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Projeto editorial

Editora Tribo | Máquina


Capa e diagramação
Themis Lima
Revisão
John Willian Lopes e Maria do Socorro Furtado Veloso

Todos os direitos reservados ao Departamento de Comunicação Social


da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Editora Tribo | Selo Máquina
Rua Alexandre Câmara, 1884 | Natal (RN)
Contato
themisslima@gmail.com
www.themislima.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


V443j
Veloso, Maria do Socorro Furtado
Jornalistas escritores do RN: Entrevistas [recurso eletrônico] /
organizadores: Maria do Socorro Furtado Veloso, John Willian Lopes.
– Natal: Editora Tribo, 2017.
128p

ISBN: 978-85-67781-15-0
Modo de acesso: https://goo.gl/Po17ZQ
E-book - PDF
1. Jornalismo e literatura. 2. Jornalismo – Técnica. 3. Rio Grande do
Norte. I. Veloso, Maria do Socorro Furtado. II. Lopes, John Willian.
III. Título.
CDD-070.43
Maria do Socorro Furtado Veloso
John Willian Lopes
(Orgs.)

JORNALISTAS
ESCRITORES
DO RN:
ENTREVISTAS
Natal (RN) | 2017
Escrever é uma transfusão
de sangue para o lado de fora.
José Saramago
Créditos
Entrevistado: Adriano Cruz
Fotos: Helliny França
Entrevistado: Adriano Gomes
Fotos: Edmo Nathan
Entrevistado: Antonino Condorelli
Fotos: Sandro Fortunato / Editora Fortunella
Entrevistado: Emanoel Barreto
Fotos: Luciana Salviano
Entrevistado: Flávio Rezende
Fotos: Elizabeth Soares
Entrevistada: Glacia Marillac
Fotos: Denyse Campos
Entrevistado: Gustavo Sobral
Fotos: Cícero Oliveira
Entrevistada: Josimey Costa
Fotos: Arquivo pessoal
Entrevistado: Luan Xavier
Fotos: Arquivo pessoal
Entrevistado: Rafael Duarte
Fotos: Arquivo pessoal
Entrevistados: Rafael Barbosa e Paulo Nascimento
Fotos: Editora Tribo
Entrevistada: Themis Lima
Fotos: Editora Tribo
SUMÁRIO

Prefácio: Sobre jornalistas, livros e a vida


Maria do Socorro F. Veloso ..................................................................... 09

EMANOEL BARRETO | “A necessidade de escrever, em mim,


é um tanto quanto compulsiva”
Amanda Lima, Helena Rodrigues, Liene Titan e Luciana Salviano .............. 13

GLÁCIA MARILLAC | A poesia como caminho para uma


vida mais leve
Denyse Campos, Fernanda Oliveira, Michael Pontes
e Thalita Freitas ........................................................................................ 23

RAFAEL DUARTE | Porque escrever sempre vale a pena


Amanda Gehlen e Carla Menezes ............................................................. 29

LUAN XAVIER | O escritor que não gosta do que escreve


Keyson Cunha e Mikarla Pereira ............................................................. 36

THEMIS LIMA | Longe dos holofotes, ela costura trapos com


a voz do anonimato
Amanda Costa, Anayde Góis, Evelin Monteiro e Lorena Machado ......... 43

ANTONINO CONDORELLI | Um espírito nômade,


um condor errante
Alana Rebeca, Celinna Carvalho, Ranmaildo Revorêdo
e Vinicius Castro ....................................................................................... 52
SUMÁRIO

ADRIANO GOMES | Catarse literária


Edmo Nathan, Hana Dourado, Jonatas Saturnino,
Madson Bruno e Stephanny Coelho .......................................................... 62

FLÁVIO REZENDE | O escritor viciado


Jacinta Tindou, Rodrigo Zuza e Elizabeth Soares ................................... 70

GUSTAVO SOBRAL | O desbravador da regionalidade


Andréa Tavares, Beatriz Vital, Cícero Oliveira e
Jefferson Gomes ........................................................................................ 83

PAULO NASCIMENTO e RAFAEL BARBOSA | Duas vidas e


uma história para contar
Gabriel de Souza, Henrique Rangel, Kelvin Oliveira e
Luiz Carlos de Lucena .............................................................................. 94

ADRIANO CRUZ | O poeta tímido


Érika Mello, Flávia Marques, Helliny França e Leonardo Souza .......... 104

JOSIMEY COSTA | Mais escritora jornalista do que jornalista


escritora
Diane Ceribelli, Maria Clara Mayumi, Natália Guimarães
e Pollyana Galvão .................................................................................... 113

Posfácio: Do jornalismo e da literatura


Gustavo Sobral ........................................................................................ 121
PREFÁCIO

Sobre jornalistas,
livros e a vida
Maria do Socorro F. Veloso é docente do curso de Jornalismo e do
Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia, da UFRN.

Quantas palavras cabem em uma vida inteira? Quantas páginas


comportariam as memórias, afetos, angústias e esperanças dessa
vida? Quantos livros seriam necessários para contar todas as his-
tórias que nascem dessas memórias e afetos?
Diante do irrespondível, resta a certeza segundo a qual, se vi-
vêssemos sem as palavras e sem os livros que delas resultam, es-
taríamos, para sempre, irremediavelmente perdidos de nós mes-
mos e do mundo que é nosso entorno. Haveria menos espanto
diante deste mundo, para usar uma expressão cara a uma grande
jornalista e escritora brasileira, Eliane Brum.
Existimos e resistimos pelo verbo, no entanto. Da matéria des-
sa resistência é que são feitos o teatro, a música, a literatura, o
jornalismo, enfim, todas as formas de arte e técnica que ancoram
na palavra o seu sentido. No caso da literatura e do jornalismo,
trata-se de parceria indissolúvel: seus caminhos historicamente
se imbricam, ainda que esses velhos companheiros, por vezes,
troquem rusgas.
Nesses cerca de quatro séculos de existência dos jornais, ge-
rações e gerações de jornalistas-escritores têm percorrido ca-
minhos que unem as redações às editoras de livros. Há muitas
histórias a serem contadas e boa parte dessas histórias precisam
de outras formas de expressão, outros suportes, outros leitores;

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e as páginas dos jornais, por limitação natural, nem sempre po-
dem dar conta dessas necessidades. Assim acontece com os 13
personagens entrevistados para este livro que ora chega a nossos
prezados leitores.
Jornalistas escritores do RN: entrevistas reúne conversas com pro-
fissionais da imprensa potiguares, ou radicados no Rio Grande
do Norte. Parte dos personagens do livro hoje atua na docência,
enquanto outros permanecem em redações ou assessorias de
imprensa, tanto no setor público, como no privado. Em comum,
além da profissão escolhida, o fato de que decidiram enveredar
também pela literatura, em seus diferentes gêneros - da poesia à
prosa, do livro-reportagem ao conto, das narrativas de suspense
às histórias infantis.
As histórias desses personagens vêm à luz, nesta obra, como re-
sultado do esforço conjunto de um grupo de 44 estudantes do
curso de Jornalismo da UFRN. Eles aceitaram o desafio proposto
pela professora de Estilos Jornalísticos, esta que vos escreve, e
pelo mestrando John Willian Lopes, estagiário de docência: pro-
duzir material jornalístico suficientemente interessante para ser
reunido em um livro, ao final da disciplina.
Ao longo do segundo semestre de 2016, a turma trabalhou na
produção das pautas, e na realização, redação, edição e revisão
das 12 entrevistas – numa delas, excepcionalmente, foram ou-
vidos dois jornalistas, escritores e amigos: Paulo Nascimento e
Rafael Barbosa. Nas tarefas de escrita e edição, na checagem de
dados na revisão dos textos, em todas as etapas, os estudantes
se empenharam em oferecer o melhor resultado possível de seus
esforços.
Eles ouviram homens e mulheres que têm em comum a formação
em jornalismo, a experiência profissional e o irresistível pendor
para a palavra escrita incapaz de se conformar ao espaço-tempo
das notícias. Isso porque trata-se de palavra de outra natureza:

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habita o terreno das artes literárias, esse terreno exigente, pedre-
goso, não raro angustiante, mas extremamente compensador de
ser percorrido, como atestam os nossos entrevistados.
As conversas giraram em torno de diferentes assuntos, incluin-
do o amor aos livros, a opção pelo jornalismo como profissão e
a tarefa do escritor. E a todos foi feita uma única pergunta em
comum: A literatura salva? Gustavo Sobral recorre a Ferreira
Gullar para dizer que sim: “Porque a vida não basta”. Themis
Lima, ao contrário, recusa-se a pensar na literatura como forma
de salvação: “Acho que a literatura está no mesmo patamar do
ato de entrar no mar e mergulhar. É uma vivência. Ela transfor-
ma, na medida em que qualquer vivência humana transforma”.
Para alguns, a salvação está na chance de se perder: “Na litera-
tura, a gente se perde, e perder-se é o mais importante na vida”,
diz Antonino Condorelli. Para outros, no entanto, talvez seja a
oportunidade de se encontrar, como é o caso de Josimey Costa:
“[a literatura] salva de me perder dentro de mim mesma. Salva
você de você mesmo. E essa é a grande salvação”.
Em alguns casos, é pelo acionamento dos sentidos que a lite-
ratura pode ser pensada como uma forma de resguardo pesso-
al. Para Adriano Gomes, “leitura é catarse, é prazer, é contenta-
mento”. Com ele concorda Flávio Rezende: “A literatura é um
prazer (...) se salva, se não salva, eu não sei, mas acredito que
é prazerosa e proporciona outras virtudes”. Pela mesma vereda
seguem Adriano Cruz, para quem a literatura “sufoca, emociona,
desestabiliza, violenta, mata, cura”; Glácia Marillac, que vê, na
poesia, ferramentas para que se possa levar “uma vida mais leve,
mais sábia”; e Rafael Duarte, que atribui aos livros a tarefa de
alimentar a alma.
A literatura pode não salvar a quem pretenda viver da venda
de livros, atesta, como bom humor, Rafael Barbosa, mas ajuda a
constituir a e nutrir nossas visões do mundo porque nos leva a

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pensar, observa Emanoel Barreto. Com ele faz coro Paulo Nas-
cimento, para quem o livro é uma poderosa arma de combate à
ignorância: “É um objeto capaz de fazer com que tiremos as ven-
das dos olhos para enxergar um mundo novo a cada página”. No
entanto, como enfatiza Luan Xavier, “falta uma política pública
de incentivo à leitura”, o que se evidencia na baixa aquisição de
livros no Brasil, quando comparado a outros países.
A despeito das dificuldades, a vida parece funcionar melhor na
companhia das palavras e dos livros. Porque, no fundo, a leitura
e a escrita são duas potentes formas de autoconhecimento, como
nos ensinou José Saramago, ao constatar: “Somos todos escrito-
res, só que alguns escrevem e outros não”. De Saramago, aliás,
diga-se que também viveu do jornalismo por algum tempo, antes
de transformar no único Prêmio Nobel de Literatura da língua
portuguesa.

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EMANOEL BARRETO

“A necessidade de escrever, em mim,


é um tanto quanto compulsiva”
Mestre de gerações de jornalistas e leitor voraz,
ele conta como a profissão foi fundamental para
a sua formação de escritor.

Por Amanda Lima, Helena Rodrigues,


Liene Titan e Luciana Salviano

Jornalista por paixão e escritor por vocação, Emanoel Francisco


Pinto Barreto nasceu em Natal, em 1951, e começou sua carreira
no início dos anos 1970, no jornal Diário de Natal, após subme-
ter-se ao crivo do lendário editor Luis Maria Alves. Em seguida,
passou pela Tribuna do Norte e A República, tornando-se re-
ferência do jornalismo na capital potiguar. Doutor em Ciências
Sociais, Barreto ingressou na docência em 1998, na UFRN, onde
ministrou aulas no curso de Jornalismo até se aposentar, no iní-
cio de 2016.
Com três livros lançados, Os crimes do padre Heusz é sua primeira
ficção e causa espanto pelos personagens sombrios. Atualmente,
Barreto dedica-se ao blog Coisas de Jornal e à produção de qua-
tro livros que pretende lançar em breve. “Por algum motivo paro
um [livro] e começo a escrever o outro”, conta.
Filho de um comerciante e uma funcionária pública, ele cresceu
na rua Princesa Isabel, centro da capital, e sempre teve acesso

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à literatura. Desde cedo, contou com a imaginação fértil para
criar suas próprias brincadeiras e histórias mirabolantes, que se
desenvolviam no quintal de sua casa, até que seus pensamentos
extrapolaram a barreira do imaginário e ganharam forma através
das letras. Logo se afeiçoou aos livros e passou a visitar a bibliote-
ca do Sesc Rio Branco. Também foi muito incentivado pela mãe,
que comprava livros clássicos em versões infantis, o que ajudou
Barreto a refinar o gosto pela leitura.
Mas nem sempre foi assim. “Deixe-me contar como fugi do jar-
dim de infância. A turma foi ensaiar uma música e o meu instru-
mento eram dois pauzinhos, que achei muito sem graça. Queria
a bateria, mas a professora, que era uma freira, não deixou. Eu
não tinha a menor ideia de como tocar bateria, mas o objeto me
encantou. E quando fui contrariado, saí correndo sem saber para
onde e prometi que não voltaria mais, como de fato não voltei”.
Barreto só retomou os estudos aos sete anos, bem longe daquela
escola e sempre com convicções bem claras.
Numa manhã de domingo, fomos recepcionadas pelo professor
aposentado da UFRN, que nos mostrou seu refúgio - “um pre-
sente de Teresinha [a esposa], que preparou tudo para que fi-
casse com a minha cara”. E ficou. Logo ao entrar nos deparamos
com sua biblioteca, na qual guarda os livros que começaram a
acompanhá-lo ainda na infância. Na parede ao lado, lembranças
dos tempos áureos como jornalista, como a reportagem que fez
sobre a vinda do Papa João Paulo II a Natal e uma carta de agra-
decimento do Vaticano pela matéria, motivos de grande orgulho
para ele. Também estão lá o quadro pintado pela neta - e que
“vale mais que Monalisa”, diz, orgulhoso -, sua primeira máquina
de escrever, câmeras fotográficas antigas, uma vitrola onde ouve
seus vinis e um relógio artesanal, feito por ele mesmo. “Esse é o
único relógio que uso, porque não tem números e escolho que

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horas são”, explica, bem-humorado, justificando que tem aversão
a números e a tudo que esteja relacionado a eles.
Mestre Barreto, como costuma ser chamado por diferentes ge-
rações de jornalistas potiguares, fez questão de nos tranquilizar
logo no início da entrevista: “Não estou aqui no papel de profes-
sor. Sintam-se como colegas”. E assim, começamos.

Quando a literatura entrou em sua vida?


Emanoel Barreto: Na infância. Desde menino gostava de ler e
tinha muito incentivo da minha mãe, que comprava livros pe-
quenininhos para mim. Li D. Quixote e algumas coisas de Shakes-
peare, em versões infantis. Acho interessante porque via o nome
Shakespeare e não sabia pronunciar, então falava “Shechesprake”.
Dizia: “Meu Deus, quem é esse tal de Shechesprake” (risos).

Como era sua relação com os livros, quando criança?


EB: A minha mente foi muito povoada pela literatura infanto-
-juvenil, e entrava aí Monteiro Lobato, A ilha do tesouro, O último
dos moicanos. Depois vieram José de Alencar e todos os clássicos
brasileiros, à medida que fui amadurecendo. Na juventude, me
lembro bem de um autor chamado Hermann Hesse, que escreveu
O lobo da estepe, e houve um livro que me influenciou já adulto, que
foi 1984, de George Orwell. Tudo o que ele falou está se concre-
tizando, não através do Estado, mas através da mídia. O Grande
Irmão está aqui nessa tela de computador. A par disso, na infân-
cia eu lia muita história em quadrinhos, que as mães detestavam.
Mas eu dizia: “Mamãe, eu estou lendo também”. Aquilo foi co-
lando em mim e com o tempo surgiu a necessidade de também
escrever sobre aquelas coisas, mas aí já foi mais velho, aos 17 anos.

Quando você começou a escrever?

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EB: Lembro bem que uma das primeiras coisas que escrevi foi
a história de um vaqueiro que perdia sua vaca, a Mangaba, e saía
do interior para a cidade grande, à procura dela. Aquela figura
vestida de couro, em cima de seu cavalo Soberano (inspirado em
animais que existiam no sítio de minha mãe), de repente se via na
cidade grande, que poderia ser qualquer cidade, como São Paulo,
por exemplo, um lugar em que aquele homem não se encontra-
va, que não era ambiente para ele. Eu, com 17 anos, consegui ter
essa sacada sem ter nenhum conhecimento de mundo que tenho
hoje, aos 65 anos. Esse homem saiu em busca de Mangaba e não
terminou bem. Se não me engano, ele acabou virando pedreiro na
cidade grande. Essa história foi publicada no jornal A República.
Sempre tive apreço pelo fantástico. Eu gostava muito de inven-
tar, e escrevia muito, mesmo sem referenciais. Minha cabeça era
cheia de ideias. Talvez os quadrinhos tenham influenciado essas
criações fantasiosas, mesmo que de maneira subliminar.

Suas histórias são repletas de imaginação. Isso vem da in-


fância?
EB: Meu mundo era meu quintal. Minha imaginação incluía
índios, espadas e plantações, influenciadas pelas histórias em
quadrinhos. Isso até começar a estudar, o que foi um tormento,
porque fui tirado da zona de conforto. Mas, ao mesmo tempo,
descobri a palavra como elemento de vivência e experiência de
vida. Me lembro exatamente do momento em que estabeleci um
relacionamento contencioso com a matemática, aos sete anos de
idade. Tenho pavor de tudo o que diga respeito a número. Aprendi
o abc, e a palavra sempre foi muito substantiva para mim. Eu via
as palavras. Mas quando aprendi os números, na minha cabeça era
um novo alfabeto que não servia para nada. Então, lembro o mo-

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mento em que passei a literalmente odiar os números. Não tenho
relógio, não sei a placa do meu carro. Eu sou um homem da palavra.

Qual é o seu livro de cabeceira?


EB: Atualmente, estou lendo quatro livros de uma vez (risos).
Mas o meu livro de cabeceira mesmo, que eu amo de paixão, é
1984, de George Orwell. É uma edição antiga, porque não gos-
tei muito da tradução da edição mais nova. Esse livro faz parte
até da minha tese do doutorado, porque peguei o duplo pensar e
misturei com ideologia.

Quem é o seu guru na literatura?


EB: Posso dizer que não me sinto influenciado diretamente por
nenhum autor. Não estou tentando negar a questão da intertex-
tualidade; ela existe. Mas não me sinto influenciado por Jorge
Amado ou por Gabriel Garcia Márquez, por exemplo. Talvez
possa ter alguma proximidade com Kafka. Acho que nesse livro
(Os crimes do padre Heusz), tem algumas coisas que podem ser um
pouco kafkanianas. Mas penso que consegui o desligamento de
outros autores a partir da prática da escrita. Consegui me cen-
trar. Consegui ter um jeito próprio de escrever a partir da minha
abordagem do mundo, claro, com influências ideológicas das lei-
turas que tive. Vejo o mundo como um labirinto, com muitas ar-
madilhas. Você entra em uma porta, sai em outra e não para nun-
ca. Essa foi a ideia que tentei passar no livro: uma continuidade.
Ele foi feito em um único capítulo para não termos a sensação de
quebra. Foi aí que acredito ter criado a minha forma de aborda-
gem, o meu universo de compreensão das coisas. Acredito que
achei o meu próprio estilo através da criação de personagens que
são como metáforas da vida. Para mim, plágio é algo impensável.

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Por isso, busco me afastar ao máximo de influências externas. A
minha temática é urbana e universal.

A profissão de jornalista proporciona um contato maior com


a vida de várias pessoas. Isso serve de inspiração para a sua
escrita?
EB: Ah, com certeza! A influência do jornalismo foi muito im-
portante para a minha formação como escritor. Principalmente
na vivência com o drama social, humano, da favela, da imundície
da delegacia que eu tinha de frequentar. A minha vivência no jor-
nalismo policial e até mesmo no ambiente político, me ajudou
muito. O mundo do crime é um universo fantástico. Por exem-
plo, eu cobri um assassinato no Canto do Mangue, quando ainda
vivia a minha infância jornalística; eu tinha apenas alguns meses
no jornal. Sabe aquelas cenas de filme de terror, onde uma mão
manchada de sangue desce pela parede? Pois esse foi o cenário
que presenciei. Cheguei ao local e vi uma mulher nua, esfaqueada
da cabeça aos pés, com mais de 70 golpes. Tinha sangue por toda
parte. O crime envolvia um triângulo amoroso digno de Nelson
Rodrigues. Esses acontecimentos, de maneira geral, acabaram
formando o ambiente em que o padre Heusz está inserido.

A religião está presente em sua vida?


EB: Não sou muito religioso. Fui criado dentro do catolicismo,
estudei em colégio religioso e mamãe lia a Bíblia o dia todo. Bem
ou mal, eu conhecia algumas passagens bíblicas.

A obra Os crimes do Padre Heusz é composta por persona-


gens sombrios. Como explica essa preferência?
EB: Eu tinha uma tia que era freira, e que morreu muito nova.
Poucos dias após sua morte, estava dormindo e, por algum mo-

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tivo, acordei no meio da noite. O que vejo: a minha tia flutuando
no ar. Eu fiquei olhando. Ninguém nunca tinha me falado sobre
alma. Nem sabia que existia alma e fantasma. Era absolutamente
inocente a respeito de assuntos místicos, a não ser o fato de ir à
missa e acreditar em Deus. Ela ficou olhando para mim e eu dis-
se: “Benção, tia Cença!”. Corri para o quarto de mamãe, gritando:
“Mamãe, tia Cença voltou!”. E quando retornei, ela tinha desa-
parecido. Essa experiência fantasmagórica, absolutamente inex-
plicável, pode, de alguma maneira, ter me influenciado a abordar
essa temática e a criar esses personagens sombrios, que questio-
nam os aspectos existenciais, no livro Os crimes do padre Heusz.

Como surgiu a ideia de criar um padre justiceiro?


