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Uma face menos nobre da literatra portuguesa de viagens

Luís André Nepomuceno

Romance Notes, Volume 58, Number 3, 2018, pp. 391-401 (Article)

Published by The University of North Carolina at Chapel Hill, Department


of Romance Studies
DOI: https://doi.org/10.1353/rmc.2018.0036

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uma face menos nobre da literatura
portuguesa de viagens

luís andré nepomuceno

Por volta de 1507, o impressor e tradutor alemão conhecido por seu nome
português Valentim Fernandes, nascido na Morávia e radicado em Lisboa
desde o fim do séc. xV, enviava a Konrad Peutinger, humanista, diplomata,
antiquário e secretário municipal de Augsburgo, um precioso manuscrito em
latim e português contendo vários textos sobre viagens marítimas portugue-
sas de gêneros diversos. o códice, que só foi descoberto no séc. xix (Baye-
rische Staatsbibliothek, Codex Hispanicus, 27), pertencera à biblioteca
pessoal de Peutinger. Damião de Góis, em carta escrita em 1542 a João Dio-
go Fugger, deu notícia do manuscrito na casa de Peutinger, admirando-se de
que o livro de nada servia ao alemão, porque este ignorava o idioma portu-
guês (Torres i 349). o códice só foi publicado em 1940, sob o nome de Manus-
crito Valentim Fernandes (Baião 1940).
Ainda hoje não é possível saber se Fernandes enviara a Peutinger um
conjunto de textos fragmentados, de origens distintas, ou se ele mesmo os
copiara, enviando-os encadernados em livro. Ambos os interlocutores ale-
mães vinham de interesses comuns nas viagens e descobertas portuguesas.
Fernandes, por certo um dos mais importantes nomes quinhentistas ligados à
impressão de manuscritos relativos à literatura dos descobrimentos em Portu-
gal, publicara em 1502 a primeira coletânea portuguesa impressa de viagens,
incluindo num mesmo volume uma versão das viagens de Marco Polo, o
livro de Nicolau Venetto e a carta de Jerônimo de Santo Estevão, numa época
em que “não se julgou avisado dar prioridade a obras sobre os Descobrimen-
tos” (Andrade 352) e em que a edição de livros religiosos dominava o cená-
rio editorial manuelino. o alemão, que dera à estampa os primeiros livros
ilustrados em Lisboa, como o famoso Vita Christi, de Ludolfo da Saxônia
(1495), vinha granjeando notoriedade como pioneiro das artes tipográficas
em terras portuguesas. As anotações manuscritas de 300 páginas em portu-
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guês e latim que ele enviava ao amigo Peutinger cedo revelou-se a mais
importante coletânea de literatura de viagens da primeira década do novo
século. Mas o documento ganhou a estrada e foi estacionar em terras estran-
geiras, escondido sob a guarda de um homem culto que, no entanto, não o
podia ler na sua totalidade. o tesouro não era propriedade portuguesa, e cro-
nistas e humanistas, como Damião de Góis, ressentiram-se da sua falta.
o trabalho de recolha e organização dos blocos temáticos do manuscrito,
seja ele obra de Valentim Fernandes, seja de Peutinger, seguiu um critério
geográfico na exposição das descobertas portuguesas: há um bloco oriental,
na primeira parte, e um bloco africano, na segunda. A primeira série, com
dois textos, inclui (1) um relato da expedição do capitão-mor Dom Francisco
de Almeida, em 1505, quando de sua primeira viagem para a fundação do
Estado da Índia; e (2) uma descrição de autor anônimo acerca da Índia e
“Das ylhas de Dyue” (Maldivas). A segunda série ocupa-se essencialmente
de descrições e roteiros de viagens permeando a costa ocidental da África, e
contém (3) uma rica “Descripção de Ceuta e norte de África”, escrita pelo
próprio Valentim Fernandes, a partir de testemunhos de viajantes portugue-
ses; (4) uma relação histórico-geográfica de arquipélagos e ilhas atlânticas,
com mapas desenhados por Fernandes; (5) um resumo da “Crónica da Gui-
né” de Gomes Eanes de Zurara (1453), que Fernandes trasladou em 1506,
conforme informação sua; (6) o relato latino de Diogo Gomes de Sintra, “De
prima inuentione Guinee”, sobre descobertas henriquinas na África; e (7) o
primeiro roteiro de viagem português, “Este livro he de rotear”, importante
itinerário de navegação da costa atlântica, que inaugura o gênero em Portugal
(Baião 1940). Fernandes sabia que seu feito não era trabalho de pouca mon-
ta: no todo, os textos (seis em português e um em latim) compõem o mais
rico acervo de roteiros e relatos de viagens que mapeiam boa parte das con-
quistas portuguesas até a época manuelina.
A considerar os gêneros literários apresentados no livro, o texto sobre a
armada de Dom Francisco de Almeida é o único que se apresenta distinta-
mente como relato vivo de uma viagem marítima. Não é um diário de bordo,
conforme nos ensina João rocha Pinto, quando diz que boa parte dos relatos
de viagem aos quais se atribuiu a designação de diários de bordo (como a
relação da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia, atribuída a Álvaro
Velho, a carta de Pero Vaz de Caminha, ou as Navigazioni del capitano
Pedro Álvares scritta per un piloto portoghese e as Navigazioni verso le
Indie orientali scritta per Tomé Lopez, estas publicadas por ramusio na sua
famosa compilação, entre outros), não foi composta de textos escritos por
pilotos ou escrivães de bordo (405). Primeiro texto da “parte oriental” do
Manuscrito Valentim Fernandes, a relação da viagem de Dom Francisco de
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Almeida à Índia, descrita no códice como “Do viagẽ de Dõ Francisco Almey-


