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A CONSUBSTANCIALIDADE DAS RELAÇÕES DE PODER1

Rafael Dias Toitio2

Embora o feminismo não seja uma corrente teórica unificada e sem ambiguidades, já que no
seu interior há diversas posições, práticas e projetos políticos, podemos afirmar que, nas
últimas décadas, tem se consolidado uma nova perspectiva na teoria feminista: a perspectiva
da imbricação, articulação ou consubstancialidade das relações sociais de poder. Ela ganhou
força nos anos 1980 e 1990 a partir das teorizações das feministas negras estadunidenses, as
feministas do (então chamado) “terceiro mundo” e as feministas materialistas francófonas.
Falar em dominação e opressão da mulher já não bastava para elas, pois outras relações de
poder mediavam, articulavam, produziam e eram produzidas pelas relações de gênero. No
plano internacional, duas correntes destacam-se no debate teórico: as feministas materialistas
francófonas e as feministas pós-estruturalistas estadunidenses. No Brasil, a socióloga
feminista Heleieth Saffioti, uma das teóricas a propor a discussão, absorve a contribuição de
ambas as vertentes (cf. SAFFIOTI, 1992, 2009).
Saffioti (2009) chama atenção para o fato de que as sociedades capitalistas modernas
alicerçadas em relações hierárquicas e contraditórias, dentre as quais se destacam três
contradições fundamentais: de classe, de sexo e de raça/etnia. Tais relações não correm
paralelamente, mas se “entrecruzam”, sendo que uma contradição se faz na outra e aprofunda
as demais. Ainda que sob perspectivas epistemológicas diferentes, tanto a corrente francesa
como a estadunidense chegam a essa mesma conclusão.
(...)

Consubstancialidade das relações sociais


[Daniéle] Kergoat (2010) se coloca no debate propondo uma visão relacional de poder, em
que classe, raça e gênero devem ser entendidos, cada uma, como uma relação social, isto é,
uma relação antagônica entre dois grupos sociais, instaurada em torno de uma disputa. A
autora propõe uma distinção – a meu ver, de caráter metodológico e não orgânico – entre as
relações intersubjetivas, próprias dos indivíduos concretos entre os quais se estabelecem, e as
relações sociais, que são abstratas e opõem grupos sociais em torno de um conflito3. Este se
enraíza na materialidade, no sentido de que as relações sociais de gênero, raça e classe são
“relações de produção”, nas quais se entrecruzam exploração, dominação e opressão. Nesse
sentido, para pensar as disputas materiais e ideológicas das relações sociais, é indispensável
analisar como se dá a apropriação do trabalho de um grupo por outro.

1
Trecho do texto “Apontamentos sobre sexualidade e a consubstancialidade das relações de poder”, extraído
para fins didáticos pela Universidade Livre Feminista. Versão original disponível em
http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1386341706_ARQUIVO_RafaelToitio.pdf.
2
Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Brasil), com bolsa do Cnpq.
3
No francês, o termo relações sociais pode ser traduzido de duas formas: rapport social e relation social.
Relation social remete às relações concretas que mantém os grupos e indivíduos; são relações interpessoais,
cotidianas e relativamente fáceis de mudar, que podem ser observadas empiricamente. Já rapport social refere
a relações abstratas, estruturais, impessoais e que apenas mudam por meio das lutas coletivas (os movimentos
sociais). São relações antagônicas e contraditórias entre grupos ou classes sociais, que pré-configuram o social
(KERGOAT, 2009).
Contudo, não se trata apenas de uma relação “material”, mas também produzida por e
produtora de ideias, normas, valores e concepções de mundo. Isso amplia o caráter dinâmico
das relações sociais, que devem ser historicizadas, haja vista que possuem uma “estrutura”
que permite sua permanência, mas também passam por transformações que correspondem a
determinados períodos históricos. Para isso, deve-se desnaturalizar radicalmente as
construções que se baseiam na diferenciação das desigualdades, sem com isso perder de vista
a dimensão concreta das relações sociais (KERGOAT, 2010).
Além disso, Kergoat afirma a necessidade de não isolar e segmentar as relações sociais e, para
tanto lança mão dos conceitos de consubstancialidade e coextensividade, no intuito de
compreender, de forma não mecânica, as práticas sociais frente à divisão do trabalho em sua
tripla dimensão: de classe, sexual e racial. O conceito de consubstancialidade, entendido
como “unidade de substância”, evidencia que a diferenciação dos tipos de relações sociais é
uma operação por vezes necessária à sociologia, mas que é analítica, e não pode ser, por isso,
aplicada inadvertidamente à análise das práticas sociais concretas. Isso porque as relações
sociais formam um nó que não pode ser desatado no nível das práticas sociais, mas apenas na
perspectiva analítica. E as relações sociais são também coextensivas: ao se desenvolverem, as
relações sociais de classe, gênero e raça se reproduzem e se co-produzem mutuamente.
Deve-se atentar para o fato de que a ideia de consubstancialidade não implica que tudo está
relacionado a tudo, mas constitui apenas uma forma de leitura da realidade social
(KERGOAT, 2010). É uma perspectiva que dá centralidade ao entrecruzamento dinâmico e
complexo do conjunto das relações sociais, cada uma imprimindo sua marca nas outras,
ajustando-se às outras e construindo-se de forma recíproca. Essas relações interagem e
estruturam a totalidade do campo social e podem, inclusive, entrar em contradição entre si.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CITADAS

KERGOAT, D. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos estudos –


CEBRAP, n.86, 2010, pp. 93-103.
______. “Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo”. In: HIRATA, H. et. al.
(org.).
SAFFIOTI, H. Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, A; BRUSCHINI, C. (org).
Uma questão de gênero. São Paulo: Rosa dos Tempos/ FCC, 1992, pp. 116-149.
______. Quantos sexos? Quantos gêneros? Unisexo/unigênero? Cadernos de Crítica
Feminista, ano III, n. 2, dez. 2009, pp. 6-33.

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