EB: Eu queria escrever no meu blog (Coisas de Jornal) uma his-
tória em capítulos sobre um jovem padre justiceiro, que iria ma-
tar bandidos e políticos desonestos. Só que achei que seria muito
fácil escrever assim, então parei e esqueci. Até que uma noite,
tive um insight e me veio a frase: “O salário do pecado é a morte”.
Foi daí que tirei o gancho para escrever o livro.

Em Os crimes do Padre Heusz, encontramos uma pitada de


realismo fantástico. A inspiração vem desde os seus primeiros
contos?
EB: Com certeza! Essa essência do fantástico nunca deixou de
me acompanhar, especialmente porque tenho uma visão muito
perplexa das coisas da vida.

A internet serve de plataforma para aspirantes a escritores


e autores consagrados mostrarem seu trabalho. Como a rede
mundial de computadores entrou na sua vida?
EB: Sou um blogueiro por acidente de percurso. Aliás, o pri-

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meiro blog do mundo quem fez fui eu, quando ainda nem existia
esse nome. Não tenho como provar, mas se não fui o primeiro
blogueiro, fui um dos primeiros. Foi nos anos 1990, logo que sur-
giu a internet. Naquela época, era preciso comprar uma placa de
internet para colocar no computador e se inscrever em um prove-
dor. Um dia tive a ideia de sugerir ao provedor que eu escrevesse
diariamente um noticiário para eles, e eles ganhariam dinheiro
através da quantidade de acessos, porque a internet era paga por
hora. Eles toparam, e então criei um blog chamado Natal Urgen-
te. O pessoal do provedor não sabia como fazer a página, então
eu mesmo fiz o layout. Foi um trabalho muito sofisticado. Con-
videi amigos para escrever colunas, um pessoal mais jovem para
fazer umas charges. Tinha artigos, espaço para cartas e notícias
em geral. Esse blog estourou. Teve milhares de acessos e batia
cabeça com os portais que já existiam na época. Inclusive, um
grupo de cubanos que moravam em Miami descobriu o blog e
mandava cartas pra mim, protestando contra Cuba. Tinha gente
de esquerda que escrevia e eu publicava também. Era atualizado
todos os dias. Infelizmente, não tenho o registro do conteúdo,
porque o provedor deletava uma postagem para colocar a outra.
Aí, perdeu-se tudo. A página acabou quando o provedor quis que
eu pagasse para hospedar o blog, e eu não podia, porque não ti-
nha patrocínio. Quando eu ia às agências, eles diziam que não
queriam, porque aquilo não tinha futuro. Mas eu estava adiante,
no tempo.

E o blog Coisas de Jornal, como surgiu?


EB: Coisas de Jornal tem mais ou menos 12 anos. Surgiu a partir
da minha necessidade de escrever. A necessidade de escrever, em
mim, é um tanto quanto compulsiva. Então, escrevo textos pare-
cidos com os que produzia para o Natal Urgente.

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Em sua opinião, a literatura salva?
EB: Eu acho que salva, a partir do momento que você faz uma
reflexão sobre si, sobre o outro e as circunstâncias. A literatura
salva à medida que te leva a pensar, a se antecipar, a se colocar
diante de si próprio como se fosse um espelho da alma - me des-
culpem a palavra meio romântica. Em alguns casos, é possível ver
a alma do autor colocada naquela obra. A pessoa imerge na lei-
tura, e não apenas lê, mas vive aquela história. A literatura pode
até suprir algumas limitações. Por exemplo, você não necessaria-
mente estuda filosofia, mas a partir da leitura de um livro, pas-
sa a ter determinada visão de mundo. A leitura também é muito
importante para melhorar a escrita.

22
GLÁCIA MARILLAC

A poesia como sentido


para uma vida mais leve
Autora de “O amor é – 108 poemas para
simplificar a vida”, a jornalista procura
conjugar literatura e espiritualidade

Por Denyse Campos, Fernanda Oliveira,


Michael Pontes e Thalita Freitas

Com a voz calma, como quem conta um segredo, Glácia Ma-


rillac abre seu livro de poesias e lê um trecho escolhido aleatoria-
mente. Sem grandes pretensões, ao iniciar a carreira como escri-
tora, a jornalista se perguntava até onde poderia ir: “Como faria
poesias, se não sou nada romântica?”. Aos 40 anos, Glácia pode
acrescentar esse feito à sua história de vida com o livro O amor
é – 108 poemas para simplificar a vida.Apresentadora do quadro
Simplifique, veiculado no programa Resenhas do RN, da Inter-
TV Cabugi, Glácia divide seu tempo entre o ofício e Helena, a
filha de 5 anos e maior fonte de inspiração. Sua primeira incur-
são nas terras da literatura foi como coautora do livro Dagmar
– A prática de amar. Porém, foi envolvida em um projeto da escola
da filha que recebeu um novo chamado para a escrita. “Eles (os
professores da escola) disseram que eu deveria escrever um li-
vro sobre o amor. “Perguntei: eu? Mas por quê?”. De fato, as pri-

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meiras poesias não foram bem sucedidas, como conta, mas ela
não se deu por vencida e pouco tempo depois nasceu O amor é.
Com prêmios acumulados na longa carreira como jornalista,
dois livros lançados e um a caminho, Glácia procura harmonizar
seu lado profissional com o espiritual. Considera-se uma pessoa
espiritualizada e leva esta noção para seus livros. “Preciso viver o
que escrevo, senão não adianta de nada”, completa.

Como você começou a escrever?


Glácia Marillac: Uma vez perdida eu tinha escrito uma poesia.
Uma poesia linda, chamada “Primavera Nordestina”: “Aqui seu
moço, as flores marcam data para nascer não, nascem em qual-
quer estação, nascem na chuva, nascem no sol, nascem no arder
do sertão, se erguem do nada, surgem com tudo, fazem a vida
florescer”. Esta veio do nada.

Quando a poesia retornou para sua vida?


GM: Com a escola da minha filha, que tem base indiana e en-
volve muito os pais. Lá, eles trabalham com a pedagogia do amor.
Todos os dias, fazem uma meditação de 30 minutos. Em uma
dessas meditações, sentiram que eu deveria fazer um livro de po-
esias sobre o amor. Quando me disseram, indaguei o porquê de
ter sido a escolhida, e me responderam que eu estava preparada.

E aí decidiu escrever o livro?


GM: Fiquei me perguntando como faria essas poesias, se não
sou nada romântica. Fiz quinze, para que eles pudessem avaliar.
Pensei que estava abafando, mas ao apresentar essas poesias, eles
me deram um sonoro “não”. Elas estavam boas para a mente, mas
não para o coração, segundo eles. Queriam poesias que tocassem
a todos, de qualquer religião, idade e classe social.

25
No seu livro há 108 mandalas. Por quê?
GM: Foi um pedido da escola, mas não fui eu quem fez. Foi
outra mãe de aluna do colégio. O livro tem 108 poesias, igual ao
terço do rosário. Para eles, este é um número que leva ao infinito.

O que acredita ter mudado em você depois do livro?


GM: O que o jornalista faz? Reporta o que os outros fazem. O
escritor reporta sua vivência, acredita e tenta viver. Não é à toa
que, quando estou caindo, começo a pensar: “Tenho de aplicar o
que escrevi”. A partir deste livro, nasceu uma vontade, uma obri-
gação de aplicar o que escrevo.

Um exemplo.
GM: A minha filha, Helena, tem cinco anos. Ela tem um gênio
muito forte. Quando estou brava com ela, lembro de algumas das
poesias, para que eu me acalme e fale da maneira correta com ela.
O livro virou uma espécie de bíblia pra mim.

Você lê poesias?
GM: Sim, gosto muito de cordéis. Escrevi três para minha filha
e também um que fez parte de um grande projeto da InterTV
durante a Copa do Mundo de 2014. Gosto dos poetas clássicos,
como Fernando Pessoa, e alguns que surgiram recentemente,
como o Zack Magiezi.

Sua filha lê o que você escreve?


GM: Eu deixo livros espalhados por toda a casa, e ela já lê pe-
quenos trechos.

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O que você diria para um escritor iniciante?
GM: Meta a cara! Se você tem vontade de fazer alguma coisa,
faça. Ninguém tem obrigação de nada – aquela história de plan-
tar uma árvore, ter um filho, escrever um livro. Você tem que fa-
zer o que deseja. Vá, sem expectativa.

Por que a maioria das pessoas não lê poesia, em sua opinião?


GM: Penso que muitas pessoas não leem poesias porque não fo-
ram incentivadas na infância ou porque tiveram acesso a poesias
muito difíceis de serem compreendidas e se afastaram do gênero.

Você já pensou em escrever um livro sobre os bastidores da


profissão de jornalista?
GM: Não tenho vontade. O que tenho é vontade de escrever ou-
tros livros. Eu já estou escrevendo, na verdade, e vocês vão saber
em primeira mão (risos). O livro terá entrevistas com Leonardo
Boff e Prem Baba, que foi o primeiro brasileiro a assumir uma
dinastia indiana. Ele não prega uma religião, ele prega o amor. As
entrevistas são com pessoas que eu considero mestres. O livro
tem o título provisório de A paz ao entardecer.

O que é a felicidade?
GM: A felicidade é compreender que você está numa vida, está
vivo, mas que daqui a algum tempo estará morto. Isso faz parte
de um processo que você tem de aceitar. A perfeição é impossí-
vel. É preciso aceitar a vida como ela é. Se é boa, é porque você
mereceu que seja. Se não está boa, é porque você ainda vai ter de
aprender alguma coisa com aquilo ali.

27
E espiritualidade?
GM: Espiritualista é aquela pessoa que entende que não é a re-
ligião que salva, é o amor. Porque Deus está em todo canto, basta
você enxergar. Perguntaram ao Dalai Lama se ele se sentia um ser
iluminado e ele respondeu: “Se ser iluminado é ver todo mundo
como igual, é me sentir igual a todo mundo, eu sou iluminado”.
Acho que ser uma pessoa espiritualizada é ser assim. A pessoa
espiritualizada não briga por religião, porque ela sabe que Deus
é amor. E o amor não briga, o amor cede.

A literatura salva, em sua opinião?


GM: Eita! Literatura salva? É um caminho para a salvação. Meu
pai falava assim: “Você tem duas formas de aprender na vida:
quebrando a cabeça ou aprendendo com quem já quebrou”. En-
tão acho que uma pessoa que já lançou um livro, salvo algumas
exceções, no mínimo já quebrou a cabeça algumas vezes, não é?
A poesia, a literatura, dão ferramentas para levarmos uma vida
mais leve, mais sábia, em busca dessa espiritualidade, desse amor
universal. Então, a literatura não salva, mas é um caminho para
a salvação.

28
RAFAEL DUARTE

Porque escrever
sempre vale a pena
Autor da biografia de Carlos Alexandre,
jornalista acredita que os livros alimentam a alma

Por Amanda Gehlen e Carla Menezes

Brasiliense, dono de um humor peculiar, ativista político, fla-


menguista de carteirinha, jornalista e escritor. Este é Rafael Du-
arte, nascido em 1979 e autor do livro O homem da Feiticeira, uma
biografia não autorizada do cantor Carlos Alexandre, falecido
em 1989. Apesar de ter referências literárias que vão de Nelson
Rodrigues ao novato Tom Cardoso, o jornalista considera que
lê menos do que deveria, embora defenda que a literatura é o ali-
mento da alma.
Foi após um momento “eureca”, durante uma caminhada na
praia, que Rafael decidiu cursar jornalismo. Até então, seu ob-
jetivo era cursar medicina e se tornar pediatra. Essa é a primeira
indicação de que o nosso entrevistado não é homem de uma te-
mática só. Rafael é curioso por natureza, é um verdadeiro apai-
xonado por histórias e pelo ato de contá-las.
Estudante da UFRN, foi na TV Universitária que deu o pontapé

30
inicial em sua carreira, com a produção de minidocumentários
sobre biologia. Depois de uma passagem pelo programa TVU
Esportes, conseguiu um estágio no extinto Diário de Natal – de-
pois de, insistentemente, entregar o currículo na sede do jornal.
Mais tarde, passou pela Tribuna do Norte, um sindicato e o Novo
Jornal. Hoje, porém, Rafael já não sente a pressão do deadline,
nas redações: atualmente trabalha como assessor da Secretaria
de Planejamento do Estado. Em nosso bate-papo, ele nos contou
detalhes sobre o início da carreira, a inclinação para o ativismo
político e sua relação com a literatura.

Qual foi o seu primeiro contato com a literatura?


RD: Foi no colégio, com o livro Garra de campeão, de Marcos
Rey. Foi um daqueles livros que a professora obrigava a gente a
ler. Quando eu era pequeno, não era muito de ler, não. Passei a
tomar gosto por leitura na faculdade, mesmo. Acho inclusive que,
como a maioria das pessoas, ainda leio menos do que deveria.

Quais são suas principais referências hoje, na literatura?


RD: Gosto muito de Nelson Rodrigues. Acho fantástica a obra
dele, tanto a jornalística como as crônicas. Li Machado de Assis
também e tantos outros, mas nunca fui de um cara só, na verda-
de. Me apaixonei mesmo foi por biografias. Gosto de Fernando
Moraes e também de um cara novo, o Tom Cardoso, que escreveu
a biografia do Tarso de Castro. Pouca gente o conhece, mas Tarso
foi o cara que idealizou O Pasquim. Tenho vontade de ler mais
Guimarães Rosa, também.

Em casa, tinha incentivo à leitura? Seus pais liam muito?


RD: Meu pai sempre foi mais de jornal. Já minha mãe não lia

31
muito. Eu mesmo lia muito o caderno de esportes do jornal.
Acompanhava as matérias sobre o Flamengo e até comprava re-
vistas para ler sobre meu time.

Por que você escolheu jornalismo?


RD: Boa pergunta. Fiz cinco vestibulares para medicina. Mas
um dia fui caminhar na praia, e decidi que não queria mais. Eu
não era um leitor voraz enquanto adolescente. Gostava de escre-
ver redação, e não sei se foi por causa disso também. Sei que nes-
sa caminhada, resolvi fazer vestibular para outra coisa, e fiquei
entre jornalismo e publicidade. Entrei para Jornalismo e não me
arrependo.

Você atuou no Centro Acadêmico do curso de Comunicação


Social da UFRN. Fale dessa experiência.
RD: Duas semanas depois que entrei na faculdade estourou
uma greve, em 2001. Eu era o único aluno de Comunicação Social
na mobilização. O pessoal acampou na reitoria, e aí comecei a me
aproximar do movimento estudantil. Teve uma eleição depois e
entrei como diretor de formação política. Na eleição seguinte, fui
presidente do Centro Acadêmico.

Com o que você gosta de trabalhar, no jornalismo?


RD: Gosto de política e me aproximei da cultura. Sempre gostei
de música e esportes. Na verdade, futebol. O Flamengo (risos).
Quando recebi o convite da Tribuna para escrever sobre cultura,
adorei. Mas era só um repórter para escrever sobre tudo e fechar
uma ou duas páginas por dia. Acabei ficando por dois anos, me
aporrinhei e fui trabalhar com sindicato. Trabalhei no sindicato
dos bancários, no sindicato da saúde e senti saudades do jornal.
O Diário me chamou em setembro de 2009, quando já estava pas-

32
sando pela grande reformulação e no final de outubro estava nas-
cendo o Novo Jornal. Carlos Magno, que tinha me aceitado como
estagiário no Diário lá atrás, era o diretor de redação do Novo e
me convidou para ser repórter especial. Fiquei quatro anos por
lá. Passei alguns meses como chefe de reportagem e foi uma ex-
periência horrível. Não sinto saudade.

Foi aí que você resolveu escrever o livro?


RD: O livro surgiu em 2012, quando o editor da Caravela Cul-
tural, José Correia Torres, inscreveu um projeto chamado “Bio-
grafias” na Lei Djalma Maranhão. A ideia era biografar quatro
personalidades da cultura. Um dos quatro escritores escolhidos
se desentendeu com a família do biografado, não quis mais fazer
e fui chamado. Entre os nomes disponíveis estava o de Carlos
Alexandre e a primeira pergunta que fiz foi: “Esse cara é daqui?
Ele fez muito sucesso”. Aí, resolvi fazer. De cara, fiz uma experi-
ência para saber se as pessoas conheciam meu biografado. Sentei
num bar e perguntei a um homem se conhecia Carlos Alexandre.
Ele me perguntou se era algum candidato a vereador (risos). Vi
que aquele lugar, na Zona Sul, era o último no qual eu deveria
pesquisar. Carlos Alexandre foi famoso na periferia. Descobri
um mundo ao qual não pertencia. Sou um cara de classe média,
meu pai é bancário aposentado, minha mãe é funcionária do Mi-
nistério de Minas e Energia. Trata-se de uma tradicional família
de classe média. O brega só era ouvido, lá em casa, da porta da
cozinha para dentro.

A biografia de Carlos Alexandre é não autorizada. Você teve


algum problema com familiares ou amigos dele durante a
produção do livro ou depois?
RD: Teve um caso, só. Carlos Alexandre era um cara da perife-

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ria, que quase morreu quando era pequeno. Era o sétimo filho e a
mãe os distribuiu. No interior, a iniciação sexual dos homens às
vezes acontece com animais. Isso é comum. Um amigo do Car-
los falou que a primeira vez dele foi com uma burrinha. O filho
pediu para tirar [a informação do livro] e eu me recusei. Ele era
conhecido pela atividade sexual, além da música. A viúva dele
fala abertamente sobre isso e eu falo no livro, porque tem a ver
com a obra.

O Rio Grande do Norte é rico em personagens. Você preten-


de biografar mais alguém?
RD: O RN tem muitos personagens interessantes. Aluízio Alves
é um grande personagem. Até Fernando Morais (autor de Olga,
Chatô, o rei do Brasil, entre outros) já disse que faria uma bio-
grafia dele. Já comecei e parei uma biografia sobre o Caximbinha,
um cara do choro, o nosso Pixinguinha, que não teve o devido
reconhecimento.

Você prefere escrever livros ou estar na correria das re-


dações?
RD: Ainda não sinto falta da redação, nem nas grandes cober-
turas. Procuro escrever de um jeito simples, sem rebuscamento.
Se é jornalismo literário, que bom. Quero que as pessoas gostem
e eu me sinta bem. Não é uma coisa pensada: “Ah, vou fazer jor-
nalismo literário”. Eu tive dívida com o livro. A primeira edição
foi patrocinada pela Lei Djalma Marinho e não podia ser vendi-
da. A segunda, eu banquei. Eu mesmo vendo o livro num site.
Aconteceu uma coisa que parece simples, mas é o que faz valer a
pena escrever. Fui à casa de uma amiga, e o porteiro perguntou
meu nome. Quando disse que era Rafael, perguntou meu sobre-
nome. Ao ouvir a resposta, quis saber se eu tinha escrito o livro

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do Carlos Alexandre. Ele disse que adorou o livro, tinha a capa do
livro no celular. Não sei quantos livros ele leu, mas tirou parte do
tempo dele pra ler o meu e gostou. No Facebook, sempre recebo
depoimentos assim. Embora não tenha dado lucro, vale a pena.

Para encerrar: a literatura salva?


RD: Eu acredito que ela não só salva, como também alimenta.
É clichê dizer isso, mas a literatura realmente alimenta a alma.

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LUAN XAVIER

O escritor que não


gosta do que escreve
Repórter conta como uniu desejo de valorizar
ídolo do esporte potiguar com oportunidade
para exercitar a arte literária

Por Keyson Cunha e Mikarla Pereira

Nascido em 8 de junho de 1991, o jovem Luan Xavier é pernam-


bucano e logo cedo veio morar em Natal, onde viveu parte da in-
fância e adolescência. Menino apaixonado por literatura, herdou
dos pais o prazer da leitura. Ele costumava ler de jornais impres-
sos a livros de Gabriel Garcia Márquez, enfileirados nas prate-
leiras da avó. Porém, as histórias que chamavam mais atenção
eram biografias e livros-reportagem. Desde menino, Luan sempre
teve ligação com o futebol. Torcedor apaixonado do Sport Clu-
be do Recife, fez do estádio a sua segunda casa. Nos estudos, o
interesse pelos livros o levou a optar pelo curso de Comunicação
Social (Jornalismo) da UFRN. Nesse período, a paixão por his-
tórias uniu-se à paixão pelo esporte e, assim, parte da sua vida
acadêmica foi dedicada ao mundo esportivo. A necessidade do
reconhecimento de um grande ídolo potiguar fez com que Luan
decidisse fazer um trabalho de conclusão de curso sobre Mari-
nho Chagas (1952-2014), do qual resultou o livro A Bruxa e as vidas

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de Marinho Chagas, editado pela Tribo. A publicação fez sucesso
entre os fãs do atleta e amantes do futebol. Hoje, Luan é editor de
conteúdo do Novo Jornal. Modesto, o jornalista diz não se consi-
derar escritor, mas sim, um jornalista que gosta de ouvir e contar
boas histórias.

Como o jornalismo surgiu na sua vida?


Luan Xavier: Entrei na faculdade em 2009, almejando jornalis-
mo impresso. E como em Recife havia o Diário de Pernambuco,
acabei descobrindo que este jornal era associado ao Diário de
Natal. Aí coloquei na cabeça que tinha de ir para o Diário de Na-
tal. Foi onde tive o meu primeiro estágio. No DN fiz polícia, eco-
nomia, política, mas meu foco era esporte. Depois fui trabalhar
como repórter no Novo. Fui correspondente do Estadão durante
a Copa do Mundo de 2014.

