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Este artigo apresenta uma análise sobre as políticas neoliberais, pela sua tendência à fragmen-
relações entre pobreza e a formação de um bairro tação, erradicaria qualquer possibilidade de cons-
pobre de Salvador,2 tema relativo à ocupação do trução de novos movimentos sociais ou
espaço urbano e à formação de novas identidades identitários.3
sociais num contexto de disputa por direitos de Para tanto, o artigo estrutura-se em quatro
cidadania e de processos de redemocratização por partes: a primeira contextualiza a emergência de
que passou a sociedade brasileira desde a década uma “nova pobreza urbana” no momento atual,
de 80, questionando certas teses amplamente di- defendendo uma abordagem muticulturalista da
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conhecimento e de sua identidade social. O artigo cremento, porém, não chega a reduzir os contin-
recompõe, na terceira parte, elementos empíricos gentes de pobres, as taxas de desemprego nem a
da história de formação do Bairro da Paz até o pre- violência urbana (Kowarick, 2002; Ferreira, 2000;
sente, com base em dados no arquivo do CEAS e Duhau, 2005). Tampouco as atuais políticas de
de depoimentos de alguns moradores, em especi- combate à pobreza estariam, no entender de certos
al de lideranças locais. Finalmente, a quarta e últi- autores, enfrentando realmente o problema das
ma parte sintetiza elementos da história do Bairro relações estruturais que mantêm largas parcelas de
da Paz, no âmbito dos “novos movimentos soci- população em condições de marginalidade frente
ais” que operam num sentido ativo da participa- a certos direitos sociais (Schwartzman, 2004; Ivo,
ção cidadã, mas também do reconhecimento soci- 2005; Lavinas, 2006).5
al através de estratégias de auto-controle da ima- A “nova pobreza” é descrita por alguns como
gem do bairro e de seus moradores, no espaço um fenômeno urbano dos conjuntos habitacionais,
público da cidade. pois o acesso à moradia (com serviços básicos e,
muitas vezes, título de propriedade) foi soluciona-
do apenas parcialmente, enquanto outros proble-
POBREZA, “NOVA POBREZA” E RECONHECI- mas se mantiveram ou se agudizaram. Essa situa-
MENTO ção acrescentaria uma dimensão de carências sim-
bólicas às materiais, devido a suas próprias carac-
Nas últimas décadas, alguns estudos têm terísticas, como a “... guetização, concentração ge-
apontado a formação de um novo tipo de “pobre- ográfica e social da população pobre” (Labbé, 2006,
za”, relacionada aos efeitos da reestruturação do p. 209). Já outra vertente de autores coloca a dis-
mercado de trabalho e à retração da seguridade cussão em torno da “nova pobreza” nos termos de
social, que jogam largos contingentes de trabalha- “direitos” e “cidadania”. Enquanto, para alguns, o
dores em situação de maior fragilidade (Lavalle e cenário político e econômico atual trouxe uma
Castello, 2004; Ivo, 2005; Labbé, 2006). Embora retração de direitos alcançados em décadas anteri-
essa seja uma tendência mundial, os efeitos de tal ores – e uma conseqüente fragilização da capacida-
reestruturação têm características particulares, a de de mobilização e ação dos setores mais pobres
depender de processos históricos locais. Assim, da sociedade –, para outros, essa perda de direitos
no Brasil, onde nunca se alcançou uma situação não provocou necessariamente uma desmobilização
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de pleno emprego nem de ampla disseminação dos das camadas populares, a exemplo do debate rea-
direitos sociais, como em países do velho mundo, lizado no LARR Research Fórum intitulado From
às parcelas de trabalhadores – cuja situação se de- The Marginality Of The 1960s To The “New Poverty”
teriorou face aos direitos sociais adquiridos entre Of Today. Autores como Jelin (2004), Roberts (2004)
1930 e 1980 – somam-se aqueles que sempre se e Gledhill (2005) apontam para a imprevisibilidade
encontraram à margem dos processos produtivos das “reações” e apropriações locais, mesmo às
formalizados, especialmente nos grandes centros políticas de alcance internacional.
urbanos (Schwartzman, 2004, p. 27-28, 31-33). No
mesmo período, no entanto, verifica-se, contradi- do interpretações conflitantes acerca da efetividade ou
toriamente, uma ampliação dos serviços prestados não de ações estatais, a depender do recorte utilizado
pelas pesquisas (se de teor micro ou macro sociológico).
pelo Estado à população, que aparecem nas esta- 5
Ivo (2005) aponta uma tendência atual de se enfrentar
os efeitos negativos da pobreza através de “técnicas de
tísticas como melhorias nos índices de educação, gerenciamento”, isto é, do desenvolvimento de progra-
saúde, moradia e infra-estrutura urbana.4 Esse in- mas de assistência a populações-alvo específicas. Tais
programas, porém, não questionam as causas da pobre-
za, nem permitem a constituição de direitos sociais uni-
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No entanto, essas melhorias ocorreram a partir de uma versais (Cf. Gohn, 2006). De um outro ponto de vista, é
base tão restrita, que não são capazes de acompanhar o exatamente essa a “universalidade” dos direitos sociais e
próprio crescimento populacional urbano, argumentam civis que vem sendo questionada atualmente pelos
alguns (Schwartzman, 2004; Lavinas, 2006), permitin- movimentos culturais e de minorias identitárias.
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É preciso ter em mente que não foi apenas também fenomenológica, o que nos permite pen-
“a pobreza” (com suas qualificações e carências) sar o fenômeno da pobreza e dos atores sociais
que mudou, mas todo o contexto urbano contem- tanto a partir das restrições estruturais a que estão
porâneo.6 As próprias cidades se transformaram submetidos, e das quais não podem escapar, como
e, com elas, suas formas de representação e os das suas renovada capacidade de atuar e intervir
modos de articulação e luta em seu ambiente. Os no curso de sua própria história, que é imprevisível.
