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Presidencialismo mutante

Muitos analistas do modelo político brasileiro mostram


contrastes significativos entre a versão de 1946 do
presidencialismo de coalizão e a versão de 1988, aos
quais atribuem os ganhos de governabilidade do modelo
atual. Em síntese, na primeira versão o presidente era
relativamente fraco e o Congresso relativamente forte.
Na segunda, inversamente, o presidente é relativamente
forte e o Congresso relativamente fraco. Todavia, é
preciso considerar que o bicameralismo passou por
mudança importante em 1988, e o Senado conquistou o
poder de iniciar legislação, equiparando=se à Câmara em
vários aspectos. Isso aumenta a dependência do
presidente à coalizão no Legislativo, mesmo sendo muito
mais forte do que na versão anterior.

As duas versões têm em comum pelo menos dois


elementos, eu diria, definidores do nosso
presidencialismo de coalizão. A coalizão aparece como
um imperativo em ambos, porque é improvável que o
partido do presidente alcance a maioria nas duas Casas
do Legislativo e praticamente impossível que chegue à
maioria necessária para emendar a Constituição (60%). O
segundo elemento é que o eleitorado do presidente é
nacional e plural, levando-o a ter uma agenda mais
abrangente do que a agenda dos partidos de sua
eventual coalizão.

O eleitorado brasileiro é muito heterogêneo social e


regionalmente. A correlação eleitoral de forças entre os
partidos varia muito ao longo da federação. As
características sociológicas do eleitorado, a lógica da
representação proporcional com lista aberta e as regras
para organização partidária propiciam e incentivam a
fragmentação partidária. Essa combinação dificulta ainda
mais a conquista da maioria parlamentar por um só
partido, além de gerar bancadas com agendas mais
diferenciadas, carregadas de demandas locais,
corporativistas e setoriais.

Dotado de poder de agenda, o presidente tem a


capacidade de coordenar e dirigir o processo legislativo.
Essa possibilidade se assenta em vários privilégios de
agenda. O chefe do Executivo tem a iniciativa legislativa
preferencial. Isto é, se ele se mostra disposto a
implementar sua agenda legislativa, tende a dominar a
pauta de deliberação no Congresso, deixando pouco
espaço — em geral não superior a 20% — para as
propostas do próprio Poder Legislativo. A presidência
tem exclusividade de iniciativa em vários campos, como o
orçamentário. Tem a capacidade de determinar a
tramitação em urgência de seus projetos, portanto, a
precedência na deliberação das proposições de sua
autoria que considera prioritárias. A primeira faculdade,
de preferência, é genérica; a segunda, específica, aplica-
se ao que é prioritário. Tem o poder de legislar por
decretos e medidas provisórias. E tem o poder de veto.
Não é uma lista exclusiva, mas contém os elementos
mais decisivos na atribuição de maior poder de agenda
ao presidente do que ao Congresso.

O que limita esse poder quase absoluto de agenda da


Presidência, no presidencialismo de coalizão brasileiro? A
coalizão, os mecanismos contramajoritários de freios e
contrapesos, como o controle jurisdicional de
constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal, o
controle de contas pelo TCU, a defesa da probidade
administrativa pelo Ministério Púbico, entre outros. No
plano político, o fator decisivo que qualifica o poder
presidencial é a disposição e a capacidade de formar
uma coalizão majoritária, o mais homogênea e compacta
possível dado o grau vigente de fragmentação partidária,
e compartilhar com ela parte os bônus decorrentes
desse poder. No plano substantivo, a principal
condicionante é ser capaz de formular uma agenda que,
respeitando suas preferências ideológicas, expresse a
pluralidade de interesses presentes na maioria que o
elegeu.

Na conjuntura atual, estamos vivendo o período seguinte


a uma ruptura político-eleitoral, que desestabilizou nosso
modelo político, na versão da Constituição de 1988.
Tratei da ruptura político-eleitoral, que desfez o padrão
de disputa bipartidária pela presidência entre PT e PSDB,
com dominância do primeiro, e a competição
multipartidária nas proporcionais, visando à maximização
de bancadas para formar a coalizão de governo, em
"Polarização radicalizada e ruptura eleitoral"1 e em
"Eleições Disruptivas". Mas houve, também, uma ruptura
político-ideológica muito significativa. Com a polarização
extremada, a vitória de Bolsonaro levou à Presidência,
pela primeira vez, uma agenda antagônica tanto à
adotada pelo PSDB nos governos FHC — uma terceira via
social-liberal — quanto à do PT — social-democrática,
preservando partes da pauta social-liberal anterior.
Adicionalmente, o atual mandatário rejeita e antagoniza
as condições institucionais do modelo político, por
confundi-las com práticas de clientelismo e corrupção.
As áreas substantivas de divergência absoluta são
aquelas mais sensíveis à interpretação ideológica,
direitos humanos, liberdade de expressão e cátedra
(educação, ciência e cultura), meio ambiente, "minorias",
limitação de posse e porte de armas, aborto.

Os problemas maiores começam pela recusa do


presidente Bolsonaro em governar de acordo com o
modelo institucional, adotando novos critérios de
formação da coalizão, sem toma-lá-dá-cá espúrio e sem
corrupção. Prefere governar como presidente minoritário,
negociando — com enorme dificuldade — maiorias
eventuais e casuais e apelando à sua — declinante —
base social para pressionar o Congresso. Agravam-se os
problemas com sua preferência por uma agenda estreita,
miúda, que representa apenas o núcleo minoritário dos
que o elegeram. O quadro de complicações se completa
com um presidente de mentalidade autoritária, arroubos
populistas, politicamente fraco, que usa os poderes
presidenciais com imperícia.