da primeyro viso rey de india e este quaderno foi treladado da nao Sã raffael
ẽ q~ hia Hans Mayr por scriuã da feytoria e capitã Fernã Suarez (MVF 11),1 é
portanto, um relato de viagem, e destaca-se dos demais textos da coletânea
por sua natureza essencialmente narrativa, ainda que o autor, aqui e ali, deixe
fluir a pena para a descrição de terras e costumes de nativos. o relato tem
sido atribuído ao alemão Hans Mayr, que seguia como escrivão da nau São
rafael, junto à gigantesca comitiva de Almeida, a qual saía de Lisboa a 25 de
março de 1505. A autoria, contudo, mantém-se incerta, e é possível que o
texto tenha sido ditado por Fernão Soares, capitão da referida nau da armada
do vice-rei (Silva 104).
Escrita em mau português, misturando gêneros, por vezes num sequen-
ciamento confuso de ideias, a relação anônima atribuída a Mayr segue o
modelo de relatos similares, num país em que “o saber escrever factuava-se
pelo domínio muito superficial desse mesmo dom, o que conduzia a uma
escrita bárbara e quase destituída de sintaxe, mas que era bastante para se ser
escriba” (Pinto 396). A narrativa, no entanto, a despeito das limitações esti-
lísticas do autor, apresenta-se como prosa de certa habilidade literária, mas
sem qualquer apelo emotivo, em que a exposição das terras e o retrato de cos-
tumes de nativos misturam-se aos acontecimentos da viagem de Almeida,
como se o narrador buscasse ambientar seus futuros leitores em terras exóticas
e, ao mesmo tempo, dar notícias de seus apelos comerciais. Não é incomum,
por exemplo, que faça anotações frequentes sobre os produtos das terras e rios
da costa oriental africana.
o que chama a atenção de qualquer leitor moderno, todavia, é a explosão
de violência em sua narrativa, ainda que o autor não faça sequer um comen-
tário pessoal sobre o que vê e relata. Dom Francisco de Almeida passa pela
costa índica africana deixando um rastro de sangue: em Quíloa (ilhas Kilwa
Kisiwani, atual Tanzânia), exige as páreas que o rei lhe deve, mantém mou-
ros cativos, invade casas à força de machados e permite que a frota portuguesa
saqueie a cidade, levando o roubo a uma casa para a partilha (“toda a gẽte se
meteo a roubar a cidade de muyta mercadoria e mãtjmentos”: MVF 15); em
Mombaça, frente à tentativa dos nativos de se protegerem, manda queimar
casas e navios, perseguir à morte o rei local, destruir riquezas, incendiar a cida-
de, pilhar o patrimônio e os bens de nativos, e por fim, fazer escravos, entre
eles, homens, mulheres, crianças, idosos (“muyta gẽte se cativou, molheres, e
delas brãcas e meninos e certos mercadores de Cãbaya”: MVF 15), e ainda

