexperiente" e "didática".
Quatro récitas depois, o es-petáculo era retirado de cartaz.
Miller não tinha muito tempo para se abater com o fracasso. Os
jornais e o rádio informavam a cada momento sobre a guerra.
Como qualquer homem, ele sentia o peso de sua impotência
diante da sorte de milhares de pessoas condenadas à morte. E,
como sua única arma era a literatura, começou a escrever um
romance de denúncia contra o anti-semitismo, Focus,
publicado no final da guerra, em 1945.
O COMPROMISSO
Maio de 1945. Discursos, bandas, desfiles em carros aber-tos,
toneladas de papel picado são lançados do alto dos edifí-cios
para comemorar o fim da guerra. A América é a grande
vencedora. Mas — e os mortos? Arthur Miller pergunta-se,
diante dos soldados sobreviventes, quanta gente a guerra não
teria enriquecido às custas do sacrifício de vidas humanas.
236
Cena de As Feiticeiras de Salém, uma alegoria sobre o abuso
do poder e suas conseqüências na política cultural norte-
americana.

Com base nessa idéia, nasceu Todos Eram Meus Filhos (All
My Sons, 1947), onde o autor denuncia a ação criminosa de um
fornecedor de material bélico defeituoso, responsável pela
morte de vários pilotos.
A peça estreou em 1947, no Coronet Theatre da Broadway, sob
a direção de Elia Kazan. É o seu primeiro grande sucesso, e a
crítica passou a apontá-lo como a mais recente esperança do
teatro americano, concedendo-lhe um prêmio importante — o
do Círculo dos Críticos Teatrais de Nova York.
Mas o jovem e promissor dramaturgo ganhou também, com
Todos Eram Meus Filhos, o desconfortável rótulo de
esquerdista. A peça é proibida na Europa — nas regiões
ocupadas pelo Exército americano — e, dentro dos Estados
Unidos, levanta-se uma campanha no sentido de dificultar sua
encenação.
Miller aceita a acusação. Prefere ser um autor incômodo, como
Ibsen — seu modelo — o fora no século passado. "Nunca
escreverei uma peça a que não goste de assistir" — declara aos
jornalistas. E, para ele, escrever naquela época do após-guerra
237
era, na verdade, desmistificar um pouco os sonhos da América.
Discreto e convincente como Ibsen, Miller envereda com se-
gurança pelo drama social, colocando no centro da ação o con-
flito do indivíduo face à coletividade. O grande público e a
crítica parecem aceitar o desafio.
O sucesso alcançado por A Morte do Caixeiro- Viajante (Death
of a Salesman) é uma prova disso. A peça permanece durante
meses em cartaz, concedendo ao seu autor os maiores prêmios
do teatro americano: o do Círculo dos Críticos, o Antoinette
Perry e o cobiçado Pulitzer. E um fato curioso: é a primeira
peça a ser incluída na relação dos livros editados pelo popular
Clube do Livro. Hollywood compra os direitos da filmagem e
elencos do mundo inteiro disputam a encenação do texto.
No mesmo ano, em 1949, A Morte do Caixeiro -Viajante
estréia em Nova York e em Londres. Na versão inglesa, Paul
Muni, veterano ator de cinema e teatro, interpreta o papel de
Willy Loman. Dois anos depois, a peça é apresentada no Teatro
Glória, no Rio de Janeiro, com Jaime Costa no papel principal.
As montagens se multiplicam. Em 1952, a peça é encenada em
Paris e no Teatro Nacional da Bélgica. O papel de Willy Lo-
man é interpretado na França por atores importantes como
Claude Dauphin e Jean Louis Barrault. A crítica do mundo in-
teiro considera A Morte do Caixeiro- Viajante uma obra-prima.
O sucesso estava ao lado de Arthur Miller. Por quanto tempo?
A América entrava na década de cinqüenta sob o signo do
medo. O comitê de atividades antiamericanas do senador Mc-
Carthy estava disposto a deter todos que estivessem direta ou
indiretamente envolvidos com atividades consideradas
esquerdistas. Arthur Miller era um dos intelectuais situados na
mira da comissão de investigações.
Miller parecia ignorar as ameaças. Trabalhava na pesquisa para
uma nova peça que terminaria em 1953, As Feiticeiras de
Salém (The Crucible). Tratava se de um processo verídico
contra alguns implicados em práticas demoníacas, ocorrido em
1692. A história deixava claro que, em qualquer tempo, a caça
às feiticeiras permitia um tal abuso de poder por parte de quem
o detinha, que os implicados viam-se privados das mais ínfimas
condições de defesa.
Apesar de muito remota no tempo, a alusão é clara e depressa
percebida pela extrema direita. O cerco se fecha cada vez mais
em torno do dramaturgo. Era só uma questão de tempo.
238
Willy Loman entra em cena: carrega suas malas e
34 anos de viagens sucessivas nos ombros.
(Na foto, Jaime Costa.)

239
Enquanto aguardava, Miller trabalhava em duas peças em um
ato, Panorama Visto da Ponte (A View From The Bridge) e
Lembrança de Duas Segundas-Feiras (A Memory of Two
Mondays), montadas em 1955 no Coronet Theatre. Em
Panorama Visto da Ponte ele coloca mais uma vez o tema da
delação. A peça desenrola-se num bairro de Nova York,
composto, na sua maioria, por italianos e seus descendentes;
nela, talvez mais do que em qual-quer outra, o conhecimento
do autor dos dialetos da cidade serviu admiravelmente à
caracterização das personagens.
ANTES E DEPOIS DA QUEDA
Em 1956, Miller foi finalmente convocado a depor no comitê
de atividades antiamericanas do senador McCarthy. O in-
quérito se prolongou durante meses porque o acusado, de
acordo com fontes oficiais, "era pouco cooperativo". O
processo se arrastou até 1957, quando Miller, impassível,
recebeu a notícia de sua condenação: trinta dias de prisão. Ele
cumpriu a pena cercado de grande publicidade: acabara de se
casar com a famosa atriz Marilyn Monroe.
Fotos, entrevistas para jornais, rádio, cinema e televisão. Todos
desejavam ouvir o notável casal. Alguns jornalistas chamavam-
no de Pigmalião, e Marilyn, de Galatéia. Comentava-se que o
marido dramaturgo transformaria MM, símbolo do sexo no ci-
nema americano, numa atriz de verdade. Mas omitia-se que
Marilyn já era uma atriz disposta a explorar suas possibilidades
dramáticas quando Miller a conheceu, em 1955, no Actor's
Studio. A verdade, porém, é que o resultado desse casamento
foi uma grande catástrofe para ambos.
Durante sete anos Miller não escreveu nada, a não ser um
roteiro para o cinema, The Misfits (Os Desajustados), filmado,
em 1961, por John Huston e interpretado por um trio admirável
de atores do cinema americano: Marilyn Monroe, Clark Gable
e Montgomery Clift. As filmagens foram realizadas no
sudoeste dos Estados Unidos e Miller não as acompanhou até o
fim. O casal já estava decidido a divorciar-se. Continuariam
"bons amigos", afirmavam, mas estava tudo acabado.
No início de 1962, Miller casa-se com a fotógrafa alemã Inge
Morath. Em agosto, Marilyn suicida se em Hollywood. Embora
não houvesse relação entre os dois fatos, o autor cairia em
240
Cena do filme baseado em A Morte do Caixeiro-Viajante.
Dirigido por Laslo Benedek, Frederic Marchfoi um
extraordinário Willy Loman.

grande depressão Angustiado e confuso, recolhia dentro de si


mesmo material para sua próxima peça, Depois da Queda
(After the Fali), que estrearia em janeiro de 1964, no Lincoln
Center de Nova York.
A personagem feminina mais importante da peça é Maggie,
cantora famosa que se liga a Quentin, um advogado bem suce-
dido, numa relação dilacerante. Quentin, personagem e
narrador, conta a história dessa relação e a sua própria história,
fazendo desfilar seu passado em cena.
Maggie está presente em sua memória como uma mulher ca-
rente, que ele não soube compreender. Quentin sente-se
miserável porque não consegue dar felicidade às suas parceiras,
e, principalmente, porque não pôde impedir a destruição de
Maggie. Quase destruído, ele afinal se apega a uma nova
companheira, Holga, decidido a recomeçar mais uma vez. Com
esse apelo de espe-rança, quase uma justificativa para
continuar a viver, Quentin supera sua queda. Mas e a de
Maggie? Quando o público do Lincoln Center se levantou para
aplaudir, havia um nó em todas as gargantas: os espectadores
reconheceram em Maggie a figura de Marilyn e em Quentin a
do próprio Miller.
241
242
O comportamento de Willy revela que o sonho americano de
sucesso se transformou num grande pesadelo. Linda (Mildred
Dunnock), Biff (Arthur Kennedy) e Happy (Cameron Mitchell)
sofrem com o fracasso do pai.

Os repórteres correram para entrevistar os intérpretes princi-


pais, Jason Robards e Barbara Loden, referindo se à extrema
semelhança com as personagens reais. Miller, ao lado da
terceira esposa, apenas sorria. Meses mais tarde, numa
entrevista à revista Life, diria que Maggie não era Marilyn
Monroe, mas apenas a personagem de uma peça que tratava da
repugnância do ser humano em encontrar, dentro de si mesmo,
o germe de sua própria destruição.
A crise pessoal parecia inteiramente superada. Miller voltava a
escrever. Ainda em 1964, brinda a cena americana com uma
nova peça, Beco sem Saída (Incident at Vichy), seu protesto
moral contra o extermínio de milhares de judeus durante a Se-
gunda Guerra Mundial. Miller levantava seu brado humanista,
mas a crítica foi implacável: as personagens eram falsas, esque-
máticas e comportavam-se de maneira absurda dentro da situa-
ção que estavam vivendo. Os jornais anunciaram então que o
melhor período dramático de Arthur Miller já estava encerrado.
Sem se abater, Miller retomou o tema da classe média obce-
243
cada pela idéia do êxito individual. E escreveu O Preço (The
Price), peça montada em 1968. Ainda desta vez a crítica não se
entusiasmou. Alguma coisa estranha estava acontecendo e
Miller sentia que teria de mudar para poder se reafirmar.
A resposta viria com um grande fracasso: A Criação do Mundo
e Outros Negócios (The Creation of the World and other
Businesses), apresentada em 1972 na Broadway como uma
comédia catastrófica. A crítica chamou-a de catástrofe cômica
e aconselhou o autor a ser mais cuidadoso nos próximos
trabalhos.
Discretamente, Miller saiu de cena e transformou a "catástrofe"
numa nova obra, uma comédia musical, Up From Para-dise. Na
apresentação ao público, porém, resolveu inverter o processo.
Desta vez não seria a Broadway a julgá-la, mas o seu ponto de
partida, a Universidade de Michigan. Com grande parte do
elenco constituído por atores estudantes, Miller descobre tam-
bém a novidade das platéias jovens. Levada pelo próprio autor,
que fazia o papel de narrador, a peça percorreu inúmeras
universidades americanas.
Em 1974, George C. Scott procura Arthur Miller. Ele quer
reviver na Broadway, como protagonista e diretor, A Morte do
Caixeiro- Viajante. Era um velho sonho do veterano ator.
Assim, repentinamente, Miller volta a acontecer como nos
velhos tempos. Os jornalistas dedicam páginas inteiras à sua
obra, rememorando nostalgicamente a estréia da peça e a
interpretação do grande Lee J. Cobb no papel de Willy Loman.
Miller estava de volta. Vinte e cinco anos mais velho, mais
calmo que na primeira vez, porém ainda guardando a mesma
aparência desajeitada. Estava pronto a viver as emoções da
segunda estréia e a colher mais uma vez o sucesso de A Morte
do Caixeiro Viajante.
WILLY LOMAN, UM HOMEM COMUM
"Todo o mundo conhece Willy Loman", diz Miller no prefácio
de A Morte do Caixeiro - Viajante. Todo o mundo conhece
esse homem que corta a grama aos domingos, pinta a varanda
na primavera e é um pouco carpinteiro, um pouco pedreiro,
capaz de fazer qualquer reparo em sua casa.
Como qualquer americano de classe média, Willy também
acreditava nas receitas do sucesso, no poder de fazer amigos e
244
Maggie, personagem de Depois da Queda, é uma mulher que
traz dentro de si o germe de sua própria destruição. (Maria
Delia Costa e Paulo Autran.)

influenciar pessoas, na possibilidade de realizar o mesmo


trajeto percorrido por centenas de homens, que começaram do
nada e que, por seu esforço pessoal, puderam alçar-se aos
grandes escalões dos negócios e da política.
O modelo de Willy foi bem modesto: Dave Singleman, um
velho caixeiro viajante que conhecera na juventude. Aos 84
anos, seu prestígio era tal que nem precisava sair do quarto de
hotel para realizar seus negócios. Ninguém foi mais estimado
que Dave Singleman. Quando ele morreu — e teve a morte de
um caixeiro-viajante, no carro de fumar de um trem que ia para
Boston —, centenas de companheiros e clientes
homenagearam-no com um grande funeral.
Willy também desejou ser estimado como o velho Dave. E
como o velho Dave escolheu ser caixeiro-viajante. Mas quando
Willy Loman entra em cena, no início do primeiro ato, carre-
gando em seus ombros o peso de 34 anos de viagens
sucessivas. Percebe-se que ele não terá o sucesso de Dave
Singleman.
Em três décadas o país assistiu a grandes transformações e
Willy é uma de suas vítimas passivas e inconscientes. O
sistema
245
A memória de Willy é expressa cenicamente por meio de
flashbacks, que permitem ao espectador tomar consciência do
drama da família Loman.

comercial tornou-se tão impessoal, que desapareceram os


antigos vínculos de estima que uniam, no passado, comprador e
vendedor. Willy vende cada vez menos e cada vez mais deseja
empreender o caminho de volta à sua casa. Quer criar raízes,
anco-rar, porque a cada viagem ele morre um pouco, porque a
cada viagem ele se defronta com o fracasso.
Willy está muito perto da loucura. Presente e passado se
confundem dentro de sua mente, e, com isso, duas peças
desenrolam-se diante dos espectadores: aquela que é dada pela
torturante atualidade do protagonista, e a outra, que
corresponde às suas evocações. Essa segunda peça, que parte
da memória de Willy, é expressa cenicamente através de
flashbacks, que permitem ao espectador tomar consciência do
processo presente da vida da família Loman.
Nessa permanente busca do tempo perdido, Willy Loman
rememora a época em que era um homem vitorioso em todos
os sentidos. Tinha um carro formidável, com o qual percorria
toda a sua enorme clientela em mais de vinte Estados,
vendendo não apenas mercadorias, mas também encanto,
segurança, retidão e simpatia. Não havia companheiro ou
cliente que não se
246
Nas fotos, cenas do espetáculo dirigido por George C. Scott em
1974 e interpretado por George C. Scott, Teresa Wright, J.
Farentino e Harvey Keitel.

alegrasse com a companhia do bem-humorado e bem-sucedido


Willy Loman.
Willy tinha tudo: Linda, sua mulher, era bonita e solícita. Os
filhos, Biff e Happy, um sucesso; Biff principalmente, porque
era o campeão do time de futebol do colégio. Mas, acima de
tudo, Willy orgulhava-se de representar para a família e para a
comunidade a imagem de um cidadão modelo. Sua meta estava
quase cumprida e Loman não ambicionava muito mais que
isso. Nem se deixou tampouco contaminar pela febre do ouro,
que atraiu milhares de pessoas para o Alasca. Willy quis ficar
porque pensava que era dono de seu destino.
Mas o tempo em que Willy era um pequeno Dave está muito
longe. Ele não carrega mais consigo a foto de Biff com o
uniforme de sua equipe. Agora — e é terrível e penoso para ele
confessar o fato — as pessoas riem dele. Os clientes antigos
morreram, há muita gente nova nas estradas, e tudo lhe parece
"limitado, seco, e não há oportunidade de se firmar uma
amizade".
Willy não aceita o próprio fracasso. Ele tem procurado a morte
nos sucessivos desastres de automóvel que vem sofrendo,
apesar dos esforços terríveis que faz para justificar sua
existência.
247
Seu comportamento revela que o sonho americano de sucesso
se transformou num grande pesadelo.
Seus filhos também não conseguiram nada. Biff, o simpático
ídolo da escola, abandonou o curso depois da reprovação num
exame de matemática. Talvez Willy pudesse ter feito alguma
coisa por ele. Mas onde estava Willy naquele momento? Estava
num quarto de hotel em Boston com uma prostituta, quando o
menino chegou para lhe pedir que fosse falar com seu
professor. Talvez Willy pudesse deter a derrocada de Biff se
estivesse sozinho e voltasse com o filho para casa. Mas sua
imagem de pai reto e fiel caiu para Biff naquele quarto de hotel
e nunca mais se recuperou. O descuido de Willy foi
imperdoável e ficaria entre pai e filho para sempre. Biff irá
atribuir a ele, ainda que injustamente, muito da sua insatisfação
e desencontro com a vida. O jovem promissor tornou-se um
andarilho, um cleptomaníaco, um pequeno marginal. Está de
volta ao velho lar dos Loman porque é primavera e a cada
renascer ele sente uma vontade imensa de voltar.
Happy também não realizou nenhum sonho de Willy. É um
funcionário medíocre e frustrado, voltado permanentemente
para as mulheres e o álcool. Só Linda permanece a mesma.
Mas diante da mulher, Willy sente-se em permanente dívida,
porque também ela é vítima do seu fracasso, absorvendo todos
os choques do malogro coletivo da família Loman.
De tal forma é terrível para Willy admitir essa verdade que ele
ainda sente forças para se apegar ao sonho absurdo de um
grande negócio de artigos esportivos, que os filhos imaginam
conseguir. Willy agarra-se a essa possibilidade como se fosse a
última da família Loman. Apesar de tudo, Willy ainda tem
algumas ilusões.
Imagina poder conseguir, depois de 34 anos de vida dedicados
a uma empresa, alguma reciprocidade, e procura Howard, seu
patrão, para lhe pedir estabilidade. Willy não quer viajar mais e
está certo de que, em troca de cinqüenta dólares por semana,
Howard lhe arranjará um lugar em Nova York.
Em vão Willy jogará o seu passado de lealdade e eficiência
contra os argumentos de Howard. Seu passado só é importante
para ele mesmo. Willy está velho e acabado e deve ser
despedido. "Você não pode chupar uma laranja e jogar a casca
fora, que um homem não é um pedaço de fruta", diz Willy a
seu patrão. Mas Howard é surdo a seus apelos.
248
Willy não aceita o próprio fracasso: os clientes antigos
morreram, há muita gente nova em seu trabalho e é difícil
firmar novas amizades.
249
Depois de 34 anos de serviço, Willy Loman não tem nada.
Nem estima, nem sucesso, nem cinqüenta dólares para pagar a
última prestação do seguro de vida. É Charley, o medíocre, pai
de Bernard, o apagado Bernard da classe de Biff, que se tornou
um grande advogado, que lhe empresta o dinheiro para quitar a
apólice.
O último e irremediável golpe chega quando Willy percebe que
o grande e sonhado negócio, capaz de redimir a família Loman,
jamais acontecerá. E então ele não pode evitar ouvir de Biff
toda a dura verdade sobre si mesmo: homens como ele valem
apenas dez centavos a dúzia. "Não sou condutor de homens,
Willy, nem você é. Você não foi senão um caixeiro-viajante
traba-lhador que se reduziu a cinza como os outros ! Eu sou um
homem de um dólar a hora, Willy! Tentei em sete lugares e não
pude aumentá-lo."
Willy não pode suportar mais nada. E parte para a sua última
viagem à procura da morte, desta vez sabendo por quê.
As últimas palavras da peça pertencem a Linda. Diante do
túmulo de Willy ela conversa, como se ele a pudesse ouvir. Na-
quele dia ela fizera o último pagamento da casa. "Estamos
livres! Estamos livres!"
Vivo, Willy não foi mais que um fruto esvaziado do seu sumo.
Morto, ele representou para a família vinte mil dólares. Willy
foi mais um homem que acreditou poder forjar o seu futuro.
Não percebeu os limites impostos pela empresa, pelo mercado
do qual dependia, pela insegurança de um sistema que não lhe
oferecia nenhuma proteção, a não ser um amplo e complexo
serviço de seguros, pelos quais ele mesmo teve que pagar.
Quando o pano cai sobre a família Loman, aflora claramente
que a intenção de Arthur Miller não foi a de contar a história de
um homem singular, mas a de um personagem com o qual
muitos homens poderiam se identificar.
Ao empreender uma dramaturgia social com tal força e vi-gor,
Arthur Miller colocara-se ao lado dos titãs da cena norte-
americana: Eugene O'Neill (1888-1953) e Tennessee Williams
(1914- ). E a nota de originalidade em Miller era
exatamente esta: uma obra constantemente centrada nos
aspectos sociais, aliada a uma permanente preocupação com a
dimensão humana das personagens. O autor encarava o homem
num contexto mais amplo do que ele e que, afinal, era o mesmo
de todas as pessoas. Por isso, diferia da dramaturgia íntima e
sensível de Tennessee
250
As últimas palavras da peça pertencem a Linda. Diante do
túmulo de Willy ela conversa, como se ele a pudesse ouvir.
Naquele dia ela fizera o último pagamento da casa: "Estamos
livres! Estamos livres!"