atores sociais interagem nessa paisagem das cida- Autores como Wievorka (apud Macagno,
des atuais de modos distintos. Assim, é possível 2003) indagam sobre que significado o reconheci-
pensar-se que as novas questões relativas à pobre- mento cultural pode ter para populações submeti-
za se fazem acompanhar também por novas for- das a forte exploração econômica ou relegadas a
mas de ação social. Partindo desse ponto de vista, “bairros miseráveis e massivamente excluídos” do
é possível recolocar a questão da pobreza de ma- mercado de trabalho. Uma resposta possível a essa
neira um pouco distinta. Assim, uma visão sobre questão seria pensar que as políticas “do reconhe-
a “nova pobreza” pode ser construída retomando cimento” são muito mais do que isso e possibili-
algumas discussões centrais em autores que dialo- tam a conquista de benefícios sociais e econômi-
gam com teorias próximas ao multiculturalismo, à cos. Em certa medida é o que se pode ver na histó-
interculturalidade, à pluralidade dos modos de ria do Bairro da Paz, objeto deste estudo, uma vez
modernização etc. que melhorias concretas têm sido alcançadas por
Apesar das diversas polêmicas em torno sua população, embora ainda de modo insuficien-
desse termo, o “multiculturalismo”7 tem sido as- te. Por exemplo, o bairro conta hoje com duas es-
sociado a um pluralismo cultural característico das colas municipais de ensino fundamental e uma
sociedades de hoje, em especial nas grandes cida- estadual de ensino médio, além de um Centro de
des. Face à heterogeneidade das identificações e Saúde, os quais, no entanto, não conseguem su-
experiências possíveis – de classe, raça, etnia, gê- prir a demanda local de uma população de aproxi-
nero, religião, estilos de vida, etc. – a interação madamente 60 mil habitantes, nem alcançam a
social entre esses segmentos (em sua constante qualidade necessária nos serviços que oferecem.
interseção) nos espaços públicos exige o reconheci- Em um nível muito mais amplo, é também o que
mento da identidade do outro e, portanto, o reco- se pode observar em certas políticas públicas que
nhecimento de um novo tipo de direitos: os direi- vêm sendo implementadas (já desde o governo
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cia dessas forças e influências e que a tendência à No caso específico do Bairro da Paz, isso
fragmentação não ocorra. Apenas significa reconhe- pode ser exemplificado pela ampla procura dos
cer que essas forças não eliminam, em si mesmo, a jovens pelo Telecentro de Inclusão Digital (progra-
capacidade de luta e de organização desses novos ma do governo federal), da utilização da Internet e,
atores sociais. sobretudo, pela formação de grupos “culturais”
Neste artigo, portanto, consideramos como jovens, como os de dança e hip hop, o que permi-
“nova pobreza” situações resultantes de um pro- te a esses rapazes e moças uma circulação muito
cesso de exclusão social que afeta, especialmente, mais ampla por áreas centrais da cidade e até mes-
a inserção no mercado de trabalho e a capacidade
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de geração de renda. Mas ela também abarca o Ver, por exemplo, os mapas comparativos dos bairros da
cidade apresentados em Carvalho e Pereira (2006) ou os
âmbito das identidades pessoais e coletivas, em dados do IBGE, 2000, onde se observa que, enquanto as
áreas vizinhas apresentam de 96,93 a 100% de residên-
um contexto urbano de contato freqüente entre cias abastecidas pela rede geral de água, no Bairro da Paz
o índice cai para 46,63 a 90,12% a depender da sub-área.
grupos muito distintos – em lugares como Ademais o Bairro da Paz aparece, nesses dados, com os
shoppings, praias, transportes coletivos e mesmo piores indicadores de pobreza da cidade de Salvador quan-
do comparado ao de outros bairros pobres da cidade,
nas residências de camadas mais abastadas, onde com ocupações iniciadas nas décadas de 40 ou 60s. O
Bairro da Paz é uma ocupação recente, datada da década
alguns moradores de áreas pobres servem como de 80.
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mo outros Estados e países em suas apresentações sugerir que a gestação de “novas” formas de po-
artísticas. Outro exemplo seria a existência de sete breza corresponde a “novas” formas de participa-
cooperativas de trabalho no local – de serviços de ção social.
construção civil, moda, reciclagem, doces e salga- A reconstituição da história do Bairro da
dos, artesanato em papel e trabalhos gráficos, pro- Paz mostra como o engajamento dos moradores10 –
dução de instrumentos musicais, detergentes e pela sua permanência no espaço, seguida da con-
sapatos – as quais, com ou sem apoio financeiro quista de políticas públicas para o bairro e gestão
do setor público ou privado, promovem oportuni- da sua nova identidade – esteve inserido num gran-
dades de obtenção de emprego e renda para os de movimento de lutas pelo direito à moradia, a
moradores do bairro. Enquanto se desenvolvia o partir do início da década de oitenta. Na cidade,
presente estudo, estavam emergindo, na comuni- esse movimento foi sustentado pelo Movimento em
dade, duas novas cooperativas (para promoção de Defesa dos Favelados (MDF), que não é um movi-
eventos e outra relacionada a temas ambientais), mento local isolado. Essas ações acompanharam
contando todas elas com o apoio técnico do uma tendência global identificada por Teixeira
SEBRAE e do Banco do Brasil, entre outras insti- (2001), a do surgimento de novos atores políticos
tuições estatais ou privadas presentes na prolife- e sociais que lutam por seus direitos e conformam
ração de ações e de projetos desenvolvidos na e uma nova cultura política voltada para o respeito e
por atores da própria comunidade. a eqüidade, com vistas à consolidação e ao aper-
feiçoamento da democracia, exercitando o que o
autor chama de participação cidadã, ou como di-
NOVA POBREZA E NOVOS ATORES SOCIAIS, ria Jelin “o direito a ter direitos” (2004). A partici-
OU UM NOVO MODO DE FAZER POLÍTICA: a pação cidadã se dá através de ações coletivas
atuação cultural e simbólica implementadas pela sociedade civil e voltadas para
a interação com o Estado, o mercado e a própria
Os clássicos movimentos sociais do século sociedade mais ampla. Apesar de ter um caráter
XX (como os sindicatos, movimentos pela terra, essencialmente político, essas ações não são tenta-
etc.), que concentravam suas reivindicações em tivas de substituição ou de tomada do papel do
torno da dimensão econômica, têm apresentado Estado. Muito menos estão reduzidas a mecanis-
declínio nos graus de participação, enquanto emer- mos institucionais de intervenção, ou à mera pres-
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cidadania ativa, que variam em graus de intensi- forço de reformas das agendas de caráter liberal.