1
MVF refere-se daqui em diante ao Manuscrito Valentim Fernandes, conforme edição de
antónio baião (1940).
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trucidar pelo menos 1500 pessoas; já na Índia, à foz de um rio em onor,


Almeida queima parte das naus de corsários tributários do rei e mata outros
mouros; e em Coulão, vinga a morte de António de Sá, autorizando que seu
filho Lourenço de Almeida queime 24 naus de mouros e mate as tripulações.
Hans Mayr, ou quem quer que tenha escrito o relato, mantém-se um
observador impassível, como a entender que as ações de impiedade e violên-
cia são justificáveis porque compõem um típico cenário de guerra e conflito
político, em que os propósitos da armada portuguesa vinham sob o pretexto
da evangelização e do providencialismo que tanto caracterizara as intenções
do infante D. Henrique e o projeto milenarista de D. Manuel (Albuquerque
674-675). É flagrante que, ao relatar a crueldade no episódio dos 1500 mor-
tos em Mombaça, o autor emende que “nesta peleja toda nõ morrerõ mais de
cinco pessoas e muytos feridos e foy mais per virtude diuina q~ humana fecta”
(MVF 19). A ausência de anotações pessoais ou juízos críticos do autor, a par
de certa aridez e concisão de estilo que o caracterizam, não é da natureza do
gênero: em outros relatos de viagens, observações pessoais do “cronista” por
vezes aparecem na voz do discurso. Tomé Lopes, por exemplo, escrivão que
compôs a segunda armada de Vasco da Gama à Índia, em 1502, na esquadra
de Estêvão da Gama, não consegue evitar anotações profundamente pessoais
sobre a violência que presencia ao longo da viagem. No ataque gratuito dos
portugueses ao Miri, uma nau de ricos mercadores mouros de Calicute, que
roger Crowley define como “uma aplicação de violência marítima que na
verdade rejeitava o saque” (143), não se tratando, portanto, de pirataria,
Tomé Lopes (cujo relato fora inicialmente publicado em italiano, em meados
do século, por Giovanni Battista ramusio) admira-se da fria ferocidade do
capitão, quando mulheres muçulmanas, da proa do navio, levantavam suas
crianças e mostravam joias e objetos preciosos, implorando a misericórdia do
almirante. imperturbável, Gama mata a todos e queima o navio: “e questo fu
un lunedí, adí 3 d’ottobre 1502, che in tutti i dí di mia vita mi ricorderò;
quando quelli ch’erano in detti batelli cominciorono a far segni e chiamarci e
far segno con una bandiera”, diz o escrivão, num tom bem mais comovente e
subjetivo do que aquele usado por Hans Mayr (ramusio 703).
A expedição de Francisco de Almeida foi o maior empreendimento maríti-
mo português de seu tempo, do qual muitos investidores estrangeiros participa-
ram: foram 28 embarcações com 1500 homens, destinados a fundar o Estado
Português da Índia e instituir Almeida como governador e posteriormente vice-
rei (Cortesão i 35). Almeida, membro da ordem Militar de Santiago, levava a
bordo uma “carta de poder” e um regimento, que estabeleciam suas ações de
governo: construir fortalezas em Quíloa, Sofala, e depois em Cochim, Cananor
e Coulão; fechar a passagem do Mar Vermelho aos navios muçulmanos e vene-
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zianos, tarefa fracassada, conforme nos diz Subrahmanyam (273); propor trata-
dos de paz com o Samorim de Calicute, com expulsão dos mouros; e manter o
monopólio comercial do Índico (Silva 96-100). As atribuições eram imensas.
os diversos retratos históricos e biográficos de Almeida sugerem dispari-
dades: Pierre Chaunu diz que o vice-rei executou seu regimento “sem gênio”
(209) e com certa sombra de arcaísmo, especialmente a considerar que Gama
já executara muita violência mal calculada, o que só vinha reforçando a hos-
tilidade contra portugueses no Índico. Crowley admite sua maturidade e sua
incorruptibilidade frente ao império, apesar de Almeida ter permitido o saque
de Quíloa com ganhos pessoais de muitos (183). De toda forma, o futuro
vice-rei da Índia fora recrutado por conta de sua larga experiência política e
militar. Malyn Newit, no entanto, diminui sua força política, considerando
que o monopólio que Almeida buscou, mas não conseguiu, na imensa exten-
são do Índico, não significava necessariamente “sovereignty over population
or territory” (2). Ao longo da história, contudo, as nomeações para a Índia
eram distintivos insignes e levavam em conta não apenas nobreza, mas fidal-
guia de linhagem, bem como desempenho de cargos diplomáticos, recursos
pessoais, comendas de ordens militares, já que os dignitários exibiam con-
quista de honrarias, distinções políticas e riqueza (Cunha e Monteiro 98).
Se Hans Mayr, considerada a ausência de observações pessoais no seu
relato, não faz qualquer elogio nem repreensão ao comandante-mor da arma-
da, frente a seus atos de pilhagem e violência, a crônica portuguesa quinhen-
tista não lhe seguiu as pegadas. Almeida, primeiro vice-rei do Estado da
Índia, recebeu alusões honrosas pela historiografia portuguesa, e sua imagem
foi acolhida heroicamente, à época em que os primeiros historiadores joani-
nos, em meados do séc. xVi, reconstituíam a história da presença portuguesa
na África e na Ásia. João de Barros, nas Décadas, por exemplo, oferece-nos
um Francisco de Almeida moderado e brandamente nobre. os episódios refe-
rentes a sua viagem de 1505 não são divergentes, mas Barros sugere interpre-
tações mais generosas sobre Almeida: conforme sua crônica, logo depois da
construção da fortaleza de Angediva, quando o rei de onor, na Índia, lhe faz
dura oposição política, não respondendo às suas cordialidades, o vice-rei é
magnânimo: “Dom Francisco recebia estas cousas com brandura, dessimu-
lando a verdade que delas sentia, e mostrava aos seus mensajeiros gasalhado
dando-lhes dadivas e boas palavras, porque o tempo não era para mais” (i
115). Termos como “graciosamente” (130) e “brandura” (143) se desdobram
pela narrativa. Na destruição de Mombaça, Barros explica que saquearam a
cidade por necessidade, que os produtos foram repartidos “por capitanias, por se
não fazer alguma desordem” (i 108), e que dos mil escravizados que se fizeram,
Almeida mandou libertar muitos, mulheres e fracos, sobretudo, ficando com
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apenas duzentos, em ato de generosidade. Há certa insistência numa figura