Williams e da sondagem profunda e metafísica da condição hu-


mana, empreendida por Eugene O'Neill.
Os recursos de Arthur Miller em A Morte do Caixeiro-Viajante
não eram novos. Nem o flashback, que permitia a atualização
do passado do protagonista, nem a deformação dos fatos pas-
sados vistos através da ótica do iludido Willy Loman: o drama
expressionista na segunda década do século XX já utilizava
essa técnica em larga medida.
O grande talento de Miller foi saber usar os recursos dis-
poníveis num drama realista, onde a linguagem tem um papel
pre-ponderante. Os elementos da família Loman falam como
pessoas comuns, sem qualquer artifício ou complexidade, e,
por isso, fá-Iam muito perto ao espectador. Os vigorosos
diálogos, repletos de expressões correntes, são eivados de uma
poesia áspera e viva. Esse extraordinário poder de
comunicação concorreu para tornar A Morte do Caixeiro
Viajante uma das peças mais significativas do século XX.
251
Arthur Miller
A MORTE DO CAIXEIRO-VIAJANTE
Tradução de Flávio Rangel
Algumas conversas particulares em dois atos e um réquiem
PERSONAGENS
WILLY LOMAN, caixeiro-viajante
LINDA, sua mulher
Biff,
HAPPY (e seus filhos)
CHARLEY, vizinho dos Loman
BERNARD, filho de Charley
TIO BEN, irmão de Willy
HOWARD WAGNER, patrão de Willy
A MULHER
JENNY, secretária de Charley
STANLEY, empregado do restaurante
SENHORITA FORSYTHE e
LETTA (jovens)
ATO I
Ouve-se o som de uma flauta. É uma melodia leve e delicada,
que fala de relva, árvores e horizontes. Sobe o pano.
Diante de nós está a casa do caixeiro-viajante. Uma sugestão
de formas angulares e de torres que a cercam, pelos lados e por
trás. Uma suave luz azul-celeste cai sobre a casa e sobre a
frente do palco; as outras áreas são cobertas por uma luz
alaranjada e áspera. A medida que a luz cresce, vemos um
maciço bloco de prédios de apartamentos, como se estivessem
esmagando a frágil casinha. O lugar sugere uma atmosfera de
um sonho que emergisse da realidade. Mas a cozinha, ao
centro, parece bastante real, pois há nela uma mesa, três
cadeiras e uma geladeira. Mas é só. No fundo da cozinha, há
uma porta com cortina que conduz à sala. À direita, num nível
mais alto, um quarto de dormir, com uma cama de ferro e uma
cadeira. Numa estante acima da cama existe um troféu
esportivo, uma taça de prata. Aí, uma janela se abre para o
prédio vizinho.
Atrás da cozinha, num nível dois metros mais alto, está o
quarto dos rapazes, por enquanto apenas sugerido. Vêem-se
vagamente duas camas e, no fundo do quarto, uma água-
furtada. (Este quarto está em cima da sala que não se vê.) À es-
querda, uma escada em curva liga o quarto à cozinha.
O cenário é transparente (no todo ou em parte). O telhado é
unidimensional; acima e abaixo dele, vêem-se os prédios de
apartamentos. Na frente da
259
casa existe um praticável que chega até o proscênio; essa área
serve tanto como quintal de Willy como o local onde ele
imagina suas cenas e também as cenas de cidade. Quando a
ação se desenrola no presente, os atores devem respeitar as li-
nhas imaginárias do cenário e entrar na casa apenas através da
porta à esquerda. Mas, nas cenas do passado, estas convenções
são quebradas, e os personagens entram ou saem de um quarto
"através " das paredes.
Willy Loman, o caixeiro-viajante, entra da direita, com duas
grandes maletas de amostras. Ouve-se a flauta. Willy não se dá
conta dela. Ele tem mais de sessenta anos e veste-se
sobriamente. Seu cansaço é evidente, o que se nota pelo modo
como caminha. Abre a porta, vai à cozinha, e abandona sua
pesada carga, sentindo as palmas das mãos doloridas. No meio
de um suspiro, deixa escapar uma palavra, que pode ser "Oh,
meu Deus ". Fecha a porta e leva as maletas para a sala através
da porta com cortina.
Linda, sua mulher, faz um movimento na cama, à direita.
Levanta-se e põe um roupão; escuta. E uma mulher
naturalmente alegre, que reprime, com vontade de ferro, suas
restrições ao compor lamento de Willy. Ela o ama muito e,
mais do que isso, ela o admira, como se a natureza agitada de
Willy, seu temperamento, seus sonhos grandiosos e suas
pequenas misérias compusessem o painel das lembranças
profundas das ânsias turbulentas que existem dentro dele, as
quais ela compartilha, mas sem vivê-las em toda a sua
extensão.
LINDA (ouvindo os pequenos ruídos de Willy, chama com li-
geira angústia) Willy!
260
A
WILLY
Está tudo bem. Eu voltei.
LINDA
Por quê? O que houve? (Ligeira pausa.) Aconteceu alguma
coisa, Willy?
WILLY
Não, nada.
LINDA
Você bateu com o carro?
WILLY (um pouco irritado)
Eu já disse que não aconteceu nada. Você não ouviu não?
LINDA
Você está se sentindo bem?
WILLY
Estou morto de cansaço. (A flauta sumiu. Ele se senta na cama
ao lado dela, meio entorpecido.) Eu não consegui. Simples
mente eu não consegui, Linda.
LINDA (muito cuidadosa e delicadamente)
Onde é que você andou o dia inteiro? Você está com uma cara
horrível.
WILLY
Cheguei até um pouco além de Yonkers. Parei num bar pra
tomar um café. Acho que foi o café.
LINDA
O quê?
WILLY (depois de uma pausa)
De repente eu não conseguia mais guiar o carro. Eu não con-
trolava mais o carro, entende?
261
LINDA (querendo ajudar)
Ah, deve ter sido essa direção de novo. Acho que o Ângelo não
entende nada de Studebaker.
WILLY
Não, sou eu, sou eu. De repente percebo que estou indo a cem
por hora, e não consigo me lembrar do que aconteceu há cinco
minutos. Eu. . . eu acho que. . . não consigo mais me concen-
trarem nada...
LINDA
Devem ser seus óculos novos. Você não gostou nunca desses
óculos novos.
WILLY
Não, eu vejo bem. Voltei bem devagarinho, a quinze por hora.
Demorei mais de quatro horas para chegar aqui.
LINDA (resignada)
Você tem que descansar, Willy. Você não pode continuar as
sim.
WILLY
Mas eu acabei de voltar da Flórida.
LINDA
Mas não descansou a cabeça, querido. Essa cabeça trabalha
muito e é a cabeça que a gente precisa descansar.
WILLY
Amanhã eu vou sair de manhã. Quem sabe eu me sinto melhor
de manhã? (Linda está tirando os sapatos dele.) Ah, como me
doem os pés.
LINDA
Você quer uma aspirina? Quer? Eu vou buscar para você.
262
WILLY (pensando)
Eu estava lá guiando o carro... e até me sentia bem. Estava
olhando a paisagem. Você pode imaginar isso? Um homem
como eu, que passou sua vida inteira nas estradas, ainda
olhando a paisagem? Mas é tão bonito aquilo, Linda, árvores
por todo lado, e tão cheio de sol... Abri o pára-brisa e deixei o
vento batendo no meu rosto... E de repente, eu saí da es trada!
Eu estou lhe dizendo, eu esqueci completamente que estava
guiando! Se eu tivesse virado para o outro lado, podia ter
matado alguém. Voltei para a estrada, mas cinco minutos
depois estava sonhando de novo, e quase que eu... (Aperta os
olhos com os dedos.) Eu penso cada coisa, cada coisa tão
estranha. . .
LINDA
Willy, meu querido. Fale com eles de novo. Não há razão para
você não trabalhar aqui mesmo em Nova York.
WILLY
Eles não precisam de mim em Nova York. Sou o homem da
Nova Inglaterra. É lá que eu sou importante.
LINDA
Mas você tem sessenta anos. Eles não podem querer que você
continue viajando todas as semanas.
WILLY
Tenho que mandar um telegrama a Portland. Brown & Morri-
son estão me esperando amanhã às dez da manhã para ver os
artigos. Puxa, eu posso fazer uma boa venda! (Começa a
colocar o paletó.)
LINDA (tirando-lhe o paletó)
Por que você não vai amanhã ao escritório e diz claramente a
Howard que você quer trabalhar aqui em Nova York? Você se
conforma demais com as coisas, meu amor.
263
WILLY
Se o velho Wagner fosse vivo, hoje eu teria um lugar de
diretor, e aqui em Nova York! Esse homem sim, era um
príncipe, um homem de verdade. Mas esse menino, esse
Howard, esse não sabe de nada. Quando eu resolvi ir para o
norte pela primeira vez, a Companhia Wagner não sabia nem
onde Ficava a Nova Inglaterra!
LINDA
Então, meu querido, por que você não diz tudo isso a Howard?
WILLY (animado)
Eu vou dizer. E isso mesmo, pronto: vou dizer tudo. Será que
sobrou um pedaço de queijo?
LINDA
Eu vou fazer um sanduíche para você.
WILLY
Não, vá dormir. Vou tomar um pouco de leite. Leite me faz
bem. Os meninos estão em casa?
LINDA
Estão dormindo. Happy levou Biff a uma festinha.
WILLY (interessado)
LINDA
Foi tão bonito ver os dois fazendo a barba juntos no banheiro.
E saindo juntos. Você não está sentindo? A casa inteira está
cheirando a loção de barba.
WILLY
Pois é. A gente trabalha a vida inteira para comprar uma casa e,
quando a casa é da gente, não há ninguém para morar nela.
264
LINDA
Mas meu amor, a vida é assim mesmo. Sempre foi assim. A
vida é uma derrota.
WILLY
Não, há pessoas... há pessoas que conseguem sucesso, Biff
falou alguma coisa, depois que eu saí hoje de manhã?
LINDA
Você não devia ter criticado as atitudes de Biff, especialmente
logo depois que ele chegou. Você não deve perder a calma com
ele.
WILLY
Quem é que perdeu a calma com ele? Eu só perguntei se ele
estava ganhando algum dinheiro. Isso é criticar?
LINDA
Mas, meu querido, como é que ele podia ter ganho algum di-
nheiro?
WILLY (preocupado e zangado)
Ele tem uma tendência a ficar por baixo. Ficou uma pessoa
esquisita, sempre irritado. Pediu desculpas depois que eu saí?
LINDA
Ele ficou abatido, Willy. Você sabe o quanto ele admira você.
Eu acho que no dia em que Biff se encontrar, vocês dois vão
ficar mais felizes e não vão brigar mais.
WILLY
Como é que ele pode encontrar a si mesmo numa fazenda? Isso
lá é vida? Vai ser o que, vaqueiro? No começo, quando ele era
mais moço, eu pensei: está certo, não há mal algum em um
rapaz pular de emprego pra emprego até decidir o que quer.
Mas isso já faz mais de dez anos e ele não ganha nem trinta e
cinco dólares por semana!
265
LINDA
Ele está procurando o caminho dele, Willy.
WILLY
Pois já devia ter achado. Não saber o que se quer da vida, com
trinta e quatro anos, é uma desgraça!
LINDA Psst. . .
WILLY
O problema é que ele é preguiçoso, isso sim !
LINDA
Willy, por favor. . .
WILLY
Meu filho é um vagabundo preguiçoso !
LINDA
Eles estão dormindo. Vá comer qualquer coisa, vá.
WILLY
Por que é que ele veio pra cá? Eu só queria saber o que é que
ele veio fazer aqui.
LINDA
Não sei. Acho que ele ainda está desorientado, Willy. Acho
que está muito desorientado.
WILLY
Biff Loman está desorientado. No maior país do mundo, um
jovem com tanto. . . com tanto charme, está desorientado. E
com a capacidade de trabalho que ele tem! Porque Biff tem
uma coisa: ele não é preguiçoso.
LINDA
Claro que não.
266
WILLY (piedoso e decidido)
Eu vou falar com ele amanhã de manhã. Uma conversa calma e
tranqüila. Vou arranjar para ele um emprego de caixeiro-via-
jante. Ele teria sucesso num instante! Meu Deus! Lembra como
todo mundo vivia à volta dele no tempo do ginásio? Bastava
ele sorrir para alguém e pronto! Todo mundo ficava radiante !
Quando ele andava pela rua. . . (Perde-se nos próprios
pensamentos.)
LINDA (procurando trazê-lo à realidade)
Willy, querido, eu comprei hoje um tipo novo de queijo, sabe?
Queijo batido.
WILLY
Suíço?
LINDA
Não, americano.
WILLY
Por que você compra queijo americano, quando sabe que eu só
gosto de queijo suíço?
LINDA
Eu pensei que você gostasse de variar . . .
WILLY
Não quero variar nada! Quero queijo suíço ! Por que você vive
me contrariando?
LINDA (num sorriso meio falso) Queria fazer-lhe uma
surpresa.
WILLY
Por que é que você não abre a janela? Pelo amor de Deus!
267
LINDA (com infinita paciência) Estão todas abertas, meu
querido.
WILLY
O jeito que eles prenderam a gente aqui dentro. Janela e tijolo,
tijolo e janela.
LINDA
Foi uma bobagem não termos comprado o terreno vizinho.
WILLY
A rua está cheia de carros. Não se respira um pingo de ar fresco
por aqui. A grama não cresce mais e a gente não consegue
plantar nem uma cenoura no quintal. Deviam fazer uma lei
proibindo edifícios de apartamentos. Você se lembra daquelas
duas árvores lindas que havia aqui? Lembra? Quando Biff e eu
penduramos o balanço entre elas?
LINDA
Era como se a gente morasse a quilômetros de distância da
cidade.
WILLY
Deviam botar na cadeia o construtor que derrubou essas árvo-
res. Destruíram o bairro inteiro. (Perdido) Cada vez penso mais
naqueles tempos, Linda. Nesta época do ano, havia lila-zes e
glicínias. Depois, era a vez das peônias e dos narcisos. Como
este quarto vivia perfumado!
LINDA
Bom, a verdade é que as pessoas têm que morar em algum
lugar.
WILLY
Não é isso; é que agora há mais gente.
LINDA
Não, não é que haja mais gente, é que. . .
268
WILLY
Há mais gente! É isso que está destruindo este país! Ninguém
controla mais a população. A competição é terrível! Você não
sente o mau cheiro que vem desse prédio daí? E do outro, ali
do outro lado? Como é possível bater um queijo?
(Na última frase de Willy, Biff e Happy levantam-se de suas
camas e prestam atenção.)
LINDA
Vá provar o queijo. E não faça barulho.
WILLY (virando-se para ela, com um sentimento de culpa)
Você não está preocupada comigo, não é, meu bem?
Biff
O que é?
HAPPY
Escuta!
LINDA
É você que se preocupa demais.
WILLY
Você é a base na qual me apoio, Linda.
LINDA
Você tem que descansar, meu querido. Você se preocupa de-
mais.
WILLY
Eu não vou mais brigar com ele. Se ele quiser voltar pro Texas,
ele que vá.
LINDA
Ele vai encontrar o seu caminho.
269
WILLY
Eu sei disso. Alguns homens só fazem sucesso mais tarde na
vida. Como Thomas Edison, eu acho. Ou B. F. Goodrich. Um
deles era surdo. (Dirige-se à porta.) Eu confio em Biff; aposto
qualquer coisa nele.
LINDA
E, Wiily,. . . se domingo fizer um dia bonito, vamos passear um
pouco. Podemos abrir o pára brisa, depois fazer um pique-
nique. . .
WILLY
Não, os pára-brisas desses carros modernos não abrem.
LINDA
Mas você o abriu hoje.
WILLY
Eu? Eu não. (Pára.) Que coisa mais estranha! Mas não é nota
vel? (Interrompe-se perplexo e alarmado. O som da flauta
surge distante.)
LINDA
O que foi, querido?
WILLY
Mas é uma coisa notável. . .
LINDA
O que, meu bem?
WILLY
Eu estava pensando no Chevrolet. . . (Pequena pausa.) Mil no-
vecentos e vinte e oito. . . quando eu tinha aquele Chevrolezi
nho vermelho. . . (Pára.) Não é engraçado? Eu podia jurar que
hoje eu estava guiando o Chevrolet.
270
LINDA
Não tem nada de mais. Alguma coisa fez você se lembrar dele.
WILLY
É formidável. . . Você se lembra daquele tempo? Como Biff
cuidava daquele carro? O homem da agência nem acreditou
que o carro já tinha rodado mais de cem mil quilômetros! (Ba-
lança a cabeça.) Heh ! (Para Linda) Pode ir dormindo, já volto
já. (Sai do quarto.)
HAPPY (a Biff)
Meu Deus, acho que ele bateu com o carro de novo !
LINDA (falando com Willy)
Cuidado com as escadas, querido! O queijo está na prateleira
do meio! (Ela se volta, vai à cama, apanha o paletó dele e sai
do quarto.)
(A luz cresce no quarto dos rapazes. Sem que se possa vê-lo,
ouve-se a voz de Willy murmurando "mais de cem mil
quilômetros " e uma risadinha. Biff sai da cama, vem um pouco
à frente e presta atenção. Biffé dois anos mais velho que seu
irmão Happy. Tem boa aparência, mas está meio abatido e
parece inseguro. Não teve muito sucesso, e seus sonhos são
maiores e menos aceitáveis que os de Happy. Happy é alto e
forte. Nele a sexualidade é como uma cor visível, ou como um
aroma que muitas mulheres sentiram. Assim como seu irmão,
ele está meio perdido, mas como nunca se permitiu encarar o
fracasso cara a cara, está mais confuso, embora pareça mais
contente.)
HAPPY (saindo da cama)
Se ele continua assim, vão acabar cassando a licença dele. Ele
está me deixando nervoso, sabe, Biff.
271
Biff
Está perdendo a visão.
HAPPY
Não, outro dia eu saí com ele no carro. Ele vê muito bem. É
que ele se distrai, entende? Pára quando o sinal está verde e
atravessa com o sinal vermelho. (Ri um pouco.)
Biff
Talvez seja daltòníco.
HAPPY
Não, que é isso? Ele distingue muito bem as cores. Você sabe
disso.
Biff (sentando-se na cama) Bom, vou tratar de dormir.
HAPPY
Você não está mais chateado com ele, está, Biff?
Biff
Acho que ele está bem.
WILLY (abaixo deles, na sala)
Sim senhor, cento e trinta mil quilômetros! Centro e trinta e
três!
Biff
Você está fumando?
HAPPY (apresentando um maço) Quer um?
Biff (pegando um)
Não consigo dormir com cheiro de sarro.
272
WILLY
Como ele fazia aquele carro brilhar!
HAPPY (muito emocionado)
Não é bacana, Biff? Nós dois dormindo aqui de novo neste
quarto? Nessas velhas camas? (Dá um tapa na cama.) Quanta
conversa a gente já teve aqui? Toda a nossa vida.
Biff
É. Um montão de sonhos e projetos.
HAPPY (numa risada forte, e masculina)
Umas quinhentas mulheres gostariam de saber o que a gente
conversou aqui. (Os dois riem um pouco.)
Biff
Lembra daquela tal Betsy não sei das quantas? Aquela gran-
dona. . . como era o nome dela mesmo?
HAPPY (penteando o cabelo) Aquela do cachorrinho?
Biff
Essa mesma. Fui eu que o levei lá, lembra?
HAPPY
Claro, foi a minha primeira vez. Rapaz, era uma festa! (Riem
muito.) Você me ensinou tudo que eu sei sobre mulher. No
duro mesmo.
Biff
Você era meio tímido. Especialmente com as garotas.
HAPPY
Ainda sou, Biff.
Biff
Ora, o que é isso.
273
HAPPY
É sim, é que eu me controlo, só isso. Acho que eu fiquei menos
tímido e você ficou mais. O que aconteceu, Biff? Cadê aquela
alegria, aquela confiança que você tinha? (Bate no joelho de
Biff. Este se levanta e caminha pelo quarto.) O que foi?
Biff
Por que o papai fica me gozando o tempo todo, hein?
HAPPY
Ele não goza você, ele ...
Biff
Tudo que eu digo ele recebe com um ar de gozação. Não posso
nem chegar perto dele.
HAPPY
Ele só quer que você tenha sucesso, só isso. Há muito tempo
que eu queria falar com você a respeito dele, Biff. Alguma
coisa está acontecendo com ele. Ele anda falando sozinho.
Biff
Eu percebi hoje de manhã. Mas acho que ele sempre foi um
pouco assim.
HAPPY
Mas não tanto como agora. Fiquei tão preocupado que mandei-
o descansar na Flórida. E quer saber de uma coisa? A maior
parte do tempo ele está falando com você.
Biff
Que é que ele diz de mim?
HAPPY
Não dá pra perceber.
274
Biff
Que é que ele diz de mim?
HAPPY
Acho que é porque ele vê você assim, sem um emprego fixo,
meio no ar...
Biff
Há outras coisas que o deprimem, Happy.
HAPPY
Como assim?
Biff
Nada, nada. Mas não jogue toda a culpa em mim.
HAPPY
Mas acho que se você começasse a trabalhar mesmo. . . quer
dizer, você acha que tem algum futuro nessa fazenda?
Biff
Quer saber de uma coisa, Happy? Eu não sei o que quer dizer o
futuro. Eu não sei o que é que eu deveria querer.
HAPPY
Como assim?
Biff
Depois que eu saí do ginásio, eu passei seis ou sete anos procu-
rando encontrar a mim mesmo. Fui balconista, caixeiro-via
jante, vendedor disso ou daquilo. E é uma vida sem sentido.
Entrar naquele metrô num dia de sol. Devotar uma vida inteira
a verificar o estoque, telefonar, vender ou comprar. Sofrer du-
rante onze meses e meio num ano pra depois ter quinze dias de
férias, quando tudo que você deseja é viver ao ar livre, sem
camisa. E ser obrigado a passar pra trás o sujeito que está na
tua frente. E é assim que se constrói um futuro.
275
HAPPY
E você gosta dessa fazenda? Está contente lá?
Biff (em crescente agitação)
Happy, desde que eu saí de casa, antes da guerra, tive uns vinte
ou trinta empregos diferentes, e só depois eu percebia que era
tudo a mesma coisa. Cuidei de gado em Nebraska, andei por
Dakota, Arizona, e agora o Texas. Acho que é por isso que
agora eu voltei pra casa, porque eu percebi. Essa fazenda em
que eu trabalho . . . agora lá é primavera. E eles têm uns quinze
potrinhos novos. Acho que não há nada mais bonito ou com
tanta ternura do que ver uma égua com seu potrinho que aca-
bou de nascer. E agora está meio frio por lá. Está frio e é pri-
mavera. E sempre que a primavera chega até mim, meu Deus
do céu, eu tenho a impressão de que não estou caminhando pra
lugar nenhum! Que vida é essa, ficar brincando com cavalos,
ganhando vinte e oito dólares por semana? Eu tenho trinta e
quatro anos de idade, devia estar cuidando de meu futuro. E é
aí que eu volto correndo para casa. E agora que estou aqui, não
sei o que fazer da minha vida. (Uma pausa.) Eu sem pre fiz
questão de não desperdiçar a minha vida e, toda vez que eu
venho pra cá, eu penso que é exatamente isso que eu estou
fazendo.
HAPPY
Você é um poeta, Biff. Você é um idealista!
Biff
Não, eu sou é muito confuso. Acho que eu devia me casar, sei
lá. Ser mais responsável. Acho que esse é o meu problema. Sou
como uma criança. Não sou casado, não tenho um emprego
fixo, eu sou. . . sou como um menino. E você, Happy? Você
vai bem, não vai? Você está contente?
HAPPY
Eu? Eu não!
276
Biff
Mas por quê? Você está ganhando dinheiro, não está?
HAPPY (caminhando com energia)
Minha única esperança é que o chefe da seção morra. E vamos
supor que eu fique sendo o chefe da seção. Eu até que gosto
dele, ele acaba de construir uma casa formidável em Long Is-
land. Viveu lá dois meses, vendeu, e já está construindo outra.
Depois que uma casa fica pronta, ele não consegue viver nela.
E eu sei que é isso que aconteceria comigo. Eu não sei para que
ou por que eu estou trabalhando. De vez em quando eu fico
sentado no meu apartamento, sozinho. E penso no aluguel que
eu pago. E é tudo uma loucura. Mas é tudo que eu sempre quis.
Um apartamento, um carro, uma porção de garotas. E mesmo
assim, eu me sinto solitário.
Biff (com entusiasmo)
Escute, por que você não vem comigo pro Texas?
HAPPY
Nós dois juntos, hein?
Biff
Claro, quem sabe a gente não podia comprar uma fazendola?
Criar gado, usar os músculos. Gente como nós devia trabalhar
ao ar livre.
HAPPY (avidamente) "Os Irmãos Loman", hein? Que tal?
Biff (cheio de afeição)
Claro, a gente seria conhecido em toda a região!
HAPPY (encantado)
Eu vivo sonhando com isso, Biff. Às vezes eu tenho vontade de
tirar o paletó naquela loja e dar umas porradas no chefe da
seção. Eu sei que sou mais forte do que qualquer cara por
277
ali, sou capaz de correr mais, de saltar mais alto, e ainda assim
tenho que ficar recebendo ordens daqueles cachorros filhos da
puta, até um ponto em que eu não agüento mais !
Biff
Escuta, rapaz, eu sei que se você viesse comigo eu ficaria feliz
por lá.
HAPPY (cheio de entusiasmo)
Sabe o que é Biff, eu vivo rodeado de uma gente tão falsa, que
até os meus ideais ficam menores.
Biff
Menino, nós dois juntos íamos apoiar um ao outro, íamos con-
fiar um no outro.
HAPPY
Poxa, se eu ficasse do seu lado. . .
Biff
Happy, o problema é que nós dois não fomos feitos para ganhar
dinheiro. Eu não sei como fazer isso.
HAPPY
Nem eu!
Biff
Então vamos embora!
HAPPY
O único problema é o seguinte: o que é que a gente pode fazer
lá?
Biff
Mas veja o seu amigo. Constrói uma casa e não tem paz de
espírito para viver nela.
HAPPY
É, mas, quando ele entra na loja, todo mundo abre alas. São
cinqüenta e dois mil dólares por ano que entram por aquela
porta giratória, e mesmo assim eu tenho mais valor no meu
dedo mindinho do que ele na cabeça.
Biff
Mas você acabou de dizer. . .
HAPPY
Eu tenho que mostrar pra esses chefes de seção, diretores, exe-
cutivos, que Hap Loman vale mais do que eles. Eu quero entrar
na loja do jeito que eles entram. Depois disso, eu vou com
você. Eu juro que nós dois ainda vamos ficar juntos. Mas veja
só as duas desta noite. Não eram espetaculares?
Biff
Eram. As melhores que eu tive em muitos anos.
HAPPY
Eu as consigo na hora que eu quero. Toda vez que estou cha-
teado. O único problema é que é como jogar boliche, eu acho.
Vou com uma, vou com outra, e não significam nada para mim.
E você? Também tem uma porção?
Biff
Não. . . eu queria encontrar uma garota bacana. . . com alguma
coisa por dentro.
HAPPY
É com isso que eu sonho.
Biff
Você? Que é isso ! Você não ia nem aparecer em casa.
HAPPY
Ia, sim ! Mas eu quero alguém de caráter, de substância. Que
279
nem mamãe, sabe? Você vai me achar um canalha quando eu
lhe disser isso. Essa garota que ficou comigo hoje, a Charlotte,
vai se casar no mês que vem. (Experimenta seu chapéu novo.)
Biff
Não brinca!
HAPPY
No duro! O sujeito tá na bica pra ser vice-presidente da em-
presa. Eu não sei o que me dá, acho que é um senso de compe-
tição muito desenvolvido, mas eu dei em cima dela, comi a
menina e ela agora não larga do meu pé. E é o terceiro execu-
tivo que eu passo pra trás. Não é esquisito? E ainda por cima,
eu vou ao casamento deles ! (Com alguma indignação, mas
rindo) É como essa questão de suborno. De vez em quando os
fabricantes me oferecem uma nota de cem dólares pra fazer um
pedido qualquer de mercadoria. Você sabe como eu sou
honesto, mas é que nem essa garota. Eu fico até com raiva de
mim mesmo. Porque eu não quero nada com ela, mas mesmo
assim eu dou em cima, apanho. . . e no fundo eu gosto disso.
Biff
Vamos dormir.
HAPPY
No fim das contas, não decidimos nada, não é?
Biff
Acabei de ter uma idéia do que eu vou tentar.
HAPPY O que é?
Biff
Lembra do Bill Oliver?
280
HAPPY
Claro. Ele agora é importante. Você quer trabalhar pra ele de
novo?
Biff
Não, mas quando eu saí de lá, ele me disse uma coisa. Botou a
mão no meu ombro e disse: " Biff, se um dia você precisar de
mim, me procure".
HAPPY
Eu me lembro. Isso é bom.
Biff
Acho que eu vou falar com ele. Eu acho que se arranjasse dez
mil dólares, ou mesmo sete ou oito mil, eu poderia comprar
uma bela fazendinha.
HAPPY
Aposto que ele vai ajudá-lo. Porque ele tinha a maior conside-
ração por você, Biff. Aliás, todo mundo tem. Quem é que não
gosta de você? Por isso é que eu digo pra você voltar pra cá. A
gente racha o apartamento. E qualquer garota que você qui-ser,
já sabe.
Biff
Não, se eu tivesse uma fazendinha eu faria aquilo que gosto e
ainda seria alguém. Mas eu fico pensando: será que Oliver
ainda acha que fui eu quem roubou aquelas bolas de basquete?
HAPPY
Ah, ele já deve ter se esquecido disso há muito tempo. Já faz
quase dez anos. Você é muito sensível. E além do mais, ele não
chegou a despedir você.
Biff
Mas acho que ele ia me despedir. Acho que foi por isso que eu
pedi demissão antes. Eu nunca tive certeza se ele sabia ou
281
não. Mas a verdade é que ele tinha muita confiança em mim.
Eu era o único que tinha a chave da loja.
WILLY (embaixo)
Você vai lavar o motor, Biff?
HAPPY
Pssiu ! ( Biff olha para Happy, que olha para baixo, prestando
atenção. Willy está murmurando na sala.) Ouviu? (Prestam
atenção. Willy ri alegremente.)
Biff (zangado)
Será que ele não percebe que mamãe pode escutar?
WILLY
Cuidado pra não sujar o suéter, Biff! (Uma expressão dolorosa
perpassa no rosto de Biff.)
HAPPY
É horrível! Por isso é que eu queria que você ficasse em casa.
Por favor! Você arranja um trabalho por aqui. Você tem que
ficar por aqui, eu não sei mais o que fazer com ele. Está fi-
cando, cada dia mais difícil.
WILLY
Como brilha esse carro !
Biff
Mamãe está ouvindo!
WILLY
Não me diga, Biff, você vai sair com uma garota? Ótimo!
HAPPY
Vamos dormir. Mas você fala com ele amanhã, está bem?
Biff (indo relutantemente para a cama) Com mamãe em casa !
282
HAPPY (deitando-se)
Você devia ter uma boa conversa com ele. (A luz do quarto
deles começa a se apagar.)
Biff (para si mesmo, já na cama) Esse velho estúpido, egoista.
..
(A luz do quarto deles se apaga. Antes que tenham acabado de
falar, percebe-se vagamente a forma de Willy, na cozinha às
escuras. Ele abre a geladeira e retira de lá uma garrafa de leite.
Os prédios de apartamentos desaparecem, e toda a casa e tudo
que a rodeia se cobre de folhas. A música se insinua enquanto
as folhas aparecem.)
WILLY
Mas cuidado com essas garotas, Biff. Só lhe digo isso.
Cuidado. Não prometa nada. Nada de promessas. Porque uma
garota sempre acredita naquilo que os homens dizem para ela e
você é muito moço. Biff. Você é muito moço para falar a sério
com uma garota.
(Luz na cozinha. Enquanto fala, Willy vai fechando a porta da
geladeira e vem até a mesa da cozinha. Põe leite num copo.
Está totalmente imerso em seus pensamentos, sorrindo suave-
mente.)
Muito moço. Primeiro você tem que estudar. Depois que você
estiver formado, vai haver um monte de garotas para um rapaz
como você. (Sorri para uma das cadeiras.) Mas é mesmo? As
garotas pagam para ir com você? (Ri.) Rapaz, você deve estar
fazendo um sucesso!
(Aos poucos, Willy vai se dirigindo fisicamente para um ponto
no palco, falando através da parede da cozinha, e sua voz vai
subindo de volume até o tom normal de conversa.)
283
Eu estava só pensando por que é que você limpa esse carro
com tanto cuidado. Ah, não se esqueçam das calotas. As calo-
tas devem ser limpas com camurça. Happy, para os vidros é
melhor usar jornal. Mostra pra ele como é que se faz, Biff!
Aprendeu, Happy? Faz uma almofada com o jornal. Isso! É
isso mesmo, está muito bom. Muito bom, Happy. (Faz uma
pausa, aprova com a cabeça durante alguns segundos, depois
levanta a cabeça.) Biff, assim que a gente tiver tempo, temos
que cortar esse ramo de árvore aí em cima da casa. Num dia de
temporal ele pode cair em cima do telhado. Vou lhe ensinar
como. A gente passa uma corda em volta dele, depois sobe lá
com um serrote e acaba com ele. Quando vocês acabarem de
limpar o carro, venham para cá que eu trouxe uma surpresa.
Biff (fora de cena) O que é, papai?
WILLY
Não, primeiro acabem de limpar o carro. Nunca se deve aban-
donar um trabalho antes de terminá-lo; nunca se esqueçam
disso. (Olhando para "as grandes árvores') Biff, nessa última
viagem eu vi uma rede linda lá em Albany. Na próxima vez eu
vou comprar e depois a gente a instala aí entre essas duas
árvores. Não é ótimo? A gente fica se balançando debaixo do
arvoredo. . .
(Os jovens Biff e Happy surgem do lugar para onde Willy
eslava falando. Happy traz uns trapos e um balde de água. Biff,
usando um blusão com um grande "S" costurado, traz uma bola
de futebol.)
Biff (apontando o carro)
Que tal, papai? Não parece coisa de profissional?
WILLY
Formidável. Formidável, meninos. Lindo trabalho. Biff.
284
HAPPY
Cadê a surpresa, papai?
WILLY
No banco de trás do carro.
HAPPY
Oba! (Sai correndo.)
Biff
O que é, papai? Diga-me, o que foi que você comprou?
WILLY (brincando de lutar boxe com ele)
Nada, nada. É uma coisa que eu quero que você tenha.
Biff (vira e faz como se fosse sair) O que é, Hap?
HAPPY (fora de cena) É um saco de boxe !
Biff
Oh, papai!
WILLY
E tem a assinatura de Gene Tunney !
(Happy entra correndo no palco com o saco.)
Biff
Puxa, como é que você sabia que a gente queria isso?
WILLY
Bem, pra exercício não pode ser melhor.
HAPPY (com as costas no chão e pedalando) Já reparou como
eu estou perdendo peso, papai?
285
WILLY (a Happy)
Pular corda também é muito bom.
Biff
Você já viu a bola de futebol que eu arranjei?
WILLY (examinando a bola) Onde é que você arranjou isso?
Biff
O treinador disse que eu precisava praticar os passes.
WILLY
Ah, é? Então foi ele que lhe deu a bola?
Biff
Bem, eu tirei lá do vestiário. (Ri, cúmplice.)
WILLY (rindo com ele do roubo) Mas você tem que devolver.
HAPPY
Eu lhe disse que ele não ia gostar.
Biff (zangado)
Tá bom, vou devolver!
WILLY (interrompendo o início da discussão)
Bom, ele tem que treinar com uma bola oficial, não é? (A Biff)
O treinador vai até dar-lhe parabéns pela sua iniciativa.
Biff
Ah, ele vive me dando parabéns o tempo todo, papai.
WILLY
É porque ele gosta de você. Se fosse outra pessoa que tirasse
286
a bola, ia haver a maior confusão. Qual é a lição que a gente
tira disso?
Biff
Onde é que você foi dessa vez, papai? Nós sentimos a sua falta.
WILLY (satisfeito, põe um braço ao redor do ombro de cada
rapaz e vem à frente) Sentiram a minha falta, hein?
Biff
O tempo todo.
WILLY
É mesmo? Bom, eu vou lhes contar um segredo, meninos. Mas
não digam pra ninguém. Qualquer dia vou ter o meu próprio
negócio e não vou mais sair de casa.
HAPPY
Como o tio Charley, não é?
WILLY
Maior que o tio Charley. Porque o tio Charley não é estimado.
Quer dizer, ele é querido, mas não é muito querido.
Biff
Onde é que você foi dessa vez, papai?
WILLY
Eu entrei na estrada e segui para o norte. Fui até Providence.
Encontrei o prefeito.
Biff
O prefeito de Providence !
WILLY
Estava lá sentado no saguão do meu hotel.
287
Biff
E o que foi que ele disse?
WILLY
Ele disse: "Bom dia!" e eu disse: "O senhor tem aqui uma bela
cidade, prefeito". E aí ele tomou café comigo. Depois eu fui a
Waterbury. Bela cidade. Tem lá um relógio grande, o famoso
relógio de Waterbury. Vendi bastante por lá. Depois. Boston.
Boston é o berço da Revolução. Bela cidade. Depois visitei
umas outras cidades do Massachusetts, depois Portland, depois
Bangor e daí pra casa!
Biff
Puxa, seria bacana se eu fosse com você uma vez, papai.