dade, formatos e objetivos perseguidos, surgem De um lado, e desde a década de noventa, tem
num contexto contemporâneo marcado por certa sido hegemônico – em muitas políticas públicas e
apatia civil e indiferença por qualquer ação de in- setores da sociedade civil – o chamado discurso
teresse coletivo. Segundo o autor, a participação neoliberal, que retira do Estado o papel de media-
cidadã é um movimento reativo ao contexto de dor e regulador das relações de produção e distri-
globalização, à retomada do projeto político libe- buição econômica. Com isso, o poder público tem
ral, à crise do Estado de Bem-Estar nos países de- sido desresponsabilizado do enfrentamento à po-
senvolvidos e ao processo de redemocratização de breza. De outro lado, porém, com o crescimento
países da América Latina. Esse ambiente marca o da visão dos “pobres como sujeitos ativos”, várias
desgaste e a modificação de certo tipo de participa- formas descentralizadas e democráticas de geração
ção direta do “movimento popular” e deflagra a e gestão de recursos têm tido espaço, ampliando a
constituição de uma sociedade civil global, com- experiência de democratização iniciada em muitos
posta por uma heterogênea gama de organismos, países da América Latina a partir da década de
articulados em redes sociais e eletrônicas, que atu- oitenta do século XX e possibilitando a crítica a
am na criação de espaços públicos autônomos ou um modelo desigual de desenvolvimento (Ivo,
institucionais, que debatem e propõem alternati- 2005, p. 82-83). Dessa maneira, precisamos tanto
vas para problemas sociais gerais. É nesse contex- compreender o escopo das organizações popula-
to que a participação nos âmbitos locais é aqui re- res contemporâneas, quanto os limites de sua rela-
vista, pois levanta a questão da participação no ção com o Estado e com organizações variadas, face
poder local e suas relações com o contexto global. às concepções diversas acerca da pobreza e das
No caso brasileiro, Teixeira identifica que as formas de combatê-la. Nas cidades brasileiras (e
ações coletivas desenroladas no processo de latino-americanas, de um modo geral), as reivindi-
redemocratização do país, em especial a partir dos cações pelo direito à moradia têm, historicamente,
anos setenta do século XX e sedimentadas na Cons- ocupado um lugar de destaque nas organizações
tituição Brasileira de 1988, dinamizaram as ações populares.
em nível local, criando outros tipos de ações e orga- A participação cidadã envolve várias formas
nizações. Elas também são responsáveis pela cons- de atuação, institucionais ou não, incluindo uma
tituição de uma sociedade civil que “... tematiza dimensão expressivo-simbólica, na qual afloram ele-
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novas questões, cria novos espaços de participação, mentos de identificação de uma comunidade, isto
faz surgir novas formas de organização e interlocução é, atuações que podem ter cunho lúdico ou
com os poderes públicos” (Teixeira, 2001, p.120; itá- educativo e que trabalham símbolos que passam a
lico nosso), e acaba por trazer, para a agenda nacio- ser compartilhados como marcas de identidade. Essa
nal, a discussão e a busca de alternativas para uma forma de atuação refere-se a uma ampla gama de
série de questões sensíveis da sociedade, dentre as formas de participação que abarcam o envolvimento
quais a luta pela moradia e a reforma urbana, com em associações e grupos comunitários, culturais,
as quais a história de implantação do Bairro da Paz religiosos etc.
está em grande sintonia. Assim, podemos perceber que a chamada
Por sua vez, Ivo (2005) aponta para a ambi- participação cidadã coloca em foco a questão da
güidade presente nas políticas públicas atuais de articulação entre diversos atores e instituições,
enfrentamento da pobreza, encontradas tanto nas objeto que é especialmente destacado no relato da
agências multilateriais como em movimentos de história do bairro. Um outro elemento que Teixeira
caráter emancipatório, que podem acabar por rever- (2001) também destaca na sua análise é que essa
ter uma ação social reivindicativa e emancipatória articulação não se dá numa relação vertical entre
no contrário do proposto, contribuindo para o re- Estado e sociedade, mas numa multiplicação de
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relações entre participantes de estatutos diferen- primeiro, o dos movimentos de ocupação e resis-
tes, o que possibilita o êxito de uma mobilização tência, e o segundo marcado pelas formas de reco-
social nesse contexto. Não se trata, portanto, so- nhecimento legitimadas pela institucionalização do
mente da capacidade de pressionar o poder públi- bairro. Esse reconhecimento não se dá apenas no
co, mas – também e principalmente – a dimensão plano material ou institucional, mas é também as-
da inter-relação entre agências, organismos e ato- sociado ao uso de recursos simbólicos, encami-
res variados. Quanto maior for a capacidade de nhados como estratégia de reconhecimento dos
um grupo ou movimento para agregar inter-rela- próprios atores e, finalmente, reconhecidos pelas
ções, maiores serão suas possibilidades de obter esferas públicas e pela mídia.
recursos (sejam eles materiais ou simbólicos) e lo-
grar atingir seus objetivos.
A história da formação e consolidação do ORGANIZANDO A INVASÃO PARA LUTAR E
Bairro da Paz pode ser, pois, compreendida nos CONSTRUIR A VIDA NA “PAZ”
marcos da emergência tanto de novos problemas
associados à pobreza urbana quanto de novas for- Nesta seção do artigo, procuramos relatar,
mas de associação e mobilização popular. A po- com base em dados do CEAS,13 referentes ao Bair-
breza urbana contemporânea é resultado de pro- ro da Paz, assim como informações coletadas em
cessos múltiplos, que envolvem exclusão (ou a nossa pesquisa etnográfica,14 parte da história da
inclusão precária) no mercado de trabalho e na formação do bairro e sua consolidação, até o pre-
sociedade de consumo, o acesso restrito a serviços sente. Sobretudo, buscaremos analisar a formação
públicos e também a formação de novas identida- de um novo tipo de ator social, que bem exemplifica
des culturais (pessoais ou coletivas), sociais e po- o que a literatura contemporânea tem destacado
líticas. Assim, a partir do estudo do bairro, pode- como “novos movimentos sociais”, numa era de
mos visualizar o surgimento de um ator social de globalização, caracterizada pela importância e ex-
pleno direito, que luta não somente por recursos pansão do poder das redes de comunicação e in-
materiais, mas também por uma melhor inserção formação sobre a vida das pessoas. Trata-se de uma
cultural – acesso a informações, a canais atuais de era também marcada pela configuração de novas
transmissão e trocas de experiências – e, sobretu- formas de precarização do trabalho e do cotidiano
do, pela construção ativa de sua identidade como de largas parcelas da população nas grandes cida-
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rânea (Touraine, 2005; Castells, 2002; Giddens, to (até por volta de 1987), as matérias se referiam à
2005; Gohn, 2006; Teixeira, 2001). área como a de uma “invasão”, e o destaque das
O material utilizado para fundamentar a aná- notícias recaía sobre os altos índices de violência e
lise desta seção apoiou-se principalmente num ban- o medo causado a moradores de áreas vizinhas. A
co de dados de jornais coletados pelo CEAS, nos mudança política do poder estadual, com a eleição
principais periódicos locais (principalmente A Tarde de Waldir Pires, foi acompanhada por uma altera-
e Tribuna da Bahia), entre 1982 e 1997, e notícias do ção significativa no enfoque dado ao bairro nos no-
Diário Oficial dos últimos anos, desde 1997 (coletadas ticiários, cujo discurso passou a se concentrar so-
diretamente pela nossa equipe de pesquisa, devido à bre as “carências” sofridas e as péssimas condições
interrupção da base de dados do CEAS), com mais de vida dos habitantes dessa área. A partir da re-
de cem notícias revisadas no total. De maior impor- nomeação do bairro,16 a ênfase e o tom das notícias
tância foi a análise realizada a partir dos relatórios mudaram novamente: agora o Bairro da Paz ingres-
internos (preciosos diários de campo), gentilmente sa como ator num discurso de cidadania e luta por
disponibilizados também pelo CEAS, escritos pelo direitos (políticos, sociais e principalmente cultu-
primeiro pároco do local (Padre Confa), a respeito do rais), embora a imagem marcada pela violência não
desenvolvimento das primeiras ocupações no bair- tenha sido de todo abandonada nem esquecida, e a
ro, das mobilizações do Bairro da Paz junto a outras toda hora seja recuperada pela mídia.
