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Por volta de 1507, o impressor e tradutor alemão conhecido por seu nome
português Valentim Fernandes, nascido na Morávia e radicado em Lisboa
desde o fim do séc. xV, enviava a Konrad Peutinger, humanista, diplomata,
antiquário e secretário municipal de Augsburgo, um precioso manuscrito em
latim e português contendo vários textos sobre viagens marítimas portugue-
sas de gêneros diversos. o códice, que só foi descoberto no séc. xix (Baye-
rische Staatsbibliothek, Codex Hispanicus, 27), pertencera à biblioteca
pessoal de Peutinger. Damião de Góis, em carta escrita em 1542 a João Dio-
go Fugger, deu notícia do manuscrito na casa de Peutinger, admirando-se de
que o livro de nada servia ao alemão, porque este ignorava o idioma portu-
guês (Torres i 349). o códice só foi publicado em 1940, sob o nome de Manus-
crito Valentim Fernandes (Baião 1940).
Ainda hoje não é possível saber se Fernandes enviara a Peutinger um
conjunto de textos fragmentados, de origens distintas, ou se ele mesmo os
copiara, enviando-os encadernados em livro. Ambos os interlocutores ale-
mães vinham de interesses comuns nas viagens e descobertas portuguesas.
Fernandes, por certo um dos mais importantes nomes quinhentistas ligados à
impressão de manuscritos relativos à literatura dos descobrimentos em Portu-
gal, publicara em 1502 a primeira coletânea portuguesa impressa de viagens,
incluindo num mesmo volume uma versão das viagens de Marco Polo, o
livro de Nicolau Venetto e a carta de Jerônimo de Santo Estevão, numa época
em que “não se julgou avisado dar prioridade a obras sobre os Descobrimen-
tos” (Andrade 352) e em que a edição de livros religiosos dominava o cená-
rio editorial manuelino. o alemão, que dera à estampa os primeiros livros
ilustrados em Lisboa, como o famoso Vita Christi, de Ludolfo da Saxônia
(1495), vinha granjeando notoriedade como pioneiro das artes tipográficas
em terras portuguesas. As anotações manuscritas de 300 páginas em portu-
Romance Notes 58.3 (2018): 391-401
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guês e latim que ele enviava ao amigo Peutinger cedo revelou-se a mais
importante coletânea de literatura de viagens da primeira década do novo
século. Mas o documento ganhou a estrada e foi estacionar em terras estran-
geiras, escondido sob a guarda de um homem culto que, no entanto, não o
podia ler na sua totalidade. o tesouro não era propriedade portuguesa, e cro-
nistas e humanistas, como Damião de Góis, ressentiram-se da sua falta.
o trabalho de recolha e organização dos blocos temáticos do manuscrito,
seja ele obra de Valentim Fernandes, seja de Peutinger, seguiu um critério
geográfico na exposição das descobertas portuguesas: há um bloco oriental,
na primeira parte, e um bloco africano, na segunda. A primeira série, com
dois textos, inclui (1) um relato da expedição do capitão-mor Dom Francisco
de Almeida, em 1505, quando de sua primeira viagem para a fundação do
Estado da Índia; e (2) uma descrição de autor anônimo acerca da Índia e
“Das ylhas de Dyue” (Maldivas). A segunda série ocupa-se essencialmente
de descrições e roteiros de viagens permeando a costa ocidental da África, e
contém (3) uma rica “Descripção de Ceuta e norte de África”, escrita pelo
próprio Valentim Fernandes, a partir de testemunhos de viajantes portugue-
ses; (4) uma relação histórico-geográfica de arquipélagos e ilhas atlânticas,
com mapas desenhados por Fernandes; (5) um resumo da “Crónica da Gui-
né” de Gomes Eanes de Zurara (1453), que Fernandes trasladou em 1506,
conforme informação sua; (6) o relato latino de Diogo Gomes de Sintra, “De
prima inuentione Guinee”, sobre descobertas henriquinas na África; e (7) o
primeiro roteiro de viagem português, “Este livro he de rotear”, importante
itinerário de navegação da costa atlântica, que inaugura o gênero em Portugal
(Baião 1940). Fernandes sabia que seu feito não era trabalho de pouca mon-
ta: no todo, os textos (seis em português e um em latim) compõem o mais
rico acervo de roteiros e relatos de viagens que mapeiam boa parte das con-
quistas portuguesas até a época manuelina.