WILLY
No próximo verão.
HAPPY
No duro?
WILLY
Vamos nós três e eu vou mostrar todas as cidades. Os Estados
Unidos estão cheios de belas cidades e pessoas agradáveis. E
todo mundo me conhece, meus filhos; todo mundo me conhece
em todos os lugares. As pessoas mais importantes. E quando
vocês forem comigo, vão perceber que todas as portas se abrem
para nós, por causa de uma coisa, meus filhos: eu tenho ami-
gos. Posso estacionar em qualquer rua da Nova Inglaterra e os
guardas tratam do meu carro como se fosse deles. No verão que
vem, combinado?
Biff E HAPPY (juntos) Combinado!
WILLY
Vamos levar roupa de banho.
288
HAPPY
E nós carregamos os seus mostruários, papai!
WILLY
Isso vai ser fantástico. Eu, entrando pelas lojas de Boston, com
meus filhos carregando meus mostruários ! Sensacional!
( Biff se movimenta, treinando uns passes.)
WILLY
Você está nervoso com esse jogo, Biff?
Biff
Se você for, não.
WILLY
Que é que se diz de você no colégio, agora que você é o
capitão do time?
HAPPY
Há sempre um montão de garotas atrás dele.
Biff (pegando a mão de Willy)
Este sábado, papai, vou fazer um lindo gol em sua homenagem.
WILLY (dando um beijo em Biff)
Puxa, isso eu tenho que contar em Boston !
(Entra Bernard, de bombachas. É mais jovem que Biffe é um
rapaz sério, leal e preocupado.)
BERNARD
Biff, onde é que você se meteu? Você tinha que estudar
comigo hoje.
WILLY
Hei, olha só pro Bernard. Por que você está tão anêmico, ra-
paz?
289
BERNARD
Ele tem que estudar, tio Willy. O exame é na semana que vem.
HAPPY (pulando à volta de Bernard e tocando-o) Vamos lutar
um pouco de boxe, Bernard !
BERNARD
Biff! (Afasta-se de Happy.) Escuta, Biff, eu ouvi o professor
dizer que, se você não estudar matemática, ele vai reprová-lo e
você não vai se formar. Eu ouvi!
WILLY
É melhor você ir estudar com ele, Biff. Vá, vá.
BERNARD
O professor disse!
Biff
Ah, papai! Você ainda não viu minhas chuteiras! (Levanta um
pé para que Willy veja.)
WILLY
Puxa, como as letras estão bem feitas!
BERNARD (limpando os óculos)
Só porque está escrito "Universidade de Virginia" não quer
dizer que vão dar o diploma a ele, tio Willy !
WILLY (zangado)
Que conversa é essa? Ele tem bolsa pra três universidades e
não vão dar o diploma a ele?
BERNARD
Mas eu ouvi o professor dizer. . .
WILLY
Não seja chato, Bernard. (Aos filhos) Olhem só que sujeitinho
anêmico!
290
BERNARD
Tá bem, eu espero você em casa, Biff.
(Bernard sai. Os três riem.)
WILLY
Bernard não é muito querido, é?
Biff
Ele é querido, mas não é muito querido.
HAPPY
É isso mesmo, papai.
WILLY
É isso que eu digo. Bernard pode tirar as melhores notas no
colégio, mas quando entrar no mundo dos negócios, vocês vão
ficar cinco vezes na frente. É por isso que eu agradeço a Deus
Todo-Poderoso vocês parecerem dois Adônis. Porque, no
mundo dos negócios, o homem que tem boa aparência, o ho-
mem que desperta interesse é o homem que faz sucesso. Sejam
queridos e vocês nunca fracassarão. Vejam o meu caso, por
exemplo. Eu nunca tenho que ficar numa fila para ver um com-
prador. "Willy Loman está aqui", e pronto. Entro logo.
Biff
Você acabou com eles, papai?
WILLY
Deixei todo mundo besta em Providence e conquistei Boston.
HAPPY (de costas, pedalando de novo) Eu estou perdendo
peso, percebeu, papai?
(Linda entra, como era antes, com uma fita no ca-belo,
trazendo uma cesta de roupa.)
291
LINDA (com energia juvenil) Como vai, querido?
WILLY
Como vai, meu anjo?
LINDA
E o Chevrolet?
WILLY
Linda, o Chevrolet é o melhor carro que jamais se construiu.
(Aos meninos) Desde quando sua mãe carrega a cesta de
roupa?
Biff
Pegue desse lado, rapaz !
HAPPY
Onde é pra pôr, mamãe?
LINDA
Pendurem no varal. E depois vá ver os seus amigos, Biff. O
porão está cheio de meninos sem saber o que fazer.
Biff
O papai chegou, eles que esperem.
WILLY (rindo satisfeito)
É melhor você ir lá e dizer a eles o que fazer, Biff.
Biff
Acho que vou mandar que eles limpem o forno.
WILLY Boa idéia.
292
Biff ("atravessa" a parede da cozinha, vai a uma porta do
fundo
e chama os amigos) Pessoal, todo mundo limpando o forno !
Eu já desço já.
VOZES
OK! Tá legal! Certo!
Biff
Vamos lá, Happy, segure aí. (Saem com a cesta.)
LINDA
Como obedecem!
WILLY
Bom, ele é um líder. Olhe, eu estava vendendo milhares de dó-
lares, mas tive que voltar para casa.
LINDA
Claro, todo mundo vai ver esse jogo. Você vendeu alguma
coisa?
WILLY
Vendi um bruto de quinhentos em Providence e setecentos em
Boston.
LINDA
Não ! Espera um pouco, eu tenho um lápis. (Tira papel e lápis
do bolso do avental.) Então, sua comissão é de... duzentos . . .
Nossa ! Duzentos e doze dólares!
WILLY
Bom, eu ainda não calculei direito, mas. . .
LINDA
Quanto você fez?
WILLY
Bom, eu fiz... acho que uns cento e oitenta em Providence.
293
Não, não chegou a. . . mais ou menos duzentos dólares na via-
gem toda.
LINDA (sem vacilar)
Duzentos bruto. Isso faz . . . (Calcula.)
WILLY
O problema é que três lojas estavam fechadas para balanço.
Senão eu teria batido todos os recordes.
LINDA
Bom, são setenta dólares e pouco. Está muito bom.
WILLY
Quanto é que estamos devendo?
LINDA
Bom, primeiro tem dezesseis dólares da geladeira. . .
WILLY
Por que dezesseis?
LINDA
Rompeu-se a correia do ventilador; custou um dólar e oitenta.
WILLY
Mas essa geladeira é nova. . .
LINDA
O homem disse que é assim mesmo. Tem que trocar a correia
de vez em quando.
(Passam "através" da parede para a cozinha.)
WILLY
Tomara que eles não tenham enganado a gente.
294
LINDA
É a geladeira mais anunciada de todas!
WILLY
Eu sei, é uma boa geladeira. Que mais?
LINDA
Nove dólares e sessenta para a máquina de lavar. E no dia
quinze vence a prestação do aspirador. Três e meio. E faltam
pagar vinte e um dólares do conserto do telhado.
WILLY
Acabaram-se as goteiras?
LINDA
Claro, eles fizeram um trabalho ótimo. E você ainda tem que
pagar o carburador para Frank.
WILLY
Eu não vou pagar a esse sujeito! Essa porcaria de Chevrolet,
deviam proibir a fabricação desse carro!
LINDA
Bom, a gente deve a ele três dólares e meio. Ao todo, é mais ou
menos cento e vinte dólares até o dia quinze.
WILLY
Cento e vinte dólares ! Meu Deus, se os negócios não melhora-
rem, eu não sei o que vou fazer !
LINDA
Ora, na semana que vem você venderá mais.
WILLY
Ah, na semana que vem eu acabo com eles ! Eu vou a Hartford.
295
Sou muito querido em Hartford. Sabe qual é o problema,
Linda? Acho que as pessoas não me levam a sério.
(Vem para a frente.)
LINDA
Ora, o que é isso.
WILLY
Percebo assim que eu entro numa loja. Parece que eles estão
rindo de mim.
LINDA
Mas por quê? Por que razào eles iriam rir de você? Não diga
uma coisa dessas, Willy.
(Willy vem ao proscênio. Linda entra na cozinha e começa a
serzir meias.)
WILLY
Não sei por que razão, mas ninguém me liga. Ninguém presta
atenção em mim.
LINDA
Mas você está indo tão bem, meu querido. Você está ganhando
entre setenta e cem dólares toda semana.
WILLY
Mas tenho que trabalhar dez, doze horas por dia. Outros ho-
mens . . . não sei... conseguem muito mais facilmente. Eu não
sei porque. . . não consigo me controlar... eu falo de mais. Um
homem deve falar pouco, ir direto ao assunto. O Charley, por
exemplo. É um homem de poucas palavras, e todo mundo o
respeita.
LINDA
Você não fala demais. Você é mais animado, só isso.
296
WILLY (sorrindo)
Bom, eu penso: que diabo, a vida é curta, umas piadinhas não
fazem mal a ninguém. (Para si mesmo) Eu brinco demais. (O
sorriso desaparece.)
LINDA
Mas por quê? Você. . .
WILLY
Eu sou grosso. Acho que tenho um aspecto risível. Eu não lhe
disse nada, mas pelo Natal, quando fui visitar F. H. Ste-warte. .
. havia um vendedor lá na sala de espera, e quando eu ia
entrando ouvi-o dizer alguma coisa como "cavalo marinho". Eu
dei uma bofetada nele. Eu não admito uma coisa dessas. Não
posso admitir. Mas as pessoas riem de mim. Eu sei disso.
LINDA
Meu querido . . .
WILLY
Eu tenho que superar isso. Eu sei que tenho que superar isso.
Acho que eu me visto fora de moda.
LINDA
Willy, meu querido, você é o homem mais atraente do mundo...
WILLY
Não, Linda, eu...
LINDA
Para mim você é. (Pequena pausa.) O mais atraente.
(Do escuro, ouve-se uma risada de mulher. Willy não se volta,
mas a risada continua enquanto Linda fala.)
297
E os meninos, Willy. Poucos homens são tão queridos pelos
filhos como você.
(Ouve-se música, enquanto, atrás de uma cortina, à esquerda,
vê-se vagamente uma mulher se vestindo.)
WILLY (com grande sentimento)
Você é a melhor mulher do mundo, Linda. Você é uma compa-
nheira. As vezes, na estrada, eu tenho vontade de abraçá-la, de
apertá-la, de beijá-la até a morte.
(A risada agora é mais alta, e ele caminha para uma área
iluminada, à esquerda, onde a mulher surgiu atrás da cortina e
está de pé, pondo o chapéu, olhando para um "espelho "e
rindo.) Porque eu me sinto tão sozinho — especialmente
quando os negócios vão mal e eu não tenho ninguém para
conversar. Eu fico pensando que eu nunca mais vou vender
nada, que não vou conseguir montar um negócio para os
meninos. (Ele fala enquanto a mulher continua rindo. Ela se
observa diante do "espelho ".) Há tantas coisas eu eu queria
conseguir. . .
A MULHER
A mim? Mas você não me conseguiu, Willy. Eu é que peguei
você.
WILLY (satisfeito) Ah, você me pegou?
A MULHER (que tem a idade de Willy e é bastante bonita)
Eu mesma. Eu ficava sentada naquela mesa vendo todo dia os
vendedores entrando e saindo. Mas você tem tanto senso de
humor ! E a gente se dá muito bem, não é?
WILLY
Claro, claro . . . (Abraça a mulher.) Por que é que você já vai?
298
A MULHER
Já são duas horas. . .
WILLY
Não, fica aqui. (Atrai a mulher para si.)
A MULHER
. . . minhas irmãs vão ficar escandalizadas. Quando é que você
vai voltar?
WILLY
Daqui a uns quinze dias. Você vem comigo de novo?
A MULHER
Claro que sim. Você me faz rir. E me faz bem. (Belisca o braço
dele e o beija.) Você é maravilhoso.
WILLY
Quer dizer que foi você que me pegou, não é?
A MULHER
Claro. Porque você é tão carinhoso. E brincalhão.
WILLY
Bom, a gente se vê na próxima vez que eu vier a Boston.
A MULHER
E eu ponho você em contato com os compradores.
WILLY (dando um tapinha nas nádegas dela) Saúde!
A MULHER (dá-lhe um tapinha e ri)
Você me mata, Willy! (Ele de repente a agarra e beija com
paixão.) Você me mata. E obrigada pelas meias. Gosto muito
de meias. Boa noite.
299
WILLY
Boa noite. E cuida bem disso tudo!
A MULHER Oh, Willy!
(A mulher sai rindo muito e seu riso se confunde com a risada
de Linda. A mulher desaparece no escuro; a área da cozinha se
acende. Linda está sentada na mesa, mas agora está
remendando umas meias de seda.)
LINDA
Você é mesmo, Willy. O homem mais atraente do mundo. Não
há razão para você se sentir . . .
WILLY (saindo da área da mulher e dirigindo se a Linda) Eu
vou resolver tudo, Linda, eu ...
LINDA
Mas não há nada a resolver, querido. Você está indo muito
bem, muito melhor que. . .
WILLY (vendo as meias)
O que é que você está fazendo?
LINDA
Estou remendando minhas meias. Custam tão caro. . .
WILLY (zangado, tirando as meias dela)
Não quero ver você remendando meias nesta casa! Joga isso
fora!
(Linda guarda as meias no bolso do avental.)
BERNARD (entra correndo)
Onde é que ele está? Se ele não estudar!
300
WILLY (vindo à frente do palco, muito agitado) Você passa as
respostas para ele !
BERNARD
Eu sempre faço isso nas provas, mas não num exame! Há fis-
calização ! Posso até ser preso !
WILLY
Onde é que ele está? Vou bater nele! Vou bater !
LINDA
É melhor ele devolver essa bola que tirou, Willy! Isso não é
bonito!
WILLY
Biff! Onde é que ele se meteu? Por que é que ele tirou essa
bola?
LINDA
Ele é muito atrevido com as meninas, Willy. Todas as mães se
queixam dele!
WILLY
Eu vou bater nele de chicote!
BERNARD
Está guiando o carro sem carteira!
(Ouve-se a risada da mulher.)
WILLY
Cale a boca!
LINDA
As mães das meninas dizem . . .
WILLY
Cale a boca!
301
BERNARD (saindo)
O professor disse que ele é muito convencido.
WILLY
Vá embora daqui!
BERNARD
Se ele não se corrige, vai ser reprovado em matemática! (Sai.)
LINDA
Ele tem razão, Willy, você precisa. . .
WILLY (explodindo com ela)
Não tem nada de errado com meu filho! Você quer que ele seja
um verme igual a Bernard? Biff tem espírito, personalidade. . .
(Enquanto ele fala, Linda, quase em lágrimas, sai para a sala.
Willy está sozinho na cozinha, deprimido e com os olhos muito
abertos. As folhas desapareceram. É noite novamente, e os
prédios de apartamento surgem de novo.)
Estou cheio disso. Cheio! O que é que ele roubou? Ele vai
devolver, não vai? Por que é que ele está roubando? Que foi
que eu fiz errado? Em toda a minha vida, eu só ensinei a ele o
caminho do bem.
(Happy, de pijama, desceu as escadas. Willy subitamente se
apercebe da presença dele.)
HAPPY
Vamos agora, venha.
WILLY (sentando-se na cadeira da mesa da cozinha)
Por que é que ela tem que encerar o chão sozinha? Cada vez
que encera o chão fica exausta. Ela sabe disso.
HAPPY
Psss. .
Calma, papai. Por que você voltou hoje?
302
WILLY
Fiquei morrendo de medo. Quase atropelei um garoto em Yon-
kers. Meu Deus! Por que eu não fui para o Alaska com o meu
irmão Ben daquela vez? Ben! Aquele homem era um gênio!
Era o sucesso em pessoa! Que erro ! Ele me implorou que fosse
com ele.
HAPPY
Bom, não adianta nada. . .
WILLY
Vocês, moleques! Era um homem que começou com a roupa
do corpo e terminou com minas de diamantes!
HAPPY
Só gostaria de saber como ele conseguiu.
WILLY
Qual é o mistério? O homem sabia o que queria e pronto ! Con-
seguiu ! Entrou no meio da selva e quando saiu, com vinte e
um anos, estava rico! O mundo é uma ostra, mas não se que-
bra uma ostra com punho de renda!
HAPPY
Papai, eu já disse que vou sustentar você. Não quero que você
trabalhe mais.
WILLY
Você vai me sustentar, ganhando setenta dólares por semana?
Com suas mulheres, seu carro, seu apartamento, e você vai me
sustentar? Meu Deus do céu, hoje eu não consegui nem ir ali
adiante! Onde é que vocês moleques estão com a cabeça? A
casa está caindo! Eu não consigo mais guiar um carro !
(Charley apareceu na porta. É um homem corpulento, de fala
lenta, lacônico e impassível. Em tudo o que diz, seja o que for,
há uma nota de piedade. Tem um robe sobre o pijama e usa
chine-los. Entra na cozinha.)
303
CHARLEY
Tudo bem?
HAPPY
Tudo, Charley, tudo bem.
WILLY O que é?
CHARLEY
Ouvi barulho. Pensei que tivesse acontecido alguma coisa. Será
que não se pode fazer nada com essas paredes? Se alguém es-
pirra aqui, na minha casa fica tudo voando.
HAPPY
Vamos pra cama, papai. Venha.
(Charley faz um sinal para que Happy se vá.)
WILLY
Vá você, eu não estou cansado agora. (Happy sai.) (A Charley)
Que é que você está fazendo de pé a essa hora?
CHARLEY (sentando-se do outro lado da mesa, em frente a
Willy) Não pude dormir. Estou com azia.
WILLY
É, você não sabe comer.
CHARLEY
Eu como com a boca.
WILLY
Nada, você é muito ignorante. Você devia se instruir sobre vi-
taminas e coisas assim.
CHARLEY
Vamos jogar um pouco. Quem sabe você se cansa?
304
WILLY (hesitante)
Está bem. Tem o baralho aí?
CHARLEY (tirando um baralho do bolso) Tenho. Que é que
têm as vitaminas?
WILLY (embaralhando)
Fortificam os ossos. Química.
CHARLEY
Bom, mas azia não tem osso.
WILLY
Que é que você sabe de química? Você não sabe nada de nada.
CHARLEY
Calma.
WILLY
Não fale de um assunto que você não conhece.
(Estão jogando. Pausa.)
CHARLEY
Por que você está em casa?
WILLY
O carro. Enguiçou.
CHARLEY
Ah. (Pausa.) Eu gostaria de ir até a Califórnia.
WILLY
Sei.
CHARLEY
Quer um emprego?
305
WILLY
Eu tenho um emprego. Você sabe disso. (Pausa.) Mas por que
merda você está me oferecendo um emprego?
CHARLEY
Não se ofenda.
WILLY
Não me ofenda.
CHARLEY
Isso não tem sentido. Você não precisa continuar assim.
WILLY
Eu tenho um bom emprego. (Pausa.) Por que é que você vem
aqui, hein?
CHARLEY
Você quer que eu vá embora?
WILLY (depois de uma pausa, murcho)
Eu não compreendo. Ele vai voltar de novo pro Texas. O que
quer dizer isso?
CHARLEY
Deixe-o ir.
WILLY
Eu não tenho nada para dar a ele, Charley. Absolutamente
nada.
CHARLEY
Ele não vai morrer de fome. Nenhum deles morre de fome.
Esqueça esse rapaz.
WILLY
E o que terei então para recordar?
306
CHARLEY
Você leva tudo muito a sério. Que vá pro inferno! Se a gente
quebra uma garrafa ninguém devolve o depósito.
WILLY
Isso é fácil de você dizer.
CHARLEY
Não é fácil para eu dizer.
WILLY
Você viu o forro que eu pus no teto da sala?
CHARLEY
Vi, é uma beleza. Pra mim é um mistério. Como é que se põe
um forro?
WILLY
O que importa?
CHARLEY
Bom, me explica.
WILLY
Você está querendo pôr um forro?
CHARLEY
Como é que eu posso pôr um forro?
WILLY
Então pra que é que está me enchendo com isso?
CHARLEY
Já se ofendeu de novo.
WILLY
Um homem que não sabe trabalhar com uma ferramenta não é
um homem. Você é um chato.
307
CHARLEY
Não me chame de chato, Willy.
(Tio Ben, carregando uma maleta e um guarda-chuva, entra no
palco, vindo do canto direito da casa. É um homem impassível,
sessentão, de bigodes. Tem um ar autoritário. Está seguro a
respeito de seu destino e há uma aura de lugares distantes que o
envolve. Entra exatamente enquanto Willv fala.)
WILLY
Estou ficando muito cansado, Ben.
(Ouve-se a música de Ben. Ele olha tudo à sua volta.)
CHARLEY
ótimo, jogue um pouco mais. Você vai dormir melhor. Você
me chamou de Ben?
(Ben olha para seu relógio.)
WILLY
É engraçado. Por um instante você me lembrou meu irmão
Ben.
BEN
Tenho muito pouco tempo. (Passeia pelo lugar, inspecionando.
Willy e Charley continuam jogando.)
CHARLEY
Você nunca mais ouviu falar dele? Desde aquele tempo?
WILLY
Linda não lhe contou? Há uns quinze dias recebemos da África
uma carta da mulher dele. Ele morreu.
.308
CHARLEY
Ah.
BEN (com um risinho)
Então isso é que é o Brooklin !
CHARLEY
Quem sabe você não vai receber uma parte da herança?
WILLY
Não, ele deixou sete filhos. Tive uma oportunidade única com
esse homem . . .
BEN
Tenho que pegar o trem, William. Há muitos terrenos que eu
tenho que ver no Alaska.
WILLY
Claro! Se eu tivesse ido com ele para o Alaska, tudo teria sido
diferente.
CHARLEY
Ora, você ia morrer de frio por lá.
WILLY
Ora, não diga bobagens.
BEN
As oportunidades são imensas no Alaska, William. Não en-
tendo como você não está lá.
WILLY
Eu sei, imensas.
CHARLEY
O quê?
WILLY
Foi o único homem que eu encontrei que sabia as respostas.
309
CHARLEY Quem?
BEN
Como vão vocês?
WILLY (recolhendo uma aposta e sorrindo) Muito bem, muito
bem.
CHARLEY
Você está com sorte hoje.
BEN
E mamãe? Mora com você?
WILLY
Não, ela já morreu há muito tempo.
CHARLEY Quem?
BEN
Que pena ! Mamãe era uma senhora finíssima.
WILLY (a Charley) O quê?
BEN
Tinha esperança de vê-la.
CHARLEY Quem morreu?
BEN
E papai? Que fim levou?
WILLY (enervado)
Que conversa é essa, quem morreu?
310
CHARLEY (recolhendo a aposta) O que foi que você disse?
BEN (olhando o relógio) William, já são oito e meia!
WILLY (como que para sair da confusão, pega a mão de Char-
ley) Quem ganhou fui eu !
CHARLEY
Mas eu que baixei o ás...
WILLY
Se você não sabe jogar, aprenda!
CHARLEY (levantando) Mas o ás era meu !
WILLY
Já estou cheio! Cheio !
BEN
Quando foi que mamãe morreu?
WILLY
Faz tempo. Você nunca soube jogar.
CHARLEY (apanha as cartas e vai à porta)
Está bem ! A próxima vez eu trago um baralho com cinco car-
tas.
WILLY
Eu não jogo essa espécie de jogo !
CHARLEY (virando-se para ele) Você devia ter vergonha!
311
WILLY
Ah,é?
CHARLEY
É sim! (Sai.)
WILLY (batendo a porta atrás dele) Ignorantão!
BEN (enquanto Willy vem a ele através da parede da cozinha)
Então você é William.
WILLY (apertando a mão de Ben)
Ben! Estou esperando você há tanto tempo ! Qual é a resposta?
Como foi que você conseguiu?
BEN
Ah, existe uma história atrás disso.
(Linda entra no palco, como antigamente, carre-gando a cesta
de roupa.)
LINDA
Esse é Ben?
BEN (galantemente)
Como está, minha querida?
LINDA
Onde você esteve estes anos todos? Willy sempre perguntava
se você....
WILLY (afastando impacientemente Ben de Linda)
Onde está papai? Você não foi com ele? Como é que você
começou?
BEN
Bem, eu não sei o quanto você se lembra. . .
312
WILLY
Ben, eu era um garotinho, eu tinha três ou quatro anos . . .
BEN
Três anos e onze meses.
WILLY
Que memória!
BEN
Tenho muitos negócios e nenhum livro.
WILLY
Eu lembro de mim sentado debaixo de um vagão em. . . era
Nebraska?
BEN
Era na Dakota do Sul, e eu dei a você um ramo de flores.
WILLY
Eu me lembro de você caminhando numa larga estrada.
BEN (rindo)
Eu ia procurar papai no Alaska.
WILLY
E onde está ele?
BEN
Nessa ocasião eu tinha uma deficiente visão da geografia, Wil-
Uam. Depois de alguns dias eu percebi que estava me dirigindo
para o sul e, assim, em vez de Alaska, eu terminei na África.
LINDA
África!
313
WILLY
A Costado Ouro!
BEN
Minas de diamante.
LINDA
Minas de diamante!
BEN
Isso, minha querida. Mas eu tenho muito pouco tempo . . .
WILLY
Não ! Meninos ! Meninos! (Aparecem os jovens Biffe Happy.)
Prestem atenção: este é seu tio Ben, um grande homem ! Conte
a eles, Ben!
BEN
Muito bem, meninos, quando eu tinha dezessete anos entrei na
selva e, quando eu tinha vinte e um, saí dela. (Ri.) E estava
podre de rico.
WILLY (aos meninos)
Estão vendo o que eu vivo dizendo? Tudo pode acontecer!
BEN (olhando o relógio) Tenho encontros marcados.
WILLY
Não, Ben ! Por favor, fale de papai. Quero que meus filhos sai-
bam de que estirpe descendem. Só me lembro de um homem
com uma barba grande, eu estava no colo de mamãe, à volta de
uma fogueira e se ouvia música.
BEN
A flauta. Papai tocava flauta.
314
WILLY
É isso, a flauta, é isso mesmo !
(Ouve-se uma outra música.)
BEN
Papai era um grande homem, um homem de coração selvagem.
Partíamos de Boston, ele botava a família toda dentro de um
vagão e todo mundo viajava através do país: Ohio, Indiana.
Michigan, Illinois e todos os Estados do leste. A gente parava
nas cidades e vendia as flautas que ele ia construindo pelo ca-
minho. Grande inventor, nosso pai. Com uma bugiganga ga-
nhava mais dinheiro numa semana do que um homem como
você pode ganhar a vida inteira.
WILLY
E exatamente assim que eu estou educando meus filhos, Ben.
Inflexíveis e simpáticos. Homens de verdade.
BEN
É mesmo? (A Biff) Dê um soco aqui, menino. Com toda a
força. (Mostra o estômago.)
Biff
Oh, não, senhor.
BEN (tomando posição de boxe) Vamos, ataque. (Ri.)
WILLY
Vamos lá, Biff! Vá em frente ! Mostre a ele !
Biff
OK! (Fecha os punhos e começa.)
LINDA (a Willy)
Por que é que ele tem de lutar, querido?
315
BEN (lutando com Biff) Bom menino, bom menino!
WILLY
Que tal, Ben ?
HAPPY
Dá uma esquerda nele, Biff!
LINDA
Por que estão lutando?
BEN
Bom menino! (Subitamente avança, dá uma rasteira em Biff
derruba-o e coloca aponta do guarda-chuva no olho dele.)
LINDA Cuidado!
Biff Ei!
BEN (batendo no joelho de Biff)
Nunca jogue limpo com um estranho, menino. Desse jeito você
nunca vai conseguir sair da selva. (Toma a mão de Linda e faz
uma reverência.) Foi um prazer e uma honra conhecer você,
Linda.
LINDA (retirando a mão friamente, amedrontada) Boa viagem,
Ben.
BEN (a Willy)
E boa sorte com o seu ... o que é que você faz mesmo?
WILLY
Sou caixeiro-viajante.
316
BEN
Hum. Adeus. . . (Levanta a mão, dando adeus a todos.)
WILLY
Não, Ben, não quero que você pense. . . (Pega no braço de Ben
para mostrar.) Isto é o Brooklin, mas aqui também se caça.
BEN
Sei.
WILLY
Aqui também há serpentes e coelhos... foi por isso que nós
mudamos para cá. Ora, Biff pode derrubar qualquer dessas ár-
vores num instantinho. Vão já à construção aí em frente e tra-
gam um pouco de areia. Vamos reconstruir toda a varanda
agora mesmo! Olhe só para isto, Ben !
Biff
É pra já ! Vamos embora, Hap !
HAPPY (enquanto sai com Biff)
Reparou como eu perdi peso, papai?
(Charley entra de bombachas, antes que os rapazes saiam.)
CHARLEY
Escute, se eles roubarem mais alguma coisa daquele prédio, o
vigia vai chamar a polícia!
LINDA (para Willy) Não deixe Biff. . .
(Ben ri ruidosamente.)
317
WILLY
Você precisa ver a madeira que eles trouxeram pra casa semana
passada. Uma dúzia de tábuas valendo um dinheirão.
CHARLEY
Olhe aqui, se aquele vigia. . .
WILLY
Eu tratei-os com rigor, mas o resultado é que esses dois não
têm medo de nada.
CHARLEY
Willy, as cadeias estão cheias de gente que não tem medo de
nada.
BEN (dando um tapinha em Willy e rindo-se de Charley) E a
Bolsa de Valores também !
WILLY (rindo com Ben)
Cadê o resto das tuas calças?
CHARLEY
Foi minha mulher que comprou.
WILLY
Agora você só precisa de um clube de golfe e, depois, de uma
caminha pra descansar do esforço. (A Ben) Grande atleta! Ele e
o filho Bernard, juntos, não têm força pra pregar um prego!
BERNARD (entrando)
O vigia está perseguindo Biff!
WILLY (zangado)
Cale essa boca ! Ele não está roubando nada !
LINDA (alarmada, correndo e saindo) Onde é que ele está!?
Biff! Biff!
318
WILLY (caminhando um pouco atrás dela) Não há nada de
errado. O que há com você?
BEN
Esse menino tem nervo.
WILLY (rindo)
Oh, Biff tem nervos de aço !
CHARLEY
Não sei o que é que há. O meu vendedor da Nova Inglaterra
voltou de viagem sem vender nada. Está arrasado !
WILLY
O importante é ter prestígio, Charley; eu tenho muito prestígio!
CHARLEY (sarcástico)
Parabéns. Passa lá em casa mais tarde pra gente jogar um
pouco. Quero tirar um pouco desse dinheirão que você está
ganhando. (Ri de Willy e sai.)
WILLY (virando-se para Ben)
Os negócios vão muito mal, vão cada vez pior. Mas pra mim
não, claro.
BEN
Antes de voltar para a África, eu passo aqui novamente.
WILLY (ansioso)
Você não pode ficar aqui uns dias? Preciso tanto de você, Ben.
Eu tenho uma boa posição aqui, mas é que papai foi embora
quando eu ainda era menino, eu nunca pude falar com ele e...
eu não me sinto muito seguro.
BEN
Eu vou perder meu trem.
(Estão em pontos afastados do palco.)
319
WILLY
Ben... os meus filhos. . . será que a gente não podia conver-sar?
Eles são capazes de se atirar no fogo por mim, mas. . .
BEN
William, você está dando a eles uma educação primorosa ! São
rapazes formidáveis, viris . . .
WILLY (segurando-se às palavras dele)
Que bom que você disse isso, Ben! Porque de vez em quando
eu penso que não estou ensinando direito a eles . . . Ben, o que
é que devo ensinar a eles?
BEN (dando muito peso a cada palavra, e com uma espécie de
viciosa audácia)
William, quando eu entrei na selva eu tinha dezessete anos.
Quando eu saí, tinha vinte e um. E estava rico ! (Sai, entrando
na escuridão do lado direito da casa.)
WILLY
. . . estava rico! Esse espírito é que eu quero incutir neles! Eu
estava certo ! Eu estava certo! Eu estava certo !
(Ben já foi embora, mas Willy continua falando com ele,
enquanto Linda, de camisola e roupão, entra na cozinha,
procura por Willy e vai depois à porta da casa, olha para fora e
o vê. Vem até ele. Ele a olha.)
LINDA
Willy, querido! Willy!
WILLY
Eu estava certo!
LINDA
Você comeu o queijo? (Ele não consegue responder.) Já é
muito tarde, meu bem. Venha dormir.
320
WILLY (olhando para cima)
A gente precisa quebrar o pescoço para conseguir ver uma es-
trela deste quintal.
LINDA
Vem!
WILLY
Que fim levou aquela corrente de relógio com um diamante?
Lembra? Quando Ben voltou da África daquela vez? Ele não
me deu uma corrente de relógio com um diamante?
LINDA
Você a penhorou, querido. Há uns doze ou treze anos. Para
pagar o curso de rádio por correspondência de Biff.
WILLY
Aquela corrente era tão linda. Vou dar um passeio.
LINDA
Mas você está de chinelos.
WILLY (começando a caminhar em volta da casa, pela
esquerda) Eu tinha razão. Eu tinha razão! (Um pouco para
Linda, enquanto sai, sacudindo a cabeça.) Que homem !
Aquele sim, valia a pena conversar com ele. Eu tinha razão !
LINDA (chamando)
Mas você está de chinelos, Willy . . .
(Willy quase já se foi quando Biff, de pijama, desce as escadas
e entra na cozinha.)
Biff
Que é que ele está fazendo lá fora?
LINDA Psst.
321
Biff
Meu Deus, mamãe, há quanto tempo ele anda assim?
LINDA
Cuidado que ele pode escutar.
Biff
Mas o que é que que há com ele?
LINDA
De manhã passa.
Biff
Não se pode fazer nada?
LINDA
Oh, meu querido, você podia ter feito uma porção de coisas,
mas não há mais nada a fazer, portanto vá dormir.
(Happy desce as escadas e se senta nos degraus.)
HAPPY
Ele nunca falou tão alto assim, mamãe.
LINDA
Apareça por aqui mais vezes que você o ouvirá. (Senta-se na
mesa e remenda o forro do paletó de Willy.)
Biff
Por que você nunca me escreveu contando isso, mamãe?
LINDA
E como é que eu podia? Você passou mais de três meses sem
um endereço.
322
Biff
Eu estava viajando. Mas você sabe que eu pensei em você o
tempo todo. Você sabe disso, não sabe, mamãe?
LINDA
Eu sei, meu bem, eu sei. Mas ele gosta de receber uma carta.
Apenas para saber que ainda existe uma possibilidade de al-
guma coisa boa.
Biff
Ele não é assim o tempo todo, é?
LINDA
Ele piora quando você vem para casa.
Biff Quando eu venho para cá?
LINDA
Quando você escreve dizendo que vem, ele fica todo alegre,
fala do futuro, fica maravilhoso. Depois, à medida que vai che-
gando o dia, ele vai ficando agitado, até que, quando você
chega, ele só fica discutindo e parece zangado com você. Acho
que isso é que o transtorna. . . ele não consegue se entender
com você. Por que vocês têm tanto ódio? Por que isso?
Biff (evasivo)
Eu não tenho ódio dele, mamãe.
LINDA
Mas, assim que você abre a porta, os dois já estão brigando!
Biff
Não sei por quê. Eu quero mudar. Estou tentando, mamãe.
LINDA
Você vai ficar em casa desta vez?
323
Biff
Não sei. Quero dar uma espiada por aí, ver como é que as
coisas vão.
LINDA
Biff, você não pode passar a sua vida espiando como é que as
coisas vão, não é?
Biff
É que eu não consigo me fixar em nada, mamãe. Não consigo
me encontrar na vida.
LINDA
Biff, um homem não é um passarinho que vai e volta
conforme a primavera.
Biff
Seu cabelo. . . (Toca o cabelo dela.) Seu cabelo ficou tão grisa-
lho. ..
LINDA
Oh, é grisalho desde o seu tempo de ginásio. Só que eu parei de
tingir, só isso.
Biff
Então tinja de novo, está bem? Não quero ver minha amiga
parecendo uma velha. (Sorri.)
LINDA
Você é uma criancinha! Você acha que pode sumir por mais de
um ano e. . . você precisa botar na cabeça que um dia des-ses,
quando você bater na porta, vai encontrar gente estranha
morando aqui.
Biff
Que é isso, mamãe. Você não tem nem sessenta anos.
324
LINDA E seu pai?
Biff (sem entusiasmo) Eu falava dele também.
HAPPY
Ele admira papai.
LINDA
Biff, meu filho, se você não sente nada por seu pai, também
não pode sentir por mim.
Biff
Claro que posso, mamãe.
LINDA
Não. Você não pode vir aqui só pra me visitar, porque eu amo
seu pai. (Com uma ameaça de lágrimas, mas só uma ameaça.)
Para mim ele é o melhor homem do mundo e eu não quero que
ninguém o faça sentir-se triste, abatido ou indesejado. Você
tem que se decidir agora, meu querido, porque não haverá mais
contemplação. Ou bem ele é seu pai e você o respeita, ou eu
não quero mais que você venha aqui. Eu sei que ele é difícil. . .
ninguém sabe disso melhor do que eu... mas. . .
WILLY (da esquerda, com uma risadinha) Ei, Biff!
Biff (começando a sair)
Mas o que é que há com ele? (Happy o segura.)
LINDA
Não chegue perto dele!
Biff
Chega de arranjar desculpas para ele! Ele nunca na vida ligou
pra você! Nunca teve um tiquinho de respeito por você.
325
HAPPY
Ele sempre teve o maior respeito por. . .
Biff
Ora, que merda você sabe disso? !
HAPPY (áspero)
Não diga que ele é louco !
Biff
Ele não tem é caráter! Charley não faria uma coisa dessas! Na
sua própria casa! Ficar vomitando por aí o que tem nessa
cabeça suja!
HAPPY
Charley nunca teve que enfrentar os problemas de papai.
Biff
Conheço gente mais angustiada que Willy Loman. Eu sei por-
que vi!
LINDA
Então faça de Charley o seu pai, Biff. Não é possível, é? Eu
não digo que ele seja um grande homem. Willy Loman jamais
ganhou muito dinheiro. Seu nome nunca saiu nos jornais. Não
é o melhor caráter que já viveu. Mas é um ser humano, e uma
coisa terrível está acontecendo com ele. É preciso prestar aten-
ção nele. Não se pode permitir que ele baixe à sepultura como
um cachorro velho. É preciso, é necessário prestar atenção a
uma pessoa assim. Você disse que ele era louco . . .
Biff
Eu não quis dizer. . .
LINDA
Não, muita gente acha que ele está desequilibrado. Mas não
326
se requer muita inteligência para perceber o que é que há com
ele. O homem está exausto.
HAPPY Claro!
LINDA
Um homem comum pode ficar tão cansado quanto um grande
homem. Agora em março vai fazer trinta e seis anos que ele