Você acredita que a forma de fazer jornalismo está mu-


dando?
LX: Nós temos mudado muito, não é? Sempre me incomodei
muito com o jornalismo esportivo, principalmente aqui, porque
via que era mais tratado como show. Havia muito entretenimen-
to e pouco jornalismo. No meu caso, tentei ser repórter mesmo,
perguntar, fazer questionamentos, reportar a realidade. Vi exem-
plos que não eram positivos, de gente que dava mais espaço para
promover o esporte do que para reportar, e isso me trouxe mui-
tos problemas. Eu não ia atrás do que a fonte queria dizer, mas do
que eu queria perguntar. E era mal interpretado, porque existia
toda uma cultura do afago, da promoção. Tentei, mas nunca con-
segui fazer esse tipo de entrevista promocional. Sou repórter, e
estou na entrevista representando centenas, ou milhares de tor-
cedores que querem fazer essa ou aquela pergunta. Então, vou

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perguntar o que o cara quer responder? Ou vou buscar algo que
o leitor que saber? Eu fui por esse caminho, e não tive as facili-
dades que meus colegas tinham. Mas também não reclamo. Tive
de me especializar. Hoje, dá gosto ver os projetos de jornalistas
que fazem um trabalho sério. Mas quando comecei, as minhas
referências não eram tão boas.

Que problemas você enfrentou?


LX: Muitos colegas tinham alguma relação com as fontes, e eu
não tinha. Então, podia escrever com certo distanciamento. Uma
vez, em 2010, eu estava fazendo uma matéria para um clube que
ia muito mal. Recebi uma ligação de lá, me chamando para almo-
çar com um assessor. Disseram: “Vocês estão batendo demais na
gente. Vamos nos acertar”. E aí foi quando entendi que há dois
caminhos: ser igual a essas pessoas ou fazer diferente. Outro de-
talhe: essa ligação foi de um colega de profissão. Aí fiquei numa
situação bem complicada, porque era um colega querendo me
convencer a aceitar a postura dele, erroneamente. O bom é que
isso foi no início, e eu tinha que fazer diferente. Não queria ficar
preso a uma pessoa dessas. Para minha sorte, o Novo tinha essa
postura, também. Eu acho legal quando algumas pessoas já dei-
xam claro que fazem entretenimento, e não jornalismo.

Você acredita no fim do jornal impresso?


LX: O impresso não vai acabar se soubermos nos portar. Isso
porque a televisão veio, mas o jornal ainda existe; a internet veio,
mas a televisão ainda está aí. Em contrapartida, o e-mail veio, e
o telegrama, ninguém mais usa. É relativa essa questão. Porque
depende de como a gente se comporta. Entendemos que o jornal
impresso não tem mais a função que tinha no início. Não tem a
função de informar em primeira mão. É por isso que, no Novo,

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apostamos na opinião e no relato. O impresso tem um grande
peso, porque o fato de estar no papel é totalmente diferente, gera
algo distinto. O papel ainda tem um peso histórico, é um docu-
mento.

O que você sente quando escreve? Existe alguma inspiração?


LX: Tenho muito problema com isso. Nunca gostei de nada que
escrevi. Se eu reler algo que escrevi, vou odiar. Mas escrever é
uma necessidade. Ganho a vida com isso. Eu coloquei na cabeça:
tenho de escrever a história do Marinho. Eu não revisei meu li-
vro; escrevi, só! Chamei uns três ou quatro amigos de confiança
e disse: “Vocês leiam aí, porque, se eu ler...”. Nunca li meu livro,
porque não consigo gostar do que escrevo. Mas ao mesmo tempo
em que não consigo gostar do que escrevo, não consigo parar de
escrever. Fico nesse processo meio louco.

Hoje o país tem um novo presidente, Michel Temer. Como


você analisa o atual momento político, após a saída da presi-
denta Dilma Rousseff?
LX: Acho que ninguém tem motivo para comemorar esse mo-
mento. Só o fato de ter gente comemorando já me causa preocu-
pação. Independente de qualquer coisa, o impeachment de mais
um presidente em menos de 24 anos é muito perigoso para a de-
mocracia. Nossa imagem fica ruim para o mercado. Temos visto
uma série de escândalos envolvendo os grandes partidos, e uma
coisa que sempre fui é apartidário. Não voto em partido, eu voto
em pessoas. Porque acho que as legendas não são idôneas, não re-
presentam minha ideologia. Eu voto em pessoas, na história, nas
propostas delas. A política está recheada de maus políticos, e não
vejo ninguém interessado no bem comum. Se o Brasil melhorar
com Temer, será um milagre. A reforma política tem de ser feita

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urgentemente. Ela pode nos ajudar a ter um projeto de nação.
Sem isso, eu acho que o Brasil está quebrado.

Qual a importância da literatura na vida das pessoas?


LX: No Brasil, o acesso aos livros ainda é muito deficiente. Em
outros países da América do Sul, a literatura é muito valorizada,
e olha que muitos não têm os grandes autores que temos. Não
há incentivo à cultura e nem bibliotecas públicas suficientes. Na
Zona Norte de Natal, tem uma biblioteca que fica mais tempo
fechada do que aberta. Na UFRN há uma biblioteca gigante, mas
não sei como as pessoas conseguem chegar até ela. Talvez seja di-
fícil, para alguns, pegar um livro. Nós não temos uma valorização
da literatura, da escrita.

Para você, a literatura salva?


LX: Salva, e poderia ser um mecanismo de transformação social.
Se houvesse incentivo, as coisas seriam melhores. Eu sou suspei-
to para falar, mas talvez se tivéssemos uma geração de pessoas
que se dispusesse a escrever, a se envolver em projetos de leitu-
ra... Falta uma política pública de incentivo à leitura, falta em
casa o estímulo, porque, às vezes, o problema vem da base. Gosto
muito de ler biografia e livro-reportagem. Adoro Gabriel Garcia
Márquez, Lira Neto, Guilherme Fiúza, Eliane Brum, Fernando
Morais, Caco Barcellos. Abusado [de Caco Barcellos] foi um dos
melhores livros que já li. Tem um cara chamado Andy Dougan,
inglês que escreveu Futebol e guerra, de quem também sou fã. Acho
que leio de tudo, mas me empolgo mais com essa galera aí. Sou
apaixonado por histórias reais. A realidade é mais inacreditável
do que qualquer história que a mente humana possa inventar.
Sou fascinado pela Bíblia, também. Acho incrível como uma co-
letânea de 66 livros escritos por mais de 40 pessoas seja tão coe-

41
sa e autoexplicativa. Curto muito os escritos do apóstolo Paulo,
sobretudo. Tem um texto invejável, uma retórica perfeita e um
poder de convencimento quase imbatível. Minha leitura atual é
a Carta aos Romanos, de Paulo. É uma das coisas mais incríveis
que já li.

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THEMIS LIMA

Longe dos holofotes, ela costura


trapos com a voz do anonimato
Editora de livros viajou pela América Latina para
aprender a olhar as vidas pelo microscópio

Por Amanda Costa, Anayde Góis,


Evelin Monteiro e Lorena Machado

Vinda de uma família de classe média alta, aos 21 anos a jovem


jornalista e escritora Themis Lima abandonou o conforto do lar
e saiu pela América Latina em busca de novos saberes, sabores e
de maior aproximação com o humano. Por um ano e seis meses,
juntou traços, trapos e histórias comoventes. Como resultado,
produziu o livro-reportagem Bandeira de trapos, apresentado ori-
ginalmente como trabalho de conclusão do curso de Comunica-
ção Social (Jornalismo) da UFRN. Os dez perfis escolhidos de-
ram voz à travesti, ao açougueiro, ao cantor de tango, ao homem
que contou sua vida na mesa de uma cafeteria, e a tantos outros
personagens que foram ouvidos e tiveram vez na narrativa da re-
pórter. “Para nos conhecermos como humanos, precisamos nos
relacionar com os outros. No microscópio, toda vida é extraordi-
nária, toda história é extraordinária’’, diz. Themis reúne experi-
ência e maturidade na bagagem. É idealizadora da Editora Tribo,
criada em 2013, e em 2016 criou a escola Mobidique, que oferece
cursos na área de comunicação.

44
Quando começou seu interesse pela escrita?
Themis Lima: Sempre me expressei através da escrita e entrei
no jornalismo porque gostava de escrever. Não sabia o que fa-
ria no vestibular, então minha irmã me perguntou: “Por que você
não faz jornalismo? Você não gosta tanto de escrever? Pode até
publicar um livro”. Lembro claramente. Tenho lembranças mar-
cadas por esse interesse pela escrita, mas nunca tive o objetivo
de escrever um livro. Nunca foi uma ambição. Tanto que o livro
nasceu de um trabalho de conclusão de curso. Era mais uma obri-
gação. Aí pensei: “Vou fazer um livro reportagem”. Mas nunca
achei que as pessoas teriam interesse em ler algo que escrevi.

Então a escolha da profissão foi influenciada pelo fato de


gostar da literatura?
TL: Na verdade, fui influenciada pela minha irmã. Eu não tinha
noção do que estava fazendo. Quando a gente tem 17 anos e é
obrigada a escolher um curso, é uma pressão muito forte. Eu não
sei o que vou almoçar amanhã. Como vou saber o curso que irei
fazer pelos próximos quatro anos e meio? Mas foi uma influência
positiva, porque eu admiro muito a comunicação, apesar de não
trabalhar diretamente com o jornalismo, que é a minha formação.

Como surgiu a ideia de unir histórias de anônimos em um


livro?
TL: Eu comecei a escrever numa viagem. Não viajei com o obje-
tivo de escrever um livro, mas precisava escrever meu TCC, e em
Buenos Aires morei em muitos albergues. Lembro que teve uma
época em que eu morava num quarto com dezoito camas e era
cada figura... Essas histórias, eu contava para um amigo e ele di-
zia: “Está aí o seu TCC. Você tem de escrever sobre essas pesso-
as”. Era verdade. Vi que dava para conversar com essas pessoas,

45
contar a história delas. Foi então que comecei, pragmaticamente,
a organizar com quem eu queria conversar. Comecei a acompa-
nhar alguns personagens e decidi fazer um livro-reportagem de
perfis. A ideia principal era que fossem perfis de ilustres anôni-
mos, como a gente diz no jornalismo. Tem um açougueiro, tem
um cara que fazia música no ônibus, tem uma artista plástica,
tem um cara envolvido em ONG , tem um cantor de tango, tem
um pouquinho de tudo. Algumas histórias eu acompanhei por
muito tempo, por semanas. Foi um processo no qual me emocio-
nei muito mais do que achei que fosse me emocionar. Não lembro
de nenhuma entrevista da qual eu tenha voltado para casa sem
chorar.

Cite ao menos uma, como exemplo.


TL: A última entrevista do livro é com o senhor Júlio, um argen-
tino. Ele é filho de italiano, e com a crise de 1929, o pai dele, que
era artista, perdeu o emprego e se mudou para Buenos Aires. Aos
15 anos, o senhor Júlio já trabalhava numa padaria, e viu acon-
tecer a Marcha Peronista, que é um momento muito marcante
na história argentina. Foi um momento que [Juan Domingos]
Perón virou Perón de verdade. Ele saiu da prisão por pressão po-
pular. No momento que quase 200 mil pessoas estavam nas ruas
de Buenos Aires, pedindo por Perón, o senhor Júlio estava lá, na
padaria, viu uma galera passando e foi participar também. Logo
depois, o filho dele foi preso e morto pela ditadura. Ele passou
quase duas décadas procurando pelo filho. Quando o entrevistei,
ele estava com 89 anos, e, até hoje, se dedica a procurar corpos de
pessoas sequestradas e mortas pela ditadura. Esse personagem
chegou para mim em um café. Ele chegou muito tímido, muito
velhinho, e disse: “Licença, eu venho nesse café todo dia. Eu co-
nheço todos esses cafés e o que você pediu é muito ruim”. Eu
achei aquilo muito curioso, comecei a rir e falei: “Ah, é? Qual café

46
você sugere?” Então ele começou a falar dos cafés, eu o convidei
para sentar e aí bum!, estourou essa bomba no meu colo. Esse é
um dos personagens mais queridos. A busca dele pelo corpo do
filho é uma coisa comovente. A ideia era mostrar um pouco disso:
que, no microscópio, toda vida é extraordinária, toda história é
extraordinária.

Como você entrou na vida dessas pessoas?


TL: Tem muita gente que só quer um ouvido. Às vezes, não é
fácil porque você precisa ganhar a confiança da pessoa, mas a me-
lhor forma de ganhar a confiança de alguém é sentar e dizer quem
você é, abrir um pouco da sua verdade para que ela apresente a
dela. A abordagem é o momento que dá mais receio, porque você
precisa quebrar o gelo, mas a receptividade sempre foi melhor
do que eu esperava. Muita gente queria contar a sua história. Es-
tamos tão acostumados a ouvir outras narrativas, a do cinema,
a da televisão, da literatura, mas nunca contamos a nossa. Pra
nos reconhecer como humanos, precisamos nos relacionar com
o outro. Era bom esse processo, muito construtivo. Além disso, é
importante você explicar que é jornalista e que vai usar a história
para um propósito. Um açougueiro, que é um dos personagens,
sempre perguntava o que eu ia fazer com a carne, me ensinava
receitas. Daí, foi me contando um pouco da sua história e depois
de um mês já era um grande amigo.

Quanto tempo levou a produção do livro?


TL: A viagem inteira durou um ano. Eu morava em Buenos Ai-
res, juntava dinheiro, trabalhava como garçonete e viajava pelos
países. Depois, passei mais seis meses escrevendo e estudando a
história do meu próprio continente, porque não nos reconhece-
mos como latino-americanos enquanto brasileiros. Conhecemos

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geograficamente, porque estamos dentro do continente, mas não
nos reconhecemos como irmãos latino-americanos. Não falamos
espanhol - falamos mais inglês do que espanhol -, não conhece-
mos a música latina, não conhecemos os escritores e isso me to-
cou muito. Queria me sentir “autorizada” a falar sobre a história
latino-americana para poder escrever.

Você enfrentou muitos desafios?


TL: Eu tinha um pouco de medo de ver o meu livro pronto, por-
que nunca fui de holofotes e de estar sentada assinando livros.
Sou do tipo que gosta de arrumar a mesinha para outros escri-
tores estarem ali assinando, tanto que meu livro foi o terceiro a
ser lançado depois da criação da editora Tribo. No processo da
viagem, quando fui para a Bolívia, foi uma jornada interessante e
louca. Esqueci meu casaco na mala e começou a anoitecer num
deserto a quase quatro mil metros de altura. Achei que iria mor-
rer de frio. Uma senhora me ajudou, me deu comida, cobertor,
e começou a conversar comigo. Passei por vários momentos de
duelos orgânicos e achei que não iria completar o processo, que
desistiria, pegaria o cartão da minha mãe e voltaria pra casa. Mas,
no fim, deu tudo certo.

Foi um trabalho de muita coragem. Tem gente, por exemplo,


que não se vê saindo nem para outro bairro. A ideia era essa:
se jogar no mundo?
TL: A minha vontade de viajar era uma coisa muito íntima, mui-
to pessoal, para ver se eu sobreviveria. Eu queria ver se consegui-
ria trabalhar, se aguentaria homens passando a mão na minha
bunda enquanto trabalhava como garçonete. Ainda assim, não
é a situação que você diz: “Ah, que coragem”. Acho que não seja
tanto assim, pois é muito diferente você sair de casa com a mo-

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chila nas costas, sabendo que, se desistir, pode ligar para sua mãe
e comprar uma passagem de volta para casa. Não é todo mundo
que pode se dar ao luxo de fazer isso. Eu tenho, às vezes, muita
raiva de gente que escreve no Facebook, dizendo que pensa em
largar tudo e viajar pelo mundo. Não é bem assim. Não é todo
mundo que tem condições e estabilidade para fazer isso. É sua
vida que está em jogo! Então, fazer isso sem condições, eu real-
mente chamo de coragem. Ou gente que aguenta o dia a dia que
não gosta, para sustentar uma família, é coragem também. Já eu
sair de casa com uma mochila, sabendo que podia pegar o cartão
de crédito da minha mãe para comprar a passagem e voltar para
casa, é, de certa forma, um pequeno luxo que tive. Mas aprendi
muito sobre sobrevivência, sobre mim mesma e sobre a pessoa
que eu queria ser. Foi ousado! (risos)

Será que sua história não daria um livro?


TL: Não (risos). Tenho pavor de holofotes, e me dá arrepios, da
unha do pé até o último fio de cabelo, a possibilidade de ter uma
biografia. Se eu for escrever, é sobre a história de outras pesso-
as, histórias reais. Amo ficção, mas tenho dificuldade com ela.
Vivo na esfera do real. Que grande personagem da literatura não
foi inspirado em uma pessoa de verdade, não é? Mas gosto de
gente, da história de gente. Uma preocupação que tinha, no meu
livro, era de não fingir, não omitir, não cair na liberdade poética
de inventar uma coisa só por achar que ficaria melhor na história.
Tenho um projeto com o jornalista Rafael Barbosa, de escrever
sobre o sertão. Nós temos vontade de ir para o sertão, passar um
bom tempo lá e escrever sobre, além de trabalhar na lavoura e
contar a história das pessoas que vivem naquela realidade. Então,
talvez o próximo projeto seja vinculado a isso.

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O que você pensa sobre os festivais literários que acontecem
na cidade?
TL: Eu acho que os festivais são importantes, mas ainda insufi-
cientes. Penso que os festivais utilizam muito dinheiro em estru-
turas, em montar tendas enormes e em chamar Gilberto Gil para
fazer o show, e investem muito pouco em literatura, em trazer
editoras e autores, em promover debates nos quais as pessoas vão
ter contato real com a literatura. Às vezes, esses festivais pare-
cem mais um lugar pra você levar seu filho para comer pipoca
no domingo, do que para debater literatura. Não é festival lite-
rário se está vendendo pipoca e tendo um show de Gilberto Gil.
No festival de literatura, precisamos bater papo, debater, ter um
momento de convivência. É preciso trazer autores, e isso não é
tão caro. Um cachê de banda é muito mais caro, uma estrutura
grande também é muito cara. Então, podemos aproveitar uma
estrutura que já existe, como a Pinacoteca ou o Surto Cultural.
Não precisa ser um evento gigantesco. Pode ser um evento pe-
queno, mas que traga gente da literatura para conversar sobre,
para mostrar como é acessível, como pode ser feita por todos e
consumida por todos também.

Quem te inspira na literatura?


TL: Tenho muitas inspirações, mas sinto um carinho especial
pela Eliane Brum. Ela é uma pessoa que me inspira muito, pois
tem um olhar bastante sensível para as histórias. Eu gostaria de
ser amiga dela, de tomar um café com ela e trocar ideias. Outra
inspiração muito grande são o Rafael Barbosa e o Paulo Nasci-
mento. Tenho muito carinho pelo trabalho deles enquanto jor-
nalistas. Para mim, eles representam muito do que o jornalismo
potiguar é hoje, além do caráter e do amor pela profissão.

50
E qual o gênero literário que mais te atrai?
TL: Há dois gêneros pelos quais tenho muito carinho. Gosto
muito da linguagem do conto, porque é quase como se fosse um
curta-metragem. É diferente de um romance, no qual você pre-
cisa se engajar para entender os personagens. O conto consegue
transmitir uma ideia de maneira muito fluida e rápida. Tenho um
carinho muito grande também pelos quadrinhos. Gosto muito.
Porque, às vezes, não trazem uma palavra, são só desenhos, ra-
biscos, mas conseguem nos transformar e eu acho isso incrível.

Themis, você acredita que a literatura transforma?


TL: A literatura transforma, certamente. Eu não sei de que pon-
to até que outro ponto. Não sei qual o estado inicial nem qual
o estado final, mas transforma. Já ouvi a pergunta: “A literatura
salva?”. Aí eu acho que não salva. Pois não precisamos ser salvos
por ninguém, nem de ninguém, mas eu acho que certamente mo-
difica. É muito difícil imergir na literatura, seja por um contato
mais simplório ou um contato mergulhado. É muito difícil ser a
mesma pessoa que você era antes de ler um livro ou começar a
trabalhar com literatura. Na verdade, se formos raciocinar sobre
isso, quase toda a experiência humana é transformadora. Você
não é a mesma pessoa antes de entrar no mar e depois de sair do
mar. Então, não é uma característica que confere um status quo
para a literatura. Tenho muita preocupação com o status quo
da literatura, de ser uma área reservada a nobres, a capazes ou
a quem quer que seja. Eu acho que a literatura está no mesmo
patamar do ato de entrar no mar e mergulhar. É uma vivência. Ela
transforma, na medida em que qualquer vivência humana trans-
forma.

51
ANTONINO CONDORELLI

Um espírito nômade,
um condor errante
Jornalista, escritor, militante, este
ítalo-brasileiro faz do planeta a sua pátria

Por Alana Rebeca, Celinna Carvalho,


Ranmaildo Revorêdo e Vinicius Castro

“Eu não disse no começo, mas coloque na minha boca, antes


de começar: Primeiramente: fora, Temer!”. Antonino Condorelli,
39 anos, é um homem de personalidade forte, um ser que busca
diariamente desconstruir suas falhas, aprimorar seus conheci-
mentos e construir uma sociedade justa e politizada. Jornalista,
escritor e professor do curso de Jornalismo da UFRN, é nasci-
do em Castellammare di Stabia, uma cidade ao sul da região de
Nápoles, na Itália. Ter nascido lá, para Antonino, é apenas um
detalhe, visto considerar-se um cidadão do mundo. Já morou na
Espanha, Argentina e se diz apaixonado pelo Brasil, onde reside
há 14 anos. Esse amor deve-se, em parte, à cultura e à natureza
do país, mas também – em boa parte – à brasileira Rachel Con-
dorelli, sua esposa. Antonino é formado em Ciências da Comuni-
cação pela Universidade de Siena, na Itália, e doutor em Ciências
Sociais pela UFRN. Já atuou como repórter, redator e editor em

53
revistas e portais italianos e espanhóis, e na comunicação digital
de organizações não governamentais e movimentos sociais, no
Brasil. Antonino é militante de esquerda e faz questão de deixar
isso bem claro. Segundo ele, suas posições políticas começaram
a ser firmar ainda na infância, no início dos anos 1980, quan-
do frequentava protestos em defesa dos direitos trabalhistas e
pela emancipação feminina. Sua mãe, conta, o ensinou a amar
as causas populares. Na docência, descobriu um novo propósito
de vida: motivar estudantes a fazerem jornalismo livre, sem as
amarras dos patrões. Nosso entrevistado é autor de O pequeno
homem das montanhas, resultante de sua dissertação de mestra-
do e lançado em 2014, pela Fortunella. Em 2017, pela mesma edi-
tora, vai publicar a coletânea de contos intitulada Dezpedaços
- neologismo que alude a personagens internamente dilacerados.

