Você está na página 1de 41

Canal Unico PDF - Acesse: t.

me/jornaiserevistas

LE MONDE
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
2 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

ESTRATÉGIAS PARA O PARTIDO DEMOCRATA

As possibilidades
cipalmente em Ohio, Michigan, Pen- desviou de seus adversários. No ca-
silvânia, Wisconsin, Missouri minho, banalizou diversos compor-
(estados do Meio-Oeste conquistados tamentos tão bem documentados a
em 2016 pelo atual presidente, em al-

abertas por
ponto de não fazer falta que os deta-
guns casos por muito pouco e para lhemos: a vulgaridade, a ganância, as
surpresa geral). Quanto mais agimos propostas racistas e sexistas, a glori-
como se Trump fosse a causa de to- ficação da violência, a mentira gene-
dos os problemas, mais os norte-a-

Donald Trump...
ralizada. Ao mesmo tempo, medidas
mericanos duvidam de nossa capaci- preocupantes se disseminaram no
dade de perceber e resolver suas lado democrata. E sua lista também é
dificuldades cotidianas”.1 longa: questionamento do voto po-
Aos olhos da ala centralista do pular quando produz um resultado
Partido Democrata, principalmente que não lhe convém; olhar acrítico e
representada por Joe Biden, substi- beato da história dos Estados Unidos
O processo de impeachment de Donald Trump começou a tuir o presidente sem entrar em acor- até o dia maldito em que a eleição de
tramitar em janeiro no Senado, enquanto, a partir de 3 de do sobre as condições que lhe permi- Trump estragou tudo; glorificação de
tiram vencer apresenta um interesse alianças militares ocidentais que de
fevereiro, iniciam-se as primárias que devem definir seu evidente: inocentar aqueles que não repente se tornaram “progressistas”
adversário nas eleições presidenciais de novembro. Ambos souberam lutar enquanto dispunham pelo único motivo de o atual presi-
os eventos são dominados por suas ações, comentários e de meios para fazê-lo, ou seja, Hillary dente proclamar “America First”
Clinton, Barack Obama... e o ex-vice- (“América em primeiro lugar”), enal-
personalidade. Contudo, se alguns democratas têm como -presidente deste último. Mas signifi- tecimento das agências de pesquisa
único programa combatê-lo, outros veem bem mais longe ca então correr o risco de produzir por incomodarem a Casa Branca fa-
um novo Trump, potencialmente zendo vazar na imprensa informa-
POR SERGE HALIMI* mais perigoso por ser mais hábil, me- ções (e conversas telefônicas) que
nos inclinado a perder porções intei- comprometem o presidente; por fim,
ras do eleitorado por vaidade, menos celebração dos grandes meios de co-
incorrigivelmente narcisista e menos municação privados, intocáveis até
ignorante das correlações de força in- que Trump se irritasse com eles afir-
ternacionais. E, por consequência, mando que sua atividade se resume à
mais capaz de encontrar aliados no produção de fake news.

D
esde que Donald Trump se ins- “Se nos contentarmos em nos li- interior e no exterior a serviço de uma
talou na Casa Branca, a perso- vrar dele”, observa, no entanto, a en- política quase idêntica, cujos efeitos “ASSASSINOS, HÁ MUITOS”
nalização da política norte-a- saísta de esquerda Naomi Klein, “vol- destrutivos seriam aumentados. Em novembro de 2016, 22% dos bran-
mericana atingiu seu taremos à situação anterior, tão ruim Lembremos: em novembro de cos sem diploma, que haviam votado
paroxismo. Suas declarações, tuítes, que lhe possibilitou triunfar.” É me- 2008, a maioria dos norte-america- em Obama nos pleitos presidenciais
delírios e egocentrismo obcecam o lhor, segundo ela, tratar a causa em nos estava feliz e orgulhosa. Havia de 2008 e 2012, penderam para o lado
país – e o esgotam. Mas a mídia rego- vez de combater o sintoma. Andrew acabado de levar à Casa Branca um republicano.3 Como os partidários de
zija-se de ter um produto tão atraen- Yang, um dos doze candidatos demo- jovem senador afro-americano que Hillary Clinton não podiam acusar
te. Resultado: só se fala dele. Os repu- cratas à eleição de novembro, pensa prometia “esperança” e “mudança”. de racismo esses eleitores que ha-
blicanos apenas têm a ambição de da mesma forma: “A mídia não nos Sua eleição golpeou o Partido Repu- viam escolhido duas vezes um candi-
coroar um campeão de autoridade ajuda muito ocultando a razão pela blicano, que muitos julgam ser rea- dato afro-americano, explicaram seu
indiscutida em seu lado do campo. qual Donald Trump se tornou presi- cionário, intolerante, a serviço dos abandono por meio do sexismo, ou
Os democratas debatem meios de dente. Observando um programa de ricos, militarista e temível por não da ingenuidade dos iletrados, mais
“expulsar” o mais rápido possível um notícias, é possível imaginar que é sentir falta do apoio das populações fáceis de serem manipulados pelas
presidente tão ameaçador. No entan- uma mistura de Rússia, racismo, Fa- mais pobres.2 A esperança seria rapi- notícias falsas de origem russa por
to, como sua destituição é bem im- cebook, Hillary Clinton e seus damente desapontada, já a mudança, serem incultos. A ideia de que as polí-
provável, esperam que as primárias e-mails que explicaria o resultado. modesta; e sabemos quem viria a su- ticas de livre-comércio destrutivas
lhes permitam identificar um rival Mas os norte-americanos sabem que ceder Obama. implantadas pelos democratas e seu
capaz de fazê-lo cair por terra em isso não é verdade. Perdemos 4 mi- Trump, que quis se distinguir de fechamento em uma bolha sociológi-
novembro. lhões de empregos industriais, prin- seu predecessor, o qual execra, não ca de seres urbanos graduados e es-
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 3

© Cesar Habert Paciornik


nobes teriam desempenhado um pa- proletariado afro-americano, emba- -americana, pareceu apreciar a bru- uma das raras exceções). E a ideia de
pel pelo menos tão importante nessa lou-o com símbolos e belas palavras, talidade de Putin, sugerindo que a uma “democracia norte-americana
reviravolta não os atormentou por mas nunca combateu a ordem econô- América se comporta da mesma ma- atacada por Putin” – um crime mui-
muito tempo. mica que o destrói. neira”.5 A analogia escandalizou tan- tas vezes comparado ao ataque de
Essa miopia social não é só eleito- Preocupados em “tirar Trump”, to Nancy Pelosi, atual presidente de- Pearl Harbor pelo Japão imperial em
ral. Quando os primeiros episódios da milhões de norte-americanos se con- mocrata na Câmara dos 1941 – tornou-se a religião oficial pa-
série Roseanne – cujos personagens tentariam com qualquer um – e qual- Representantes, que ela pediu ime- ra a maioria dos adversários de
principais eram operários, emprega- quer coisa – para atingir seu objetivo. diatamente ao FBI que investigasse Trump. A democracia norte-america-
dos, trabalhadores rurais, em vez de Se Trump defende alguém, eles viram as finanças do novo presidente para na teria, no entanto, problemas maio-
designers gráficos, jornalistas ou pro- os procuradores; se combate alguma garantir que o governo russo não o res que algumas contas falsas no Fa-
fessores de escrita – conseguiram coisa, viram os advogados. A prova havia chantageado. Embora muito cebook de impacto irrisório: o atual
uma enorme audiência, a presidente disso surgiu em 5 de fevereiro de 2017, inteligente, ainda hoje ela repete sem presidente venceu em 2016 com 3 mi-
do canal ABC confessou sua perplexi- quinze dias apenas após sua chegada parar: “Com Trump, todos os cami- lhões de votos a menos que sua rival,
dade: “Até o presente, havíamos pas- à Casa Branca. Na Fox News, o novo nhos levam a Putin”. e um de seus concorrentes declara-
sado bastante tempo prestando aten- presidente foi então interpelado pelo dos este ano é outro bilionário nova-
ção na diversidade em termos de cor, apresentador ultraconservador Bill -iorquino, ainda mais rico do que ele:
religião e gênero. Mas não havíamos O’Reilly, que o culpou por não conde- O termo “Trumpwa- Michael Bloomberg.
pensado tanto na diversidade econô- nar Vladmir Putin, “um assassino”, shing” se generalizou A ala moderada do Partido Demo-
mica. O sucesso de Roseanne nos lem- segundo ele. O presidente respondeu crata e seus difusores midiáticos ba-
bra que há muita gente que não se vê com calma: “Assassinos, há muitos.
para evocar a glorifica- searam sua cruzada antirrussa nos
muito na televisão”.4 Foi necessário Nós mesmos temos muitos. O que vo- ção pela esquerda dos elementos mais militaristas e securi-
então que Trump vencesse, aprovei- cê acha? Que nosso país é tão elementos mais detestá- tários da sociedade. Como salienta
tando-se de um ressentimento popu- inocente?”. veis da direita norte- quase sempre o jornalista Glenn
lar contra as “elites” intelectuais, para Logo em seguida, a senadora de- Greenwald, a quem devemos – tanto
que produtores e roteiristas saíssem mocrata Amy Klobuchar, atual can-
-americana quanto a Edward Snowden, Chelsea
de seu torpor criativo. didata às primárias de seu partido, se Manning e Julian Assange – o fato de
No entanto, esse tipo de lucidez mostrou indignada pelo fato de o pre- Embora não reste muita coisa do conhecermos melhor a extensão ten-
dura pouco. Normalmente, as classes sidente dos Estados Unidos ter ousa- “Russiagate” desde que o procurador tacular da espionagem norte-ameri-
médias altas instruídas e urbanas, do comparar a malvada Rússia a seu Robert Mueller entregou seu relató- cana, “é quase impossível assistir à
que votam nos democratas, em parti- virtuoso país. E o New York Times, rio, na primavera de 2019, a persegui- MSNBC ou à CNN sem ser importu-
cular em Nova York e na Califórnia, que, com os canais CNN e MSNBC, ção (infrutuosa) ao agente do inimi- nado por ex-generais ou agentes da
insistem no argumento de que os faz papel de estação militante da fra- go emboscado na Sala Oval obcecou CIA ou do FBI, que trabalham agora
brancos pobres e sem diploma ção centrista do Partido Democrata, os democratas – e a mídia – durante como comentaristas contratados
apoiam cada vez mais Trump como proclamou seu temor em um edito- os dois primeiros anos dessa presi- dessas redes, ou até como repórte-
desculpa para se desinteressar com- rial com patriotismo inflamado: dência.6 Criou um clima paranoico res”.7 Os democratas moderados não
pletamente por eles. De seu lado, o “Afirmar a superioridade moral e po- que indiretamente fez o orçamento têm mais nenhum escrúpulo em elo-
presidente se importa tão pouco com lítica dos Estados Unidos sobre a Rús- militar norte-americano (US$ 738 bi- giar os serviços de informação que,
os pobres quanto os que o criticam. sia não era até então uma tarefa difí- lhões) não parar de aumentar, graças todavia, ficaram famosos pelo assas-
Nesse ponto, no mínimo imita o cil para os presidentes ao apoio de uma maioria esmagadora sinato de oponentes políticos e pela
comportamento de seu predecessor: norte-americanos. Mas Trump, em de parlamentares dos dois partidos organização de golpes de Estado no
Obama se proclamou solidário ao vez de relembrar a excelência norte- (o senador Bernie Sanders constitui exterior. Veem neles ilhotas de “resis-
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
4 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

tência” contra um presidente auto- cracia” justificou a intervenção ou a e Afeganistão. E, longe de fazer siste- acreditam na política, talvez retor-
crático. Fora isso, não foi um analista manutenção em operação de 240 mil maticamente oposição a Trump, o se- nem às urnas se lhes for oferecida a
da CIA que, em agosto passado, va- soldados em 172 países e territórios – nador Sanders saudou há um ano seu perspectiva de uma verdadeira mu-
zou sua conversa telefônica com um com, como se viu, um orçamento mi- reencontro com o presidente norte- dança (medicina socializada, dobro
chefe de Estado estrangeiro, no caso litar anual que excede os US$ 700 bi- -coreano, Kim Jong-un: “Se Trump do salário mínimo, revolução ecoló-
o presidente ucraniano? Submetido lhões. O fato de o assassinato do conseguir livrar esse país de suas ar- gica), e não apenas a de um presiden-
por essa razão a um procedimento de general iraniano Qassim Suleimani, mas nucleares, isso será ótimo, e de- te que restauraria a América de três
impeachment, Trump tem alguns embora executado sem dificuldades, sejo-lhe boa sorte” (CNN, 25 fev. anos atrás. A escolha entre essas duas
motivos para criticar as tentativas de não ter beneficiado o presidente 2019). Alguns meses depois, cons- opções democratas é no mínimo tão
desestabilização política orquestra- Trump confirma a seu modo a rejei- ciente de que a veemência sistemáti- importante quanto a da eleição do
das pelo “Estado profundo”. Mas de- ção da população norte-americana ca da oposição deles ao presidente re- dia 3 de novembro próximo. 
vemos nos alegrar ou, em vez disso, às “guerras sem fim”. Mas, quase publicano permitiria aos amigos de
preocupar-nos com a ideia de que um sempre, os candidatos democratas se Joe Biden dissimular sua recusa às *Serge Halimi é diretor do Le Monde
eventual presidente Sanders não se- apresentam como os restauradores transformações estruturais que a so- Diplomatique.
ria preservado disso? 8 de uma ordem mundial, comercial e ciedade norte-americana pede,
Não contentes em inculcar em estratégica desordenada há três anos. acrescentou: “Se passarmos nosso
1   D ebate democrata em Los Angeles, 19 dez.
seus partidários o amor pelos serviços Joe Biden, em particular, defende os tempo atacando Trump, os democra- 2019.
de informação, os líderes do Partido tratados de livre-comércio, deseja a tas vão perder” (Town Hall, Fox News, 2   Ler “Le petit peuple de George W. Bush” [O
Democrático não param de tecer elo- manutenção de um contingente nor- 15 abr. 2019). pequeno povo de George W. Bush], Le Mon-
de Diplomatique, out. 2004.
gios aos ex-presidentes republicanos, te-americano no Iraque e glorifica a 3   Sabrina Tavernise e Robert Gebeloff, “They
a fim de apontar o contraste entre es- Organização do Tratado do Atlântico voted for Obama, then went for Trump. Can
tes e seu estranho sucessor. Joe Biden Norte (Otan). E, em um artigo cate- Elizabeth Warren Democrats win them back?” [Eles votaram em
Obama, em seguida em Trump. Conseguirão
inclusive concedeu uma medalha ao górico, do tipo daqueles que líamos propõe, como Sanders, os democratas conquistá-los de volta?], The
casal Bush para saudar seu engaja- no auge da Guerra Fria, conclamou New York Times, 4 maio 2018.
mento em favor dos ex-combatentes – uma política frontal de oposição à
retirar todas as tropas 4   John Koblin e Michael M. Grynbaum, “‘Ro-
ao menos aqueles que, imagina-se, Rússia, a fim de “defender a democra- norte-americanas do seanne’” reboot sprang from ABC’s heartland
strategy after Trump’s victory” [Reboot de Ro-
voltaram vivos das guerras do Iraque cia contra seus inimigos”.9 Oriente Médio e seanne floresce na estratégia central da ABC
após a vitória de Trump], The New York Times,
e Afeganistão. Já Michelle Obama Por que não ir ainda mais longe? Afeganistão 29 mar. 2018.
proclamou que adora George W. Bush, Um editor do New York Times, próxi- 5   “ Blaming America first” [Culpando a América
“um homem maravilhoso” (Today, mo da direita israelense e partidário primeiro], The New York Times, 7 fev. 2017.
NBC, 11 out. 2018). O termo “Trump- exaltado de todas as intervenções A questão que se coloca a eles hoje 6   Ler Aaron Maté, “Un cadeau des démocrates
à Donald Trump” [Um presente dos democra-
washing” se generalizou desde então militares dos Estados Unidos – in- é mais saber o que podem ganhar. Os tas a Donald Trump], e Serge Halimi e Pierre
para evocar a glorificação pela es- cluindo aquelas às quais haviam fi- candidatos centristas justificam a Rimbert, “Tchernobyl médiatique” [Chernobyl
querda dos elementos mais detestá- nalmente renunciado –, propôs que moderação de suas propostas por midiática], Le Monde Diplomatique, maio
2019.
veis da direita norte-americana, des- os democratas complementem as fa- meio do desejo de não assustar os 7   Glenn Greenwald, “The Inspector General’s
de que tenham um dia criticado lhas da Casa Branca e se tornem o eleitores desejosos de acabar com as report on 2016 FBI spying reveals a scandal
Trump ou que Trump os tenha ataca- partido do império. Cultivando em excentricidades de Trump, mas não a of historic magnitude: not only for the FBI but
also the US media” [O relatório de inspetor-
do. Até a memória de Ronald Reagan certa medida o paradoxo, estimou ponto de virar a mesa. Consideram -geral sobre a espionagem do FBI de 2016
está se aproveitando dessa disposição que a política de “retirada” e de “in- que o status quo cada vez mais aceitá- revela um escândalo de magnitude histórica:
democrata de embelezar o passado, genuidade” de Trump, em particular vel diante dos resultados econômicos não só para o FBI, mas também para a mídia
dos EUA], The Intercept, 12 dez. 2019. Dispo-
por mais paradoxal que seja o fato de no Oriente Médio e no Extremo e dos rumos da Bolsa de Valores não nível em: <https://theintercept.com>.
a política externa norte-americana Oriente, teria aberto a seus adversá- parece advogar em favor de uma mu- 8   Ler Michael Glennon, “Aux bons soins de la
dos três últimos anos ter sido, até o rios políticos a possibilidade de eles dança de rumo. Sanders e, em menor CIA...” [Aos bons cuidados da CIA...], Le
Monde Diplomatique, jul. 2018.
presente, bem menos mortífera que a se tornarem os únicos profetas da medida, Warren estimam, pelo con- 9   Joseph R. Biden Jr. e Michael Carpenter,
das décadas passadas. pax americana contra a Síria, a Rússia trário, que o ódio ao presidente atual “How to stand up to the Kremlin. Defending
e a Coreia do Norte.10 fará que, se vencerem as primárias, democracy against its enemies” [Como en-
frentar o Kremlin. Defendendo a democracia
DUAS OPÇÕES OPOSTAS A fração progressista do Partido propostas radicais sejam aceitas por contra seus inimigos], Foreign Affairs, Nova
Uma estratégia de desengajamento Democrata não parece desempenhar camadas sociais que as recusariam York, jan.-fev. 2018.
internacional seria, contudo, popular esse papel. Elizabeth Warren propõe, em tempos de normalidade. Ao mes- 10  Bret Stephens, “Will Democrats become bor-
n-again neocons?” [Os democratas vão se
em um país onde, após 11 de setem- como Sanders, retirar todas as tropas mo tempo, esperam eles, outros elei- tornar neoconservadores renascidos?], The
bro de 2001, o “combate pela demo- norte-americanas do Oriente Médio torados, desmobilizados porque não New York Times, 24 out. 2019.
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 5

EDITORIAL

Cadê o futuro?
POR SILVIO CACCIA BAVA

O
© Claudius
que acontece com o indivíduo Aí é preciso conhecer o conjunto
que não sonha com o futuro? das ações de governo para poder dis-
Ele perde o entusiasmo, a von- putar esses recursos. Mas, mesmo co-
tade de vencer obstáculos, de nhecendo as políticas de governo e
transformar o real, se acomoda, se podendo fazer sua crítica, a política
submete, aceita o lugar que a socieda- neoliberal baseada no interesse das
de lhe destina: a servidão voluntária. grandes corporações não tem o que
O futuro de cada um depende do propor. O neoliberalismo não se im-
futuro de sua sociedade. E é aqui que porta com as demandas sociais, não
se imbricam os dramas individuais e pensa o futuro, quer que o presente se
as questões coletivas. eternize.
“A tarefa das políticas sociais é de- A crise é estrutural e se aprofun-
senhar os modos como vivemos e a da. Para superá-la é preciso enfrentar
estrutura institucional e cultural de o dogmatismo neoliberal e promover
nossas vidas, de modo a favorecer os mudanças qualitativas, buscar novos
aspectos benignos e suprimir os as- paradigmas.
pectos grosseiros e destrutivos de O ponto de partida é a defesa de
nossa natureza fundamental.”1 direitos inalienáveis: direito à vida, à
Se o futuro é a busca de um lucro liberdade, à felicidade; livre acesso ao
sempre maior para as empresas, es- que é comum; igualdade na distribui-
pecialmente para o setor financeiro, ção da riqueza; sustentabilidade do
a sociedade deve se moldar para aten- comum; governança democrática.2
der a esse objetivo. A precarização Com a Austrália mostrando o im-
das relações de trabalho serve a esse pacto do aquecimento global, a
propósito, assim como a redução do questão ambiental se soma aos di-
valor das aposentadorias. reitos inalienáveis. O acesso a comi-
Se o futuro é a busca do bem-estar da saudável e água potável se contra-
de todos, a sociedade deve mobilizar põe às privatizações e é igualmente
seus recursos, sua produção de rique- fundamental.
zas, para a construção dos bens co- Ao promoverem a defesa dos direi-
muns e a melhoria da qualidade de tos, os grupos que se mobilizam en-
vida. E usufruir desse patrimônio frentam a ordem instituída, assumem
público! uma condição insurrecional – como
Quando os dramas individuais vemos hoje no Chile e em vários ou-
são reconhecidos como coletivos – a tros países –, encaram os riscos de
questão do emprego ou da previdên- morte, espancamento e prisão, e pas-
cia, por exemplo –, suas demandas sam a ser o poder instituinte de uma
criam atores coletivos que cobram nova ordem.
dos governos a solução de seus pro- Nem os sindicatos, nem os parti-
blemas e expressam as necessidades dos políticos, nem as organizações da
daqueles que estão privados do que cidadãs no Chile e em vários outros Se perdermos o horizonte utópico, sociedade civil conseguem dialogar
lhes é essencial. países não pode alimentar esperan- uma perspectiva, um desejo, uma com a autonomia desses novos atores
O drama individual se transforma ças no Brasil. Por isso, é preciso con- ideia, um projeto, ficaremos sem pro- sociais. São esses contrapoderes de-
em drama coletivo, e os atores coleti- trolar as informações. postas para defender. Aí jogamos mocráticos surgidos das mobilizações
vos mobilizados para pressionar os O que acontece se as maiorias no apenas na resistência, paralisados cidadãs que pressionam corporações
governos criam espaços de negocia- Brasil se convencerem de que podem pelas dificuldades. e governos a abrir espaço para a cons-
ção, ativam o espaço da política e mudar as políticas públicas e a desti- O saudosismo do passado traz trução do comum, de uma nova de-
conquistam vitórias! nação dos recursos públicos? uma ideia mítica de reconstruir uma mocracia, de uma nova sociedade.
A mobilização dos coletes amare- Esta não é uma crise qualquer, é vida que já não é mais possível. Já não Na situação atual, segundo
los, na França, acaba de conseguir uma crise do mundo do trabalho, é mais possível ser telegrafista, pas- Chomsky, temos duas escolhas: “Po-
que o governo Macron volte atrás no com aprofundamento da desigualda- sar um fax, acreditar na força dos sin- demos ser pessimistas, desistir e aju-
aumento da idade para se aposentar. de e da pobreza, precarização da vi- dicatos ou comer sem ingerir agrotó- dar a garantir que o pior ocorra. Ou
As mobilizações impressionantes no da, destruição do meio ambiente e xicos. Como dizia um antigo filósofo podemos ser esperançosos, agarrar
Equador fizeram o presidente cance- violência se instalando sobre as insti- grego, Heráclito, ninguém se banha as oportunidades que certamente
lar o aumento dos preços dos com- tuições. É uma crise civilizatória! duas vezes no mesmo rio; o tempo existem e, talvez, esperar fazer o
bustíveis. As imensas mobilizações Temos de pensar uma nova não volta atrás. mundo um lugar melhor. Na verdade,
chilenas conquistaram um plebiscito sociedade, um novo modo de As demandas sociais muitas vezes não é bem uma escolha...”3. 
para votar a forma de construção de produção, novos padrões de esbarram em lógicas de negação de
uma nova Constituição para o país. consumo, a sustentabilidade direitos. O argumento de sempre é 1   N oam Chomsky, “Chomsky: ‘por que tenho
É curioso que o que ocorre no Chi- ambiental, a integração cidadã dos que não há dinheiro para atender a esperanças’”, Outras Palavras, 15 jan. 2019.
le tenha sumido das páginas de nos- mais pobres a uma vida digna, novas essas demandas, embora haja dinhei- 2   Michael Hardt e Antonio Negri, Declaração:
isto não é um manifesto, 2. ed., N-1, São Paulo,
sos jornais, ou consiga apenas peque- formas de gestão em governos ro para atender a setores do empresa- 2016, p.73.
nas notas. O sucesso das mobilizações radicalmente democráticos. riado com isenções tributárias. 3   Noam Chomsky, op. cit.
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
6 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

CAPA

Operações policiais no Rio de


Janeiro: da lacuna estatística
ao ativismo de dados
Quantas operações de incursão em favelas são realizadas? As próprias instituições policiais não sabem dizer, muito
menos sua razão e seus resultados. Foi justamente para preencher essa lacuna que fizemos um levantamento inédito
sobre as operações policiais no Rio de Janeiro, em série histórica
POR DANIEL VELOSO HIRATA E CAROLINA CHRISTOPH GRILLO*

P
raticamente todos os dias nos de atividade policial produzidos são duas fontes comparativas para a con- cognitiva, de objetos que servem de
deparamos com notícias de que os mesmos do atendimento a qual- ferência das notificações. Os dados já referência aos debates e podem ser
policiais armados com fuzis quer outra ocorrência e não são analisados referem-se ao período de sempre questionados. Mas vivemos
realizaram operações de incur- quantificados. O Instituto de Segu- 2007 a 2018, mas coletamos também atualmente sob um governo eleito
são em favelas do Rio de Janeiro, fre- rança Pública (ISP-RJ) divulga men- dados sobre operações realizadas com fortes denúncias de utilização
quentemente a bordo de um veículo salmente dados de boa qualidade ba- desde 1989, a serem divulgados de fake news e que vem se esforçando
blindado – o temido “caveirão” – e, às seados em ocorrências criminais posteriormente. para desqualificar algumas das prin-
vezes, auxiliados por um helicóptero registradas em delegacias da Polícia A ONG Redes da Maré foi pioneira cipais instituições de produção de
blindado – o ainda mais temido “ca- Civil, mas não há como identificar na realização de levantamentos se- dados confiáveis nacionais. Podería-
veirão voador” –, utilizado também quantas dessas ocorrências resulta- melhantes, quantificando informa- mos lembrar o caso do Inpe no con-
como plataforma de tiro. Em boa par- ram de operações policiais. Sabemos, ções sobre as operações policiais na texto das queimadas na Amazônia,
te dessas operações há intensos tiro- por exemplo, pelos dados do ISP, que Maré. Os boletins divulgados subsi- dos ataques à realização do censo pe-
teios, que muitas vezes resultam em a polícia matou a escandalosa cifra diaram seu trabalho de resistência às lo IBGE este ano, assim como as
mortes. Escolas e postos de saúde dei- de 1.810 pessoas em 2019, apenas no letais incursões das forças da ordem, ameaças constantes às universidades
xam de funcionar, moradores de fave- estado do Rio de Janeiro, mas a pró- por meio de uma Ação Civil Pública públicas. Combinam-se restrições
la são impedidos de comparecer ao pria polícia não sabe precisar quan- (ACP), e permitiram quantificar os orçamentárias com demissões arbi-
trabalho, famílias inteiras são obriga- tas delas foram mortas em incursões efeitos de redução da violência du- trárias, procedimentos articulados
das a se deitar no chão de casa para se em favelas, porque não quantifica rante a vigência da ACP. Em seguida, da racionalidade neoliberal e do au-
prevenir contra as “balas achadas”. suas operações. o Centro de Estudo de Segurança e toritarismo que caracterizam o go-
Parte das operações resulta na prisão A ausência de registros ou docu- Cidadania (CESeC) produziu dados verno atual do Brasil, com fortes res-
de suspeitos e/ou na apreensão de mentos de notação para ações tão importantes durante a Intervenção sonâncias mundo afora. Não é
drogas, armas, dinheiro, bens rouba- importantes na área de segurança Federal em 2018 e, agora no formato surpresa, portanto, que a área priori-
dos etc., mas ao custo de vidas e da pública não deixa de ser notável, so- da Rede de Observatórios da Segu- tária do governo, a segurança públi-
ruptura do cotidiano nas localidades bretudo por seu interesse para o de- rança, monitora continuamente a ca, seja povoada por opiniões sem ne-
afetadas. Apesar da intensa mobiliza- bate público. Essa ausência parece atividade policial, quantificando nhum embasamento dentro do
ção por parte dos moradores de fave- ser uma ação administrativa que ilu- ações de patrulhamento e operações. imenso campo de pesquisas que se
las para denunciar abusos, as autori- mina uma delimitação do que deve Importante parceiro e fonte de inspi- consolidou nas últimas décadas no
dades alegam não ser possível ou não deve ser posto em debate. E foi ração, o datalab Fogo Cruzado – RJ Brasil e no mundo.
combater a criminalidade sem a rea- justamente no sentido de preencher destaca-se também por produzir da- Para termos uma dimensão do
lização dessas operações. essa lacuna de informações e fomen- dos sobre a incidência de tiroteios, problema que se relaciona ao uso da
Se as incursões policiais em fave- tar o debate público acerca do uso da desde 2016. Todos esses esforços, força estatal, podemos iniciar com os
las são consideradas inevitáveis para força por agentes estatais que reali- contudo, ainda não lograram preen- dados oficiais disponíveis, organiza-
as políticas de segurança pública no zamos um levantamento inédito so- cher a lacuna estatística acerca do dos pelo Instituto Igarapé. A América
Rio de Janeiro, supõe-se que devería- bre as operações policiais no Rio de uso da força pelo Estado. Latina, que concentra 8% da popula-
mos ser capazes de avaliá-las. Quan- Janeiro, em série histórica. Movidos Se produzir dados de boa qualida- ção mundial (570 milhões, mais ou
tas operações de incursão em favelas pela perspectiva do data activism, ou de sempre fez parte da construção menos), responde por quase 40% de
são realizadas? Por quais forças? On- do statactivisme,1 formamos um cole- dos espaços de deliberação pública e todos os homicídios do mundo, qua-
de? O que motiva essas operações? tivo de ativistas e pesquisadores en- republicana, no Brasil atual é um ato se 144 mil homicídios por ano em
Quais são seus resultados? É sur- gajados na produção de números so- de resistência. Seguindo Alain Desro- média. Desses 144 mil homicídios de
preendente que as próprias institui- bre as operações policiais de incursão sières,2 o espaço público não é ape- toda a região, o Brasil concentra cer-
ções policiais não saibam dizer em favelas na cidade do Rio de Janei- nas uma ideia vaga, abstrata e nor- ca de 65 mil, ou seja, 45% do total do
quantas operações realizaram, mui- ro e Região Metropolitana. Adotamos mativa que deve ser respeitada, mas subcontinente: portanto, o Brasil,
to menos sua razão e seus resultados. como fonte de informação os princi- também um espaço histórica e tecni- com 3,6% da população mundial, res-
Ao mobilizar dezenas de policiais ar- pais jornais de “notícias policiais” camente estruturado e limitado, que ponde sozinho por 18% dos homicí-
mados com fuzis em veículos blinda- (Extra, Dia e Meia Hora) e dados pro- permite o acesso a informações dis- dios no mundo. Temos então que a
dos para trocar tiros em territórios venientes de redes sociais, especial- poníveis a todos por meio da consis- América Latina é a região mais vio-
densamente populados, os registros mente o Twitter, visando estabelecer tência e da permanência, política e lenta do mundo e o Brasil concentra o
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 7