trabalha para essa companhia, para a qual ele abriu novos mer-
cados em lugares de quem nunca ninguém tinha ouvido falar, e
agora, na velhice, eles cortam o salário.
HAPPY (indignado)
Eu não sabia disso, mamãe!
LINDA
Você nunca perguntou, meu querido! Agora que você apanha
em outro lugar o dinheiro de que precisa, você não se preocupa
mais com ele.
HAPPY
Mas eu dei dinheiro a vocês no último . . .
LINDA
No último Natal. Cinqüenta dólares. Só para consertar o aque-
cedor pagamos noventa e sete ! Há dois meses que seu pai tra-
balha só ganhando comissão, como um principiante, como um
desconhecido!
Biff
Esses canalhas ingratos!
LINDA
Serão piores que os próprios filhos dele? Quando ele era jovem
e trazia novos negócios para a companhia, todo mundo vivia
contente. Mas agora os seus velhos amigos, os velhos compra
327
dores que gostavam dele e sempre encontravam um jeito de
arranjar um pedido, estão todos mortos ou aposentados. Ele
costumava fazer seis, sete visitas diárias em Boston. Agora ele
tira os mostruários do carro, traz de volta, tira de novo e está
exausto. Agora, em vez de andar, ele fala. Dirige por mais de
mil quilômetros, e quando chega a seu destino, ninguém mais o
conhece e ninguém lhe dá as boas-vindas. E o que é que passa
pela cabeça de um homem que viaja mais mil quilômetros
voltando para casa, sem ter ganho um tostão? Por que é que
não pode falar sozinho? Por quê? Se ele tem que pedir
emprestado a Charley cinqüenta dólares toda semana e fingir
para mim que é o pagamento dele? Até quando isso pode conti-
nuar assim? Até quando? Você compreende agora por que eu
sento aqui e espero? E você vem me dizer que ele não tem
caráter! Um homem que trabalhou todos os dias de sua vida
para você? Quando é que ele vai receber uma medalha por
isso? O prêmio dele é este: chegar à idade de sessenta e três
anos e ver os dois filhos que ele amou mais que a própria vida.
. . um, mulherengo vulgar. . .
HAPPY
Mamãe!
LINDA
É o que você é, meu filho! (A Biff) E você? Que fim levou o
amor que você tinha por ele? Vocês eram tão amigos! Só o
jeito que vocês falavam ao telefone toda noite! Ele se sentia tão
solitário até que pudesse voltar para casa e ver você!
Biff
Muito bem, mamãe. Eu vou viver aqui no meu quarto e arran-
jar um emprego. Só não quero é conversa com ele, só isso.
LINDA
Não, Biff. Você não pode viver aqui e ficar brigando com ele o
tempo todo.
328
Biff
Ele me expulsou de casa, lembre-se disso.
LINDA
Por que ele fez isso? Nunca entendi por quê.
Biff
Por que eu sei que ele é um falso e ele não gosta que ninguém
por perto saiba disso.
LINDA
Por que falso? Como assim?
Biff
A culpa não é só minha, não. É um assunto entre mim e ele,
pronto. De agora em diante eu vou contribuir. Metade do meu
salário é dele. E vai ficar tudo bem. Eu vou dormir. (Começa a
subir as escadas.)
LINDA
Não vai ficar tudo bem.
Biff (voltando-se da escada, furioso)
Eu odeio esta cidade e vou ficar aqui. O que mais que você
quer?
LINDA
Ele está morrendo, Biff.
(Happy vira-se rapidamente para ela, chocado.)
Biff (depois de uma pausa)
Por que é que ele está morrendo?
LINDA
Ele está tentando se suicidar.
Biff (horrorizado) Como?
324
LINDA
Vivo em pânico.
Biff
Mas o que é isso?
LINDA
Lembra que eu lhe escrevi quando ele bateu com o carro de
novo? Em fevereiro?
Biff Sei.
LINDA
O inspetor da companhia de seguros veio aqui. Disse que eles
tinham provas de que todos os acidentes do ano passado não
eram. . . não eram . . . acidentes.
HAPPY
Como é que podem dizer uma coisa dessas? É mentira!
LINDA
Parece que há uma mulher. . .
(Linda e Bijf falam ao mesmo tempo.)
LINDA
. . . e essa mulher. . .
Biff
Que mulher?
LINDA O quê?
Biff
Nada. Continue.
330
LINDA
O que foi que você disse?
Biff
Nada. Eu disse apenas "que mulher"?
HAPPY
Que é que tem ela?
LINDA
Parece que ela estava andando pela estrada e viu o carro dele.
Disse que não estava correndo muito e que não derrapou. Disse
que quando ele chegou naquela pontezinha, jogou o carro
contra a mureta de propósito, e que só não morreu porque a
profundidade da água era pequena.
Biff
Não, vai ver que ele dormiu na direção.
LINDA
Não acredito nisso.
Biff Por quê?
LINDA
No mês passado. . . (Com grande dificuldade) Oh, meus filhos,
é tão difícil para mim dizer isso ! Para vocês ele não passa de
um velho estúpido, mas eu digo que ele é melhor que muitos
outros. (Soluça e limpa os olhos.) Eu estava procurando um
fusível. A luz da casa tinha se apagado e eu desci até o porão. E
atrás da caixa de fusíveis, tinha caído o pedacinho de um tubo
de borracha.
HAPPY
É mesmo?
331
LINDA
Tem uma conexão na ponta. Percebi na hora. E é lógico que, na
base do aquecedor, havia uma nova torneirinha no tubo de gás.
HAPPY (zangado) Esse. . . bobo.
Biff
E você tirou o tubo?
LINDA
Tenho vergonha. . . Como é que eu vou falar nisso com ele?
Todo dia eu desço e tiro o tubinho de borracha. Mas, quando
ele chega em casa, eu ponho de novo no lugar. Como é que eu
posso insultá-lo desse jeito? Eu não sei o que fazer. Vivo em
pânico. Sei que pode parecer fora de moda, uma frase feita,
mas ele dedicou sua vida inteira a vocês e vocês agora lhe dão
as costas. (Inclina se na cadeira, chorando, o rosto entre as
mãos.) Biff, juro por Deus! A vida dele está nas suas mãos!
HAPPY (a Biff)
Que é que você me diz desse palhaço?
Biff (beijando a mãe)
Está bem, mãezinha, está bem. Está tudo acertado agora. Eu
tenho sido negligente. Eu sei disso, mamãe. Mas agora eu vou
ficar aqui e juro que vou me corrigir. (Ajoelhando-se diante
dela, cheio de remorso) É que. . . sabe, mãe, eu não me dou
bem no mundo dos negócios. Não que eu não vá tentar. Eu vou
tentar e vou conseguir.
HAPPY
Claro que vai. O seu problema é que você nunca se preocupou
em agradar as pessoas.
Biff
Eu sei, eu...
332
HAPPY
Como no tempo em que você trabalhava no Harrison's. Bob
Harrison dizia que você era o máximo e aí você fazia uma
besteira qualquer, como ficar assobiando o tempo inteiro no
elevador.
Biff (contra Happy)
E daí? Eu gosto de assobiar de vez em quando.
HAPPY
Ninguém dá um cargo importante a um sujeito que assobia no
elevador!
LINDA
Não discutam isso agora.
HAPPY
Como nos dias em que você saía no meio do expediente e ia
nadar.
Biff (com crescente ressentimento)
Bom, você nunca sai? De vez em quando você sai, não sai?
Num dia bonito?
HAPPY
Saio, mas eu me cuido pra ninguém perceber!
LINDA
Meninos!
HAPPY
Se eu vou dar uma escapada, o patrão pode chamar qualquer
telefone da loja que todo mundo vai jurar pra ele que eu saí de
lá naquele momento. É chato o que eu vou lhe dizer, Biff, mas
no mundo dos negócios há muita gente que acha você biruta.
333
Biff
Dane-se o mundo dos negócios !
HAPPY
Tá bem, que se dane. Mas vê se você se cuida!
LINDA Hap, Hap!
Biff
Não me importa o que eles acham! Eles riram de papai durante
anos, e sabe por quê? Porque nós não temos nada com a
porcaria desta cidade! A gente devia estar misturando ci-mento
ao ar livre ou ser... carpinteiro. Um carpinteiro pode assobiar!
(Willy surge na entrada da casa, à esquerda.)
WILLY
Até o seu avô era melhor que um carpinteiro. (Pausa. Eles o
contemplam.) Você nunca ficou adulto. Bernard não assobia
num elevador, isso eu lhe garanto.
Biff (tentando levar na brincadeira) Mas você assobia, papai.
WILLY
Nunca na minha vida assobiei num elevador. E quem, no
mundo dos negócios, acha que eu sou louco?
Biff
Eu estava só brincando, papai. Não precisa fazer um drama.
WILLY
Volte pro oeste ! Vá ser carpinteiro, vaqueiro, divirta-se !
LINDA
Willy, ele só estava dizendo. . .
334
WILLY
Eu ouvi o que ele disse !
HAPPY (tentando acalmar Willy) Escute aqui, papai. . .
WILLY (continuando, em cima da frase de Happy)
Eles riem de mim, hein? Vá ao Filene, vá ao Hub, vá ao Slat-
tery, vá a Boston inteira! Pronuncie o nome de Willy Loman e
veja o que acontece ! Um prestígio imenso !
Biff
Está bem, papai.
WILLY
Imenso!
Biff
Está bem!
WILLY
Por que é que você vive me insultando?
Biff
Eu não disse nada. (A Linda) Eu disse alguma coisa?
LINDA
Ele não disse nada, Willy.
WILLY (indo a porta da sala) Está bem, boa noite, boa noite.
LINDA
Willy, querido, ele acaba de decidir . . .
WILLY (a Biff)
Se amanhã você ficar cansado de não fazer nada, procure pintar
o forro novo que eu pus no teto da saia.
335
Biff
Amanhã eu vou sair bem cedo.
HAPPY
Ele vai falar com Bill Oliver, papai.
WILLY (interessado) Oliver? Para quê?
Biff (cauteloso, mas esforçando-se)
Ele sempre disse que me ajudaria. Eu queria entrar num negó-
cio, quem sabe se ele me apóia?
LINDA
Não é formidável?
WILLY
Não interrompa. Que é que tem isso de formidável? Há pelo
menos cinqüenta pessoas em Nova York que o ajudariam. (A
Biff) Artigos de esporte?
Biff
Acho que sim. Eu conheço alguma coisa do ramo e. . .
WILLY
Conhece alguma coisa do ramo! Você conhece artigos de es-
porte mais do que ninguém ! Quanto é que ele vai lhe dar?
Biff
Não sei, eu ainda nem falei com ele, eu ...
WILLY
Então, que conversa é essa?
Biff (ficando zangado)
Bom, eu só disse que ia falar com ele, só isso.
336
WILLY (dando-lhe as costas)
Ah, sei. Você já está de novo contando com o ovo no cu da
galinha.
Biff (saindo em direção à escada) Oh, merda, eu vou dormir !
WILLY
E não diga palavrões nesta casa !
Biff (parando)
Desde quando você ficou tão delicado?
HAPPY (tentando parar a discussão) Esperem um pouco,
escutem . . .
WILLY
Não fale assim comigo! Não admito isso!
HAPPY (segurando Biff, grita)
Espere um pouco! Tive uma idéia. Fácil de realizar. Venha cá,
Biff, vamos conversar com a cabeça fria. A última vez que eu
estive na Flórida, tive uma grande idéia para a venda de artigos
de esporte. Agora pensei nela de novo. Você e eu, Biff, temos
um estilo ... o estilo Lotnan. A gente treina uns quinze dias e
faz umas exibições, compreende?
WILLY
É uma boa idéia.
HAPPY
Espere! Fazemos dois times de basquete, compreende? Dois
times de pólo aquático! E jogamos um contra o outro. Vale um
milhão de dólares em publicidade. Dois irmãos, compreende?
Os Irmãos Loman. Anúncios em todas as avenidas, em todos os
hotéis. E estandartes nas quadras, nos ringues:
337
"Os Irmãos Loman". Rapaz, você vai ver só como a gente vai
vender artigos de esporte!
WILLY
Essa idéia vale um milhão !
LINDA
É maravilhoso!
Biff
Bem, eu estou em forma.
HAPPY
E a beleza que existe nisso, Biff, não seria só uma coisa comer-
cial. A gente estaria jogando de novo . . .
Biff (entusiasmando-se) Puxa, isso é . . .
WILLY
Vale um milhão.
HAPPY
E você não ia se chatear com isso, Biff. Vai ser de novo a
família, a velha honra, a camaradagem. E se você quiser dar
uma escapadela pra nadar, você vai! Sem se preocupar com o
canalha que quer passá-lo pra trás !
WILLY
Conquistar o mundo ! Vocês dois juntos podem conquistar
todo o mundo civilizado !
Biff
Vou falar com Oliver amanhã. Happy, se a gente conseguir
fazer isso . . .
LINDA
Acho que as coisas estão começando a...
338
WILLY (entusiasmado, a Linda)
Mas pare de interromper! (A Biff) Mas não vá falar com Oli
ver, vestindo roupa esporte.
Biff
Não, eu...
WILLY
Terno e gravata, e fale o menos possível. Sem contar piadas.
Biff
Ele gostava de mim. Sempre gostou de mim.
LINDA
Ele adorava você!
WILLY (a Linda)
Mas você quer parar! (A Biff) Entre bem sério. Você não vai
pedir um emprego de continuo. Há muito dinheiro em jogo.
Seja tranqüilo, educado, sério. Todo mundo gosta de um brin-
calhão, mas ninguém lhe empresta dinheiro.
HAPPY
Eu também vou ver se me viro, Biff. Tenho certeza de que le-
vanto algum.
WILLY
Prevejo um futuro brilhante para vocês, meninos. Acho que os
problemas terminaram. Mas lembrem-se: se alguém começa
grande, acaba grande. Peça quinze mil. Quanto é que você vai
pedir?
Biff
Puxa, eu nem sei.
WILLY
E não diga "puxa". "Puxa" é uma palavra que só criança usa.
339
Um homem que está falando em quinze mil dólares não diz
"puxa"'.
Biff
Acho que dez já é suficiente.
WILLY
Não seja modesto. Você sempre começou por baixo. Você já
entra rindo; não demonstre preocupação. Conte logo uma ou
duas piadas que é pro ambiente ficar mais leve. Não é o que se
diz . . . é como se diz. O que conta é a personalidade.
LINDA
Oliver sempre teve Biff na mais alta conta. . .
WILLY
Você quer me deixar falar?
Biff
Não grite com ela, papai, por favor.
WILLY (zangado)
Eu estava falando, não estava?
Biff
Eu só estou lhe dizendo que não gosto de ver você gritando
com ela o tempo todo, só isso.
WILLY
Quem é você pra mandar aqui nesta casa?
LINDA
Willy. . .
WILLY (virando-se para ela)
E não fique sempre do lado dele. merda !
340
Biff (furioso)
Pare de gritar com ela !
WILLY (subitamente se aprumando, abatido e culpado)
Dê lembranças minhas a Bill Oliver. . . talvez ele se lembre de
mim. (Sai pela porta da sala.)
LINDA (em voz baixa)
Por que essa discussão? ( Biff se afasta.) Você não viu como
ele se sentiu bem, assim que você lhe deu uma esperança? (Di-
rige-se a Biff.) Suba e diga boa noite a ele. Não deixe que ele
durma desse jeito.
HAPPY
Vamos, Biff, não custa nada.
LINDA
Por favor, querido. É só dizer boa noite. É preciso tão pouco
para fazê-lo feliz. (Sai pela porta da sala e fala para o quarto.)
Seu pijama está pendurado no banheiro, Willy!
HAPPY (olhando para onde Linda saiu)
Que mulher! Quebraram o molde quando ela nasceu.
Biff
Ele não tem salário. Meu Deus, trabalhando por comissão !
HAPPY
Bom, vamos falar a verdade; ele não é um grande vendedor.
Mas você tem de admitir que, de vez em quando, ele é uma boa
pessoa.
Biff (decidido)
Empreste-me dez dólares. Eu quero comprar umas gravatas no-
vas.
341
HAPPY
Eu o levo a uma loja que conheço. Coisa fina. E amanhã você
pode usar uma das minhas camisas listradas.
Biff
Ela está de cabelos brancos. Mamãe envelheceu muito. Puxa,
amanhã eu vou ver o Oliver e vou arrancar esse dinheiro dele. .
.
HAPPY
Vamos subir. Diga isso a papai. Ele vai ficar animado. Vamos
lá.
Biff (confiante)
Ó rapaz, eu com dez mil dólares!
HAPPY (enquanto entram na sala)
Assim é que se fala, Biff, é a primeira vez desde que você che-
gou que eu ouço você falar assim ! (Já dentro da sala.) Você
vai viver comigo, rapaz, e qualquer garota que você quiser. . .
(Quase não se ouvem as últimas frases. Eles estão subindo as
escadas para o quarto dos pais.)
LINDA (entrando no quarto e falando com Willy que está no
banheiro; ela está arrumando a cama para ele) Você já viu esse
chuveiro? Fica pingando o tempo todo.
WILLY (do banheiro)
De repente tudo cai aos pedaços! Esses miseráveis desses bom-
beiros deviam ir para a cadeia ! Eu acabei de instalar e já está
tudo estragado. (As palavras se perdem.)
LINDA
Eu estava pensando se Oliver vai se lembrar dele. O que é que
você acha?
WILLY (saindo do banheiro, de pijama)
Se vai se lembrar dele? Você ficou maluca? Se ele tivesse fi-
342
cado com Oliver, ele hoje estaria feito! Espere só o Oliver dar
uma olhada nele! Você não sabe como são os rapazes de hoje. .
. (Sentando-se na cama.) . . . zero, não valem nada. A melhor
coisa que Biff fez foi andar por aí, conhecer o mundo.
( Biff e Happy entram no quarto. Ligeira pausa.)
WILLY (olha para Biff; pausa) Gostei de ver, rapaz.
HAPPY
A gente veio dar boa-noite a você, companheiro.
WILLY (a Biff)
É. Dê um baile nele, Biff. Que é que você queria me dizer?
Biff
Está tudo bem, papai. Boa noite. (Vira-se para sair.)
WILLY (sem poder resistir)
E se alguma coisa cair da mesa dele enquanto você estiver lá. .
. um embrulho, qualquer coisa. . . não se abaixe para apanhar.
Eles têm contínuos para isso.
LINDA
Amanhã eu vou fazer um bom café . . .
WILLY
Quer me deixar acabar? (A Biff) Diga que você tinha um negó-
cio no oeste. Não diga que trabalhou numa granja.
Biff
Está bem, papai.
LINDA
Acho que tudo . . .
343
WILLY (em cima da frase dela)
E não se diminua. Nada menos que quinze mil dólares.
Biff (incapaz de suportá-lo)
Está bem. Boa noite, mamãe. (Começa a sair.)
WILLY
Porque você tem grandeza, Biff, não se esqueça disso. Você
tem uma grandeza imensa. . . (Deita-se, exausto. Biff sai.)
LINDA (a Biff)
Durma bem, querido!
HAPPY
Eu vou me casar, mamãe. Queria lhe contar.
LINDA
Vá dormir, querido.
HAPPY (saindo)
Eu só queria lhe contar.
WILLY
Continue trabalhando bem. (Happy sai.) Meu Deus. . . lembra
daquele jogo em Ebbets Field? O campeonato da cidade?
LINDA
Descanse. Quer que eu cante para você?
WILLY
Quero. Cante. (Linda cantarola suavemente uma canção de ni-
nar.) Lembra quando o time entrou em campo? Ele era o mais
alto.
LINDA
Lembro. Todo de dourado.
344
( Biff entra na cozinha escura, pega um cigarro e sai da casa.
Desce o palco, fica embaixo de um foco de luz dourado. Fuma,
olhando a noite.)
WILLY
Parecia um jovem deus. Hércules ... ou coisa parecida. E todo
aquele sol, aquele sol em volta dele. Lembra quando ele acenou
para mim? Lá do meio do campo, com os diretores de três
colégios do lado dele? E os compradores que eu levei, e os
aplausos, a gritaria quando ele apareceu. . . Loman, Loman,
Loman ! Oh, meu Deus Todo-Poderoso, ele ainda há de ser
grande. Uma estrela reluzente como essa não se extingue ja-
mais!
(A luz sobre Willy vai se extinguindo. O aquecedor de gás
começa a brilhar através da parede da cozinha, perto da escada
— uma chama azul entre espirais vermelhas.)
LINDA (timidamente)
Willy querido, que é que ele tem contra você?
WILLY
Estou tão cansado. Não quero falar mais.
( Biff volta à cozinha. Pára, olhando o aquecedor.)
LINDA
Você vai pedir a Howard que deixe você trabalhar na cidade.
WILLY
Amanhã de manhã, cedinho. Vai dar tudo certo.
( Biff remexe no aquecedor e retira um tubo de bor-racha. Fica
horrorizado e olha para o quarto de Willy, ainda na penumbra e
do qual cresce o de-sesperado e monótono cantarolar de
Linda.)
345
WILLY (olhando a luz do luar que entra pela janela) Puxa,
olha a lua caminhando entre os edifícios. . .
( Biff enrola o tubo a escada.)
nas mãos e sobe rapidamente
346
ATO II
Ouve se uma música alegre e brilhante. O pano sobe enquanto
a música termina. Willy, em mangas de camisa, está sentado à
mesa da cozinha, com o chapéu no joelho. Linda lhe enche a
xícara, quando pode.
WILLY
Café esplêndido. Vale uma refeição.
LINDA
Quer que eu lhe faça uns ovos?
WILLY
Não. Descanse um pouco.
LINDA
Você parece tão bem, querido.
WILLY
Dormi como uma pedra. Há meses que eu não dormia assim.
Imagine só, dormir até dez da manhã numa terça-feira. Os me-
ninos saíram bem cedinho, hein?
LINDA
Antes das oito.
WILLY ótimo.
LfNDA
Foi tão bonito ver os dois saindo juntos. Você está sentindo o
perfume da loção de barba?
349
WILLY (sorrindo)
Mmmmm. . .
LINDA
Biff estava outro, hoje de manhã. Cheio de esperança. Não via
a hora de se encontrar com Oliver.
WILLY
Ele vai mudar, nem há dúvida. Há certos homens que demoram
pra acertar na vida, só isso. Como é que ele estava vestido?
LINDA
Com o terno azul. Ele fica tão bonito naquela roupa. Ele podia
ser um... sei lá, qualquer coisa, com aquela roupa.
(Willy se levanta. Linda segura o paletó dele.)
WILLY
Não há dúvida, a menor dúvida. Puxa, quando eu voltar pra
casa hoje, vou comprar umas sementes.
LINDA (rindo)
Ótimo. Mas o sol não bate mais aqui. Acho que não cresce
mais nada.
WILLY
Você vai ver só, menina, antes que tudo isso acabe, nós ainda
vamos ter uma bela casinha no campo, e eu vou ter um pomar-
zinho, vou criar umas galinhas . . .
LINDA
Você ainda vai fazer isso, querido.
(Willy se afasta do paletó. Linda o segue.)
WILLY
E eles vão se casar e vão passar o fim de semana conosco.
350
Eu vou fazer uma casinha de hóspedes. Porque eu tenho ferra-
mentas esplêndidas, eu só preciso é de um pouco de madeira e
paz de espírito.
LINDA (alegremente)
Eu costurei o forro do paletó . . .
WILLY
Eu poderia construir duas casas de hóspedes, assim os dois
poderiam vir. Ele já decidiu quanto é que ele vai pedir a Oli-
ver?
LINDA (enfiando o paletó nele)
Ele não disse, mas acho que uns dez ou quinze. Você vai falar
com Howard hoje?
WILLY
Vou. Vou ser simples e direto: ele tem que me tirar da estrada,
pronto.
LINDA
E, Willy, não esqueça de pedir um adiantamento, porque temos
que pagar o prêmio do seguro. Só falta essa prestação.
WILLY
Ê cento e quanto?
LINDA
Cento e oito dólares e sessenta e oito centavos. E nós não te-
tnos tudo isso.
WILLY
E por que não temos?
LINDA
Bom, você teve que mandar o carro pra oficina . . .
351
WILLY
Essa porcaria de Studebaker !
LINDA
E ainda falta uma prestação da geladeira. . .
WILLY
Mas ela já quebrou de novo !
LINDA
Ela é velha, querido.
WILLY
Eu falei que a gente devia comprar uma geladeira bem anun-
ciada. Charley comprou uma General Electric há vinte anos e
ela ainda funciona, esse filho da mãe.
LINDA
Mas, Willy. . .
WILLY
Quem é que já ouviu falar de uma geladeira Hastings? Pelo
menos uma vez na vida eu gostaria de ter alguma coisa que não
quebrasse antes de estar paga. Parece que eu estou apostando
uma corrida! Mal acabei de pagar o carro e eleja não presta pra
nada. A geladeira parte uma correia atrás da outra. Acho que
eles calculam isso. Calculam de um jeito que. quando você
acaba de pagar uma. já tem que comprar outra
LINDA (abotoando o paletó que ele desabotoa)
No total, uns duzentos dólares resolvem tudo. Mas isso inclui o
último pagamento da hipoteca da casa. Depois desse paga-
mento, Willy, a casa é nossa.
WILLY
Vinte e cinco anos !
352
LINDA
Biff tinha nove anos quando a gente comprou.
WILLY
Bom, isso é uma grande coisa. Pagar uma hipoteca de vinte e
cinco anos . . .
LINDA
É um grande sucesso.
WILLY
Quanto cimento, quanta madeira eu pus nessa casa! Não se
encontra nela uma fenda, cm lugar nenhum.
LINDA
Ela cumpriu sua missão.
WILLY
Que missão? Qualquer dia desses aparece aí um estranho,
muda pra cá e acabou-se. Se pelo menos Biff quisesse viver
aqui, se se casasse, tivesse filhos. . . (Começa a sair.) Até logo,
estou atrasado.
LINDA (lembrando de repente)
Ah, esqueci. Você deve ir se encontrar com eles para jantar.
WILLY
Eu?
LINDA
No Restaurante Frank's. rua 48, esquina de Sexta Avenida.
WILLY
É mesmo? E você?
LINDA
Não, só vocês três. Vão oferecer-lhe um banquete !
353
WILLY
Mas é mesmo? De quem foi a idéia?
LINDA
Biff chegou pra mim de manhã e disse: "Mamãe, avise ao pa-
pai que nós vamos oferecer a ele um banquete". Esteja lá às
seis horas. Vocêe seus dois filhos vão jantar juntos.
WILLY
Puxa, isso sim! Menina, eu vou botar o Howard no bolso. Vou
conseguir um adiantamento e vou voltar pra casa com um em-
prego na cidade. Se vou ! Você vai ver só !
LINDA
Isso, Willy, assim é que eu gosto !
WILLY
Não vou nunca mais viver atrás de uma direção.
LINDA
As coisas estão mudando, Willy, eu sinto que estão !
WILLY
Claro que estão. Até logo, estou atrasado.
(Começa a sair de novo.)
LINDA (chamando-o, enquanto corre à mesa para buscar um
lenço) Está levando seus óculos?
WILLY (procura, depois volta) Estou.
LINDA (dá o lenço a ele) E o lenço.
WILLY
É, um lenço.
354
LINDA
E a Sacarina?
WILLY
A Sacarina.
LINDA
Cuidado na escadaria do metrô. (Dá-lhe um beijo. Está com
uma meia nas mãos e Willy percebe.)
WILLY
Você quer parar de remendar essas meias? Peto menos en-
quanto eu estiver em casa? Deixa-me nervoso. Não sei por quê.
Por favor.
(Linda esconde a meia enquanto acompanha Willy pelo palco
até a saída da casa.)
LINDA
Não se esqueça: Restaurante Frank's.
WILLY (contempla o chão)
Acho que beterraba é capaz de nascer aí.
LINDA (rindo)
Mas você já plantou tantas vezes. . .
WILLY
É verdade. Bem, veja se não trabalha muito hoje. (Desaparece
à direita da casa.)
LINDA
Cuidado!
(Enquanto Willy desaparece, Linda acena para ele. O telefone
toca. Ela corre através do palco, entra na cozinha e atende.)
355
LINDA
Alô? Oh, Biff, que bom que você chamou, eu acabei. . . Pois é,
acabei cie dizer a ele. Ele vai. sim. Seis horas, no restaurante.
Não esqueci. Escute, eu estava louca pra contar a você. Sabe
aquele tubo de borracha de que eu falei? Que estava ligado ao
aquecedor de gás? Pois é, eu finalmente resolvi descer ao porão
hoje de manhã e tirá-lo de lá. Mas ele sumiu! Imagine! Ele
mesmo o tirou, não está mais lá! (Ela presta atenção.) Quando?
Ah, foi você que tirou. Não, nada, é que eu pensei que tivesse
sido ele. Oh, não estou mais preocupada, meu bem, porque
hoje ele saiu tão bem disposto, como antigamente ! Não tenho
mais medo. Já falou com o senhor Oliver? Então espere mais
um pouco. Veja se o impressiona bem, querido. Não transpire
muito antes de falar com ele. E divirta-se no jantar com papai.
Quem sabe ele também terá grandes novidades? Isso, um
trabalho aqui mesmo em Nova York. E trate bem dele hoje,
meu querido. Seja carinhoso com ele. Porque ele é um barco à
procura de um porto. (Ela treme, de piedade e alegria.) Oh, isso
é maravilhoso, Biff, você vai salvar a vida dele. Obrigada, meu
bem. Quando ele entrar no restaurante, ponha o braço no
ombro dele. E sorria para ele. Esse é o meu filho. . . Até logo,
querido. Você levou seu pente? Até logo, Biff, querido.
(No meio da fala dela, Howard Wagner, trinta e seis anos, gira
uma pequena mesa com uma máquina de escrever, na qual
existe um gravador, e o liga. Isto é à esquerda do cenário. A luz
se apaga lentamente sobre Linda, enquanto cresce sobre ele.
Howard está ocupado com os fios do gravador e apenas olha
sobre os ombros quando Willy apa-rece.)
WILLY
Pst! Pst!
HOWARD
Alô, Willy, entre.
356
WILLY
Queria ter uma conversinha rápida com você. Howard.
HOWARD
Desculpe fazer você esperar. Já falo com você já. já.
WILLY
O que é isso, Howard?
HOWARD
Você nunca viu um destes? É um gravador.
WILLY
Oh. Será que a gente poderia conversar um pouquinho?
HOWARD
Ele grava as coisas. Recebi ontem. Está me deixando louco, é a
coisa mais sensacional que eu já vi na vida. Passei a noite
inteira acordado com ele.
WILLY
Que é que você faz com ele?
HOWARD
Eu comprei pra fazer ditados, mas pode-se fazer o que quiser.
Escuta só isto aqui. Gravei lá em casa, ontem à noite. Primeiro
é minha filha. Veja só. (Aperta um botão e ouve-se uma canção
assobiada.) Veja só como essa garota assobia.
WILLY
Parece de verdade, não?
HOWARD
Sete anos. Olha só a afinação.
WILLY
Ts, ts. Eu queria lhe pedir um favorzinho . . .
357
(Cessa o assobio e ouve-se a voz da filha de Ho-ward.)
A FILHA
"Agora você, papai!"
HOWARD
Ela é, louca por mim ! (Ouve-se a mesma canção com outro
assobio.) Esse sou eu ! Ha! Ha! Ha! (Dá uma piscadela.)
WILLY
Você é muito bom !
(O assobio pára de novo. O gravador funciona em silêncio por
algum tempo.)
HOWARD
Pssiu! Ouve isso agora, é meu filho.
O FILHO
"A capital do Alabama é Montgomery; a capital do Arizona é
Phoenix; a capital do Arkansas é Little Rock; a capital da
Califórnia é Sacramento . . ." (E assim por diante.)
HOWARD (levantando a mão e mostrando os cinco dedos)
Cinco anos, Willy!
WILLY
Puxa, ele pode ser um locutor esplêndido !
O FILHO (continuando) "... a capital. . ."
HOWARD
Tá vendo só? Em ordem alfabética! (A máquina pára de re-
pente.) Espere um pouco. A empregada desligou a tomada.
358
WILLY
Mas ê mesmo uma coisa . . .
HOWARD
St! Silêncio.
O FILHO
"Já são nove horas, hora Bulova. Devo ir dormir."
WILLY
Mas isso é . . .
HOWARD
Espere um pouco ! Agora vem minha mulher.
VOZ DE HOWARD
"Vá, diga alguma coisa." (Pausa.) "Você vai falar ou não vai?"
A MULHER
"Mas o que é que eu vou dizer?"
VOZ DE HOWARD "Bom, fala. Está ligado."
A MULHER (tímida, derrotada)
"Alô ! (Silêncio.) Oh, Howard, eu não sei falar nessa coisa..."
HOWARD (desligando a máquina) Essa era minha mulher.
WILLY
Mas é uma máquina esplêndida. Será que nós podemos. . .
HOWARD
Quer saber de uma coisa, Willy? Eu vou pegar minha câmara,
minha serra-de-fita, tudo, e vou jogar tudo fora. Esta é a melhor
diversão que eu já vi na vida.
359
WILLY
Acho que eu vou comprar um pra mim.
HOWARD
Compre sim, custa só cento e cinqüenta dólares. Não se pode
deixar de ter um. Por exemplo, você quer ouvir o Jack Benny;
mas não está em casa na hora do programa. Você diz pra em-
pregada ligar o rádio na hora do Jack Benny, e automatica-
mente o gravador grava tudo . . .
WILLY
E quando a gente chegar em casa. . .
HOWARD
Você pode chegar em casa à meia-noite, à uma da manhã, a
hora que for, você pega uma Coca-Cola, senta-se gostoso, liga
o gravador e pronto! Você ouve o programa do Jack Benny no
meio da madrugada!
WILLY
Já decidi; vou comprar um! Quantas vezes na estrada eu não
penso o que estou perdendo no rádio !
HOWARD
Você não tem rádio no carro?
WILLY
Bem, tenho, mas quem lembra de ligar o rádio do carro?
HOWARD
Escuta, você não devia estar em Boston?
WILLY
Sobre isso é que eu queria lhe falar, Howard. Você tem um
minuto? (Pega uma cadeira dos bastidores.)
HOWARD
Que aconteceu? O que é que você está fazendo aqui?
360
WILLY
Bem, eu...
HOWARD
Você não teve outro acidente, teve?
WILLY
Não, não, eu...
HOWARD
Puxa, fiquei preocupado. Qual é o problema?
WILLY
Bom, vou lhe dizer a verdade, Howard. Decidi não viajar mais.
HOWARD
Não vai mais viajar ! E o que é que vai fazer?
WILLY
Você se lembra da festa de Natal, aqui? Você disse que ia pen-
sar num lugar para mim aqui na cidade.
HOWARD
Aqui na companhia?
WILLY
Claro.
HOWARD
Ah, é mesmo, eu me lembro, sim. Mas, não achei nada para
você, Willy.
WILLY
Olhe, Howard, os meus filhos já estão adultos, eu não preciso
de muito. Se pudesse levar pra casa . . . sessenta e cinco dóla-
res por semana, eu já me arranjaria.
361
HOWARD
Eu sei, Willy, mas olhe. . .
WILLY
Eu lhe explico por que, Howard. Falando francamente, e só
aqui entre nós ... eu me sinto um pouco cansado.
HOWARD
Eu compreendo, Willy. Mas você é um caixeiro-viajante, e o
que a companhia precisa é de caixeiros-viajantes. Aqui na loja
nós só temos uma meia dúzia de vendedores.
WILLY
Howard, Deus sabe que nunca pedi favor a ninguém. Mas eu já
trabalhava aqui quando seu pai ainda carregava você no colo.
HOWARD
Sei disso, Willy, mas. . .
WILLY
No dia em que você nasceu, seu pai, que descanse em paz, me
perguntou o que é que eu achava do nome Howard.
HOWARD
Eu agradeço, Willy, mas não tenho um lugar para você. Se eu
tivesse, colocaria você agora mesmo, mas não tenho mesmo.
(Procura o isqueiro. Willy o apanha e dá a ele. Pausa.)
WILLY (com raiva crescente)
Howard, tudo que eu preciso para viver são apenas cinqüenta
dólares por semana.
HOWARD
Mas onde é que eu vou botar você, rapaz?
362
WILLY
Olhe aqui, não se trata de discutir se eu sei ou não sei vender,
não é?
HOWARD
Claro, Willy, mas isso aqui é uma empresa.
WILLY (desesperado)
Deixe-me contar-lhe uma história, Howard.
HOWARD
Porque você tem que admitir: negócios são negócios.
WILLY (zangado)
Eu sei que negócios são negócios, mas escute um minutinho só.
Você não entende a situação. Quando eu ainda era um menino
— dezoito, dezenove anos — eu já era viajante. E eu ficava me
perguntando se essa profissão tinha futuro. Porque naquela
época eu andava pensando em ir para o Alaska. Houve três
corridas de ouro no Alaska, e eu quase fui.
HOWARD (sem interesse) Não diga.
WILLY
É mesmo, meu pai viveu muitos anos no Alaska. Era um ho-
mem que gostava de aventuras. Na nossa família nós temos
confiança em nós mesmos. Eu pensei que poderia ir com meu
irmão mais velho e encontrar meu pai, e talvez ficar com ele lá
no Alaska. E eu estava quase decidido a ir, quando conheci um
caixeiro-viajante na Parker House. Chamava-se Davé Sin-
gleman. Tinha oitenta e quatro anos e já tinha vendido merca-
dorias em trinta e um Estados. O velho Dave subia pro quarto,
compreende, botava os chinelos de veludo verde — nunca vou
me esquecer disso —, pegava o telefone e chamava os compra-
dores. E mesmo sem sair de seu quarto, com oitenta e quatro
anos, ganhava a vida. Quando eu vi isso, percebi que a carreira
363
de um viajante era a maior carreira que um homem podia dese-
jar. Por acaso há no mundo alguma coisa mais formidável do
que uma pessoa com oitenta e quatro anos capaz de viajar por
vinte, trinta cidades diferentes, e ser lembrado, amado e aju-
dado por tantas pessoas diferentes? Sabe? Quando ele morreu
— e por falar nisso, morreu a morte de um caixeiro-viajante,
com seus chinelos de veludo verde, no vagão de fumar do trem
Nova York—Nova Haven—Hartford, a caminho de Boston —,
quando morreu, centenas de caixeiros-viajantes e de com-
pradores foram a seus funerais. Durante meses falou-se dele em
todos os trens. (Levanta-se. Howard nem olhou para ele.)
Naquele tempo, esta profissão tinha personalidade. Havia res-
peito, companheirismo e gratidão. Hoje, tudo é seco, agressivo.
Não há chance para se cultivar a amizade. . . nem há mais
personalidade. Entende o que eu digo? Ninguém me conhece
mais.