Por que você escolheu o jornalismo?


Antonino Condorelli: Porque, desde muito pequeno, gosto de
escrever. A escrita literária começou bem antes da jornalística.
Quando estava no ensino fundamental, que é chamado de escola
elementar na Itália, eu já escrevia histórias e transformava pesso-
as do meu convívio familiar, amigos e colegas de turma em perso-
nagens. Eu me inspirava nos desenhos animados e seriados que
assistia na tevê e reinventava novas histórias a partir deles. Desde
criança tinha - acho que ainda tenho - uma imaginação bastante
fértil (risos). Quando comecei a amadurecer os meus interesses
e os meus gostos, passei a ler para me inspirar. Comecei por au-
tores fáceis de serem absorvidos por um pré-adolescente. Com o
passar do tempo me veio a intenção de participar de concursos
literários. Me preparei, e com 14 anos participei do meu primeiro
concurso literário. Ganhei alguns prêmios.

54
Então, o interesse pelo jornalismo veio depois.
AC: Exatamente. Mas aconteceu uma coisa estranha no mo-
mento que entrei na universidade. Escolhi jornalismo porque
achei que seria a profissão que mais me aproximaria da minha
vocação de usar a palavra para contar histórias. Mas, quando en-
trei na faculdade, me apaixonei. Acabei mergulhando no estudo e
na prática da profissão, inicialmente como estagiário, depois nos
jornais. Quando terminei a faculdade, fui para a Espanha. Passei
dois anos em Madri (1999-2000) e nessa época lembro que, ape-
sar de exercer o jornalismo, escrevia poemas e contos, vez por
outra. Cheguei até a participar de concursos literários e obtive
o terceiro lugar em um concurso organizado pelo jornal El País.
Recomecei a escrever pelo estímulo de falar em outra língua, que
não era a minha língua materna. Estava escrevendo em espanhol
e isso me animou bastante; mas o jornalismo sempre me absor-
veu muito mais do que a literatura. Enquanto na adolescência
eu tinha o sonho de me tornar escritor, na faculdade deixei esse
sonho em stand by e acabei mergulhando de corpo e alma na ati-
vidade jornalística. Depois disso, minha vida deu várias guinadas
de 180 graus.

E quais foram essas guinadas?


AC: Sou italiano. Acabei morando na Espanha dois anos e de
lá, vim para o Brasil. Foram várias guinadas. Depois que cheguei
aqui, passei muito tempo sem escrever poesias e contos. Só me
dediquei ao jornalismo, e como minha outra grande paixão foi
a militância social, estive envolvido simultaneamente na mili-
tância e no jornalismo. Juntei os dois universos trabalhando na
comunicação de uma ONG de direitos humanos e cidadania, na
qual fiquei por sete anos. Cuidei da comunicação da ONG, que
depois se expandiu, e me tornei responsável pela área de comuni-
cação do Movimento Potiguar de Direitos Humanos.

55
Por que decidiu mudar da Itália para a Espanha?
AC: Quando morava na Itália, estudei espanhol e me apaixo-
nei pela literatura hispano-americana, por seus autores e pela
cultura latino-americana, que eu associava mais à América his-
pânica. Isso porque a língua que eu dominava, além do italiano,
era o espanhol. Ainda não falava português. Eu era um devorador
de autores hispano-americanos na língua original. Sempre tive
vontade de morar em um país de língua espanhola. Aconteceu
que, quando eu ainda estava na faculdade, tive a oportunidade de
passar um ano na Espanha e me apaixonei. Decidi que não queria
ficar na Itália. Quando me formasse, iria morar na Espanha. Me
formei e fui para a Espanha procurar emprego.

Como o Brasil entrou em seus planos?


AC: Em relação ao Brasil, foi um conjunto de acasos. Eu vim
para cá porque conheci e me apaixonei por uma brasileira, que
atualmente é minha esposa. Ela foi fazer um curso de especia-
lização em Barcelona e nos conhecemos quando ela passou por
Madri para fazer turismo. Ficamos juntos, e quando ela voltou
para Natal, começamos a ter um relacionamento à distância, que
durou aproximadamente um ano e foi ficando sério (risos). Até
que perdi meu emprego em Madri e pensei: não há nada que me
amarre. Vou para o Brasil, para Natal, para ver se gosto. Vim, gos-
tei e acabei ficando.

Suas experiências profissionais sempre estiveram relaciona-


das aos direitos humanos?
AC: Na Espanha trabalhei por um ano em uma revista que in-
felizmente acabou fechando. Era uma publicação voltada para
o terceiro setor, mas se preocupava, no geral, com direitos hu-
manos e cidadania, com o foco para cooperação internacional. A

56
revista fechou e aí me vi diante da questão: “Ou volto para Itália,
para a casa dos meus pais, ou procuro outra saída por aqui”. En-
quanto essa saída não saía (risos), eu trabalhei em um call center
por três meses e em um fast food por três meses. Depois encon-
trei trabalho como redator de um portal. Eu não gostava, mas era
jornalismo e fui. Fiquei por mais seis meses, até decidir vir para
o Brasil.

Como decidiu ingressar na academia?


AC: Acontecem coisas na vida da gente, coisas pequenas, apa-
rentemente irrelevantes, que nos levam a reconsiderar nossos ru-
mos. Cheguei ao Brasil num momento em que não conseguia en-
xergar uma perspectiva de conseguir me sustentar a longo prazo,
com o jornalismo e a militância. Vocês sabem bem que assessoria
é um mundo bastante concorrido, sem segurança e estabilida-
de. Afora o fato de eu ser um estrangeiro não naturalizado. Por
causa disso, acabei tendo de repensar os rumos da minha vida e
fui levado quase que naturalmente para o caminho da academia.
Sempre ouvi de amigos que eu tinha jeito para isso. Sou uma pes-
soa intelectualizada desde sempre, gosto muito de ler e refletir
sobre a realidade.

Trabalhar como professor foi uma forma de não abrir mão


de suas convicções?
AC: Realmente, na época que trabalhei na ONG, fiquei conhe-
cido como um jornalista socialmente engajado, com posiciona-
mentos fortes. Nenhuma redação potiguar estaria disposta a cor-
rer o risco de ter uma pessoa com meus posicionamentos e com
a minha intransigência, no sentido de não negociar princípios.

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Nessa fase de mudanças e guinadas em sua vida, ainda houve
espaço para a literatura?
AC: Nesse caminho todo, da volta para a academia, aos pou-
cos foi aflorando de novo a paixão pela escrita. Inicialmente a
escrita científica, que é exigida pela academia. Mas ao passo que
escrevia textos científicos, desejava sair desse modo engessado
de produzir e de contar coisas. Então, em 2013, houve concurso
de contos promovido pela Cooperativa Cultural da UFRN. Eu
disse: “Vou recomeçar a escrever contos”. Desde a Espanha que
eu não fazia isso, mas escrevi e obtive o segundo lugar neste con-
curso. Isso me animou a escrever. Resgatei contos antigos, que
tinha escrito na adolescência, em italiano, e os reescrevi de uma
forma mais madura, em português. E desde 2013 até hoje, man-
tenho um ritmo intenso de produção literária em paralelo ao da
produção cientifica, o que me levou a ter material suficiente para
publicar um segundo livro, que vai sair em 2017, também pela
Fortunella. Chama-se Dezpedaços, neologismo que joga com o fato
de serem dez contos e de todos terem personagens internamente
dilacerados.

Como nasceu seu primeiro livro, O pequeno homem das


montanhas?
AC: Este livro nasceu como trabalho acadêmico. Na verdade,
não era a forma que eu gostaria de ter estreado no mundo edito-
rial, mas acabou acontecendo. Quando fiz mestrado em educa-
ção e escrevi minha dissertação, chegamos à conclusão, minha
orientadora e eu, de que valeria a pena estudar a obra Dersu Uzala
(filme de Akira Kurosawa, baseado em um livro por sua vez ins-
pirado na história real da relação entre um explorador e um ca-
çador das montanhas). Isso para mostrar que é possível construir
uma ecologia que abrigue a cultura científica e os saberes da tra-

58
dição, para a criação de uma ecologia cognitiva que promova uma
relação mais saudável do ser humano com as outras espécies da
natureza. Escrevi minha dissertação analisando a obra audiovi-
sual e o livro, tentando entender como foi sendo construída essa
relação entre diferentes formas de saber e essa maneira diferente
de se relacionar com a natureza, de um explorador com a cultura
científica e um caçador nômade, nascido e criado dentro de um
ambiente não urbano. Defendi a dissertação em 2011. Em 2014, já
professor do Departamento de Comunicação, fui convidado para
ministrar, dentro de um minicurso sobre cinema, um módulo so-
bre neorrealismo italiano. Entre os que assistiam estava o fun-
dador da editora Fortunella. Ele leu a dissertação, gostou muito,
achou que valia a pena ser publicada e pediu que eu a depurasse
dos academicismos. Foi o que fiz. O livro foi um sucesso. Hoje
restam cinco exemplares.

O que existe da personagem de O pequeno homem das mon-


tanhas em você?
AC: Eu diria que o espírito nômade. Apesar de ter sido obriga-
do, pelas circunstâncias da vida, a me tornar sedentário (risos),
a me tornar fixo, se dependesse de mim, viveria viajando pelo
mundo. Esse espírito nômade me leva sempre a querer viajar, a
conhecer outros lugares, e de preferência em contato mais próxi-
mo com a natureza.

Antonino Condorelli pode ser considerado, então, um cida-


dão do mundo?
AC: Sim. É muito interessante porque todo mundo sempre me
pergunta: “Você se sente mais italiano ou mais brasileiro?” Bem,
eu me sinto do mundo, na verdade (risos). Sou italiano porque
nasci na Itália, numa família italiana. Só por isso. Nunca tive um

59
apego a ideias como pátria, nação, território. Eu acho que a pes-
soa é de onde se reconhecer, sentir-se bem, onde encontrou seu
lugar na vida. Eu realmente não sinto apego. Amo os lugares que
escolhi, amo o Brasil, amo a Itália, minha terra natal, amo os ou-
tros lugares onde deixei um pedaço de mim, parte da minha his-
tória, que fazem parte daquilo que eu sou. Sinto realmente que
esse planeta, que parece tão grande, mas é um grãozinho minús-
culo flutuando em um universo imenso, é a minha terra.

O que aconselharia à nova geração de jornalistas que está em


busca de espaço no mercado?
AC: Primeiro, em relação à condição profissional, eles preci-
sam estar conscientes da realidade do jornalista que se forma no
Brasil e que vai trabalhar no mercado. É muito importante pe-
sar, refletir, ler e conhecer a realidade da comunicação, saber o
que isso acarreta para a profissão jornalística, o que significa ter
a grande maioria dos meios concentrados nas mãos de poucos
conglomerados midiáticos. É preciso saber o que significa essa
escassa liberdade de ação e de pensamento, e a necessidade de
se submeter a ditames que, muitas vezes, não coadunam com
seus anseios profissionais, nem com o seu pensamento. É impor-
tante que os jornalistas estejam conscientes disso e que saibam
que sempre existe a possibilidade de escolha, de viver e construir
uma carreira fora desse universo, de criar suas próprias oportu-
nidades. Existe um amplo universo a ser explorado. As mídias
digitais permitem que se possa, inclusive, viver da atividade jor-
nalística independente, coerente com aquilo que a pessoa pensa
e não com aquilo que um grande grupo empresarial quer que a
pessoa pense. Então, eu diria: escolha seu caminho, crie suas pró-
prias oportunidades, explore o potencial das mídias digitais para
o pensamento independente. Existe o financiamento colaborati-
vo, existem os editais, que não sei até quando vão durar, enfim,

60
existem várias possibilidades. Não somos mais condenados a nos
submeter às condições impostas pelo mercado de trabalho.

Como essa geração deve encarar a profissão de jornalista?


AC: Em relação à atividade jornalística em si, eu diria: encare
não como profissão, mas como missão. Se sentir que essa é a sua
vocação, vá em frente, porque a democracia precisa do jornalismo
livre e independente, que publica aquilo que muitos querem que
não seja publicado, sejam empresas, governos, poder econômico,
poder político. Sempre há quem se incomode com quem pratica
jornalismo de verdade, que é isento, que investiga, que vai a fun-
do, que não se conforma com as versões oficiais dos fatos, nem
com as fontes ditas primeiras. Sempre vai atrás de fontes que o
jargão jornalístico chama de “secundárias”, mas que considero as
mais importantes para se construir uma perspectiva abrangente
sobre os fatos. Meu conselho é este: não tenham medo de ser jor-
nalistas. Encarem como vocação e como a contribuição que vocês
têm para dar ao mundo.

Quem é Antonino Condorelli, em uma frase?


AC: Gosto de me definir como um condor errante.

A literatura salva?
AC: Eu diria que, na literatura, a gente se perde, e perder-se é o
mais importante na vida.

61
ADRIANO GOMES

Catarse literária
Professor da UFRN aposta na convergência
entre literatura, comunicação e educação

Por Edmo Nathan, Hana Dourado, Jonatas


Saturnino, Madson Bruno e Stephanny Coelho

Sostô! Quem, na UFRN, não reconhece essa expressão de es-


panto que é a marca do vocabulário de Adriano Gomes? Jornalis-
ta, escritor, professor, arte-educador, mestre e doutor em Educa-
ção, com pós-doutorados em Comunicação e Educomunicação,
Adriano Lopes Gomes, 53 anos, queria mesmo era ser arquiteto.
Oitavo filho de uma família de 12 irmãos, o mossoroense mudou-
-se para Natal aos 16 anos, no intuito de concluir o ensino mé-
dio e prestar vestibular para o curso de Arquitetura. Após ver
frustrada sua primeira tentativa de ingressar na UFRN, quis o
destino que o jornalismo entrasse em sua vida no ano seguinte.
Já nos primeiros períodos da faculdade, Adriano ganhou espaço
no mercado de trabalho. Começou na Rádio Poti e fez estágio
na Cabugi, antes de chegar à Tropical e passar dez anos atuan-
do também na emissora de televisão do grupo. Pensou em voltar
à academia, mas foi novamente atraído pelo mercado. Traba-
lhou como editor do telejornal RN TV 2ª Edição, da até então

63
TV Cabugi. Um ano e dois meses depois, resolveu largar tudo e
dedicar-se mais uma vez aos estudos. Enquanto fazia a segunda
graduação (em Educação Artística, com habilitação em Música,
também pela UFRN), iniciou o mestrado. Nessa ocasião, surgiu
um convite que deu novo rumo à sua vida: uma diretora da Uni-
versidade Potiguar (UNP) o convidou a lecionar na instituição.
“Foi quando me encontrei de fato”, relata Adriano.
Após quatro anos de UNP, Adriano concluiu o mestrado, fez o
doutorado e prestou concurso para professor da UFRN - onde
leciona há 15 anos e é responsável, entre outras, pela disciplina de
Radiojornalismo. Ao longo da vida, convergiu educação, leitura e
literatura, sempre que possível. Já produziu obras de cunho aca-
dêmico, mas sua maior fonte de satisfação vem dos quatro livros
infantis que publicou.
A paixão pela literatura começou na infância. O pontapé inicial
foi dado a partir de textos teatrais, como Pluft, o fantasminha, de
Maria Clara Machado. Já o amor pela escrita começou antes do
jornalismo. Aos 17 anos escreveu os rascunhos de seu primeiro
livro, A cidade dos brinquedos, publicado em 1995. Em seguida, sur-
giram A montanha das virtudes (1996), Histórias de crianças (1997) e A
casa e a velha (1998). Os dois primeiros, A cidade dos brinquedos e A
montanha de virtudes, viraram peças de teatro.

Você lançou quatro livros infantis. Como a sua formação de


arte-educador e jornalista interferiram em suas obras?
Adriano Gomes: O gosto pela leitura começou por volta dos
sete anos, em Mossoró (RN). Enveredei na literatura pelos tex-
tos teatrais. Os meus primeiros rabiscos começaram bem antes
do jornalismo. Com 15 anos eu comecei a escrever. Escrevi A ci-
dade dos brinquedos com essa idade. Virou peça de teatro, pos-
teriormente. A montanha das virtudes também virou peça. Eu
bancava meus próprios livros, pelo prazer de vê-los circulando

64
por aí. Quando decidi fazer pós-graduação, não tive dúvidas de
que seria algo ligado à literatura infanto-juvenil. Conversando
com os professores da Educação, vimos a necessidade de pro-
blematizar as questões relacionadas ao contador de histórias,
principalmente o contador presente em sala de aula. Fiz minha
pesquisa em uma escola estadual de Natal. Levei os livros, doei e
contei histórias em sala de aula. Assim que terminava os encon-
tros com os alunos, eles corriam para a biblioteca. Vi o quanto é
importante a presença desse contador de histórias, que desen-
volve sua performance com gestos, palavras e o encanto da voz.

Você trabalha com o rádio. Para você, ainda é possível utili-


zar o rádio, e outros meios, para a contação de histórias?
AG: Em algumas localidades do Brasil estão sendo resgatados
os esquetes rápidos, que são performances teatrais, para atrair
a atenção dos ouvintes. O rádio e contador de história têm tudo
a ver. Em uma disciplina que ministrei na pós-graduação, levei
meus alunos para uma emissora em Santa Cruz (RN). Lá, eu que-
ria verificar como se dava a recepção de um conto literário atra-
vés do rádio. A tarefa era a seguinte: as pessoas deveriam ligar
para emissora e dizer o que tinham entendido do conto e, por
essa razão, ganhavam um livro. O que teve de gente ligando para
essa emissora (risos)...Foi uma experiência incrível.

Você trabalha com educomunicação. Há algum vínculo com


a literatura?
AG: Sim, porque trabalho com retextualização. Em que con-
siste? Uma história é contada e pedimos aos alunos que retex-
tualizem o conto apresentado. Os alunos fazem uma releitura,
reescrevem e vão para a rádio escolar. Fizemos essa experiência
recentemente, na Escola Estadual Francisco Ivo Cavalcanti, e

65
agora na ONG Adic, na comunidade Passo da Pátria [em Natal].
Percebem a triangulação entre a literatura, o rádio e o próprio su-
porte de escrita? O rádio é a democratização da voz, tanto quanto
o é a educomunicação. Nós, que já passamos pelos bancos escola-
res, sabemos o quanto nossa voz é cerceada. O professor é quem
tudo sabe, é quem manda, é a última palavra. E o aluno é como se
fosse uma tábula rasa, que nada sabe, que precisa ser inoculado
com um “conhecimentozinho”, aos poucos. A educomunicação
vem recuperar a voz perdida desse sujeito. Uma prática educo-
municativa deve promover o sujeito, delegar a voz e reconhecer
o outro como alguém importante no ambiente em que está inse-
rido. É a chamada formação de ecossistema comunicativo. Não
importa se ele está falando bem no rádio, se faz uma boa vinheta,
um bom texto. O importante é que tenha vez e voz.

Como a literatura pode influenciar os comunicadores?


AG: Não concebo um bom jornalista que não lê. A literatura é
a arte de uma expressão estética muito mais voltada para a pers-
pectiva da formação do sujeito. Os livros de literatura reúnem
uma grandeza de informações quanto ao repertório, léxico e se-
mântica. Quando ministrava a disciplina de comunicação com-
parada, trabalhei com o livro Palomar, de Italo Calvino, e os alu-
nos se surpreendiam. Perguntavam qual a relação do livro com o
jornalismo. Palomar tem tudo a ver com a questão da revelação
dos sentidos. Algumas pessoas acham absolutamente esquisi-
to eu contar histórias para meus alunos da graduação. Acham
esquisito porque não entendem que a literatura não tem idade,
não tem espaço. Ela simplesmente existe. Ela existe como obra
inacabada e deve estar presente e circulando em todos os espa-
ços, principalmente no ensino de educação infantil e superior.
Na educação infantil, como uma base, e no ensino superior, como
uma meta. O aluno que tem bom repertório de leitura de litera-

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tura, digo sem pestanejar, vai fazer um bom texto. Porque vai ser
capaz de pontuar as situações que viveu na leitura, e com as quais
convive diariamente. Ficção e realidade estão muito próximas.

O que é técnica e o que é inspiração? E o quanto é aplicado


ao jornalismo?
AG: Não sei como responder sobre a inspiração. É algo tão natu-
ral. Um dia estava na praia e comecei a contemplar o mar. E saiu
o texto Há mar. Falei um pouco do mar, que abraçava os conti-
nentes, acolhia os lagos, os oceanos e saiu o conto. No jornalismo,
a gente parte de uma realidade e a ressignifica em nossos textos.
Não defendo essa história do “nascer com um dom”. Acho que to-
dos podemos ser escritores, desde que seja manifestado o desejo,
haja um esforço constante e se leia muito, muito, muito. Quanto
mais lemos, mais temos condições de escrever uma boa matéria.

Você falou da importância da leitura. Que autor você indica


como ponto de partida para aqueles que querem começar a
escrever?
AG: Ítalo Calvino, Marina Colasanti, os clássicos da literatura,
os textos de teatro. Enfim, tudo aquilo que te dê prazer. Acho
que, para leitura, não tem indicação ou fórmula. O que a mim deu
contentamento, a você pode não dar. Leia aquilo que desperte
paixão. Leia revista, leia quadrinhos. Vá encontrando seu per-
curso na leitura.

O que pensa sobre a produção e consumo de livros e jornais,


face às novas tecnologias?
AG: A leitura não vai morrer. Vivemos, na contemporaneidade,
a ressignificação da leitura. Os jornais estão diminuindo suas ti-
ragens, mas há um aumento do suporte digital. Em vez do papel,

67
temos o e-book. Na minha concepção, é uma questão de tempo
até esse suporte imprimir um novo comportamento ao leitor.
Nunca se escreveu tanto quanto agora. Não podemos atrelar a
leitura ao que é tradicional ou aos dez mais recomendados pela
revista Veja. Quando você assiste a um filme, você lê. Quando
escuta uma música, você lê. A leitura está presente em diversas
formas.

Faltam políticas públicas para o incentivo à leitura?