maior volume desses homicídios. chadas como “áreas de risco” ou estimarmos o volume, os autores, o Quanto aos resultados, identifica-
Pois bem, tudo isso é relativamente “áreas sensíveis” e relegadas ao con- local e as razões das operações poli- mos que, em 61% das operações noti-
conhecido. trole armado de criminosos. Ao mes- ciais, buscamos entender os resulta- ficadas, houve apreensões, e, em
Então, a pergunta crucial é: quan- mo tempo, a prioridade de combate dos dessas operações. 46%, prisões. Entre as apreensões,
tos desses homicídios são cometidos ao crime opera como justificativa pa- Assim, quando nos perguntamos em 42% foram apreendidas armas;
pelo Estado? Apenas em termos com- ra a criação de territórios de exceção quantas operações, descobrimos que em 41%, drogas; em 8%, veículos (so-
parativos, ao olharmos dados oficiais onde vige a suspensão de direitos ci- existem variações importantes que mados carros e motos); e, em 6%, car-
do “Uniform Crime Reporting”, do vis. Faz-se, portanto, urgente estabe- se relacionam com as conjunturas gas e veículos de cargas. Em 22,9%
FBI, percebemos que, ao longo dos lecer parâmetros de quantificação de políticas e econômicas, como as das operações houve mortos e, em
últimos cinco anos, todas as polícias uma política tão controversa. UPPs, sua ascensão e queda; as ope- 18,9%, feridos. No período, notifica-
dos Estados Unidos – mundialmente As experiências vividas nos mo- rações de Garantia da Lei e da Ordem mos 2.426 feridos civis e 824 policiais,
conhecidas como muito violentas – mentos de “operações” foram relata- (GLOs) e a intervenção federal; e a ou seja, mais ou menos três vezes
mataram em média 452 pessoas por das de forma bastante clara por meio crise socioeconômica, que afetou a mais civis. Entre as notificações de
ano. No Brasil, campeão mundial de de dezenas de pesquisas qualitativas operacionalidade do Estado. Chama mortos, 3.860 eram civis e 176 eram
mortes praticadas por policiais, tive- conduzidas junto a policiais, mora- a atenção a enorme quantidade de policiais, 21 vezes mais civis. Cru-
mos em 2016 por volta de 6 mil mor- dores e traficantes, que mostram co- operações durante o período consi- zando algumas dessas variáveis, é
tos por policiais. Desses 6 mil mortos mo a atuação de policiais se volta pa- derado – mais de 10 mil em doze possível dizer que as operações que
pela polícia no Brasil, cerca de 25% se ra o combate a inimigos em territórios anos, média de mais de duas por dia seguem procedimentos judiciais e in-
concentravam no Rio de Janeiro. Co- hostis, as experiências do “terror” de –, apesar de nossos dados se referi- vestigativos (patrimoniais e com
mo colocado anteriormente, a polícia moradores que vivem no “fogo cruza- rem ao número mínimo delas. Quan- mandado de busca e apreensão) ten-
matou, apenas no ano passado, 1.810 do” entre traficantes e policiais e o do nos perguntamos quem, é fla- dem a ser menos violentas (mortos e
pessoas no Rio de Janeiro. Em resu- ódio à polícia por parte de traficantes grante a atuação maciça da Polícia feridos civis e policiais), ao passo que
mo, num estado com cerca de 16 mi- que dependem da demonstração de Militar e, de forma mais detalhada, a aquelas com menor direcionamento
lhões de pessoas, a polícia mata mais sua “disposição”. Tais operações tam- centralidade dos batalhões de opera- judicial e investigativo (retaliação
de quatro vezes a soma das mortes bém já foram descritas como parte ções especiais e de certos batalhões por morte de ou ataque a policiais e
praticadas por todas as polícias dos dos cálculos para o pagamento do de área. Quando nos perguntamos disputas entre grupos criminais) são
Estados Unidos, um país com 327 mi- chamado “arrego”, a compra de pro- onde, notamos que existe claramente muito mais violentas.
lhões de habitantes. teção que traficantes pagam a poli- uma distribuição geográfica desi- Nosso trabalho de mensuração do
Para finalizar nosso panorama ciais para que possam continuar seus gual, pontuada pela segregação ur- direcionamento do uso da força pelo
pelos dados oficiais, em 2013 as polí- negócios ilícitos. Embora ilegal, é pú- bana, onde os efeitos violentos das Estado ainda está longe de ser con-
cias do Rio de Janeiro eram respon- blico e notório que em praticamente operações são distribuídos desigual- cluído. A base está sendo atualizada e
sáveis por 13% dos homicídios; em todas as favelas onde há tráfico ocor- mente também. aprimorada pela inclusão de infor-
2018, ano da intervenção federal, es- re o pagamento do arrego, de manei- Quando nos perguntamos por mações adicionais, sobretudo em re-
se número passou para 28%; en- ra a evitar que sejam realizadas in- qual razão, nos deparamos, em pri- lação ao período que vai de 1989 a
quanto em 2019, ano da virada de go- cursões no local. Logo, o grau da meiro lugar, com o dado de que em 2006. Continuamos a produzir dados
vernos de extrema direita, a polícia capacidade de resistência dos trafi- 31,4% das operações não consta ne- nessa direção, somando esforços
foi responsável por quase 40% de to- cantes à ação policial influi na tran- nhuma informação acerca de sua com demais organizações da socie-
das as mortes. Podemos, portanto, sação de “mercadorias políticas”.4 motivação, o que denota não apenas dade civil e grupos de pesquisa. Afi-
dizer que a América Latina é violen- Esse quadro de caracterização a falta de transparência, mas tam- nal, queremos e temos o direito de sa-
ta, que o Brasil é violento e que o Rio qualitativa das operações policiais, bém a não necessidade de prestar ber como o uso da força estatal vem
de Janeiro, além de ser muito violen- contudo, não foi acompanhado da contas sobre as incursões armadas sendo empregado em um lugar tão
to, se caracteriza por uma violência produção de dados quantitativos, em áreas pobres. Ao considerarmos violento como o Rio de Janeiro. Para
puxada pela polícia, pela violência visto que não existem estatísticas ofi- apenas as motivações informadas, maiores detalhes da pesquisa, acesse
de Estado. A pergunta que então se ciais sobre operações. Nessa direção, constatamos que o motivo mais re- os dois relatórios publicados no site
coloca é: em que situações os poli- temos buscado produzir informa- corrente é a repressão ao tráfico de de nossa parceira, a Fundação Hein-
ciais matam? Aqui começa nossa ções que fomentem o debate público drogas e armas (45,1%), seguido de rich Böll: <http://br.boell.org/pt-
pesquisa, já que é onde se inicia a la- acerca do uso da força estatal por mandado de prisão ou busca e -br/2019/12/04/roubos-protecao-pa-
cuna estatística em relação a essa meio da análise das operações poli- apreensão (19,4%), retaliação por trimonial-e-letalidade-no-rio-de-ja-
importante questão. ciais de incursão em favelas. Para di- morte de ou ataque a policiais neiro> e <http://br.boell.org/
Fizemos um levantamento sobre mensionar o direcionamento do uso (12,7%), repressão a crimes contra o pt-br/2019/12/21/operacoes-poli-
as chamadas “operações policiais”, da força pelo Estado, construímos patrimônio (8,6%), fuga e persegui- ciais-no-rio-de-janeiro>. 
quantificando as informações passí- uma base de dados própria, assumi- ção (8%) e disputa entre grupos cri-
veis de serem encontradas sobre as damente subestimada, oferecendo minais (6,1%). Percebemos com esses *Daniel Veloso Hirata  é professor de So-
incursões armadas realizadas por di- um número mínimo, porém confiá- dados não apenas a centralidade das ciologia da Universidade Federal Fluminen-
ferentes forças policiais/militares. As vel. Concentramo-nos, em particu- políticas de guerras às drogas, mas se, pesquisador do Geni/UFF, do Necvu/
operações policiais de incursão em lar, nas operações de incursão arma- também um aumento das operações UFRJ e do Nucec/UFRJ; e Carolina Ch-
favelas constituem o principal ins- da realizadas pelas forças da ordem visando à repressão aos roubos, ristoph Grillo é pós-doutoranda do Pro-
trumento da ação pública 3 para a (policiais, mas também militares) em quando aprofundada a crise socioe- grama de Pós-Graduação em Sociologia
área de segurança pública no estado favelas e bairros pobres do Rio de Ja- conômica no estado. De 2007 a 2017, da Universidade Federal Fluminense, pes-
do Rio de Janeiro. Tal método de neiro controlados por grupos arma- as operações com motivações patri- quisadora do Geni/UFF e do Necvu/UFRJ.
combate ao crime depende de que dos de traficantes ou milicianos. moniais representavam, em média,
não haja patrulhamento regular em Os elementos descritivos mais ge- cerca de 5,2% das operações, ao pas- 1   Isabelle Bruno, Emmanuel Didier e Julien Pré-
determinadas áreas da cidade, de rais para a caracterização das opera- so que, de 2017 e 2018, passaram a vieux, Statactivisme: comment lutter avec les
modo que a presença da polícia se dê ções policiais foram sua evolução 23,7%. Nota-se ainda que a porcenta- nombres [ Statactivisme : como lutar com nú-
meros], La Découverte, Paris, 2014.
apenas por meio de operações espo- temporal, as instituições que partici- gem de operações que provêm de in- 2   Alain Desrosières, La politique des grands
rádicas e relativamente imprevisí- param e sua localização, ou seja, ca- vestigações judiciais (cujo indicativo nombres [A política dos grandes números],
veis. Sob o argumento de que não há be entender quantas operações fo- são os mandados) é bem inferior ao La Découverte, 1993.
3   Pierre Lascoumes e Patrick Le Galès, Gouver-
segurança para os policiais realiza- ram realizadas ao longo de 2007-2018, que se poderia esperar e que é sur- ner par les instruments [Governar pelos ins-
rem rondas cotidianas e atenderem a quem foi o responsável e onde ocorre- preendentemente alta a porcentagem trumentos], Presses de Sciences Po, Paris,
ocorrências nos mesmos moldes em ram. Sempre que possível, acrescen- de operações motivadas por retalia- 2004.
 ichel Misse, Crime e violência no Brasil con-
4   M
que fazem no restante da cidade, tamos informações sobre por qual ra- ção por morte de ou ataque a poli- temporâneo, Lumen Juris, Rio de Janeiro,
grandes porções territoriais são ta- zão a operação foi realizada. Após ciais, atos de vingança institucional. 2006.
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
8 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

CAPA

Guerras prisionais rá. Como se isso não fosse suficiente,


diversas denúncias e incontáveis evi-
dências anunciaram o uso sistemáti-

e massacres no Ceará
co de castigos físicos e violência psi-
cológica como meio de controle e
submissão da população carcerária –
para citar apenas um exemplo, o uso
da fome e da sede7 como fundamen-
tos da submissão dos corpos
O governador Camilo Santana (PT) anunciou uma reforma administrativa e alterações encarcerados.
substanciais na correlação de forças e doutrinas do governo cearense. Na prática, isso Individuais e coletivos, os casti-
gos tornaram-se procedimentos roti-
significou o alinhamento com sua política de segurança pública, voltada para uma forte neiros para impor sanções ao menor
e letal “guerra contra o crime organizado”, introduzindo doutrinas de choque dentro dos sinal de enfrentamento nas unidades
estabelecimentos penais prisionais masculinas e femininas.
Sabe-se sobre impedimentos e restri-
ções nunca antes vistos para a reali-
POR ÍTALO BARBOSA LIMA SIQUEIRA* zação do controle social feito por or-
ganizações como a Pastoral
Carcerária do Ceará e a Comissão de

E
m suas razões históricas de lon- Nos últimos três anos, os massa- tana (PT), reeleito com 79,94% dos Direitos Humanos da Ordem dos Ad-
go prazo, uma maneira de com- cres prisionais impressionaram pela votos válidos, anunciou uma reforma vogados do Brasil – Seccional Ceará,
preensão das prisões brasileiras magnitude das cenas de horror, defi- administrativa no Poder Executivo e nas inspeções feitas pelo Mecanis-
pode ser delineada pela consti- nindo uma nova generalização al- do Ceará e alterações substanciais na mo Nacional de Prevenção e Comba-
tuição autoritária e escravocrata de cançada pela violência dos grupos correlação de forças e doutrinas do te à Tortura (MNPCT), entre outros.
nossa sociedade, sobretudo identifi- armados na região Norte e Nordeste.3 governo estadual, sentidas principal- Impedimentos para a aproximação
cando os processos de dominação se- A explosão da população carcerária mente na administração penitenciá- física e escuta de relatos sobre a roti-
nhorial e subordinação militar dos brasileira é uma questão central para ria. Na prática, isso significou o ali- na das unidades prisionais, bem co-
povos. Esses mecanismos de controle a compreensão dos problemas con- nhamento com sua política de mo condições degradantes para a po-
social reativam práticas autoritárias temporâneos que cercam o sistema segurança pública, voltada para uma pulação carcerária tendo em vista o
baseadas em saberes sobre a relação prisional, que passou a ter uma in- forte e letal “guerra contra o crime or- uso ostensivo de ordens para impor
com os setores empobrecidos da po- fluência mais evidente sobre os cen- ganizado”, introduzindo doutrinas posições de rendição para os presos –
pulação e de tipos acusados de pro- tros urbanos a partir das conexões de choque dentro dos estabelecimen- sentados e de cabeça baixa –, spray
blemáticos: índios bravos, quilombos, entre bairros e prisões. A linha políti- tos penais cearenses. No dia 22 de de- de pimenta, espancamentos com
vadios, bêbados, prostitutas, loucos, ca de recrudescimento penal e am- zembro de 2018, foi anunciada a no- cassetetes, bombas de efeito moral,
guerrilheiros, bandidos, entre outros. pliação dos tipos criminais com pre- meação do policial civil e especialista privação de sol e de visita social, a
No caso do estado do Ceará, a po- visão de privação de liberdade, em gestão prisional Luís Mauro Albu- “tranca”,8 entre outros, são os recur-
lítica de contenção de grandes con- acompanhada do aprimoramento da querque, que na ocasião era conheci- sos mais usados contra qualquer ato
tingentes populacionais considera- segurança, das técnicas de controle, do “linha-dura” na administração da de quebra dos procedimentos do si-
dos problemáticos é um fenômeno de das formas e procedimentos da roti- Secretaria de Justiça e Cidadania (Se- lêncio e da ordem.
longo prazo. Entre diversos exemplos na penitenciária tiveram como con- juc) do Rio Grande do Norte e por sua É fundamental perceber o endu-
na história, dois surgem como emble- sequência a expansão das condições breve passagem no sistema prisional recimento das políticas de segurança
máticos. No início do século XX, degradantes de custódia para um nú- cearense como interventor responsá- penitenciárias e sua extensão tam-
campos de concentração1 foram usa- mero crescente de pessoas presas pe- vel por conter uma grave crise ocorri- bém para as famílias, acusadas e cri-
dos para impedir retirantes das im- lo sistema de segurança pública e jus- da em julho de 2016. Seu procedi- minalizadas como “envolvidas” com
piedosas secas de chegarem à capital, tiça criminal. mento, chamado “doutrina do facções. Compostos quase todos por
Fortaleza. Em 1932, foram contabili- Essa criminalização resultou em contato zero”, busca o enfrentamento mulheres, os protestos são desenco-
zadas 73.918 pessoas nos campos em diversas maneiras de reação das pes- das facções e as pessoas que se proje- rajados com ameaças de castigos
todo o Ceará. Nas periferias de Forta- soas identificadas como inimigas do tam como liderança dentro das pri- dentro das unidades prisionais con-
leza, esses espaços eram símbolos de Estado. É o caso contemporâneo dos sões. Inclusive, aposta na “mistura” tra seus entes queridos. Visitas ínti-
medo para as classes dominantes, acusados de serem faccionados com de presos até então separados por mas estão extintas sob o contato zero.
ainda que com maior controle poli- atuação nos bairros e prisões do Cea- seus grupos de identificação e afini- A Portaria Institucional n. 009/2019
cial, pois eram cenários tomados pela rá, figurando enquanto enquadra- dade, situação que fez evoluir rapida- consolidou um regramento para os
visão de pessoas famintas e cadáve- mento das vidas matáveis4 nos pro- mente nas jornadas de atentados do dias de visita e de entrega de malotes
res mortos pela fome, sede e doenças, cessos que propõem a higienização início do ano passado. (jumbo), com regularidade estabele-
situação que podia ser bastante co- social e o aumento do encarceramen- No dia 3 de janeiro de 2019, uma cida pela alternância de quinze dias
mum 2 – semelhante às cenas vistas to, mecanismos de ampliação das de- bomba explodiu em uma coluna de para cada atividade, isto é, duas vezes
anos depois nos campos da Europa sigualdades e da violência sistêmica.5 um viaduto da BR-020, na cidade de por mês. Apenas é permitida a entra-
pós-guerra, excluindo-se apenas o É certo dizer que a violência não se Caucaia, comprometendo a estrutu- da de uma garrafa de plástico trans-
dolo do extermínio sistemático prati- resume às contendas entre bandos ra. Até o dia 4 de fevereiro foram re- parente com 1 litro de água mineral,
cado pelo Estado nazista. O uso in- que disputam o controle territorial gistrados 283 atentados em 56 muni- uma garrafa de plástico transparente
discriminado de violência letal acon- das periferias e das celas. Porém, a cípios, com pelo menos treze dias de refrigerante guaraná de 1 litro,
teceria em 1937, quando forças ascensão do Primeiro Comando da ininterruptos de ataques na capital e quatro sanduíches tipo misto – re-
policiais e do Exército do governo de Capital (PCC), do Comando Verme- no interior, a maior onda da história. cheio de presunto e queijo – e uma
Getúlio Vargas exterminaram entre lho (CV) e da Guardiões do Estado Foram enviados agentes da Força-Ta- maçã. Os itens devem ser acondicio-
quatrocentas e mil pessoas de um pe- (GDE), nas prisões e bairros de Forta- refa de Intervenção Penitenciária nados em sacos transparentes, con-
queno povoado no Crato, chamado leza, foi reveladora de conflitualida- (FTIP), além de 420 policiais e 92 via- sumidos durante a visita e não devem
Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. des no cenário urbano, identificando turas da Força Nacional de Seguran- ficar dentro da unidade prisional, ter-
O caráter igualitário e comunal-reli- os clientes preferenciais das prisões e ça Pública. A retórica de guerra foi minando a prática de doação para
gioso incomodou as oligarquias de- das práticas de extermínio.6 alimentada como forma de reação e presos sem visitas. Reter os alimentos
pendentes da exploração aguda do No pleito de 2018, sem grandes aceitação ao incremento da repres- depois do término pode resultar na
sertanejo. surpresas, o governador Camilo San- são dentro e fora das prisões no Cea- ida para a tranca. As medidas draco-
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 9
© Amanda Daphne

vulgadas como um “case de sucesso”


pela apologia da racionalização de
recursos e aumento da sensação de
segurança do sistema prisional, re-
percutindo na redução do número de
fugas, diminuição da influência de
facções e unidades prisionais menos
insalubres, por exemplo.
Pensando com Mbembe,17 o me-
canismo penitenciário emerge como
espaço e condição estratégica em que
se exerce o direito de matar, de deixar
viver ou de subjugar à morte pessoas
consideradas inimigas. As guerras
contemporâneas assumem formas
diferentes, não exatamente sendo
travadas entre Estados soberanos,
mas ocorrendo por meio de bandos
armados sob a máscara estatal ou
não e definindo políticas de inimiza-
des para justificar o extermínio de
grupos tidos como alvos potenciais,
base para a necropolítica dos territó-
rios de exceção no Ceará. 

*Ítalo Barbosa Lima Siqueira é douto-


rando em Sociologia pela UFC (bolsista
Capes), pesquisador do Laboratório de Es-
tudos da Violência (LEV/UFC) e do Ilhar-
gas – Cidades Políticas e Saberes na Ama-
zônia (Ufam).

1   O que dizer da afirmação de Aimé Césaire


sobre os campos de concentração, que antes
mesmo de serem instalados pelo partido na-
zista na Europa – continente que por séculos
pretendeu o domínio civilizatório do mundo –
já eram largamente utilizados nas colônias e
contra as populações sujeitadas pela hege-
monia do racismo branco, ariano e cristão?
2   Hoje, esses campos desativados estão situa-
dos em importantes e populosos bairros da
capital cearense.
3   Eventos ocorridos principalmente no Amazo-
nas, Roraima e Rio Grande do Norte.
nianas estão expressas nas dificulda- branca. O impedimento sumário de como as características de interven- 4   Fábio Mallart e Rafael Godoi, “Vidas matá-
veis”. In: BR 111: a rota das prisões brasilei-
des para apoiar a pessoa presa. entrada nas unidades é um proble- cionismo e militarização. A consoli- ras, Veneta/Le Monde Diplomatique Brasil,
De fato, as notícias de dentro nar- ma que semanalmente leva um nú- dação da FTIP é uma expressão disso. São Paulo, 2017.
ram maior presença de fuzis e esco- mero de mulheres a retornar para As medidas empregadas largamente 5   B yung-Chul Han, Topologia da violência , Vo-
zes, Petrópolis, 2017.
petas exibidos por agentes peniten- casa, seja por falta de item regular do no sistema prisional cearense rende- 6   Luiz Fábio S. Paiva, “‘Aqui não tem gangue, tem
ciários, e tensão repetida na ida do uniforme, seja por algum castigo im- ram elogios de Jair Bolsonaro, ao di- facção’: as transformações sociais do crime
preso ou da presa até o local da visita posto do lado de dentro. A falta de zer que o governo petista do Ceará em Fortaleza, Brasil”, Cadernos do CRH, v.32,
n.85, p.165-184, 2019; Suiany Moraes e Ítalo
social. O procedimento consiste em informações é regra geral, por isso as teria provado que a violência não se Lima, “As margens como centro no bairro Ben-
apresentar o preso submisso por mulheres criam grupos para trocar combate “com direitos humanos”.14 fica: falas da violência e do matar na cidade de
uma escopeta apontada para sua ca- notícias e afetos. Os apelos do governador reeleito para Fortaleza”, Revista Brasileira de Sociologia da
Emoção, v.18, n.53, p.143-159, ago. 2019.
beça, o qual, por sua vez, deve sem- Os bandos faccionados apresen- tipificar os atentados como terroris- 7   Fernanda Valente, “Juiz do Ceará manda esta-
pre mantê-la baixa, respondendo tam a violência como meio para a mo indicam esses esforços.15 do regularizar fornecimento de água em presí-
“sim, senhor”, quando solicitado, conquista do poder e da gestão dos Agamben16 destaca o uso da sus- dio”, Consultor Jurídico, 26 abr. 2019.
8   Local reservado para detentos que estejam
para em seguida ser entregue para a mercados ilegais, e, ao que parece, o pensão de direitos para a contenção em medida disciplinar.
visita. No final, a imagem da cami- Estado está assumindo esse papel ao de crises, aumentando as incertezas 9   Sobre a militarização da segurança pública,
nhada melancólica de mulheres com destacar seus recursos para o apro- sobre os limites legais de ações esta- ver Luis Antônio Francisco de Souza, “Militari-
zação da segurança pública no Brasil”. In:
rostos tristes e angustiados com o fundamento da militarização da se- tais, que inclusive podem justificar a Luiz Claudio Lourenço (org.), Criminalidade,
endurecimento dos procedimentos gurança pública.9 O uso da ação de morte de cidadãos em nome da segu- direitos humanos e segurança pública na Bah-
do contexto prisional marca defini- Garantia da Lei e da Ordem (GLO)10 – rança, gerando um estado de vulne- ia , Cruz das Almas, UFRB, 2014.
10  Dispositivo regulado no artigo 142 da Consti-
tivamente essa rotina. Sem reconhe- autorizando o emprego de poder de rabilidade permanente. O alardeado tuição Federal.
cimento oficial, foi imposta unifor- polícia para as Forças Armadas –, a combate e guerra contra o narcotrá- 11  Lei n. 12.850/2013.
mização para as famílias: roupas promulgação da Lei de Organizações fico e organizações criminosas sus- 12  Criada pelo Decreto n. 5.289, de 29 de no-
vembro de 2004.
claras, para atender à exigência do Criminosas,11 a criação da Força Na- tentam leis, dispositivos e mecanis- 13  C olocado em prática em 2006.
agente na portaria; qualquer altera- cional de Segurança Pública12 e do mos extrajurídicos (tortura e 14  “Bolsonaro diz que Camilo Santana provou
ção resulta na negativa de entrada. Sistema Penitenciário Federal,13 en- extermínio) que caracterizam o uso que não se combate violência com direitos hu-
manos”, O Povo, 9 abr. 2020.
Foi formado um mercado informal tre outros, tornaram cada vez mais da força – inclusive letal – contra gru- 15  Vicente Vilardaga, “É preciso endurecer a lei
no entorno das unidades prisionais, rotineiro o policiamento de exceção pos relacionados como ameaças para antiterrorismo”, IstoÉ , 22 fev. 2019.
onde é possível comprar sacos plás- que aparece na atualidade como uma a soberania do poder estatal. No iní- 16  Giorgio Agamben, Estado de exceção, Boi-
tempo, São Paulo, 2004.
ticos por R$ 2 ou R$ 3 e alugar roupas resposta legítima, com efeito de na- cio do século XXI, as doutrinas colo- 17  Achille Mbembe, Política da inimizade, Antígo-
e sandálias do tipo havaianas de cor turalizar a situação de conflito, bem cadas em prática oficialmente são di- na, Lisboa, 2016.
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
10 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

CAPA

Não seremos reduziu aqueles que poderiam trazer


certa diversidade e perspectiva para
a cobertura jornalística desses espa-
lo processo criativo que fica
registrado no chat –, e, assim, fortale-
cemos nossa incidência em rede.

pauta, nós
ços a meros personagens, fontes de Com nosso próprio celular, construí-
informação. mos todas as etapas de produção de
Construir essa percepção foi fun- uma reportagem e acreditamos que o
damental para que, em 2017, eu co- conjunto de ferramentas, construí-

pautamos a
criasse o portal Favela em Pauta, tra- das coletivamente, pode gerar resul-
balhando com o conceito de tados expressivos para a transforma-
“jornalismo profissional” nos temas ção que estamos trabalhando para
relacionados às favelas cariocas e tra- construir, principalmente por meio

nossa existência!
zendo um olhar de dentro delas. De da produção do repertório necessário
maneira geral, analisamos que os e do entendimento de que nós, jorna-
grandes veículos de comunicação listas favelados, podemos produzir
controlam a narrativa e direcionam o conteúdos como os verdadeiros sujei-
olhar para a comunicação dos temas, tos da notícia. A própria percepção de
pessoas e territórios favelados, quase nossa vida e trajetória contribui para
Portal Favela em Pauta, trabalhando com o sempre pautados pela falta. Além dis- a transformação social e a redução da
conceito de “jornalismo profissional”, traz so, constrói-se uma narrativa da ne- desigualdade porque constrói cami-
cessidade de “contrapartida” quando nhos de possibilidades para outros,
um olhar de dentro das favelas; um nítido pautamos a importância de nossa como nós, ocuparem os mesmos es-
contraste com a cobertura da imprensa tradicional participação em eventos, debates e paços, e ainda maiores.
congressos, como se fosse demérito O jornalismo brasileiro, que sem-
POR DAIENE MENDES* ser jornalista e morar na favela. pre pertenceu às elites, vai precisar
Ironicamente, buscamos cons- aprender a lidar com a geração de po-
truir estratégias para ultrapassar os bres que vai contar suas próprias his-
desafios impostos por empresas, or- tórias. Não é à toa que a história do
ganizações e pessoas que, muitas ve- Brasil parece ser contada da perspec-
zes, trabalham pela redução da desi- tiva de quem olha de fora, e, apesar
gualdade social, mas reproduzem de não fazer nenhum sentido, segui-

O
lugar que se ocupa na história ra “proteger o cidadão”, até que sur- opressões estruturalmente impostas, mos reproduzindo essas quase pará-
pode fazer toda a diferença no gem inúmeras comunicações, vídeos para gerações que desafiam essa es- bolas como verdades absolutas. A au-
final do filme. e provas que desmontam essa narra- trutura desigual e alcançam acesso tora Lilia Moritz Schwarcz, em Sobre
Imagine uma cena clássica tiva, evidenciando a corrupção poli- aos espaços considerados de poder, o autoritarismo brasileiro, conta o es-
do telejornal de meio-dia. A polícia cial, violações de direitos e execuções intelectualidade e mais. É quase co- forço de construir uma história digna
subiu a favela durante mais uma ope- extrajudiciais. Vídeos que saem de mo se precisássemos justificar nossa para um Brasil que, ainda em forma-
ração para conter o tráfico de drogas dentro para fora da favela e eviden- presença nesses espaços. ção, carregava tantos dilemas com-
na região. A imprensa, protegida pela ciam uma realidade que, algumas ve- Há dois anos, organizei um grupo plexos em trajetória.
polícia, por seus coletes e suas câme- zes, contraria a versão do telejornal de WhatsApp que reúne trinta jorna- A própria história do descobri-
ras, segue na responsabilidade de de meio-dia. Os grandes veículos de listas e/ou estudantes de Jornalismo mento e colonização é contada da
compartilhar as informações sobre a comunicação, apesar de conterem de diferentes favelas do Rio de Janeiro, perspectiva de quem, do barco, anun-
operação que adentrou a favela e, do diferenças políticas e comerciais, tra- Baixada Fluminense e Belo Horizon- cia “Terra à vista”, e nunca da perspec-
estúdio, um comentarista traz infor- balham em equipe, construindo e re- te. Assim como eu, eles representam a tiva de quem vivia no paraíso e teve
mações relevantes e tenta contextua- produzindo uma “versão oficial” da primeira geração de universitários de sua cultura, território e dinâmicas de
lizar a operação. notícia – que geralmente contempla a suas famílias. A primeira experiência sobrevivência destruídos e corrompi-
Congelamos essa cena e é fácil vi- perspectiva de empresários e políti- foi organizar um curso de jornalismo dos. A história da escravidão é conta-
sualizar a imagem de dois policiais cos e criminaliza movimentos so- de dados com a Associação Brasileira da a partir da construção de uma he-
agachados, fuzil apontado para den- ciais, insurgências, o povo e sua con- de Jornalismo Investigativo (Abraji), roína branca, a princesa salvadora e
tro da favela, pessoas andando ao dição de pobreza. com conteúdo criado especificamen- rica que, com benevolência e superio-
fundo. A cena constrange. A vida As organizações e os projetos so- te para o perfil do grupo. O mesmo ridade, assina um papel que liberta os
acontece na favela. A câmera do jor- ciais em ebulição nas últimas déca- curso foi replicado em outras três ci- cativos. As histórias de resistência e
nalista filma tudo isso, por cima do das exerceram um papel fundamen- dades. O maior desafio foi o tempo. luta de nossos ancestrais escraviza-
ombro dos policiais. tal na construção das bases de Sem dinheiro e com poucas referên- dos e indígenas são colocadas no lu-
A favela sempre esteve em pauta, e formação para os movimentos de cias, essa articulação demorou quase gar da rebeldia, da loucura, dos fujões,
a posição da câmera, de fora para contranarrativas que passaram a um ano para se materializar. Apren- ou nem sequer são contadas.
dentro, limita-se a registrar o olhar surgir. As mídias comunitárias e al- demos que os desafios são muitos e Um país que carrega em sua his-
de quem entra. Mas quem olha a fa- ternativas que nascem nas favelas que precisamos encontrar outras fon- tória o peso de reduzir a humanida-
vela nem sempre enxerga suas com- buscam fazer uma comunicação que tes de financiamento para sustentabi- de, tratando como propriedade seres
plexidades e valores. Pela presença não apenas olha para aquele territó- lizar as ações que construímos aqui. humanos de pele preta, descendentes
da polícia, ou pela ausência de toda e rio, mas também o enxerga em suas Desde então, realizamos diversas ati- de reis e rainhas, é o mesmo que
qualquer outra presença do Estado complexidades e valores porque co- vidades de formação para jornalistas transforma em “sujeitos matáveis”
na favela, a violência institucional é nhece suas regras e dinâmicas, e a favelados com o objetivo de ampliar aqueles que têm a condição de pobre-
cotidiana. Enquanto muitos acredi- popularização do acesso à internet repertórios e leituras de mundo a par- za imposta pela desigualdade social e
tavam em uma democracia plena no ajuda na disseminação desse conteú- tir desse crescimento coletivo. pelo racismo estrutural.
Brasil, quando a democracia ainda do que extrapola o “controle edito- Nós nos apropriamos das ferra- Que mais pobres e pretos narrem
não caminhava em “vertigem”, um rial” presente nas redações. mentas disponíveis para conseguir suas próprias histórias. Não seremos
amigo acordava às 6 horas com um As matérias produzidas por jorna- realizar estudos on-line e produção pauta, nós pautamos a nossa existên-
policial arrombando a porta de sua listas que moram nas favelas tomam de diferentes conteúdos de maneira cia! Favela em Pauta. 
casa, sem nenhum mandado, sem repercussão quando replicadas, mui- participativa e colaborativa – dessa
nenhuma justificativa. tas vezes gratuitamente e sem crédi- forma, até quem não participa dire-
A “versão oficial” da notícia é sem- tos, por um grande jornal ou veículo tamente da produção textual, audio- *Daiene Mendes é jornalista do Favela
pre de que a polícia sobe o morro pa- de mídia hegemônico. Esse ambiente visual ou estratégica é alcançado pe- em Pauta.
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 11

CAPA

Uma mídia antirracista na


cobertura da violência do Estado
Os desafios do Alma Preta, uma agência de jornalismo independente com foco na temática racial
POR SIMONE FREIRE*

A
s consequências de políticas queno – em tamanho –, sempre nos Também é crucial entender que o cuidado em fazer o registro históri-
que resguardaram o mito da deixa atrás em relação à rapidez que o há pessoas negras que avaliam a es- co do movimento negro organizado
democracia racial no Brasil nos jornalismo atual nos obriga a ter. Por trutura da sociedade brasileira. Inte- do país. A história de resistência de
atrapalham até os dias de hoje outro lado, conseguimos fazer o que lectuais negros não falam apenas de nossos antepassados nos foi negada e
no sentido de conseguir mostrar o poucos conseguem ou propõem: no- discriminação e preconceito. Rosane é preciso romper com esse ciclo de
óbvio: o racismo, embora velado, ticiar de um ponto de vista antirra- Borges, Dennis de Oliveira, Sueli Car- apagamento.
existe. Portanto, a tarefa do Alma cista. Como diz Angela Davis, “não neiro, Douglas Belchior, Bianca San- Em 2018 e 2019 estivemos próxi-
Preta não é fácil: ser uma mídia antir- basta não sermos racistas, temos de tana, Juarez Xavier, Roger Cipó, Natá- mos à Coalizão Negra por Direitos,
racista é uma audácia e uma ser antirracistas”. lia Oliveira, Adriana Barbosa, Juliana que reúne movimentos negros de to-
necessidade. Entendemos que a violência de Gonçalves, entre outros, são nomes do o país. Nacional e internacional-
Nosso compromisso com o jorna- Estado vai muito além da violência fí- que todo jornalista deveria conhecer. mente, ela teve uma incidência políti-
lismo nos faz estar atentos a tudo que sica, vai muito além da bala. A popu- Como um veículo de mídia negra, ca extraordinária, estando presente,
seja importante para a população lação negra é alvo de violências na também sempre precisamos nos inclusive, na reunião da Comissão
negra do país, o que nos é desafiador, saúde, educação, alimentação, traba- atentar à fragilidade de nossa segu- Interamericana de Direitos Huma-
já que estamos falando de 55,8% da lho, justiça, política de drogas ou rança física, emocional e virtual. No nos (CIDH) da OEA, denunciando os
população brasileira (9,3% autode- mesmo no esporte. Não é “mimimi”, final do dia, nossos corpos negros riscos da flexibilização da posse e
clarados pretos e 46,5% pardos), se- são dados. Ao noticiarmos algum fa- voltam para suas casas, muitas delas porte de armas no Brasil promovida
gundo a Pesquisa Nacional por to, temos como prerrogativa o enten- nas periferias, sem nenhuma garan- por Jair Bolsonaro, bem como o cha-
Amostra de Domicílios (Pnad) Con- dimento de que há uma estrutura tia de proteção. Quando se é um jor- mado pacote Moro, que previa mu-
tínua 2018 do IBGE. que alimenta o genocídio do povo ne- nalista negro e periférico, há muito danças para o Código Penal e Eleito-
Sabemos que a violência como gro. Um assassinato – como tenta mais em jogo do que uma simples re- ral e foi aprovado com mudanças, no
forma de governo sempre existiu. A mostrar a mídia tradicional – nunca é lação jornalista, entrevistado/a e ano passado.
população negra sempre foi o princi- um puro e simples assassinato. investigação. É necessário dar o nome correto
pal alvo do chicote e, agora, da bala. A A cobertura do caso da morte da Em uma época em que falamos ao processo que vivemos: é genocí-
cada 23 minutos, um jovem negro é vereadora carioca Marielle Franco tanto de diversidade na comunicação dio! Qualquer veículo que entenda a
assassinado no país. As mulheres ne- (Psol), em 2018, é um exemplo inte- e nas redações, é preciso mais do que importância desta disputa narrativa
gras estão na base da pirâmide social ressante. Para nós, Marielle não foi nunca começar a falar sobre como fi- compreende que a notícia sobre os
e acumulam os piores índices sociais apenas uma política negra. Além de nanciar a diversidade de iniciativas corpos negros vai muito além do
e econômicos no país. São as mais parlamentar, ela era mãe de Luyara, de comunicação negras e periféricas “showrnalismo”, parafraseando o
pobres, as que têm menos oportuni- era militante ativa do movimento ne- no país e sobre como garantir que jornalista José Arbex Jr.
dades, as que vivem menos, as que gro, era filha de Marinete e Antônio, jornalistas e defensores de direitos Se por um lado a mídia tradicio-
sofrem mais violências. irmã de Anielle e favelada. humanos negros e periféricos te- nal trata tudo com sensacionalismo,
Continuamos a ver nossos irmãos Após seu assassinato, estivemos nham reais condições de segurança de outro a mídia esquerda também
e irmãs morrendo cada vez mais, com atentos a toda ação de luta e resistên- em seus mais diversos aspectos e peca ao analisar os fatos apenas do
a política de segurança do país ainda cia da família Franco – por exemplo, a particularidades. ponto de vista da classe, negligen-
fundamentada no racismo. Vivemos o criação do Instituto Marielle Franco. E é preciso falar sobre as reais ciando ou negando definitivamente
que o filósofo e pensador camaronês No marco de um ano de sua morte, condições para jornalistas antirra- que uma análise de sociedade deve
Achille Mbembe define como “necro- estivemos com sua família produzin- cistas dentro de redações. Há infini- ser feita das perspectivas de raça,
política”: políticas de morte para o do uma reportagem especial de res- tos exemplos de pessoas demitidas classe e gênero.
controle das populações. Não nos es- gate de memórias, demos visibilidade por questionarem as estruturas – eu Quando não trabalham editorial-
queçamos do “a polícia deve atirar às críticas da família em relação ao sou uma delas. Como garantir a qua- mente na interseccionalidade, eles
para matar”, de João Doria (PSDB), andamento das investigações, à atua- lidade de uma cobertura sobre a vio- também negam o genocídio negro.
governador de São Paulo; e do “a polí- ção da esquerda partidária do país e lência de Estado sem se questionar Quando a mídia não entende a di-
cia vai fazer o correto: vai mirar na aos usos impróprios e aproveitadores sobre as violências internas em em- mensão racial da violência, a comu-
cabecinha e... fogo”, de Wilson Witzel de seu nome. presas de comunicação que perpe- nicação de qualquer veículo apenas
(PSC), governador do Rio de Janeiro. Junto a Marielle, também nos tuam o racismo estrutural? Seja na contribui para o extermínio da popu-
O Alma Preta não é um veículo es- lembramos das Cláudias, Amarildos, dita mídia tradicional ou na mídia de lação negra e periférica do país. 
pecializado em cobertura de violên- Ágathas e Luanas. Vale ressaltar que esquerda!
cia policial. Não conseguimos, e tam- o Alma Preta é um dos poucos veícu- Fazer uma cobertura positiva da
bém não queremos, competir com a los que continua acompanhando a comunidade negra é uma forma de *Simone Freire é jornalista, editora do
infraestrutura de veículos que conse- luta de familiares e amigos em busca combater o racismo e a violência. portal Alma Preta e integrante da Rede
guem estar a todo momento em qual- de justiça pelo assassinato de Luana “Estamos disputando as possibilida- Jornalistas das Periferias e do Instituto
quer lugar e a qualquer hora. Nossa Barbosa, em abril de 2016, após ser des desse sujeito negro”, como diz o Preto Império, localizado na Brasilândia,
infraestrutura, como um veículo pe- agredida por policiais. jornalista Pedro Borges. Há também periferia da Zona Norte de São Paulo.
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
12 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