f. I.
HOWARD (andando para a direita) É esse o problema, Willy.
WILLY
Se eu ganhasse quarenta dólares por semana. É só o que eu
preciso, Howard. Quarenta dólares.
HOWARD
Mas, rapaz, eu não posso tirar leite da pedra, eu ...
WILLY (agora já está desesperado)
Howard, no ano que Al Smith foi candidato, seu pai me disse.
..
HOWARD (começando a sair) Há gente me esperando, Willy.
WILLY (impedindo que ele saia)
Eu estou falando de seu pai! Foram feitas promessas aqui nesta
mesa! Você não pode me dizer que há gente esperando,
364
Howard! Eu dei trinta e quatro anos da minha vida a esta com-
panhia e agora não posso nem pagar o meu seguro! Um ser
humano não é igual a uma laranja, que você chupa e joga o
bagaço fora! (Depois de uma pausa.) Agora preste atenção. Seu
pai. . . 1928 foi um grande ano para mim. Ganhei uma média
de cento e setenta dólares por semana em comissões.
HOWARD
Ora, Willy, você nunca na vida . . .
WILLY (dando um murro na mesa)
Ganhei! Ganhei cento e setenta dólares por semana de comis-
são, no ano de 1928 ! E seu pai chegou — ou melhor, eu estava
aqui, no escritório ... foi bem aqui, nesta mesa —, pôs a mão no
meu ombro . . .
HOWARD (levantando-se)
Você vai me desculpar, Willy, mas há gente me esperando.
Controle-se. (Saindo) Eu volto já.
(Com a saída de Howard, a luz sobre a cadeira dele fica muito
forte e brilhante.)
WILLY
"Controle-se"? Mas o que foi que eu disse a ele? Meu Deus, eu
estava gritando com ele! Como é que eu pude fazer uma coisa
dessas? (Interrompe-se, olhando para a luz que ilumina e ocupa
a cadeira. Aproxima-se da cadeira, ficando separado dela pela
mesa.) Frank, Frank, não se lembra do que você me disse
aquela vez? Como você pôs a mão no meu ombro, Frank, e. . .
(Ele se inclina sobre a mesa e, quando pronuncia o nome do
morto, acidentalmente bate no gravador e o liga. Ouve-se
instantaneamente.)
VOZ DO FILHO
"... de Nova York é Albany. A capital de Ohio é Cincinatti. a
capital de Rhode Island é . . ." (A recitação continua.)
365
WILLY (afastando-se apavorado e gritando) Ai! Howard !
Howard ! Howard !
HOWARD (entra correndo) O que foi?
WILLY (apontando o gravador que continua com a voz infantil
e anasalada, dizendo o nome das capitais) Desligue isso !
Desligue isso !
HOWARD (desligando) Escute, Willy . . .
WILLY (apertando os dedos nos olhos)
Preciso tomar um café. Vou buscar um café.
(Willy começa a sair. Howard o detém.)
HOWARD (enrolando os fios) Olhe aqui, Willy . . .
WÍLLY
Eu vou a Boston.
HOWARD
Willy, você não pode ir a Boston pela companhia.
WILLY
Por que não?
HOWARD
Eu não quero mais que você seja nosso representante. Há muito
tempo que eu queria lhe dizer isso.
WILLY
Howard, você está me despedindo?
366
HOWARD
Acho que você precisa de um bom descanso, Willy.
WILLY Howard. . .
HOWARD
E quando você se sentir melhor, volte, e vamos ver o que se
pode fazer.
WILLY
Mas eu preciso ganhar dinheiro, Howard. Eu não estou em
condições de...
HOWARD
Onde é que estão seus filhos? Por que é que seus filhos não o
ajudam?
WILLY
Eles estão trabalhando num projeto muito importante.
367