AG: Trabalho há 19 anos como professor. Há 19 anos trabalho
com políticas de leitura no ensino fundamental, médio e supe-
rior. Aqui no Estado há políticas de leitura. Por exemplo, faço
parte do Programa Nacional de Incentivo à Leitura. O Proler está
completando 20 anos no Rio Grande do Norte. O que sinto é que
o professor não lê. Como é que o professor vai seduzir e encantar
seus alunos, se ele mesmo não lê? Dois verbos não comportam o
imperativo: amar e ler. Temos de ler porque gostamos, porque
sentimos prazer. A leitura, quando é imposta, perde a grandeza.
Nós vemos a leitura nas escolas como pretexto para trabalhar
a gramática e a língua portuguesa, e nada disso leva a lugar ne-
nhum.

Que mensagem você deixa para os antigos e futuros leitores?


AG: Que possamos perceber a literatura como algo que deve
estar presente na nossa vida de alguma maneira. Que se possa
entender que fui tocado pela literatura não porque me disseram
que era importante, e sim porque descobri que era importante.
Eu me descobri como leitor aos 35 anos, porque antes não reco-
nhecia a importância da leitura na minha vida. Você não lê para
ser bom jornalista. Você lê porque gosta. Gostando, ao ler, você
produz melhor, você é mais alegre. A literatura toca. Leia por

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paixão e não por obrigação. Quando nos tornamos leitores, pas-
samos a entender a vida de uma maneira diferente. Recolhemos
a realidade e internalizamos em nossos corações como se fosse
algo projetado dentro de nós, porque entendemos aquela reali-
dade de outra maneira. A leitura é um doce encantamento, capaz
de reestruturar nossas almas e nossos sentimentos.

Para você, a literatura salva? Como?


AG: Salva. É até bíblico. A partir do instante que recompõe o
“eu interior” do sujeito, o livro passa a desenvolver uma espé-
cie de compensação psíquica. É catártico. A leitura é catarse, é
prazer, é contentamento. Salva neste sentido. Ela é relevante no
ponto de vista da psicologia, das emoções, dos sentimentos, por-
que me reencontro em determinada obra. Eu me projeto na obra
e promovo a catarse.

69
FLÁVIO REZENDE

O escritor viciado
Fruto de processo criativo vertiginoso, a
bibliografia do autor já contabiliza 25 títulos
dos mais diversos estilos

Por Jacinta Tindou, Rodrigo Zuza e


Elizabeth Soares

Flávio Leite Dantas de Rezende nasceu em 15 de julho de 1961,


em Natal. É graduado em Jornalismo e mestre em Estudos da Mí-
dia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Casado
com Andrea Browne, tem dois filhos, Gabriel e Mel.
No jornalismo, já atuou na TV Universitária, TV Tropical, Di-
ário de Natal – onde escreveu a coluna Giro Geral, durante oito
anos – e foi colaborador no Jornal de Hoje e no semanário Jornal
de Natal. Escreveu também para revistas locais e foi editor chefe
de jornais alternativos nos anos 1980 e 1990. Atualmente, traba-
lha como assessor de imprensa do Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes (CCHLA), da UFRN.
Aos 55 anos, Flávio declara-se um escritor “viciado”. Seu pri-
meiro livro, Poesia: minha paz, minha voz, minha energia, foi publicado
em 1981. Até 1989, lançou um livro por ano. Hoje, contabiliza 25
títulos de sua autoria, em estilos variados.

71
A produção de Flávio Rezende inclui contos, poesias, histó-
rias infantis, de ficção e esotéricas. E a variedade estende-se ao
formato dos livros: tem quadrado, redondo e até piramidal. Nas
suas obras, é possível encontrar traços autobiográficos. Em O so-
nhador (2008), Flávio narra a história de um escritor que sonha
escrever um livro de sucesso que o permita viver da literatura.
Seguindo a mesma linha, Quero que este livro vire um filme (2014),
como o próprio título sugere, apresenta um autor que deseja ver
sua produção literária adaptada para as telonas. Muito ligado à
família, a filha caçula Mel já foi musa inspiradora de duas das
suas obras, Cartas para Mel (2010) e Pérolas da Mel (2014).
Flávio também é místico e esse traço da sua personalidade está
presente nas suas obras. Ativista social, desde a juventude Flávio
desenvolve trabalhos voluntários. Fundou a Casa do Bem, enti-
dade filantrópica que ajuda crianças e adolescentes do bairro de
Mãe Luíza [em Natal]. A coletânea Letras & Imagens do Bem, que já
conta com seis volumes, tem a venda revertida para a instituição.
Esses e outros assuntos são abordados na entrevista a seguir.

Por que você escreve?


Flávio Rezende: Quando escrevemos, não temos um objetivo
definido. É como a pessoa que sabe tocar violão: ela não vai tocar
para ganhar dinheiro ou conquistar uma namorada. E ao mesmo
tempo, vai! Apesar de vender relativamente bem, não acredito
que muita gente leia os meus livros. Às vezes, fico desestimulado
e penso: “Para que diabo eu vou escrever isso, se o povo nem lê
direito?”. Mas, ao mesmo tempo, quando se tem o dom da escrita,
você não consegue ficar sem escrever. Escreve porque dá prazer.
Quando escrevo, sinto um grande prazer. Depois, outras coisas
podem acontecer, como ganhar dinheiro. E você pode agradar as
pessoas também, não é? Eu, por exemplo, faço alguma coisa para

72
minha filha, para minha esposa e elas ficam felizes. Mas, na hora
que escrevo, não penso em nada disso.

Você diz que se considera um escritor viciado. Por quê?


FR: Hoje, com o advento da internet, percebo que as pesso-
as têm preguiça de ler. Às vezes, coloco algo num grupo do
WhatsApp e o alguém diz: “Que textão!”. Então, vou fazendo a
síntese do resumo, para as pessoas poderem ler. A gente começa
a se acostumar com o que eu chamo de “haicai”, aqueles peque-
nos textos que os japoneses usam muito. Hoje, escrevo pequenos
textos. Ontem, fui tomar um cafezinho e me deparei com duas
senhoras conversando. Uma lamentava por seu filho, que tinha
morrido numa troca de tiros com a polícia, e a outra mulher co-
meçou a chorar. Você acredita que o filho desta fazia seis meses
que tinha morrido, em consequência de um assalto? O cara pediu
o celular, ele entregou, mas mesmo assim o ladrão o matou. En-
tão, eu estava ali presenciando, por incrível que pareça, o encon-
tro casual de duas mães, onde uma chorava a morte de um filho
infrator e a outra chorava a morte de um filho vítima da violência.
Isso é algo inspirador. Só que você tem de relatar esse aconteci-
mento num texto bem pequenininho, para o povo poder ler. Esse
é o meu grande desafio, hoje: escrever coisas muito interessantes
(que poderiam ocupar cinco ou seis laudas) em seis ou sete pe-
quenos parágrafos.

Nesse contexto, o pouco interesse pela leitura e a conse-


quente imposição da síntese empobrecem o texto?
FR: Não. Acredito que coloca ao escritor o desafio de sinteti-
zar. Estou achando até boa essa experiência. Não reclamo. Não
tem como remar contra a maré, não é? Ou você se acostuma ou

73
ninguém lê. E aí eu tomo isso como um desafio. Não acho que
empobrece, não. Acho que significa que escrevíamos muito, que
havia muita gordura, talvez (risos).

Quando você escreveu seu primeiro livro?


FR: O meu primeiro livro foi publicado em 1981, quando eu es-
tava saindo do colégio e começando no curso de Comunicação
Social da UFRN. Chama-se Poesia: minha voz, minha paz, minha ener-
gia, e reúne os poemas que escrevi nessa época. Tem uma temá-
tica mais voltada para a política, porque eu gostava muito desse
assunto. Eu era do Partido Comunista. Nós já vivíamos um mo-
mento de distensão, mas o regime ainda era militar. E também
falo do meu lado ecológico, e até um pouco romântico, comum a
quem tem 18, 19 anos.

Dizem que todo escritor é primeiramente um leitor. Quando


você se tornou um leitor?
FR: Meu pai gostava muito de ler. Ele sempre tinha livros, re-
vistas e gibis na mesinha de cabeceira. Segui o exemplo, desde
pequeno. Li praticamente toda a coleção de Júlio Verne e Mon-
teiro Lobato. Depois, na universidade, comecei a ler os clássicos.
Em seguida, veio a fase mística. Conheci Rajneesh (que depois
mudou o nome para Osho). Lia muitos livros, um atrás do ou-
tro, sempre acompanhando as minhas fases (política, ecológica,
mística). Hoje, confesso que leio bem menos. Com a internet, vi-
vemos num mundo de hiperinformação, e é tanta coisa para ler.
Acabamos consumindo mais as notícias do dia a dia do que lite-
ratura.

Você disse que, pela questão do tempo, consome mais notí-

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cias e a literatura fica em segundo plano. Você lê pouco?
FR: Hoje, demoro muito para ler um livro. Estou lendo agora
O drama cósmico de Javé, de Jan Val Ellam, e acho que já tem uns
três meses (risos). Quando ficamos mais velhos, temos os filhos,
o trabalho, uma série de coisas para dar conta. Quando chega a
hora de ler, geralmente é à noite. E eu durmo numa rede. Quando
começo a ler, adormeço logo. Não consigo ler mais do que cinco
ou seis páginas, hoje em dia.

Seus livros tratam de vários assuntos e até mesmo os for-


matos são diversificados. Tem livro redondo, triangular. Por
quê?
FR: Eles refletem o meu jeito inquieto de ser. Por exemplo, cada
capítulo do Lua cheia refere-se a uma fase da lua. Quando ter-
minei de escrevê-lo, cheguei à gráfica, que se chamava Cojornat
(Cooperativa dos Jornalistas de Natal) e disse que queria fazer
um livro redondo. Aí, o Luciano, que era o responsável, disse:
“Hômi, pelo amor de Deus, um livro redondo?!”. Em 1987 não
existiam as modernidades tecnológicas de hoje. Aí, ele disse: “Va-
mos fazer um estudo”. Porque os livros eram feitos em linotipo...
Era outro tempo! Mas aí [mostrando o livro] ele conseguiu colo-
car esse grampo e deu certo. Eu sempre pensava na possibilidade
de ter um formato diferente para cada livro. Então, toda vez que
ia à Cojornat (porque durante muitos anos editei lá), o Luciano
dizia: “Hômi, pelo amor de Deus, lá vem Flávio com as doidices
dele!”. Utilizo esse método porque acredito que a forma também
dialoga com o leitor. O invisível [mostrando o livro, em forma-
to de pirâmide] é extremamente esotérico. Eu dormi debaixo de
uma pirâmide por anos. Eu chupava cristais. Essas doidices to-
das, eu já fiz (risos).

75
Dormia debaixo de uma pirâmide?
FR: Quando eu morava na casa de papai, fui para um congres-
so da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência),
em Belém do Pará, no segundo período do curso. Nós fomos de
ônibus. Na viagem, li um livro sobre a energia das pirâmides e
fiquei doido! Quando cheguei a Belém, comecei a fazer pirâmides
e a vender. Coincidentemente, no domingo do congresso, o Fan-
tástico veiculou uma matéria sobre o poder das pirâmides. Aí,
pronto! Eu fiquei famoso. Quando voltei para Natal, descobri o
IDPD (Instituto de Difusão e Produção de Pirâmides), em Curi-
tiba, e mandei buscar uma pirâmide de um metro e meio, mais
ou menos. Montei no quarto e coloquei minha cama dentro da
pirâmide, que devia ser voltada para o norte magnético. Dormi
embaixo dela por anos e anos (risos).

De onde vem sua inspiração para escrever livros sobre temas


tão variados?
FR: É um dom. Nós estamos aqui conversando, e quando vocês
saírem, já vêm à minha mente os assuntos todos, prontinhos. O
problema não é escrever, é escolher o tema. Porque vem tanta
coisa, como se fosse um processo mediúnico. A mediunidade não
é uma coisa que você recebe e transcreve? Eu não sou médium,
falando do ponto de vista espírita, mas é como se fosse. Às vezes,
começo a escrever e confesso a vocês que não sei mais nem o que
escrevi. Chega lá na frente, digo: “Vixe, Maria!”. Tenho de reler
para poder pegar o fio da meada. Apesar disso, não sinto como
se tivesse psicografando. Mas a coisa flui dessa maneira. É como
se eu tivesse entidades no mundo espiritual que são escritores,
pessoas que têm ideias e precisam, no plano terrestre, de alguém
para materializar esses pensamentos. Então, elas pegam essas
antenas, como me julgo ser, e aproveitam. Várias dessas histó-

76
rias começaram de um jeito e terminaram de outro que eu não
imaginava.

Como surgiu a ideia de escrever um livro junto com sua fa-


mília?
FR: Nós já tínhamos a experiência do Cartas para a Mel, que não
é um livro para crianças. São artigos, mas como tem a historinha
do nascimento de Mel [filha de Flávio Rezende], ficou um pouco
infantil. O pessoal gostou e comecei a amadurecer a ideia, junto
com minha esposa Andrea Browne, de lançar outro livro, des-
sa vez voltado para o público infantil, mesmo. Andrea também
gosta de escrever, e falei para ela: “Se junte com Mel e bole uma
história”. A irmã dela, Paula Browne, é escritora em São Paulo.
Então, minha esposa fez uma história com Mel, que foi ilustrada
por Paula. E eu escrevi outra história, com ilustrações de Rodri-
go Brum [chargista do jornal Tribuna do Norte]. Assim surgiu
o livro Pérolas da Mel, que também inclui as “pérolas” da minha
filha, aquelas coisas engraçadas que as crianças vão dizendo e
que minha esposa recolheu desde que Mel começou a falar. Daí
vem o título do livro.

Como você decidiu se tornar um escritor?


FR: Quando eu era aluno do primeiro ano ginasial, uma menina
me disse: “Flávio, faça uma poesia para mim”. Não sei por que
pediu isso, mas pediu. Fiz a poesia e ela gostou. Aí, mostrou para
as amigas, e todas me pediram uma poesia. E eu, ao escrever, per-
cebi que fazia aquilo com facilidade. Me empolguei. Passei a fa-
zer não só poesias dirigidas, mas também políticas. Nessa época,
eu pensava em fazer vestibular para Odontologia, porque papai
era dentista e o sonho dele era ter um filho que seguisse a car-
reira. Mas comecei a escrever e a me dar bem nas redações do

77
colégio. Na época, o mercado de trabalho em jornalismo pratica-
mente não existia. Só tinha Diário de Natal, Tribuna do Norte.
Não existia nenhuma TV local e não tinha FM. Então, eu disse:
“Papai, me perdoe, mas eu vou fazer jornalismo”. Ele respondeu:
“Hômi, você vai ser o liso da família!”. Um irmão era médico, o
outro era engenheiro. Jornalista era a decepção de casa (risos).
Mas acredito que foi a decisão certa.

Nós podemos notar alguns traços autobiográficos nas suas


obras, como em O sonhador e Quero que este livro vire um
filme, por exemplo. Quanto do Flávio existe nos seus livros?
FR: Bastante. Realmente, o Quero que este livro vire um filme come-
ça com um escritor dizendo que o grande sonho dele é que um
de seus livros se torne filme. A introdução é praticamente um
resumo da minha vida. E, na introdução de O sonhador, também.
Ter um livro reconhecido nacionalmente é um sonho que sempre
tive, porque significaria poder viver do trabalho de escritor. Não
tenho nada contra ser jornalista, mas gosto mesmo é de ser es-
critor. No jornalismo, a gente também exerce o dom de escrever,
mas com base em fatos reais. Para fazer uma reportagem, temos
que recolher matéria prima, ouvir as pessoas, não é? Também
gosto disso, mas gosto muito mais quando posso escrever o que
quero. Tenho facilidade para me expressar através da escrita, en-
tão imagine poder viver disso. Sentar no computador, em frente
à praia, escrever e ganhar dinheiro com a produção literária é um
sonho! Então, de alguma maneira, quase todos esses livros têm
algum componentezinho diluído desse sonho.

Você nunca pensou em escrever um livro com relatos do co-


tidiano, de cunho mais jornalístico?
FR: Já. Estou pensando em escrever um livro sobre a vida - nessa

78
perspectiva sintética que o mundo de hoje exige - de pessoas co-
muns, mas que são conhecidas na cidade. Por exemplo, no super-
mercado Nordestão da avenida Roberto Freire, tem um senhor
que trabalha lá faz uns duzentos anos. Ele é muito simpático,
atende os clientes muito bem. Gostaria de saber onde ele nas-
ceu, como foi sua trajetória, que batalhas teve de enfrentar. Na
praia, tem um homem que vende amendoim há bastante tempo.
Ele deve pegar ônibus todo dia, para trabalhar. Aí, penso: “Esse
camarada deve ganhar uns vinte ou trinta centavos em cada saco
de amendoim. Se vender tudo, deve lucrar cinco ou seis reais, e
gastar só com a passagem do ônibus. Como é que esse homem so-
brevive?”. Então, gostaria de fazer um livro sobre essas pessoas.
Mas é só projeto, por enquanto.

O que você vê de comum entre jornalismo e literatura?


FR: Hoje, se aceita um jornalismo “romanceado”, mas há quem
critique isso. Eu, particularmente, acho muito estranho. Você
pode redigir um fato jornalístico de maneira literária, no sentido
de empregar um vocabulário mais rebuscado, coisa que antes não
se aceitava, e até mesmo adjetivar a narrativa. Mas, quando digo
romancear, às vezes significa incluir coisas que na realidade não
aconteceram. Então, nesse aspecto, acredito que não é legal, não.
O texto jornalístico tem de ser fiel aos fatos. Agora, no que se
refere ao estilo, pode ser transmitido de maneira mais literária,
digamos assim, mas não falsa.

Qual é o papel do jornalista na sociedade?


FR: O jornalista, para mim, é o interlocutor entre um fato acon-
tecido e o leitor. Hoje, está muito prejudicado, porque antiga-
mente qualquer evento – uma batida de trânsito, uma declaração
política – precisava que o jornalista estivesse lá para registrar o
momento, seja em texto ou em imagem. Hoje, com o advento e

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a proliferação dos smartphones, qualquer fato que aconteça, em
qualquer lugar do mundo, é automaticamente captado por várias
pessoas e divulgado na mídia. Quando o jornalista vai publicar
a informação – porque ele vai ter de ir para o veículo ou vai ter
de produzir – aquilo já está divulgado e, assim, muitas vezes, o
fato jornalístico não tem mais importância nenhuma, porque as
pessoas já tomaram conhecimento do ocorrido, por outras vias.
Antigamente, como não existia isso, o jornalista era a única fonte
de acesso às informações. Agora, é apenas mais uma fonte. Ele
não tem mais a primazia de ser o interlocutor entre o aconteci-
mento e a sociedade. Porém, as pessoas de bom senso sabem que
é no jornalista e no jornalismo que vão poder observar aquilo de
maneira mais completa, mais profissional. Mas aí também entra
o viés ideológico. Eu terminei o mestrado em Estudos da Mídia
da UFRN, e vi que temos de aprender a ler a mídia, porque ela
também serve a interesses, seja da direita ou da esquerda. Cabe
às pessoas aprofundarem as informações que recebem. Notícias
de caráter político, por exemplo, devem ser buscadas dos dois
lados, tanto nas mídias ligadas a uma ideologia quanto a outra.

Será que corremos o risco de, algum dia, a função de jorna-


lista tornar-se desnecessária?
FR: Penso que sim. Acredito que estamos vivendo os últimos
tempos com jornalistas formados. A tendência é que cada um
tenha seu espaço, seu blog. Os veículos provavelmente irão se
pulverizar. Eu não vejo como esse processo possa ser revertido.
Penso que o impresso não passa de quatro ou cinco anos. Para
efeito de comparação, o impresso será igual ao vinil. Vez ou ou-
tra, tem gente que faz um vinil e vende aos saudosistas, não é?
Então, haverá os saudosistas de jornal. Daqui a dez anos, alguém
vai resolver fundar um jornal, que ficará restrito a um grupo se-
leto de pessoas. Mas será tudo virtual. Não tem como fugir disso.

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Como você avalia a imprensa potiguar?
FR: Eu já tenho 55 anos. No começo, percebia muito que os gru-
pos políticos atuavam de maneira mais forte. Agora isso acontece
menos, porque há uma exigência dos leitores pela imparcialida-
de. Não é que ela exista, mas acredito que hoje a nossa mídia (os
grupos de Agripino Maia, dos Alves) já abre mais espaço para o
contraditório, por uma exigência da sociedade. Porque, se o veí-
culo for muito radical e mostrar apenas o que for de seu interes-
se, as pessoas simplesmente deixarão de consumir. Então, antes,
os jornais eram mais escancarados politicamente, e agora, para
manter o público, se veem na obrigação de ser plurais, de oferecer
espaço aos dois lados.

Por que o jornalista é tão desvalorizado, em sua opinião?


FR: Veículo de comunicação são empresas que visam o lucro.
Obviamente, há pessoas que criam um veículo com interesses
políticos, mas, no fim, também visam o lucro. As empresas de
comunicação têm funcionários e toda uma estrutura. Precisam
pagar as despesas. Então, há donos de veículos, que são aque-
les chamados “capitalistas selvagens”, que, por terem boa receita
com anúncios, podiam remunerar melhor os jornalistas e fazer
uma divisão do lucro mais humanizada. Porém, mesmo que al-
gum deles tivesse essa postura, poderia remunerar melhor, mas
o outro, não. Se alguém se aventurar a querer pagar um salário
mais alto, outros alegarão que não têm condições. Então, é uma
coisa complicada, porque mesmo um humanista seria sufocado
nas suas boas intenções, pelo fato de as decisões serem colegia-
das. Mas eu acredito que todos os veículos poderiam pagar me-
lhor seus profissionais.