A considerar os gêneros literários apresentados no livro, o texto sobre a
armada de Dom Francisco de Almeida é o único que se apresenta distinta-
mente como relato vivo de uma viagem marítima. Não é um diário de bordo,
conforme nos ensina João rocha Pinto, quando diz que boa parte dos relatos
de viagem aos quais se atribuiu a designação de diários de bordo (como a
relação da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia, atribuída a Álvaro
Velho, a carta de Pero Vaz de Caminha, ou as Navigazioni del capitano
Pedro Álvares scritta per un piloto portoghese e as Navigazioni verso le
Indie orientali scritta per Tomé Lopez, estas publicadas por ramusio na sua
famosa compilação, entre outros), não foi composta de textos escritos por
pilotos ou escrivães de bordo (405). Primeiro texto da “parte oriental” do
Manuscrito Valentim Fernandes, a relação da viagem de Dom Francisco de
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1
MVF refere-se daqui em diante ao Manuscrito Valentim Fernandes, conforme edição de
antónio baião (1940).
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zianos, tarefa fracassada, conforme nos diz Subrahmanyam (273); propor trata-
dos de paz com o Samorim de Calicute, com expulsão dos mouros; e manter o
monopólio comercial do Índico (Silva 96-100). As atribuições eram imensas.
os diversos retratos históricos e biográficos de Almeida sugerem dispari-
dades: Pierre Chaunu diz que o vice-rei executou seu regimento “sem gênio”
(209) e com certa sombra de arcaísmo, especialmente a considerar que Gama
já executara muita violência mal calculada, o que só vinha reforçando a hos-
tilidade contra portugueses no Índico. Crowley admite sua maturidade e sua
incorruptibilidade frente ao império, apesar de Almeida ter permitido o saque
de Quíloa com ganhos pessoais de muitos (183). De toda forma, o futuro
vice-rei da Índia fora recrutado por conta de sua larga experiência política e
militar. Malyn Newit, no entanto, diminui sua força política, considerando
que o monopólio que Almeida buscou, mas não conseguiu, na imensa exten-
são do Índico, não significava necessariamente “sovereignty over population
or territory” (2). Ao longo da história, contudo, as nomeações para a Índia
eram distintivos insignes e levavam em conta não apenas nobreza, mas fidal-
guia de linhagem, bem como desempenho de cargos diplomáticos, recursos
pessoais, comendas de ordens militares, já que os dignitários exibiam con-
quista de honrarias, distinções políticas e riqueza (Cunha e Monteiro 98).
Se Hans Mayr, considerada a ausência de observações pessoais no seu
relato, não faz qualquer elogio nem repreensão ao comandante-mor da arma-
da, frente a seus atos de pilhagem e violência, a crônica portuguesa quinhen-
tista não lhe seguiu as pegadas. Almeida, primeiro vice-rei do Estado da
Índia, recebeu alusões honrosas pela historiografia portuguesa, e sua imagem
foi acolhida heroicamente, à época em que os primeiros historiadores joani-
nos, em meados do séc. xVi, reconstituíam a história da presença portuguesa
na África e na Ásia. João de Barros, nas Décadas, por exemplo, oferece-nos
um Francisco de Almeida moderado e brandamente nobre. os episódios refe-
rentes a sua viagem de 1505 não são divergentes, mas Barros sugere interpre-
tações mais generosas sobre Almeida: conforme sua crônica, logo depois da
construção da fortaleza de Angediva, quando o rei de onor, na Índia, lhe faz
dura oposição política, não respondendo às suas cordialidades, o vice-rei é
magnânimo: “Dom Francisco recebia estas cousas com brandura, dessimu-
lando a verdade que delas sentia, e mostrava aos seus mensajeiros gasalhado
dando-lhes dadivas e boas palavras, porque o tempo não era para mais” (i
115). Termos como “graciosamente” (130) e “brandura” (143) se desdobram
pela narrativa. Na destruição de Mombaça, Barros explica que saquearam a
cidade por necessidade, que os produtos foram repartidos “por capitanias, por se
não fazer alguma desordem” (i 108), e que dos mil escravizados que se fizeram,
Almeida mandou libertar muitos, mulheres e fracos, sobretudo, ficando com
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Tomei este trabalho com gosto, porque os começos das cousas da india forão cousas tão doura-
das que parecia que não tinham debaxo o ferro que despois descobrirão; e proseguindo eu
minha teima fui ávante, porque não perdesse o que tinha trabalhado. Crecerão males, mingoa-
rão os bens, com que quase tudo se tornou viuos males, com que o escritor deles com razão se
pode chamar praguejador, e não bom escritor de tão illustres feitos e acaecimentos no descobri-
mento e conquista de tantos reynos e senhorios [. . .] (1-2).