HOWARD
Não é hora de falso orgulho, Willy. Procure seus filhos e diga a
eles que você está cansado. Você tem dois filhos grandes, não
tem?
WILLY
Claro, não tem dúvida, mas enquanto isso. . .
HOWARD
Está combinado então, não está?
WILLY
Está. Mas eu vou a Boston amanhã.
HOWARD
Não, não.
WILLY
Não posso ser sustentado pelos meus filhos! Não sou aleijado !
HOWARD
Escuta, rapaz, eu estou muito ocupado hoje.
WILLY (segurando o braço de Howard)
Howard, você tem que me deixar ir a Boston !
HOWARD (duro, mantendo o controle)
Eu tenho uma fila de pessoas para atender. Willy. Sente-se aí
por uns cinco minutos, acalme-se e depois vá pra casa, está
bem? Eu preciso do escritório. (Começa a sair, depois se lem-
bra do gravador e volta para apanhá-lo e empurra a mesa onde
ele está.) Ah! Sim. Quando você puder, esta semana, passe aqui
e devolva os mostruários. Você se sentirá melhor, Willy. volte
e a gente conversa. Controle-se, rapaz, há muita gente aí fora.
(Howard sai, levando a mesa consigo. Willy contempla o
espaço, exausto. Ouve-se música — o tema de Ben — primeiro
à distância, depois cada vez mais perto. Enquanto Willy fala,
Ben entra da direita. Carrega uma maleta e um guarda-chuva.)
WILLY
Oh, Ben, como é que você conseguiu? Qual é a resposta? Você
já fechou o negócio do Alaska?
BEN
Não demora muito, se você sabe o que faz. Uma pequena via-
gem de negócios. Vou pegar o navio daqui a uma hora. Queria
dizer adeus.
WILLY
Ben, eu preciso falar com você.
368
BEN (olhando o relógio) Não tenho tempo, William.
WILLY (dirigindo-se a ele)
Nada dá certo, Ben. Não sei o que fazer.
BEN
Preste atenção, William. Comprei uns bosques de boa madeira
no Alaska e preciso de um homem para tomar conta deles para
mim.
WILLY
Meu Deus, bosques, madeira! Eu e meus filhos naqueles espa-
ços abertos!
BEN
Há um novo continente bem diante de você, William. Saia des-
tas cidades, elas estão cheias de conversas, prazos, tribunais.
Tenha coragem e você ganha uma fortuna lá.
WILLY
É isso, é isso ! Linda. Linda !
(Linda entra como antigamente, com a cesta.)
LINDA
Oh, você voltou?
BEN
Não tenho muito tempo.
WILLY
Não, espere! Linda, ele tem uma proposta para mim no Alaska!
LINDA
Mas você tem . . . (A Ben) E!e tem um bom emprego aqui.
369
WILLY
Mas, menina, no Alaska eu poderia. . .
LINDA
Você está indo muito bem, Willy !
BEN (a Linda)
Bem para que, minha querida?
LINDA (com medo de Ben e zangada com ele)
Não encha a cabeça dele! Bem para ser feliz aqui mesmo e
agora mesmo! (A Willy enquanto Ben ri) Por que todos têm
que conquistar o mundo? Você é estimado, os meninos o ado-
ram e algum dia. . . (A Ben) ... o velho Wagner disse a ele
outro dia que, se ele continua assim, vai ser sócio da firma, não
disse, Willy?
WILLY
Disse, claro. Eu estou construindo alguma coisa nessa compa-
nhia, Ben, e, se um homem está construindo, está no caminho
certo, não está?
BEN
O que é que você está construindo? Mostre-me. Onde está?
WILLY (hesitante)
É verdade, Linda, não há nada.
LINDA
Por quê? (A Ben) Existe um homem que tem oitenta e quatro
anos e. . .
WILLY
É verdade, Ben, é verdade. Quando eu olho para aquele homem
eu digo: qual é o problema?
BEN Ora!
370
WILLY
É verdade, Ben! Ele chega numa cidade, pega o telefone e ga-
nha a vida, e você sabe por quê?
BEN (apanhando a maleta) Tenho que ir embora.
WILLY (segurando Ben) Olha só pra esse garoto!
( Biff, com seu blusão de ginásio, entra carregando uma valise.
Happy vem com ele, carregando as ombreiras, um capacete
dourado e calças de futebol.)
Sem ter um tostão, há três universidades implorando por ele, e
daí pra frente o céu é o limite, porque não é o que você faz,
Ben! É quem você conhece e o sorriso nos lábios! Contatos,
Ben, contatos! Toda a riqueza do Alaska passa pelo restaurante
do Hotel Comodoro, e aí é que está a maravilha, a grande
maravilha deste país: é que aqui um homem pode terminar
cheio de diamantes, desde que seja estimado, querido ! (Vira-se
para Biff) Por isso é tão importante esse jogo de hoje. Porque
haverá milhares de pessoas torcendo por você e apaixonadas
por você! (A Ben, que começou de novo a sair) E Ben !
Quando ele entrar num escritório o nome dele vai tilintar como
um sino e todas as portas se abrirão para ele! Eu já vi isso, Ben,
já vi isso milhares de vezes! A gente não sente na mão como se
fosse madeira, mas existe! BEN
Adeus, Wíllíam.
WILLY
Estou certo, Ben? Diga-me se estou certo. Quero ouvir sua opi-
nião.
BEN
Há um novo continente bem a sua frente, William. Você pode-
ria sair dele rico. Rico ! (Sai.)
371
WILLY
Nós vamos ficar ricos aqui mesmo! Ouviu, Ben? Nós vamos
ficar ricos aqui!
(Entra o jovem Bernard. Ouve-se a alegre música dos rapazes.)
BERNARD
Puxa, pensei que você já tivesse ido !
WILLY
Por quê? Que horas são?
BERNARD
Mais de uma e meia!
WILLY
Vamos embora, todo mundo! A próxima parada é Ebbets Field
! Cadê os estandartes? (Corre "através" da parede da co-zinha e
daí para a sala.)
LINDA (a Biff)
Você está levando cuecas limpas?
Biff (que estava fazendo flexões) Estou pronto.
BERNARD
Biff, eu vou carregar seu capacete, não vou?
HAPPY
Não, eu é que vou carregar o capacete.
BERNARD
Oh, Biff, você prometeu.
HAPPY
Eu carrego o capacete.
3 72
BERNARD
E como é que eu vou entrar no vestiário?
LINDA
Deixe-o carregar as ombreiras. (Põe o casaco e o chapéu na
cozinha.)
BERNARD
Posso levar, Biff? Porque eu disse a todo mundo que eu ia
entrar no vestiário.
HAPPY
Em Ebbets Field está a casa do clube.
BERNARD
A casa do clube, Biff!
Biff (majestoso, depois de pequena pausa) Deixe-o carregar as
ombreiras.
HAPPY (enquanto dá as ombreiras a Bernard) Não fique longe
de nós.
(Willy entra com os estandartes.)
WILLY (distribuindo os estandartes)
Quando Biff entrar em campo, todo mundo agita os estandar-
tes. (Happy e Bernard saem correndo.) Está pronto, rapaz?
(A música acabou.)
Biff
Prontinho, papai. Todos os músculos estão prontos.
WILLY (quase no fim do palco)
Você compreende o que isto significa?
373
1
Biff
Compreendo, papai.
WILLY (apertando os músculos de Biff)
Você hoje vai voltar pra casa como capitão do time vencedor
do Campeonato Escolar da Cidade de Nova York.
Biff
Eu sei, papai. E não se esqueça: quando eu tirar o capacete,
aquele gol vai ser pra você.
WILLY
Vamos embora! (Começa a sair, abraçado a Biff, quando
Charley entra, como antigamente, de bombachas.) Não tenho
lugar pra você, Charley !
CHARLEY
Lugar? Pra quê?
WILLY No carro.
CHARLEY
Você vai passear? Eu queria jogar um pouco de cassino.
WILLY (furioso)
Cassino ! (Incrédulo) Você não sabe que dia é hoje, não?
LINDA
Claro que sabe, Willy. Ele está brincando com você.
WILLY
Não há motivo pra brincar!
CHARLEY
Não sei não. Linda, o que é?
3 74
LINDA
Ele vai jogar em Ebbets Field !
CHARLEY
Beisebol com esse tempo?
WILLY
Não perca tempo com ele. Vamos, vamos! (Empurra-os para
fora.)
CHARLEY
Espere um pouco, você não ouviu o rádio?
WILLY O que é?
CHARLEY
Não ouviu, não? Ebbets Field explodiu.
WILLY
Vá à merda! (Charley ri. Willy empurra-os.) Vamos embora,
vamos embora! Já estamos atrasados!
CHARLEY
É bola-ao-cesto ou vôlei, Biff?
WILLY (o último a sair, virando-se para Charley)
Não achei graça nisso, Charley. Hoje é o dia mais importante
da vida dele.
CHARLEY
Oh, Willy, quando é que você vai crescer?
WILLY
E, não é? Pois quando esse jogo acabar, eu só quero ver qual de
nós dois vai estar rindo. Eles vão chamar Biff de o novo Red
Grange. Vinte e cinco mil dólares por ano.
375
CHARLEY (brincando) É mesmo?
WILLY É mesmo.
CHARLEY
Bom, então desculpe, Willy. Mas, me diga só uma coisa.
WILLY O que é?
CHARLEY
Quem é Red Grange?
WILLY
Venha cá, se você for homem ! Venha cá, quero ver!
(Charley, rindo, balança a cabeça e sai pelo lado esquerdo do
palco. Willy vai atrás dele. A música aumenta e se transforma
num frenesi.)
Quem é que você pensa que é, pensa que é melhor que os ou-
tros? Você não sabe nada ! Seu bobão, ignorante, estúpido! Ve-
nha cá, se for homem !
(A luz se acende à direita, sobre uma pequena mesa, na sala de
recepção do escritório de Charley. Ouvem-se os ruídos do
tráfego. Bernard, já maduro, senta-se assobiando. No chão,
perto dele, estão um par de raquetes de tênis e uma sacola.)
WILLY (fora de cena)
Por que você está fugindo? Não fuja! Se tem que me dizer
alguma coisa, diga na minha cara! Eu sei que você ri de mim.
nas minhas costas. Pois, quando esse jogo acabar, eu só quero
ver qual de nós dois vai estar rindo. Gol ! Gol! Oitenta mil
pessoas ! Gol! Gol!
3 76
(Bernard é jovem, mas sério e responsável. Ou-ve-se a voz de
Willy vindo agora da direita do palco. Bernard tira os pés de
cima da mesa e escuta. Entra Jenny, secretária de seu pai.)
JENNY (aborrecida)
Escuta, Bernard, será que você podia ir até o hall?
BERNARD
Que barulho é esse? Quem é?
JENNY
O senhor Loman. Acaba de sair do elevador.
BERNARD (levantando-se) Com quem ele está discutindo?
JENNY
Com ninguém. Ele está sozinho. Eu já não sei mais o que fazer
com ele, e seu pai fica muito nervoso cada vez que ele vem
aqui. Eu tenho que bater uma porção de cartas e seu pai está
esperando para assinar. Será que você pode cuidar dele?
WILLY (entrando)
Gol! Gol! (Vê Jenny.) Jenny! Jenny, que bom ver você de novo
! Trabalhando muito? Ainda honesta?
JENNY
Vou bem. Como está o senhor?
WILLY
Já fui melhor. Jenny, já fui melhor! Ha! Ha! (Surpreende-se ao
ver as raquetes.)
BERNARD
Alô, tio Willy.
377
WILLY (quase chocado)
Bernard! Ora vejam só quem está aqui. (Aproxima-se rapida-
mente de Bernard, com ar de culpado, e aperta calorosamente a
mão dele.)
BERNARD
Como vai o senhor? Que prazer em vê-lo.
WILLY
Que é que você está fazendo aqui?
BERNARD
Dei um pulo aqui pra ver papai. Estirar um pouco as pernas até
a hora do meu trem. Vou a Washington daqui a pouco.
WILLY
Ele está?
BERNARD
Está conversando com o contador. Mas sente-se.
WILLY (sentando-se)
Que é que você vai fazer em Washington?
BERNARD
Nada, é uma causa que eu tenho lá.
WILLY
Ah, é? (Indicando as raquetes) Você vai jogar tênis lá?
BERNARD
Vou ficar na casa de um amigo que tem uma quadra.
WILLY
Não diga. Uma quadra de tênis em casa. Aposto que é gente
fina.
3 78
r
BERNARD
São muito simpáticos. Papai me disse que Biff está por aqui.
WILLY (com um grande sorriso)
Está sim. Está tratando de um assunto muito importante.
BERNARD
Que é que ele anda fazendo?
WILLY
Bom, ele andou fazendo umas coisas muito importantes lá no
oeste. Mas decidiu se estabelecer aqui. Coisa grande. Nós va-
mos jantar juntos. Disseram-me que você já é pai?
BERNARD
É. É o segundo filho.
WILLY
Dois filhos! Puxa vida.
BERNARD
Qual é o negócio de Biff?
WILLY
Bem, Bill Oliver. . . é muito importante no ramo de artigos de
esporte... ele está precisando muito de Biff. Chamou-o lá do
oeste. Interurbano, carta branca, tudo de primeira. . . Os seus
amigos têm uma quadra de tênis em casa?
BERNARD
Você continua na mesma companhia, Willy?
WILLY (depois de uma pausa)
Estou. . . estou muito satisfeito de ver você tão bem encami-
nhado, Bernard. Satisfeitíssimo. É uma coisa ótima ver um jo-
vem assim . . . assim . . . É uma coisa muito boa para Biff. . .
muito. . . (Interrompe-se e depois diz) Bernard. . . (Está tão
emocionado que pára de novo.)
379
BERNARD
O que é, Willy?
WILLY (humilde e desamparado) Qual é o segredo?
BERNARD Que segredo?
WILLY
Como é que você fez? Por que é que Biff nunca conseguiu?
BERNARD Não sei, Willy.
WILLY (confidencial, desesperado)
Você era amigo dele, amigo de infância. Há uma coisa que eu
não entendo. A vida dele acabou depois daquele jogo. De pois
dos dezessete anos, não aconteceu mais nada de bom a ele.
BERNARD
Ele nunca se preparou para nada.
WILLY
Mas ele se preparou, sim. Depois do ginásio, ele fez uma por
ção de cursos por correspondência: rádio, mecânica, televisão,
Deus sabe o que, e nunca conseguiu nada.
BERNARD (tirando os óculos)
Willy, quer que eu fale francamente?
WILLY (levanta-se, encara Bernard)
Considero você um homem brilhante, Bernard. Dou muito va-
lor a seu conselho.
BERNARD
Oh, ao diabo com o conselho, Willy. Eu não posso lhe dar
.180
conselho algum. Há só uma coisa que eu sempre quis pergun-
tar-lhe. Quando ele estava quase se formando, e o professor de
matemática o reprovou . . .
WILLY
Aquele filho da mãe arruinou a vida dele . . .
BERNARD
Mas, Wílly, a única coisa que ele tinha que fazer era prestar p
exame de segunda época.
WILLY
Eu sei, eu sei.
BERNARD
Você disse a ele que não prestasse o exame?
WILLY
Eu? Eu implorei que ele fizesse! Eu ordenei que ele fizesse!
BERNARD
E por que ele não fez?
WILLY
Por quê? Por quê! Bernard, essa pergunta tem torturado a mi-
nha vida nos últimos quinze anos. Ele foi reprovado e abando-
nou tudo e se abateu, como se tivesse sido golpeado por um
martelo!
BERNARD
Calma, Willy.
WILLY
Deixe-me conversar com você ... Eu não tenho ninguém com
quem conversar. Bernard, Bernard, a culpa foi minha? Você
compreende? É uma coisa que fica martelando aqui na minha
cabeça. Será que eu fiz algum mal a ele? Eu não tinha nada
para dar a ele.
381
BERNARD
Eu sei, estou indo. (Pega a garrafa.) Obrigado, papai. (Apanha
as raquetes e a sacola.) Adeus. Willy, e não se preocupe com
isso. Você sabe. "se da primeira vez não dá certo . . . "
WILLY
Eu sei. eu acredito nisso.
BERNARD
Mas às vezes, Willy, é melhor que um homem esqueça.
WILLY
Esqueça?
BERNARD
Isso.
WILLY
E se a gente não consegue esquecer?
BERNARD (depois de uma pausa)
Então acho que deve ser muito duro. (Estendendo a mão)
Adeus, Willy.
WILLY (apertando a mão dele) Adeus, garoto.
CHARLEY (com um braço no ombro de Bernard)
Que é que você me diz deste menino? Vai defender uma causa
no Supremo Tribunal.
BERNARD (protestando) Papai!
WILLY (verdadeiramente chocado, sentido e feliz) Não ! No
Supremo Tribunal!
384
BERNARD
Tenho que ir correndo. Adeus, papai!
CHARLEY
Acabe com eles, Bernard !
(Bernard sai.)
WILLY (enquanto Charley tira a carteira)
O Supremo Tribunal! E ele nem me falou nisso !
CHARLEY (contando o dinheiro na mesa) Não tem que falar .
. . tem que fazer.
WILLY
E você nunca disse o que é que ele tinha de fazer, não é? Você
nunca teve maior interesse.
CHARLEY
Minha salvação é que eu nunca tive maior interesse em coisa
nenhuma. Aqui tem algum dinheiro. . . cinqüenta dólares. Te-
nho um contador me esperando.
WILLY
Escute, Charley. . . (Com dificuldade) Eu tenho que pagar meu
seguro. Se você pudesse me arranjar... eu preciso de cento e
dez dólares.
(Charley não responde logo; pára de andar.) Eu podia sacar do
meu banco, mas Linda ia perceber e. . .
CHARLEY
Sente-se, Willy.
WILLY (andando em direção à cadeira)
Eu estou tomando nota de tudo muito direitinho. Vou pagar
tudo tintim por tintim. (Senta-se.)
385
CHARLEY
Agora preste atenção, Willy.
WILLY
Quero que você saiba que eu aprecio . . .
CHARLEY (sentando-se na mesa)
Willy, o que é que há com você? Que é que se passa nessa
cabeça?
WILLY
Por quê? Eu só estou . . .
CHARLEY
Eu lhe ofereci um emprego. Pago cinqüenta dólares por se-
mana. E você não precisa viajar.
WILLY
Eu tenho um emprego.
CHARLEY
Sem salário? Que emprego é esse, sem salário? (Levanta-se.)
Bem, rapaz, agora chega. Eu não sou um gênio, mas sei quando
me ofendem.
WILLY
Mas quem o ofendeu?
CHARLEY
Por que é que você não quer trabalhar para mim?
WILLY
Mas o que é isso agora? Eu tenho um emprego.
CHARLEY
Então o que é que você vem fazer aqui toda semana?
386
WILLY (levantando-se)
Bom, se você não quer que eu venha mais aqui. . .
CHARLEY
Eu estou lhe oferecendo um emprego.
WILLY
Não preciso do seu maldito emprego !
CHARLEY
Oh, meu Deus, quando será que você vai crescer?
WILLY (furioso)
Oh, seu grande ignorante, se você repetir isso, eu lhe parto a
cara! Não tenho medo de você, não ! (Está em posição de luta.
Pausa.)
CHARLEY (bondosamente, dirigindo-se para ele) De quanto é
que você precisa, Willy?
WILLY
Charley, eu estou liquidado. Liquidado. Não sei o que fazer.
Fui despedido.
CHARLEY
Howard despediu você?
WILLY
Aquele ranhento. Você já viu coisa igual? Fui eu que dei o
nome que ele tem. Eu lhe dei o nome de Howard.
CHARLEY
Willy, quando é que você vai perceber que essas coisas não
significam nada? Você deu a ele o nome de Howard, mas você
não pode vender isso. A única coisa que se tem neste mundo é
aquilo que se pode vender. O mais engraçado é que você é um
vendedor e não sabe disso.
387
WILLY
Acho que eu sempre quis pensar de outro modo. Sempre achei
que, se um homem causasse boa impressão e fosse estimado,
que nada. . .
CHARLEY
Por que é que as pessoas precisam gostar de você? Quem gos-
tava de J. P. Morgan? Ele dava boa impressão? Numa sauna ele
devia parecer um açougueiro. Mas, com os bolsos cheios, ele
era muito querido. Agora escute, Willy, eu sei que você não
gosta de mim, e eu não estou apaixonado por você, não. mas eu
lhe ofereço um emprego porque. . . porque sim, ora! O que
você me diz?
WILLY
Eu ... eu não posso trabalhar para você, Charley.
CHARLEY
Por que você tem ciúme de mim?
WILLY
Eu não posso trabalhar para você, só isso. Não me pergunte por
quê.
CHARLEY (zangado,pega mais algumas notas da carteira)
Você teve ciúme de mim a vida inteira, seu bobão! Olhe aqui,
pague seu seguro. (Põe o dinheiro na mão de Willy.)
WILLY
Eu estou tomando nota de tudo.
CHARLEY
Tenho que trabalhar. Tome cuidado com você. E pague o se-
guro.
WILLY (caminhando para a direita)
É engraçado, sabe? Depois de todas as estradas, todos os trens.
todas as visitas, todos os anos e anos. a gente termina valendo
mais morto do que vivo.
CHARLEY
Willy, morto ninguém vale nada. (Depois de pequena pausa.)
Ouviu o que eu disse?
(Willy permanece parado, sonhando.)
CHARLEY
Willy !
WILLY
Quando você se encontrar com Bernard, peça desculpas por
mim. Não queira discutir com ele. Ele é um ótimo rapaz. To-
dos eles são ótimos rapazes, e todos vão fazer sucesso. Todo:-,.
Algum dia todos vão jogar tênis juntos. Deseje-me boa sorte.
Charley. Ele foi se encontrar com Bill Oliver hoje.
CHARLEY Boa sorte.
WILLY (quase chorando)
Charley, você é o único amigo que eu tenho. Não é uma coisa
notável? (Sai.)
CHARLEY
Meu Deus do céu!
(Charley olha-o por um instante e depois sai pelo mesmo lugar.
Todas as luzes se apagam. Ouve-se uma música roufenha e vê-
se um resplendor avermelhado, à direita. Stanley, um jovem
garçom, aparece carregando uma mesa, seguido por Happy,
que carrega duas cadeiras.)
389
STANLEY (pondo a mesa no chão)
Pode deixar, senhor Loman. Deixe que eu arrumo. (Vira-se,
pega as cadeiras de Happy e as põe junto à mesa.)
HAPPY (olhando à sua volta) Ah, aqui é melhor.
STANLEY
Claro, lá na frente o senhor estava no meio da barulheira.
Quando o senhor quiser ficar tranqüilo, senhor Loman, é só me
dizer e eu coloco o senhor aqui. Sabe, há uma porção de gente
que não gosta dum lugar mais tranqüilo porque, quando vão
jantar fora, querem ver um bocado de confusão porque eles
estão com o saco cheio de ficar em casa o tempo todo. Mas o
senhor eu conheço, o senhor não é cretino. Entende?
HAPPY (sentando-se)
Como é que vai a vida, Stanley?
STANLEY
É uma vida de cachorro. Eu só queria que o Exército tivesse
me chamado durante a guerra. Quem sabe a essa hora eu já
estivesse morto?
HAPPY
Meu irmão voltou, Stanley.
STANLEY
Ah, voltou, não é? Lá do oeste.
HAPPY
É, meu irmão é um grande fazendeiro, portanto, trate bem dele.
E meu pai vem também.
STANLEY
Ah, seu pai também!
390
HAPPY Você tem aí uma boa lagosta?
STANLEY
Cem por cento. Enormes.
HAPPY
Quero com pinça e tudo.
STANLEY
Fique tranqüilo que eu não vou lhe dar siri. (Happy ri.) E vi-
nho? Com lagosta um vinho branco vai bem.
HAPPY
Não. Você se lembra daquela receita que eu trouxe para você
da Europa? Com champanha?
STANLEY
Claro. Ainda a tenho guardada na cozinha. Mas isso vai custar
pelo menos um dólar cada taça.
HAPPY
Não há problema.
STANLEY
O que foi, ganhou na loteria?
HAPPY
Não, é pra celebrar uma coisa. Meu irmão. . . acho que ele
fechou um grande negócio hoje. Acho que vamos trabalhar
juntos.
STANLEY
Ótimo! Isso é que é bom. Porque um negócio em família, en-
tende? . . . é melhor.
HAPPY
Também acho.
391
STANLEY
Por que, qual é o problema? Se alguém rouba, está tudo em
família. Entende? (Em voz baixa) Como o cara do bar aqui. O
patrão já tá ficando maluco com a caixa registradora. O
dinheiro entra, mas não sai.
H APPY (levantando a mão) Shhh!
STANLEY O que foi?
HAPPY
Você percebeu que eu não estava olhando pra lugar nenhum,
não é?
STANLEY É.
HAPPY
E meus olhos estão fechados.
STANLEY
Bom, mas qual é. . .
HAPPY
Vem mulher chegando.
STANLEY (olhando para todos os lados) Não, não há ninguém
...
(Interrompe-se no momento exato em que entra uma moça
vestida exageradamente, com uma pele, e senta-se na mesa
vizinha. Ambos a seguem com o olhar.)
STANLEY
Puxa, como é que o senhor sabia?
392
HAPPY
Acho que eu tenho radar. (Olhando diretamente para ela.) Oh .
. . Stanley !
STANLEY
Acho que é o seu tipo, senhor Loman.
HAPPY
Olha só aquela boca. Meu Deus. E os olhos !
STANLEY
Puxa, o senhor é que leva a vida, senhor Loman.
HAPPY
Vá ver o que ela quer.
STANLEY (indo à mesa da moça)
A senhora quer ver o cardápio, madame?
A MOÇA
Estou esperando uma pessoa, mas acho que quero . . .
HAPPY
Por que é que você não traz. . . me desculpe, senhorita, mas eu
sou vendedor de champanha, e gostaria que você experimen-
tasse a minha marca. Traga uma champanha para ela, Stanley.
A MOÇA
Mas que coisa tão simpática.
HAPPY
Nem pense nisso. É dinheiro da companhia. (Ri.)
A MOÇA
É um artigo agradável de vender, não é?
393
HAPPY
Como qualquer outro. Vendas são vendas, você sabe.
A MOÇA
É, acho que sim.
HAPPY
Você não vende nada, vende?
A MOÇA
Não, não vendo nada.
HAPPY
Você se incomoda com o elogio de um estranho? Você devia
estar na capa das revistas.
A MOÇA (olhando para ele, um pouco maliciosa) Já estive.
(Stanley volta com uma garrafa de champanha.)
HAPPY
Que foi que eu lhe disse, Stanley? Está vendo? Ela é uma mo-
delo.
STANLEY Está na cara.
HAPPY (à moça) Que revista?
A MOÇA
Uma porção. (Pega o drinque.) Obrigada.
HAPPY
Sabe o que dizem na França, não é? "Champanha é a bebida do
espírito". . . Ei, Biff!
394
( Biff entra e senta-se com Happy.)
Biff
Oi, garoto. Desculpe o atraso.
HAPPY
Acabei de chegar. Aqui, a senhorita. . . ?
A MOÇA
Forsythe.
HAPPY
Senhorita Forsythe, este é meu irmão.
Biff
Papai chegou?
HAPPY
O nome dele é Biff. Você deve ter ouvido falar nele. Grande
campeão de futebol.
A MOÇA
É mesmo? Que time?
HAPPY
Você entende de futebol?
A MOÇA . Não.
HAPPY
Biff é o zagueiro dos Gigantes de Nova York.
A MOÇA
Puxa, que maravilha. (Bebe.)
395
HAPPY
Saúde.
A MOÇA
Foi um prazer conhecer você.
HAPPY
Meu nome é Happy. Hap. O nome mesmo é Harold, mas em
West Point eles me chamavam Happy.
A MOÇA (agora impressionada mesmo) Ah, sei. Encantada!
(Vira-se de perfil.)
Biff
Papai não vem?
HAPPY
Você quer ficar com ela?
Biff
Eu jamais conseguiria.
HAPPY
Houve tempo em que uma idéia assim nem lhe passaria pela
cabeça, Biff. Cadê a velha confiança?
Biff
Eu acabei de ver Oliver. . .
HAPPY
Espere um pouco. Quero ver aquela velha confiança de novo.
Está vendo? Ela está dando sopa.
Biff
Não, não. (Vira-se para olhar a moça.)
396
HAPPY
Estou lhe dizendo. Espia só. (Virando-se para ela) Meu bem?
(Ela se vira para ele.) Você está livre?
A MOÇA
Não, livre não estou. . . mas eu podia dar um telefonema. . .
HAPPY
Então telefone, tá? E veja se arranja uma amiga. Nós vamos
ficar um pouco por aqui. Biff é um dos maiores jogadores do
país.
A MOÇA (levantando-se)
Bem, eu gostei muito de conhecer vocês.
HAPPY
Volte logo.
A MOÇA
Vou ver.
HAPPY
Não veja, meu bem, volte no duro.
(A moça sai. Stanley a segue, balançando a cabeça
com grande admiração.)
Mas não é uma vergonha? Uma moça bonita dessas? Por isso é
que eu não quero me casar. Você não encontra uma moça
decente em mil. Nova York está cheia delas, menino!
Biff
Escuta, Hap . . .
HAPPY
Eu lhe falei que ela estava dando sopa!
Biff (estranhamente nervoso)
Pare com isso, sim? Eu quero lhe dizer uma coisa.
397
HAPPY
Você viu Oliver?
Biff
Vi. Agora escute, eu quero dizer umas coisas a papai e quero
que você me ajude.
HAPPY
O quê? Ele vai readmiti-lo?
Biff
Você ficou maluco? O que é que você tem na cabeça?
HAPPY
Por quê? O que aconteceu?
Biff (sem fôlego)
Eu fiz uma coisa terrível hoje, Hap. Foi o dia mais estranho da
minha vida. Eu estou paralisado até agora.
HAPPY
Ele não quis falar com você?
Biff
Eu esperei mais de seis horas por ele, entende? O dia inteiro.
Minha visita foi anunciada sei lá quantas vezes. Tentei até dar
em cima da secretária, pra ver se ela conseguia me fazer entrar.
Tudo em vão.
HAPPY
É porque você não está mostrando a velha confiança, Biff. Ele
se lembrava de você, não é?
Biff (interrompendo Happy com um gesto) Finalmente, lá
pelas cinco horas, ele saiu. Não se lembrava de mim nem nada.
Senti-me um perfeito idiota, Hap.
398
HAPPY
Você falou da minha idéia da Flórida?
Biff
Ele foi embora. Eu o vi por um minuto. Fiquei tão furioso que
poderia destruir o escritório! Como é que passou pela minha
cabeça que eu fui vendedor daquela firma? Eu mesmo cheguei
a acreditar nisso! E aí ele me deu uma olhada. . . e eu com-
preendi a mentira ridícula que tem sido a minha vida! Estamos
vivendo num sonho há quinze anos. Lá eu era só um empre-
gado na expedição.
HAPPY
Que é que você fez?
Biff (com grande tensão)