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Flávio, uma última pergunta: a literatura salva?
FR: A literatura, para quem gosta, dá um upgrade muito bom
à vida. Tem gente que gosta de cerveja, outros gostam de moda.
Encontram prazer nisso. A literatura é um prazer, também. En-
tão, se salva, se não salva, eu não sei, mas acredito que é prazero-
sa e proporciona outras virtudes. Por exemplo, se você lê muito,
tende a escrever bem, e corretamente. A falta de leitura é hoje um
grande problema. Nos grupos do WhatsApp, vemos pessoas que
tiveram acesso a bons colégios escreverem tanta coisa errada. Se
a pessoa lê, tende a escrever corretamente. Porque não é possível
que, lendo uma palavra escrita várias vezes, ela ainda vá reprodu-
zir errado (risos).

82
GUSTAVO SOBRAL

O desbravador
da regionalidade
Fascinado pela literatura potiguar, este
pesquisador por vocação destaca a importância
do jornalismo em sua obra

Por Andréa Tavares, Beatriz Vital,


Cícero Oliveira e Jefferson Gomes

Ainda na infância, Gustavo Sobral encontrou na literatura uma


fonte inesgotável de materiais que respondiam às suas indaga-
ções, ao mesmo tempo em que geravam mais curiosidade. Foi na
biblioteca dos avós, herdada na vida adulta, que ele teve grandes
encontros com Machado de Assis, Rubem Braga, Carlos Drum-
mond e tantos outros nomes da literatura brasileira. Conhecer
o mundo, visto apenas nas páginas dos romances, passou a ser
o seu objetivo, e a carreira diplomática era o caminho mais de-
safiador.
Gustavo formou-se em Direito em 2006, profissão que parecia a
mais adequada para um diplomata. Logo depois, fez em São Pau-
lo um curso preparatório para ingressar no Instituto Rio Branco.
Sem sucesso, partiu para a faculdade de Jornalismo, na Universi-
dade Federal do Rio Grande do Norte, em 2008.
Quem ouve sua história, não consegue imaginar que o garoto
natalense que pretendia conhecer o mundo, hoje é quem faz o

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mundo conhecer um pouco mais de Natal. Sobral usa seu faro
jornalístico para remexer cartas, postais, rascunhos de textos,
anotações em livros, manuscritos, papéis e mais papéis em busca
de informações novas sobre importantes escritores e intelectu-
ais potiguares. Não importa onde esses documentos estejam: ele
corre atrás, com determinação e curiosidade. Uma curiosidade
que se retroalimenta, que o leva de uma missão para outra, e faz
o artista se confundir com sua arte.

A partir de que momento os livros começaram a se tornar


indispensáveis em sua vida?
Gustavo Sobral: Meus avós tinham uma grande biblioteca, por-
que meu avô comprava muitos livros. Sempre que eu ia lá, trazia
um livro, fosse o que fosse: biografia, livro de história do Brasil,
um romance brasileiro ou estrangeiro. Eu tinha uns 12 anos. Toda
semana, eu lia e devolvia um livro. Então, ia passeando pelos tí-
tulos, descobrindo aquilo que me interessava no momento. Sem-
pre que ia às casas dos amigos, me enfurnava onde havia livros.
Eu estudava no Complexo Educacional Henrique Castriciano.
Lá também tinha uma biblioteca enorme, sobretudo de autores
do Rio Grande do Norte. Eu tinha bastante curiosidade pela li-
teratura e pela história do RN, então comecei a ler os autores
daqui - Henrique Castriciano, que foi um grande poeta, Câmara
Cascudo. Havia uma pequena academia de letras, para os alunos,
e fui incentivado a participar, tanto que cheguei a ser presidente
de brincadeira. Fiquei na primeira cadeira. Aquele era um espaço
para trocas intelectuais. Fazíamos leituras e tinha uma pequena
revista, na qual publiquei alguns textos.

Nessa época você já pensava em ser escritor?


GS: Não. Eu fazia um curso de português com o professor Bar-

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tolomeu Fagundes. Ele nos incentivava a ler jornal e a escrever
um comentário sobre alguma matéria. As aulas de literatura dele
eram as que me fascinavam. Aqueles livros que todo mundo acha
chatos, de vestibular, Graciliano Ramos etc., passaram a ter um
sentido maior para mim, porque Bartolomeu apresentava a obra
e o autor de forma crítica. Eu ficava esperando aquela aula. Era
magnífico. Daí, cultivei o hábito de também ler jornais, e não só
os daqui. Para mim, o jornalismo é uma grande ponte e fonte de
conhecimento. No jornal, eu lia sobre livros, exposições, filmes,
críticas literárias, resenhas. Comecei a colecionar jornal.

E o que você costumava ler?


GS: Eu lia as coisas mais improváveis. Havia uma coleção cha-
mada Civilização Brasileira, publicada pela editora José Olympio,
que meu avô tinha quase completa. Era linda, porque o símbo-
lo era a palmeira imperial. Nela, tinha um livro do Barão de Rio
Branco que explicava a questão do Acre. Até sobre isso eu li. Daí
é que surgiu meu interesse pela diplomacia.

O que interessava a você, na diplomacia?


GS: O diplomata é aquele que precisa conhecer a história do
seu país para mostrá-lo ao mundo, onde quer que esteja. Ao mes-
mo tempo, tem oportunidade de conviver com outras culturas e,
assim, crescer. Então, como eu pensava em ser diplomata, sabia
que deveria ter cultura e conhecimento. Eu precisava ler, mas ler
coisas boas e, nesse aspecto, a biblioteca me ajudou bastante.

Mas você pensava em ser jornalista nessa época?


GS: Sim e não, porque minha meta era o Instituto Rio Bran-
co, era a carreira diplomática. Para ser diplomata, você pode ser

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qualquer coisa, então fui fazer Direito, que se aproximava mais
daquilo que eu queria. Mas a diplomacia também tem uma rela-
ção muito forte com a cultura. Vinícius de Moraes, por exemplo,
foi poeta e diplomata.

E como você se preparou para ser diplomata?


GS: Eu comecei a comprar meus próprios livros e a construir
minha biblioteca. Daí minha avó faleceu, e herdei a bibliote-
ca dela. Li quase tudo que tem lá. Até latim comecei a estudar,
porque se você quer ser autor, precisa conhecer a língua com a
qual trabalha. Fiz um curso preparatório para o Instituto Rio
Branco. A prova para ingressar no instituto é um terror. Você
tem de ter conhecimentos de geografia, de línguas, de política
internacional, direito internacional, conhecimento de mundo. E
também uma preparação humanística muito forte. No curso tive
professores surpreendentes e me interessei por ciência política.
Li Hannah Arendt, Aristóteles.

Você considera que teve uma infância privilegiada?


GS: Sim, porque sempre tive liberdade para exercer minha
vocação. Ninguém me incentivou, nem me privou. Vim de uma
casa de grandes leitores. Lia-se muita literatura brasileira - Jorge
Amado, Fernando Sabino - e ouvia-se muita MPB - Chico Buar-
que, Vinícius de Moraes.

Você tem um autor preferido?


GS: Não. Tenho vários, e mudam de acordo com minha área de
interesse. Não leio por diletantismo. Por exemplo, agora estou
voltado para os cronistas do RN e minha biblioteca e só crônica.
Se você quiser conhecer minha biografia, tem de conhecer, pri-

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meiro, a minha biblioteca. Ela vai crescendo de acordo com os
meus interesses. Tem uma parte que chamo de “cascudiana”, ou-
tra de literatura do RN, outra de história do RN. Nossas publica-
ções têm tiragens pequenas e os livros são difíceis de encontrar,
por isso fui construindo a biblioteca. Recentemente, peguei uma
parte das obras que não iria mais ler e doei à BCZM [Biblioteca
Central Zila Mamede]. Eu fui um grande leitor de lá durante a
graduação em Jornalismo, então foi uma forma de agradecer e de
saber que se eu precisar daquele livro, ele estará lá.

Quando você decidiu fazer Jornalismo?


GS: Não passei na primeira prova do Instituto Rio Branco. Foi
uma frustração e voltei para casa. Eu sempre tive muito interesse
por memórias. Minha avó era uma grande contadora de histórias.
Minha vocação não era tanto para o direito, na forma prática, era
mais intelectual, e então decidi fazer Jornalismo. Em 2008, fiz a
prova e passei. Minha primeira aula foi com o professor Luciano
Oséas. Foi a melhor coisa do mundo, porque tinha um site para
o qual a gente precisava produzir matérias. Como eu precisava
escolher um caminho para escrever, fui passeando pelas áreas,
até chegar à arquitetura. Fiquei me perguntando: “Onde estão
nossos artistas: Dorian Gray [Caldas], Newton Navarro?” Então
decidi que escreveria sobre aquilo que não encontro para ler. E aí,
em 2010, ingressei no mestrado em Estudos da Mídia, onde tra-
balhei com jornalismo cultural. Fiz o mestrado e comecei a escre-
ver sobre arquitetura potiguar, tudo ao mesmo tempo. Escrevi
um livro [Arquitetura moderna potiguar, 2011]. Nele, uso muitas fo-
tografias. Pensei esse projeto não apenas como texto, mas como
forma. O espaço em que aquilo está escrito também determina a
leitura. As notas, coloco de lado, para o leitor não precisar ficar
baixando a cabeça. Nas falas, não uso aspas, porque quero con-

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fundir, quero integrar o meu discurso ao discurso da pessoa que
está contando a história comigo, que são os arquitetos pioneiros
ou moradores das primeiras casas. Eu quis inovar com esse livro.

Inovar, em que sentido?


GS: Eu sempre pensei em como fazer esse trabalho experimen-
tando a linguagem e o estilo jornalístico. Tanto que o livro não
tem capítulos, mas retrancas. E as histórias sempre têm ligação
com a vida da cidade ou com a minha vida. A capa traz a casa
dos meus avós, que foi uma das primeiras casas modernistas. Co-
meço contando a história do dia em que o imóvel foi derrubado.
Não me coloco em primeira pessoa. Gosto de ser um narrador
distante, mas que percebam que estou ali. No dia em que a casa
caiu, vi que uma história havia se apagado. Muita coisa tinha sido
vivida lá, e estava representada enquanto existia uma estrutura
física. Depois, ficou uma história apenas sentimental. Aí, come-
cei a escrever.

Da queda da casa veio a ideia do livro?


GS: Não. A ideia do livro já existia, mas eu não sabia como con-
tar essa história. A queda da casa foi o ponto de partida. Che-
guei em casa e comecei a redigir a mão. Sempre escrevo a mão.
Eu tinha a estrutura do livro. Fui para o computador e apenas
complementei com as entrevistas, com os livros que já tinha pes-
quisado. Digo que contei a história da arquitetura moderna do
RN dentro da aventura da arquitetura brasileira.

Em que livros você trabalhou depois?


GS: Tenho um colega do mestrado, Helton Rubiano, que é edi-
tor de livros e também tem interesse pela literatura potiguar.

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Nós conversávamos sobre como há autores importantes que não
são reeditados. Aí encontrei um livro de contos chamado O soli-
tário vento de verão, de Newton Navarro. A Natal contemporânea
precisa conhecer Newton Navarro. Mas para fazer esse livro, eu
precisava contar quem era esse homem. Então, voltei para os en-
saios. Mas como incluir o ensaio dentro de um livro de contos?
No posfácio. Li outros livros de Newton Navarro, entrevistei
pessoas, busquei notícias de jornal. Comecei esse trabalho em
2012. Nas entrevistas, encontrei pessoas que conheceram New-
ton Navarro. Cada um com quem eu conversei me fazia um perfil
do Newton pintor, Newton cronista, porque ele foi um homem
múltiplo. Pensei: “Por que não fazer um livro de depoimentos?”
Aí escolhemos as personagens e começamos a fazer o livro, eu,
Helton e nossa amiga Angela Almeida, que fez as fotografias.
Chama-se Saudade de Newton Navarro. Daí, conheci um grande po-
eta potiguar chamado Paulo de Tarso Correia de Melo, que é co-
lecionador, e ele tinha crônicas de Newton Navarro datadas dos
anos 1960. Então fizemos um livro de crônicas de Newton Navar-
ro. Também fiz o perfil biográfico do jornalista Berilo Wanderley
[Berilo Wanderley – o cronista da cidade]. E já tenho outro material.
Descobri que Berilo foi estudar na Espanha em 1960 e que man-
dava crônicas para a Tribuna do Norte, contando como era viver
por lá. Pensei que daria um livro, também. Então, continuo com
o projeto de publicar grandes escritores, que também eram gran-
des jornalistas. A revista Bzzz me convidou para escrever sobre
Zila Mamede. Descobri que Zila era um mundo.

De onde vem essa vontade de escrever sobre Natal?


GS: A casa dos meus avós ficava no limite entre os bairros de
Petrópolis e Tirol. Eu circulava muito por aquela área. Frequen-
tava a livraria do Essa, a banca do Tota. Enfim, decidi que preci-

90
sava escrever um livro sobre Petrópolis. Queria escrever sobre
Natal, mas era muita pretensão. Como estava lendo sobre vinhos
e comida, pensei em escrever sobre pontos de Petrópolis e discu-
tir temas. Então fiz um livro-crônica, uma grande crônica sobre
esse bairro. Brinco que é um falso guia. Falo de charuto, de chá,
das bebidas, a partir dos lugares que têm no bairro, das histó-
rias que vivi e que me contavam. Queria alguém que fizesse os
desenhos. Convidei um artista da cidade, mas ele não aceitou, o
que foi uma pena, porque eu queria um livro ilustrado. Inventei
um guia de bairro. E comecei a ler guias, guias de literatos que
faziam guias, que são idílicos, por assim dizer. Fiz em um mês,
mas digo que fiz durante a vida toda, porque foi o que vivi. É um
livro pequeno. Meus livros sempre são muito pequenos, como
uma conversa. Quando não acho quem faça a ilustração, faço eu
mesmo. Ao mesmo tempo, eu fazia um curso de editor gráfico e
precisava de um trabalho final. Decidi ilustrar meu livro. Então,
digo que escrevi, fiz a pesquisa, a apuração, a redação, a edição,
os desenhos, os títulos. Mas você nunca faz um trabalho sozinho.
Tenho leitores-cobaias, pessoas de diferentes idades, como meu
pai. Sempre converso sobre o livro que estou fazendo. E surgem
ideias. As conversas, o viver, são constitutivos da obra de um es-
critor. O livro [Petrópolis: Guia prático, histórico e saboroso do bairro]
foi um sucesso. Rapidamente se esgotou. Na época em que pro-
duzi o livro sobre arquitetura, algumas pessoas pensavam que eu
era arquiteto. Até convite para fazer reforma numa casa, recebi.
Daí, desse meu interesse pela arquitetura, surgiu o interesse em
escrever sobre casas, mas não sobre o aspecto físico apenas, mas
sobre o aspecto sentimental, a história.

Fale um pouco dessa pesquisa.


GS: Fiz uma série curta e ofereci para a Tribuna do Norte. Mas
não queria fazer o trabalho sozinho. Convidei Arthur Seabra, que
é arquiteto e ilustrador, para fazer desenhos e dar outro olhar,

91
outra interpretação, outra linguagem. Volto àquela história de
que jornalismo não é só texto. Teve muita pesquisa também, por-
que o jornalista é um pouco antropólogo, etnólogo. A série fez
sucesso e nós continuamos. No fim, fizemos 30 casas. A pesquisa
vai virar um livro.

Nessas buscas, qual a maior descoberta que considera ter


feito?
GS: Eu tinha muito interesse por Oswaldo Lamartine. Comecei
a colecionar sua obra. Onde via um livro dele, comprava e lia. Mas
comecei a perceber que existiam lacunas. Percebi que não ha-
via livros sobre Oswaldo Lamartine, a quem Rachel de Queiroz
agradece no romance Memorial de Maria Moura pela inestimável
ajuda, um homem que teve correspondência com grandes escri-
tores, um homem de grandes amizades, pesquisador responsá-
vel. Comecei a conversar com amigos, fui a bibliotecas, achei uma
coisa, achei outra. Fui lendo sobre a obra dele e descobri que as
pessoas que faziam análise da obra só conseguiam chegar ao livro
Sertões do Seridó. Mas, e o resto? Em minhas pesquisas encontrei
um elogio de Rachel de Queiroz que dizia assim: “Tenho aqui
numa pastinha ao meu lado, desenhos, anotações de Oswaldo”.
Fui ao arquivo dela no Instituto Moreira Sales, no Rio de Janeiro,
e comecei a encontrar coisas que não conhecíamos, que ninguém
tinha visto. Ao mesmo tempo descobri cartas que Zila Mamede
escreveu para Carlos Drummond, que nunca haviam sido con-
sultadas. Faço esses dois trabalhos ao mesmo tempo. Levanto
Oswaldo, as relações dele, e escrevo sobre Zila. O máximo de in-
formações que colho, apresento aqui em Natal. São trabalhos que
têm começo, mas demoram a ter fim.

O mercado da literatura potiguar é...

92
GS: Riquíssimo. Newton Navarro foi tão bom quanto Rubem
Braga. Mas falta divulgação. As pessoas não conhecem. Não va-
lorizamos o que temos. Porque, no momento que você sabe quem
Navarro é, que ele tem uma crônica de qualidade e que está dis-
ponível, você terá interesse.

Como é a sua relação com outras plataformas, como os


e-books?
GS: O livro sobre arquitetura tinha essa proposta. Mas fui con-
vencido por Helton Rubiano, o editor, que era para leitor de im-
presso. Penso que cada plataforma veio para somar, e não divi-
dir. É outra mídia, na qual tudo que é compartilhado vira algo
perene. Criam-se conexões. As mídias convivem, mas cada pla-
taforma tem linguagens que precisamos explorar. O público do
aplicativo pode ser o mesmo do livro, mas vai receber o conteúdo
de forma diferente.

As suas leituras são mais voltadas à pesquisa ou você reserva


momentos à leitura por mero prazer?
GS: Sempre que leio, estou me divertindo, mas, ao mesmo tem-
po, analiso, investigo. Rachel de Queiroz dizia que não era escri-
tora, era jornalista. Ela publicou muito mais crônicas do que ro-
mances, e ninguém olhou para isso. Então, por que não investigar
a Rachel jornalista? Fiz esse trabalho também; li tudo de Rachel
de Queiroz.

Na sua opinião, a literatura salva?


GS: Salva. Como dizia Ferreira Gullar, porque a vida não basta.

93
paulo nascimento e rafael barbosa

Duas vidas e uma


história para contar
Eles falam de amizade, jornalismo, literatura,
empreendedorismo e a obra escrita em parceria,
na faculdade - “Valdetário Carneiro: a essência
da bala”

Por Gabriel de Souza, Henrique Rangel,


Kelvin Oliveira e Luiz Carlos de Lucena

A amizade entre Rafael Barbosa (27) e Paulo Nascimento (25)


se enraizou em uma partida do ABC Futebol Clube no estádio
Maria Lamas Farache, mais conhecido como Frasqueirão, em
2007. Pouco tempo depois, estavam os dois na graduação de Co-
municação Social, com habilitação em Jornalismo, da UFRN. Ao
longo do curso e depois de concluído, trabalharam nas principais
redações potiguares, como Diário de Natal e Tribuna do Norte.
Escrever sobre o factual interessa a ambos, mas não tanto quan-
to escrever sobre histórias de pessoas que, para a sociedade, são
anônimas. Não é à toa que o trabalho de conclusão de curso, feito
em parceria, foi a biografia de um dos personagens mais famosos
da crônica policial do estado: Valdetário Carneiro.
A obra foi aperfeiçoada e virou o livro Valdetário Carneiro: A
essência da bala. Antes, a trajetória do personagem era detalhada
apenas sob o ponto de vista policial. Na obra, os autores mos-
tram quem era e como viveu Valdetário. Para surpresa dos jovens

95
jornalistas, foi o livro mais vendido no Rio Grande do Norte por
dois anos.
Hoje, Paulo atua na assessoria de comunicação do governo do
RN e Rafael é repórter do Novo Jornal. Eles também dirigem a
Mobidique, uma escola de comunicação e arte criada em 2016.

Como foi a infância de vocês?


Rafael Barbosa: Falar da minha infância é sempre muito bom.
Apesar de que, na época de FHC [Fernando Henrique Cardoso],
as coisas eram muito difíceis. Financeiramente, a vida não era
fácil. Contudo, foi melhorando com o passar tempo. Mas posso
falar que aproveitei ao máximo meus tempos de criança.
Paulo Nascimento: Eu não posso falar mal da minha infância. Se
pudesse, a resumiria em futebol e praia. Como era bom.

Que lembranças vocês têm de seus pais?


RB: Meu pai foi responsável por influenciar muito do que es-
cuto hoje, na música. Isso foi muito presente na minha infância.
A casa estava sempre cheia dos amigos. Muita cachaça e muito
som. Mainha é mais dura, econômica. Não curte tanto essa vibe
da farra (risos). No entanto, até hoje ela continua muito dedica-
da. Desde criança, minha mãe é um exemplo de força para mim.
É uma guerreira.
PN: Lembro que sempre tive apoio às minhas atividades, prin-
cipalmente na escola. Graças a Deus, meus pais foram constantes
na minha vida.

Eram bons alunos?


RB: Em certa época, sim (risos). Até cheguei a receber medalha
por meu desempenho em português, no ensino fundamental. No

96
ensino médio, fui um pouco desleixado. Digamos que estava na
média. Havia mais coisas a aprender, para além da escola. Viver e
experimentar são os maiores aprendizados, principalmente para
quem se propõe a ser jornalista.
PN: Olha, eu me considerava, sim, um bom aluno (risos). Bons
tempos, os de escola.

Quando criança, o que imaginavam sobre a vida adulta?


RB: Cara, eu não imaginava nada (risos). Mas lembro que houve
uma época em que eu queria ser médico. Essa vontade me acom-
panhou por anos, até descobrir que não era o que eu queria para
o futuro. Mas minha mãe diz que, quando moleque, eu falava que
queria ser médico ou jornalista. Veja só que criança confusa.
PN: Nunca cheguei a imaginar minha vida adulta. Pelo menos,
não tenho lembranças sobre isso. Preferia brincar a pensar no fu-
turo.

Por que optaram pelo jornalismo como profissão?