comunidade e do desenvolvimento de associações A primeira matéria conhecida sobre a “in-
de moradores, até o nascimento do atual Conselho vasão” das Malvinas data de 09 de agosto de 1982,
de Moradores do Bairro da Paz. Além disso, a pes- no jornal A Tarde, e relata que, alguns meses antes,
quisa se apoiou, também, nas narrativas de lideran- já haviam se iniciado as ocupações nas terras da
ças locais, coletadas por nossa equipe em trabalho família Visco, localizadas na Avenida Paralela –
de campo, durante os dois primeiros anos de pes- um dos principais vetores de crescimento imobili-
quisas no local, além de outra base complementar ário da cidade e que conecta o centro da cidade
(menos densa) de dados hemerográficos com o aeroporto internacional. A última matéria,
disponibilizados pela AVSI – Associação de Volun- publicada no jornal Tribuna da Bahia, data de 08
tários Internacional.15 de junho de 2005, e noticia o crescimento de ins-
Ao analisar a formação de uma “identida- tituições no Bairro da Paz, destacando a participa-
de” do bairro para seus moradores e para a popu- ção da Santa Casa de Misericórdia nos seus prin-
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lação em geral, é relevante confrontar as opiniões cipais investimentos. O que mais chama a aten-
locais com as veiculadas na imprensa, uma vez ção, na leitura de todo o material, é a forma pela
que esta conforma a imagem que os “outros” têm qual o bairro é tratado pelo poder público, que
sobre o morador do Bairro da Paz, constituindo a mudou da estratégia da repressão pela força ao de
“mediação” simbólica entre o bairro e seu entorno, fortes investimentos através de políticas públicas
a cidade. O conjunto das matérias jornalísticas e financiamento de projetos, como se verá adiante.
analisadas deixa perceber uma importante “vira- Percebe-se, assim, uma grande preocupação do
da” quanto à natureza do discurso sobre essa co- poder público com aquela localidade, tanto no iní-
munidade ao longo dos anos de sua formação e cio das invasões quanto após 1987, quando come-
consolidação como bairro. Num primeiro momen- 16
A renomeação da ocupação desse bairro inverteu se-
manticamente o sentido estigmatizado da primeira no-
meação do local: Malvinas (em referência à guerra) para
15
Esta instituição é atualmente responsável, junto à a de Bairro da Paz, nomeação de logradouros como Rua
CONDER e à COELBA, pelo desenvolvimento de proje- da Resistência, do Sossego, da Paz Celestial, etc. Inver-
tos de urbanização no subúrbio ferroviário (o famoso são semântica similar às do par “inferninho” e “alta vista
projeto “Ribeira Azul”), com financiamentos do Banco (céu)”, “mal” e “bem”, intencionando promover melhoria
Mundial e do governo italiano. A AVSI, em parceria com de auto-estima em setores estigmatizados pela socieda-
CONDER, também elaborou um interessante projeto de de. Essa vem sendo uma clara e ideologizada estratégia
urbanização e requalificação para o Bairro da Paz em adotada por setores progressistas da Igreja católica, em
2000, o qual não foi implementado. suas diversas ações sociais.
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ça a fase de consolidação do bairro. É a partir des- Touraine (2005), uma vez que colocam em pauta
sa época que os jornais mudam o teor das notícias não somente a obtenção de recursos materiais, mas
e já veiculam em suas manchetes a renomeação do também o direito ao “reconhecimento” das comu-
“Bairro da Paz”, não mais denominado Malvinas. nidades como atores participativos na sociedade e
Os meios de comunicação vão abandonando as o direito de receberem outro tipo de atenção por
notícias sobre o bairro, conforme avança sua con- parte das políticas públicas no acesso a serviços
solidação. Entre o início da década seguinte até o (de moradia, educação, saúde) dos quais estive-
ano de 2005, quase não se menciona mais o Bairro ram sempre excluídos, como veremos mais adian-
da Paz nos periódicos locais. As notícias migra- te, através das organizações de moradores do Bair-
ram para o Diário Oficial do estado da Bahia, que ro da Paz em busca não apenas de serviços e direi-
passa a divulgar as ações de urbanização, infra- tos, mas também da libertação de um estigma.
estrutura e combate à pobreza no bairro. O gover- As primeiras notícias analisadas na base de
no, que antes reprimia a invasão, hoje anuncia seus dados consultada relatam um maior uso de força
feitos para melhorar as condições de vida dos resi- contra os invasores do terreno. Essas matérias co-
dentes locais.17 Essa mudança pode ser interpreta- meçaram a aparecer no ano de 1982, mas os primei-
da como um novo status alcançado pelo bairro ros a se estabelecerem no bairro começaram a che-
nesse processo: de notícia das páginas policiais gar por volta de 1980 e 1981, em pequenas levas.
passou a ser objeto do Diário Oficial. Em 1982, os fluxos migratórios para o terreno tive-
É perceptível uma atenção especial com as ram um acréscimo acentuado, o que despertou a
Malvinas, embora não tenha sido esse um movi- atenção pública para aquele movimento. A referên-
mento isolado ou único na cidade de Salvador. cia à contínua chegada de pessoas ao longo dos anos
Mas, sem sombra de dúvidas, constitui um dos é recorrente e motivo de crescente preocupação es-
mais conhecidos e emblemáticos, pela sua tatal e de outros interesses imobiliários pelo local.