INIMIGOS COM INTERESSES COMUNS

No Iraque, a dança
do sabre entre
Estados Unidos e Irã
A febre baixou entre Washington e Teerã, mas os enfrentamentos podem reacender a
qualquer momento por causa das manifestações no Irã, do calendário eleitoral norte-
americano, do estado de desenvolvimento do programa nuclear da República Islâmica...
ou simplesmente porque a rivalidade oferece fundamentos que organizam os dois países
POR GILBERT ACHCAR*

S
eja em sua versão moderna, É preciso reconhecer que as sus- dam Hussein, a qual emprestou com-
com sabres de luz, seja em sua peitas árabes não são infundadas. A batentes retirados da frota aérea da
versão arcaica, com cimitarras história das relações entre os Estados Marinha francesa. Com o Irã em des-
nos países árabes do Golfo, o Unidos – especialmente sob as admi- vantagem, as vendas de armas em
combate coreografado tem este para- nistrações republicanas – e a Repú- 1985-1986 ajudaram a restaurar o
doxo: trata-se de um desafio entre su- blica Islâmica do Irã, desde seu nas- equilíbrio de um conflito que termi-
postos inimigos que requer um bom cimento, há quarenta anos, dá naria em 1988 com um empate entre
entendimento entre os protagonis- motivos para preocupações. A posse dois países extenuados.
tas. Uma fração significativa da opi- de Ronald Reagan, em 20 de janeiro O governo de George H. W. Bush
nião pública árabe acredita que as re- de 1981, foi saudada em Teerã pelo teve, é verdade, o cuidado de não der-
lações conflituosas entre os Estados fim da tomada de reféns na embaixa- rubar o regime de Saddam Hussein
Unidos e o Irã no Iraque inscrevem- da dos Estados Unidos. O jornalista em 1991, temendo que o Irã preen-
-se nesse paradoxo. Para aqueles que Seymour Hersh revelou, dez anos de- chesse o vácuo político assim criado. -Jaafari (2005-2006), Nouri al-Maliki
sofrem de “conspiracionite”, tudo pois, que a equipe de Reagan nego- A estratégia de estrangulamento dos (2006-2014) e Haidar al-Abadi (2014-
não passa de um acordo secreto entre ciava desde 1980 o fornecimento de dois países continuaria na forma da 2018), todos membros do partido Da-
as duas partes; para os mais realistas, armas ao poder iraniano, efetivado “dupla contenção” dos anos 1990, por wa, seguidos em outubro de 2018 por
trata-se de um confronto do qual am- logo após a posse do novo presidente, meio de embargos e sanções. Esse Adel Abdel-Mahdi, ex-membro da Is-
bos se beneficiam e que, portanto, com a cumplicidade de Israel.1 Isso equilibrismo teria fim, no entanto, ci, que participou de todas as instân-
têm interesse em perpetuar. foi apenas um aperitivo do forneci- sob a presidência de George W. Bush. cias governamentais criadas pela
Mantendo a tensão, os Estados mento de armas que seria realizado Ao invadir o Iraque em 2003, o gover- ocupação desde 2003.
Unidos garantem a lealdade de seus entre 1985 e 1986, um escândalo que no Bush II colocou o lobo entre as A mudança de estratégia das auto-
protetorados regionais e continuam a viria a público com o caso que ficou ovelhas da forma mais direta possí- ridades de ocupação após 2006, que
lhes vender seus bilhões de dólares conhecido como Irãgate: o governo vel: permitiu que voltassem ao país consistiu em contar com o apoio das
em armas. A Arábia Saudita e os Emi- Reagan vendeu armas ao Irã, por in- os membros exilados dos dois princi- tribos árabes sunitas na luta contra o
rados Árabes Unidos foram respecti- termédio de Israel, e entregou ilegal- pais partidos confessionais xiitas ira- Estado Islâmico do Iraque, precursor
vamente o segundo e o quarto maior mente os recursos provenientes da quianos ligados ao Irã, o partido islâ- direto do Estado Islâmico, não per-
importadores de armas entre 2013 e venda à guerrilha contrarrevolucio- mico Dawa (“Propagação da mitiu contrabalançar a dominação
2017, e o primeiro e o terceiro maiores nária da Nicarágua. religião”) e a Assembleia Islâmica Su- dos partidos ligados ao poder irania-
importadores de armas dos Estados Para os Estados Unidos e para Is- prema do Iraque (Isci). no, ainda mais quando essa domina-
Unidos em 2018; no mesmo ano, a rael, a lógica óbvia era prolongar a Esse foi o início de uma longa co- ção foi legitimada pelo sistema políti-
Arábia Saudita se manteve como o guerra entre o Irã e o Iraque, iniciada laboração semidireta entre os Esta- co e eleitoral confessional que as
terceiro país do mundo em gastos por este último em 1980. Até ser es- dos Unidos e o Irã em solo iraquiano. mesmas autoridades de ocupação
militares, logo após os Estados Uni- magado pelos Estados Unidos, em Os dois partidos xiitas pró-iranianos implantaram, inspirando-se no mo-
dos e a China, de acordo com o 1991, o Iraque seguiu sendo o princi- foram instalados no comando do Ira- delo libanês. Os árabes sunitas ira-
Stockholm International Peace Re- pal inimigo do Irã. Em 1981, a Força que pela ocupação norte-americana. quianos constituíram, junto com ex-
search Institute (Sipri). Para o Irã, a Aérea israelense, aproveitando a en- Ambos estavam representados no -membros do Partido Baath e das
continuidade das tensões permite trada do Iraque na guerra, destruiu o conselho de governo criado em 2003 forças especiais de Saddam Hussein,
consolidar o domínio da ala ideológi- reator nuclear que a França estava e fariam parte, depois de todos os go- um terreno fértil para que grupos que
ca mais rígida do regime, cuja espi- construindo para Saddam Hussein. vernos provisórios, até do governo lutavam contra a ocupação norte-a-
nha dorsal é composta pelo comple- Quando a maré mudou, em 1982, e o “permanente” criado em 2006. Desde mericana fizessem seu recrutamen-
xo econômico-militar do Corpo de Iraque se viu em dificuldades, os Es- 2005, todos os governos iraquianos to; mas eles começaram a temer a
Guardiões da Revolução Islâmica, os tados Unidos ficaram contentes com foram presididos por um membro de partida das tropas dos Estados Uni-
pasdaran (“guardiões”). o apoio da França ao regime de Sad- uma das duas formações: Ibrahim al- dos, vistas como um contrapeso in-
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 13

© Christian Lopez/ Fuzileiros Navais dos estados Unidos


concebido como o equivalente ira- ma lógica que o faz responder agora
quiano dos pasdaran – e com as for- ao governo iraquiano que suas tropas
ças do Curdistão iraquiano, paralela- não deixarão o país a menos que isso
mente à colaboração com as forças seja bem pago. No entanto, é o Iraque
árabe-curdas também contra o Esta- que teria o direito de exigir uma inde-
do Islâmico na Síria. nização por perdas e danos diante da
Foi por meio do braço direito ira- devastação causada pelo poder nor-
quiano de Suleimani, conhecido pelo te-americano, isso sem falar dos bi-
pseudônimo de Abu Mehdi al- lhões de dólares que evaporaram sob
-Muhandis, oficialmente o número a ocupação.4
dois das Unidades de Mobilização
Popular – porém mais prestigiado
que o número um oficial –, que o Irã A operação apareceu
liderou essas milícias. Al-Muhandis como uma maneira
foi assassinado junto com Suleimani
no dia 3 de janeiro. Seu itinerário é
de ambos os lados
revelador. Membro do partido Dawa, manterem as aparên-
ele se refugiou no Irã logo após a vitó- cias, evitando o prosse-
ria da Revolução Islâmica, lutando guimento de uma esca-
nas fileiras iranianas contra seu pró-
prio país durante a guerra iniciada
lada de guerra
pelo Iraque em 1980. Engajado nas
operações estrangeiras dos pasda- Dois elementos explicam a dete-
ran, organizou os atentados às em- rioração, nos últimos meses, das rela-
baixadas da França e dos Estados ções entre os Estados Unidos e o Irã
Unidos no Kuwait em 1983, quando no Iraque. O primeiro deles é o au-
esses países apoiavam o Iraque.3 mento considerável da pressão eco-
De volta ao Iraque em 2003, ele foi nômica exercida sobre o Irã pelo go-
nomeado conselheiro de segurança verno Trump desde a rejeição, em
do primeiro-ministro Al-Jaafari e, em maio de 2018, do acordo de 2015 sobre
seguida, eleito para o Parlamento, em a questão nuclear iraniana. O gover-
2005, enquanto criava e dirigia o Ka- no iraniano respondeu atacando os
taeb Hezbollah (“Brigadas do partido aliados sauditas dos Estados Unidos
de Deus”), com o apoio iraniano. por intermédio dos hutis iemenitas –
Quando seus reveses se tornaram evi- uma intermediação real ou suposta,
dentes, em 2006, as autoridades da como no bombardeio de instalações
ocupação descobriram (ou se lembra- de petróleo sauditas em 14 de setem-
ram oportunamente) que Al-Muhan- bro de 2019, por drones e mísseis de
dis havia organizado os ataques no cruzeiro.5 A fraca reação de Trump
Fuzileiros navais dos EUA apoiam membros do serviço iraquiano, Iraque, 2017 Kuwait. Ele precisou mais uma vez fu- alarmou a Arábia Saudita.
gir para o Irã, de onde só retornou ofi- O segundo elemento é uma amea-
substituível à dominação dos parti- um tanto exagerada. Ele não obteve a cialmente após a retirada das tropas ça mais direta. De acordo com uma
dos xiitas do Irã. vitória em nenhuma das guerras que norte-americanas em 2011. pesquisa da agência Reuters junto a
supervisionou. O domínio iraniano A colaboração entre norte-ameri- comandantes das Unidades de Mobi-
WASHINGTON PEDIU RESGATE no Iraque foi garantido pela gentil co- canos e iranianos no Iraque, com a lização Popular e a autoridades de se-
O principal arquiteto dessa forte in- laboração dos Estados Unidos. A in- ajuda dos iraquianos fiéis ao Irã, con- gurança iraquianas, Suleimani se re-
fluência dos auxiliares do poder ira- tervenção na Síria, a partir de 2013, tinuou sem maiores incidentes sob a uniu em Bagdá, em meados de
niano sobre o Iraque foi o general sob o comando de Suleimani, das for- presidência de Trump. Este nunca ex- outubro, com os líderes das milícias
Qassim Suleimani, chefe do corpo de ças confessionais xiitas provenientes pressou o desejo de acabar com a pre- aliadas ao Irã na presença de seu bra-
intervenção externa dos pasdaran, a do Líbano e do Iraque, bem como de sença de tropas norte-americanas no ço direito iraquiano, Al-Muhandis.6
força Al-Quds (“Jerusalém”, em árabe outros elementos recrutados entre os Iraque – e por boas razões. Na verda- Isso se deu no contexto da revolta ini-
e farsi), assassinado pelos Estados refugiados afegãos xiitas no Irã só de, Trump adere de forma muito mais ciada em 1º de outubro pelos xiitas
Unidos no dia 3 de janeiro, em Bagdá. conseguiu garantir temporariamente franca do que seus antecessores ao iraquianos contra o domínio irania-
Ele era normalmente descrito como o o poder de Bashar al-Assad. Dois princípio que consiste em envolver as no e seus aliados corruptos do Parla-
procônsul do Irã nas províncias ára- anos depois, o regime estava nova- forças dos Estados Unidos apenas on- mento e do governo.7 A revolta certa-
bes de seu império regional. Depois mente em apuros, e o próprio Sulei- de há um interesse evidente: não na mente foi um grande choque para o
de um longo tempo limitadas ao Hez- mani precisou pedir ajuda à Rússia.2 Síria, ao lado das forças curdas, nem Irã e particularmente para Suleima-
bollah libanês (oficialmente fundado Quando o Estado Islâmico cruzou no Afeganistão, mas certamente jun- ni, colocando em questão o domínio
em 1985), as tropas auxiliares do Irã a fronteira entre a Síria e o Iraque, no to às monarquias petrolíferas do Gol- iraniano sobre o Iraque por meio de
tiveram um desenvolvimento consi- verão de 2014, conseguindo tomar fo, que cobrem (muito amplamente) alianças confessionais.
derável no Oriente Médio árabe gra- uma parte considerável do território o custo da presença dos Estados Uni- O objetivo da reunião de outubro
ças, primeiro, à invasão do Iraque e, iraquiano, a debandada das tropas dos em seu território, e certamente teria sido chegar a um acordo sobre
em seguida, ao atolamento da Síria e do governo de Bagdá dominado pelo no Iraque. uma série de operações não reivindi-
do Iêmen na guerra civil, a partir de Irã quase pôs tudo a perder. Temendo cadas contra a presença dos Estados
2012 e de 2014, respectivamente. O que os jihadistas chegassem à capi- O CHOQUE DO LEVANTE IRAQUIANO Unidos no Iraque, para as quais o Irã
Irã chegou a controlar, por meio de tal, o Iraque pediu, com o apoio do Como afirmou muitas vezes durante já havia entregado recursos militares
auxiliares locais, um eixo geopolítico Irã, o retorno das tropas norte-ameri- sua campanha presidencial de 2016, adequados. “O plano de Suleimani
que vai da fronteira ocidental ao Me- canas. Estas combateram o Estado Trump acredita que os Estados Uni- [...] pretendia provocar uma resposta
diterrâneo, incluindo os três países Islâmico em solo iraquiano, colabo- dos devem assumir o controle dos re- militar, para desviar contra os Esta-
dessa área: Iraque, Síria e Líbano. rando com as Unidades de Mobiliza- cursos petrolíferos do Iraque para dos Unidos a cólera popular crescen-
A reputação de grande estrategis- ção Popular – conjunto de forças pa- compensar o esforço de guerra que te.”8 A explosão de protestos popula-
ta que cercava Suleimani é, porém, ramilitares dos partidos árabes xiitas ali fizeram durante anos. É essa mes- res contra o regime teocrático no
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
14 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

DILEMA DA CASA BRANCA

Destruir Teerã ou
próprio Irã, em meados de novembro, ção interna e até partidários da mo-
só poderia aprofundar a necessidade, narquia derrubada em 1979 aderiram
por parte deste, de uma manobra a essa união sagrada.10 Mas a confu-

conter Pequim?
diversionista. são do Irã com o avião civil ucrania-
O recrudescimento dos ataques no abatido por engano pelos pasda-
realizados em dezembro pelas forças ran (176 mortos) reacendeu um
pró-iranianas no Iraque contra a pre- protesto antirregime que, embora es-
sença norte-americana atingiu um teja longe de se equiparar à mobiliza-
pico no dia 27, quando cerca de trinta ção em torno do funeral do chefe das
mísseis caíram em uma base iraquia- forças Al-Quds, tem o mérito de en- Por que Donald Trump ordenou o assassinato do general
na próximo a Kirkuk, matando dois frentar a repressão. iraniano Qassim Suleimani? Quem ele consultou antes de
contratados norte-americanos e fe- O que a mobilização anti-Estados
rindo outros três, além de dois ira- Unidos não conseguiu sufocar, po- se envolver nesse projeto perigoso? Sua decisão não foi
quianos. Dois dias depois, os Estados rém, foi a revolta, que coloca Irã e Es- unanimidade em Washington. Os falcões anti-iranianos
Unidos responderam pesado, bom- tados Unidos lado a lado. A maioria são contrários porque para eles o Oriente Médio é um
bardeando uma base do Kataeb Hez- da população iraquiana está chocada
bollah, o que matou mais de 25 mili- com o modo como a soberania do front secundário que desvia o país de seu principal
cianos e feriu outras dezenas. A país é constantemente desrespeitada problema: a Ásia e a China
marcha estava bem engatada. O ata- por dois Estados que pretendem, tan-
que de 31 de dezembro realizado pelo to um como outro, dominá-lo, trans- POR MICHAEL T. KLARE*
Kataeb Hezbollah contra a embaixa- formando-o em campo de batalha.
da dos Estados Unidos no chamado Para o futuro do Iraque, o surgimento
perímetro da “zona verde” em Bagdá, do protesto popular que ignora a cli-
porém protegido pelas tropas oficiais vagem confessional entre xiitas e su-
iraquianas, levou a irritação de nitas provavelmente continuará sen-
Trump ao máximo. do o evento mais decisivo até agora. 

A
A perturbadora lembrança do cer- o ordenar o assassinato do ge- Desde o início de seu mandato, o
co à embaixada em Teerã em 1979- *Gilbert Achcar  é professor da École des neral iraniano Qassim Sulei- presidente impôs uma distância iné-
1981 e, ainda mais, do ataque aos pré- Études Orientales et Africaines [Escola de mani, comandante da Força Al- dita do aparelho diplomático e de se-
dios diplomáticos dos Estados Unidos Estudos Orientais e Africanos], da Univer- -Quds do Corpo de Guardiões gurança, que ele não hesita em criti-
em Benghazi, na Líbia, em setembro sidade de Londres. Autor, entre outras da Revolução Islâmica, o presidente car. Ele permanece cercado de
de 2012, que resultou na morte do obras, de Symptômes morbides. La rechute Donald Trump surpreendeu um responsáveis do alto escalão do De-
embaixador e de outras autoridades du soulèvement arabe [Sintomas mórbidos. grande número de observadores. partamento de Estado, do Pentágono,
norte-americanas e cuja responsabi- A recaída da rebelião árabe], Actes Sud, Embora as tensões viessem crescen- da CIA, do Conselho de Segurança
lidade foi atribuída – sobretudo pelo Paris, 2017. do havia muito tempo na região, na- Nacional (NSC) e de outras agências
próprio Trump – ao presidente Ba- da indicava um enfrentamento pró- especializadas que o mantêm infor-
rack Obama e à sua secretária de Es- ximo entre os Estados Unidos e o Irã, mado sobre os assuntos sensíveis e
tado, Hillary Clinton, certamente le- ou entre o Irã e as outras potências do preconizam ações precisas. Todas es-
varam o presidente dos Estados 1   S eymour Hersh, “US said to have allowed Is- Golfo Pérsico. Pelo contrário: provas sas instituições estão de acordo sobre
Unidos a reagir com força. Ele deci- rael to sell arms to Iran” [Estados Unidos afir- indicam que o general Suleimani se diversas questões fundamentais (em
mam ter permitido que Israel vendesse armas
diu atacar diretamente no topo, orde- encontrava em Bagdá justamente pa- particular a necessidade de aumen-
ao Irã], The New York Times, 8 dez. 1991.
nando a liquidação de Suleimani e 2   L aila Bassam e Tom Perry, “How Iranian gene- ra discutir com a Arábia Saudita uma tar as despesas militares), mas se di-
Al-Muhandis. ral plotted out Syrian assault in Moscow” solução de paz. videm profundamente em matéria de
[Como general iraniano planejou, em Moscou,
O regime iraniano respondeu a Ninguém se engana sobre as ra- estratégia geral.
o ataque na Síria], Reuters, 6 out. 2015.
esse assassinato de uma maneira 3   No mesmo ano, ocorreram no Líbano ataques zões invocadas pela administração Grupos poderosos se distinguem,
muito moderada, com o lançamento atribuídos ao Irã contra as tropas francesas e Trump, que afirma ter tentado impe- e cada um possui sua penetração na
norte-americanas e contra a embaixada dos
de mísseis balísticos contra a base de dir um ataque “iminente” contra em- Casa Branca. De um lado, ficam os
Estados Unidos.
Al-Assad e outras instalações, sem fa- 4   James Risen, “Investigation into missing Iraqi baixadas e instalações militares nor- que chamaremos de “ideólogos”. Es-
zer vítimas. Logo se soube que as tro- cash ended in Lebanon bunker” [Investigação te-americanas no Iraque e em outras tão convencidos de que o Oriente Mé-
sobre dinheiro iraquiano desaparecido termi-
pas norte-americanas haviam sido partes do Golfo. Na falta de explica- dio deve permanecer na mira do pla-
na em bunker no Líbano], The New York Ti-
avisadas da iminência do ataque.9 O mes, 12 out. 2014. ções válidas adiantadas pelo gover- nejamento estratégico. Para eles,
que não se sabe ao certo é a fonte do 5   Michelle Nichols, “UN investigators find Ye- no, os comentaristas sugeriram ou- Washington precisa tomar as rédeas
men’s Houthis did not carry out Saudi oil at-
aviso. Seja como for, o Irã não podia tras. Muitos evocam o psicológico do formando uma coalizão internacio-
tack” [Investigadores da ONU descobrem
ignorar o fato de que o uso de mísseis que hutis do Iêmen não realizaram ataques às presidente, sua propensão a reações nal para conter o Irã e, se possível,
balísticos, em vez de mísseis de cru- instalações sauditas], Reuters, 8 jan. 2020. bruscas e impensadas. Segundo al- provocar o colapso do regime. Con-
6   “Inside the plot by Iran’s Suleimani to attack
zeiro ou drones, provavelmente faci- guns analistas, ele temeria se ver em duzido pelo secretário de Estado, Mi-
US forces in Iraq” [Por dentro da trama do ira-
litaria a preparação das tropas norte- niano Suleimani para atacar as forças norte-a- uma situação difícil, semelhante à do ke Pompeo, e pelo vice-presidente,
-americanas. Assim, a operação mericanas no Iraque], Reuters, 4 jan. 2020. ataque, em 2012, à embaixada dos Es- Mike Pence, esse grupo se beneficia
7   Ler Feurat Alani, “Les Irakiens contre la main-
apareceu como uma maneira de am- tados Unidos em Benghazi, que cus- do apoio de personagens importan-
mise de l’Iran” [Iraquianos contra o domínio
bos os lados manterem as aparên- do Irã], Le Monde Diplomatique, jan. 2020. tou a vida do embaixador J. Christo- tes do Congresso e da Casa Branca,
cias, evitando o prosseguimento de 8   “Inside the plot by Iran’s Suleimani to attack pher Stevens e forneceu aos membros em especial do genro e alto conse-
US forces in Iraq”, op. cit.
uma escalada de guerra, pelo menos republicanos do Congresso uma des- lheiro do presidente, Jared Kushner,
9   Q assim Abdul-Zahra e Ali Abdul-Hassan, “US
até segunda ordem. troops in Iraq got warning hours before Iranian culpa para ataques sem trégua a Hil- cuja hostilidade em direção ao regi-
É verdade que o Irã perdeu, na attack” [Tropas dos Estados Unidos no Iraque lary Clinton, então secretária de Es- me iraniano costuma ecoar as opi-
receberam aviso horas antes do ataque irania-
pessoa de Suleimani, um chefe mili- tado. Outros apontam seu temor de niões de dirigentes sauditas e is-
no], Associated Press, 13 jan. 2020.
tar de grande prestígio e valiosa ex- 10  Rohollah Faghihi, “Killing Suleimani has united parecer fraco se não revidasse as pro- raelenses. De outro lado, o campo
periência. Mas seu funeral, organiza- Iranians like never before” [Assassinato de vocações iranianas, em particular o dos “geopolíticos” reúne líderes das
Suleimani uniu os iranianos como nunca], Fo-
do em uma escala maior que o do bombardeio da base de petróleo de Forças Armadas e dos serviços de in-
reign Policy, Washington, 6 jan. 2020; Luis
aiatolá Ruhollah Khomeini, em 1989, Lema, “Ardeshir Zahedi, ancien conseiller du Abqaiq, em setembro de 2019.1 Mas, formação que veem o sucesso da Chi-
foi a oportunidade para uma enorme chah: ‘Ghassem Suleimani était le sang de ainda que tenham provavelmente in- na como o principal obstáculo à es-
l’Iran’” [Ardeshir Zahedi, ex-conselheiro do xá:
campanha de exaltação do naciona- fluenciado a decisão de Trump, tais tratégia norte-americana e julgam
“Ghassem Suleimani era o sangue do Irã], Le
lismo iraniano. Os líderes da oposi- Temps, Lausanne, 6 jan. 2020. motivos não bastam. preferível deslocar recursos militares
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 15

norte-americanos do Oriente Médio Armadas, erodindo a vantagem dos riam “reempregar forças e equipa- Parece que Trump, que já nutria
para a Ásia. Estados Unidos. Essas inquietações mentos” presentes nas zonas de con- sentimentos anti-iranianos, caiu na
Esses dois campos concordam so- são compartilhadas por personalida- flito secundárias, como o Golfo influência de uma facção muito pre-
bre a necessidade de seu país conser- des no meio dos negócios, muitas das Pérsico, para posicioná-los em “tea- sente nas altas esferas do aparato de
var o primeiro lugar no ranking das quais mantêm relações estreitas com tros de operações prioritários”, reavi- segurança nacional. Isso o predispôs
potências mundiais e de exercer seu a Casa Branca. va a blasfêmia para os ideólogos, que a aprovar um assassinato que visava
domínio em todas as regiões estraté- têm fixação pelo Irã. A seus olhos, o provocar uma reação agressiva de
gicas. Mas os meios dos quais dis- poder instalado em Teerã representa- Teerã, com o objetivo de ampliar a
põem as Forças Armadas, por mais Pequim teria consegui- ria um risco ao mesmo tempo moral e presença militar dos Estados Unidos
colossais que sejam, não são ilimita- do reforçar as capacida- estratégico: moral em razão de sua na região. Ainda que a tensão tenha
dos. É daí que surgem as divergências hostilidade selvagem em direção a Is- diminuído um pouco depois da res-
frequentes sobre a melhor maneira
des tecnológicas de suas rael, ao judaísmo e aos Estados Uni- posta iraniana (uma série de bom-
de alocar os recursos disponíveis Forças Armadas, erodin- dos; estratégico por causa da autori- bardeios sobre as instalações milita-
(porta-aviões, exércitos etc.) entre as do a vantagem dos Esta- dade que exerce sobre as milícias res norte-americanas no Iraque que
diversas zonas de conflito. Quando o dos Unidos fortemente armadas em toda a re- não fizeram nenhuma vítima), o Irã
terrorismo islamita e a Organização gião, de sua vontade de possuir ar- pode interpor no futuro ações mais
do Estado Islâmico (OEI) representa- mas nucleares e de sua ambição de diretas, como ataques de milícias em
vam as principais ameaças à segu- Durante um tempo, a contenção dominar o Golfo. “O regime iraniano posições dos Estados Unidos ou de
rança dos Estados Unidos, o Oriente da China constituiu a prioridade es- atual”, declarou o vice-presidente seus aliados. E os milhares de solda-
Médio conservava a concordância tratégica de Washington. A fim de Pence em Varsóvia, em fevereiro de dos enviados com urgência ao Golfo
sobre a prioridade. Hoje, para a de- operar seu “redirecionamento” para 2019, “busca restaurar o Império Per- como reforço do Exército e da Mari-
cepção dos ideólogos, muitos prota- o Pacífico, o Pentágono exigiu bi- sa antigo por meio da ditadura mo- nha nas últimas semanas vão prova-
gonistas de Washington estimam que lhões de dólares de orçamento suple- derna dos aiatolás.” Apenas uma res- velmente ficar ali por um tempo, ex-
a Ásia se tornou o epicentro da con- mentar para desenvolver seu arma- posta firme e implacável permitiria, cluindo qualquer possibilidade de
corrência em termos de poderio in- mento e começou a reposicionar as segundo ele, evitar tal desastre.5 Re- “realocar” as forças na região
ternacional e que o essencial das for- forças instaladas em “frentes secun- constituindo a cadeia de eventos que Ásia-Pacífico.
ças norte-americanas deveria estar dárias”, como o norte da África e o levou Trump a decidir eliminar o ge- Cedo ou tarde, no entanto, a ba-
concentrado ali. Oriente Médio, em zonas limítrofes neral Suleimani, observa-se que o lança penderá de novo para o lado de
Dominado por funcionários de al- da China e da Rússia.3 O secretário de campo dos ideólogos, liderado por uma estratégia centrada na Ásia. As
to escalão do Pentágono, do Departa- Defesa, Mark Esper, confirmou tal Pompeo e Pence, dispõe de uma in- elites da política externa norte-ame-
mento do Tesouro e de serviços de in- orientação em um discurso pronun- fluência desproporcional. Sem dúvi- ricana temem muito o aumento de
formação, o campo dos geopolíticos ciado em dezembro de 2019 na Biblio- da, era Pompeo, e não Esper, que ti- poder da China para deixar (o que
considera que os Estados Unidos es- teca Presidencial Ronald Reagan, em nha a atenção do presidente durante eles veem como) querelas sem im-
tão obnubilados pelos conflitos no Simi Valley (Califórnia). “O Pentágo- as discussões ocorridas no alto esca- portância no Oriente Médio desviar o
Oriente Médio, por isso contestam a no”, declarou ele, “trabalha para co- lão sobre a política conduzida em re- aparelho diplomático e de segurança
permanência no local. Segundo eles, locar em prática uma nova doutrina lação ao Irã.6 Formado na Academia de sua missão principal: preservar a
as grandes potências rivais, em espe- de guerra, preocupando-se em redis- Militar de West Point e ex-oficial do superioridade dos Estados Unidos so-
cial China e Rússia, teriam se apro- tribuir nossas forças e nossos equi- Exército, Pompeo é famoso em bre seus rivais geopolíticos. 
veitado dessa miopia estratégica para pamentos em direção aos teatros de Washington por sua oposição raivosa
estender seu poderio militar e sua in- operação prioritários a fim de melhor a Teerã e por sua determinação em *Michael T. Klare  é professor emérito da
fluência diplomática.2 Pequim teria rivalizar com a China e a Rússia.”4 impedir qualquer redução de efetivos Hampshire College, Amherst (Massachu-
assim conseguido reforçar as capaci- A crença segundo a qual as Forças e de equipamentos militares no setts) e autor, entre outros, do livro All Hell
dades tecnológicas de suas Forças Armadas norte-americanas deve- Oriente Médio. Breaking Loose: The Pentagon’s Perspec-
tive on Climate Change [Todo o inferno en-
Sobre a escolha de ordenar o assassinato de do general iraniano Qassim Suleimani muitos evocam o psicológico do louquecendo: a perspectiva do Pentágono
presidente, sua propensão a reações bruscas e impensadas sobre mudanças climáticas], Metropolitan
Books, Nova York, 2019.