RB: Quando moleque, os testes vocacionais indicavam Medi-
cina ou Jornalismo. Mas depois de estudar algumas disciplinas
da área da saúde, no curso de Controle Ambiental do Instituto
Federal, o antigo Cefet, descobri que não me daria bem. Morro de
medo de sangue. Cheguei a pensar em Direito, mas ao conversar
com um amigo, veio a ideia de fazer Jornalismo. Então, decidimos
olhar a grade curricular do curso, porém demos atenção apenas
às disciplinas optativas, como a de jornalismo esportivo. Fiz o
vestibular e entrei sem saber como era o fazer jornalístico. Entrei
querendo fazer vídeo, televisão, mas não queria reportagem.
PN: Sempre gostei muito de ler, de estudar História. Só que
nunca pensei em ser professor. Daí, fui caçar outra coisa na área

97
de humanas. Pensei em Ciências Sociais, Direito. Foi quando
achei Jornalismo meio que por acaso, e pensei: “Rapaz, acho que
aqui pode dar certo. Tem alguma coisa a ver com História, e tam-
bém tem o lance de escrever, que deve ser legal”.

Então, entraram no curso por acaso?


RB: Na verdade, me iludi com a grade do curso (risos). Acabei
me descobrindo jornalista apenas quando fui estagiar nos meios
de comunicação. Aprendemos pouco durante o curso. Tem pou-
ca prática.

Chegaram a pensar em desistir do curso ou da profissão?


RB: Nunca. Acho que a desilusão veio mais cedo para nós, já que
começamos no mercado logo no início do curso. Vimos o quanto
se trabalha pra ganhar pouco, e às vezes nem recebemos. Mas
ainda assim prefiro a correria de uma redação. Outro dia traba-
lhei 12 horas por dia porque estava fechando uma matéria, ou
seja, estava motivado para saber o tamanho da repercussão que
teria. Fora isso, vou fazer o quê? Fazer concurso não é comigo,
emprego público não é minha área.
PN: Acabamos nos desiludindo, mas desistir também nunca
passou pela minha cabeça, não.

Que pessoas os inspiram na vida pessoal e na profissional?


RB: Meus pais e meus avós são pessoas incríveis. Aprendi mui-
to sobre amar com eles. Mesmo sem querer, acho que meu pai
me ajudou a perceber a importância de também amar o ofício, de
fazer o que se gosta. Minha mãe é o retrato do empenho, da dedi-
cação, do esforço. Trago isso dela. Muitos professores passaram
pela minha vida e agregaram algum valor. Na verdade, nós somos

98
uma eterna construção. Não paramos de evoluir. Pelo menos é o
que se espera. Meus amigos também. Eu os valorizo muito. Des-
de moleque, aprendo a todo instante com eles.
PN: Sem dúvida, minha família e os meus amigos. São gente boa
demais.

Que áreas do jornalismo interessam a vocês?


RB: O que nos atrai mais na reportagem é a questão da pro-
fundidade, da investigação dentro da reportagem. Eu, particu-
larmente, gosto muito da área da segurança pública, e escrever
sobre personagens. O que me fez apaixonar pelo jornalismo foi
história de gente.
PN: Antes de tudo a reportagem, independente do formato que
seja. Pode ser para o Facebook, um podcast, uma matéria espe-
cial para a internet. Fazemos coisas interessantes em algumas
áreas, mas temos uma afinidade maior com a questão da segu-
rança pública, já que trabalhamos com isso desde 2010, quando
escrevemos o nosso TCC [trabalho de conclusão de curso] sobre
Valdetário Carneiro.

Um produto literário como trabalho final foi a primeira


opção?
RB: Fomos a um congresso e vimos um caderno especial do Esta-
dão chamado “As guerras civis do Brasil”. Daí, pensei: “Temos de
fazer algo semelhante”. Depois, conversando com Luiz Gonzaga,
meu tio, contei que queria fazer algo sobre Lampião. Foi quan-
do ele sugeriu: “Rapaz, por que você não aborda os Carneiros? É
uma coisa da qual muito se fala e pouco se conhece”. Lembro que,
na época, um pesquisador do Departamento de Ciências Sociais

99
da UFRN, professor Edmilson Lopes, estudava sobre Valdetário
Carneiro e o classificava como uma figura do neocangaço.

No caso do livro, a ideia inicial era falar sobre a família Car-


neiro, mas depois resolveram focar na figura do Valdetário.
Como isso aconteceu?
RB: Nossa primeira entrevista foi com Dudé Viana, primo de
Valdetário. Na entrevista, descobrimos a importância do perso-
nagem. Inclusive, um livro de Dudé, A saga dos Benevides Car-
neiro, foi um grande guia para identificarmos os personagens
que queríamos abordar. Descobrimos coisas interessantes nessa
entrevista, como o fato de que Valdetário sonhava ser ator. Ele
realmente gostava de praticar os crimes de modo espetacular.
PN: Um exemplo é a fuga da Penitenciária de Alcaçuz, em 2000,
que pareceu coisa de cinema. Uns caras chegaram armados com
fuzis e granadas em frente à cadeia e abriram fogo para resgatar
Valdetário.
RB: Valdetário Carneiro foi um ser humano que teve muitos
problemas. Alguns externos a ele, mas que envolviam sua famí-
lia. Lógico que nada justifica os crimes que ele cometeu. A grande
sacada da biografia foi desmistificar a figura imposta pela mídia,
mostrar o lado de carne e osso do mito Valdetário.
PN: A ideia inicial era falar sobre a família Carneiro, mas desco-
brimos que esse personagem se sobressaia. Então, a grande ideia
da biografia era contar o que as pessoas não sabiam. Se fosse para
fazer um livro com um catálogo dos assaltos que ele praticou, era
só acessar os arquivos de qualquer jornal da época. Por isso, fize-
mos diferente. Pensamos em retratar como ele era em casa, como
lidava com os filhos, como tratava a esposa.

100
Na obra sobre Valdetário, falou mais alto a veia investigativa
na apuração dos fatos ou o viés literário para narrá-los?
RB: A intenção era fazer tudo de uma forma muito objetiva, por
dois motivos: não queríamos endeusar o cara, até porque ele foi
um grande personagem porque fez um monte de besteira. Além
disso, queríamos um livro com linguagem simples e direta, para
atingir o maior número de leitores.
PN: Outra coisa que tínhamos em mente era o desejo de nos
aproximar dos leitores, porque o escritor não deve se colocar em
uma torre de marfim, observando o resto do mundo. Temos de
fazer as pessoas entenderem que elas fazem parte do processo.

Como o jornalismo policial norte-riograndense da época


tratou o caso Valdetário Carneiro?
RB: Como um personagem romântico da crônica policial. Só se
falava sobre ele [Valdetário]. Mas não destacavam sua família,
não mostravam quem realmente era o criminoso.
PN: Um amigo nosso fala justamente isso: “Valdetário foi o últi-
mo personagem romântico da crônica policial”. Depois dele, não
lembro de ter surgido outro.

Qual ou quais foram as dificuldades enfrentadas ao longo da


construção do livro?
RB: Nós precisávamos muito dos relatos sobre o assassinato de
Valdetário, pois só tínhamos a versão oficial da polícia, que foi a
mesma da imprensa. Encontramos o delegado que supostamente
o tinha matado. Ele vivia escondido, com medo, pois carregava
o carma de ser a pessoa que havia matado Valdetário. Então, tí-
nhamos a versão do delegado, da imprensa e faltava casar com a
versão de alguém que tivesse do outro lado da história. Aí encon-

101
trei o telefone da ex-mulher de Valdetário. Como ela morava em
Campina Grande, me desloquei para lá.
PN: Lembro que poucos dias depois encontramos a versão do
inquérito policial e reproduzimos no livro, para nos respaldar.
Foi interessante, porque o delegado concedeu entrevistas e vá-
rios depoimentos, e não eram iguais. Já a versão da ex-mulher de
Valdetário sempre era a mesma. No relato, ela confirmava que o
delegado era quem havia atentado contra a vida do ex-esposo.
Durante dois anos, “A essência da bala” foi o livro mais vendido
do Rio Grande do Norte. Vocês esperavam essa repercussão?
RB: Existia muita expectativa sobre o que vinha sendo produ-
zido, mas para ser sincero, não esperava que fosse grande a re-
percussão.
PN: Foi algo inusitado na minha carreira de jornalista. Assim
como Rafael, também não esperava tamanha repercussão. Lógico
que queríamos que o nosso trabalho fosse reconhecido, mas sa-
ber que estava no topo dos livros mais vendidos foi muito bacana.

Juntamente com Aureliano de Medeiros e Themis Lima,


vocês montaram a Mobidique, uma escola de comunicação.
Como funciona essa parceria?
RB: Na Mobidique nós trabalhamos com roteiro, audiovisu-
al, jornalismo, produção editorial e mídias sociais. Muita coisa,
porque o objetivo é oferecer cursos focando na prática, para a
formação complementar na área da comunicação e arte, demo-
cratizando o conhecimento.
PN: Parceria da boa, porque a Mobidique surge para fomentar a
democratização da comunicação e da arte.
RB: A nossa proposta é formar a Mobidique como um coletivo
de comunicação. Vez ou outra, reunimos a galera em palestras,

102
que nós mesmos promovemos, para discutir sobre assuntos di-
versos. Atualmente temos o Clube da Escrita. Nós nos encon-
tramos duas vezes ao mês para colocar no papel toda a nossa
criatividade.

Uma última pergunta: a literatura salva?


RB: Financeiramente, não (risos). Acho difícil alguém viver da
venda de livros.

103
ADRIANO CRUZ

O poeta tímido
Os primeiros poemas escritos por ele, ainda
na adolescência, foram engavetados. Só anos
depois, na universidade, tomou coragem de
apresentá-los

Por Érika Mello, Flávia Marques, Helliny


França e Leonardo Souza

Foi sentado diante de uma mesa repleta de livros que o jorna-


lista, professor e escritor natalense Adriano Cruz, 34 anos, falou
sobre sua paixão pela literatura. Com nostalgia, lembrou da ado-
lescência na Escola Estadual Desembargador Floriano Cavalcan-
ti, e como a leitura permitiu a ele fugir da mesmice do cotidiano.
“A literatura me permitia viajar, e como eu era tímido, era difícil
enfrentar as barreiras da sociabilidade. A literatura me deixava
fluir”.
Seus primeiros poemas foram engavetados. Mas ao ingressar na
UFRN, em 2000, para estudar Jornalismo, resolveu tomar cora-
gem e mostrá-los ao professor e também poeta Jarbas Martins.
O mestre incentivou Adriano a escrever um livro. Anos depois
nasceu a obra Alguma coisa e cor.
Em 2015, Adriano embarcou no universo infantil, lançando o
livro Mar, a menina e o vento, história que demorou alguns anos
para ser construída, e cuja inspiração para o final veio em um

105
sonho: “Na época eu fazia terapia junguiana, que é uma linha de
terapia do inconsciente, na qual se trabalha muito com sonhos”.
Adriano também é professor da UFRN, onde leciona telejor-
nalismo, direção e interpretação nas graduações de Jornalismo e
Radialismo. Também dá aula de cultura visual na Pós-graduação
de Artes, e história e teoria do cinema na especialização em Ci-
nema.

Como começou sua relação com o jornalismo?


Adriano Cruz: Sempre me envolvi com contação de histórias,
com teatro. Na adolescência quis fazer música. Eu cantava em
coro, tocava violão, queria ser maestro, como meu professor.
Achava massa aquele poder que ele tinha de extrair os sons com
a mão. Só que todo mundo dizia: “Não faça música, porque você
vai passar fome” (risos). Então fiz vestibular para História. Eu
gostava e acabei passando, mas um ano depois, decidi fazer Jor-
nalismo. Como gosto de ler e escrever, pensei que poderia dar
certo. Então, o jornalismo entrou na minha vida em razão dessa
paixão pela escrita. Eu quis ser jornalista porque gostava de ler e
escrever, mas também porque gostava de contar histórias. Acho
que esse é o grande plus do jornalismo: poder contar histórias.

E a literatura? Como entrou na sua vida?


AC: Eu lia muito. Não fui uma criança da rua. Era muito intros-
pectivo, quase nostálgico, e os livros me arrancavam da frieza do
cotidiano. Com a timidez, ficava difícil enfrentar as barreiras da
sociabilidade; a literatura me deixava fluir. Eu adorava Monteiro
Lobato, as histórias da Emília. Minha infância foi nas leituras.

Quais são os seus autores preferidos?


AC: Fora os clássicos, gosto de um chileno chamado Alejandro

106
Zambra, Pepetela, Mia Couto e García Márquez. Na área de po-
esia são incontáveis, mas gosto muito de Carlos Drummond, Hil-
da Hilst, Adélia Prado, e jovens contemporâneos como Leonardo
Chioda e Mariano Marovatto.

Quando a literatura e o jornalismo começaram a dialogar,


em sua vida?
AC: O meu curso abrigava grandes escritores. O perfil era di-
ferente do atual. Hoje temos um curso de pesquisadores, de
professores com doutorado. Na minha época, não. Eu ingressei
em Jornalismo em 2000, e nesse ano não tínhamos nenhum pro-
fessor doutor. A maioria dos professores eram o que chamamos
de jornalistas de batente. E entre eles havia aqueles que também
tinham um flerte com a literatura. Estudei com Tarcísio Gurgel,
que é um grande escritor potiguar, Aldemar Furtado, Emanoel
Barreto, Jânio Vidal, Ricardo Rosado. Todas essas pessoas es-
tavam engajadas com o jornalismo ou com a literatura. E desde
criança eu escrevia poemas, mas sempre deixava guardados. Foi
com o professor Jarbas Martins, a quem admirava muito, que
consegui dialogar sobre poesia. Tive coragem de tirar alguns es-
critos da gaveta e mostrar a ele. Ele disse que eu deveria publicar,
mas o tempo foi passando e só publiquei em 2014, quando já era
professor. Eu tinha publicado em jornais, revistas, antologias,
mas só depois reuni as poesias em um livro meu. Interessante
é que são duas formas diferentes de contar histórias. Na poesia,
você pode fazer um mergulho que não necessariamente é para
fora. A poesia, no meu caso, tem uma relação muito interior.
Quando vou para o livro infantil ou escrevo em prosa, aí já te-
nho uma relação com o exterior, que me aproxima muito mais do
jornalismo. Tanto que quando trabalho com prosa, gosto muito
de estar entre a ficção e a realidade. A vida imita a arte ou a arte

107
imita a vida? São questões de fronteira com as quais gosto muito
de trabalhar.

Você acredita em inspiração?


AC: Acredito que o processo criativo, e não só o processo lite-
rário, parte de dois momentos. Tem o momento que as pesso-
as chamam de inspiração, que, na verdade, é alguma imagem ou
algum acontecimento que me afeta. Pode ser uma imagem real,
como estar andando na rua e uma cena me chamar atenção. Pode
ser uma sensação, um sentimento, algo da natureza intuitiva.
Pode ser um sonho, um insight. Essa é a primeira parte, aquilo
que chega à consciência de alguma forma. Mas existe um segun-
do momento, o de se debruçar sobre a palavra, de desdobrá-la.
Na poesia, eu acho que a palavra é um desdobramento. Digamos
que tenho uma imagem muito bonita de uma lua azul, mas na
hora de transformar isso em poesia, é preciso um trabalho so-
bre a linguagem. No meu caso, não fico só com o insight. Preciso
do exercício de escrever, reescrever, corrigir, de buscar a palavra
desesperadamente. Não é uma questão de negar o insight, a in-
tuição, esse lado criativo. Mas ele, sozinho, não faz de você um
escritor, um artista. É preciso esse outro trabalho, que chamo de
exterior. Um trabalho da forma.

O mesmo acontece quando você escreve um livro infantil?


AC: Também. Quando escrevi esse livro, eu tinha a história,
mas não tinha o fim. Isso demorou muitos anos. Não é uma coi-
sa de “ah, vou escrever um livro amanhã”. Leva muito tempo,
porque também espera-se por essas imagens. E aí o livro parou.
Racionalmente, ele parou. Na época eu fazia terapia junguiana,
que é uma linha de terapia do inconsciente, na qual se trabalha
muito com sonhos. Em um desses momentos, sonhei com o final

108
da história. Por isso, acho que existe esse movimento do incons-
ciente também, que as pessoas chamam de intuição, talvez de
insight, que é esse mergulho em uma imagem que está dentro de
nós, mas em uma camada a que não temos acesso. E foi no sonho
que cheguei ao fim do livro. Mas mesmo com esse insight você
trabalha ainda a palavra. Por exemplo, vou escrever a história de
um homem que ama uma determinada cidade. Que verbos vou
usar para contar essa história? Eu posso contá-la de muitas for-
mas. Ou seja, a intuição e o trabalho com a linguagem não estão
desassociados; caminham juntos.

O que inspira na hora de escrever?


AC: O cotidiano, o mar, as cores, a música e o cinema.

Quais são as suas referências literárias?


AC: A poesia de Carlos Drummond e Jarbas Martins, os textos
de Paulo Apóstolo, a dramaturgia de Sófocles e Tchecov. Tam-
bém a prosa de Guimarães Rosa e Lígia Fagundes Telles, entre
muitos outros.

Agora no papel de leitor, em qual ambiente gosta de ler?


AC: Gosto muito de ler na minha casa, em viagens.

E se só pudesse levar um livro para ler durante uma viagem,


qual seria?
AC: Que maldade comigo (risos). Acho que isso varia muito, de
acordo com o momento da vida. Pode ser um autor? Eu levaria
Jorge Luis Borges. Sempre estou descobrindo Borges. Ele traba-
lha com várias temáticas, e uma delas é a questão da memória,
que me interessa muito, de uma memória sem fim. Tem um texto

109
dele que é muito bonito, chamado Funes, o memorioso, sobre um
cara que não consegue esquecer. Essa relação da memória e da
história, de como lembrança do outro me afeta, e a minha afeta a
história, me interessa muito nesse momento da minha vida.

Como você vê o jornalismo e a literatura inseridos nos meios


digitais?
AC: Eu tenho uma relação ancestral com o papel, e isso tem a
ver também com a nossa condição humana. O papel é natureza,
ele foi uma árvore. Mas acredito que o formato digital potencia-
liza muito a leitura. Só que acho que estamos muito atrasados na
maneira de escrever e na maneira de ler literatura nos meios digi-
tais. Ainda é uma maneira linear, bem diferente do que se proces-
sa hoje, que é uma leitura muito mais do hiperlink, uma leitura
na qual você se perde. Você lê uma coisa e aquilo já te leva para
outra. É uma leitura rizomática, que abre várias possibilidades.
Acho que o jornalismo, nesses meios digitais, tem muitos ganhos,
porque potencializa outros sentidos, com as narrativas transmí-
dias. Tem uma matéria da Folha de S. Paulo muito bacana sobre
Belo Monte [usina hidrelétrica que está sendo construída na ba-
cia do Rio Xingu, no norte do Pará], uma narrativa transmidiáti-
ca fantástica, com jogos. Ao mesmo tempo potencializa também
novos leitores, potencializa o contato com a literatura, mas ao
largo disso vêm as resistências. Quer dizer, coexistem maneiras
diferentes de se contar história e coexistem maneiras diferentes
de se ler, de se ter acesso ao jornalismo e à literatura. Mas acho
que em um país de iletrados, de grande número de analfabetos,
de uma desigualdade absurda, o jornalismo tem um papel social
muito importante, de favorecer a quem não tem contato com a
educação formal, o contato com os autores. Acho que o jornalis-
mo não pode se furtar disso.

110
Qual a sua perspectiva para o jornal impresso?
AC: Engraçado que, no início dos anos 2000, já discutíamos o
fim do jornal impresso. Isso é uma tendência, um fato. O jornal
vai migrar para as plataformas digitais. Por outro lado, esses for-
matos, apesar de serem eletrônicos, ficarão muito próximos do
papel. Hoje há leitores digitais que têm o barulhinho do papel;
quem sabe daqui a alguns anos vão ter o cheiro, também. Inde-
pendente da plataforma. O importante é esse ofício de contar
uma história. O papel do jornalismo é ir aonde o cidadão comum
não consegue ir. É você poder ver uma matéria na qual um cara
entra num lugar como um vulcão. Ou em lugares que até são do
cotidiano, mas pelos quais não nos interessamos e o jornalista, ao
cobrir, nos oferece uma nova visão. Isso é muito mágico.

Estamos vivendo uma crise política. Qual o papel do jorna-


lismo e da literatura neste cenário?
AC: Toda crise é um momento de certo sofrimento, de certa
dor, mas é sempre um momento propício para a erupção de no-
vos mundos. A literatura tem o papel de construir novos mun-
dos, reconstruir e desconstruir. Ao mesmo tempo em que temos
um jornalismo que vai se colocando numa posição vergonhosa,
temos o crescimento de um outro jornalismo, que mostra capa-
cidade de resistir. “Onde há poder, há resistência” é uma frase
do Michel Foucault que gosto muito e que me acompanha na
vida. Ao mesmo tempo em que há grandes grupos construindo
um discurso cada vez mais reacionário, cada vez mais pró-ex-
trema direita, também há outros movimentos no jornalismo que
se opõem a isso. É muito interessante observar como se colocam
os editoriais dos grandes jornais e de sites como Jornalistas Li-
vres, Mídia Ninja. Saiu uma pesquisa mostrando que esses sites
mais à esquerda conseguem ter um engajamento maior que a

111
mídia tradicional. Então, a crise é um momento de erupção de
novas coisas. Por outro lado, há experiências, mesmo na grande
imprensa, que são extremamente interessantes e pertinentes. O
que não podemos pensar é que o jornalismo é homogêneo, que
todo jornalismo da grande mídia é de direita. Embora predomine,
nessa crise política, um discurso pela manutenção da política re-
acionária, no interior desses jornais há certos movimentos de re-
sistência. Basta ver articulistas da Folha de S. Paulo, do Estadão,
que contradizem aquilo que é dito. Quem não lembra quando a
Folha fez um editorial terrível, incitando a violência contra os
jovens nos protestos, e aí um articulista da própria Folha [Gre-
gório Duvivier] se posicionou dizendo que não deve ser assim?
Acho que esse leque de possibilidades é a riqueza do jornalismo.

Em sua opinião, a literatura salva?


AC: A literatura sufoca, emociona, desestabiliza, violenta, mata,
cura. A literatura é do tamanho do universo.