mediadora e ordeira na personalidade de Almeida, especialmente nas ações
administrativas da Índia: Barros justifica que a morte de António de Sá se
dera em função de rivalidades comerciais com mouros, os “perturbadores da
paz”, e que Almeida enviara seu filho Lourenço, uma vez mais com “brandu-
ras”, para negociar a pacificação que os mouros rejeitavam (i 143).
o caso de Gaspar Correia, com seu imenso volume das Lendas da Índia,
cuja redação deve remontar até 1550, é mais elucidativo. Correia, que viveu
boa parte de sua vida no Estado Português da Índia, onde terá chegado ainda
jovem, por volta de 1512-1514, como soldado e posteriormente como secre-
tário de Afonso de Albuquerque, afirma, no prólogo de sua obra, que as
ações administrativas da Índia foram perdendo sua grandeza heroica, para se
submeterem a obras nada edificantes, em que imperaram a traição, a falta de
lei, a ingerência e a má administração:

Tomei este trabalho com gosto, porque os começos das cousas da india forão cousas tão doura-
das que parecia que não tinham debaxo o ferro que despois descobrirão; e proseguindo eu
minha teima fui ávante, porque não perdesse o que tinha trabalhado. Crecerão males, mingoa-
rão os bens, com que quase tudo se tornou viuos males, com que o escritor deles com razão se
pode chamar praguejador, e não bom escritor de tão illustres feitos e acaecimentos no descobri-
mento e conquista de tantos reynos e senhorios [. . .] (1-2).