1   C f. Peter Baker et al., “7 days in January: se-


cret plans, a deadly strike and a spiraling” cri-
sis [Sete dias em janeiro: planos secretos, um
ataque mortal e uma crise em espiral], The
New York Times, 12 jan. 2020.
2   C f., por exemplo, o depoimento de Michael D.
Griffin, subsecretário de Defesa para Pesqui-
sa e Engenharia, “Hearing to receive testi-
mony on accelerating new technologies to
meet emerging threats” [Escutando para rece-
ber depoimentos sobre a aceleração de novas
tecnologias para enfrentar ameaças poten-
ciais], comitê das Forças Armadas do Sena-
do, Washington, DC, 18 abr. 2018. Disponível
em: <www.armed-services.senate.gov>.
3   Ler “Quand le Pentagone met le cap sur le
Pacifique” [Quando o Pentágono se volta
para o Pacífico], Le Monde Diplomatique,
mar. 2012.
4   Apresentação do secretário de Defesa, Mark
T. Esper, no Fórum Reagan de Defesa Nacio-
nal, 7 dez. 2019. Disponível em: <www.defen-
se.gov>.
5   Observações do vice-presidente Pence no
almoço de trabalhos ministeriais em Varsóvia,
14 fev. 2019. Disponível em: <www.whitehou-
se.gov>.
6   C f. Nahal Toosi, “Trump’s shadow secretary of
defense” [O secretário de Defesa paralelo de
Trump], Politico, Arlington, 6 jan. 2020.
© Pixabay
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
16 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

DAMASCO E ANCARA DISPUTAM O ENCLAVE SÍRIO

O futuro suspenso de Rojava quentemente vão até a área. Além


disso, drones do Exército turco so-
brevoam por ali. Em 12 de outubro
de 2019, foi na M4, em Tirwazî, perto
de Tell Abyad, que Hevrin Khalaf,
A retirada das forças norte-americanas do norte da Síria, em outubro de 2019, uma personalidade política curda
permitiu que o Exército turco atacasse Rojava, o enclave onde populações curdas carismática e muito influente, foi
torturada e morta por milicianos de
e árabes tentam colocar em prática os princípios de um comunalismo democrático. um grupo jihadista apoiado pelo po-
Agora, a sorte desse território depende cada vez mais das negociações entre Ancara, der turco. 3
Damasco e Moscou Com o anúncio da retirada militar
dos Estados Unidos da região, no dia
POR MIREILLE COURT E CHRIS DEN HOND*, ENVIADOS ESPECIAIS 6 de outubro – abrindo caminho para
a invasão turca –, as FDS não tiveram
escolha senão convocar as forças de
Damasco para apoiá-las. Após o acor-
do de Sochi, o Exército sírio se insta-
lou de Kobane até a fronteira com o

D
esde 9 de outubro de 2019, o A TURQUIA NOS “Antes da invasão turca de 2018, 85% Iraque, com exceção do enclave ocu-
Exército turco está instalado MATA COM ARMAS EUROPEIAS da população de Afrin era curda, pado pelos turcos. Sua presença se dá
no nordeste da Síria e controla Em 22 de outubro, Recep Tayyip Er- contra apenas 20% hoje.” por meio de pequenos postos milita-
uma faixa de 150 quilômetros dogan e Vladimir Putin assinaram, Seriam essas mudanças o anún- res posicionados a cada 10 quilôme-
de comprimento e 30 quilômetros de em Sochi, um acordo de dez pontos cio do fim do projeto político de Roja- tros. Segundo nossos interlocutores,
largura entre as cidades de Tell Abyad ratificando a presença turca no nor- va? Nada está garantido. Quando as seu papel é fundamentalmente pre-
e Ras al-Ain (Serekaniye, em curdo).1 deste da Síria e forçando as Unidades Forças Armadas turcas e suas milí- ventivo: impedir as Forças Armadas
As forças turcas – já presentes mais a de Proteção do Povo (YPG), a força cias sírias – conhecidas aqui como turcas de expandirem mais uma vez
oeste, após o avanço sobre Afrin e militar do PYD, a se retirarem da fai- Çete, os bandidos – tentaram expan- seu território.
seus arredores, em janeiro de 2018 – xa de terra ocupada pelos turcos. dir seu território, encontraram uma “Trata-se principalmente de uma
impedem, assim, a continuidade ter- Desde então, o poder turco vem sen- resistência feroz. presença política simbólica”, confir-
ritorial da região curda politicamen- do acusado de realizar uma operação Deixamos Kamechliye rumo a ma Mazlum “Kobane” Abdi, coman-
te autônoma desde 2013, conhecida de limpeza étnica, substituindo as Kobane, que em janeiro de 2015 foi dante-geral das FDS. O alto oficial,
como Rojava (“o oeste”, em curdo) ou populações curdas por 2 milhões de palco da primeira grande derrota do cuja cabeça foi posta a prêmio pelo
como Federação Democrática do árabes sunitas que haviam se refu- Estado Islâmico contra as tropas poder turco, acrescenta que não há
Norte da Síria. Com isso, o governo giado na Turquia depois de fugir dos curdas. Em um grande posto de con- outra presença militar síria nas áreas
turco ameaça diretamente a aliança combates em outras regiões da Síria. trole mantido pelas forças de segu- controladas pelas FDS. Ao longo de
política e militar estabelecida pelo “Erdogan quer mudar a composição rança da Federação, nosso veículo é nossa jornada, observamos que são
Partido da União Democrática (PYD), étnica dos territórios controlados por obrigado a tomar outra rota. Seguir de fato sempre a Asayish, a polícia
ramo sírio do Partido Popular Curdo seu Exército”, declarou Abdelkarim pela rodovia M4, que atravessa a re- árabo-curda das FDS, que controla as
(PKK), com os dois outros compo- Omar, ministro das Relações Exterio- gião de leste a oeste, é muito perigo- estradas. Questionamos Mazlum Ab-
nentes principais da população de res do governo autônomo da Federa- so. As milícias pró-Turquia estão a di sobre o futuro das relações entre a
Rojava: árabes e cristãos siríacos. Es- ção Democrática do Norte da Síria. apenas 400 metros de distância e fre- Federação de Rojava e o poder central
sa aliança, que leva o nome de Forças
Democráticas da Síria (FDS), cujo

© Bruna Barros
braço político é o Conselho Demo-
crático da Síria (CDS), também deve
contar com as tropas de Bashar al-
-Assad, que não desistiu de assumir
controle de toda essa região, da qual
se retirou em 2012.
Sete anos após seu nascimento, o
que resta do projeto pluralista e de-
mocrático concebido pelo PYD? 2
Nossa jornada começa no leste, no
campo de refugiados de Newroz, em
Derik, não muito longe das fronteiras
da Turquia e do Iraque. Leila M. nos
conta sobre seus seis êxodos desde
2018. “Minha família e eu somos de
Afrin. Quando os turcos chegaram,
fugimos para Chabab, depois para
Alepo. De lá fomos para Kobane. En-
tão meu filho encontrou emprego em
Ras al-Ain. Após o ataque turco, tive-
mos de fugir descalços para Tall Ta-
mer, e agora estamos neste campo.”
Derwich F., pequeno agricultor em
Tell Abyad, também relata sua fuga,
no outono passado. “Vivíamos feli-
zes. O sistema político funcionava
muito bem. Então o presidente turco
nos bombardeou com seus aviões.
Todos os curdos foram embora.”
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 17

da Síria. Para ele, primeiro tem de ha- A viagem a Kobane obriga a passar vadir o norte do país, Erdogan apos- Abdi conta que, no momento, “o po-
ver um acordo político: “Queremos por Rakka – um desvio de seis horas tou em vão em uma revolta dos árabes der russo está trabalhando em uma
que a autonomia política seja inscrita por estradas esburacadas. O cons- contra os curdos. solução entre os curdos e o governo
na Constituição síria e que as FDS se- tante vaivém dos caminhões-tanque Quando se menciona a estratégia sírio”. Mas ele, como outras persona-
jam parte da defesa de toda a Síria. cheios de petróleo tornam o ar quase turca, Polat Can esboça um sorriso: lidades, não esquece o fato de que o
Essas são exigências das quais não irrespirável. Parte do petróleo extraí- “Os clãs árabes de Deir Ez-Zor nos território de Rojava é objeto de barga-
abriremos mão. Com esse acordo, a do no nordeste do país – barato, mas disseram: ‘Não traga o regime para nha entre os governos da Rússia e da
defesa do norte do país seria de res- de baixa qualidade – é usada para sa- cá! Vocês são curdos, não gostamos Turquia, em benefício do regime sí-
ponsabilidade das FDS”. tisfazer as necessidades da popula- de vocês, mas no final das contas são rio. “A Rússia primeiro ‘deu’ Afrin pa-
O governo sírio estaria pronto pa- ção da federação autônoma, e parte é sunitas, vamos trabalhar juntos’. No ra a Turquia em troca de Homs, Ghou-
ra aceitar essa mudança, que rompe- vendida ao poder central da Síria com passado, o regime encheu a cabeça ta e uma pequena parte de Idleb para
ria com várias décadas de centralis- a ajuda de intermediários. Com as re- da população árabe contra os curdos, o regime. Depois, ‘cedeu’ Ras al-Ain e
mo e unanimismo em prol de uma ceitas do petróleo e os impostos so- dizendo que éramos sionistas, ateus Tell Abyad à Turquia em troca de ou-
identidade árabe única? Por enquan- bre a importação e a exportação na e capitalistas. Mas, nessas regiões de tra parte de Idleb”, resume Abdi. Nes-
to, o poder sírio não fez o menor mo- fronteira com o Iraque, o governo au- população quase que 100% árabe, sas negociações, os curdos acabam
vimento nessa direção. Conversamos tônomo consegue manter serviços não houve levantes contra as FDS”. sendo os grandes perdedores.
também com Polat Can, outro vetera- públicos e realizar obras de infraes- A recente invasão turca chegou Em Kobane, o frio glacial e a chuva
no das guerras travadas pelas forças trutura. Mas a exploração do petró- até a aproximar grupos curdos que se vêm nos receber. Na cidade e seus ar-
curdas. Comandante das FDS, mas leo está desacelerando. “Apenas 25% opunham ao domínio do PYD. Nari redores, a vida e a reconstrução estão
também escritor, ele foi responsável dos poços no nordeste da Síria estão Mattini, oponente de longa data do suspensas por medo de uma nova in-
pelas operações de libertação da re- funcionando. O restante está parado CDS, agora se juntou a ele. Mohsen vasão. Em 2014, foi o Estado Islâmico.
gião de Deir Ez-Zor, que por muito por causa da guerra e do embargo do Tahir, membro do Conselho Nacional Desta vez, a ameaça vem do Exército
tempo esteve nas mãos do Estado Is- petróleo sírio”, conta Ziad Rustem, Curdo (ENKS), criado por iniciativa turco e de suas milícias aliadas – algu-
lâmico. “Rojava não voltará à situa- engenheiro e membro do comitê de do Partido Democrata do Curdistão mas das quais integraram ex-comba-
ção de antes de 2010. Não deixaremos energia do governo autônomo. Iraquiano (PDK), em bons termos tentes jihadistas. Certa de uma guerra
que os curdos percam seus direitos e com o poder turco, admite, com o ob- iminente, a população não para de ca-
não destruiremos a relação que cons- jetivo de mitigar a influência do PYD- var túneis para resistir aos ataques.
truímos com os árabes e os cristãos Sete anos após seu nas- -PKK na região, querer favorecer a Cinco anos após a vitória de janeiro de
siríacos”, alerta. E esclarece que tudo cimento, o que resta do unidade curda por medo de uma lim- 2015, o destino de Kobane decidirá
o mais é negociável, inclusive o nome peza étnica. A unidade ainda depen- novamente o futuro de Rojava? 
da entidade autônoma ou os procedi-
projeto pluralista e de- derá da evolução das relações entre o
mentos de controle das fronteiras. mocrático concebido PYD e o PDK, já que o primeiro não *Mireille Court e Chris Den Hond são
O abandono do enclave que ia de pelo PYD? tolera a presença de outra força mili- jornalistas independentes, membros, res-
Tell Abyad a Ras al-Ain gerou muita tar curda em Rojava. pectivamente, da Coordination Nationale
amargura e raiva entre os curdos. O de Solidarité avec le Kurdistan (Coordena-
que mais alimenta o ressentimento é Rakka, a efêmera capital do Estado EM KOBANE, O MEDO DE ção Nacional de Solidariedade ao Curdis-
a falta de proteção aérea. “Os russos Islâmico entre 2014 e 2017, está agora UMA NOVA INVASÃO tão, CNSK) e do comitê editorial da revista
deixaram os aviões turcos bombar- sob o controle das FDS. Palco de com- Em Ain Issa, na estrada que leva de on-line Orient XXI.
dearem nossos civis, nossas crianças bates terríveis, Rakka continua de- Rakka a Kobane, uma patrulha russa
e nossas forças de defesa. Eles não vastada, mas sua reconstrução já co- sai de uma base militar em alta velo- 1   L er Akram Belkaïd, “Ankara et Moscou, jeu de
dupes en Syrie” [Turquia e Rússia, um jogo de
cumpriram as promessas que fize- meçou. No centro da cidade, letras cidade. Aqui, a Rússia substituiu os imbecis na Síria], Le Monde Diplomatique,
ram. Nem os Estados Unidos, aliás”, gigantes “I love Rakka” dão as boas- Estados Unidos. Mais a leste, perto de nov. 2019.
lança Mazlum Abdi. Polat Can é ain- -vindas ao visitante. Aqui, o Estado Is- Hassake, já havíamos cruzado com 2   Ler “Une utopie au cœur du chaos syrien”
[Uma utopia bem no meio do caos sírio] e “Le
da mais severo: “A Turquia está ma- lâmico plantou cabeças cortadas em uma patrulha russa, não muito longe Rojava, entre compromis et utopie” [Rojava,
tando os curdos com armas euro- lanças para aterrorizar a população. A da linha de frente de Tall Tamer, sem entre concessões e utopia], Le Monde Diplo-
peias. Os drones vêm da Itália, o organização jihadista mantém uma esquecer uma patrulha norte-ameri- matique, set. 2017 e dez. 2018, respectiva-
mente.
tanque Léopard é alemão. Se tivésse- base simpatizante na região, de maio- cana, no leste, perto dos campos de 3   Fatma Ben Hamad, “Enquête: des images éta-
mos uma zona de exclusão aérea im- ria árabe, e células dormentes entram petróleo. Difícil ver as coisas com cla- blissent les exactions d’une milice proturque
pedindo bombardeios contra nossas em ação de tempos em tempos, por reza nesse imbróglio. en Syrie” [Investigação: imagens mostram os
abusos de uma milícia pró-turcos na Síria],
tropas, as FDS expulsariam os turcos meio de ataques suicidas. No entanto, A Rússia é tida como mais confiá- Les Observateurs, 21 out. 2019. Disponível
de Rojava em uma semana”. prevalece uma relativa calma. Ao in- vel que os Estados Unidos? Mazlum em: <https://observers.france24.com>.
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
18 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

NO REINO UNIDO, CORBYN CAI NA ARMADILHA DO BREXIT

Entendendo a derrota
do Partido Trabalhista
“Não é a derrota de um homem, mas de uma ideologia!” Para o ex-primeiro-ministro Tony Blair, o fracasso do Partido
Trabalhista nas eleições gerais de 12 de dezembro de 2019 seria explicado por um programa “radical demais”. No
entanto, existe outra análise que cerca melhor as dificuldades encontradas pela esquerda britânica...
POR CHRIS BICKERTON*

É
© Sophie Brown
difícil subestimar a magnitude nante na fundação do Partido Traba-
da derrota sofrida pelo Partido lhista. O fim da década seguinte
Trabalhista (Labour) nas elei- marcou o início de um doloroso pro-
ções legislativas do Reino Unido cesso de desindustrialização que so-
em dezembro passado. Redcar, um lapou as fundações do mundo do tra-
distrito eleitoral às margens do Rio balho, como mostra de maneira
Tees, no nordeste da Inglaterra, nun- particularmente comovente Alan
ca havia levado ao Parlamento um Bleasdale na série de televisão Boys
deputado conservador até a noite de from the Black Stuff, transmitida pela
12 de dezembro. Blyth Valley, um BBC em 1982. O neoliberalismo de
pouco mais ao norte, estava com os Margaret Thatcher (1979-1990) trans-
trabalhistas desde 1950 – e também formou a velha sociedade industrial –
virou para a direita. sua economia, seus costumes e suas
Por muito tempo, a distribuição práticas – em uma casca oca: fábricas
dos assentos do Partido Trabalhista em ruínas, desempregados obrigados
refletiu a história social e econômica a se adaptar às exigências da nova
do país. No nordeste da Inglaterra, a economia dos serviços... Os sindica-
indústria naval de Tyneside e as mi- tos não saíram ilesos dessa mudança.
nas garantiam os batalhões traba- Após as igrejas não conformistas e
lhistas. Mais ao sul, as grandes cida- os sindicatos, o desastre nas eleições
des industriais – Liverpool, gerais de dezembro de 2019 ilustra o
Manchester, Sheffield – constituíam abalo da última das três instituições
um sólido pilar eleitoral para a es- que estruturaram a esquerda britâni-
querda. Somando aí a grande concen- ca: seu partido. De acordo com Mau-
tração de socialistas da área indus- rice Glasman, figura de proa do atual
trial de Birmingham e das Midlands, Blue Labour (grupo conservador nas
foi possível assistir à constituição de questões sociais, mas hostil ao neoli-
um “muro vermelho”. Essa fronteira beralismo), o Partido Trabalhista já
separava o norte, de alma trabalhista, estaria no processo de esgotar-se: o
do sul da Inglaterra, próspero e fiel à ano de 2019 teria revelado o fosso in-
direita (sobretudo os famosos home transponível que o separa da classe
counties do sudeste). Com seu ecos- trabalhadora da qual ele afirma ser
sistema sociológico e político especí- porta-voz.
fico, Londres – o coração pulsante do No final de novembro de 2019,
apoio ao líder trabalhista Jeremy Cor- duas semanas antes da eleição, o ati-
byn – é uma exceção dentro desse Jeremy Corbyn, líder do Partido dos Trabalhadores, na Inglaterra vista e escritor Owen Jones soou o
mapa, como a maioria das grandes alarme: seria impossível os traba-
capitais europeias. em torno de certo número de institui- na em locais como Tyneside ou Wir- lhistas vencerem sem o voto operá-
A representação política da classe ções que governavam não apenas a ral era organizada em torno da rio, que estava sobredeterminado pe-
trabalhadora no Reino Unido atra- vida política, mas também a econô- comunidade de esquerda, como tam- la adesão desse eleitorado ao Brexit.2
vessa a história de três grandes ato- mica e cultural. bém se podia observar nos subúrbios Ele usou o exemplo do distrito de
res: as igrejas não conformistas (ou Por muitas décadas, o Partido vermelhos de Turim e no Nord-Pas- Grimsby, na costa leste. Embora a ci-
dissidentes), os sindicatos e o Partido Trabalhista britânico moldou um -de-Calais. Mas depois as coisas dade esteja nas mãos do Partido Tra-
Trabalhista. Juntos, igrejas e sindica- mundo, um conjunto de práticas co- mudaram. balhista desde 1945, as pesquisas
tos deram à luz o Partido Trabalhista, tidianas e de conhecimentos comple- previam que os eleitores tradicionais
em 1906.1 Ao longo do século XX, so- tamente distintos do universo con- ABURGUESAMENTO ACELERADO do Labour estariam prestes a votar
bretudo após a invenção do setor pú- servador. Por muito tempo, conseguir Os swinging sixties, a agitada década em massa no Partido do Brexit de Ni-
blico moderno, na década de 1940 esse ou aquele emprego era algo que de 1960, com sua libertação sexual e gel Farage, prometendo o distrito aos
(sistema de educação público em poderia requerer a apresentação de de costumes, destruíram a aura das conservadores. Jones estava certo,
1944, sistema de saúde em 1946), a um cartão de filiação ao Partido Tra- igrejas não conformistas e dessa reli- porém um pouco atrasado, já que,
sociedade britânica estruturou-se balhista, por exemplo. A vida cotidia- giosidade de esquerda tão determi- prisioneiro de sua bolha londrina,
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 19

por muito tempo ele usou seus arti- A partir de 2015, o partido atraiu de xenofobia e racismo. Para a maio- eleições, muitos, considerando que a
gos no The Guardian para recomen- milhares de novos membros. Com ria dos trabalhistas, a visão crítica ruptura sociológica ainda não foi
dar um alinhamento do Partido Tra- mais de meio milhão de membros, quanto à União Europeia parece ter consumada, questionam-se sobre co-
balhista contra o Brexit... ele é o maior da Europa. Mas, como se transformado em um vínculo mo se reconectar com a classe traba-
A transformação sociológica do explica o deputado trabalhista Jon identitário em relação a ela. Como ser lhadora. Outros duvidam dessa pos-
Partido Trabalhista e o crescente dis- Cruddas, a ruptura marcada pelo a favor da União Europeia significava sibilidade e convidam as classes
tanciamento entre ele e a classe tra- corbynismo em relação à era de Tony ser aberto, tolerante, internacionalis- populares a revisitar sua própria his-
balhadora não começaram ontem. Blair está apenas no nível das ideias. ta e curioso, votar no Brexit só pode- tória de representação direta de seus
Seu início remonta à vitória de Tony Em termos de recrutamento, ele teria ria ser visto como o mais grosseiro interesses, sem esperar que alguém
Blair e do New Labor, em 1997, a qual se tornado, ao contrário, ainda mais chauvinismo. fale por elas. 
possibilitou uma aliança de circuns- blairista:4 dominado por militantes Essa ruptura causou uma mudan-
tância entre as classes populares e as da geração Y, instruídos, moradores ça importante na atitude do Partido *Chris Bickerton é cientista político da
classes médias. Ao longo dos anos de Londres ou de cidades universitá- Trabalhista. Em 2017, o programa do Universidade de Cambridge.
2000, muitos analisaram a ascensão rias como Cambridge e Brighton, ati- partido pedia concretamente a saída
1   S obre a origem do Partido Trabalhista e tam-
do Partido da Independência do Rei- vos nos setores econômicos mais di- da União Europeia, em um capítulo bém do Partido Conservador, o livro de refe-
no Unido (Ukip) como uma transfor- nâmicos, porém afetados pela intitulado “Como negociar o Brexit”. rência é o de Robert Trelford McKenzie, Bri-
mação no campo da direita. Mas os precariedade. Em 2019, ele prometeu submeter um tish Political Parties: The Distribution of Power
within the Conservative and Labour Parties
pesquisadores Robert Ford e Matthew possível acordo com a União Euro- [Partidos políticos britânicos: a distribuição
Goodwin mostraram que o Ukip tam- peia a um segundo referendo, no qual do poder entre o Partido Conservador e o
bém tinha eleitores entre os cidadãos A transformação socio- seria possível votar contra a saída. Partido Trabalhista], Heinemann, Londres,
1955.
decepcionados com a esquerda.3 Em lógica do Partido Traba- Foi de fato realista deixar uma 2    Owen Jones, “Labour needs its leave voters
sua formação, o partido de Nigel Fa- parte dos militantes desprezar du- too – or a Johnson era beckons” [Partido Tra-
rage apenas se opunha à União Euro-
lhista e o crescente dis- rante três anos os apoiadores do balhista também precisa dos eleitores favorá-
peia, mas depois veio a se tornar o veí- tanciamento entre ele e Brexit, acusando-os de racistas e
veis ao Brexit – ou pode dar boas-vindas à era
Johnson], The Guardian, Londres, 27 nov.
culo de uma crítica ao mercado de a classe trabalhadora mentirosos, mudar de posição sobre 2019.
3   Robert Ford e Matthew Goodwin, Revolt on
trabalho britânico, especialmente não começaram ontem esse assunto a fim de persuadir os
the Right: Explaining Support for the Radical
após a ampliação do bloco europeu simpatizantes da União Europeia e Right in Britain [Revolta à direita: explicando o
para o leste, em 2004. O Ukip abordou voltar-se às classes populares favorá- apoio à direita radical na Grã-Bretanha], Rout-
questões que o Partido Trabalhista se O programa da campanha eleito- veis ao Brexit para pedir apoio? ledge, Londres, 2014.
4   Jon Cruddas, “The left’s new urbanism” [O
recusava a considerar, preferindo se ral trabalhista reflete as preocupa- Qual será o futuro do Partido Tra- novo urbanismo da esquerda], Political Quar-
preocupar com as prioridades de ou- ções desse grupo social. Ele fundiu balhista nessas condições? Desde as terly, Londres, 28 jan. 2019.
tro segmento do eleitorado: os mora- uma forma de socialismo radical (re-
dores das áreas metropolitanas, que nacionalizações, abolição das escolas
se beneficiavam em cheio com a particulares, novo internacionalismo
construção da União Europeia. em questões de política externa) e um “SOU TRABALHISTA, VOTEI NOS CONSERVADORES”
No entanto, uma questão se colo- grande interesse pelas questões de
ca: se o divórcio entre o Partido Tra- ordem identitária, muito em moda no Em um artigo publicado no site The Full Brexit, o ator Chris McGlade explica as
balhista e as classes populares estava início do século XXI. Ao lado de cau- razões da virada à direita de antigos bastiões trabalhistas durante as eleições
sendo preparado havia mais de duas sas fundamentais, como o feminismo gerais de 12 de dezembro (“Why Labour’s ‘red wall’ finally crumbled” [Por que o
décadas, como explicar que ele tenha e o antirracismo, estão outras cuja ur- “muro vermelho” trabalhista acabou desmoronando], 17 dez. 2019. Disponível em:
se manifestado tão repentinamente gência é menos marcante: defesa da <thefullbrexit.com>) .
nas eleições de 2019? Há duas respos- fluidez de gênero em um mundo “ain-
tas para isso: o corbynismo e o Brexit. da excessivamente binário”; reivindi- Eu sou de Redcar, uma antiga cidade industrial às margens do Rio Tees. Nós
O corbynismo, corrente política cação do fim da distinção entre ba- nunca tivemos um deputado conservador aqui. Mas, embora os conservadores
associada ao dirigente do Partido nheiros para homens e mulheres, tenham dizimado nossa indústria, desligado nossos fornos de coque e fechado os
Trabalhista desde 2015, caracteriza- para não discriminar pessoas trans- maiores e mais antigos fornos da Europa, Redcar votou nos conservadores em 12
-se por um paradoxo. A eleição de Je- gênero etc. Aos olhos de alguns mem- de dezembro. [...]
remy Corbyn para a liderança do bros da classe trabalhadora, a primei- A classe trabalhadora não é intolerante. Eu não estou nem aí para sua raça, sua
Partido Trabalhista marcou o início ra ambição é utópica, e a segunda, religião ou sua orientação sexual. [...] Mas, desde que os resultados das eleições
de uma radicalização ideológica: o uma preocupação que dificilmente foram divulgados, a burguesia progressista caiu sobre nós com a acusação de
retorno a uma ambição socialista chegaria ao nível de prioridade. sermos ignorantes, estúpidos e racistas. Explicam que demos um tiro no pé. [...]
com a qual ninguém sonhava desde Quanto ao Brexit, alguns líderes Vão às ruas das grandes cidades para denunciar o resultado de uma eleição de-
os anos 1970, a reivindicação da na- do partido, como John McDonnell, mocrática e cantam “Oh, Jeremy Corbyn”. Mas eles não percebem que Jeremy
cionalização dos serviços públicos e logo o citaram como uma das razões Corbyn odeia a União Europeia tanto quanto nós? Eles é que gostam da União
o reavivamento de um espírito ope- da derrota. É verdade que o eleitorado Europeia, não ele, que foi forçado por seu próprio partido a defender uma posição
rário. O próprio Corbyn encarna essa do Partido Trabalhista se dividiu en- que não era a sua. [...]
corrente: sua carreira política é inse- tre apoiadores e inimigos da saída da O Partido Trabalhista não representa mais a classe trabalhadora no nordeste da
parável das manifestações anti-im- União Europeia aprovada pelos britâ- Inglaterra. Ele não fala mais nossa língua, não pensa mais como nós. [...] Nós não
perialistas e das greves das décadas nicos em 2016. Os conservadores ex- temos mais meios para sermos ouvidos. Então, votamos no único partido que se
de 1970 e 1980. Houve até mesmo ploraram essa fragilidade com o slo- propõe a respeitar nosso voto [no referendo sobre a saída da União Europeia] de
uma expectativa de que essa virada gan “Get Brexit Done” (“Vamos 2016. Escolhemos a democracia e a dignidade de nossas vozes. Se um punhado
para a esquerda pudesse recolocar o resolver o Brexit”). Mas essa cisão de burgueses “progressistas” chegasse ao poder e fizesse um segundo referendo,
Partido Trabalhista no centro das re- ideológica no eleitorado trabalhista então perderíamos tudo. [...]
des sociais e culturais populares e de também reflete sua heterogeneidade Estamos cansados de ouvir que devemos ser tolerantes em questões de sexua-
que os militantes trabalhistas pu- sociológica. lidade, gênero, raça e religião. Mas, quando se trata da classe trabalhadora – bran-
dessem recuperar sua centralidade Enquanto Jeremy Corbyn – dis- ca, negra, muçulmana, cristã –, então todas as discriminações são possíveis. To-
nos territórios tradicionais do norte. cretamente – permanece próximo da das as instituições são dominadas pela classe média progressista, que continua
Mas o corbynismo foi acompanhado crítica de esquerda à União Europeia, nos insultando e escrevendo blogs intermináveis que reprovam nosso desencanto
por outro movimento, sociológico: visão majoritária no Partido Traba- em relação a um Partido Trabalhista que não nos representa mais. [...] Quanto
sua radicalização ideológica ocorreu lhista na década de 1970, muitos mili- mais meu partido me insulta, mais sinto que fiz a escolha certa ao votar nos
em paralelo a um acelerado tantes jovens e urbanos leram o voto conservadores.
aburguesamento. pelo Brexit como uma manifestação
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
20 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

TWITTER E GÁS LACRIMOGÊNEO

Os movimentos
gital, mesmo quando essa caracterís-
tica não é suficiente para defini-los.
Encontramos neles, em função de
situações específicas, palavras de or-

sociais na era digital


dem análogas: a recusa das desigual-
dades sociais, das discriminações,
das injustiças e uma demanda de li-
berdades e de efetividade de direitos.
Vemos aparecer cada vez mais a rei-
Os movimentos atuais assumem novas formas: manifestações e ocupações vindicação de justiça ambiental. En-
de massa e repentinas. Com variações em função das situações, apresentam-se contramos por todos os lados a luta
contra a corrupção. Podemos criar a
como antiautoritários e horizontais. Mesmo que vejamos aparecer líderes e porta-vozes, hipótese de que tal repúdio à corrup-
nenhum deles os controla. São movimentos da era digital, mesmo quando essa ção traduz a tomada de consciência
característica não é suficiente para defini-los da fusão entre as classes políticas e a
classe financeira, que anula a autono-
POR GUSTAVE MASSIAH* mia da política. Essa desconfiança da
política se traduz pela rejeição da de-
legação e da representação e na rei-
vindicação por uma nova democra-

B
aseado no livro de Zeynep Tu- direitos das mulheres, que coloca no- Líbano, no Iraque, no Irã, na Palesti- cia. De Argel a Santiago, passando
fekci, Twitter & les gaz lacrymo- vamente em discussão relações mile- na, prolongando-se até o Sudão, Ar- pelo Sudão, Iraque ou Hong Kong, a
gènes [Twitter & os gases lacri- nares. Pensemos também no movi- gélia, Hong Kong de novo... escritura de uma “nova Constituição”
mogêneos] (C&F Éditions, mento dos povos autóctones. Tais Os movimentos sociais evoluem e sempre é pedida pelos manifestantes.
2019), proponho algumas reflexões e movimentos combinam hoje vários aprendem. Raymond Benhaim1 res-
hipóteses sobre a situação atual dos períodos mais longos em torno da salta que os últimos movimentos se EM CONFRONTO COM A REPRESSÃO
movimentos sociais. A obra marcan- proposição da intersecionalidade que distinguem dos precedentes pela E A CONTRARREVOLUÇÃO
te de Tufekci é uma pesquisa sobre a vai levar em conta a articulação de di- vontade de remediar a fraqueza da Desde 2013, quando se dava continui-
nova geração de movimentos, os mo- ferentes formas e razões da opressão: paralisia tática. Não estão mais na dade aos novos movimentos, começa-
vimentos sociais conectados, marca- as classes, os gêneros e as origens. configuração da ocupação estática de ram as contrarrevoluções, com a as-
dos pela era digital, e permite com- Outro movimento ganhou grande uma praça ou de um local simbólico, censão de ideologias racistas,
preender as capacidades e as culturas importância e se tornou estruturador: mas organizam um movimento ma- securitárias e xenófobas, e a onda das
desses movimentos, a interação com o movimento ecologista pela urgên- ciço de apropriação da cidade. Orga- guerras descentralizadas. O neolibe-
as tecnologias digitais, bem como os cia climática e pela biodiversidade. A nizam as mobilizações uma ou duas ralismo endureceu sua dominação e
contra-ataques das autoridades a es- convergência desses movimentos se vezes por semana e, entre as duas, reforçou seu caráter securitário apoia-
sas mobilizações no âmbito próprio encontra na proposição estratégica: a dão-se tempo para analisar, mudar e do em repressões e golpes de Estado.
da informação digital. de uma transição social, ecológica e produzir palavras de ordem unitárias Os governos reacionários e autocráti-
Para compreender as mudanças democrática. para a vez seguinte. Estabelecem ob- cos tomaram o poder em diversos paí-
em gestação para os movimentos, jetivos a superar; ganham batalhas ses, a começar por Estados Unidos,
para as sociedades e para a sociedade UMA EXPLOSÃO DE MOVIMENTOS parciais e continuam sua mobiliza- Rússia, China e Brasil. Os movimentos
mundial, é necessário levar em conta A PARTIR DE 2011 ção. Desse modo, o Hirak argelino sociais e de cidadania se encontram
os riscos do digital. É essencial com- Na evolução dos movimentos sociais, conseguiu anular duas vezes as datas em posição defensiva. As resistências
preender os movimentos sociais na há uma continuidade, e os movimen- das eleições; em Hong Kong, os mani- sociais, democráticas, políticas e ideo-
era digital e considerá-los uma nova tos atuais prolongam os precedentes, festantes fizeram que fosse anulado o lógicas buscam se organizar.
geração de movimentos sociais. É em especial as lutas operárias e cam- decreto de transferência para a China Precisamos retomar a situação
uma tarefa essencial para a qual con- ponesas. Também há rupturas. Pode- de pessoas declaradas culpadas de para medir as consequências de um
tribui muito o livro de Tufekci. Em se- -se cogitar a hipótese de que se trata crimes; em Beirute, os manifestantes período de contrarrevoluções.2 Mui-
guida, tentaremos reposicionar esses de uma reação das populações à crise demandaram e obtiveram a demis- tas contrarrevoluções conservadoras
movimentos na dinâmica dos movi- financeira de 2008, que revelou a fra- são de todo o governo e a nomeação estão em curso: a contrarrevolução
mentos de altermundialismo. gilidade do neoliberalismo, tornan- de um governo independente de tec- neoliberal, a das antigas e novas dita-
do-o “austeritário” do capitalismo fi- nocratas; os sudaneses impuseram duras, a do conservadorismo evangé-
A PROPOSIÇÃO DE TRANSIÇÃO SO- nanceiro, misturando austeridade e ao Exército um governo transitório e lico, a do conservadorismo islamita e
CIAL, ECOLÓGICA E DEMOCRÁTICA autoritarismo. eleições em três anos. a do conservadorismo hinduísta. Elas
Para os movimentos sociais, o perío- Podemos considerar que a nova Esses movimentos, bem diversos nos lembram que os períodos revolu-
do atual é de ruptura. Os diferentes geração de movimentos na era digi- e muitas vezes contraditórios, explo- cionários são geralmente breves e
movimentos sociais são o produto de tal se iniciou após a autoimolação de dem no contraponto da ideologia do- muitas vezes seguidos de contrarre-
uma longa evolução, marcada pelas Mohamed Bouazizi com os eventos minante e das reações brutais e auto- voluções violentas e muito mais lon-
lentas evoluções e por episódios de Sidi Bouzid na Tunísia, retrans- ritárias dos poderes contestados. A gas. Mas as contrarrevoluções não
revolucionários. mitidos pelas redes sociais, provo- sequência não termina. anulam as revoluções, e o novo que a
Entre os movimentos longos, po- cando a “Revolução de Jasmim”. Em fez eclodir continua a progredir e
demos citar os movimentos sociais seguida assistimos a uma sucessão NOVA GERAÇÃO DE MOVIMENTOS emerge, às vezes muito tempo de-
com grandes lutas operárias e cam- ininterrupta ao redor do mundo. ANTIAUTORITÁRIOS E HORIZONTAIS pois, sob novas formas. É um novo
ponesas; o movimento da descoloni- Após a Tunísia e a Praça Tahrir, no Esses movimentos assumem novas mundo que custa a aparecer, lem-
zação, com a passagem da primeira Cairo, os indignados na Espanha, formas: manifestações e ocupações brando a visão de Gramsci em 1937:
fase da independência dos Estados à Portugal e Grécia, os “occupy” em de massa e repentinas. Com varia- “o velho mundo morre, o novo tarda a
fase atual de libertação das popula- Londres, Nova York e Montreal, os ções em função das situações, apre- aparecer, e nesse claro-obscuro sur-
ções; o movimento das liberdades e estudantes chilenos e os guarda- sentam-se como movimentos antiau- gem os monstros”.
dos direitos com uma nova sequência -chuvas de Hong Kong. Isso sem con- toritários e horizontais. Mesmo que
nos anos 1960. tar as manifestações maciças na Ar- vejamos aparecer líderes e porta-vo- CONTRIBUIÇÕES PARA O NOVO
Movimentos consideráveis tam- gentina, na França com os coletes zes, de fato nenhum deles os controla. MUNDO QUE TARDA A APARECER
bém se desenvolveram em escala amarelos, no Chile, no Equador e em Por sua forma de organização e uso Quais são as mudanças profundas
mundial, sobretudo o movimento dos toda a América Latina, na Síria, no do digital, são movimentos da era di- que constroem o novo mundo e prefi-
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 21