Ele foi embora. E a secretária saiu. Eu fiquei sozinho na sala de
espera. Não sei o que me deu, Hap. De repente, eu estava
dentro do escritório dele, paredes com painéis de madeira, etc.
Não sei explicar. Hap, eu roubei a caneta dele.
HAPPY
Puxa, e ele pegou você?
Biff
Fugi. Eu desci correndo os onze andares. E vim correndo de lá
até aqui.
HAPPY
Mas isso foi uma besteira. Por que é que você fez isso?
Biff (agoniado)
Eu não sei, eu só queria. . . tirar alguma coisa dele. Você tem
que me ajudar, Hap, tenho que contar a papai.
HAPPY
Você ficou maluco? Pra quê?
399
Biff
Happy, ele tem que compreender que eu não sou o tipo de pes-
soa a quem os outros emprestam dinheiro. Ele pensa que eu o
estou magoando de propósito e isso o deixa acabrunhado.
HAPPY
Pois é isso mesmo. Você tem que dizer a ele alguma coisa
agradável.
Biff
Não posso.
HAPPY
Diga que você vai almoçar com Oliver amanhã.
Biff
E o que é que eu faço amanhã?
HAPPY
Amanhã você sai de casa, volta de noite e diz que Oliver está
pensando no assunto. Ele fica pensando no assunto por uns
quinze dias, a coisa toda vai sendo esquecida e ninguém fica
triste.
Biff
Mas isso vai ser assim sempre!
HAPPY
Nada deixa papai tão feliz quanto uma esperança.
(Willy entra.) Alô, campeão!
WILLY
Puxa, fazia anos que eu não vinha aqui!
(Stanley veio atrás de Willy, trazendo uma cadeira para ele.
Depois vai embora, mas Happy o detém.)
400
HAPPY
Stanley!
(Stanley pára, esperando o pedido.)
Biff (indo a Willy, cheio de culpa, como a um inválido) Sente-
se, papai. Você quer um drinque?
WILLY
Acho que é uma boa idéia.
Biff
Isso, vamos beber alguma coisa.
WILLY
Você parece preocupado.
Biff
N ... não. (A Stanley) Uísque pra todo mundo. Duplo.
STANLEY
Duplos. (Sai.)
WILLY
Vocês já tomaram alguns, não é?
Biff
limou dois.
WILLY
Muito bem, como é que foi, rapaz? (Sorrindo e assentindo com
a cabeça) Tudo bem?
Biff (respira e depois pega a mão de Willy)
Papai. . . (Sorri, Willy também.) Hoje tive uma grande expe-
riência.
401
HAPPY
Notável, papai.
WILLY
É mesmo? O que aconteceu?
Biff (meio alto, meio bêbado, como se estivesse nas nuvens)
Eu vou lhe contar tudo tintim por tintim. Foi um dia muitc
estranho. (Silêncio. Olha à sua volta, arruma-se o melhor que
pode, mas a respiração continua quebrando o ritmo de sua
fala.) Eu tive que esperar um tempão por ele e...
WILLY
Oliver?
Biff
É, Oliver. Para falar a verdade, tive que esperar o dia inteiro. E
uma porção de fatos e lembranças da minha vida vieram a
mim, papai. Quem foi, papai? Quem foi que disse que eu um
dia fui vendedor para Oliver?
WILLY
Bom, você foi.
Biff
Não papai, eu trabalhava na expedição.
WILLY
Mas você praticamente. . .
Biff (com determinação)
Papai, eu não sei qual de nós disse, mas eu nunca fui um vende
dor para Oliver.
WILLY
Mas que conversa é essa agora?
402
Biff
Vamos enfrentar os fatos hoje, papai. Nós não vamos chegar a
lugar nenhum com mentiras. Eu trabalhava na expedição.
WILLY (zangado)
Muito bem, agora escute aqui. . .
Biff
Por que é que você não me deixa acabar?
WILLY
Eu não estou interessado em histórias do passado nem em ne-
nhuma besteira desse tipo, porque a casa está pegando fogo. E
nós estamos bem no meio do incêndio. Eu fui despedido hoje.
Biff (chocado)
Mas como é possível?
WILLY
Fui despedido, e estou procurando uma boa notícia para dar a
sua mãe, porque essa mulher tem esperado e tem sofrido. E o
problema maior é que não restou nenhuma história na mi-nha
cabeça. Portanto, não me venha com uma conferência sobre
fatos e memórias, porque não me interessa. Que é que você tem
a me dizer?
(Stanley entra com três drinques. Eles esperam até que ele vá
embora.)
WILLY
Você viu Oliver?
Biff
Meu Deus, papai!
WILLY
Você está dizendo que nem foi lá?
403
HAPPY
Claro que ele foi lá, papai.
Biff
Fui. Eu o vi. Como é que eles despediram você?
WILLY (na ponta da cadeira) Como é que ele o recebeu?
Biff
Mas eles não deixaram nem você trabalhar por comissão?
WILLY
Estou na rua. (Continuando) Ele o recebeu bem?
HAPPY
Claro, papai, muito bem!
Biff (vencido)
Bom, foi como se...
WILLY
E eu estava pensando se ele ia se lembrar de você! (A Happy)
Imagine, o homem não o vê por dez, doze anos, e o recebe
desse jeito!
HAPPY
Pois é!
Biff (tentando voltar à carga) Escute, papai. . .
WILLY
Sabe por que ele se lembrou de você, não sabe? Porque você o
impressionou bem naquele tempo.
Biff
Vamos falar com calma e nos restringir aos fatos, está bem?
404
WILLY
Bom, o que aconteceu? É uma notícia ótima, Biff! Ele falou
com você na sala de espera ou levou você ao escritório?
Biff
Bom, ele chegou, viu, e. . .
WILLY (num largo sorriso)
Que disse ele? Aposto que lhe deu um abraço.
Biff
Bom, ele...
WILLY
Ê um sujeito formidável. (A Happy) E é muito difícil falar com
ele.
HAPPY (concordando) Eu sei, eu sei.
WILLY (a Biff)
Foi lá que você tomou uns drinques?
Biff
É, ele me deu um ou dois. . . não!
HAPPY (intervindo)
Biff falou da minha idéia da Flórida.
WILLY
Não interrompa. (A Biff) Como é que ele reagiu à idéia da
Flórida?
Biff
Papai, será que você pode me dar um minuto para eu explicar?
405
WILLY
Estou esperando que você explique, desde que me sentei aqui.
Como é que foi? Ele levou você ao escritório, e daí?
Biff
Bom ... eu falei. E... ele escutou, entende?
WILLY
É um homem que escuta o que se diz, é famoso por isso. Qual
foi a resposta dele?
Biff
Ele disse que. . . (Interrompe-se subitamente, raivoso.) Papai,
você não está me deixando dizer o que eu quero!
WILLY (acusando, zangado) Você nem o viu, não é?
Biff
Eu vi, sim!
WILLY
E o que foi que você fez, você o insultou? Você o insultou, não
foi?
Biff
Escute, quer deixar-me falar! Quer deixar-me falar? !
HAPPY Droga!
WILLY
Diga-me o que foi que houve !
Biff (para Happy)
Eu não consigo falar com ele !
406
(Ouve-se uma nota de pistom. A luz de folhas verdes envolve a
casa, que tem um ar noturno e de sonho, o jovem Bernard entra
e bate na porta da casa.)
O JOVEM BERNARD (desesperado) Senhora Loman!
Senhora Loman!
HAPPY
Diga a ele o que houve!
Biff (a Happy)
Cale a boca e me deixe em paz !
WILLY
Não, não! Você tinha que chegar lá e ser reprovado em mate-
mática !
Biff
Que matemática? O que é isso agora?
O JOVEM BERNARD
Senhora Loman! Senhora Loman!
(Linda aparece na casa, como antigamente.)
WILLY (selvagemente) Matemática, matemática!
Biff
Calma, papai!
O JOVEM BERNARD Senhora Loman!
WILLY (furioso)
Se você não tivesse sido reprovado em matemática, hoje você
seria alguém!
407
Biff
Olhe aqui, eu vou lhe contar o que houve e você vai me escu-
tar!
O JOVEM BERNARD
Senhora Loman!
Biff
Eu esperei seis horas . . .
HAPPY
Mas o que é isso que você está dizendo?
Biff
Fiquei lá o tempo todo, mas ele não me recebia. Até que final-
mente ele... (Continua sem ser ouvido, enquanto as luzes sobre
o restaurante se apagam.)
O JOVEM BERNARD
Biff foi reprovado em matemática!
LINDA
Não!
O JOVEM BERNARD
É, sim ! Ele não vai se formar !
LINDA
Mas ele tem que tirar o diploma. Tem que ir para a universi-
dade ! Onde é que ele está? Biff! Biff!
O JOVEM BERNARD
Ele foi embora. Ele foi para a estação!
LINDA
Para a estação? Quer dizer que ele foi a Boston !
408
O JOVEM BERNARD
Tio Willy está em Boston?
LINDA
Oh, talvez Willy possa falar com o professor. Coitado de Biff,
coitado dele!
(As luzes da casa se apagam.)
Biff (à mesa, agora audível, mostrando uma caneta de ouro
que
tem na mão)
. . . portanto eu estou liquidado com Oliver, compreendeu?
Você está me ouvindo?
WILLY (perdido)
Claro. Se você não tivesse sido reprovado. . .
Biff
Reprovado no quê? Que conversa é essa?
WILLY
Não jogue toda a culpa em mim! Eu não fui reprovado em
matemática. . . Você foi! Que caneta?
HAPPY
Isso foi uma besteira, Biff, uma caneta dessas vale . . .
WILLY (vendo a caneta pela primeira vez) Você apanhou a
caneta de Oliver?
Biff (fraquejando)
Papai, acabei de explicar tudo a você.
WILLY
Você roubou a caneta de Bill Oliver !
Biff
Não foi bem um roubo! É isso que eu estou lhe explicando!
409
HAPPY
Ele estava com a caneta na mão, aí Oliver entrou, ele ficou
nervoso e botou-a no bolso, só isso!
WILLY
Meu Deus, Biff!
Biff
Eu não tinha intenção, papai!
VOZ DA TELEFONISTA Grande Hotel, boa noite!
WILLY (gritando) Não estou no quarto!
Biff (assustado)
Papai, que foi? (Ele e Happy se levantam.)
A TELEFONISTA
Chamando o senhor Loman !
WILLY
Pára com isso, eu não estou!
Biff (horrorizado, fica de joelhos diante de Willy)
Papai, eu vou conseguir, eu vou conseguir. (Willy tenta levan-
tar-se. Biff o segura.) Fique sentado.
WILLY
Não, você não presta, você não presta pra nada.
Biff
Presto sim, papai, eu vou encontrar uma outra coisa, com-
preende? Agora descanse. (Levanta o rosto de Willy.) Fale co-
migo, papai.
410
A TELEFONISTA
O senhor Loman não responde. Quer que vá procurá-lo?
WILLY (tentando levantar-se, como se quisesse silenciar a
telefonista) Não, não!
HAPPY
Ele vai conseguir alguma coisa, papai.
WILLY
Não, não . . .
Biff (desesperadamente, de pé diante de Willy)
Papai, escute ! Escute, papai! Eu estou lhe dizendo uma coisa
boa. Oliver falou com o sócio dele sobre a idéia da Flórida,
entende? Está me ouvindo? Ele falou com o sócio, e o sócio me
disse. . . vai dar tudo certo, ouviu? Papai, me escute, ele disse
que era só acertar a quantia.
WILLY Então.
. você conseguiu.'
HAPPY
Ele vai ser formidável, papai!
WILLY (tentando levantar-se)
Então você conseguiu, não foi? Você conseguiu! Você conse-
guiu!
Biff (agoniado, faz com que Willy se sente)
Não, não. Escute, papai. Eu tenho um almoço marcado com
eles amanhã. Estou lhe dizendo isso só para você saber que eu
ainda impressiono bem as pessoas. E eu vou conseguir, num
outro lugar, mas amanhã eu não posso ir, sabe?
Willy
Por que não? Você simplesmente . . .
411
Biff
Mas a caneta, papai!
WILLY
Você devolve a ele e diz que foi uma distração!
HAPPY
Claro, vá ao almoço amanhã!
Biff
Mas eu não posso dizer que . . .
WILLY
Você estava fazendo palavras cruzadas, e, sem querer, pegou a
caneta dele!
Biff
Escute, papai, há anos atrás eu já tirei aquelas bolas, e eu agora
apareço com a caneta dele? Uma coisa liga com a outra, você
não vê? Eu não posso olhar pra cara dele! Eu vou tentar noutro
lugar!
VOZ DO PAJEM
Procurando o senhor Loman !
WILLY
Você não quer ser nada na vida?
Biff
Papai, como é que eu posso voltar lá?
WILLY
Você não quer ser ninguém, é isso?
Biff (agora raivoso porque Willy não dá crédito a sua simpa-
tia) Não fale assim ! Você acha que foi fácil para mim ir até
aquele
412
escritório depois do que eu tinha feito? Ninguém seria capaz de
me carregar até lá!
WILLY
Então por que foi?
Biff
Por que fui? Por que fui! Mas olhe só para você! Olhe no que
você se transformou !
(Fora, à esquerda, a mulher ri.)
WILLY
Biff, ou você vai a esse almoço amanhã ou ...
Biff
Não posso ir. Não tenho nenhum encontro marcado!
HAPPY
Biff, pelo amor . . .
WILLY
Você está se divertindo à minha custa?
Biff
Mas não é nada disso, pelo amor de Deus!
WILLY (tenta golpear Biff e se afasta da mesa) Seu cafajeste !
Está se divertindo à minha custa!
A MULHER
Alguém está batendo à porta, Willy !
Biff
Eu não presto, será que você não vê?
413
HAPPY (apartando os dois)
Ei, vocês estão num restaurante! Vamos parar com isso! (As
moças entram.) Alô, meninas, sentem-se.
(Fora, à esquerda, a mulher ri.)
SENHORITA FORSYTHE
Vamos sentar um pouquinho. Esta é Letta.
A MULHER
Willy, você não vai se levantar?
Biff (ignorando Willy)
Como vai, tudo bem? Sente se. O que é que você bebe?
FORSYTHE
Letta não pode ficar muito tempo.
LETTA
Tenho que acordar cedo amanhã. Vou ser jurada no tribunal.
Estou tão nervosa! Algum de vocês já foi do júri?
Biff
Não, mas já enfrentei um! (As moças riem.) Este é meu pai.
LETTA
Não é uma gracinha? Sente se aqui com a gente, papai.
HAPPY
Faça o sentar, Biff!
Biff (dirigindo-se a Willy)
Vamos lá, campeão, vamos tomar um pileque. Que vá tudo pro
inferno. Vem, vamos sentar.
(Willy quase se senta, graças à insistência de Biff.)
414
1
A MULHER (agora nervosa)
Willy, você não vai atender à porta? !
(O chamado da mulher faz com que Willy se aprume. Tenta
sair, aturdido.)
Biff
Ei, onde é que você vai?
WILLY
Abrir a porta.
Biff
A porta?
WILLY
O banheiro ... a porta. . . onde é a porta?
Biff (conduzindo Willy para a esquerda) Siga em frente.
(Willy se move pela esquerda.)
A MULHER
Willy, você vai se levantar, levantar, levantar, levantar?
(Willy sai.)
LETTA
Foi muito simpático você trazer seu pai.
FORSYTHE
Ah, não é realmente o pai dele!
Biff (da esquerda, diz a ela, ressentido)
Senhorita Forsythe, você acaba de ver passar um príncipe. Um
nobre príncipe atormentado. Um desprezado príncipe do traba-
415
lho. Um amigo, compreende? Um bom companheiro. Que ama
seus filhos.
LETTA
Puxa, que bonito.
HAPPY
Bom, pessoal, qual é o programa? Estamos perdendo tempo.
Venha pra cá, Biff. Junte-se a nós. Onde é que vocês querem
ir?
Biff
Por que você não o ajuda?
HAPPY
Eu!?
Biff
Você não liga a mínima para ele, Hap?
HAPPY
Que papo é esse? Sou eu que . . .
Biff
Entendo muito bem. Você não dá a menor atenção a ele. (Tira
o tubo de borracha do bolso e coloca na mesa, em frente a
Happy.) Olhe o que eu achei no porão. Pelo amor de Deus!
Como é que você permite uma coisa dessas?
HAPPY
Eu? Mas quem é que foi embora? Quem é que vive fugindo e. .
.
BIFF
Ele não significa nada para você. Você poderia ajudá-lo. . eu
não! Será que você não entende o que eu estou falando? Ele vai
se suicidar, você ainda não percebeu?
416
HAPPY
Se eu não percebi? Eu !
Biff
Hap, pelo amor de Deus. . . ajude papai! Ajude-o . . . E ajude a
mim! Ajude-me, ajude-me! Eu não suporto olhar o rosto dele!
(Quase chorando, sai correndo pela direita.)
HAPPY (começando a ir atrás dele) Onde é que você vai?
FORSYTHE
O que é que ele tem?
HAPPY
Vamos lá, meninas, vamos atrás dele!
FORSYTHE (enquanto Happy a empurra) Olhe, eu não gostei
do jeito dele, não !
HAPPY
Está só um pouco nervoso, já passa logo.
WILLY (de fora, à mulher) Não abra! Não abra!
LETTA
Você não prefere dizer a seu pai...
HAPPY
Esse aí não é meu pai, não. É um sujeito qualquer. Vamos lá,
vamos alcançar Biff, e vamos fazer uma farra daquelas.
Stanley, cadê a conta !? Stanley !
(Saem. Stanley olha à esquerda.)
STANLEY (chamando Happy, indignado) Senhor Loman !
Senhor Loman !
417
(Stanley pega uma cadeira e sai atrás deles. Fora, ouvem-se
batidas numa porta, à esquerda. A mu-lher entra, rindo. Willy a
segue. Ela usa um baby-doll prelo. Ele abotoa a camisa. Uma
música sen-suai acompanha as falas.)
WILLY
Quer parar de rir? Quer parar?
A MULHER
Você não vai atender à porta? Ele vai acordar o hotel inteiro.
WILLY
Não estou esperando ninguém.
A MULHER
Por que você não toma mais um drinque, querido, e se relaxa
um pouco?
WILLY
Estou tão solitário.
A MULHER
Sabe que você me conquistou, Willy? De agora em diante, toda
vez que você chegar ao escritório, vou botar você imediata-
mente em contato com os compradores. Você não vai ter que
esperar mais. Você é fantástico, Willy.
WILLY
Obrigado. É bom que você diga isso.
A MULHER
Puxa. como você está deprimido! Por que está tão triste? Você
é a pessoa mais triste e deprimida que eu já vi. (Ela ri. Ele a
beija.) Venha para cá, venha! É bobagem vestir a roupa no
meio da noite. (Ouvem-se batidas.) Você não vai abrir a porta?
418
WILLY
Estão batendo na porta errada.
A MULHER
Nada, estão batendo aí. E ele nos ouviu conversando. Quem
sabe o hotel está pegando fogo?
WILLY (em crescente terror) E engano!
A MULHER
Então mande-o embora!
WILLY
Não há ninguém aí.
A MULHER
Estou ficando nervosa, Willy. Há alguém aí fora e isso me
deixa nervosa.
WILLY (afastando-a de si)
Está bem, fique no banheiro e não saia de lá. Acho que nesta
cidade é proibido receber mulheres nos hotéis, portanto não
saia. Pode ser o novo porteiro. Pareceu me um cara chato. Não
saia. É engano, não há incêndio nenhum.
(Ouvem-se novamente as batidas. Ele se afasta um pouco dela
e desaparece nos bastidores. A luz o acompanha e ele agora
está frente a frente com o jovem Biff, que carrega uma maleta.
Biff dá um passo a ele. A música pára.)
Biff
Por que você não respondeu?
WILLY
Biff! O que é que você está fazendo aqui em Boston?
419
Biff
Por que você não respondeu? Estou batendo há mais de cinco
minutos, chamei pelo telefone. . .
WILLY
Só agora que eu ouvi. Estava no banheiro, de porta fechada.
Aconteceu alguma coisa lá em casa?
Biff
Papai... eu deixei você mal.
WILLY
Como assim?
Biff Papai. . .
WILLY
Biff, que é que há? (Pondo o braço em tomo de Biff) Venha
cá, vamos descer e tomar um copo de leite. . .
Biff
Papai, fui reprovado em matemática.
WILLY
Mas e a média do ano?
Biff
Não basta. Não vou tirar o diploma.
WILLY
Então Bernard não lhe deu as respostas?
Biff
Deu, ele tentou, mas só consegui sessenta e um . . .
WILLY
E eles não lhe dariam mais quatro pontos?
420
Biff
O professor se recusa. Eu implorei a ele, papai, mas ele não
quer me dar os quatro pontos. Você tem que falar com ele antes
que o colégio feche. Porque se ele vir o tipo de homem que
você é, e se você falar com ele do seu jeito, eu tenho a certeza
de que ele me dará os pontos. Você fala com ele, papai? Ele
gostará de você. Do seu jeito de falar.
WILLY
Claro que falarei. Vamos voltar imediatamente.
Biff
Oh, papai, que bom! Tenho a certeza de que ele vai mudar a
nota!
WILLY
Desça e peça minha conta na portaria. Vá, já!
Biff
Sim, senhor! Sabe por que que ele me odeia, papai? Porque,
um dia, ele estava atrasado e eu o imitei. Fui lá ao quadro-ne-
gro e comecei a falar ciciado assim.
WILLY (rindo)
Foi? E o pessoal gostou?
Biff
Eles quase morreram de rir!
WILLY
Como é que você fez?
Biff (ciciando)
A raiz quadrada de sessenta e seis é. . . (Willy ri muito. Biff o
acompanha.) E ele entrou bem na hora!
(Willy ri e a mulher também, lá fora.)
421
WILLY (sem hesitar) Corre lá embaixo e. . .
Biff
Há alguém aí?
WILLY
Não, foi no outro quarto.
(A mulher ri de novo.)
Biff
Há alguém aí no seu banheiro !
WILLY
Não, é no quarto ao lado, estão dando uma festa. . .
A MULHER (entra rindo)
Posso entrar? Acho que há um bicho lá na banheira, Willy, está
se mexendo. . .
(Willy olha para Biff, que contempla a mulher, horrorizado e
de boca aberta.)
WILLY
Ah. . . É melhor a senhora voltar para seu quarto. Já devem ter
acabado a pintura. Estão pintando o quarto dela e ela me pediu
para tomar um banho aqui. . . Vá, vá... (Empurra-a.)
A MULHER (resistindo)
Mas eu tenho que me vestir, Willy, eu não posso. . .
WILLY
Saia daqui! Vá embora, vá embora. . . (Tentando naturalidade)
Esta é a senhorita Francis, Biff, é uma compradora. Es-tão
pintando o quarto dela. Vá embora, senhorita Francis. vá
embora . . .
422
A MULHER
Mas as minhas roupas, não posso andar nua pelo corredor!
WILLY (empurrando-a para fora do palco) Saia daqui! Vá
embora, vá embora!
( Biff senta-se lentamente na maleta, enquanto a discussão
prossegue lá fora.)
A MULHER
Cadê as minhas meias? Você me prometeu meias de seda,
Willy!
WILLY
Não tenho meia nenhuma aqui!
A MULHER
Você me prometeu duas caixas de tamanho nove, sem costura,
e agora eu as quero!
WILLY
Aqui, pronto, pega as tuas meias e vá embora daqui!
A MULHER (entra carregando uma caixa de meias)
Tomara que não haja ninguém no corredor. É só isso que eu
espero. (A Biff) Você joga futebol ou beisebol?
Biff
Futebol.
A MULHER (zangada e humilhada)
É isso que jogam comigo. Boa noite. (Arranca suas roupas das
mãos de Willy e sai.)
WILLY (depois de uma pausa)
Bem, é melhor irmos andando. Eu quero ir ao colégio amanhã
bem cedinho. Tire minhas roupas do armário. Eu vou pegar
423
1
a mala. ( Biff não se mexe.) O que é que há? ( Biff permanece
imóvel, as lágrimas correndo.) Ela é uma compradora. Traba-
lha para J. H. Simmons. Mora aí no andar de baixo. Estão
pintando o quarto dela. Você não pense que. . . (Interrompe-se.
Depois de uma pausa) Escute aqui, meu filho, é só uma
freguesa, ela vê as mercadorias no quarto dela e por isso. . .
(Pausa. Assumindo o comando) Muito bem, pegue as minhas
roupas. ( Biff não se mexe.) Agora pare de chorar e faça o que
eu digo. Eu lhe dei uma ordem! É isso que você faz quando eu
lhe dou uma ordem? Como é que se atreve a chorar! (Pondo o
braço em volta de Biff) Escute, Biff, quando você crescer, você
vai entender essas coisas. Você não deve. . . não deve dar uma
importância exagerada a isso. Vou ver o seu professor amanhã
bem cedo.
Biff
Não precisa.
WILLY (agachando-se junto dele)
Como não precisa? Ele vai dar-lhe os pontos que faltam, você
vai ver.
Biff
Ele não vai ligar para você.
WILLY
Claro que vai! Você precisa desses pontos para entrar na Uni-
versidade de Virgínia.
Biff
Eu não vou mais para lá.
WILLY
Hein? Se eu não conseguir que ele dê os pontos, você presta
exame de segunda época. Você tem as férias todas . . .
424
Biff (rompendo em pranto) Papai. . .
WILLY (afetado) Oh, meu filho. . .
Biff
Papai. . .
WILLY
Ela não significa nada para mim, Biff. Eu estava sozinho, es-
tava muito sozinho.
Biff
Você. . . Você deu a ela as meias da mamãe! (As lágrimas
explodem e ele se levanta para sair.)
WILLY (segurando Biff) Eu lhe dei uma ordem !
Biff
Não me toque, seu . . . mentiroso!
WILLY
Peça desculpas por isso !
Biff
Seu farsante... seu farsantezinho vulgar! Farsante ! (Vencido,
ele se vira rapidamente e sai chorando, levando a maleta. Willy
permanece no chão, de joelhos.)
WILLY
Eu lhe dei uma ordem! Biff, volte aqui ou eu lhe darei uma
surra! Volte aqui! Eu lhe darei uma surra!
(Stanley surge rapidamente da direita e fica de pé em frente de
Willy.)
425
WILLY (grita para Stanley) Eu lhe dei uma ordem . . .
STANLEY
Ei, vamos levantar, vamos levantar, senhor Loman. (Ajuda
Willy a levantar-se.) Seus filhos foram com aquelas galinhas.
Disseram que encontrarão o senhor em casa.
(Um segundo garçom espia, a distância.)
WILLY
Mas nós íamos jantar juntos. . .
(Ouve-se a música, o tema de Willy.)
STANLEY
Será que o senhor consegue? . . .
WILLY
Eu ... claro. Consigo, sim. (Repentinamente preocupado com
suas roupas.) Eu ... eu estou bem?
STANLEY
Está, está muito bem. (Tira um fiapo da lapela de Willy.)
WILLY
Tome. . . aqui um dólar.
STANLEY
Oh, seu filho já me pagou. Está tudo certo.
WILLY (pondo o dinheiro na mão de Stanley) Não, pegue.
Você é um bom rapaz.
STANLEY
Mas não, o senhor não precisa. . .
426
WILLY
Tome. . . aqui tem mais. Eu não preciso mais disso. (Depois de
uma pausa.) Diga-me uma coisa... há alguma loja de se-mentes
por aqui?
STANLEY
Sementes? O senhor diz sementes para se plantar?
(Quando Willy se vira, Stanley põe de novo o dinheiro no
bolso dele.)
WILLY
É. Cenouras, ervilhas . . .
STANLEY
Há uma loja de ferragens na Sexta Avenida, mas acho que
agora já é um pouco tarde.
WILLY (ansiosamente)
Então é melhor eu correr. Preciso dessas sementes. (Começa a
sair pela direita.) Preciso das sementes agora mesmo. Não
tenho nada plantado. Nada no quintal.
(Sai correndo, enquanto as luzes se apagam. Stanley o
acompanha até a direita e o vê sair. O outro garçom esteve o
tempo todo olhando Willy atentamente.)
STANLEY (ao garçom)
Que é que você está olhando?
(O garçom apanha as cadeiras e sai pela direita. Stanley pega a
mesa e o acompanha. A luz se apaga nesta área. Uma longa
pausa. O som da flauta. A luz gradualmente cresce na cozinha,
que está vazia. Happy aparece na porta da casa, seguido de
Biff. Happy carrega um grande buquê de
427
rosas de talo longo. Entra na cozinha e procura por Linda.
Como não a vê, ele se vira para Biff, que está do lado de fora
da porta, e faz um gesto com as mãos como quem diz: acho que
não está aqui. Olha para a sala e fica gelado. Lá dentro, sem ser
vista, Linda está sentada, com o paletó de Willy sobre os
joelhos. Ela se levanta numa atitude estranha e caminha até
Happy, que volta de costas à cozinha, amedrontado.)
HAPPY
Ei, que é que você está fazendo de pé? (Linda não responde
mas caminha para ele, implacavelmente.) Onde está papai?
(Ele continua andando de costas para a direita e agora Linda é
vista totalmente, na porta da sala.) Ele já está dormindo?
LINDA
Onde é que vocês estavam?
HAPPY (tentando levar na brincadeira)
Encontramos duas moças, mamãe, gente fina. Olha aqui, a
gente trouxe umas flores para você. (Oferecendo-lhe as rosas)
Ponha-as no seu quarto, mamãe.
(Ela joga as flores no chão, aos pés de Biff. Happy entrou e
fechou a porta atrás de si. Ela contempla Biff, em silêncio.)
Mamãe, por que é que você fez isso? Eu lhe trouxe essas flores
...
LINDA (ignorando Happy, violentamente a Biff) Você não se
importa que ele viva ou morra?
HAPPY (indo à escada) Vamos subir, Biff.
428
Biff (com um traço de desgosto, a Happy)
Vá embora, vá. (A Linda) Que quer dizer com viva ou morra?
Ninguém está morrendo por aqui.
LINDA
Saiam da minha vista ! Saiam daqui!
Biff
Quero ver o chefe.
LINDA
Você não vai nem chegar perto dele.
Biff
Onde é que ele está? (Entra na sala e Linda o segue.)
LINDA (gritando atrás de Biff)
Você o convida para jantar, ele passa o dia inteiro esperando
por isso. . . ( Biff aparece no quarto dos pais, dá uma espiada e
sai). . . e aí você o abandona lá sozinho. Isso não se faz nem
com um estranho !
HAPPY
Mas por quê? Ele se divertiu conosco! Eu quero. . . (Linda
surge de novo da cozinha). . . cair morto no dia em que eu
abandonar meu pai!
LINDA
Vá embora daqui!
HAPPY
Escute um pouco, mamãe. . .
LINDA
Você não podia passar um dia sem essas mulheres? Você e as
suas prostitutas!