Mais que isso: Almeida recusa decisões arbitrárias, pois que agrega junto a si
um grupo de conselheiros que não permite, por exemplo, a conquista de
Mogadíscio, que ele pretendia invadir.
A considerar a historiografia joanina e pós-joanina, Damião de Góis, um
dos humanistas mais eruditos de sua geração, talvez seja o único a tecer uma
imagem neutra de Francisco de Almeida, na sua imensa Crônica do felicíssimo
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rei D. Manuel, que saiu entre 1566-1567. Góis, de olhar historiográfico mais
moderno, relata, sim, os mesmos feitos e atrocidades do vice-rei, suas orde-
nações de captura, saque, pilhagem e incêndios de cidades e navios, mas
sempre a considerar, como Hans Mayr em seu relato, que se trata de circuns-
tâncias de guerra e conquista política, ainda que por vezes denuncie certas
atitudes menos nobres de Almeida, como manter entre os escravizados de
Mombaça “mulheres muito alvas e formosas” (Góis i 13), em notória escravi-
dão sexual, e autorizar o massacre dos 1500 mortos na inútil tentativa de resis-
tência do rei local. o Francisco de Almeida que ele nos apresenta não sai um
herói de virtudes estoicas, mas também não sai um conquistador furioso e colo-
nialista disfarçado de régio diplomata dos interesses comerciais portugueses. De
outro lado, quase um século depois, o historiador português Manuel de Faria e
Sousa, radicado na Espanha, ainda insistia, na sua Ásia Portuguesa, publicada
postumamente entre 1666-1675, na idealização de um Francisco de Almeida
humilde e moderado, clemente com os submissos e tolerante com africanos que
não se submetem à égide portuguesa por vaidade e orgulho (187).
A historiografia humanista portuguesa, a exemplo de seu projeto estoico
e de sua herança medieval, engalanou os heróis do passado. Castanheda dizia
que “nas historias se achão os melhores exemplos que podem ser pera qual-
quer estado de vida” (207). Maria Augusta Cruz observa que, no registro dos
historiadores quinhentistas, ainda que um cronista não tenha conhecido o tra-
balho do outro, os episódios coincidem, conforme fontes documentais ou
crença na oralidade, porém, “many of the interpretations or versions presen-
ted by the author in relation to a given episode reflect the current opinion of
his contemporaries” (251). Desde o séc. xV, em Portugal, as crônicas vinham
promovendo a recuperação dos grandes feitos e virtudes estoicas, inspiradas
em Sêneca, na medida em que os nobres sustentavam modelos de grandeza
heroica, até mesmo em seus gestos e aparência pessoal (França 161). É a his-
tória como exemplum (Parzewski 375). Analisando o epitalâmio De nuptiis
Eduardi Infantis Portugalliae atque Isabellae Theodosii Ducis Brigantiae
Germanae (1552), do poeta Manuel da Costa, Alice da Silva Cunha observa
que, na cena em que aparecem as tapeçarias históricas que adornam as pare-
des da mansão ducal de Vila Viçosa, Francisco de Almeida é representado
como o administrador que combate a corrupção e a tirania, no momento em
que destitui o rei usurpador de Quíloa, para restaurar a ordem legítima e
naturalmente submissa ao poder régio português (28). A permanência dessa
ordem estoica na representação da nobreza segue pelo menos até o séc. xViii:
lendo a Relação da viagem que do Porto de Lisboa fizerao os Ilmos. e
Excmos. Senhores Marqueses de Távora (1752), de Francisco de raymundo
Moraes e Pereira, relato da viagem de um vice-rei para assumir o controle do
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