Presidente minoritário, em uma relação estressada com o


Congresso, recorrendo a seus poderes de agenda e
decreto com imperícia e estreiteza de objetivos,
convocando sua base social às ruas, em meio à qual
sobressaem grupos que atacam as instituições
republicanas, namora — para usar um termo do seu
vocabulário — a instabilidade política crescente. Abre
uma larga brecha para a iniciativa do Legislativo,
transferindo para ele, inadvertidamente, parte do poder
de agenda. Aqueles setores unidirecionados, como os
que só miram o curto prazo e, no momento, a reforma da
previdência, vêem, com alívio e esperança, o que
chamam de protagonismo do Legislativo. Tratei desse
protagonismo em "O mito do Legislativo como agente
principal no presidencialismo". Não percebem que, no
contexto de relações crispadas, como no momento, a
maior parte do ativismo legislativo tende a ser
retaliatório. O protagonismo do Legislativo manifesta-se
como crise, não como alternativa funcional, mesmo se
permite a aprovação de uma ou outra medida relevante.

De fato, as derrotas recentes de Bolsonaro no Congresso


têm essa natureza retaiatória. Primeiro, o maior
engessamento orçamentário, ampliando a faixa
impositiva das liberações de recursos, numa tentativa de
travar a discricionariedade do presidente na alocação dos
recursos orçamentários, em retaliação à negativa de
negociar emendas. Tratei extensamente desse poder
discricionário do presidente sobre o orçamento e o gasto
público e suas disfuncionalidades em Presidencialismo
de Coalizão: Raízes e Trajetória do Modelo Político
Brasileiro.2 Adicionalmente, aumenta a tendência de
recurso ao decreto legislativo, para barrar decretos
presidenciais que avançam sobre as atribuições do
Congresso. Acaba de acontecer com o decreto liberando
a posse e o porte de armas. As mudanças nas regras,
sobretudo nos prazos, de exame das medidas
provisórias, limitarão de forma não desprezível esta
prerrogativa presidencial. Acopladas às mudanças que já
haviam sido feitas em períodos anteriores, dificultam
muito a aprovação de MPs mais controvertidas, caso da
maioria daquelas assinadas por Bolsonaro.

Presidente politicamente fraco, minoritário, com atitudes


atritosas com o Congresso, insistindo em uma agenda
unilateral e pouco representativa da maioria eleitoral que
eventualmente o elegeu, com a popularidade em queda,
tende a ter poder decrescente de atração das forças
políticas. O mais provável é que o quadro evolua para o
afastamento dessas forças políticas, que passam a
gravitar em torno de outras lideranças políticas. Isso já
começou a acontecer. Daí o poder de atração do
presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e, até, do
presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Maia não era
uma liderança forte, antes do novo governo. No vácuo
gerado pelo presidente e pela demissão eleitoral de
muitas lideranças, cresceu. Alcolumbre, em condições
normais de temperatura e pressão não chegaria nem à
presidência das comissões-chave do Senado. Preside a
Casa e começa a se constituir em um polo de atração. É,
neste mesmo sentido, sintomática a aglutinação de uma
maioria pelo senador do PSDB, Tasso Jereissati, ara
salvar o marco regulatório do saneamento. Ele
coordenou, com sucesso, a aprovação, em regime de
urgência, do marco regulatório para o saneamento
básico, em lugar da MP presidencial com o mesmo
objetivo, que caiu por decurso de prazo. Uma matéria
típica de política pública, em uma área de déficit
vergonhoso para um país do porte do Brasil, que o
Executivo foi incapaz de articular e terminou conduzida
por um senador.

A judicialização tornou-se outro fator de limitação do


poder presidencial. O caso, mais recente, é o do decreto
que extingue conselhos na administração federal, alguns
essenciais, como o que regula Internet.

Há muito fio desencapado nessa transição pós-ruptura


político-eleitoral. Basta juntar três e se terá um curto-
circuito institucional capaz de comprometer a
governabilidade. Houve a ruptura do quadro político-
institucional anterior, mas não houve nem reforma, nem
substituição do modelo político. Portanto, ele está
falhando serialmente. No momento, está em estado
disfuncional. Algumas medidas mais técnicas ou de
necessidade urgente, com pouca perda para as bases
dos parlamentares, pode passar. Mas há paralisia
crescente e áreas essenciais de governo totalmente
paralisadas sob comando inepto, sem base política,
como na Educação. Um presidente minoritário e com
mentalidade autoritária em atrito com o Legislativo e
criando antagonismos plurais na sociedade representa
risco presente e iminente de crise de governança. Ele
descontenta mais do que satisfaz, como mostram as
pesquisas de popularidade. Perde recursos de poder, no
movimento de redução dos poderes presidenciais pelo
Legislativo e pelo Judiciário. Se as análises de
especialistas competentes e de variada tendência estão
certas, este é um quadro premonitório de crises de
governabilidade.
1. Sérgio Abranches — "Polarização radicalizada e
ruptura eleitoral", em Sérgio Abranches e outros —
Democracia em Risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje,
Companhia das Letras, 2019, pp 11-32.

2. Sérgio Abranches — Presidencialismo de Coalizãoi:


raízes de trajetória do modelo político brasileiro,
Companhia das Letras, 2018.

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