o primeiro vice-rei da Índia, pelo menos sob as lentes de Gaspar Correia,


ainda vinha da geração dos nobres ilustres, anterior à decadência administra-
tiva do império, e terá seu nome, nas Lendas da Índia, estampado como o de
um sábio dotado da experiência e da ponderação próprias da idade madura
(Almeida já chegava aos 50 anos, quando assumiu as funções no Estado da
Índia). A figura do pai que envia o filho a dar solução aos problemas diplo-
máticos em Coulão, destinado a vingar a morte injusta de António de Sá,
acentua-lhe a nobreza, conferindo-lhe ares de maturidade. Mas o Almeida
das Lendas da Índia não é o homem pleno de branduras que João Barros
revelaria alguns anos depois. Suas virtudes são outras. Tomado de uma ira
santa e justa, é o homem que faz valer a lei e a obediência política. No episó-
dio do cerco e destruição de Mombaça, sua imagem de nobreza e dignidade
amplia-se frente à orgulhosa desobediência do rei local.
Na verdade, Mombaça não fazia parte dos planos iniciais da viagem de
Francisco de Almeida, pelo menos conforme o regimento da Índia, traçado
por D. Manuel: o vice-rei tomou a cidade para aumentar o número de territó-
rios africanos tributários, mostrando-se despótico e ameaçador na imposição
da vassalagem, mas libertando cativos para mostrar-se generoso ao rei local,
porém sob condições de tributos pesados (Silva 126). o episódio de Momba-
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ça é talvez o mais significativo da grandeza do Almeida traçado por Gaspar


Correia: os escravizados são levados ao batismo, e o rei local, arrependido de
sua desobediência, pede misericórdia, quando vê que não resiste mais às for-
ças portuguesas. É a oportunidade para que Almeida revele seu exercício de
tolerância e generosidade magnânima: não aceita que o rei de Mombaça se
deite a seus pés e ainda lhe diz que seu erro político fora o “mao conselho”
(Correia 557). Como um pai que perdoa a imatura rebeldia do filho, o vice-
rei assemelha-se a uma espécie de Deus irado, porém justo e de bom coração,
que se apieda quando lhe juram obediência. Seu discurso final ao rei de
Mombaça revela o maior dos gestos: devolve à gente local a cidade que ele
próprio tomara pela força das armas, sugerindo que, na futura paga dos tribu-
tos, o rei contribuirá com tal sentimento de liberdade, que o fará como se
estivesse “liure dessa obrigação” (558), palavras que lembram a ideia religio-
sa de “servidão em liberdade” do homem a Deus. o Almeida das Lendas da
Índia é tão santificado que ele mesmo chama seu secretário de “evangelista
de meus feitos” (567).
Fernão Lopes de Castanheda, que esteve na Índia e nas Molucas entre
1528 e 1538, e cuja imensa História do descobrimento e conquista da Índia
pelos portugueses saíra em volumes separados a partir de 1551, com grande
impacto editorial pela Europa, mostra-se autor mais objetivo. No sequencia-
mento dos episódios ligados à viagem de Francisco de Almeida, o vice-rei
que ele nos apresenta, a julgar pela idade madura do herói, será o da figura
do homem sábio e moderado. Embora tenha permitido o saque da cidade de
Quíloa, pois “soltou a gente que fosse roubar a cidade” (Castanheda 214),
Almeida revela-se o homem maduro, religioso, de espírito providencialista,
agradecendo a Deus por ter lhe dado uma cidade de maneira tão pacífica. Seu
discurso aos soldados portugueses, depois da tomada de Mombaça, é de
moderação e maturidade religiosa:
falouos como homem que sou de cincoenta anos os quaes dos quinze gastey na guerra de que
sey arrezoadamẽte, & outra vez vos afirmo que se não vira a cidade pera leuarmos auante o que
nos parece que a não cometera, por isso senhores encomẽdemosnos a nosso senhor & e a sua
gloriosa madre, de cuja assunçã a manhã a igreja faz festa, porque em dia tão solenne & affina-
do cõ sua ajuda façamos hũ feito tão notauel como este sera (219).