© Rob Kall
guram as contradições do futuro? O soberania alimentar. Além disso, os
digital não é a única reviravolta em movimentos sociais são confronta-
curso. Podemos identificar cinco mu- dos pela difícil negociação com os
tações em curso, revoluções inacaba- poderes e pelo risco de se tornarem
das nas quais já percebemos as pri- ONGs que os acompanham.
meiras reviravoltas. A revolução dos A pesquisa de uma nova síntese,
direitos das mulheres coloca em dis- ou pelo menos de uma melhor articu-
cussão relações de dominação mile- lação entre a forma movimento e a
nares. A revolução dos direitos dos forma partido, está na ordem do dia.
povos, segunda fase da descoloniza- Implica discutir os modos de organi-
ção pós-independência dos Estados, zação dos partidos, tanto dos parla-
destaca a libertação dos povos e ques- mentares como daqueles de vanguar-
tiona as diversas identidades e for- da. Hervé Le Crosnier3 sublinha que
mas do Estado-Nação. A tomada de nenhum movimento aceita ser repre-
consciência ecológica é uma revolu- sentado por partidos em um jogo ins-
ção filosófica, que recoloca publica- titucional; no entanto, vitórias no
mente a ideia de que vivemos em um seio das instituições reforçam a cons-
tempo e em um espaço que não são ciência global e os movimentos, co-
mais infinitos. O digital renova a lin- mo mostra a evolução atual nos Esta-
guagem e a escrita, e as biotecnolo- dos Unidos. Como lidar com essa
gias questionam os limites do corpo contradição a longo prazo?
humano. A revolução do povoamento Movimento feminista #MeToo começou nas redes sociais e ganhou as ruas A discussão da forma partidária é
do planeta está em curso; as migra- muito mais profunda. Está ligada à
ções são um dos aspectos de uma re- inscreverão os movimentos na deter- serviços públicos e na democratiza- discussão sobre a estratégia antes do-
volução demográfica mundial. minação de estratégias. ção radical da democracia. A narrati- minante de transformação social:
Há diversas reviravoltas em curso, va da estratégia de médio prazo pode criar um partido para conquistar um
revoluções inacabadas e incertas. REFORÇAR OS MOVIMENTOS ser a da prosperidade sem crescimen- Estado, para mudar a sociedade. Os
Nada permite afirmar que não serão SOCIAIS NA ERA DIGITAL to e do Green New Deal. partidos construídos para conquistar
esmagadas, desviadas ou recupera- Com base na análise de Zeynep Tu- As propostas secundárias incluem o Estado se tornam Partidos-Estado
das. Mas também nada nos permite fekci, podemos identificar tarefas a as formas de organização dos movi- antes de terem conquistado o Estado
afirmar que o serão. Elas agitam o assumir para reforçar e fazer irrom- mentos. Trata-se de fazer progredir a e, assim, se transformam em freios
mundo; também são portadoras de per os movimentos sociais na era di- cultura e a tomada de consciência para os movimentos e evoluções cul-
esperanças e já marcam o futuro e o gital. Não se trata de engajar tarefas das dificuldades nos quatro ramos: a turais e sociais. A conquista do Estado
presente. Por enquanto, provocam definidas por uma direção política ou preparação dos movimentos, a ges- permitiu à burguesia impor o capita-
repúdio e grandes violências. por uma vanguarda, o que seria anti- tão dos movimentos para evitar a pa- lismo, é pouco provável que venha a
nômico com a natureza dos movi- ralisia tática, a resposta à repressão e permitir que saiamos dele. O que está
OS ATIVISTAS DIGITAIS TÊM UM mentos. Trata-se de abrir um amplo a durabilidade dos movimentos. em jogo é a definição de uma nova es-
PAPEL A DESEMPENHAR debate para fazer progredir os conhe- tratégia de transformação política.
O digital é uma revolução tecnológi- cimentos, os métodos e as técnicas, OS MOVIMENTOS SOCIAIS
ca que possui fortes interações com chamando todos os ativistas, em par- INTERPELAM OS PARTIDOS O DESAFIO MAIS DIFÍCIL
as mudanças sociais, sem com isso ticular os ativistas digitais, a se enga- Os movimentos sociais da era digital É REDEFINIR A DEMOCRACIA
subdeterminá-las. Os ativistas dos jarem e a colocarem propostas pela são movimentos políticos. Assumem Do ponto de vista das narrativas, seja
movimentos sociais desempenha- livre disposição dos movimentos. de maneira direta uma parte das ta- a da urgência, da alternativa ou da es-
ram um papel no desenvolvimento As primeiras proposições englo- refas de organização que tradicional- tratégia, vemos relativamente bem o
do digital, ainda que seus aportes te- bam a capacidade narrativa. Esta de- mente cabiam aos partidos políticos, que pode ser proposto para a transi-
nham sido confiscados e desviados pende das situações, mas também es- em especial a liderança reconhecida ção social e para a transição ecológi-
pelas Gafam (Google, Apple, Face- tá ligada a uma capacidade narrativa e as negociações. Essa estrutura tra- ca. O movimento social destacou as
book, Amazon e Microsoft). Também horizontal em escala mundial. Trata- dicional é amplamente discutida por perspectivas e as proposições para
existem opositores no interior do -se de progredir nas três narrativas: causa da grande desconfiança dos um mundo sem desigualdades sociais
mundo digital, que formam um mo- uma narrativa para a urgência e a re- ativistas e em geral das populações nem discriminação. O movimento
vimento social específico que con- sistência, que se opõe à ideologia do- mobilizadas em relação às institui- para o clima abriu um debate vigoro-
verge com os movimentos sociais e minante racista, securitária e xenófo- ções políticas e, de modo especial, so sobre a transição ecológica. É na
pode reforçá-los. ba; uma narrativa para as alternativas, em relação aos partidos políticos. Em democracia que o desafio é mais difí-
Podem ter um papel motor na luta para outro mundo possível, implican- alguns casos, partidos políticos rela- cil de se erguer. É nessa dimensão que
contra as Gafam e contra a impuni- do a superação da globalização capi- tivamente tradicionais surgem nos os progressos são indispensáveis.
dade e o poder exorbitante das multi- talista neoliberal; e uma narrativa pa- movimentos, ou melhor, em uma A questão da democracia está
nacionais digitais. Também podem ra as estratégias de médio prazo, para parte deles. É o caso do Podemos (Es- constantemente presente. Começa
ter importância no desenvolvimento a década, definindo as etapas para a panha) e do Syriza (Grécia). Em ou- com as reivindicações de garantia
de ferramentas participativas de ve- transição social, ecológica e demo- tros casos, formas de organização es- das liberdades, de repúdio à repres-
rificação indispensáveis para se opor crática e as políticas a desenvolver. truturadas, incluindo certos partidos, são e ao autoritarismo, de demanda
ao contra-ataque das autoridades no Três narrativas a serem construí- foram reconhecidas, como “a União de efetividade dos direitos e da igual-
próprio território digital e da infor- das para a transição social, ecológica dos Profissionais” sudaneses. Esses dade. Apresenta-se em um imperati-
mação (vigilância de massa, desin- e democrática podem ser esboçadas. prolongamentos devem ser avaliados vo de dignidade, no questionamento
formação, fake news...). A narrativa da urgência propõe a con- e aprofundados. das instituições e na importância dos
Podem contribuir dotando os mo- testação do capitalismo verde e do Os movimentos sociais também serviços públicos. Os movimentos
vimentos de ferramentas digitais que neoliberalismo autoritário, a recusa estão em redefinição. Citemos, por horizontais destacam a corrupção e
reforçarão as primeiras fases da mo- da mercantilização da natureza e da exemplo, o movimento camponês se estendem até a recusa da delega-
bilização, permitirão resistir aos con- vida, além da efetividade dos direitos com a Via Campesina, que apoiou as ção e da representação.
tra-ataques das autoridades e às pla- e das liberdades. A narrativa de outro mobilizações por meio de uma reno- A democracia representativa é
taformas hegemônicas, contribuirão mundo possível se apoia nos bens co- vação radical de suas palavras de or- questionada. É necessária, mas não
para evitar paralisias táticas, facilita- muns, no bem viver, na propriedade dem em torno da agricultura campo- suficiente? Como encontrar as garan-
rão as narrativas dos movimentos e social e coletiva, na gratuidade e nos nesa, da recusa aos transgênicos e da tias para que ela não sirva de simples
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
22 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

cobertura para os poderosos? Os mo- a ligação entre os territórios e as insti- tudo de proximidade, provocadas por tal, uma nova era se desenha e uma
vimentos se consideram formas de tuições democráticas de proximida- guerras e genocídios. Os movimentos nova força mundial se constrói. Ela
democracia em atos. No entanto, têm de. O nível nacional implica a redefi- sabem bem que um mundo sem mi- encontra aí, no entanto, inclusive no
dificuldades de resolver as questões nição do político, da representação e grações é irreal. Em relação à ofensi- âmbito digital, oposições conduzidas
de democracia interna. É para inven- da delegação na democracia, o refor- va da direita contra os migrantes, po- por poderes locais e acompanhadas
tar novas formas de democracia que ço da ação pública e o controle demo- demos contrapor um ponto de vista: de gigantes que se estabeleceram na
uma revolução filosófica e cultural é crático do poder do Estado. As gran- o direito de viver e trabalhar no país; economia digital. A dialética entre o
necessária. des regiões são os espaços políticos a liberdade de circulação e de insta- Twitter e os gases lacrimogêneos, en-
ambientais, geoculturais e da multi- lação; o acolhimento incondicional. tre a ação de campo e a informação e
AS RELAÇÕES ENTRE O LOCAL, polaridade. O nível mundial é o da ur- A ideologia dominante é racista, coordenação digital tornou-se um
O NACIONAL E O MUNDIAL gência ecológica; das instituições in- xenófoba e securitária. Os migrantes elemento-chave de nosso período.
Os movimentos sociais na era digital ternacionais, do direito internacional, são escolhidos como bodes expiató- Essa revolução ainda subterrânea,
ainda se definem em escala nacional; que deve se impor em relação ao di- rios, mas o alvo dessa ideologia é a mas cujos movimentos localizados,
suas reivindicações se dirigem aos reito dos negócios; e da liberdade de desigualdade. É por isso que pode- maciços e repetidos formam os princi-
poderes de seu Estado, de seu país. circulação e instalação, em especial mos considerar que os movimentos pais portos seguros, é carregada pela
Também têm uma fixação local; são dos direitos dos migrantes. sociais da era digital que denunciam ideia compartilhada em escala global
conhecidos pelo nome das cidades as desigualdades e as injustiças são de que as desigualdades, as injustiças,
onde ocorrem, às vezes até da praça CONTRAOFENSIVA EM RELAÇÃO portadores de uma contraofensiva. a arbitrariedade e a corrupção são in-
ou da rua que ocupam. Também pos- À HEGEMONIA CULTURAL ATUAL Há, no entanto, movimentos sociais suportáveis. E que a revolta por não
suem desde o início uma dimensão O que há de comum nos diferentes de direita e de extrema direita, como suportá-las mais é legítima. Tão mais
mundial; é nessa escala que adqui- movimentos é o repúdio às desigual- pudemos perceber nos Estados Uni- legítima pelo fato de se tratar do futu-
rem seu sentido. dades sociais e às discriminações e a dos, no Brasil, na Índia, na Hungria e ro da própria humanidade, confronta-
Esses movimentos são uma res- rejeição à corrupção. Nisso, eles são em outros lugares. Tais movimentos da com uma crise climática e ecológi-
posta à globalização capitalista e à portadores de uma contraofensiva podem compartilhar certas caracte- ca enorme que os poderes vigentes se
sua fase neoliberal. Podemos conside- em direção à ideologia dominante da rísticas “técnicas” de movimentos recusam a considerar. As revoltas não
rá-los uma nova fase do altermundia- globalização neoliberal. É preciso sociais calcados à esquerda, em espe- são somente agitações de repúdio. As
lismo. Zeynep Tufekci revela que en- lembrar que o neoliberalismo foi pre- cial o conhecimento do digital e suas revoltas se tornam revoluções quando
contramos neles muitas vezes pessoas parado por uma ofensiva ideológica, formas virais. É, portanto, no fundo as questões parecem possíveis. Se as
que participaram de diferentes mani- carregada pela então nova extrema político, e não nas ferramentas, que é desigualdades e as injustiças se torna-
festações altermundialistas, que se direita nos anos 1980, representada necessário concentrar o debate, na ram insuportáveis e inaceitáveis, é
reuniram ou trocaram ideias, seja na França pelo Club de l’Horloge. Tal coerência das reivindicações sociais, também porque um mundo sem desi-
presencialmente ou por meio de gru- ofensiva era no início dirigida contra ecológicas e democráticas. gualdades e sem injustiças parece
pos de debate digital. O movimento a igualdade. As desigualdades eram possível. 
altermundialista lembra que a trans- consideradas naturais, o que condu- AS DESIGUALDADES E AS INJUSTI-
formação de cada sociedade não pode zia a uma concepção securitária: ÇAS SE TORNARAM INSUPORTÁVEIS *Gustave Massiah é membro do conse-
ser desejada sem a mudança do mun- contra a desordem, era preciso repri- Os movimentos sociais anunciam lho internacional do Fórum Social Mundial
do. Apoia-se em um direito interna- mir as incivilidades, substituindo as uma nova era em escala mundial, e do conselho científico da Attac-França.
cional construído em torno do respei- estratégias de integração social que uma era análoga àquela dos direitos
to aos direitos fundamentais. Propõe, haviam sido realizadas durante o pe- no século XVIII, à das nacionalidades
1   R
 aymond Benhaim, “D’un Hirak à l’autre” [De
no lugar de uma definição do desen- ríodo dos Trinta Gloriosos. em 1848, às revoluções socialistas do um Hirak ao outro], revista marroquina Zama-
volvimento fundada no crescimento As migrações foram destacadas século XX, à da descolonização da se- ne, out. 2019.
produtivista e nas formas de domina- pelos poderes dominantes para se- gunda metade do século XX, à da 2   Gustave Massiah, “Le nouveau monde qui tar-
de à apparaître et la nécessaire pensée straté-
ção, uma estratégia da transição eco- mear o medo e reforçar coesões racis- contracultura e da liberação das mu- gique” [O novo mundo que tarda a aparecer e
lógica, social, democrática e geopolí- tas que apagariam as diferenças so- lheres dos anos 1960 e 1970. o pensamento estratégico necessário], Euro-
tica. Como propõem Édouard Glissant ciais do espírito dos povos. Os A circulação mundial das infor- pe Solidaire Sans Frontière, 2016.
3   Obrigado a Hervé Le Crosnier por suas corre-
e Patrick Chamoiseau,4 à globalização movimentos afirmam que as migra- mações, apoiada no digital, não está ções atentas neste artigo.
capitalista opomos a globalidade e as ções não são o problema principal da aí por acaso. Entre os movimentos 4   Édouard Glissant e Patrick Chamoiseau, “De
identidades múltiplas. humanidade, em especial as que en- em curso e a troca de reflexões, estra- loin, lettre ouverte au Ministre de l’Intérieur de
la République Française” [De longe, carta
A estratégia interpela a articula- volvem os países do Norte, quando a tégias, cumplicidade e debates apai- aberta ao ministro do Interior da República
ção do local ao global. O local implica maior parte das migrações são sobre- xonados que ocorrem no campo digi- Francesa], dez. 2005.
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 23

LINGUAGEM VIOLENTA E SOLUÇÕES SIMPLISTAS GERAM MAIS ÓDIO E OPRESSÃO

Crescimento

© Marcos Brandão/Senado Federal


do populismo
de direita
Sob o populismo de direita, a linguagem da violência
desfila livremente como linguagem de guerra, com
levantamento de muros, trincheiras e crescentes
gastos em segurança pública, em detrimento de
investimentos em educação ou cultura
POR HENRY A. GIROUX*

João Doria, Jair Bolsonaro e Wilson Witzel durante Fórum de Governadores

E
ntramos no século XXI em uma de Jair Bolsonaro no Brasil. Mas tam- de bem-estar, negação dos proble- bem informadas e engajadas em mo-
era sinistra, em que paixões de bém já podemos notar a capilariza- mas ambientais e crescente desigual- vimentos de reação. Também é preci-
um escuro passado estão sendo ção desse fenômeno, com versões re- dade social. Há um profundo despre- so deixar muito claro que a resistên-
mobilizadas novamente contra gionais e locais dessas figuras na zo pelas verdades e pelas evidências cia deve ser uma iniciativa coletiva,
as forças da democracia de um modo política, como os governadores Doug científicas, esvaziando as palavras de em lutas unificadas com o objetivo de
diferente de tudo que vimos desde os Ford, em Ontário, Canadá; Wilson qualquer significado, ao mesmo tem- recusar um futuro que simplesmente
anos 1930. Presenciamos o suporte Witzel, no Rio de Janeiro; e João Do- po que as mentiras e as fake news são reproduza o estado atual das coisas.
crescente para um populismo de di- ria, em São Paulo. elevadas ao status de verdade, distor- É preciso voltar a acreditar que outro
reita que vê a democracia liberal co- O populismo de direita ataca o cendo a realidade e a história com ar- mundo é possível e que o neolibera-
mo um anacronismo. Os sinais são pensamento crítico, mina os atos de gumentos sórdidos que negam todas lismo fascista pode ser derrotado.
claros. Ao redor de todo o mundo, in- coragem cívica, desmantela a ação as evidências concretas sobre o pas- O populismo não explica sozinho
divíduos, grupos e políticos vomitam coletiva genuína dos movimentos so- sado da nação. o aumento dos governos fascistas ao
desordenadas incitações de ódio e ciais, suprime as formas democráti- O populismo de direita prospera redor do mundo nem fornece uma
intolerância, legitimando e apoian- cas de oposição e esmaga os oponen- sobre o fascínio do espetáculo da vio- resposta para enfrentá-los. São ir-
do abertamente o racismo, a homo- tes políticos com perseguições e lência e redireciona a raiva e a agres- mãos siameses na política da direita
fobia e outras selvagens formas de ameaças. Seu caráter demagógico são reprimidas em uma forma de diante dos desafios do mundo con-
nacionalismo. pode ser observado no uso que faz de prazer e catarse emocional das mas- temporâneo. O que se faz necessário
O que tem surgido desse abismo uma linguagem simplista, que não sas, que se tornam cúmplices do hor- é a articulação de uma poderosa e
do poder autoritário é uma atualiza- considera a complexidade da realida- ror de governos autoritários que com- nova visão de política pelas forças de
da versão da política demagógica e a de social, evita o diálogo honesto, prometem moralmente suas vidas. A esquerda, que leve a cultura e a edu-
normalização de uma maré de igno- mente sobre os fatos, distorce a histó- distinção binária das pessoas como cação mais a sério, que organize, es-
rância com naturalização da cruel- ria e desconsidera as multifacetadas amigos e inimigos tanto alimenta timule e fomente formas mais parti-
dade. Um resultado direto é o cres- lutas e o árduo trabalho de negocia- uma política de descartabilidade, cipativas de governo e ação dos
cente apoio de um populismo de ção e partilha de poder necessários que torna supérfluos alguns seres movimentos sociais e grupos popu-
direita, que trata com ódio e desdém nos modos de governo democráticos. humanos, quanto promove uma cul- lares. Nosso desafio é unir as forças
tanto os indivíduos privados de ne- A linguagem simplificada do popu- tura de medo e terror, na qual o bi- progressistas capazes de imaginar e
cessidades básicas para sua subsis- lismo e sua noção de anti-intelectua- zarro e o impensável se normalizam. lutar por um mundo no qual o fascis-
tência – incluindo moradia, alimen- lismo são fortalecidas por uma cultu- A distinção simplista entre amigos e mo neoliberal não mais exista e onde
tação e água limpa – como as ra de medo, insegurança e incerteza. inimigos torna-se ainda mais perigo- a promessa de uma democracia so-
populações imigrantes deslocadas de Essa retórica acentua um sentimento sa em um contexto onde a história é cialista se torne mais que um sonho
sua terra natal por conflitos e expro- de frustração, raiva e impotência po- apagada e a ignorância fabricada utópico ou um discurso oportunista.
priações das forças globais do lítica que aprisiona os indivíduos em conspira com o poder totalitário, Não haverá justiça social sem mobili-
capitalismo. seus próprios sentimentos, tornan- dando origem a novas redes de opres- zação popular nem futuro em que va-
O populismo de direita oferece do-os cada vez mais incapazes de tra- são. Isto é especialmente preocupan- lha a pena viver sem luta coletiva. É
uma noção pseudodemocrática de duzir questões particulares em pro- te em um momento no qual a violên- preciso tratar a questão da democra-
política, em que as decisões infor- blemas sociais mais amplos. cia é crescente e passa a ser aceita tização do poder a sério, com esfor-
madas por evidências, a agência crí- Sob o populismo de direita, a lin- como um princípio que define e orga- ços contínuos para desenvolver uma
tica e a ação coletiva desaparecem guagem da violência desfila livre- niza a política. forte aliança republicana e democrá-
diante do simbólico mito de um líder mente como linguagem de guerra, Qualquer alternativa para comba- tica contra a aliança fascista.
totalitário e poderoso. Nesse discur- com levantamento de muros, trin- ter a ascensão das forças de extrema
so, a política torna-se personalizada cheiras e crescentes gastos em segu- direita e seu populismo autoritário *Henry A. Giroux  é professor da McMas-
na imagem de um demagogo susten- rança pública, em detrimento de in- precisará necessariamente construir ter University do Canadá (Chair for Scho-
tada graças à suposta ignorância das vestimentos em educação ou cultura. uma proposta política que contenha larship in the Public Interest/The Paulo
massas, tratadas como um verdadei- É um populismo sem consciência so- simultaneamente uma linguagem de Freire Distinguished Scholar in Critical Pe-
ro “rebanho”. A emergência desses cial, que dá suporte ao surgimento de crítica e de esperança. Isso sugere dagogy). Artigo traduzido e adaptado por
líderes da extrema direita pode ser sociedades cada vez mais autoritá- uma nova forma de fazer política, Gustavo O. Figueiredo, doutor em Psicolo-
exemplificada com a ascensão de rias, marcadas por desregulação do que energize e desperte as paixões gia da Comunicação e professor da Univer-
Donald Trump nos Estados Unidos e capital, desmantelamento do Estado das pessoas para que estejam mais sidade Federal do Rio de Janeiro.
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
24 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

NO BRASIL, UM REACIONÁRIO NA VANGUARDA DA GUERRA DE IDEIAS

O astrólogo que tos”.2 Passando a integrar a classe – já


bem numerosa – dos editorialistas
conservadores, critica o pensamento

inspira Jair Bolsonaro


vigente, que, segundo ele, imperava
no país desde o fim da ditadura (1964-
1984). Daí vem o título de uma de
suas principais obras, publicada em
1996: O imbecil coletivo: atualidades
intelectuais brasileiras.
“Populista de direita”, amante das provocações, o presidente brasileiro, Seu destaque como intelectual
Jair Bolsonaro, é por vezes apresentado como um “Trump tropical”, com quem ele também se explica pelo apoio recebi-
do de Ronaldo Levinsohn. Tendo mi-
partilha a imprevisibilidade. Mas sua ação não se resume às suas escorregadas, ela se raculosamente escapado de uma sé-
baseia na ideologia formulada por um guru que por muito tempo permaneceu discreto rie de escândalos financeiros, esse
banqueiro possuía a UniverCidade,
POR GILBERTO CALIL* uma universidade privada que abriu
suas portas a Olavo de Carvalho. Ele
seria encarregado do curso de Filoso-
fia entre 1997 e 2001, e dirigiria sua
editora entre 1999 e 2001.
Sua inclinação pela guerra de
ideias não o fez desinteressar-se pelo
mundo material. A partir de 1998,
lançou um site na internet para di-
fundir suas análises e recolher as
doações que ele exige das classes su-
periores. Sua lógica, reformulada em
2009, é a seguinte: como o “‘aparelho
ideológico’ burguês, do qual os mar-
xistas falam, não existe”, as classes
superiores se encontram “sem defe-
sa” diante da ameaça comunista.
“Quando essas tentam debater a seu
próprio favor, fazem-no com tanta
discrição e delicadeza que parecem
estar lutando contra o adversário
mais benevolente e compreensivo do
mundo, e não contra essas ‘máquinas
mortíferas’ que os revolucionários se
orgulham de ser.”3 Carvalho se apre-
senta como um dos raros intelectuais
determinados a defender a causa dos
abastados. Porém, sem dúvida, muito
pouco consciente de sua fragilidade,
a burguesia não lhe oferece o apoio
© Lila Cruz

monetário que estima merecer. Du-


rante décadas, Plínio Salgado (1895-
1975), dirigente histórico do fascismo
brasileiro, também lamentou: “A bur-
guesia não nos ajuda”.
A escrita de Olavo de Carvalho se
caracteriza por seu gosto pela vulga-
ridade e por seu tom belicoso. Essa
agressividade se apresenta como uma
garantia de autenticidade, que lembra
o estilo de Bolsonaro. Olavo de Carva-

“O
lavo de Carvalho não um nicho político onde se latia mui- factuais que caracterizam [sua obra] lho estima que suas ofensas “apenas
existe.” Formulada em to sem morder. acabou parecendo coerente a uma exprimem a humilde recusa de uma
2001, a frase do sociólogo Quando Jair Bolsonaro foi eleito parte da população”, segundo as pa- falsa solenidade”. Ele defende seu uso
Emir Sader, próximo ao presidente do país, em outubro de lavras do cientista político Álvaro “em situações nas quais uma resposta
PT, ilustrou por muito tempo a re- 2018, os que outrora viviam à mar- Bianchi.1 delicada constituiria uma forma de
ceptividade reservada aos trabalhos gem tomaram o poder. Durante uma Nascido em 1947, Olavo de Carva- cumplicidade com o intolerável”.4
desse intelectual no meio progressis- transmissão ao vivo em suas redes lho militou brevemente no Partido
ta do Brasil. As teses reacionárias de sociais após sua vitória, Bolsonaro Comunista Brasileiro nos anos 1960. BOBOS DA CORTE,
um filósofo panfletário, que tam- colocou quatro livros bem à vista: a Estudou Filosofia, mas logo abando- TRAIDORES E VAGABUNDOS
bém exercia a função de astrólogo, Bíblia, a Constituição Federal, uma nou os estudos, julgando como de Tal opção retórica também permite
inspiravam o desprezo dos universi- obra de Winston Churchill e, por úl- péssima qualidade o ensino que re- esquivar-se do debate quando não se
tários e pareciam distantes das preo- timo, um livro de Olavo de Carvalho. cebia. Começou a escrever para gran- têm argumentos convincentes. Uma
cupações do grande público. Muitos Os intelectuais da esquerda desco- des jornais em 1967, consagrando-se das técnicas favoritas de Olavo de
estavam convencidos: Olavo de Car- briram então que seu desdém a res- na astrologia, uma “disciplina funda- Carvalho consiste em desqualificar
valho só existia para a ala minoritá- peito dele os impediu de compreen- mental”: “Aqueles que não a estuda- seus adversários atribuindo-lhes
ria mais radical da direita brasileira, der “como o amontoado de erros ram não sabem nada. São analfabe- apelidos com conotação sexual ou es-
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 25

catológica. Afirmando, por exemplo, “Se Lenin é o teórico do golpe de questionamento dos direitos huma- la, em relação à qual hoje está com-
que o “pessoal da esquerda” é essen- Estado”, explica Olavo de Carvalho, nos, ataques contra as mulheres, ne- provado que ele politizou o processo.
cialmente genocida, conclui: “Se vo- “[Gramsci] é o estrategista da revolu- gros e minorias sexuais. Sabemos ho- Durante esse último agrupamento,
cê responder a eles com educação, es- ção psicológica que deve preceder e je que foi o próprio intelectual quem autofalantes dispostos sobre um ca-
tará conferindo dignidade às suas preparar o terreno para o golpe de escolheu o atual ministro da Educa- minhão difundiam uma mensagem
ideias. [...] Que porra de educação! Estado. [...] A revolução gramsciana é ção, Abraham Weintraub, e o das Re- de Olavo de Carvalho: “Durante qua-
Vai se fuder, filho da puta!”.5 Mas às para a revolução leninista o que a se- lações Exteriores, Ernesto Araújo. tro ou cinco décadas, os comunistas
vezes parece justo, em especial quan- dução é para o estupro.”8 Propagan- Mas sua influência atinge sobretudo e seus parceiros dominaram o Brasil:
do critica o pouco caso desses inte- do-se de maneira imperceptível, a o presidente e seus filhos: Flávio (se- a mídia, as universidades, o mundo
lectuais progressistas que o repri- “estratégia gramsciana” visaria cor- nador), Eduardo (deputado federal) e das artes e do espetáculo. Tudo, abso-
mem por não possuir um diploma romper os fundamentos cristãos e Carlos (vereador do Rio de Janeiro). lutamente tudo!”. O intelectual con-
universitário... em um país onde 83% morais da sociedade com o objetivo Sob os governos de Lula (2003- vidava os manifestantes a romper
da população adulta também não de abrir caminho para a revolução 2010) e Dilma Rousseff (2011-2016), os com “os bobos da corte e os traidores,
possui um. comunista. Por isso, tanto a “guerra diferentes ramos da direita consegui- que começaram a negociar com o ou-
Em 2002, Olavo de Carvalho lan- cultural” como “os comunistas” li- ram se unir o suficiente para obter a tro lado e se dizem moderados”. Che-
çou o site Mídia Sem Máscara. Embo- bertariam a sociedade brasileira pa- prisão (sem provas) do primeiro10 e a gou a hora, concluiu ele, de “quebrar
ra escrevesse na época em colunas ra promover o aborto, a homossexua- destituição (inconstitucional) da se- as pernas desses vagabundos”. 
regulares dos principais jornais do lidade e a liberdade sexual – um gunda.11 Com Bolsonaro eleito, as di-
país, sua plataforma se impôs com o raciocínio retomado, quase palavra visões ressurgiram, inclusive dentro *Gilberto Calil  é professor de História da
objetivo de demonstrar o domínio por palavra, pela senadora Kátia do governo. Elas opõem os militares Universidade Estadual do Oeste do Paraná
comunista sobre a imprensa. Por Abreu em 2011: “A hegemonia do (que ocupam oito ministérios),12 os ul- (Unioeste).
mais absurda que pareça, em um pensamento de esquerda, que a es- traliberais (trazidos pelo ministro da 1   C itado por Patricia Facchin, “Olavo de Carva-
país onde a mídia é controlada por tratégia gramsciana de revolução Economia, Paulo Guedes) e a fração lho é um efeito da nova direita, e não sua cau-
uma oligarquia, a cruzada elevou cultural inoculou na universidade, mais ideológica que gravita em torno sa”, Instituto Humanitas Unisinos, 19 dez.
2018. Disponível em: <ihu.unisinos.br>.
Olavo ao nível de referência intelec- estabeleceu uma ditadura do pensa- de Olavo de Carvalho, tal como a pas- 2   “ Um acerto de contas com a astrologia”, Porto
tual da extrema direita, que admira mento”,9 proclamou, quatro anos an- tora Damares Alves, ministra dos Di- do Céu, Recife, jun. 2000.
sua “coragem”. tes de compor o governo “de abertu- reitos Humanos, da Família e das Mu- 3   D iário do Comércio, São Paulo, 17 ago. 2009.
4   “Coleção de frases com Cu e cia.”, Olavo de
É que, aos olhos do astrólogo, o ró- ra” de Dilma Rousseff como ministra lheres, que preconiza que meninos Carvalho, 20 abr. 2015. Disponível em: <ht-
tulo “comunista” engloba os refor- da Agricultura. devem vestir azul e meninas, rosa. tps://olavodecarvalhofb.wordpress.com>.
mistas moderados, os sociais-demo- Mesmo assim, Olavo de Carvalho 5   Citado por Lucas Patschiki, Os litores da nos-
sa burguesia: o Mídia Sem Máscara em atua-
cratas ortodoxos e os neoliberais do está na mira do vice-presidente, o ge- ção partidária (2002-2011), dissertação de
PSDB. Partidários de uma “abertura” A escrita de Olavo de neral Hamilton Mourão, bem como mestrado em História, Universidade Estadual
do Oeste do Paraná, 2012.
econômica apoiada em uma moder- Carvalho se caracteriza de grupos ultraliberais, como o Mo-
6   “A nova era e a revolução cultural: Capítulo II”,
nização social, estes últimos consti- vimento Brasil Livre. Por sua vez, o
tuem a seu ver um dos atores-chave
por seu gosto pela filósofo-astrólogo denuncia os “mo-
Olavo de Carvalho. Disponível em: <http://
olavodecarvalho.org>.
de uma operação ideológica que qua- vulgaridade e por derados” do governo, cuja timidez 7   Leonardo Seabra Puglia, “Gramsci e os inte-
lectuais de direita no Brasil contemporâneo”,
lifica como “gramisciana” e que visa- seu tom belicoso impediria Bolsonaro de desenvolver Teoria e Cultura , Juiz de Fora, v.13, n.12, dez.
ria fragilizar a sociedade brasileira a seu programa. No topo da lista de 2018.
fim de prepará-la para a reviravolta. Paradoxalmente, o sucesso de obstáculos a serem modificados: o 8   “A nova era e a revolução cultural”, op. cit.
9   Citado por Lucas Patschiki, op. cit.
A partir da publicação de A nova era e Olavo de Carvalho baseia-se em um general Mourão, um “moleque 10  Ler Perry Anderson, “Au Brésil, les arcanes
a revolução cultural, em 1994, Anto- conjunto de ferramentas de comuni- analfabeto”.13 d’un coup d’État judiciaire” [No Brasil, os ar-
nio Gramsci se tornou uma obsessão cação análogo às que Gramsci propu- Olavo de Carvalho clama por uma canos de um golpe de Estado judiciário], Le
Monde Diplomatique, set. 2019.
para Olavo de Carvalho. Segundo os nha aos comunistas para conduzir a radicalização política. Ele aprovou as 11  Ler Laurent Delcourt, “Printemps trompeur au
cálculos do pesquisador Leonardo “guerra de posições”, ou seja, a bata- manifestações organizadas em 26 de Brésil” [Primavera enganadora no Brasil], Le
Puglia, o nome do intelectual comu- lha de ideias. Fazendo isso, participou maio de 2019 para pedir a suspensão Monde Diplomatique, maio 2016.
12  Ler Raúl Zibechi, “Que veulent les militaires
nista italiano – apresentado como “o de uma forma de revolução cultural das instituições democráticas, acu- brésiliens?” [O que querem os militares brasi-
profeta da imbecilidade, o guia da da direita, facilitando a eleição de sadas de atrapalhar as ambições “do leiros?], Le Monde Diplomatique, fev. 2019.
multidão de imbecis”6 – aparece “318 Bolsonaro, cujo governo reflete suas povo”, e as de 30 de junho, em apoio 13  “Olavo de Carvalho retruca Mourão via redes
sociais; Carlos Bolsonaro apoia”, Poder 360,
vezes nas quatro principais obras pu- posições essenciais: anticomunismo, ao ex-juiz e agora ministro Sérgio 23 abr. 2019. Disponível em: <www.po-
blicadas pelo autor”.7 negação das questões climáticas, Moro, responsável pela prisão de Lu- der360.com.br>.
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
26 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

COPENHAGUE SEM PARA-BRISA

Quando a bicicleta mais apropriado. Esse modelo pode-


ria ser aplicado a todas as ruas do
país e a cada cidade do mundo.”

reinventa uma cidade


Nas áreas residenciais locais, on-
de a velocidade é limitada a 30 quilô-
metros por hora, carros e bicicletas
dividem a mesma pista. Isso funcio-
na bem na Dinamarca, pois as veloci-
Econômica, boa para a saúde e para o meio ambiente, a bicicleta voltou à moda. Mas dades são respeitadas e essas ruas
ainda há um abismo entre a exaltação do veículo e o fornecimento de infraestrutura são usadas exclusivamente para o
trânsito local. As vias limitadas a 40
adequada para que ele seja utilizado. O sucesso de Copenhague mostra a importância quilômetros por hora são margeadas
de repensar a vida urbana a fim de construir uma rede coerente, prática e segura por ciclofaixas, sempre à direita da
circulação ou de áreas de estaciona-
POR PHILIPPE DESCAMPS* mento, quando há. Ao longo das vias
limitadas a 60 quilômetros por hora,
as ciclovias são separadas do tráfego