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JOSIMEY COSTA

Mais escritora jornalista


do que jornalista escritora
Para a professora, “escrever é uma
necessidade, não uma decisão”

Por Diane Ceribelli, Maria Clara Mayumi,


Natália Guimarães e Pollyana Galvão

Josimey Costa é jornalista graduada pela UFRN, doutora em


Ciências Sociais/Antropologia pela PUC-SP e pós-doutora em
Comunicação e Cultura pela UFRJ. É professora do Departa-
mento de Comunicação Social, e de duas pós-graduações na
UFRN. A coletânea Todos os sentidos, da qual fez parte, ganhou o
prêmio de melhor livro de contos em 2004, pela União Brasilei-
ra de Escritores. Tem seis livros publicados, sendo um deles de
poemas e o outro, de contos. Neste encontro, Josimey falou de
infância, literatura, processo criativo e paixão pela escrita.

Em que momento a literatura entrou na sua vida?


Josimey Costa: Muito cedo. Ganhei do meu pai um livro de his-
tórias da carochinha, com contos de Andersen Gwen e de outros
autores que escrevem literatura europeia para crianças. Tenho
esse livro até hoje. Mandei restaurar. Recordo-me que quando

114
eu tinha 11 anos, teve um concurso de poemas em sala de aula.
Saí vencedora e ganhei um livro de presente, As histórias da tia
Nastácia, de Monteiro Lobato. Tenho até hoje, também. Lembro
que com 15 anos ganhei de presente de aniversário o livro Tereza
Batista cansada de guerra, de Jorge Amado. São livros que ganhei
em momentos muito marcantes da vida. Então, acho que come-
cei pela leitura dos contos infantis, depois virei uma leitora de
quadrinhos, e ainda sou. Eu não sou uma leitora refinada, no sen-
tido de só ler os clássicos. Gosto muito de ficção científica, que
é um tipo de literatura mais comercial, embora existam os clás-
sicos, como Ray Bradbury, Arthur Clarke. Mas leio também os
mais bobinhos, desde que tenham uma estrutura narrativa boa.
Adoro quadrinhos. Não tenho feito mais essas leituras porque,
trabalhando como professora e pesquisadora, preciso ler coisas
mais sérias. A minha relação com a literatura é pela via da sensi-
bilidade, porque essas leituras me atravessam e minha produção
literária é também de ordem visceral. Mas é claro que existem
as produções de encomenda, também. Tenho um conto num li-
vro de literatura erótica para mulheres, uma coletânea com gente
bastante conhecida, como Olga Savary, que são do plantel das
grandes escritoras nacionais. Essa coletânea [Todos os sentidos] ga-
nhou um prêmio da União Brasileira de Escritores.

Por que você começou a escrever?


JC: Porque eu não podia não escrever. É uma necessidade, não
uma decisão. Lembro de ter contato com os primeiros livros ain-
da muito pequena e os meus primeiros poemas, que guardo to-
dos, também são da puberdade. Era uma forma de me comunicar
com o mundo. Nem sempre o mundo queria me escutar, então eu
escrevia e guardava para quando o mundo quisesse. Juntamente
com isso, claro, comecei a trabalhar a técnica, para ter uma pro-
dução de qualidade.

115
No que o jornalismo influenciou seu caminho para a litera-
tura?
JC: Acho que o jornalismo oferece um treinamento de como es-
crever rápido, de como escrever por encomenda. Isso, aprendi no
jornalismo. Mas acho que, neste caso, foi o contrário. A litera-
tura influenciou o meu fazer jornalístico. Até que deixei de ser
jornalista, porque o que queria era escrever textos elaborados,
e para isso precisaria estar num lugar que permitisse uma forma
mais trabalhada e temas mais diversificados. O jornalismo, nesse
sentido, reduz um pouco. Sou mais escritora jornalista do que
jornalista escritora. Disso, não tenho dúvidas. Fui uma escritora
em formação, antes de ser uma jornalista em formação.

É mais fácil ser jornalista ou escritora?


JC: O que predomina em mim é a escritora, mas é mais fácil ser
jornalista. As regras são mais claras, é tudo mais simples. A for-
mação de um jornalista pode ser feita em quatro anos, a de um
escritor é para vida toda, e além.

De onde veio a ideia de escrever seu primeiro livro?


JC: Minha primeira publicação foi um livro de poemas. Cha-
ma-se Casa de penhores e foi publicado numa coleção chamada
Marginália, da Pró-Reitoria de Extensão da UFRN, para poetas
potiguares. A partir daí, comecei a publicar muitas coisas, em
coletâneas de livros, em revistas, em periódicos científicos e, de
vez em quando, uma produção em prosa literária. Por exemplo,
tem um livro chamado A sedução da palavra, sobre jornalismo lite-
rário. Quase todos os autores escreveram um artigo falando so-
bre jornalismo e literatura, mas resolvi fazer um conto, que trata
da atuação de um repórter. Falo de uma reportagem feita em um
manicômio. Não discuti a relação entre literatura e jornalismo.

116
Criei a relação entre eles por meio de um conto que narra uma
experiência jornalística. Depois disso, produzi uma crônica so-
bre a Copa do Mundo de 1970, que falava de tudo, menos do jogo
de futebol. Falei dos sentimentos em relação à Copa. Depois pu-
bliquei dois livros autorais, um com minha dissertação de mes-
trado e outro com minha tese. Eles são uma mescla de texto cien-
tífico com prosa literária. Eu nunca escrevo só ciência se for um
livro, mas se for um artigo periódico, é só ciência mesmo. Depois
desses dois livros, o terceiro foi de contos, com produções até
mais antigas, que havia publicado no jornal Tribuna do Norte,
mas que nunca tinham sido reunidos numa coletânea. Foi minha
última produção de prosa literária. Depois só publiquei artigo
científico e tenho publicado poemas, muitas vezes no meu site
ou no Facebook.

Que autores são referências para o seu trabalho?


JC: Já me disseram que tenho um pouco de Clarice Lispector
no modo como escrevo. Meus textos são descritivos de uma não
ação. Falam de estados de espírito, de interioridade. Neste sen-
tido, seria parecida com ela, mas não posso dizer que Clarice é
uma influência grande. Não li tanto livros dela, assim. Por outro
lado, a formação de jornalista me aproximou de um caráter mais
narrativo. É o que o jornalismo faz: narra histórias. Então, por ter
lido muitos cronistas, isso também me ajuda a ser um pouco cro-
nista, junto com essa abordagem existencial e filosófica. Quanto
à poesia, não sei dizer. Li os simbolistas brasileiros, gosto mui-
to deles, ao mesmo tempo escrevo muitos poemas sem rima. Me
preocupo com um certo ritmo da poesia. O ritmo é importante
para mim, mas isso não quer dizer que eu não possa quebrar. São
muitas as influências, desde os clássicos até o Manoel de Barros,
que acho lindo.

117
Você tem alguma temática preferencial, em seus livros?
JC: O fio condutor de todos eles é o mergulho interior, que dia-
loga com o mundo objetivo externo. Dito isso, a temática pode
ser qualquer coisa.

Do que você precisa, para escrever?


JC: A experiência de escrever é um pouco solitária. Dá vontade
de se isolar. No meu caso, eu fico tomada, obcecada pela escrita.
Não quero fazer outra coisa; preciso continuar escrevendo até o
ponto final. O escritor precisa do silêncio externo para ouvir a
própria voz.

Há um método para se produzir literatura?


JC: Há vários. Existem oficinas de criação. Eu fiz uma, na UFRN.
Drummond falava que escrever é a arte de cortar palavras. Têm
muitos métodos, mas com certeza o básico, para todo mundo, é
ler muito. Eu não tenho lido muito literatura de ficção, mas leio
muito sobre filosofia, antropologia, sociologia, muita teoria cien-
tífica. Leio o tempo inteiro, mas deveria ler mais poesia.

É difícil conseguir espaço e ser reconhecida no mercado edi-


torial brasileiro?
JC: Eu diria que sim. No meu caso, com certeza, até porque eu
não investi tanto nesse lado da carreira. Investi mais no de jor-
nalista e professora. A atividade de escritora ficou em segundo
plano. Com publicação do meu livro de contos autoral, decidi
que seria uma escritora mesmo. Só não estou podendo publicar
tanto quanto eu gostaria, mas tenho feito investimentos nessa
área. Porém, é difícil conseguir esse tal espaço e reconhecimento,

118
especialmente se você está numa cidade pequena, que não tem
muito apoio, e precisa investir dinheiro nas suas publicações.

Você acha que a internet está tirando o espaço da literatura?


JC: Marshall McLuhan disse há muito tempo, na década de
1960, que um meio não acaba com outro. O que existe são trans-
formações. O cinema ficou diferente depois que a televisão sur-
giu. Todo mundo dizia que o cinema iria acabar e não acabou, ali-
ás, o cinema utiliza muito a televisão para desaguar seus filmes.
Disseram que, com a internet, a literatura de livros iria acabar.
Isso da internet acabar com a literatura, eu não acredito. Mas
mudar, sim. Eu mesma tenho uma biblioteca virtual. Mas não
significa que não tenho mais livros só porque estou lidando com
o digital. Significa apenas que estou lendo em outro suporte, de
outra maneira.

O que a inspira para começar a escrever?


JC: Já escutei outros escritores dizerem isso e, para mim, é
muito verdadeiro também: eu me sinto uma antena aberta para
o mundo. Tem horas que a antena não está funcionando muito
bem, especialmente quando eu estou voltada para as coisas da
vida prática. Isso acaba reduzindo um pouco da sensibilidade
dessa antena, porém tento mantê-la ligada. Para produzir a prosa
literária e a poesia, eu sou movida pelos sentimentos, ou por pro-
jetos, que foram originados por sentimentos antigos. Eles estão
ali guardados, e aí tem uma coisa que faz eclodir, que em geral é
o meu contato sensível com algo externo, que faz essa emoção
guardadinha, esperando detonar uma escrita, aparecer. Sou sen-
sível, por exemplo, para as diferentes luzes que o céu apresenta
ao longo do dia, ao longo dos meses. Muitas vezes, eu fotografo.
Tenho feito fotos em viagens, que são expressões de sentimentos

119
meus. Daí escrevo um textinho e publico no Facebook e no Insta-
gram. Esta é a minha produção literária mais recente. As imagens
me mobilizam muito, talvez porque eu tenha trabalhado com
televisão, também. Elas às vezes inspiram poemas, às vezes são
vivências, experiências, outras são memórias. Todas essas coisas
fazem emergir o sentimento que me motiva a escrever.

Que conselho você daria para quem quer seguir a carreira de


escritor?
JC: Eu diria que você tem de ter um meio de sobreviver, até po-
der viver somente da literatura. É preciso “se virar nos trinta”.
Um autor da nova geração, que talvez esteja vivendo da sua arte e
da sua literatura, mas não de uma coisa só, é o Gregório Duvivier,
que escreve, atua, tem um programa de humor na internet, que já
foi para a televisão. Mas duvido que seja com a literatura que ele
ganha mais dinheiro, apesar de ser um ótimo escritor e poeta. En-
tão, o conselho que eu daria é este: não desista, invista e busque
espaços de todas as formas possíveis. Essa é a maneira de tornar
sua arte visível e tornando-a visível, você tem futuro.

A literatura salva?
JC: No meu caso salva, sim. Salva de me perder dentro de mim
mesma. Salva você de você mesmo. E essa é a grande salvação.

120
Posfácio

Do jornalismo
e da literatura
Gustavo Sobral é jornalista e escritor. Autor e organizador de livros e
ensaios, vive e mora em Natal/RN (Brasil), cidade na esquina do continente,
de onde observa e vê o mundo. O que escreveu e escreve, reúne em um ponto de
encontro, o site www.gustavosobral.com.br

O que é jornalismo e o que é literatura? Juntos não formam o


jornalismo literário, que é outra coisa, que não é a metade de cada
um, nem muito menos, os dois por inteiro. Jornalismo literário
é aquele jornalismo que se vale dos recursos literários (textuais
e narrativos) para compor um texto jornalístico. E jornalismo?
Jornalismo é o exercício constante da informação e da opinião
veiculadas na mídia, seja ela a tradicional, impressa, e/ou digital.
E literatura? Literatura é criação ficcional e se manifesta tradi-
cionalmente em prosa ou em verso. Aqui se poderia terminar este
posfácio que nem começou. Mas há tanto entre o céu e terra, e
em cada um deles, como há no jornalismo, na literatura, e entre o
jornalismo e a literatura.
A história da imprensa, pela história dos seus protagonistas,
revela a tradição do jornalismo de escritores porque eram eles
que dominavam os jornais. Ora, não havia faculdade ou escolas
de jornalismo, coisa tão recente que é do século XX, e, no Brasil,
só vai nascer quase em meados dele. Então, isso de formar jorna-
listas profissionais capacitados não é nem centenário, ainda.
O jornalista era aquele que se fazia no batente, e como a lite-
ratura não consagra, nem muito menos torna a todo pretenso
romancista ou poeta capaz de viver de sua própria verve, a im-

121
prensa virou o ganha-pão. Sem mais, nem menos, disse isso dona
Rachel de Queiroz, mais ou menos assim, e em diversas entre-
vistas: considero-me muito mais jornalista que escritora. Ela era
jornalista e era escritora. E sem rodeios: jornalismo é ganha-pão.
Ela disse e afirmou. E assim se fez a grande romancista de O Quin-
ze e Memorial de Maria Moura, uma bela de uma cronista de jornal,
exclusiva da revista Cruzeiro e com direito a seção, a Última Pá-
gina, que ela intitulou.
Portanto, nos idos tempos (não tão idos assim), um Olavo Bilac,
um Machado de Assis, e até mesmo a turma modernista que quis
virar o Brasil de ponta a cabeça, nomeemos todos em Mario de
Andrade, e para não esquecer também os poetas, o queridíssi-
mo Bandeira (e Drummond também), passaram pelas redações
de jornais no mínimo como cronistas. Há também os casos dos
escritores-jornalistas editores, repórteres, copidesques, e daque-
les que foram tudo isso. O jornalismo era onde se encontravam
(os escritores) e formavam a sua patota. E sofriam, ainda porque
o jornalismo só dava mesmo para o pão, e havia a luz, o gás, a
condução...
E assim, muitos, e todos eles, só para espiar mais um pouco o
caso de dona Rachel de Queiroz, arrumaram outros ofícios. Ra-
chel, além de jornalista, foi também tradutora e escreveu peças
de teatro para melhorar a renda.
Há os que afirmam que o jornalismo fazia o escritor. Era ali no
dia-a-dia, na pressão, sobre a máquina de escrever, que ele tinha
de exercitar seus pendores, saber contar a história (a notícia),
ser objetivo, envolvente, sintético. O jornalismo sempre foi eco-
nômico. Era preciso noticiar um mundo de coisa, e o papel era
pouco e o espaço, curto. Graciliano Ramos deitou e rolou a sua
linguagem seca, aquela em que ele cortava, talhava mesmo, o ex-
cesso desnecessário dos adjetivos. E foi o jornalismo quem tam-
bém lhe deu emprego.

122
O jornalismo sempre foi a casa do escritor brasileiro, sempre; e a
redação, o ponto de encontro e saída para o bar após o expedien-
te – outro hábito em extinção. O clima ameno da boemia, o papo
furado, a maior instituição de todas: a conversa no botequim da
esquina, também fez muito pelo jornalismo e pela literatura.
Escritores e jornalistas sempre foram bichos que gostaram de
estar próximos aos seus. Não se vive sem o comentário amigo e
solidário sobre a prosa, o incentivo, a troca de figurinhas. Não se
espante em saber que formam, os jornalistas e os escritores, uma
legião, uma irmandade.
E se quiser, mais, mas não precisa, se pode ir até mais longe.
Pois assim também se fizeram, entre jornalismo e literatura, os
grandes escritores universais, um Dickens, um Balzac.
Os norte-americanos criaram o prêmio Pulitzer e a revista New
Yorker; profissionalizaram a vida do jornalista escritor. Fóruns,
encontros de escritores e jornalistas, prêmios e financiamento
para projetos de jornalismo investigativo, publicação de livros,
agentes literários, um mercado livreiro com editores (é certo que
houve cá um José Olympio, mas depois dele, quem?), parques
gráficos, distribuição, livrarias, espaço nas universidades para o
escritor visitante; eles lá ergueram uma meca para que este ofício
fosse menos ardil, mais viável, e abriu novas portas: levou o jor-
nalista e o escritor ao cinema, e jornalistas e escritores viraram
roteiristas, mas esta é uma outra história...
Aqui, criaram ao modelo francês, uma academia de letras e a
glória da imortalidade e seus prêmios, o maior deles, o Machado
de Assis, para o conjunto da obra. A Câmara Brasileira do Livro
fez o Jabuti, que também premia o jornalismo, e ficamos nisso.
Nunca que foi fácil.
Vinicius de Moraes (leiam a sua biografia e cartas) publicou
o primeiro livro de poesia com a ajuda dos amigos; João Cabral
(de Melo Neto), idem; depois, João Cabral compra a sua própria

123
prensa e imprime seus livros e de alguns amigos; Rubem Braga
e Fernando Sabino fundaram a própria editora, a Sabiá. Drum-
mond e Zila Mamede fizeram o primeiro livro de poesia pela Im-
prensa Estadual. Rachel fez O Quinze, primeiro livro, do próprio
bolso, depois é que foi se abrigar em uma boa casa editorial.
Mas não havia como viver da venda de livros ou de prêmios, e o
escritor precisava trabalhar, então foi ser jornalista... Enquanto o
jornalismo era o batente, dia-a-dia, a correria, o sem tempo para
esmerar e lustrar o texto, aperfeiçoar etc, a literatura se instituiu
como o espaço da perenidade, da imortalidade, do atemporal. E o
que mais se puder dizer para registrar que veio para permanecer.
Então, o jornalismo também buscou o seu viés, e então os jor-
nalistas passaram não só a compor seus relatos de experiências,
sobretudo de guerra, a reunir seletas e coletâneas muito mais de
crônicas, mas também de reportagem, artigos e a escrever bio-
grafias e livros-reportagens, ficando mais próximos da literatura,
com a tarja da não ficção. O jornalismo, assim, cumpriu a sen-
tença drummoniana, e ficou “uma forma de literatura”. E por que
não?
O jornalista e o escritor, e o escritor e jornalista, todos eles uns
idiossincráticos. Não costumam ler o que escrevem para não to-
car a sair modificando uma coisa aqui e outra ali; quando não,
tudo. Rachel (sempre Rachel) disse: José Olympio, seu editor,
não a deixava mais, depois que entregava o texto final, que re-
lesse, pois se ela o fizesse não sobrava pedra sobre pedra, lá ela
ia modificando uma coisa aqui, outra ali, e virava uma outra his-
tória.
Por essa e outras características, se vai identificando esta figura
rara que vive da palavra escrita. Seja nas semelhanças, o não ler
mais o que escreve; não admitir influências, embora tenha seus
autores prediletos; até o fato de serem completamente insatisfei-
tos com o que escrevem, e que poderiam, acreditam, fazer melhor.

124
E é isso, ao que parece, que os faz continuar. É há a aflição maior:
é quando a danada da inspiração não vem. É um sofrimento.
Também é uma gente muita inventiva no seu fazer, criadora.
Gênios do jornalismo, como um Millôr Fernandes. Espécie de
Fred Astaire (diziam que Fred sapateava, dançava, cantava e atu-
ava), Millôr foi frasista, ilustrador, comentarista, e tornou tudo
isso capaz no jornalismo. A imprensa diária ou semanal era o seu
único veículo de comunicação e publicação. Então, era um escri-
tor-jornalista e jornalista-escritor.
E deste exemplo, a busca por fazer um jornalismo que fugisse
das raias do tradicional, explorando outros suportes de comuni-
cação, naquele liame indizível que não se pode dizer que é apenas
literatura, que é apenas jornalismo, nem muito menos jornalismo
literário. Por isso, juntos, jornalismo e literatura são mais, são
uma potência (no sentido de potencialidade).
A junção entre jornalismo e literatura foi capaz de produzir um
jornalismo de qualidade e tornou possível uma literatura maior.
E para não falar em outros manifestantes e outras formas de
manifestação. Quer maior obra que a crítica literária de Sérgio
Buarque de Holanda? Pois foi tudo publicado em jornal. E os en-
saios....Ah, os ensaios!, tão desprezados hoje, assim como a crôni-
ca, por não ser isso, nem aquilo (nem totalmente jornalismo, nem
totalmente literatura), deixaram sempre à margem nomes como
Susan Sontag, ensaísta que da fotografia à metáfora da doença,
escreveu sobre quase tudo - cinema, teatro, guerra.
Dos polêmicos às unanimidades, termina que nenhum autor é
maior que a sua obra e há sempre um pé no jornalismo para ates-
tar que é impossível fazer literatura sem jornalismo e jornalismo
sem literatura. A literatura jamais pode desprezá-lo. Foi graças
ao jornalismo que Hemingway criou o seu estilo e fez escola clas-
sificada, a bem dizer, de jornalismo literário.
É a paixão pela palavra, o ganha-pão do jornalista e o alimento

125
do escritor que unem essas duas figuras que podem ser indisso-
ciáveis. Há tantos casos de jornalistas escritores como não há,
mas quando há um grande encontro, uma confluência destes dois
talentos, expertises, ou vocação, não deixe de acompanhar. Você
verá uma explosão de inovação, criatividade, inteligência, seja no
jornalismo, seja na literatura, nesta comunhão. Você verá do que
são capazes, juntos, jornalismo & literatura, em toda a sua ma-
nifestação.

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AGRADECIMENTOS

Nossos afetuosos agradecimentos a todos


que contribuíram para a concretização deste
projeto. Em especial, aos estudantes, que desde
o primeiro momento toparam a empreitada; aos
nossos entrevistados, sempre gentis e generosos;
e a Themis Lima, nossa editora e parceira de
iniciativa. Que este e-book seja o primeiro de
uma série!
É uma coleção digital de livros escritos
pelos alunos do curso de Jornalismo da
Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. É publicada em parceria com o
selo , da Editora Tribo.

“Jornalistas Escritores do RN:


Entrevistas” é o primeiro título da
coletânea.

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