Mais que isso: Almeida recusa decisões arbitrárias, pois que agrega junto a si
um grupo de conselheiros que não permite, por exemplo, a conquista de
Mogadíscio, que ele pretendia invadir.
A considerar a historiografia joanina e pós-joanina, Damião de Góis, um
dos humanistas mais eruditos de sua geração, talvez seja o único a tecer uma
imagem neutra de Francisco de Almeida, na sua imensa Crônica do felicíssimo
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rei D. Manuel, que saiu entre 1566-1567. Góis, de olhar historiográfico mais
moderno, relata, sim, os mesmos feitos e atrocidades do vice-rei, suas orde-
nações de captura, saque, pilhagem e incêndios de cidades e navios, mas
sempre a considerar, como Hans Mayr em seu relato, que se trata de circuns-
tâncias de guerra e conquista política, ainda que por vezes denuncie certas
atitudes menos nobres de Almeida, como manter entre os escravizados de
Mombaça “mulheres muito alvas e formosas” (Góis i 13), em notória escravi-
dão sexual, e autorizar o massacre dos 1500 mortos na inútil tentativa de resis-
tência do rei local. o Francisco de Almeida que ele nos apresenta não sai um
herói de virtudes estoicas, mas também não sai um conquistador furioso e colo-
nialista disfarçado de régio diplomata dos interesses comerciais portugueses. De
outro lado, quase um século depois, o historiador português Manuel de Faria e
Sousa, radicado na Espanha, ainda insistia, na sua Ásia Portuguesa, publicada
postumamente entre 1666-1675, na idealização de um Francisco de Almeida
humilde e moderado, clemente com os submissos e tolerante com africanos que
não se submetem à égide portuguesa por vaidade e orgulho (187).
A historiografia humanista portuguesa, a exemplo de seu projeto estoico
e de sua herança medieval, engalanou os heróis do passado. Castanheda dizia
que “nas historias se achão os melhores exemplos que podem ser pera qual-
quer estado de vida” (207). Maria Augusta Cruz observa que, no registro dos
historiadores quinhentistas, ainda que um cronista não tenha conhecido o tra-
balho do outro, os episódios coincidem, conforme fontes documentais ou
crença na oralidade, porém, “many of the interpretations or versions presen-
ted by the author in relation to a given episode reflect the current opinion of
his contemporaries” (251). Desde o séc. xV, em Portugal, as crônicas vinham
promovendo a recuperação dos grandes feitos e virtudes estoicas, inspiradas
em Sêneca, na medida em que os nobres sustentavam modelos de grandeza
heroica, até mesmo em seus gestos e aparência pessoal (França 161). É a his-
tória como exemplum (Parzewski 375). Analisando o epitalâmio De nuptiis
Eduardi Infantis Portugalliae atque Isabellae Theodosii Ducis Brigantiae
Germanae (1552), do poeta Manuel da Costa, Alice da Silva Cunha observa
que, na cena em que aparecem as tapeçarias históricas que adornam as pare-
des da mansão ducal de Vila Viçosa, Francisco de Almeida é representado
como o administrador que combate a corrupção e a tirania, no momento em
que destitui o rei usurpador de Quíloa, para restaurar a ordem legítima e
naturalmente submissa ao poder régio português (28). A permanência dessa
ordem estoica na representação da nobreza segue pelo menos até o séc. xViii:
lendo a Relação da viagem que do Porto de Lisboa fizerao os Ilmos. e
Excmos. Senhores Marqueses de Távora (1752), de Francisco de raymundo
Moraes e Pereira, relato da viagem de um vice-rei para assumir o controle do
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Estado da Índia (texto, portanto, do mesmo gênero do de Hans Mayr), João