O
barulhinho de uma roda livre de comparação, a bicicleta está em lugar mais perigoso da cidade, com de automóveis no mínimo por uma
girando, um grito, o som de apenas 4% dos deslocamentos coti- quinze feridos graves ou mortos por guia e, muitas vezes, por vagas de es-
uma gaivota... Copenhague dianos em Paris, e de 12% a 16% nas ano. Muitos ciclistas não respeitavam tacionamento. É o tipo de organiza-
tem sons estranhos, que se tor- cidades francesas com as maiores o código de trânsito. Mas são justa- ção que mais se destaca, e sua largura
naram inaudíveis nas cidades invadi- participações: Bordeaux, Grenoble e mente eles os especialistas: eles pas- não para de aumentar para se adap-
das pelo barulho dos motores. Na Estrasburgo.2 sam aqui todos os dias! Era preciso tar ao número de usuários. A nova
pista da Ponte Langebro, um homem Para resumir esse sucesso em um ouvi-los. Os semáforos foram escalo- norma PLUSnet prevê que duas pes-
de uns 50 anos pedala em alta veloci- número, podemos citar a última pes- nados no tempo, de modo a dar qua- soas que estejam conversando en-
dade, de terno e gravata, uma moun- quisa de opinião, segundo a qual 77% tro segundos de vantagem aos ciclis- quanto pedalam de frente possam
tain bike. Pedalando em um ritmo dos habitantes de Copenhague se tas, e no espaço, evitando que estes ser ultrapassadas por uma terceira –
mais tranquilo, um idoso que teve o sentem seguros ao circular de bici- fossem incomodados pelos carros. A ou seja, 3 metros de cada lado. Por úl-
cuidado de colocar sua bengala no cleta. “A bicicleta é considerada con- calçada que eles precisavam usar pa- timo, quando a velocidade permitida
bagageiro da bicicleta. Um rapaz de veniente, funcional. Gostamos que ra não se ver presos virou uma ciclo- é superior a 60 quilômetros por hora,
jeans rasgado, carregando uma caixa seja um pouco modesta”, explica Ma- via. E quase não há mais acidentes”. os itinerários para ciclistas seguem
de cerveja, ultrapassa uma moça de rie Kåstrup, chefe do programa de ci- um percurso totalmente distinto da-
vestido elegante e salto alto. Não clismo do município. “É um símbolo quele empregado pelos carros.
existe sociologia do ciclista na capital de liberdade, de saúde, um prazer “É necessário entender
da Dinamarca: todo mundo, ou qua- simples que está ao alcance de todos. como o ciclista funciona. PRIORIDADE PARA AS CICLOVIAS
se (quatro em cada cinco habitantes), Há uma dimensão democrática ne- Esses princípios permitem saber o
pedala, e em todas as circunstâncias, la.” Esse entusiasmo não tem como
O que ele mais quer tempo todo onde estão as bicicletas, o
a exemplo da mulher que transporta explicação principal a preocupação evitar é ter de parar. que garante conforto e segurança pa-
quatro crianças em sua bicicleta de com o meio ambiente (que aparece Ou pior: ter de colocar ra todos os usuários da rede viária.
carga, usando um pequeno reboque. em apenas 16% das respostas à pes- o pé no chão!” Pesquisas de opinião mostram gran-
É possível até cruzar com um minis- quisa anual sobre o tema), nem o bai- de satisfação, inclusive entre os pe-
tro pedalando, ou com Mogens Lyk- xo custo (26%), nem a necessidade de destres. Muitos deles também são ci-
ketoft, ex-presidente da Assembleia fazer exercícios (46%), mas a rapidez Facilitar os deslocamentos ativos, clistas e, nos espaços compartilhados,
Geral das Nações Unidas, que defen- e, acima de tudo, a facilidade de uso que têm a vantagem de exigir muito sabem que a bicicleta vai desacelerar,
de esse modo de deslocamento como (55%) desse modo de transporte em menos espaço do que o carro, signifi- sem que ninguém precise parar para
o melhor para atingir onze dos dezes- uma cidade que, embora plana, tem ca fazer o oposto do que foi feito em se cruzar. Colville-Andersen explica
sete Objetivos de Desenvolvimento bastante vento e é muito menos den- todos os lugares desde a década de o que ele acredita que deveria ser o
Sustentável que a organização inter- sa do que Paris. Chegar a isso é algo 1950: complicar a circulação de car- axioma de qualquer política de ciclis-
nacional estabeleceu para 2030. que requer infraestruturas contí- ros e simplificar a de pedestres e ci- mo ambiciosa: “É necessário enten-
Desde sua abertura, em junho de nuas, rápidas e seguras, projetadas clistas. “É necessário focar o design”, der como o ciclista funciona. O que
2014, canais de televisão vêm de todo de acordo com usos e necessidades continua Colville-Andersen; “a bele- ele mais quer evitar é ter de parar. Ou
o mundo para filmar a “serpente das específicos dos ciclistas. za da rede em Copenhague é o design pior: ter de colocar o pé no chão!”.
bicicletas”, uma ponte de 235 metros Urbanista e designer, guru do re- simples, uniforme e contínuo da in- Com o selim na altura correta, parar
de comprimento suspensa sobre a torno da bicicleta à cidade, Mikael fraestrutura. Há apenas quatro tipos significa descer da bicicleta e gastar
piscina ao ar livre de Fisketorvet. Prá- Colville-Andersen nos revela alguns de infraestruturas para ciclistas. De- muita energia para se colocar nova-
tica, elegante, ela encarna tanto o es- pontos fundamentais. Ele para no pendendo do limite de velocidade mente em marcha.
tilo dinamarquês como o nascimento cruzamento de Søtorvet: “Este era o imposto aos carros, escolhe-se o Diante disso, como resolver a
de uma rede de vias para ciclistas re- questão dos cruzamentos? Descobri-
pensada como tal, e não como um Em Copenhague, 49% dos deslocamentos cotidianos são feitos por bicicletas mos a resposta subindo as vias Øster-
apêndice à rede para veículos moto- brogade e Nørrebrogade. Partindo do
rizados. Com 19 mil travessias diá- centro da cidade, é possível percorrer
rias, sua frequência superou todas as 3 quilômetros sem interrupção. Re-
expectativas. Copenhague decidiu gulados para uma “onda verde” de 20
que, até 2025, metade das viagens pa- quilômetros por hora, os semáforos
ra o trabalho ou para a escola será fei- ficam verdes ao ritmo dos ciclistas. E,
ta de bicicleta. E quase já chegou lá: quando é inevitável parar, um corri-
em 2018, a participação da bicicleta mão e um apoio para o pé direito per-
nos modais de deslocamento cotidia- mitem não sair do selim. Cada cruza-
no (“participação por modal”) repre- mento também tem uma sinalização
sentava 49%, contra 6% para as cami- de solo precisa e respeitada. Nas vias
nhadas, 18% para o transporte azuis, reservadas para as bicicletas,
público e 27% para os carros.1 A título os ciclistas não estão sujeitos à intru-
© Mikael Colville-Andersen
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 27

são de carros, que devem obrigatoria-


mente esperar sua vez (em muitos ca- UMA LUTA MINORITÁRIA QUE VIROU CONSENSO suas ruas, que as autoridades públicas voltassem a dar priori-
sos marcadas por um semáforo), dade a pedestres e bicicletas”, comenta Kåstrup. “Aqui eles
sobretudo antes de virar à direita. “É preciso uma mentalidade muito conservadora para pen- conseguiram ser ouvidos...”
Nørrebrogade se tornou a avenida sar que as cidades não podem mudar. No contexto europeu, Os sociais-democratas que administram a cidade há mais
mais ciclista da Europa. Mas, em deveríamos ter aprendido que elas mudam o tempo todo, que de um século abriram-se para as questões ambientais e for-
2007, a decisão de restringir o tráfego sempre se adaptaram.” Diretor da Federação Dinamarquesa maram coalizões que vão dos sociais-liberais à esquerda am-
de carros não foi fácil de defender,
de Ciclismo desde 2014, Klaus Bondam foi secretário munici- biental. O retorno da bicicleta foi facilitado pela subsistência
lembra Klaus Bondam, então secretá-
pal entre 2006 e 2009. Ele era o encarregado pelos serviços de infraestruturas dedicadas a elas e, principalmente, por uma
rio encarregado dos serviços técnicos
técnicos e ambientais, e foi responsável pelo plano de ciclis- doutrina herdada do início do século XX: a proteção dos ci-
e do meio ambiente: “Recebi muitos
e-mails de ódio, críticas na imprensa. mo que transformou Copenhague. clistas por itinerários separados, inicialmente utilizando as
As pessoas ficaram enfurecidas por- Tendo sido por muito tempo uma cidade operária, a capital pistas laterais às vias reservadas aos cavalos. A primeira ci-
que tomamos a decisão de mudar há- da Dinamarca teve sua primeira fase de amor pelas bicicletas clovia exclusiva data de 1915.
bitos, dando prioridade aos pedes- há... um século! Como na maioria dos países industrializados Reaparecendo muito gradualmente nas políticas públicas a
tres, aos ciclistas e ao transporte da Europa, as décadas de 1920 a 1940 foram o apogeu des- partir de 1982, a bicicleta ganha cada vez mais adeptos. An-
público. Muitos comerciantes pare- sa forma de deslocamento urbano. Mas, nos anos 1950, a tes das eleições municipais de 2005, o congestionamento
ciam imaginar que apenas os moto- adaptação da cidade ao automóvel provocou também aqui o nas ciclovias se tornou um dos problemas mais prementes. A
ristas compravam roupas e comida... desmonte generalizado dessa prática. Na Ponte da Rainha primeira mulher prefeita da capital (2006-2009), Ritt Bjerre-
Agora temos uma rua atraente, com Louise, na entrada do centro da cidade, havia 62 mil traves- gaard, lançou um ambicioso plano de investimentos em in-
novas lojas”.
sias de bicicleta por dia em 1949 e apenas 8 mil em 1970. O fraestrutura e na construção de uma rede coerente. Às véspe-
A atenção aos detalhes pode ser
número hoje é de 48 mil... ras da conferência mundial sobre o clima prevista para ocorrer
observada na presença de lixeiras
Em 1965, a cidade relançou um projeto de rodovia que po- em 2009 em Copenhague – e que acabou fracassando –, o
orientadas no sentido do fluxo, na
Østbanegade, ou ainda nas barreiras deria ter desfigurado o distrito de Vesterbro, com doze faixas município assumiu o objetivo de alcançar a neutralidade do
especiais que permitem manter a de tráfego. “Felizmente, o município era pobre, não tinha re- carbono até 2025.
continuidade e a segurança do itine- cursos para isso”, conta Marie Kåstrup, chefe do programa de Também social-democrata, o sucessor de Ritt Bjerregaard,
rário durante grandes obras, na Rua ciclismo do município. “Note que a Dinamarca nunca teve in- Franck Jesen, que assumiu o cargo em 2010, continuou esse
Nygårdsvej. E a demanda inverte as dústria automobilística”, acrescenta Klaus Bondam. “Em mui- programa, com o apoio da oposição de direita. “Pode-se pen-
prioridades: no inverno, para satisfa- tos aspectos, estamos muito próximos de nossos vizinhos sar que defender a bicicleta é uma ideia de esquerda. Mas
zer o maior número possível de pes- suecos, mas eles têm dois fabricantes automobilísticos, a Vol- ela também é uma ferramenta muito eficaz para organizar a
soas, os serviços técnicos começam vo e a Saab, que tiveram enorme influência no planejamento cidade, a produtividade, o que atende às expectativas das
removendo a neve das ciclovias... urbano. Na França, há a Peugeot, a Renault, a Michelin...” pessoas de direita”, explica Klaus Bondam. “Hoje, esse tema
Tamanho sucesso atrai jornalistas
O projeto de rodovia urbana foi abandonado em 1972. O é praticamente um consenso, da extrema esquerda à extre-
e políticos. O presidente francês,
choque do petróleo do ano seguinte fez com que os ambien- ma direita – com nuances e mais algumas batalhas, por
Emmanuel Macron, não deixou de fa-
talistas pudessem ser mais amplamente ouvidos. Como em exemplo, a respeito do estacionamento.” Outra particularida-
zer um passeio de bicicleta pela cida-
de durante sua visita, em 29 de agosto. Berlim ou em Paris, grandes manifestações, “ciclorrevolu- de, que estamos muito longe de ver em Paris e nas outras
Mas a falta de interesse de muitos vi- ções”, foram repetidamente realizadas em frente à prefeitura. grandes cidades francesas: aqui, todos os vereadores andam
sitantes pelas razões profundas desse “A população de Copenhague queria acesso à sua cidade, às de bicicleta. (P.D.)
sucesso é intrigante. Prova disso são
os artigos publicados na imprensa
francesa em geral, ou as escolhas fei- cionais são adequadas ao longo de tacou o caráter secundário dessa fer- bem conservada, sombreada e não
tas, ao retornarem à França, por dois rios, canais, ferrovias ou em áreas pe- ramenta no livro que publicou em interfere na rota de pedestres adja-
políticos ambientalistas, Christophe riurbanas sem cruzamento. Nas ou- 2010: “As bicicletas compartilhadas cente. E surpresa: quando, após vá-
Najdovski, o “Senhor Bicicleta” de Pa- tras cidades francesas, a maioria das devem ser um elemento, entre outros, rios quilômetros, o ciclista cruza com
ris, e Yann Mongaburu, seu colega de “ciclovias” são apenas marcações no de uma estratégia para o desenvolvi- uma via, o semáforo imediatamente
Grenoble. chão ao lado dos carros estacionados: mento da cultura do ciclismo, não sua fica verde. Sensores sob o calçamen-
Durante a consulta apresentada “Entre as portas dos veículos e o trá- ponta de lança”.4 to detectam a chegada dos ciclistas.
no documento “Paris, capital do ci- fego de automóveis, o lugar mais es- Já o conceito de “rodovia para bi- O programa prevê a construção
clismo”, cinco tipos de infraestrutura túpido para colocar bicicletas”, exal- cicletas” (Supercykelstier) também de 750 quilômetros de supervias em
foram oferecidos aos parisienses. O ta-se Mikael Colville-Andersen em existe na Dinamarca, mas não no dez anos (2012-2022). O custo (300
modelo aprovado em Copenhague, sua obra de referência.3 centro da cidade. As autoridades da milhões de euros), embora significa-
chamado pelos serviços técnicos região da capital – 27 municípios, 1,7 tivo, representa apenas um vigésimo
franceses de “ciclovia de altura inter- OS VEÍCULOS DE AUTOATENDIMENTO milhão de habitantes – constataram do custo do projeto Fehmarn, um tú-
mediária entre calçada e faixa de ro- Além disso, Paris, seguida por muitas que o retorno da bicicleta estava nel rodoviário de 18 quilômetros em
lamento”, não estava entre eles... Ou- outras cidades, dedicou a maior parte ocorrendo fundamentalmente em construção entre o arquipélago de
tro exemplo: as autoridades de seus recursos financeiros às bici- Copenhague (600 mil habitantes): a Copenhague e a Alemanha. Um in-
privilegiaram as “rodovias para bici- cletas compartilhadas. O novo con- formação de uma malha ligando as vestimento que incentiva a prática
cletas” (Rua de Rivoli e Bulevar Sébas- trato da Vélib’ representa 600 milhões áreas periurbanas, para construir regular do ciclismo revela-se muito
topol, em Paris) ou as vias “Chrono- de euros em dinheiro público em uma verdadeira rede expressa de vias lucrativo quando seu retorno é calcu-
vélo” (Bulevar Agutte Sembat, em quinze anos, contra 150 milhões de para bicicletas, ainda precisava ser lado considerando-se não apenas os
Grenoble). A ideia é implantar vias bi- euros apenas no plano de investimen- feita. As primeiras conexões já atraem desdobramentos econômicos, mas
direcionais em avenidas que incluem to em bicicletas da prefeita Anne Hi- novatos, sendo um quarto deles ex- também os custos de saúde evitados,
muitos cruzamentos – um tipo de in- dalgo (2014-2020). Em Copenhague, -motoristas. Deve-se dizer que, quan- explica Sidsel Birk Hjuler, autoridade
fraestrutura banido em Copenhague esse serviço é limitado a 2 mil veícu- do só conhecemos os engarrafamen- responsável pelas questões relativas
há mais de vinte anos, pois é duas ve- los, destinados essencialmente a tu- tos, essas “superciclovias” permitem à mobilidade na região capital: “Em
zes mais perigoso que as vias laterais. ristas em estadias curtas, que não têm uma experiência completamente di- maio de 2018, fizemos uma análise
Os acidentes levaram Londres a des- tempo para alugar um veículo mais ferente de entrada na cidade. O itine- socioeconômica das rodovias para
truir esse tipo de infraestrutura na eficiente em uma das seiscentas lojas rário noroeste, por exemplo, atraves- bicicletas usando o padrão nacional
Torrington Place para adotar o mode- especializadas. O famoso arquiteto e sa a floresta de Vestkoven, longe do do Ministério das Finanças, que deve
lo de Copenhague. Mas as vias bidire- urbanista dinamarquês Jan Gehl des- tráfego de automóveis. A pista é larga, ser seguido quando se recebe dinhei-
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
28 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

ro do Estado.5 O retorno socioeconô- mo ocorre na França. Os deputados bairros, como o de Ejby, preveem sa viagem, ela voltou a falar”, conta.
mico da infraestrutura cicloviária, preferiram confiar nos ciclistas, que uma rede para bicicletas totalmente “Alguns dias depois, o diretor me li-
que é de 11%, excede em muito o de podem chegar a 45 quilômetros por distinta das vias motorizadas entre gou. Eu temi que ele fosse me contar
todos os outros tipos de investimen- hora quando não houver ninguém as áreas residenciais e as escolas. que ela havia morrido. Mas não! Ela
to: 3% para o metrô e 5,4% para o tú- por perto, mas devem reduzir a velo- A efetivação dessa forte vontade tinha contado aos outros residentes
nel Fehmarn”. cidade em outros lugares. Quem mo- política passa essencialmente por sobre a viagem e eles queriam fazer o
ra longe do centro ou teme o mau serviços técnicos avançados, compe- mesmo!” Embora esteja no centro, a
“NÃO É APENAS UM HOBBY” tempo também pode embarcar suas tentes, atentos aos usuários. Para li- bicicleta aparece aí como o veículo de
Esse método de cálculo também jus- bicicletas nos transportes públicos: derar essa equipe em Copenhague, a uma ambição que vai além da ques-
tifica a construção de muitas pontes e no trem, no S-Tog (trem regional) e escolha foi uma especialista em lite- tão dos deslocamentos urbanos.
passarelas na capital: “O estilo de vi- até no metrô, fora da hora do rush. ratura, não um engenheiro. A no- O passeio termina no restaurante,
da sedentário faz as mulheres perde- Como essa possibilidade é gratuita, a meação de Marie Kåstrup, que aca- no novo cais de madeira de Kalvebod.
rem sete anos de expectativa de vida; rede de transporte público viu seu bara de escrever uma tese sobre a Mais precisamente, um cykelkoken,
os homens, 6,9 anos”, explica Gitte número de usuários aumentar bas- cultura do ciclismo e a identidade um ciclorrestaurante de três rodas
Laub Hansen, encarregada do projeto tante. “A bicicleta utilitária precisa nacional da Dinamarca, reflete uma com uma geladeira, um fogareiro e
de atividade física e alimentação na ser levada a sério”, diz Sidsel Birk visão global: “Não se trata de cons- comida suficiente para atender cerca
Sociedade Dinamarquesa de Câncer. Hjuler. “Ela não é apenas um hobby truir ciclovias apenas para ter ciclo- de vinte pessoas, que comem de pé.
“Nos últimos quinze anos, descobri- ou uma moda dinamarquesa. Em vias”, explica. “Minha formação lite- Assim que a refeição termina, apro-
mos também seus vínculos com o muitos países europeus, não saímos rária me ajuda a manter a perspectiva veitando o lindo dia de verão, a maio-
câncer. Além disso, os convalescentes do lugar porque esse modo de deslo- geral de uma cidade melhor para o ria dos convivas entra no antigo por-
se recuperam muito melhor quando camento não é suficientemente leva- maior número possível de pessoas. A to despoluído para nadar, em pleno
praticam atividade física.” Marie Kås- do em consideração.” bicicleta é apenas uma ferramenta – coração da cidade. Decididamente,
trup completa: “Os benefícios em ter- E todos podem contribuir. Um muito eficaz se fizermos as escolhas em Copenhague se cultiva o gosto
mos de saúde pública são vinte vezes exemplo é a empresa Rambøll, locali- certas –, que deve ser adicionada ao pelos prazeres simples da vida. 
maiores do que a perda por acidentes. zada em Ørestad, 5 quilômetros ao transporte público, ao desenvolvi-
Temos de nos preocupar com os aci- sul do centro da cidade. Embora mento urbano, às práticas culturais, *Philippe Descamps é jornalista do Le
dentes, mas acima de tudo precisa- atendida por uma rodovia, pelo trem a todas as ações da cidade.” Monde Diplomatique.
mos promover o ciclismo”. e pelo metrô, ela incentivou seus fun- Para visitar o bairro histórico de
Um estudo recente mostra que os cionários a usar a bicicleta. Eles po- Christiania e os cais da ópera, mon- 1   S alvo indicação em contrário, todos os núme-
ciclistas dinamarqueses cometem dem seguir uma “rota verde”, longe tamos em um engraçado veículo de ros são de “Copenhagen City of Cyclists, The
Bicyle Account 2018” [Copenhague, cidade
muito menos infrações que os moto- do tráfego. Quando chegam, têm três rodas, com, na frente, um con- de ciclistas, Relatório do Ciclismo 2018], Co-
ristas, especialmente quando têm muitos lugares para estacionar, do la- fortável banco de dois lugares equi- penhague, maio 2019.
uma infraestrutura adequada.6 Entre do de fora quando o tempo está bom pado com capota retrátil para o caso 2   Frédéric Tallet e Vincent Vallès, “Partir de bon
matin, à bicyclette...” [Sair cedinho, de bicicle-
1995 e 2016, dobrou o número de qui- e dentro em dias de chuva. Uma ram- de chuva e cobertas para o caso de a ta...], Insee Première, n.1629, Paris, jan. 2017.
lômetros percorridos de bicicleta em pa dá acesso a um local com duzen- temperatura cair. No guidão do trici- 3   Mikael Colville-Andersen, Copenhagenize:
Copenhague, e o número de vítimas tos armários para roupas, secadores clo com assistência elétrica, Pernille The Definitive Guide to Global Bicycle Urba-
nism [Faça como Copenhague: guia definitivo
de acidentes caiu pela metade, com de sapatos, chuveiros e jatos para la- Bussone costuma visitar Finn Vikke, para o ciclourbanismo global], Island Press,
apenas um caso sério a cada 5,7 mi- var as bicicletas. que caminha com dificuldade, em Washington, DC, 2018.
lhões de quilômetros. Isso equivale a Muitas obras têm sido realizadas frente ao lar de idosos onde ele reside. 4   Jan Gehl, Pour des villes à échelle humaine
[Por uma cidade em escala humana], Écoso-
uma taxa de risco em queda livre, a fim de acompanhar esse sucesso, Saímos para um passeio de uma ou ciété, Montreal, 2012.
confirmando as conclusões de vários principalmente para melhorar o es- duas horas, com a sensação, para ele, 5   “Samfundsøkonomisk analyse af supercykels-
estudos internacionais: quanto mais tacionamento e evitar o acúmulo de de ter novamente “o direito de sentir tierne”, Incentive, Holte, 30 maio 2018.
6   “Cyklisters adfærd i signalregulerede Kryds”,
bicicletas, menos acidentes.7 bicicletas, por exemplo, perto de es- o vento no cabelo”, na altura da cal- Rambøll, Copenhague, 1º mar. 2019.
Para incentivar o tráfego de bici- tações de trem e metrô. Em escala na- çada, sem para-brisa... 7   C f. sobretudo Peter Jacobsen, “Safety in
cletas nos percursos periurbanos, ne- cional, a prática está em baixa nas A associação Cycling Without Numbers: More Walkers and Bicyclists, Safer
Walking and Bicycling” [Segurança em núme-
cessariamente mais longos, o Parla- áreas rurais, que têm pouca infraes- Age,8 que fez com que eles se conhe- ros: quanto mais pedestres e ciclistas, mais
mento dinamarquês decidiu, em trutura. Uma atenção especial é dada cessem, foi criada após uma reunião seguro é caminhar e pedalar], Injury Preven-
junho de 2018, não limitar a velocida- às crianças, cuja prática também está em 2012 entre Ole Kassow e uma mu- tion, v.9, n.3, Londres, set. 2003.
8   Para a seção francesa: <https://avelosansa-
de das bicicletas eletricamente assis- em baixa em nível nacional, como em lher de 84 anos que queria rever luga- ge.fr>; para a brasileira, <https://pedalando-
tidas a 25 quilômetros por hora, co- todos os países europeus. Os novos res marcantes de sua vida: “Após nos- semidade.com.br>.

Trump: primeiro tempo Ensino superiore e formação Contracorrente


Trump personifica a figura para o trabalho Sebastião Velasco e Cruz reúne
do político autoritário, com A partir da análise do textos que ajudam na compreensão
pronunciamentos exemplo dos Estados da dissonante realidade sociopolítica
marcados por xenofobia, Unidos, Reginaldo Moraes brasileira deste segundo decênio do
racismo, machismo, investiga o universo das século XXI, jogando luz, entre outros
destruição do estado de rápidas metamorfoses no temas, sobre o processo de gradual
bem-estar social e desprezo mundo do trabalho enfraquecimento e, afinal,
por qualquer ideia de contemporâneo, geradas, destituição da presidente Dilma
alteridade. Organizado por principalmente, pela Rousseff.
Neusa Bojikian e Sebastião revolução tecnológica em
Velasco e Cruz, este livro curso, em que novas
analisa como se deu sua habilidades são necessárias
ascensão política, suas para a codificação das
implicações e a tarefas. Produzir conteúdo
consequente deterioração Compartilhar conhecimento.
dos processos Desde 1987.
democráticos.
www.editoraunesp.com.br
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 29

A CONQUISTA DOS PARQUES NACIONAIS AFRICANOS

Proteção da natureza,
fortavelmente pagos (quase 300 euros
no Benin, onde o salário médio men-
sal é de 65 euros), recebem regular-
mente treinamento paramilitar for-

safáris e bons negócios


necido por ex-oficiais sul-africanos,
franceses ou israelenses. A AP tam-
bém concede bônus aos guardas flo-
restais mais zelosos – os que fizeram
o maior número de interpelações ou
Antigo apanágio das companhias turísticas ocidentais, a natureza africana é cada vez descobriram a maior quantidade de
mais cobiçada pelas organizações locais, especialmente pela sul-africana African Parks. armadilhas para animais. A cada
ano, a entidade submete todos os seus
A associação já administra dezesseis reservas do continente, misturando proteção funcionários a uma avaliação.
ambiental e espírito empreendedor. Sua última conquista: o Parque de Pendjari, no
Benin, onde turistas franceses foram sequestrados em 2019 OS “SALVADORES BRANCOS”
O perfil de Jean-Pierre Wilhelm diz
POR JEAN-CHRISTOPHE SERVANT*, ENVIADO ESPECIAL muito sobre o modelo de gerencia-
mento da AP. Graduado na École de
Mines de Nancy, ele foi ex-aspirante a
oficial da reserva e serviu nas forças
da Organização do Tratado do Atlân-
tico Norte (Otan) para o Kosovo
(KFOR), depois supervisionou por oi-

“O
que me fascina no traba- chegamos à era em que as ONGs as- te a fornecer todos os meios, inclusive to anos a criação e a exploração de di-
lho de um diretor de par- sumem diretamente o volante, esten- militares, para recuperá-los, regene- versas instalações de mineradoras na
que é estar entre os leões, dendo o espírito corporativo e a preo- rar sua fauna e apoiar as comunida- África, uma mina de ferro na Mauritâ-
como na série Daktari”,1 cupação com a rentabilidade ao des do entorno. Depois de se espalhar nia e jazidas de ouro em Burkina Faso.
confessa Jean-Pierre Wilhelm, visi- patrimônio natural africano. pela África meridional (Malawi e O universo do extrativismo, devasta-
velmente emocionado. Da mesa onde Os parques administrados pela Zâmbia), a entidade foi encarregada dor para o meio ambiente, parece ser
ele almoça com sua equipe, podemos entidade – um total de dezesseis no da gestão de diversas reservas locali- o exato oposto das convicções apre-
observar uma paisagem de savana e continente – podem ser apreciados zadas nas zonas cinza de países em sentadas por seu novo empregador.
colinas que se estende por mais de por uma clientela rica, majoritaria- reconstrução, da República Centro- Mas, para Wilhelm, as duas ativida-
4.800 quilômetros quadrados. Desde mente ocidental, capaz de pagar via- -Africana à República Democrática des têm em comum o fato de “estarem
junho de 2019, a área é o domínio des- gens, guias e estadias em hotéis de do Congo. Seus guardas florestais baseadas no apoio das comunidades
se sexagenário alsaciano. Ele admi- luxo (lodges), nos quais uma noite muitas vezes são “a única força esta- locais”: “Se as comunidades são mar-
nistra, em nome da ONG sul-africana pode custar mais de US$ 600. No Be- bilizadora em algumas das regiões ginalizadas por essas atividades, rapi-
African Parks (AP), o Parque Nacional nin, a AP pretende construir um lod- mais remotas e carentes da África”, damente tudo pode acabar indo por
de Pendjari, uma reserva da biosfera ge cinco estrelas que se estenderá so- enfatiza Erik. Em campo, a entidade outro caminho”, explica.
localizada no noroeste do Benim, a bre uma zona de safári exclusiva, organiza a luta contra a caça ilegal e o Quase 200 mil pessoas vivem ao
cerca de 40 quilômetros de estrada de reservada a seus mais ricos clientes. tráfico de marfim, que muitas vezes redor do Pendjari. Para motivar seus
terra da cidade de Tanguieta. Para A ONG também trabalha com o turis- financiam grupos sanguinários, co- 230 funcionários, entre os quais uma
chegar a esse santuário da vida ani- mo de caça, que já garante ao parque mo o ugandês Exército de Resistência centena de guardas ambientais re-
mal, cuja concessão foi dada à AP pe- beninense – dotado de três reservas do Senhor3 ou as milícias Janjaweed, cém-contratados e quatro oficiais das
lo governo do Benin em maio de 2017, privadas para caça esportiva de gran- do Sudão do Sul. Ela está, portanto, na águas e florestas destacados pelo Es-
é preciso atravessar os campos de al- des animais, como o javali-africano vanguarda da militarização dos par- tado do Benin, o diretor do Pendjari
godão e as roças dos camponeses. – uma renda equivalente àquela gera- ques africanos. À frente, segundo seu gosta de citar uma máxima que ficaria
Último refúgio para elefantes e da pelos safáris fotográficos. Mas a site, “do mais vasto e diversificado muito bem em um manual de desen-
leões da região, o Parque de Pendjari, entidade poderia entrar no mercado, portfólio de ecossistemas africanos volvimento pessoal: “Sozinhos, va-
batizado em homenagem ao rio que o em plena expansão, da transforma- administrados por uma ONG” – de- mos mais rápido; juntos, vamos mais
acompanha, pertence à vasta área ção de plantas medicinais, uma vez zesseis parques em dez países da Áfri- longe”. De qualquer forma, a política
protegida transnacional conhecida que o Pendjari está cheio de espécies ca subsaariana, cobrindo uma super- de tolerância zero da AP contribuiu
como complexo W-Arly-Pendjari da farmacopeia tradicional cujas mo- fície total de 12 milhões de hectares –, para “encher a prisão de Natitingou”,
(WAP), que inclui o Parque de Arly, léculas ainda não foram patenteadas. a organização emprega 5 mil pessoas, principal cidade do departamento,
em Burkina Faso, e o Parque W, dis- Em suma, proteger e monetizar a na- entre elas mil guardas ambientais, o mas também para “estreitar laços com
tribuído entre Burkina Faso, Níger e tureza, com uma política de tolerân- maior contingente de guardas flores- os habitantes do entorno do parque”,
Benin. Comparado aos outros par- cia zero em relação aos infratores. tais privados do continente. observa Jérome Sambini, jornalista da
ques do complexo, ambos adminis- O slogan da AP dá o tom: “Espírito As façanhas da AP no campo da Nanto FM, estação de rádio comuni-
trados pelo poder público, o Pendjari de negócio a serviço da preservação reintrodução de espécies ameaçadas tária local. Em fevereiro de 2018, um
poderia ser considerado “o menos de- da natureza”. A associação sul-africa- de extinção já lhe renderam elogios ano após a chegada da ONG, caçado-
gradado”, orgulha-se Peter Fear- na é pioneira em parcerias público- da imprensa anglo-saxã, inclusive da res tradicionais, desafiando as proibi-
nhead, diretor da AP. -privadas dedicadas a “proteger cada revista norte-americana National ções, organizaram uma caçada no in-
Uma ONG dirigindo um parque um dos onze biomas – meio ecológico Geographic, um de seus doadores.4 A terior do parque. Os guardas florestais
nacional africano? Há não muito amplo e homogêneo – do continente”, ONG também soube cercar-se de fi- mandaram as motocicletas dos infra-
tempo, as associações contentavam- explica o diretor regional para a Áfri- guras influentes, como o príncipe tores para o pátio da delegacia de Tan-
-se em arrecadar fundos voltados à ca ocidental, Erik Mararv, sueco nas- Henry (“Harry”) de Sussex, seu presi- guieta. Em represália, centenas de
administração de reservas nacionais cido e criado “no mato”, na República dente honorário desde o final de 2017, pessoas saquearam o escritório da AP
– correndo o risco de serem acusadas, Centro-Africana. Seguindo um es- e o norte-americano John Scanlon, e queimaram uma dúzia de veículos.
como o World Wildlife Fund (WWF), quema já bem estabelecido, a AP assi- ex-diretor da União Internacional pe- No mesmo ano de 2018, conta ou-
de financiar abusos de guardas flo- na acordos de longo prazo – vinte la Conservação da Natureza (IUCN), tra fonte de Tanguieta, guardas flo-
restais.2 Com a AP, criada há vinte anos, em média – com os Estados, que seu embaixador mundial. À sombra restais “abateram, sem consultar os
anos pelo bilionário holandês Paul mantêm a soberania sobre os par- desse conselho de “salvadores bran- pastores fulas, um grupo de pelo me-
Fentener van Vlissingen (ler boxe), ques, enquanto a ONG se comprome- cos”, os guardas florestais da AP, con- nos 350 cabeças de gado ilegalmente
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
30 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