especificidade e combatividade,18 pois nenhuma A região invadida está localizada num vetor
outra ocupação de terras demandou uma interven- de crescimento nobre da cidade, situado na Ave-
ção de força tão sistemática como a aplicada contra nida Paralela, que conecta o centro da cidade ao
as Malvinas. Essa ocupação se ergueu – e o nome Aeroporto e à linha verde (expansão hoteleira e
apontava para isso – como um exemplar e surpre- turística da cidade) no litoral Norte do estado. Si-
endente ato de resistência de um fraco agrupamento tua-se nas proximidades do Centro Administrati-
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Atlântica, onde surgiram, mais tarde, luxuosas organização e resistência dos moradores tinham
residências em condomínios fechados. Nos rela- pouco espaço, nos relatórios do CEAS há longas
tos atuais dos moradores, sempre há referências a descrições desses movimentos. Ou seja, se a asso-
esses vizinhos ricos. Este “fantasma” do valor do ciação de moradores emergia como protagonista das
terreno parece ter estado presente nas preocupa- disputas pelas terras para organizações de apoio
ções da comunidade há um bom tempo e ter sido ao movimento, os discursos dos jornais mantinham
um elemento que polarizou a presença de diver- uma grande ambigüidade entre retratá-las como uma
sos atores da sociedade civil. Outro fator relevan- luta por direitos de habitação ou como uma “mas-
te, nesse campo de disputas, é a importância eco- sa ameaçadora” aos interesses e à segurança das
lógica da região. Concentrando lagoas, rios e re- classes médias vizinhas.
manescentes de mata atlântica, a área, ainda hoje, Uma das primeiras matérias desse acervo
é considerada uma reserva ambiental da cidade, do CEAS data de 1983. Nela consta informação
sendo defendida por grupos ecológicos que logra- sobre uma reunião com mais de mil moradores
ram impedir a expansão imobiliária no local du- para debater a proposta da prefeitura de transferi-
rante alguns anos. Sob esse ponto de vista, a per- los para outras localidades, no subúrbio da cida-
manência da invasão dessa comunidade terminou de. O local utilizado, à época das ocupações, para
operando indiretamente em favor dos interesses os debates e deliberações chama-se, hoje, Praça
imobiliários, apesar da continuidade dos protes- das Decisões.23
tos do setor ambientalista.20 Atualmente, encon- No dia 17 de março de 1983 (após uma gran-
tra-se em curso também a instalação de um parque de ação do governo na derrubada de barracos, em
tecnológico, nas imediações dessa região. 10 de agosto de 1982), os jornais apontam um
Nos relatórios do CEAS do início da déca- movimento organizado dos moradores para resis-
da, e em diversos trechos dos jornais, observa-se tir às investidas do poder público. Informam, tam-
que, no contexto do uso da força contra a ocupa- bém, as propostas da prefeitura no remanejo de
ção, a reação dos moradores foi a sua organização duas mil famílias do local. As informações minu-
e mobilização de modo crescente, com o passar do ciosas dos registros do CEAS corroboram as vei-
tempo. Essa mobilização21 contou com o apoio de culadas nos jornais da época. Esse cruzamento de
associações envolvidas com direitos civis, como o informações, ao longo dos anos, dá uma dimen-
próprio MDF, políticos de esquerda e membros da são da amplitude da organização e da resistência
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Igreja Católica em duas formas de atuação um tan- desses e de outros moradores da cidade em situa-
to distintas.22 Enquanto, nas notícias de jornais, a ções semelhantes às do Bairro da Paz. Essa
mobilização foi uma das sementes que contribuiu
20
Uma das muitas especulações sobre a diversidade de
grupos que pleiteavam a posse de terras na Paralela, na- para a efervescência associativa política e cultural
queles tempos, insinuava que uma parte dessas terras do bairro hoje e revela, já desde aquela época, uma
foi invadida por pobres e a outra vendida por baixo valor
ou loteada por grandes construtoras (uma delas a OAS –
cujos proprietários são familiares do falecido senador contou com muitos recursos internacionais (oriundos
Antônio Carlos Magalhães), que teriam interesses em da sua paróquia em Mantova, Itália) para o bairro e pela
empreitadas grandiosas, como algumas das que surgi- Fundação Dom Avelar, com apoio da Santa Casa de Mi-
ram depois dos anos 80. sericórdia. Os modos de atuação de Ernestina e dessa
21
O primeiro grupo comunitário, nascido da iniciativa dos fundação podem ser qualificados como mais
moradores, de que se tem notícia foi a Associação Bene- “assistencialistas” que os do “CEAS”, embora incluam
ficente Unidos Venceremos. Essa associação foi fundada oferta de educação e atenção à saúde, entre outros im-
por um grupo de mulheres, e teve uma líder comunitá- portantes serviços prestados à comunidade.
ria como figura proeminente. Como acabou por se tor- 23
Os nomes de logradouros no bairro trazem impressa a
nar uma marca desse processo inicial de mobilização, sua própria história, além do esforço pelo controle dos
que tinha como ponto focal garantir a continuidade no valores que lhe são atribuídos. Esse é o caso da rua
local, é lembrada com afeto por muitos dos moradores principal que leva o nome de “Resistência”, e cuja praça
mais antigos. Atualmente, a instituição tem pouca principal se chama “Praça das Decisões”. Muitos desses
expressividade no bairro. nomes se multiplicam nas diversas travessas, que carre-
22
Uma delas é a representada pelo CEAS (ligado à Teologia gam o mesmo nome da rua que as origina, como: 1ª, 2ª,
da Libertação), com seu caráter de “formação de bases”. 3ª, 4ª, 5ª e até 6ª travessas da Rua da Felicidade, ou da
A outra é representada por Ernestina, leiga italiana que Paz, ou da Nossa Senhora da Paz, ou do Sossego etc.
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Maria Gabriela Hita, Luciana Duccini
preocupação em assumir o controle das negocia- da prefeitura eram mais tentativas de intimidar um
ções que eram encaminhadas, além de definir uma maior alastramento, e menos de por fim a algo que
imagem dos moradores como “pessoas lutadoras”, já era demasiado grande e impossível de reverter.
o que também estava associado à idéia de guerra Várias matérias, conforme se relata a seguir, anun-
das “Malvinas”. ciam números alarmantes de moradores e apon-
O apoio de organizações diversas, como a tam a possibilidade de esses números serem bem
organização-não-governamental CEAS, o MDF, maiores que os oficiais.