Vicente Melo observa que a representação do vice-rei D. Francisco de Távora
se aproxima de uma imagem monárquica. Panegírico em sua linguagem e
essência, o relato sugere a figura do vice-rei como ordeiro e justiceiro, da
vice-rainha, como religiosa e erudita, e por fim, da estrutura do navio como
espelho da organização hierárquica da corte portuguesa (Melo 24).
De tudo isso, é possível depreender uma complexa base de filtros ideológi-
cos na composição historiográfica da figura de D. Francisco de Almeida, que
talvez não corresponda exatamente àquela imagem do capitão-mor descrito por
Hans Mayr, o escrivão que pôs em cena o comandante a assumir a maior arma-
da que se fizera à Índia até então, deixando um rastro de sangue pela África, no
controle de 1500 homens e 28 embarcações equipadas com a mais tecnológica
artilharia de seu tempo. Há um descompasso entre o relato de Mayr e as crôni-
cas futuras, que relativizaram a violência. Almeida, apenas um homem violento
e obcecado pela construção de feitorias e pela tributação do império, será trans-
formado no aristocrata moderado, justo, religioso, maduro e gracioso, even-
tualmente no Deus tomado de uma ira santa que se apieda dos revoltados e
arrependidos que a ele se oferecem para se pôr de joelhos.
o relato de Mayr, ou de quem o tenha escrito, não sugere virtudes nem
repreensões, mas apenas a ação de um administrador do império que precisa
subjugar povos incultos e rebeldes à lei de um regimento que ele traz a bordo.
Para o capitão-mor, a África é uma espécie de terra nullius, ou terra de nin-
guém, e seus povos são uma massa indiferenciada (Blackmore 49), como o
compreenderam as bulas papais concedidas à ordem de Cristo desde o século
anterior, as quais autorizavam a escravização e a conversão dos povos abaixo
das terras de Guiné, termo genérico dos tempos henriquinos para designar
quaisquer povos abaixo de Marrocos. Em carta a D. Manuel, datada de dezem-
bro de 1505, o próprio Almeida não comenta as batalhas e destruições na Áfri-
ca e na Índia, mas apenas as feitorias que construíra, bem como as notícias
administrativas: o reinado de Mohamed Arconi em Quíloa, as nomeações para
capitães de fortalezas, os alcaides, etc. Mombaça é apenas mencionada sem
apontamento importante (Baião, “A política de D. Francisco de Almeida” 105),
o que revela que, para ele, o cerco da cidade e o massacre dos 1500 não eram
notícias relevantes para a administração do império. Sim, e ainda hoje historia-
dores relativizam a violência da expansão portuguesa (Hein 50; Silva 131).
Autores de relatos de viagens, escrevendo às pressas, sem estilo literário,
quase ao calor da hora, não tiveram tempo nem interesse para desenhar heróis.
No famoso relato da primeira viagem de Vasco da Gama, atribuído a Álvaro
Velho, há confronto e desentendimento por todos os lugares onde os portu-
gueses passam, e a gente do Gama é ridicularizada por conta das mercadorias
400 romance notes

medíocres que foram dadas ao Samorim de Calicute (Neves 97). Na outra


famosa Navigazioni del capitano Pedro Álvares, publicada por ramusio,
conhecida como Relação do piloto anônimo, o escrivão narra episódios nada
heroicos do almirante, como o ataque a um navio mercantil que trazia arroz
de Calicute a Cochim, seguido da queima gratuita da embarcação (ramusio
648). Algo que se aproxima das denúncias de Fernão Mendes Pinto na sua
Peregrinação. outros gêneros literários fariam oposição ao épico, com retra-
tos desconcertantes de fracasso do império, como as histórias trágicas de
naufrágios (Doré 102).
Escrivães de viagens revelaram o que cronistas eruditos esconderam: o
anseio português não de comércio, mas de sujeição dos povos africanos e
asiáticos, escravizados e convertidos à força da espada. Quando Mayr infor-
ma que “Ho capitã mor mãdou q~ roubasse~ a cidade” (MVF 18), trata-se de um
dado a mais para a contabilidade do império. Quando Gaspar Correia põe esse
mesmo capitão a chamar seu secretário de “evangelista de meus feitos” (567),
trata-se de um dado a mais para a edificação mítica de um império que vendeu
aos papas a ideia de que seus massacres colonialistas eram apenas uma cruzada.
CENTro UNiVErSiTÁrio DE PAToS DE MiNAS

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