presentes no parque”. Dependendo

© Creative Commons
da estação, até 10 mil cabeças de ga-
do podem fazer a migração através
do parque em direção ao sul. A jorna-
lista beninense Flore Nobime conta
que, “para as comunidades que vi-
vem no entorno do Pendjari, tem se
tornado cada vez mais complicado
acessar os objetos de culto localiza-
dos no parque, usados principalmen-
te para resolver problemas de saú-
de”.5 As mesmas dificuldades são
encontradas para realizar a retirada
da ráfia e do bambu, utilizados para a
construção de telhados, ou então pa-
ra fazer a coleta de plantas e raízes
medicinais que compõem a farmaco-
peia tradicional. Já a carne de ani-
mais selvagens, como a cutia, um
grande roedor que foi alvo da caça
ilegal no parque, está cada vez mais
rara, portanto mais cara.
Não é a primeira vez que as ativi-
dades da AP provocam polêmica.
“Em 2004, a AP causou um alvoroço ONGs assumem a administração de parques, estendendo o espírito corporativo e a preocupação com a rentabilidade
por estar envolvida com o desloca-
mento de milhares de nômades da et- Não há evidências formais que afirmações como: “Este parque é um mundo entrava sem nenhum contro-
nia mursi que viviam no Parque Na- permitam vincular o “fortalecimento orgulho nacional, e nós estamos aqui le”, conta Adamou Akpana, presiden-
cional de Omo, na Etiópia, ou em seus das capacidades de manutenção da com vocês”, ou: “Hoje eu digo: sou te do Sindicato dos Guias e Operado-
arredores”, recorda Bram Büscher, ordem” – militarização – no Pendjari africano”. res Turísticos do Destino Pendjari.
pesquisador holandês da área da eco- ao drama de maio de 2019. Mas os ris- Criado em 1961 em uma antiga área
logia política, especializado na histó- cos eram conhecidos. Três meses an- “ORGANIZADOS EM de caça da administração colonial, o
ria dos parques da África meridional tes do sequestro – seguido pela classi- MODELO MILITAR” parque foi confiado, em 1996, ao Cen-
e no estudo de sua comercialização. A ficação do Pendjari como zona Para o presidente do Benin, Patrice tro Nacional de Gestão das Reservas
ONG foi obrigada a sair da Etiópia. vermelha pelo Ministério das Rela- Talon, as apostas são altas. O homem de Fauna (Cenagref) e às Associações
“Enquanto as comunidades vizinhas ções Estrangeiras da França –, uma de negócios que construiu sua fortu- de Vilas para a Gestão das Reservas de
não forem diretamente envolvidas na nota do Institute for Security Studies, na no setor do algodão transformou o Fauna do Pendjari (Avigref). Por meio
gestão de seus parques”, comenta um think tank sul-africano sediado Parque de Pendjari no principal pro- de reuniões de concertação, foi possí-
Büscher, “a AP estará perpetuando o em Pretória, havia lançado o seguinte jeto de seu programa de desenvolvi- vel flexibilizar as condições de acesso
modelo desenraizado e neocolonial alerta: “As ações de prevenção da mento e investimento, que ganhou o da população do entorno a determi-
dessas ‘fortalezas de preservação ameaça extremista no Benin devem nome de “Benin Revelado” e se baseia nadas partes da reserva, facilitando a
ambiental’, normalmente destinadas levar em conta a existência de confli- fundamentalmente no turismo. Elei- entrada pontual, por exemplo, para
a uma clientela branca.” Em seu es- tos locais, em particular aqueles rela- to em 2016, ele descobriu a AP duran- rituais. Os moradores também po-
critório no Pendjari, Wilhelm reco- cionados à gestão dos recursos fun- te uma viagem oficial a Kigali, em diam cultivar a terra, dar de beber aos
nhece sem muita convicção a “difi- diários e dos parques nacionais”.7 Um agosto de 2016. O presidente não es- animais, pescar e caçar, em uma es-
culdade cultural de impor um dos guias do Pendjari confessa que se conde sua adesão ao modelo liberal- treita zona de amortecimento em tor-
modelo de gestão anglo-saxão, pro- pergunta sobre os motivos que leva- -autoritário personificado por Paul no do parque, a “zona de ocupação
veniente da África do Sul, em terras ram ao assassinato de seu colega: “Te- Kagamé, presidente de Ruanda, onde controlada”. “Mas em 2011”, prosse-
da África francófona”, e em seguida ria sido um ato de vingança?”. Uma a ONG faz desde 2010 a cogestão do gue Adamou, “as relações entre as
esclarece: “Mas começamos a ser coisa é certa: nessa área de fronteira, Parque Nacional de Akagera. Ex-de- Avigref e o Cenagref começaram a se
mais tolerantes com os pescadores guardas florestais e turistas podem putado do partido de oposição Res- desgastar, enquanto a ‘caça ilegal ad-
que vêm ao parque”. passar a ser alvos simbólicos para taurer l’Espoir [Restaurar a Esperan- ministrativa’, orquestrada por alguns
O diretor também precisa lidar alianças circunstanciais entre jiha- ça], Guy Dossou Mitokpè observa: “A guardas florestais, se intensificava. O
com uma situação de segurança ten- distas, bandos que atacam nas estra- instalação da African Parks no Benin Pendjari virou então um mercado a
sa. No início de maio de 2019, quando das e traficantes transfronteiriços. foi realizada sem nenhuma transpa- céu aberto para grandes comercian-
ele ainda não havia assumido o cargo, Segundo um de seus guardas flo- rência, sem envolver os legisladores, tes da região que tinham relações
dois turistas franceses que visitavam restais, o posto de segurança do Par- sem licitações públicas e sem que pu- com o mundo político. E, assim como
o Pendjari foram raptados por um que de Pendjari está equipado com déssemos ver uma cópia do contra- os animais, as madeiras valiosas se
grupo “de bandidos”. Encontrados “uma tecnologia mais sofisticada do to... Isso levanta muitas questões. Um tornaram objeto de tráfico.”
por meio de seus telefones celulares e que aquela utilizada pelas forças ofi- parque nacional, com seu próprio ae- Com a bênção do governo do Be-
em seguida neutralizados em Burkina ciais do Benin”. “Se houver um se- roporto, onde é possível fazer o que se nin, a AP excluiu o Cenagref do Pend-
Faso pelas forças especiais francesas, gundo incidente aqui, será o fim do desejar, não pode ser um enclave que jari, fez uma limpeza nos quinze
os sequestradores teriam tido a inten- Pendjari”, justifica Wilhelm. “Agora opera sem relação com o Estado do “guardas florestais pouco treinados”
ção de vender seus reféns ao grupo estamos organizados em um modelo Benin”. A AP não se cansa de alimen- e nos demais guardas florestais, bus-
jihadista Ansarul Islam, composto militar, com uma prioridade: inteli- tar as diatribes da oposição com o cando entre os moradores das vilas
por fulas, que surgiu no Mali em 2016.6 gência. Pagamos os moradores do presidente Talon. do entorno seus novos “guardas am-
O assassinato, pelos sequestradores, entorno para nos fornecerem infor- Em Tanguieta, os profissionais do bientais”. A “limpeza” também teve
de Fiacre Gbédji, de 29 anos, o guia mações. Como no xadrez, é preciso turismo admitem ter sentido um alí- um aspecto mais político. Em Coto-
beninense que acompanhava os tu- estar sempre um passo à frente.” O vio quando se anunciou a chegada nou, capital econômica do país, 700
ristas franceses, causou intensa emo- diretor sabe que precisa do apoio da dos sul-africanos. “Eu chorava quase quilômetros mais ao sul, o capitão
ção no Benin, que se viu pela primeira população do Benin, e procura tocá- todo dia. O parque estava afundando Patrice Trekpo espera desde 2017 ser
vez diante de um crime como esse. -los por meio do patriotismo, com com a amplitude da caça ilegal. Todo reintegrado ao serviço público. Na-
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 31

quele ano, o oficial do Exército e se-


cretário-geral interino do Sindicato
Nacional das Águas, Florestas e Caça UM FUNDADOR COM UM PASSADO CONTURBADO
(Syna-EFC) denunciou no canal da
Golfe TV Africa a “privatização pro- Vindo de uma rica família de industriais holandeses, ex-líder do conglomerado
gramada do Pendjari” e as “cláusulas de energia SHV Holdings, que negociava com o regime do apartheid, Paul Fente-
de não ingerência” inscritas na con- ner van Vlissingen (falecido em 2006) fundou a African Parks (AP) em 1999. A O olhar da cidadania
cessão, que proibiam os agentes das ideia teria surgido após um jantar de gala na casa de Nelson Mandela, na compa-
forças armadas das águas e florestas nhia da rainha Beatrix da Holanda, onde se falou muito sobre o futuro dos parques
de patrulhar o parque. Após ser dis- nacionais sul-africanos. Para o bilionário, foi a oportunidade perfeita de melhorar
pensado, enfrentar sessenta dias de sua reputação, manchada pelas atividades que praticou durante o tempo da se-
prisão e passar pelo conselho disci- gregação. Originalmente criada como uma empresa comercial, em 2005 a AP
plinar, o oficial acabou demitido no
Conselho de Ministros, por ter se co-
trocou esse estatuto pelo de ONG, interessada em atrair mais facilmente os doa-
dores (governos, organizações internacionais, fundações, patrocinadores etc.).
Na luta
locado “em estado de rebelião ao in- Os homens e as mulheres de negócios dedicados à filantropia verde dominam
citar a sedição dos membros do cor- seu conselho de administração sul-africano, a começar por Robert-Jan van Ogtrop,
po ao qual pertence”. No início de
junho de 2019, a Confederação Sindi-
o presidente da entidade, associado ao fundo de investimento na agroindústria
Phatisa; o banqueiro sul-africano Ted Woods; ou ainda a ruandesa Rosette Chantal pela
cal de Trabalhadores do Benin (CS- Rugamba, fundadora da Songa Africa, uma empresa de turismo de luxo. Na Euro-
TB) apresentou queixa junto à Orga- pa, nos Estados Unidos e na Suíça, as fundações da African Parks levam a boa
nização Internacional do Trabalho
(OIT) contra o governo e contra o
palavra e organizam a coleta de apoio financeiro. Samuel Robson Walton, que pre-
sidiu a cadeia de lojas de propriedade familiar norte-americana Wal-Mart, o maior construção
Parlamento beninense por “violação empregador privado do mundo, é um de seus generosos apoiadores. (J.-C.S.)
dos direitos e das liberdades dos tra-
balhadores”. “Mas poucos de nós
apoiam Patrice Trekpo, mesmo entre
os funcionários das águas e florestas,
um dos últimos corredores que per-
mitem a passagem de elefantes?”.8
obter a concessão do Parque Nacional
do Iona, no sudoeste de Angola. No
de uma
que temem represálias”, lamenta An- Benin e no Níger, a concessão do par-

sociedade
selme Amoussou, secretário-geral da UMA CERCA ELETRIFICADA que transfronteiriço W seria apenas
Confederação dos Sindicatos Autô- DE 92 KM uma questão de meses. Quanto aos
nomos do Benin (CSA-Benin). Sem se preocupar com conflitos, Va- moradores do Pendjari, em breve eles
Apoiada pela nata do capitalismo lentine preside também o fundo de verão a fronteira sul do parque ser

mais justa,
filantrópico global (ver boxe), a AP investimento Phatisa, voltado para a adornada com uma cerca eletrificada
não gosta nada de sindicatos. Em agroindústria africana. Em associa- de 92 quilômetros, fabricada com ma-
Johanesburgo, seu conselho de admi- ção com o Commonwealth Develop- terial importado da África do Sul. 
nistração cheira ao mundo dos negó- ment Group (fundo britânico de fi-
cios. Um de seus membros, Valentine nanciamento do desenvolvimento) e *Jean-Christophe Servant  é jornalista.
Chitalu, é um dos homens mais ricos
da Zâmbia. “Nos anos 1990, ele era di-
com o Proparco (banco da Agência
Francesa de Desenvolvimento), o 1   S érie de televisão da década de 1960 que
solidária e
retor-geral da Zambia Privatisation Phatisa é acusado de ter investido na mostra o cotidiano de um veterinário no Quê-
nia.
Agency [Agência de Privatização da produção de óleo de palma do grupo

sustentável.
2   Tom Warren e Katie J. M. Baker, “WWF funds
Zâmbia], agência encarregada da canadense Feronia na República De- guards who have tortured and killed people”
venda de cerca de 230 empresas esta- mocrática do Congo (RDC), forte- [WWF financia guardas que torturaram e ma-
taram pessoas], Buzzfeed, 4 mar. 2019. Dis-
tais”, resume um jornalista zambiano mente contestado pelas comunida- ponível em: <www.buzzfeednews.com>.
que prefere permanecer anônimo. “O des locais. Em julho de 2019, um 3   Ler Anouk Batard, “Le lobby évangélique à
ponto é que Valentine participou dos membro da Réseau d’Information et l’assaut de l’Ouganda” [Lobby evangélico ata-
ca Uganda], Le Monde Diplomatique, jan.
conselhos de administração de algu- d’Appui aux ONG Nationales [Rede de 2008.
mas das empresas que ele próprio Informação e Apoio às ONGs Nacio- 4   C f. David Quammen, “To save wildlife, African
ajudou a privatizar, ou chegou a pre- nais, Riao-RDC] foi morto por um se- governments turn to private management”
sidir esses conselhos. Foi o que acon- gurança do Feronia.9 Peter Fear-
[Para salvar a vida selvagem, governos africa-
nos recorrem a gestão privada], National
Quartas, às 17h,
teceu quando o Estado zambiano fez nhead, chefe da AP, limita-se a dar Geographic, 12 nov. 2019. Disponível em: Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM
a concessão dos parques nacionais de explicações tão genéricas quanto <www.nationalgeographic.com>.
5   C f. Flore Nobime, “Difficultés d’accès aux res- Ribeirão Preto: 107,9 FM)
Liuwa e Bangweulu à African Parks.” cautelosas: “Essas contradições são sources: grincements de dents autour de la
De fato, o milionário integrava o inerentes ao ser humano. Todos acre- Pendjari” [Dificuldades de acesso aos recur-
conselho de administração da Zam- ditam que a riqueza que geraram po- sos: ranger de dentes em relação ao Pendja-
ri], L’Evénement Précis, Cotonou, 9 out. 2019.
Quartas, à meia-noite
bia Wildlife Authority (Zawa), res- de ser usada para outros fins e ter 6   Ler Rémi Carayol, “En Afrique, le spectre d’un TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da
ponsável pelos parques nacionais do efeitos positivos”. De qualquer forma, djihad peul” [Na África, o fantasma de uma
Vivo Fibra e 186 da Vivo.
país. “Foi por meio dele que a AP con- entre as fadas da AP, a preocupação jihad fula], Le Monde Diplomatique, maio
2017.
seguiu essas concessões”, afirma o ambiental nunca parece estar muito 7   C f. Michaël Matongbada, “Can Benin protect
jornalista. Hoje, uma das empresas longe do bolso, servindo apenas para itself from terrorism in the region?” [O Benin é
de Valentine, a Mukuba Property De- consolidar sua imagem de marca no capaz de se proteger do terrorismo na re-
gião?], Institute for Security Studies, 8 mar.
velopment Company, planeja cons- continente enquanto se desenvolvem 2019. Disponível em: <https://issafrica.org>.
truir um hotel quatro estrelas, um redes lucrativas. “Todos querem que 8   Citado por Dan Nosowitz, “In Angola, conser-
vationists make the case for a massive new
complexo de golfe e um centro de essas áreas sejam protegidas, mas
national park” [Em Angola, conservacionistas observatorio3setor
conferências dentro do Parque Na- acima de tudo querem ser eles os res- argumentam em favor de mais um enorme par-
cional de Mosi-oa-Tunya, às margens ponsáveis por essa ação e que todo que nacional], Atlas Obscura, 15 jan. 2019.
das Cataratas Vitória, classificadas mundo saiba disso”, lembrou uma Disponível em: <www.atlasobscura.com>.
9   C f. Karen McVeigh, “UK development bank observatorio3setor
como Patrimônio Mundial pela Or- pesquisa realizada em Angola pelo si- launch inquiry after murder of Congolese acti-
ganização das Nações Unidas para a te norte-americano Atlas Obscura.10 vist” [Banco de desenvolvimento do Reino
Ciência e a Cultura (Unesco). Defen- Em 2020, a AP deve somar quatro Unido inicia investigação após assassinato de
ativista congolês], The Guardian, Londres, 27 www. observatorio3setor.org.br
sores da natureza e moradores se per- novas concessões à sua lista. Acredi- set. 2019.
guntam: “Esse projeto acabará com ta-se que a entidade esteja prestes a 10  Dan Nosowitz, op. cit..
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
32 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

IMPACTOS AMBIENTAIS E HUMANOS DO CRESCIMENTO

Explosões químicas
gem do tufão Muifa, milhares de
habitantes exigiram o deslocamento
de uma usina ameaçada pelas ondas
no bairro de Fujia, que deveria ter si-

em cadeia na China
do evacuado em razão de um risco de
poluição por para-xileno, um líquido
inflamável. As autoridades haviam
ordenado seu fechamento imediato.
O medo de uma catástrofe é constan-
Os governantes chineses precisam encarar uma contradição: a indústria te entre os chineses. Desde 2008, uni-
química é poluente e perigosa para a população, mas constitui um versitários e cientistas não param de
chamar a atenção para os riscos que
dos motores fundamentais do crescimento apresentam as empresas químicas
próximas de casas, escolas, estações
POR MOHAMED LARBI BOUGUERRA* de trem etc. Calcularam que, no perí-
metro de Binhai, o “limiar de aciden-
te”, ou seja, o nível de estoque de pro-

E
m 21 de março de 2019, no mo- uma nova derrota das medidas toma- um do setor, é o terceiro grupo mun- dutos perigosos, seria atingido em
mento em que o presidente chi- das após o drama de Tianjin, que em dial, segundo a Forbes. Em maio de 2015, estimulando então explosões
nês Xi Jinping começava sua vi- 12 de agosto de 2015 havia ocasiona- 2017, a explosão de um reservatório em cadeia.5
sita à Europa, uma explosão do 173 mortes e quase oitocentos feri- de benzeno em sua unidade de Xan- Um relatório do Greenpeace esta-
fazia 78 vítimas e 566 feridos na usina dos, e obrigou milhares de pessoas a gai matou seis operários. beleceu que, apenas no período de ja-
de produtos químicos da Jiangsu abandonar seus lares. A deflagração, Na abertura do congresso do Par- neiro a agosto de 2016, a China regis-
Tianjiayi Chemical (JTC), em Yan- qualificada por alguns como a “Seve- tido Comunista Chinês (PCC), em 18 trou praticamente um acidente
cheng (província de Jiangsu), 250 so chinesa”,2 havia reduzido a pó uma de outubro de 2017, Xi Jinping reco- químico por dia, com um total de 199
quilômetros a noroeste de Xangai. A grande porção do próspero Novo Dis- nheceu: “Estamos diante de uma mortos e quatrocentos feridos.6 Se-
primeira do ano do Porco... que co- trito de Binhai, uma zona econômica grande contradição entre um desen- gundo o governo, o número de mor-
nheceu muitas outras.1 de desenvolvimento estabelecida pe- volvimento desequilibrado e inade- tes no trabalho, somando todos os se-
Aberta em 2007, próxima a uma lo poder em torno de uma das cidades quado e a aspiração dos chineses por tores, passou de 140 mil em 2002 para
estação de trem, a unidade emprega- portuárias mais ativas do país, que uma vida melhor”. O presidente – ele 34 mil em 2018. Mas Sun Huashan,
va 195 pessoas e fornecia ácido m-hi- conta com 15 milhões de habitantes.3 próprio engenheiro químico forma- vice-ministro encarregado da gestão
droxibenzoico para a produção de O centro nacional de sismologia ha- do na prestigiosa Universidade de emergências, confirma que, se “na
parabenos (conservantes de cosméti- via constatado um tremor de terra de Tsinghua de Pequim – parece ter indústria do carvão a situação me-
cos, fungicidas e antibióticos), polí- magnitude de 2,2 na escala Richter aprendido a lição com a violenta ma- lhorou, os grandes acidentes no setor
meros termoplásticos e anisol para a nas vizinhanças da usina. Oitenta e nifestação popular de Dalian, na me- químico tendem a aumentar”. Entre
perfumaria. Após a cidade ter sido nove casas foram demolidas e seus tade de agosto de 2011. Após a passa- janeiro e agosto de 2019, “três aciden-
encoberta de fumaça cujo impacto habitantes precisaram ser realoca-
no ar e na água inquietava a popula- dos. Na memória coletiva, o horror
ção, a prefeitura de Yancheng preci- vivido naquele dia fatídico se expri-
sou realizar testes. O Departamento me por meio de dois números intei-
de Proteção Ambiental da província ros: 8/12 (“12 de agosto” em inglês).
detectou em um curso de água vizi-
nho a presença de produtos tóxicos UM ACIDENTE POR DIA
em concentrações 111 vezes superio- Tais explosões em cadeia evidenciam
res às normas nacionais. uma das consequências do boom
O comitê criado pelo Conselho de econômico do Império do Meio. A in-
Estado (conselho de ministros) após dústria química é crucial para o cres-
essa tragédia estimou que as autori- cimento do país; porém, com a urba-
dades locais de Jiangsu haviam “fal- nização galopante, as zonas
tado com seriedade” na aplicação das residenciais se aproximaram dos lo-
leis. Revelou que a JTC havia sido au- cais perigosos e os cercaram. Em
torizada a prosseguir com suas ativi- 2001, uma regra havia sido introduzi-
dades apesar das diversas multas por da: esses locais deveriam ficar a pelo
desrespeito às medidas de seguran- menos 1 quilômetro dos espaços pú-
ça. Em abril de 2019, a usina foi fecha- blicos. Sete anos depois, um relatório
da. Duas dúzias de chefes da empresa oficial dos serviços de incêndio havia
e funcionários foram presos, ao pas- concluído que tal regra era “irrealista
so que em novembro dois vice-gover- e, portanto, difícil de aplicar”,4 sendo
nadores da província receberam uma amplamente violada.
advertência disciplinar. Tais desastres desgastam a ima-
A explosão de Yancheng ocorreu gem do governo conduzido por Xi
quatro meses após a do local de pro- Jinping, que desejava ficar conhecido
dução de cloreto de vinila, da empre- pela eficácia de suas ações e por sua
sa estatal ChemChina, que causou 23 luta contra a corrupção. Traduzem o
mortes em 28 de novembro de 2018 custo elevado de uma industrializa-
em Zhangjiakou, na província de He- ção rápida em um sistema político fe-
bei (a cidade deve receber os Jogos chado; por isso, se a economia da
Olímpicos de Inverno em 2022); oito China foi impulsionada para o se-
meses após a do complexo da Hangda gundo lugar mundial, isso se deve em
Technology em Yibin, na província de grande parte à sua indústria química,
Sichuan, que fez dezenove vítimas que representa sozinha 13,8% do PIB.
em 12 de julho de 2018. Ela assinala A empresa estatal Sinopec, número
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 33

tes graves ocasionaram 103 mortes” Doze empregados e membros do cor- substâncias listadas no “catálogo de visando desenvolver as indústrias de
– sem falar de todos os outros, menos po administrativo foram presos. En- produtos químicos perigosos”. As ponta como as de baterias de fluxo de
impressionantes.7 Tais vítimas são, tre eles, o proprietário principal da empresas têm até o fim de 2020 para vanádio, as células de combustível,
em sua maioria, empregados pobres Rui Hai (fundada em novembro de se mudar para os parques governa- supercapacitores...
de origem rural. A situação é tama- 2012), Yu Xuewei, membro do conse- mentais – 2025 para aquelas que li- A mudança de local das usinas se
nha que as empresas poupadas das lho de administração do conglome- dam com produtos menos perigosos. faz acompanhar de outra, difícil e
explosões e acidentes comemoram rado estatal Sinochem, mas que ha- O Conselho de Estado cobrou das au- mal vivida: a da mão de obra. No pre-
publicamente e com alegria seus via escondido essa aquisição, bem toridades provincianas e municipais fácio de uma coletânea de poemas do
“milhões de homens-horas sem feri- como seu sócio, Dong Shexuan. O pai que as ajudem financeiramente, bem operário Gui Jinniu, o poeta Yang
mentos que ocasionam pausas no deste último era chefe da polícia do como lhes confiou o remanejamento Lian descreve a enorme migração
trabalho (Lost Time Injury, LTI)”, co- porto e teria facilitado a obtenção de de trabalhadores ou a formação pro- operária como “proletários nômades”
mo foi o caso da fabricante de produ- licença por parte dos serviços de in- fissional daqueles que não podem da China: “Um mundo de mudos; de
tos cosméticos Jahwa Project, de cêndios e do meio ambiente. trabalhar nos novos locais.9 Por ora, cidades abandonadas por uma imen-
Xangai, em agosto de 2016. nenhum balanço foi efetuado. surável horda de jovens que viram as
Como os da JTC em Yancheng, os A nova regulamentação tem pou- costas para suas casas, para ‘seus la-
entrepostos da Rui Hai International A deflagração havia co impacto nas grandes unidades de res’, em direção a cidades desorienta-
Logistics em Tianjin ficavam muito reduzido a pó uma gran- petroquímica, de produção de polí- das, estéreis como desertos, para um
próximos das habitações. Além disso, meros ou de intermediários, já dota- ambiente abjeto de trabalho nas clas-
na noite do sinistro, em 12 de agosto
de porção do próspero das de meios de controle de emissões ses mais baixas da sociedade, e tam-
de 2015, abrigavam 3 mil toneladas de Novo Distrito de Binhai e de tratamento de efluentes (deje- bém para um estado de espírito bem
produtos perigosos, bem acima da tos). Por outro lado, pesa muito sobre mais desolado e miserável do que o
quantidade autorizada, e, em espe- a vasta quantidade de pequenas uni- mundo que os cerca”.12 
cial, 1.300 toneladas de nitrato de UMA ÁGUA IMPRÓPRIA PARA USO dades de fabricação de pesticidas, co-
amônio, ou seja, mais de quinhentas Onze funcionários também foram rantes, surfactantes, aditivos alimen- *Mohamed Larbi Bouguerra, químico, é
vezes a quantidade desse fertilizante presos e acusados de corrupção, in- tares etc., utilizados pela agricultura membro da Academia Tunisiana de Ciên-
que foi utilizado em 1995 no atentado cluindo Yang Dongliang, que se tor- e por consumidores locais. Milhares cias, Artes e Letras Bait Al-Hikma
de Oklahoma City, nos Estados Uni- nou prefeito-adjunto de Tianjin após dessas pequenas fábricas relevantes (Cartago).
dos (168 mortos e seiscentos feridos). ter dirigido a administração pública do setor privado foram fechadas, sem
Um ano antes, uma inspeção de roti- da segurança do trabalho. Sua exclu- grandes consequências para a produ- 1   E ntre os acidentes revelados na imprensa,
na revelou 4.261 toneladas de produ- são do PCC escancarou o conluio do ção nacional. Na província de Shan- destacam-se, em 31 de março, sete mortes
tos perigosos. mundo dos negócios com os oficiais dong, por exemplo, o fechamento de em Kunshan (província de Jiangsu); em 19 de
julho, quinze mortos em Yima (Henan); em 15
Após esse desastre, as autorida- corrompidos. Alguns meses depois, 25% das usinas somente se traduz em de outubro, quatro mortos em uma pequena
des, supondo desvios na concessão em setembro de 2016, Huang uma redução de 5% da produção. Os cidade de Guangxi; em 3 de dezembro, nove
de licenças e irregularidades na ad- Xingguo, o prefeito de Tianjin e se- especialistas do escritório McKinsey mortos em Longzhou (Guangxi) e quatro mor-
tos em Niulanshan (Pequim).
ministração da empresa, apressa- cretário interino do PCC da cidade, & Company Chemicals preveem que, 2   A catástrofe da dioxina de Seveso na Lombar-
ram-se em realizar investigações. também foi preso por corrupção. durante o período de três a cinco anos dia ocorreu em 10 de julho de 1976 na usina
Consagrando “as águas claras e as seguintes,10 as autoridades aplicarão de Icmesa (filial da Givaudan).
3   Andrew Jacobs, Javier C. Hernández e Chris
montanhas deslumbrantes” como firmemente a nova regulamentação Buckley, “Behind deadly Tianjin blast, short-
objetivo político nacional, o 13º plano nas zonas ditas de “mudança radical”, cuts and lax rules” [Por trás da explosão letal
quinquenal de proteção ao meio am- ou seja, nesses parques industriais de Tianjin, atalhos e leis frouxas], The New
York Times, 30 ago. 2015.
biente (2016-2020) marcou uma evi- que fornecem metade dos produtos 4   John Woodside, Si Chen, Xu Wenjuan e Liu
dente evolução das autoridades nessa químicos do país. Já em 2017 e em Huilan, “Too fast, too soon: how China’s gro-
questão. Levou à proibição, em 2018, 2018, as produções de pesticidas, de wth led to the Tianjin disaster” [Muito rápido,
muito cedo: como o crescimento da China le-
da importação de rejeitos plásticos glutamato de sódio e de corantes re- vou à tragédia de Tianjin], The Guardian, Lon-
dos países ocidentais. O poder insti- gistraram uma queda de 30% a 40%, dres, 23 maio 2017.
tuiu autorizações para a instalação de que ocasionou aumento nos preços. 5   Andrew Jacobs, Javier C. Hernandez e Chris
Buckley, op. cit.
usinas e incitou a realocação das uni- 6   Jean-François Tremblay, “Chemical blast kills
dades de produção química em dire- dozen in China” [Explosão química mata dú-
ção a parques industriais governa- Apenas no período de zias na China], Chemical and Engineering
News, v.97, n.13, Washington, DC, 1º abr.
mentais. Assim nasceu o imenso janeiro a agosto de 2016, 2019.
Parque de Química Industrial de Xan- 7   Hou Liqiang, “Casualties from natural disas-
gai (SCPI), o primeiro do gênero na
a China registrou prati- ters, workplace accidents fall sharply” [Mor-
Ásia, especializado em produtos quí- camente um acidente tes decorrentes de desastres naturais, aci-
dentes em locais de trabalho decrescem
micos finos e petroquímicos de quali- químico por dia acentuadamente], China Daily, Pequim, 19
dade mundial. Segundo o Greenpea- set. 2019.
8   “ Nearly half of Chinese provinces miss water
ce, em 2017, “85% das águas dos rios targets, 85% of Shanghai’s river water not fit
de Xangai” estavam “impróprias para Outra consequência: é provável for human contact” [Quase metade das pro-
banho ou uso industrial, e quase 60% que ocorra uma reestruturação da in- víncias chinesas não possui planejamento de
água, 85% dos rios de Xangai não estão ap-
impróprias para qualquer uso huma- dústria química nas empresas capa- tos para contato humano], Greenpeace East
no”; 92% da população chinesa respi- zes de absorver os custos operacio- Asia, Kowloon, 1º jun. 2017.
© Bruna Lubambo

rou durante mais de 120 horas por nais elevados da nova regulamentação 9   Jean-François Tremblay, “Relocating chemical
plants in China” [Realocando fábricas quími-
ano um ar nocivo, segundo as normas ambiental. As empresas privadas ou cas na China], Chemical and Engineering
da Organização Mundial da Saúde, e a estatais, em associação com as multi- News, v.95, n.38, 25 set. 2017.
poluição atmosférica causou a morte nacionais estrangeiras, veem se abrir 10  Sheng Hong, Yifan Yie, Xiaosong Li e Nathan
Liu, “China’s chemical industry: New strate-
prematura de “1,6 milhão de chineses diante delas um leque enorme para gies for a new era” [Indústria química chinesa:
anualmente, ou seja, 17% de todas as investir na fabricação – atualmente novas estratégias para uma nova era], McKin-
mortes registradas no país”.8 insuficiente – de intermediários de sey & Company Chemicals, mar. 2019.
11  “Can China become a scientific superpo-
Desde agosto de 2017, as diretrizes síntese. Poderão também ter acesso wer?” [A China conseguirá se tornar uma su-
do Conselho de Estado, chamadas aos novos procedimentos tecnológi- perpotência científica?], The Economist, Lon-
“circular 77”, impõem a realocação cos prometidos pela exuberante pes- dres, 12 jan. 2019.
12  Alain Badiou, Méfiez-vous des Blancs, habi-
das usinas – tanto nacionais quanto quisa científica chinesa11 e pelo pla- tants du rivage [Desconfie dos brancos, habi-
estrangeiras – que produzissem as no estratégico “Made in China 2025”, tantes da costa], Fayard, Paris, 2019.
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
34 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

UMA CONDIÇÃO PARA O ESTADO DE DIREITO

Reprimir as delinquências
dos poderosos
De um lado, a ideologia securitária reforçando a repressão submetida às classes populares. De outro, política e justiça
desinteressadas da criminalidade dos poderosos, sejam representantes do Estado ou de interesses privados. Longe de
tornar a sociedade mais segura, esse desequilíbrio aumenta seu nível de injustiça e violência
POR VINCENT SIZAIRE*