políticos de partidos de esquerda e a própria Segundo dados de um relatório do CEAS,
Arquidiocese de Salvador teve especial importân- escrito em 1997, num primeiro levantamento, em
cia para a resistência gestada no bairro. As infor- 1988, o Bairro da Paz tinha 2.929 unidades de re-
mações que circulavam entre os ocupantes, sidência, então cabanas; em 1993, já eram 5.440;
advindas dessas organizações,24 são recorrentes nos em abril de 1996, 5.800. E, em 1997, o bairro con-
relatos e parecem ter tido um papel relevante na taria com mais de 6 mil famílias, aproximadamen-
concepção das ações e estratégias. Essas ações eram te 35mil habitantes. Dados publicados em A Tarde
fortalecidas pela circulação de informações sobre a de 09 de fevereiro de 1997 parecem desmentir essa
questão do terreno e uma possível posse pela Pre- informação, ao afirmar haver, no local, mais de 60
feitura. De acordo com os relatos do CEAS, sabia- mil habitantes, segundo informações de autorida-
se que dívidas de impostos da família Visco com a des da 12ª Delegacia. Essa última cifra é também
prefeitura teriam acarretado uma expropriação na bastante próxima à que nossa pesquisa obteve junto
época, ainda não confirmada. Só em 13 de agosto a informações diretas do Centro de Saúde da co-
de 1983, o jornal A Tarde publicou notícia sobre a munidade. Essa discrepância de dados entre dife-
desapropriação do terreno e o destino de inúme- rentes fontes possivelmente revela dois tipos de
ras famílias que, mesmo assim, haviam sido contagem diferentes: a de membros do CEAS, pre-
deslocadas para a Fazenda Coutos. Desse modo, ocupados em honrar os acordos realizados com
podemos ver como o movimento de organização prefeitura, devia estar contabilizando apenas as
dos moradores alimentava-se de uma rede não só unidades familiares dentro da área poligonal legal-
de apoio logístico e material, mas também de in- mente negociada; e as outras fontes devem ter ca-
formações que ajudavam a direcionar sua ação. dastrado também aquelas casas que estão fora da
Apesar das transferências de moradores para poligonal e que não têm, em princípio, direito ao
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DA GUERRA À PAZ: o nascimento de um ator social...
preocupações usuais daqueles que buscam um de muita violência. Após essa ação da PM, há vá-
local para habitar, com a demarcação dos espaços rios relatos de uma grande manifestação organiza-
para os barracos, a construção de fossa e área para da pelos moradores (das Malvinas e de várias ou-
uma pequena horta.25 tras localidades), que culminou com uma passeata
Dois trechos dessa matéria chamam a aten- até o Centro Administrativo, para cobrar ações do
ção: em um, aparece a diversidade da fauna da então governador, Waldir Pires. Nesse período,
região, que tantas vezes é relatada no Bairro da aparece a participação do MDF – Movimento em
Paz: “Grande parte deles [dos habitantes] porta ar- Defesa dos Favelados – como um agente de apoio à
mas de fogo, mas apenas como meio de conseguir organização de movimentos pela habitação, entre
o que comer. ‘Nós matamos preás, cotias e teiús eles o das Malvinas. Em 9 de março de 1987, ocor-
que tem aqui’, diz Renato”. No segundo, há o te- reu a desejada reunião do governador com vários
mor em larga escala que provocava a invasão das representantes desse movimento, depois que mais
Malvinas, atualmente sentido pelo Bairro da Paz: de quatrocentas pessoas ocuparam duas das três
“Se para os novos invasores o local significa a pos- pistas da Avenida Paralela. Na governadoria, esta-
sibilidade de ter onde morar e trabalhar, para os vam presentes representantes do Estado, da As-
moradores das áreas vizinhas, a invasão, certamen- sembléia Legislativa, da Prefeitura Municipal, da
te, dá inicio a um pesadelo já bastante conhecido Câmara Municipal e do MDF. Após essa reunião,
em Salvador: a ameaça dos marginais.” A matéria as matérias publicadas nos jornais mudaram o tom
é encerrada com uma denúncia de que as casas das notícias veiculadas. Passaram a se referir à in-
estavam começando a ser arrombadas e a haver vasão como um bairro e a noticiar algumas
tiroteios, mas que a polícia já havia sido informa- melhorias que foram gradativamente sendo implan-
da e estava preparando a expulsão. Observa-se, tadas, com a permanência no local.
aqui, uma ambigüidade no tratamento dos mora- No mesmo mês, aparece a primeira referên-
dores da invasão, que são apresentados, num cia à mudança do nome, de Malvinas para Bairro
momento, como “pacíficos” e, no seguinte, como da Paz, numa publicação da Tribuna da Bahia sob
“perigosos”. Essa indeterminação ecoa também nas o título “Malvinas quer ser da Paz”. Pela dimensão
práticas governamentais, com pequenas concessões desse movimento geral de ocupação em diversas
simultâneas à repressão, além da percepção dos áreas da cidade, Fábio Santana, representante do
vizinhos mais ricos de que os ocupantes seriam governo do Estado, colocava como proposta prin-
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todos “bandidos e marginais”, ressaltando como a cipal da reunião uma “trégua no avanço das inva-
disputa, para além do pedaço de terra, envolvia sões”, preocupado com a força da mobilização e
também a identidade dos moradores. até onde poderia chegar o crescimento das Malvinas,
No dia 07 de fevereiro de 1987, a Tribuna com novos “invasores”. Decidiu-se, após esse en-
da Bahia publica uma nova destruição dos barra- contro, que marcou a permanência das Malvinas
cos. Um caminhão com funcionários da prefeitura na Avenida Paralela, pela criação de postos avan-
e da Limpurb, escoltados por Policiais Militares çados de levantamento e cadastramento de seus
armados de metralhadoras, segundo o relato, fo- ocupantes, nos quais moradores trabalharam em
ram os responsáveis pela derruba através do uso conjunto com o Estado e entidades sociais, de modo
a legitimar a ocupação, mas, ao mesmo tempo, li-
25
Matérias dessa época relatam situações extremamente mitar a chegada de novos ocupantes, controlando
difíceis de vida, de crescimento geográfico da ocupação e
destruição da mata, com “desmatamentos à foice e fa- aproveitadores e especuladores e envolvendo a
cão”. Descreve-se a precariedade das moradias, em geral
feitas de latas, papelão e palha de coqueiro. O lugar para própria comunidade na retenção do seu crescimen-
plantar aparece como uma demanda além da moradia, o
que indica uma correlação direta com as dificuldades de to. Seguiram-se muitas desavenças internas, com
obtenção de emprego e renda na grande metrópole, e boatos de que pessoas importantes do movimento
com o acentuado contingente de imigrantes vindos do
interior do estado. estariam vendendo barracos e especulando sobre
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Maria Gabriela Hita, Luciana Duccini
os terrenos invadidos, alguns desses aparentemen- trouxemos alguns exemplos, boa parte delas, em
te comprovados. Com isso, os moradores acaba- 1988, se dedica a denunciar as péssimas condi-
ram por solicitar policiamento à Casa Civil e, por ções do novo bairro e a anunciar as melhorias que
intermédio do Pe. Confa (pároco local e membro timidamente começaram a aparecer no local. Uma
do CEAS), conseguiram que fosse impedida a en- delas, e a mais relevante, em vigor até hoje, refere-
trada de carros luxuosos, com material de cons- se à implantação da rede elétrica pela Companhia
trução, e que a comissão fosse, de alguma forma, Elétrica da Bahia (COELBA), que começava a levar
protegida. Parte do material para construir os bar- iluminação pública para aquele local, embora com
racos foi retirada da floresta relativamente abun- apenas alguns postes na área central. A partir des-
dante do outro lado da pista da Avenida Paralela, ses postes, os moradores começaram a fazer “ga-
o que preocupou a Comissão organizadora dos tos”,27 o que hoje é o motivo de inúmeros projetos
moradores, que tinha se comprometido a conter assistencialistas da empresa para se fazer presente
novas ocupações e construções, no acordo com a no bairro, em paralelo a um programa de combate
prefeitura. A preocupação do movimento de mo- ao furto de eletricidade, que está em vigor em todo
radores do Bairro da Paz em honrar o compromis- o estado. Nas nossas visitas de campo, é freqüente
so com a Prefeitura, apesar de revelar a sua aceita- observarmos o trânsito de automóveis da empre-
ção das novas regras do jogo com respeito à ocu- sa, agentes circulando pelo bairro e vários proje-
pação do espaço urbano, ditadas pelo Estado, de- tos que anunciam o financiamento da Companhia
nota, também, certo grau de protagonismo, pois em suas placas.