( Biff entra de novo na cozinha.)
429
HAPPY
Mamãe, a gente só foi atrás de Biff para ver se conseguia ani-
má-lo um pouco! (A Biff) Rapaz, que noite você me arranjou !
LINDA
Sumam daqui, vocês dois, e não voltem mais! Não quero mais
ver vocês atormentando seu pai. Sumam daqui já, vão pegar
suas coisas! (A Biff) Você pode dormir no apartamento dele!
(Começa a apanhar as flores, mas desiste.) E tirem esse lixo
daqui, não sou mais sua empregada! Tire isso daqui, seu vaga-
bundo!
(Happy vira as costas para ela, numa recusa. Biff caminha
lentamente, ajoelha-se e apanha as flores.)
LINDA
Vocês são dois animais! Não existe um só ser humano que teria
a crueldade de abandonar esse homem num restaurante!
Biff (sem olhar para ela) Foi isso que ele disse?
LINDA
Ele nem precisou dizer nada. Estava tão humilhado quando
chegou em casa, que entrou quase se arrastando.
HAPPY
Mas mamãe, ele se divertiu com a gente. . .
Biff (cortando Happy violentamente) Cale a boca!
(Sem mais uma palavra, Happy sobe.)
LINDA
Você ! Você nem sequer foi ver se ele estava bem !
430
Biff (ainda no chão, em frente a Linda, com as flores na mão
e com repugnância de si mesmo)
Não. Não fui. Não fiz nada. Que é que você me diz disso, hein?
Deixei ele falando sozinho num banheiro.
LINDA
Você é um miserável, um...
Biff
Agora você acertou. (Levanta-se e joga as flores na cesta de
lixo.) Você está contemplando a escória do mundo !
LINDA
Vá embora daqui!
Biff
Tenho que falar com o chefe, mamãe. Onde é que ele está?
LINDA
Você nem vai chegar perto dele. Vá embora desta casa!
Biff (com absoluta determinação)
Não, nós vamos ter uma conversa muito franca, ele e eu.
LINDA
Você não vai falar com ele!
(Ouvem-se ruídos de fora da casa, à direita. Biff volta-se na
direção do barulho.)
LINDA (implorando subitamente) Quer fazer o favor de deixá-
lo em paz?
Biff
Que é que ele está fazendo lá fora?
LINDA
Está cultivando o jardim.
431
Biff (em voz baixa) Agora? Meu Deus!
( Biff sai e Linda o segue. A luz se apaga sobre eles e cresce no
meio do tablado, enquanto Willy entra nele. Ele carrega uma
lanterna, uma enxada e uma porção de pacotes de sementes. Dá
um golpe na ponta da enxada para deixá-la bem firme, e
caminha para a esquerda, medindo as distâncias com o pé.
Segura a lanterna para poder ler as instruções nos pacotes de
sementes. Está debaixo do luar.)
WILLY
Cenouras. . . separadas um centímetro. Fileiras. . . cada trinta
centímetros. (Mede.) Trinta centímetros. (Põe um pacote no
chão e mede.) Beterrabas. (Põe no chão outro pacote e mede de
novo.) Alface. (Lê o pacotinho e o põe no chão.) Trinta
centímetros. . . (Interrompe-se quando Ben aparece à direita e
lentamente dirige-se a ele.) É uma excelente proposta, ts, ts.
Formidável. Esplêndida. Porque ela tem sofrido, Ben, essa mu-
lher tem sofrido muito. Você me compreende? Porque um ho-
mem não pode partir do jeito que chegou. Tem que deixar al-
guma coisa. Não se pode, não se pode. (Ben dirige-se a ele
como para interrompê-lo.) Você tem que ver todos os lados da
questão, Ben. Não responda já. Lembre-se. É uma oferta
garantida de vinte mil dólares. Agora escute, Ben, eu quero que
você estude comigo todos os detalhes do assunto. Eu não tenho
ninguém com quem conversar, Ben, e essa mulher tem sofrido
muito, está me ouvindo?
BEN (parado, de pé, considerando) Qual é a proposta?
WILLY
Vinte mil dólares na ficha. Garantidos, sem problema, en-
tende?
432
BEN
Cuidado para não fazer uma tolice. Eles podem não pagar a
apólice.
WILLY
Eles não podem se atrever a isso. Trabalhei como um escravo
para pagar pontualmente os prêmios. E agora eles não vão pa-
gar? Impossível!
BEN
Há quem diga que isso é uma covardia, Willy.
WILLY
Por quê? É preciso mais coragem para ficar aqui o resto da
minha vida sendo um zero à esquerda!
BEN (cedendo)
Esse é um ponto a pensar. (Caminha, pensando, depois se
volta.) E vinte mil... é uma coisa que se pode pegar. Existe.
WILLY (agora confiante, com energia crescente)
Oh, Ben, aí é que está a beleza da coisa. Eu a vejo como se
fosse um diamante, um diamante duro e áspero, brilhando na
escuridão, e que eu posso apanhar e tocar com a minha mão.
Não é simplesmente um ... encontro marcado, uma conversa
tola que não leva a lugar algum. Uma coisa dessas muda tudo.
Só porque ele pensa que eu não valho nada, Ben, ele procura
me humilhar. Mas o meu enterro. . . (endireitando-se) Ben.
meu enterro vai ser impressionante! Todos eles virão, do
Maine, Massachusetts, Vermont, Nova Hampshire. Todos os
velhos amigos, com aquelas chapas estranhas nos seus automó-
veis . . . Esse menino vai levar um golpe, Ben, porque ele
nunca percebeu... o quanto eu tenho de prestígio! Rhode Island,
Nova York, Nova Jersey. . . Porque eu tenho um prestígio
imenso, Ben, e ele vai ver isso com seus próprios olhos, de
uma vez por todas. Ele vai ver só quem sou eu, Ben! Esse
menino vai levar um choque !
433
BEN (descendo para a ponta do jardim) Ele vai dizer que você
foi um covarde.
WILLY (repentinamente amedrontado) Não, não, isso seria
terrível!
BEN
E um idiota completo.
WILLY
Não, não, ele não pode fazer uma coisa dessas! Não posso
tolerar isso! (Fica abatido e desesperado.)
BEN
Ele vai odiar você, William.
(Ouve-se a alegre música dos rapazes.)
WILLY
Oh, Ben, como é que se pode voltar aos bons tempos de antiga
mente? Era tudo tão cheio de luz e de carinho, nós passeáva-
mos de trenó no inverno e eu contemplava o rubor nas faces de
meu filho! E havia sempre uma boa notícia chegando, e o
futuro era tão cheio de esperança! E ele não me deixava nem
carregar minhas maletas, quando eu voltava para casa, e como
cuidava daquele carrinho vermelho! Limpava, limpava, até que
ficasse brilhando! Por que, por que não posso dar alguma coisa
a ele e conseguir que ele não me odeie?
BEN
Deixe-me pensar no assunto. (Espia o relógio.) Ainda tenho
algum tempo. É uma proposta excelente, mas você não pode
fazer papel de bobo.
(Caminha para o fundo do palco e desaparece. Biff surge,
vindo da esquerda.)
434
WILLY (subitamente cônscio da presença de Biff volta-se e
olha para ele, e, muito confuso, começa a apanhar os
pacotinhos de semente)
Onde está essa droga de semente !? (Indignado) Não se
enxerga nada aqui fora! Eles encaixotaram o quarteirão inteiro
!
Biff
Temos gente de todos os lados, ainda não percebeu?
WILLY
Estou ocupado. Não me aborreça.
Biff (tomando a enxada de Willy)
Vim lhe dizer adeus, papai. (Willy olha para ele, em silêncio,
incapaz de se mover.) Não vou voltar nunca mais.
WILLY
Você não vai se encontrar com Oliver amanhã?
Biff
Não tenho encontro nenhum, papai.
WILLY
Ele pôs o braço no seu ombro e você não tem encontro ne-
nhum?
Biff
Papai, compreenda isto de uma vez, está bem? Toda vez que eu
fui embora, foi por causa de uma briga. Hoje eu compreendi
uma coisa a respeito de mim mesmo e procurei explicar para
você e eu... eu acho que não sou inteligente o bastante para
fazer você entender. Não interessa de quem é a culpa, isso não
importa. (Pega Willy pelo braço.) Vamos acabar com isso, está
bem? Venha, vamos dizer à mamãe. (Gentilmente tenta condu-
zir Willy para a esquerda.)
435
WILLY (gelado, imóvel, com voz culposa) Não, eu não quero
vê-la.
Biff
Venha comigo ! (Puxa de novo e Willy resiste.)
WILLY (muito nervoso)
Não, não, eu não quero vê-la.
BIFF (olha bem dentro dos olhos de Willy, como que
procurando
a resposta lá) Por que você não quer vê-la?
WILLY (ainda mais agressivo) Quer me deixar em paz?
Biff
Mas por que você não quer vê-la? Você não quer que ela
chame você de covarde, não é? A culpa não é sua, é minha, eu
sou um vagabundo. Agora venha para dentro! (Willy tenta
soltar-se dele.) Você ouviu o que eu disse?
(Willy livra-se dele e entra sozinho na casa; Biff o segue.)
LINDA (a Willy)
Plantou as sementes, querido?
Biff (na porta, a Linda)
Já combinamos tudo, mamãe. Eu vou embora e não vou escre-
ver mais.
LINDA (caminhando para Willy, na cozinha)
Acho que é a melhor solução, querido. Porque é inútil insistir,
vocês nunca vão se entender.
(Willy não responde.)
436
Biff
Se alguém perguntar onde estou e o que estou fazendo, você
não sabe nem se interessa. Assim você não se preocupa mais
comigo e as coisas vão melhorar para você. Está bem? Combi-
nado? (Willy está quieto e Biff vai até ele.) Vai me desejar boa
sorte, campeão? (Estende a mão.) O que me diz?
LINDA
Aperte a mão dele, Willy.
WILLY (virando-se para ela, muito dolorido) Não há
necessidade de mencionar a caneta.
Biff (gentilmente)
Não tenho nenhum encontro, papai.
WILLY (com um acesso de ira) Ele pôs o braço no seu ombro.
..?
Biff
Papai, você nunca vai me ver como eu sou, o que adianta dis-
cutir? Se eu descobrir petróleo eu lhe mando um cheque. En-
quanto isso, esqueça que eu existo.
WILLY (a Linda)
Você vê quanto rancor?
Biff
Aperte aqui, papai.
WILLY
Não a minha mão.
Biff
Não queria ir embora assim.
WILLY
Mas é assim que você vai. Adeus.
437
( Biff olha para ele por um instante, depois vira-se bruscamente
e vai para a escada.)
WILLY ( Biff pára com o grito)
Se você abandonar esta casa, quero que apodreça no inferno!
Biff (virando-se)
Mas o que é que você quer de mim?
WILLY
Quero que você saiba, nos trens, nas montanhas, nos vales,
onde quer que você vá, que você destruiu a sua vida por ran-
cor!
Biff
Não, não.
WILLY
Rancor, rancor, essa é a palavra! E quando você estiver intei-
ramente na sarjeta, lembre-se disso ! Quando você estiver apo-
drecendo por aí, no meio da rua, lembre-se disso e não ouse pôr
a culpa em mim !
Biff
Eu não estou pondo a culpa em você !
WILLY
Isso você não vai jogar na minha cara, ouviu?
(Happy desce a escada e pára no último degrau, olhando.)
Biff
Mas é isso mesmo que eu estou lhe dizendo !
WILLY (afundando numa cadeira, acusador)
Você está querendo enterrar uma faca no meu peito, não pense
que eu não percebi!
438
Biff
Muito bem, seu farsante. Vamos pôr tudo em pratos limpos.
(Tira do bolso o tubo de borracha e o põe em cima da mesa.)
HAPPY
Seu maluco. . .
LINDA
Biff! (Faz um gesto para pegar o tubo, mas Biff não deixa.)
Biff
Deixe isso aí! Não mexa!
WILLY (sem olhar) O que é isso?
Biff
Você sabe muito bem o que é.
WILLY (encurralado, tentando escapar) Eu nunca vi isso.
Biff
Viu, sim. Não foi o rato que levou isso para o porão. Que é que
você pretendia com isso, bancar o herói? Isso era pra eu ficar
com pena de você?
WILLY
Não sei o que é isso.
Biff
Ninguém vai sentir pena de você, entendeu? Ninguém !
WILLY (a Linda)
Você vê quanto rancor?
439
Biff
Você vai ouvir a verdade... o que você é e o que eu sou !
LINDA
Pare com isso!
WILLY Rancor!
HAPPY (descendo em direção a Biff) Agora chega!
Biff (a Happy)
O homem não sabe quem somos nós! Agora ele vai saber! (A
Willy) Nenhum de nós jamais disse a verdade nesta casa!
HAPPY
Nós sempre dissemos a verdade !
Biff (virando-se para ele)
Você, seu grande palhaço ! Você é assistente da gerência?
Você é um dos dois assistentes do assistente, não é?
HAPPY
Bem, eu praticamente . . .
Biff
Você praticamente é merda nenhuma! Nós todos somos. E eu
estou cheio disso. (A Willy) Agora, Willy, preste atenção: este
sou eu.
WILLY
Eu conheço você!
Biff
Você sabe por que eu não tive endereço durante três meses? Eu
roubei um terno em {Cansas City e estava na cadeia. (A
440
Linda, que está soluçando) Pare de chorar. Não agüento mais
isso.
(Linda se afasta deles, cobrindo o rosto com as mãos.)
WILLY
E a culpa é minha?
Biff
E eu saí de todo bom emprego que tive desde que deixei o
ginásio!
WILLY
E de quem é a culpa?
Biff
E eu nunca consegui nada na vida porque você me encheu a
cabeça de vento e eu jamais suportei receber ordens de nin-
guém ! Aí está de quem é a culpa!
WILLY
E eu ainda tenho que ouvir isso!
LINDA
Chega, Biff!
Biff
Já está na hora de ouvir isso! Eu tinha que ser o patrão e o dono
por quinze dias, e estou cheio disso!
WILLY
Então enforque-se ! Vá, rancoroso, enforque-se !
Biff
Não! Ninguém vai se enforcar, Willy ! Hoje eu desci onze an-
dares correndo, com uma caneta na mão. E de repente eu parei.
441
ouviu? E no meio daquele prédio, ouviu bem? Eu parei no
meio daquele prédio e eu vi... o céu. E vi as coisas que eu amo
neste mundo. O trabalho e a comida e o tempo de sentar e
fumar um cigarro. Olhei para a caneta e me perguntei: por que
é que eu estou roubando isto? Por que estou tentando ser uma
coisa que eu não quero ser? O que é que eu estou fazendo num
escritório, como um idiota, quando tudo que eu quero está lá
fora, esperando por mim no minuto em que eu disser que eu sei
quem eu sou? Por que não posso dizer isso, Willy? (Tenta fazer
com que Willy olhe para ele, mas Willy o repele e anda para a
esquerda.)
WILLY (com ódio, ameaçador)
As portas de sua vida estão abertas de par em par!
Biff
Papai, eu sou um zero à esquerda, e você também !
WILLY (virando-se para Bijf,furioso e sem controle)
Eu não sou um zero à esquerda! Eu sou Willy Loman, e você é
Biff Loman!
(Biff avança para Willy, mas é contido por Happv. Na sua
fúria, Biff parece que vai bater no pai.)
Biff
Eu não sou um grande homem, Willy, e você também não.
Você nunca passou de um homem que trabalhou duro a vida
inteira e terminou na lata de lixo, como todos os outros! E eu,
Willy, eu sou um assalariado de um dólar por hora! Tentei em
sete Estados e não consegui mais. Um dólar por hora! Será que
você compreende o que eu digo? Eu já não trago prêmios para
casa e você tem que se acostumar com isso!
WILLY (diretamente a Biff) Vingativo, rancoroso!
442
( Biff livra-se. de Happv. Willv, com medo, vai subir a escada.
Biffo agarra.)
Biff (no auge da fúria)
Papai, eu não sou nada! Eu não sou nada, papai! Será que você
não compreende isso? Não há mais nenhum rancor. Eu só sou o
que eu sou, nada mais.
(A fúria de Biff se extinguiu. Ele cai, soluçando, e se apóia em
Willy, que procura o rosto de seu filho.)
WILLY (atônito)
O que é isso? O que é isso? (A Linda) Por que ele está cho-
rando?
Biff (chorando, alquebrado)
Você quer me deixar ir embora, pelo amor de Deus? Você quer
abandonar esse sonho inútil antes que aconteça o pior? (Lu-
tando para se conter, ele se levanta e vai à escada.) Eu vou
embora de manhã. Leve-o. . . leve-o para a cama. (Exausto,
Biff sobe a escada e vai para seu quarto.)
WILLY (depois de uma longa pausa, atônito e reconfortado)
Mas não é. . . não é uma coisa notável? Biff. . . Ele gosta de
mim !
LINDA
Ele ama você, Willy !
HAPPY (muito comovido) Sempre amou, papai.
WILLY
Oh, Biff! (Com os olhos muito abertos) Ele chorou! Chorou
443
para mim! (Está afogado de carinho, e agora grita sua pro-
messa.) Esse menino. . . esse menino vai ser formidável!
(Ben aparece na luz da cozinha.)
BEN
Excepcional. . . com vinte mil dólares atrás dele.
LINDA (percebendo os vertiginosos pensamentos de
Willy,
com muito cuidado) Agora venha dormir, Willy. Já está tudo
acertado.
WILLY (achando difícil não sair correndo da casa) Isso.
Vamos dormir. Vamos. Vá dormir, Hap.
BEN
E só um grande homem é que se impõe numa selva.
(O tema de Ben surge, em tons temíveis.)
HAPPY (com o braço à volta de Linda)
Eu vou me casar, papai, não se esqueça. Vou mudar em tudo.
Vou ser chefe do meu departamento, antes do fim do ano. Você
vai ver, mamãe. (Beija-a.)
BEN
A selva é escura, mas está cheia de diamantes, Willy.
(Willy se volta e anda, prestando atenção em Ben.)
LINDA
Seja bom. Vocês são dois bons meninos; procedam como tal.
Só isso.
HAPPY
Boa noite, papai. (Sobe.)
444
LINDA (a Willy) Vamos, querido.
BEN (com mais força)
É preciso entrar nela para extrair um diamante.
WILLY (a Linda, enquanto caminha lentamente em direção à
porta da cozinha)
Quero me acalmar um pouco, Linda. Deixe-me ficar sozinho
um instante.
LINDA (quase revelando seu temor) Quero você lá em cima.
WILLY (tomando-a nos braços)
Daqui a pouquinho, Linda. Agora eu não vou conseguir dormir.
Vá você, você está muito cansada. (Ele a beija.)
BEN
Não é conversa fiada. Um diamante é uma coisa tangível.
WILLY
Vá, meu bem. Eu subo já.
LINDA
Acho que foi o melhor jeito, Willy.
WILLY
Claro, o melhor.
BEN
O melhor!
WILLY
O único jeito. Tudo vai ser. . . suba, menina, vá dormir. Você
parece tão cansada.
445
LINDA
Venha logo.
WILLY
Dois minutos.
(Linda entra na sala, e depois reaparece em seu quarto. Willy
sai pela porta da cozinha.)
Ele me ama. (Maravilhado.) Sempre me amou. Não é notável?
Ben, ele vai me adorar, agora.
BEN (prometendo)
Lá é escuro, mas está cheio de diamantes.
WILLY
Você já imaginou esse rapaz maravilhoso, com vinte mil dóla-
res no bolso?
LINDA (chamando do quarto) Willy ! Suba, meu bem.
WILLY (para o lado da cozinha)
Já vou, já vou! É uma coisa inteligente, você percebe, não é,
meu amor? Até Ben concorda. Eu tenho que ir, meu amor.
Adeus. (Indo para Ben, quase dançando) Já pensou? Assim que
o correio chegar, ele estará de novo na frente de Bernard !
BEN
Um negócio perfeito em todos os sentidos.
WILLY
Você viu como ele chorou para mim? Oh, se eu pudesse bei-já-
lo, Ben !
BEN
O tempo, William, o tempo !
446
WILLY
Oh, Ben, eu sempre soube que mais cedo ou mais tarde nós
íamos nos entender, Biff e eu !
BEN (olhando o relógio)
O navio. Vamos chegar atrasados. (Lentamente, desaparece na
escuridão.)
WILLY (virando-se para a casa, como num lamento)
Agora, menino, quando o jogo começar, eu quero ver você cor-
rendo na frente de todos, e quando você atirar em gol, atire
forte, meu filho, porque isso é muito importante. (Gira sobre si
mesmo e contempla a platéia.) Há muita gente importante
prestando atenção em você, e a primeira coisa é. . . (De re-
pente, percebendo que está sozinho) Ben! Ben, onde eu. . . ?
(Procurando) Ben, como é que eu . . . ?
LINDA (chamando)
Willy, você não vai subir?
WILLY (num murmúrio de temor e como que para acalmá-la)
Sh! (Vira-se como que para achar o seu caminho; ruídos, vozes
e rostos parecem estar girando sobre ele e ele parece es-
pancálos, gritando) Sh ! Sh ! (É interrompido pela chegada da
música, que cresce em intensidade, até quase se transformar
num grito. Ele se movimenta para cima e para baixo na ponta
dos pés, e sai correndo em volta da casa.) Shhh !
LINDA
Willy?
(Não há resposta. Linda espera. Biff se levanta da cama. Está
ainda vestido. Happy também se levanta e senta na cama. Biff,
de pé, presta atenção.)
LINDA (com visível medo) Willy, responda! Willy!
447
(Ouve-se o som de um carro dando partida e cor rendo a toda a
velocidade.)
LINDA
Não!
Biff (correndo pela escada abaixo) Papai!
(À medida que a velocidade do carro aumenta, a música se
transforma num frenesi de sons, e depois muda para o suave
pulsar de uma simples corda de celo. Biff lentamente volta para
seu quarto. Ele e Happy, gravemente, põem os paletós. Linda
sai lentamente de seu quarto. A música se transformou numa
marcha fúnebre. As folhas do dia aparecem sobre todo o
espaço. Charley e Ber-nard, sobriamente vestidos, aparecem e
batem na porta da cozinha, Biff e Happy lentamente descem
para a cozinha, enquanto Charley e Bernard entram. Todos
param quando Linda, vestida de luto e com um pequeno buquê
de rosas, vem da porta da sala para a cozinha. Ela vai a Charley
e toma-lhe o braço. Agora todos caminham na direção do
público, através da "parede"da cozinha. No limite do palco.
Linda deixa as flores no chão, ajoelha-se e senta-se sobre os
calcanhares. Todos contem piam a tumba.)
448
RÉQUIEM
CHARLEY
Já está escurecendo, Linda.
(Ela não reage. Olha para a tumba.)
Biff
Vamos, mamãe? Você precisa descansar. Eles já vão fechar o
cemitério.
(Ela não se mexe. Pausa.)
HAPPY (profundamente ressentido)
Ele não tinha o direito de fazer isso. Não havia necessidade.
Nós o teríamos ajudado.
CHARLEY (murmurando) Humm. . .
Biff
Vamos, mamãe.
LINDA
Por que não veio ninguém?
CHARLEY
Foi um enterro muito digno.
LINDA
Mas onde estão todos aqueles que ele conheceu? Quem sabe
eles o culparam?
451
CHARLEY
Não. É um mundo cruel, Linda. Ninguém o culpou.
LINDA
Não compreendo. Principalmente agora. Pela primeira vez em
trinta e cinco anos, estava tudo pago. Ele só precisava de um
pequeno salário. Até o dentista estava pago.
CHARLEY
Homem algum precisa apenas de um pequeno salário.
LINDA
Não compreendo.
Biff
Houve muitos dias felizes. Quando ele voltava de uma viagem;
ou aos domingos, quando ele construía a varanda; terminando o
porão, fazendo o novo alpendre; quando construiu o outro
banheiro ou quando fez a garage. Sabe de uma coisa, Charley,
existe mais de meu pai ali naquela varanda do que em todas as
vendas que ele fez.
CHARLEY
É. Ele era um homem feliz com uma pá cheia de cimento.
LINDA
Era tão maravilhoso com suas mãos.
Biff
Teve os sonhos errados. Todos errados.
HAPPY (quase pronto a brigar com Biff) Não diga isso!
Biff
Ele nunca soube quem ele era.
452
CHARLEY (detendo o movimento e a resposta de Happy; a
Biff) Que ninguém acuse este homem. Você não compreende.
Willy era um caixeiro-viajante. E para um caixeiro-viajante,
não há terra firme na vida. Ele não coloca uma rosca num
parafuso. Não diz qual é a lei nem receita um remédio. É um
homem solto no espaço, cavalgando num sorriso e num sapato
brilhante. E se eles não devolvem o sorriso. . . é um terremoto.
E quando surgem algumas manchas no chapéu, está liquidado.
Que ninguém acuse este homem. Um caixeiro-viajante precisa
sonhar, rapaz. Faz parte de sua vida.
Biff
Charley, o homem não sabia quem era.
HAPPY (furioso) Não diga isso!
Biff
Por que você não vem comigo, Happy?
HAPPY
Eu não sou destruído assim tão facilmente. Vou ficar nesta ci-
dade e vou vencer essa canalha! (Olha para Biff, decidido.) Os
Irmãos Loman!
Biff
Eu sei quem sou, rapaz.
HAPPY
Muito bem. Eu vou mostrar a você e a todos que Willy Loman
não morreu em vão. Ele teve um sonho digno. O único sonho
que vale a pena ter. . . ser o número um. Ele lutou por isso aqui,
e é aqui que eu vou triunfar em nome dele.
Biff (com um olhar desesperançado a Happy, dirige-se a sua
mãe) Vamos, mamãe.
453
LINDA
Eu vou daqui a um minuto. Vá indo, Charley. (Ele hesita.) Só
quero um minuto. Eu nunca pude dizer adeus a ele.
(Charley se distancia, seguido de Happy. Biff se afasta um
pouco e fica parado, à esquerda de Linda. Ela fica sentada,
concentrando-se. A flauta começa a tocar e continua durante a
fala de Linda.)
LINDA
Perdoe-me, meu querido, eu não consigo chorar. Não sei por
que, mas não consigo chorar. Não entendo. Por que é que você
fez isso? Ajude-me, Willy, eu não consigo chorar. Parece que
você só foi fazer mais uma viagem. E eu fico esperando você.
Willy, meu querido. Não consigo chorar. Por que é que você
fez isso? Eu procuro a resposta e não consigo encontrar, Willy.
Hoje eu fiz o último pagamento da casa. Hoje, querido. E não
haverá ninguém nela. (Um soluço sobe a sua garganta.) Não
estamos devendo nada a ninguém. Estamos livres de obriga-
ções. (Soluçando mais aliviada.) Estamos livres. . . ( Biff vem
lentamente para ela.) Estamos livres. . . livres. . .
Biff a ajuda a levantar-se e caminha para a direita, abraçado a
ela. Linda soluça silenciosa mente. Bernard e Charley vêm a
eles e os acompanham, seguidos de Happy, apenas a música da
flauta permanece no palco que se vai escurecendo, à medida
que se iluminam os ásperos perfis dos prédios de apartamentos,
enquanto
CAI O PANO
454
ÍNDICE
Vida e obra de Tennessee Williams (Introdução) ......... 5
UM BONDE CHAMADO DESEJO ........................ 23
Personagens ..................................................... 25
CENAI .......................................................... 27
CENA II ......................................................... 59
CENA III ........................................................ 79
CENA IV ........................................................ 107
CENA V ......................................................... 125
CENA VI ........................................................ 141
CENA VII ....................................................... 159
CENA VIII ...................................................... 173
CENA IX ........................................................ 183
CENAX ......................................................... 197
CENA XI ........................................................ 211
Vida e obra de Arthur Miller (Introdução) ................. 231
A MORTE DO CA1XE1RO-VIAJANTE ................... 253
Personagens ..................................................... 255
ATOI ............................................................ 257
ATOII ........................................................... 347
RÉQUIEM ...................................................... 449
ABRIL CULTURAL
Editor e Diretor: VICTOR CIVITA
Diretores: Edgard de Sílvio Faria. Richard Civita. Roberto
Civita
DIVISÃO DE FASCÍCULOS E LIVROS
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CONSELHO EDITORIAL
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Assistentes de Arte: Rosângela Lopes Lourenço e Satikc
Arikita
DEPARTAMENTO COMERCIAL
Gerente de Produto: José Ricardo Calil
Assistentes: Denise Maria Mozol. Henrique Miguel DAngelo
Rossi
ILUSTRAÇÃO DAS GUARDAS: Cenas das primeiras
montagens de
Um Bonde Chamado Desejo (1947) e A Morte do Caixeiro-
Viajante (1949). ambas dirigidas por Elia Kazan.
CAPA: Neusa Japiassú
Composto e impresso nas oficinas da Abril S.A. Cultura/ e
Industrial, caixa postal 2372. São Paulo

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