procurava assumir por si mesmo o controle da Em 14 de outubro do mesmo ano (1987), a
ocupação. Ao mesmo tempo, esse início de nego- Tribuna da Bahia publica a matéria “Governo co-
ciações entre o Estado e a comunidade aponta o meça a construção do Bairro da Paz”. Essa é a pri-
mútuo reconhecimento que surge entre eles, já que meira matéria onde foi introduzida a mudança do
a comunidade não assumia um papel simplesmen- nome. Essa mudança não foi por acaso. É fruto de
te reativo, mas procurava afirmar sua existência e outra ação organizada dos moradores, apoiados por
seus direitos frente ao governo do estado, partici- amplos setores da sociedade, no sentido de come-
pando, inclusive junto a ele, do controle do cres- çar a mudar a imagem do local, na cidade. Essa
cimento da área. ação é uma preocupação dos moradores até hoje.
“Malvinas foi sitiada” foi a manchete do dia É preciso atentar que há duas conotações
26
É importante notar que, até hoje, a reivindicação por
um posto policial não foi adequadamente atendida. O
27
único posto existente foi construído pelos próprios Fazer “gato” é uma expressão que significa fazer cone-
moradores, que são muito mais reprimidos do que pro- xões ilegais de energia entre os postes de iluminação
tegidos pelas ações policiais, segundo queixas recentes. pública e as casas.
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DA GUERRA À PAZ: o nascimento de um ator social...
polícia militar, que é acusada de oprimir morado- infra-estrutura para o local.29 Essa personagem é
res muito mais do que reprimir o crime. muito mencionada pelos moradores e mantém for-
Os anos de 1987 e 1988 foram ricos em no- tes relações com membros das pastorais, da Fun-
tícias das Malvinas e, em seguida, do Bairro da dação Dom Avelar e do atual Conselho de Mora-
Paz, nos jornais. 1987 parece ter sido o ano de dores, que ela ajudou a fundar e do qual partici-
uma grande mudança, fruto da ação organizada pou ativamente. Os relatórios do CEAS dizem, tam-
dos moradores em conjunto com organizações ci- bém, que os agentes da pastoral, além das ativida-
vis. Em 14 de outubro de 1987, a Tribuna da Bahia des relacionadas às escolas comunitárias e à área
informa que “... hoje, o Bairro da Paz já respira de saúde, atuavam para formar uma associação
dias melhores com luz elétrica, água encanada que comunitária que contasse com membros ligados à
chega a algumas casas construídas de bloco, esco- Igreja e a outras áreas, para gerar novas lideranças
las de primeiro grau do Estado e do município, mais comprometidas com a comunidade.
linhas de ônibus.” Há uma lacuna de notícias en- Ernestina foi e ainda é importante represen-
tre os anos de 1989 e 1997.28 Em 09 de fevereiro tante da Fundação Dom Avelar, e comprou terre-
de 1997, é publicado em A Tarde: “Malvinas vira nos no Bairro da Paz com capital de doações de
Bairro da Paz, mas criminalidade permanece”. Essa sua paróquia na Itália. Segundo relato, envolto por
matéria faz uma análise da violência e das mortes uma atmosfera mítica, quando Ernestina chegou
que tornaram o Bairro da Paz famoso e temido na ao Bairro da Paz e construiu uma das primeiras
cidade. Essa imagem de violência é ponto recor- casas de tijolo do bairro, os moradores foram en-
rente nos relatórios do CEAS, quando se referem corajados a construir também as suas com materi-
à criação do Conselho de Moradores, que formou al permanente. Até então, não se erguia nenhuma
uma central de distribuição de notícias e informa- casa de alvenaria, pois havia o risco de interven-
ções para tentar mudar essa imagem. ção policial para derrubar as moradias.
Essas dimensões associadas da luta na for- Isso coincide com uma redefinição de polí-
mação do Bairro da Paz (especialmente da pers- ticas públicas de habitação. Após quase dez anos
pectiva do atual Conselho de Moradores) permite de extinção do Banco Nacional da Habitação
entendê-lo no contexto dos “novos movimentos (BNH), em 1995-96, o Estado iniciou um progra-
sociais”, na medida em que o movimento não ob- ma de melhorias em áreas degradadas, em Salva-
jetiva uma ação política stricto sensu, mas um con- dor e em outros municípios da RMS – O Progra-
CADERNO CRH, Salvador, v. 20, n. 50, p. 281-297, Maio/Ago. 2007
trole ativo sobre a identidade do lugar e seus habi- ma Viver Melhor. Esse programa foi financiado pelo
tantes. O atual Conselho de Moradores foi criado programa Habitar Brasil e Pró-Moradia
em novembro de 1992, em concorrência com a (intermediado pela Caixa Econômica Federal) e al-
primeira Associação de Moradores, dado o descré- cançou mais de quarenta áreas em toda a cidade.
dito de muitos residentes, que acusavam essa últi- A partir do Programa Viver Melhor, se passa a atu-
ma de manter ligações espúrias, em interesse pró- ar mais intensivamente em melhorias habitacionais
prio, inclusive com o governo carlista. Já o novo de áreas degradadas já ocupadas, visando manter
Conselho, assessorado pelo CEAS e por Ernestina, as populações nos assentamentos de origem e não
aproxima-se mais do PT. removê-los, como se intentou em outros momen-
A chegada de Ernestina, em 1991, leiga ita- tos (Gordilho, 2000, p. 161). Ou seja, mesmo quan-
liana representante da paróquia de Mantova, trou- do os moradores percebem essas mudanças como
xe muitos recursos e atraiu uma impressionante
29
As instalações da Fundação Dom Avelar, com seus pro-
jetos de assistência social e da Cidade Mãe, com ativida-
des culturais para crianças e jovens, o centro comunitá-
28
Provavelmente, devido à interrupção da coleta de infor- rio – depois transformado em sede do Conselho. de
mações para o banco de dados consultado. Mas é possível Moradores –, cinco paróquias, cinco equipadas creches
também que isso represente um desinteresse da mídia da Santa Casa de Misericórdia, a residência das freiras e
pelo bairro, uma vez que ele deixou de ser tão combatido. padre, entre outras.
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Maria Gabriela Hita, Luciana Duccini
frutos de suas ações e vontades – que também exis- termos do que Teixeira denominou “participação
tiram e imprimiram marcas nesse processo – suas cidadã”. Sem ter um projeto político explícito rela-
demandas tiveram maior efetividade porque coinci- cionado diretamente a algum partido, os residentes
diram com novas diretrizes de políticas públicas. se engajam em formas variadas de ação e participa-
O período de resistência contra as interven- ção que, a partir de sua experiência histórica de
ções do governo do estado se encerra em meados mobilização pela moradia, trazem à baila questões
da década de oitenta, quando o processo de relativas a suas identidades e lugar ocupado no
distensão militar culmina com as eleições presiden- mundo contemporâneo. Assim, jovens são capaci-
ciais e estaduais, que levam Sarney à Presidência tados em informática, comunicam-se através da
da República e Waldir Pires ao governo do estado Internet no Telecentro do bairro, aprendem capoei-
da Bahia. A partir daí, o movimento de moradores ra, música, teatro, dança fabricam instrumentos
se fortalece cada vez mais. Em meados da década musicais e fazem reciclagem. Jovens e adultos parti-
de noventa, aparecem os relatos de movimentos e cipam de cursos e cooperativas, melhorando suas
passeatas de moradores, que começam a exigir, e a possibilidades de obtenção de renda. Mas, sobretu-
conseguir, equipamentos públicos e melhorias para do, o bairro prossegue discutindo os problemas de
o bairro. O fortalecimento do terceiro setor, nessa inserção e cidadania, mesmo que seu cotidiano ain-
década, tem seu referente no bairro e, até hoje, ONG’s, da seja cravado de dificuldades e violência.
como Onda Azul e AVSI, e associações, como o Con- Ao longo da história do bairro, visualizamos
selho de Moradores e as cooperativas, ocupam lugar uma luta pelo seu estabelecimento, acompanhada
importante na captação de recursos para a comuni- pela disputa, no campo simbólico, em torno do
dade. Desde o início dos anos dois mil, é possível valor atribuído ao local.31 Essa arena de contesta-
observar um fortalecimento de outros movimentos ção é formada por instituições públicas e priva-
de ação política lato sensu, como os movimentos de das, bem como por “novos atores sociais” que ga-
jovens negros, do Hip Hop e as diversas institui- nharam espaço, sobretudo, a partir da década de
ções ligadas às religiões.30 Mesmo o candomblé, mar- oitenta (Teixeira, 2001; Touraine, 2005). Na análi-
ginalizado por décadas, apresenta indicativos de se da consolidação do bairro, podemos acompa-
empoderamento no bairro e em toda a cidade, ope- nhar as relações, muitas vezes conflituosas, entre
rando como marcador identitário e racial de grupos essas instituições e esses atores, bem como a emer-
negros. É comum encontrar terreiros constituindo gência daquele local em si mesmo como a de um
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DA GUERRA À PAZ: o nascimento de um ator social...
nência em terras de interesse imobiliário, de con- na cidade, mesmo sem negar os problemas que ain-
flitos ambientais e políticos, e que contou com o da enfrentam, como a violência, a precariedade de
apoio de entidades como o CEAS e MDF, políticos serviços e uma imagem deteriorada.
de esquerda, além de recursos de grupos interna- Dessa forma, é possível interpretar a ação
cionais (especialmente italianos e ligados à rede dos moradores e grupos constituídos do Bairro da
católica) no seu processo de consolidação. Esse Paz no contexto de surgimento de “novos movi-
trabalho de base permitiu a formação de um tecido mentos sociais” que operam através de uma parti-
associativo e fez desse bairro um importante pro- cipação cidadã. Sua luta alcança o âmbito do reco-
tagonista nas lutas pelo direito à moradia em Sal- nhecimento através do esforço pelo autocontrole
vador, nos anos de 1987, 1993 e 1996. Também da imagem do bairro e de seus moradores na cida-
propiciou importantes conjunturas de discussão de, ao passo que as identidades forjadas ultrapas-
de políticas habitacionais para populações de bai- sam as fronteiras do puramente local, inserindo-
xa renda em todo o Brasil. se numa dinâmica global em seus efeitos.
Hoje, a vida participativa do bairro alcança
moradores que poderiam ser considerados “excluí-
(Recebido para publicação em fevereiro de 2007)
dos”, numa visão apressada. Pessoas e famílias que (Aceito em agosto de 2007)
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DA GUERRA À PAZ: o nascimento de um ator social...
DA GUERRA À PAZ: o nascimento de um FROM WAR TO PEACE: the of a birth DE LA GUERRE A LA PAIX: la naissance
ator social no contexto da “nova social actor in the context of the urban d’un acteur social dans le contexte de la
pobreza” urbana em Salvador/Bahia “new poverty” in Salvador/Bahia “nouvelle pauvreté” urbaine
à Salvador/Bahia
Maria Gabriela Hita - Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP. Professora Adjunta do Departamento de
Sociologia da Universidade Federal da Bahia. Autora de “A família em Parsons: pontos, contrapontos e modelos
alternativos”. Anthropológicas. v. 16, p. 109-148, 2005 e “Igualdade, identidade e diferença(s): feminismo na
re-invenção de sujeitos. In: Gênero em Matizes. Bragança Paulista: EDUSF- Ed. da Universidade de São Francis-
co, 2002, p. 319-351.
Luciana Duccini - Antropóloga, Bacharel em Comunicação Social pela UMESP e doutora em Ciências Sociais
pela UFBA com a tese “Diplomas e Decás: Re-interpretações e identificação religiosa de membros da classe
média no Candomblé”. Trabalha em antropologia urbana na área de estudos sobre identidades pessoais e
coletivas, classes sociais, religião e pobreza. É consultora do CEBRAP e bolsista FAPESB no projeto coordenado
pela Profa. Dra. Maria Gabriela Hita.
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