H
á mais de vinte anos se impôs

© Thiago Consp
no debate público a opinião se-
gundo a qual nossa segurança
– entendida, de forma restriti-
va, como a prevenção de atentados à
nossa integridade física – seria garan-
tida à custa de um poder cada vez
mais repressivo sobre nossa vida. Di-
to de outra forma, a luta contra o cri-
me implicaria reduzir cada vez mais
o enquadramento jurídico e o con-
trole jurisdicional sobre as autorida-
des penais, em particular da polícia.
Numa época em que a onipresença
da questão terrorista proíbe o diálogo
pacífico, é difícil questionar o que
parece ser indubitável senso comum.
Um cenário completamente dife-
rente, no entanto, está surgindo. De
um lado, a segurança prometida pe-
los arquitetos desse voo repressivo
continua sendo uma miragem. Basta
lembrar o terrível massacre em Nice
no dia 14 de julho de 2016, ocorrido
apesar de, oito meses antes, ter sido
proclamado estado de emergência –
forma última dos plenos poderes po-
liciais que deveriam garantir a segu-
rança dos cidadãos. De outro lado,
essa ideia de segurança tem efeitos
muito reais nas populações mais di-
retamente expostas a ela, ou seja, as
classes populares. Além de esses se-
tores já serem as maiores vítimas de
atos delinquentes – são, por exemplo,
duas vezes mais expostos ao risco de
roubo de seu veículo e três vezes mais
expostos à violência sexual do que os
setores mais ricos1 –, eles se veem
ainda sujeitos à crescente inseguran-
ça em relação à polícia e ao Judiciá-
rio. Notadamente, estão sujeitos a ve-
rificações policiais mais abusivas e
discriminatórias – por exemplo, os
jovens cuja aparência é julgada como
típica de bairros mais pobres têm até não exerciam nenhuma atividade investigadores da polícia especiali- segurança falha tão miseravelmente
dezesseis vezes mais chances de se- profissional quando foram detidas.3 zados em temas econômicos e finan- em alcançar os objetivos que estabe-
rem submetidos a verificações de Ao mesmo tempo, para além de al- ceiros, já baixo, caiu de 529 em 2013 leceu, é porque ainda não esgotamos
identidade do que os jovens vestidos guns casos muito midiáticos, as au- para 514 em 2017.4 as ferramentas da repressão. Mas
de outra maneira.2 toridades repressivas se afastam da também pode ser um sinal de que o
As classes populares também são luta contra a grande criminalidade EFEITOS DEVASTADORES problema não está sendo abordado
as que sofrem mais penas e estão su- econômica e financeira; a prioridade DA VIOLÊNCIA POLICIAL de forma satisfatória. Segurança não
per-representadas no sistema carce- permanece o tratamento rápido da Tomando-se o modelo dos economis- se trata de recorrer à arbitrariedade
rário: 48,5% das pessoas detidas não delinquência mais visível: a dos es- tas neoliberais, pode-se argumentar do poder repressivo em troca de uma
possuem nenhum diploma e 50% paços públicos. O número total de que, se o “senso comum” em torno da garantia quimérica contra qualquer
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 35

risco de agressão: trata-se de se bene- A forma como prevenimos, identi- nos acordos com a lei.12 Reitera-se, tias reconhecidas para alguns pode
ficiar da proteção da lei contra qual- ficamos e punimos os abusos cometi- portanto, que a aplicação do estado ser facilmente estendida para outros.
quer abuso de poder, seja ele cometi- dos pela polícia é, portanto, crucial de direito às classes altas condiciona Isso foi observado com as medidas de
do por indivíduos privados ou para a saúde de uma democracia. Fa- diretamente a segurança de todos. restrição das liberdades para as quais
autoridades públicas. Pedra angular lhas nessa área nos expõem não ape- Ao mesmo tempo, não é possível a lei dos estrangeiros serviu como la-
da ordem jurídica criada durante a nas à arbitrariedade das autoridades estar vigilante e atento a todas as boratório. Por exemplo, as ordens de
Revolução Francesa, a exigência de públicas, mas também a um aumen- condições nas quais as pessoas mais prisão domiciliar para pessoas sujei-
segurança pressupõe a estrita igual- to da violência. Eles provocam de fato vulneráveis poderiam fazer valer tas à obrigação de deixar o território
dade jurídica dos indivíduos, qual- uma radicalização do comportamen- seus direitos, em particular quando francês, pronunciadas sem nenhum
quer que seja seu lugar na sociedade. to criminoso que se alega combater, são interpeladas pelos poderes públi- controle judicial, foram estendidas a
Longe de justificar a onipotência das enquanto minam o vínculo de con- cos ou privados. Em outras palavras, partidários supostamente violentos.
autoridades, implica sua subordina- fiança entre a polícia e a população – o vigor democrático de um sistema Somente a censura do Conselho
ção à lei e, correlativamente, a efetiva o que pode diminuir as denúncias de jurídico também é medido por sua Constitucional permitiu evitar que
proteção legal das pessoas mais vul- ofensas sofridas ou, ainda pior, favo- capacidade de funcionar desinteres- também não recaíssem sobre
neráveis. A lei “deve ser a mesma para recer o uso da violência privada para sadamente, ou seja, garantir a prote- manifestantes.13
todos, seja para proteger ou para cas- resolver conflitos. ção da lei àqueles que, pontual ou es- Impor a mesma aplicação da lei de
tigar”, afirma a Declaração dos Direi- Na mesma linha, é necessário en- truturalmente, não possuem cima para baixo na sociedade é, por-
tos do Homem e do Cidadão de 1789. fatizar a necessidade de punir a de- nenhum outro recurso (econômico, tanto, uma questão democrática pri-
A exigência de exemplaridade é linquência de integrantes da classe cultural, social) para defender seus mária. Se o estado de direito for pal-
antes de tudo imposta aos represen- dominante e, em particular, das eli- interesses. Nesse sentido, a sorte re- pável para a maioria dos cidadãos,
tantes dos poderes públicos. Rom- tes econômicas, de forma proporcio- servada a pessoas particularmente eles deixarão definitivamente de dar
pendo com a lei do Antigo Regime, o nal aos danos causados à coesão so- frágeis, como crianças, presos, imi- crédito à retórica da segurança. 
Código Penal de 1791 instituiu nume- cial. O impacto de atos de predação grantes e, em geral, todos aqueles que
rosos crimes e ofensas a fim de punir econômica é ainda mais importante, se encontram em uma situação de *Vincent Sizaire é mestre de conferên-
o peculato de funcionários públicos pois eles são cometidos por pessoas fragilidade econômica e social, é um cias associado da Universidade de Paris
(como desvio de verba e tráfico de in- em posições de poder. Primeiro, é indicador determinante. Nanterre e autor de Sortir de l’imposture
fluência). Traduz, assim, a ideia dos claro, por causa simplesmente do Hoje, as crianças certamente go- sécuritaire [Escapar do impostor securitá-
constituintes de que o ataque à liber- potencial de escala: a evasão fiscal zam de uma proteção relativamente rio], La Dispute, Paris, 2016.
dade dos outros é ainda mais grave gera um déficit orçamentário esti- extensa contra a arbitrariedade dos
quando provém de uma pessoa res- mado em várias dezenas de bilhões adultos, dentro e fora da esfera fami-
ponsável por representar o interesse de euros; 8 no entanto, em 2016, hou- liar. No entanto, esse não é o caso
1   C f. Relatório da pesquisa “Cadre de vie et sé-
geral. Estão expressas nessas leis não ve apenas 524 condenações por so- dos presos. Denunciadas regular- curité 2018” [Panorama de vida e segurança
apenas as aspirações democráticas negação de impostos, e as autorida- mente pelas autoridades nacionais e 2018], Ministério do Interior, Paris, dez. 2018.
radicais dos atores da Primeira Repú- des fiscais encaminharam menos de europeias que garantem o respeito às 2   René Lévy e Fabien Jobard, “Les contrôles
d’identité à Paris” [Os controles de documen-
blica, mas também seu profundo mil casos ao sistema judiciário entre liberdades fundamentais, as condi- to em Paris], Questions Pénales n.23.1, Cen-
pragmatismo. Um dos inventores da os 15 mil, ou mais, que constatam ções de detenção desrespeitam a dig- tro de Pesquisas Sociológicas sobre o Direito
legislação criminal revolucionária, em média a cada ano.9 De maneira nidade mais básica das pessoas nes- e as Instituições Penais, Guyancourt, jan.
2010.
Louis-Michel Lepeletier de Saint-Far- mais ampla, os delitos econômicos e sa situação. Tampouco é esse o caso 3   “Qui sont les personnes incarcérées?” [Quem
geau, afirmou em 1791: “Uma boa po- financeiros representaram apenas de cidadãos estrangeiros, mesmo são as pessoas encarceradas?], Observató-
lícia com boas maneiras é o necessá- 3% dos processos criminais em 2016 menores de idade, cuja situação vem rio Internacional das Prisões. Disponível em:
<www.oip.org/en-bref>.
rio para um povo livre, em vez de e 2017.10 piorando nos últimos vinte anos, se- 4   “Les moyens consacrés à la lutte contre la
suplícios. Onde quer que o despotis- Além disso, existe um grande ris- ja em termos de direito de perma- délinquance économique et financière” [Os
mo reine, nota-se que os crimes se co de as práticas criminosas das clas- nência ou de recondução ao territó- meios consagrados à luta contra a delinquên-
cia econômica e financeira], Tribunal de Con-
multiplicam; isso acontece porque o ses dominantes adquirirem uma di- rio de origem. Em resumo, as pessoas tas, Paris, 12 dez. 2018.
homem degradou-se; e pode-se dizer mensão central nas relações precarizadas frequentemente en- 5   Citado em Félix Lepeletier de Saint-Fargeau,
que a liberdade, como as plantas for- econômicas e sociais, à custa de um contram dificuldades significativas Œuvres de Michel Lepeletier de Saint-Far-
geau [Obras de Michel Lepeletier de Saint-
tes e vigorosas, logo se purificará de colapso geral da proteção legal da para que seus direitos sociais sejam -Fargeau], Lacrosse, Bruxelas, 1826.
qualquer elemento prejudicial pre- qual os cidadãos podem se benefi- respeitados. Recentemente, por 6   “How’s life?” [Como vai a vida?], rubrica “Se-
sente no solo feliz onde germinou”.5 ciar. Por sua vez, os cidadãos podem exemplo, criou-se um litígio em tor- gurança”, OCDE, Paris. Disponível em:
<www.oecdbetterlifeindex.org>.
Essa observação não envelheceu. ser levados à prática de pagamento no das práticas abusivas praticadas 7   Roy Walmsley, “World Prison Population List”
De fato, é nos países que praticam de propinas para obter o mero exercí- pelo Pôle Emploi – agência governa- [Lista da população presa no mundo], 11. ed.,
uma repressão desproporcional, em- cio de seus direitos econômicos e so- mental francesa que registra pessoas Institute for Criminal Policy Research, Lon-
dres, 2016.
preendida por uma força policial am- ciais, enquanto a corrupção e a priva- desempregadas, ajuda a encontrar 8   “Commission d’enquête sur l’évasion des ca-
plamente militarizada, como Brasil, tização do aparato repressivo pelos emprego e fornece ajuda financeira pitaux et des actifs hors de France et ses inci-
México e Colômbia, que se conta o ricos os expõem à violência policial –, trazendo à luz a situação de inse- dences fiscales” [Comissão de investigação
sobre a evasão de capitais e ativos fora da
maior número de homicídios dolosos ou à impunidade da violência priva- gurança total na qual alguns benefi- França e suas incidências fiscais], Senato,
por habitante. Longe de diminuir a da, se tiverem a infelicidade de entrar ciários se encontram, confrontados Paris, 17 jul. 2012.
violência, essa política, ao contrário, em conflito com ela.11 com a suspensão prematura de seus 9   “ Rapport d’information sur les procédures de
poursuite des infractions fiscales” [Relatório
contribui para exacerbá-la em uma Além disso, os países com um alto direitos. de informação sobre os processos de investi-
escalada belicosa que leva os atores índice de corrupção das elites sofrem Da mesma forma que a punição gação de infrações fiscais], n.982, Assem-
do crime organizado a se militariza- com um afrouxamento geral do nível de ilegalidades da classe dominante bleia Nacional, Paris, 23 maio 2018.
10  Infostat Justice, n.169, Ministério da Justiça,
rem também.6 Os Estados Unidos, de cumprimento da lei por toda a po- afeta o nível geral de aplicação da lei Paris, maio 2019.
por sua vez, têm um dos sistemas re- pulação: onde prevalece a prevarica- na sociedade, a proteção legal gozada 11  Pierre Lascoumes, Une démocratie corruptib-
pressivos mais implacáveis – concen- ção dos grandes, a fraude se torna co- por pessoas vulneráveis pode fortale- le. Arrangements, favoritisme et conflits d’in-
térêts [Um democracia corrompível. Arranjos,
tra quase um quarto da população mum, e até normalizada, em relação cer ou, pelo contrário, enfraquecer a favoritismos e conflitos de interesse], Seuil,
carcerária mundial7 – e uma taxa de às instituições estatais, principal- segurança de cada cidadão. Quanto Paris, 2011.
homicídios dolosos que, embora em mente em matéria tributária. Na Itá- mais as autoridades são incentivadas 12  Roberto Scarpinato e Saverio Lodato, Le Re-
tour du prince [O retorno do príncipe], La
declínio, permanece incomparável lia, por exemplo, a penetração da má- a respeitar os direitos dos desprovi- Contre-Allée, Lille, 2015.
aos países europeus: 5,35 por 100 mil fia torna a população mais tolerante à dos, mais estes também respeitarão 13  Ler “Des sans-culottes aux ‘gilets jaunes’, his-
habitantes em 2016, em comparação evasão fiscal e, mais amplamente, ao os direitos daqueles que são suficien- toire d’une surenchère répressive” [Dos sans-
-culottes aos coletes amarelos, história de
com 1,35 na França e 1,18 na que eles chamam de combinazione temente dotados para reivindicá-los. uma escalada repressiva], Le Monde Diplo-
Alemanha. (“combinação”): esquemas e peque- Por outro lado, a fraqueza das garan- matique, abr. 2019.
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
36 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

FICÇÃO CIENTÍFICA

Zona de sonho coletivo Norbert: Eu me lembro de um so-


nho confuso, no balcão de um bar
perto do festival, onde Léo arengava,
Alain fulminava nas brasas de sua lo-
Nossos futuros a nós pertencem. Ainda assim é preciso imaginá-los e torná-los comotiva e eu bebia, melhor modo de
contagiosos. Um coletivo de autores de ficção científica, ou mais ainda de “fricção me calar. Catherine devia estar fa-
zendo a única coisa pertinente dessa
científica”, escolheu criar ferramentas de libertação do imaginário e propagá-las noite pré-Zanzibar, e não consigo me
lembrar: colocar a questão do nome
POR ZANZIBAR* do coletivo?
luvan: Eu cheguei no coletivo no

E
m Pourquoi notre futur dépend pessoais: ela deve se conectar com o O que venho buscar nele? Um lugar momento em que se escolhia um no-
des bibliothèques, de la lecture et coletivo. O que venho buscar nele? A de inspiração. Zanzibar é o anti-Stir- me para ele. Eu quase saí na mesma
de l’imagination [Por que nosso ressonância e a capilaridade. ner,1 o antissolipsismo, anarquismos hora, de tão complicado que aquilo
futuro depende das bibliotecas, Léo: Zanzibar é um lobby e, certa- solidários. era. Escrever é escolher. Palavras.
da leitura e da imaginação] (Au Diab- mente, uma cobertura. Acredito que Catherine: Zanzibar colore meus Quando se escreve para muitos, sem-
le Vauvert, 2014), o autor de fantasia, eu tenha dito tudo. O que venho bus- escritos e minhas intervenções. Em pre se escolhem suas próprias pala-
entre outros gêneros, Neil Gaiman car nele? As chaves. A inteligência. todos os lugares e durante o tempo vras. Escolher uma palavra coletiva é
solicita: “Observem ao seu redor. Es- Uma tensão, não algo realizado. Zan- todo. evidentemente terrível. É o contrário
tou falando sério; parem um instante zibar é desencarcerar o futuro; por- do trabalho do escritor. Uma vez ven-
e observem ao seu redor o lugar em tanto, fabricar instrumentos de de- As premissas do Zanzibar cida essa etapa, fui convencido de
que vocês se encontram. Vou assina- sencarceramento que venham a Catherine: Para mim, foi pelo horror que éramos capazes de vencer tudo
lar um detalhe muito evidente que servir para todas e todos. a uma profunda noite, em 2006, no juntos, e fiquei.
tendemos a esquecer. É o seguinte: Sabrina: Zanzibar é para todas, festival dos Utopiales de Nantes, Alain: O verdadeiro início, para
tudo o que vocês podem ver, inclusi- todos e, se possível, para as jovens; quando Alain me perguntou: “E se fi- mim, foi o encontro regado a vinho
ve as paredes, foi imaginado em de- para essas jovens que se combatem zéssemos uma coletânea de novelas na casa de Catherine. As discussões
terminado momento”. E foi assim que na vida política. Zanzibar é uma lou- utópicas, todos e todas juntos?”. A co- sobre a importância de agir politica-
o grupo Zanzibar nasceu: “Apesar cura. É afabilidade. Nele encontro letânea está sempre em obra, e essa mente pela linguagem. Fomentar di-
dos instrumentos de prospectiva e dobraduras [ver mais adiante], um obra é Zanzibar. versos tipos de eventos situacionistas
das agências de futurologia de gran- pouco de compreensão, uma manei- Léo: De modo geral, o que se tor- poéticos. Em seguida, em 2017, a
des empresas, apesar da onipresença ra de me tranquilizar, sobretudo, nou Zanzibar foi aperfeiçoado à mar- oportunidade da Bienal de Saint-É-
do discurso que quer que amanhã se- uma prática poética. gem dos Utopiales, no inverno de tienne sobre o futuro do trabalho, um
ja semelhante a hoje, a ontem, ou que Catherine: Eu diria política. 2014. Houve um almoço durante o assunto ultrassocial e político. As re-
não seja de modo algum, continua- Sabrina: A poética é a prática da qual as grandes ideias foram lança- flexões nascentes, as notícias sonori-
mos convencidos de que nossos futu- afabilidade e do vínculo, portanto é das: tentar pensar outros futuros, zadas por Floriane Pochon,2 o leque
ros – comuns e individuais – nos per- política. O direito à existência poéti- construir instrumentos com esse de nossos estilos, de nossas lingua-
tencem e de que temos o poder de ca é muito importante. Uma prática sentido e compartilhá-los, agir gens, a zanzibarritude explodiu co-
imaginá-los, de nos divertirmos, de poética coletiva é muito importante. coletivamente. mo uma granada!
experimentá-los e construí-los de
acordo com nossa vontade. Somos

© Gerd Altmann/Pixabay
um coletivo de autores de ficção cien-
tífica. Imaginamos nossos textos co-
mo lugares para nos encontrarmos,
onde pensarmos e começarmos a de-
sencarcerar o futuro” (Zanzibar,
Manifesto).
Constatamos que nosso futuro co-
mum tinha uma cara daquelas coali-
zões em que diversos veículos são
atingidos por uma mesma batida e
não nos resignamos. Zanzibar não é
um clube de escritores nem um movi-
mento literário. Zanzibar espera ser
como uma planta rizomática e esten-
der sua rede subterrânea para religar
os imaginários. Zanzibar agrupa Sté-
phane Beauverger, Alain Damasio,
Catherine Dufour, Mathias Echenay,
Léo Henry, Laurent Kloetzer, Sylvie
Laisné, luvan, Norbert Merjagnan,
Sabrina e Stuart Pluen Calvo.

DEFINIÇÕES DE ZANZIBAR
Laurent: Zanzibar é um meio de eu
deslocar o centro de meu próprio tra-
balho, criar ferramentas que possam
ser compartilhadas com os outros:
jovens, adultos, crianças. É uma ati-
tude diante da ficção científica. A fic-
ção científica não é apenas um espa-
ço onde brincar com universos Um coletivo de autores de ficção científica escolheu criar ferramentas de libertação do imaginário e propagá-las
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 37

Para o Zanzibar, o que é criar? imagine esse bar daqui a dez anos e 1000joursenmars.zanzibar.zone E, como não se trata de continuar
Catherine: A fricção de dois am- sua volta a ele, todos juntos. Compar- era uma plataforma de entre nós, foram propagadas confe-
bientes diferentes que têm uma rela- tilhe sua visão com os outros, depois acesso aberto, criada em março rências em oficinas de escrita, inter-
ção de força (uma aldeia de Hobbits e imagine esse bar daqui a cinquenta, de 2016, o mês em que venções em cursos ou em ocupações
um senhor do mal, um carpinteiro e cem, 150 anos – sob as águas ou sob a teve início o Nuit Debout [um de imóveis, de Tarnac às centrais
Deus etc.) gera naturalmente uma his- areia, necessariamente. Não se es- movimento social francês]. sindicais...6
tória. O que faço é a fricção científica. queça de pagar a conta ao sair. O que você será no 421 de março?
Léo: Utilizo a estrutura para en- Protocool 2 (Dobraduras mistas): E no 632 de março? Mas, enfim, por que “Zanzibar”?
contrar uma imagem. A imagem Faça um jogo em que você escreve Léo: Para mim, o “verdadeiro” mo- Porque foram listados todos os no-
preexiste, é preciso eu me elucidar uma palavra num papel e o dobra an- mento fundador do Zanzibar foi a mes que nos vinham à cabeça e risca-
para chegar a ela e descrevê-la. tes de passá-lo para o próximo joga- bricolagem dos 1000joursenmars. Is- dos os que não agradavam. Só sobrou
Sabrina: Eu começo sobretudo das dor, que faz o mesmo, e assim por so ocorreu em poucas horas, entre os um. Quanto ao logotipo, uns 106 fo-
palavras mal compreendidas, mal en- diante, para formar uma frase coleti- amigos de Estrasburgo do Hackstub,5 ram barrados com tinta marrom por-
tendidas, mal escritas, potenciais que va, leia uma a uma em voz alta, em se- a lista de e-mails do Zanzibar e a Pla- que os logotipos são as tatuagens na
desembocam em paisagens desco- guida as pronuncie juntas. Registre o ce de la République. Foi um belo mo- pele do cadáver da humanidade. Ne-
nhecidas. Uma vez desembaraçadas conjunto, misture, e pronto. mento de efervescência, uma daque- nhum logotipo! Bem-vindo ao zanzi-
do sentido, as palavras se desenvol- Protocool 3 (Horóscopo univer- las ocasiões em que tudo se encadeia, bar.zone... 
vem em cartografia do invisível. sal): Qual é o signo do Universo? Você a ideia propriamente dita, sua reali-
Norbert: O salto. Tudo está no sal- tem vinte minutos. Título: “Uma for- zação, o compartilhamento, as *Zanzibar  é um coletivo de escritores.
to. Como uma onda elevada cuja am- ma latente de inquietação”. repercussões.
plitude diminui de maneira extrema- Sabrina: Essas exigências são Alain: A primeira sensação Zanzi- 1   M ax Stirner (1806-1856), autor de L’Unique et
sa propriété [O único e sua propriedade]
mente rápida e de suas profundezas é muito interessantes, permitem en- bar foi esse mural básico do qual as (1844), frequentemente considerado o pai do
dado um impulso que a leva a bater contrarmos novos caminhos de li- pessoas se apropriaram e no qual ca- anarquismo individualista.
um tanto mais longe. berdade e de aumentar os oásis. da um e cada uma podia escrever so- 2   Para
 ouvir, acesse <www.zanzibar.
zone /2017/03/25/extravaillance-working-
Norbert: Nós perseguimos os lu- bre seu dia sonhado: 404 mars > revo- -dead/>.
Mas Zanzibar não é criar, e sim gares-comuns; fazemos isso para as lution not found. Eu achei isso muito 3   “There is no alternative” [Não há outra solu-
cocriar ferramentas de cocriação: primas [primeira posição na esgri- trivial, muito fácil, ao mesmo tempo ção], sentença pronunciada pela primeira-mi-
nistra britânica Margaret Thatcher (1979-
os protótipos de descontração ma]. Esporte radical entre nós. E tam- anônimo e público, autoconstruído. 1990) para dizer que qualquer tentativa de
(protocool). Elaborados nos fins bém um estratagema que se impôs Foi muito Jour debout. saída do modelo capitalista ocidental estava
de semana Zanzibar muito rapidamente: não concorda- Extrato: condenada ao fracasso.
4   < http://zanzimooc.zanzibar.zone>, onde logo
Léo: Eu gosto muito, agora, da con- mos em quase nada – guerra à Tina.3 555 de março: Eu acredito. Ou será aberto um novo mooc [Massive Online
fiança estabelecida internamente no 556? Eu tento levar em conta, guar- Open Cours, curso de acesso aberto e massi-
coletivo e do aspecto “formação con- Os trabalhos Zanzibar são coloca- dar viva a nossa agenda de março, eu vo on-line] de criação destinado aos jovens. O
labo [laboratório] Zanzibar e o mooc Zanzibar
tínua” de nossos fins de semana de dos à disposição de todo o mundo traço barras na parede, como os pri- deram origem a um livro impresso, Comme
escrita: o Zanzibar voltado menos em seu site4 sioneiros nas histórias. Em nossos des bêtes [Como bestas], Zanzimooc 1, e a
para fora, mas que tenta abrir nossas Léo: Quando chega o momento cartazes, em nossa cabeça e até nos um livro sonoro, 2020 AD.
5   Hackerspace de Strasbourg, <www.shadok.
formas de trabalhar e de enriquecer o de difundir nossos métodos de co- murais luminosos agora vendidos strasbourg.eu/agenda/hackstub/>.
que fazemos. Ganhamos eficácia criação, nós os colocamos on-line, pela Decaux, ainda é, esta manhã, o 6   Em 2016, os Labloids do European Lab; em
também, sabemos melhor o que cada os utilizamos em oficinas de escrita dia 1º de abril que começa. 1º de 2017, as conferências “Tous à Zanzibar” [To-
dos para Zanzibar], no Salão do Livro de Pa-
um quer e temos menos necessidade e também fazemos encontros du- abril cada novo dia, como uma gag ris, e “Désincarcérer le futur” [Desencarcerar
de longas tiradas teóricas, é o que rante os quais colocamos em prática ruim recorrente. Eu também fiz o futuro], na SciencesPo para o ciclo “Futurs
penso. Eu gosto de imaginar o possí- essa busca que tentamos fazer: não gags, em primeiro lugar, com base pluriels” [Futuros plurais]; a semana “Décloi-
sonner l’avenir” [Eliminar as barreiras do futu-
vel, a impressão de estar bem no iní- falar enquanto especialistas, mas em Bill Murray, umas marmotas, de ro], em Tarnac; em 2018, a intervenção coral
cio de alguma coisa. como escritores, inverter os papéis, Un Jour sans Fin [no Brasil, foi lança- “Tout le monde déteste le travail” [Todo o
deixar o público intervir, quebrar as do com o título Feitiço do tempo]. Eu mundo detesta o trabalho], pela Union Syndi-
cale Solidaires à la Bourse du Travail [União
Alguns exemplos dos protótipos relações de autoridade. Temos al- também acabei me cansando disso. Sindical Solidários à Central dos Sindicatos],
de descontração (protocools) guns ensaios mais ou menos conclu- “Muitos 1os de abril serão necessá- as oficinas Bright Mirror de Bluenove; em
Protocool 1 (Tentativa de esgotamen- sivos no catálogo, principalmente as rios”: há meses que a primeira pági- 2019, a performance e conferência “La péri-
phérie vue par la science-fiction” [A periferia
to de um lugar no espaço tempo): En- ficções anônimas de na do Le Figaro não muda. Começo a vista pela ficção científica], no Théâtre du
tre em um bar, peça uma rodada, 1000joursenmars... sentir frio. Rond-Point (Paris) etc.
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
38 Le Monde Diplomatique Brasil  FEVEREIRO 2020

MISCELÂNEA

livros internet
É contra esse atordoamento que ele escreve, de- NOVAS NARRATIVAS DA WEB
clarando ser “um dos derrotados de 2016 e de 2018”.
E a potência desse livro, a meu ver, vem justamente Sites e projetos que merecem seu tempo
daí, do reconhecimento de sua posição “derrotada”,
O COLAPSO DA DEMO- com base na qual se dispõe a revisitar (ou melhor: MEMÓRIA GRÁFICA DA POLÍTICA
CRACIA NO BRASIL: revirar) nossa história recente, refletindo sobre di- O Calendário Dissidente é um projeto que
DA CONSTITUIÇÃO versos marcos e fracassos institucionais, bem como discute a memória gráfica dos principais
AO GOLPE DE 2016 sobre as múltiplas tensões políticas nacionais – a acontecimentos sociopolíticos do Brasil
Luis Felipe Miguel, começar pela Constituição de 1988, suas conquis- desde a posse do presidente Bolsonaro,
Expressão Popular e Fun- tas e promessas, até o golpe contra Dilma Rousseff, em 1º de janeiro de 2019. A discussão é
dação Rosa Luxemburgo passando pelas contradições dos governos petistas, feita pelo mapeamento das imagens publi-
a recomposição da direita e o papel dos meios de cadas no Instagram, com base em deter-

S ão diversos os méritos do pequeno livro lan-


çado pelo professor Luis Felipe Miguel. Entre
eles, deve-se destacar que esse primeiro volume
comunicação, para apontar rumos e desafios da re-
sistência democrática sob um governo que se distin-
gue pela “insanidade autoritária”.
minadas hashtags. O site é a apresentação
de resultado parcial da pesquisa de douto-
rado da designer gráfica Didiana Prata e
da Coleção Emergências (parceria entre a Editora Tentando pensar os próximos passos da esquer- desenvolvida na residência no Centro de
Expressão Popular e a Fundação Rosa Luxembur- da levando em conta os tropeços recentes, o autor Inteligência Artificial do Inova USP.
go) é um livro de combate escrito por um acadê- afirmou numa entrevista: “Todo processo histórico é <https://calendariodissidente.fau.usp.br>
mico que, como poucos, consegue acompanhar reversível. Não acredito que estejamos condenados.
as torções da conjuntura política brasileira em que Agora, para reverter isso, é importante entender que
estamos imersos. E o faz com coragem, cuidado e é necessária a mobilização popular. Não vai ser de- SEJA MEUS OLHOS
clareza exemplares. positando as nossas energias completamente nas Be My Eyes foi criado para ajudar pessoas
O leitor que acompanha o percurso de Luis Felipe instituições políticas formais, porque essas institui- cegas ou com visão limitada. O aplicativo é
Miguel, tanto em seus outros livros – como os re- ções já mostraram que estão a serviço da classe composto por uma comunidade global de
centes Consenso e conflito na democracia contem- dominante. Essas instituições só vão responder às pessoas cegas ou com visão limitada, em
porânea (Unesp, 2017) e Dominação e resistência demandas do campo democrático popular se hou- conjunto com voluntários sem deficiência
(Boitempo, 2018) – quanto nas redes sociais e na ver pressão do lado de fora delas”. Sem dúvida, O visual. O app conecta ambos em situações
imprensa, sabe que se trata de autor-militante que colapso da democracia no Brasil é uma excelente como combinar cores, checar se as luzes
não evita o desafio de, a um só tempo, entender os arma da crítica para as lutas que temos pela frente. estão acesas, preparar o jantar, entre mi-
conflitos e neles intervir, posicionando-se num mo- lhares de outras.
mento em que “o campo democrático e popular per- [Tarso de Melo] Escritor e advogado, doutor em <www.bemyeyes.com>
manece em situação de atordoamento”. Filosofia do Direito pela USP.

LIMBO
Vários projetos de realidade virtual e do-
va, Santini apresenta dois modelos de cidade. De um cumentário têm surgido nos últimos anos.
lado, analisa a experiência da tarifa zero, o transpor- Limbo é uma experiência que tenta re-
te público coletivo gratuito, e sugere sua universali- produzir a espera de quem aguarda por
PASSE LIVRE: AS
zação como o motor de uma grande transformação asilo no Reino Unido. Foi feito com base
POSSIBILIDADES
– produzindo um cenário de cidades harmoniosas, em entrevistas com advogados, imigran-
DA TARIFA ZERO
onde as pessoas se reconhecem umas nas outras e tes e oficiais de justiça de doze países,
CONTRA A DISTOPIA
formam laços solidários. De outro, descreve a cida- cujas vozes estão presentes na narração
DA UBERIZAÇÃO
de infernal dominada pelo transporte público caro e do vídeo. Medo, saudade, preocupações e
Daniel Santini,
pelos aplicativos corporativos de mobilidade urbana uma nova vida pela frente, isolada de tudo
Autonomia Literária
(Uber, 99, Cabify), um espaço poluído e barulhen- o que se conhece, é normalmente o que
to ou, ainda pior, um não espaço despersonalizado, acomete aqueles que buscam asilo em

J ornadas de Junho no Brasil em 2013, coletes


amarelos na França em 2018, as manifestações
no Equador, os atos que ainda inflamam o Chile e
como a tela alvacenta do Waze, onde as pessoas se
dissolvem na coletividade dos carros.
Certa vez, o historiador Nicolau Sevcenko (1952-
outros países. O projeto está no YouTube
e funciona no celular.
<http://bit.ly/limbouk>
os protestos que estouraram no Irã em 2019... Os 2014) disse que, “quando chega a era do carro, acaba
conflitos globais de mobilidade emergem como a ex- a era da cidade”. “Nem sempre as cidades foram dos [Andre Deak] Diretor do Liquid Media
pressão condensada das contradições do capital no automóveis”, emendaria Santini, numa conversa ima- Lab, professor de Jornalismo e Cinema na
século XXI. Rebeliões por transporte barato não são ginada. Os conflitos globais de mobilidade que espo- ESPM, mestre em Teoria da Comunicação
novidade no Brasil nem no mundo. Hoje, porém, sua caram entre 2013 e 2019 mostram que das cinzas pela ECA-USP e doutorando em Design
fusão com outras questões sociais e políticas suge- das cidades pode renascer um novo tipo de política, na FAU-USP.
re que estamos diante de um fenômeno inédito. O capaz de resgatar o espaço urbano da distopia dos
que está em jogo não é só o ir e vir das pessoas. É serviços caros e da uberização. A mobilidade talvez
a reprodução do capital e do trabalho num quadro não seja a solução para as contradições do século
mundial de concentração de renda e precarização XXI, mas é, hoje, o caminho mais curto para a con-
de direitos. Trata-se de um tema sensível que o mais testação das superelites na era do capital rentista. O Guilhotina, podcast do Le Monde Diplo-
que oportuno Passe livre, de Daniel Santini, ajuda a matique Brasil, recebeu Daniel Santini para
iluminar. [Elisa Dourado, Karen Souza e Tâmis Parron] uma conversa sobre o livro em seu episódio
O livro é uma defesa bem fundamentada do trans- Integrantes do Centro de Desigualdades Globais da #51. Confira em <https://diplomatique.org.
porte público livre. Com uma escrita leve e propositi- Universidade Federal Fluminense (UFF). br/guilhotina/>.
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas
FEVEREIRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Vale em Moçambique
Ano 13 – Número 151 – Fevereiro 2020
A edição de novembro surpreendeu em todos os www.diplomatique.org.br
artigos, com destaque para a real face da Vale. A
ânsia por lucros, em detrimento de vidas huma-
nas, é de uma vergonha avassaladora. Mais e mais DIRETORIA
Diretor da edição brasileira e editor-chefe
se percebe que o incidente de Brumadinho (MG) 02 Estratégias para o Partido Democrata
As possibilidades abertas
Silvio Caccia Bava
Diretores
foi praticamente engendrado por seus gestores,
por Donald Trump... Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
pois os alertas eram por demais notórios. O des- Por Serge Halimi Rubens Naves
caso em Nacala é uma prova cabal do vil desprezo
Editor
à população. Como no Brasil, é indubitável haver
vantagens indevidas a políticos moçambicanos.
05 Editorial
Cadê o futuro?
Luís Brasilino

Editora-web
Permaneçam nessa vertente, informando-nos Por Silvio Caccia Bava Bianca Pyl
sobre o que a imprensa tradicional se esquece de
apurar. Parabéns! 06 CAPA
Operações policiais no Rio de Janeiro:
Editor de Arte
Cesar Habert Paciornik
Franklin Siqueira Santos da lacuna estatística ao ativismo de dados Estagiária
Por Daniel Veloso Hirata Gabriela Bonin
Coletes amarelos e Carolina Christoph Grillo Revisão
É com grande satisfação que assino esta publica- Guerras prisionais e Lara Milani e Maitê Ribeiro
ção que tanto enobrece o jornalismo brasileiro, massacres cotidianos no Ceará
Gestão Administrativa e Financeira
uma luz nas trevas do pensamento medieval. Pa- Por Ítalo Barbosa Lima Siqueira Arlete Martins
rabéns pela reportagem sobre os coletes amarelos, Não seremos pauta, nós
Assinaturas
elucidativa, objetiva, com a qualidade jornalística pautamos a nossa existência! assinaturas@diplomatique.org.br
das ideias da corrente progressista mundial. Por Daiene Mendes
Uma mídia antirracista Tradutores desta edição
Julio Cezar Menta Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
na cobertura de violência do Estado Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
Por Simone Freire
Capa de dezembro Conselho Editorial
Pinceladas fortes com cores marcantes. Tons Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles

escuros na água, remetendo à poluição (provável


12 Inimigos com interesses comuns
No Iraque, a dança do
Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor
alusão ao vazamento de óleo). A priori, florestas sabre entre Estados Unidos e Irã Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S.
Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau
não sofrem com o cenário apocalíptico. Esperava Por Gilbert Achcar Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
fogo nas árvores. Julgando o livro pela capa, a edi- Destruir Teerã ou conter Pequim? Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião
Por Michael T. Klare Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.
ção de dezembro se destaca e atrai atenção para a
questão ambiental. Parabéns! Assessoria Jurídica

Gustavo Baroni (via Instagram) 16 Damasco e Ancara disputam o enclave sírio


O futuro suspenso de Rojava
Rubens Naves, Santos Jr. Advogados

Escritório Comercial Brasília


Por Mireille Court e Chris Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior
Achei fantástico! Vocês cada vez mais estão capri- Den Hond, enviados especiais Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – jh@marketing10.com.br
chosos e se aperfeiçoando no material!
Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
Nick Faria (via Instagram) 18 Corbyn cai na armadilha do Brexit
Entendendo a derrota
da associação Palavra Livre, em parceria com o
Instituto Pólis.
do Partido Trabalhista
Excelente! Vocês sempre com conteúdo crítico e Por Chris Bickerton Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
pensante! São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil – Tel.: 55 11 2174-2005
diplomatique@diplomatique.org.br
Luís Antônio (via Instagram)
20 Twitter e gás lacrimogêneo
Os movimentos sociais na era digital
www.diplomatique.org.br

Assinaturas: Leila Alves


Vou enquadrar a capa, de tão perfeita! Por Gustave Massiah assinaturas@diplomatique.org.br
Bruno Zanchetta (via Instagram) Tel.: 55 11 2174-2015

23 Linguagem violenta e soluções simplistas


Crescimento do populismo de direita Impressão
Vocês arrasam em todas as capas. Parabéns! Plural Indústria Gráfica Ltda.
Por Henry A. Giroux Av. Marcos Penteado de Ulhôa
Lucas Monteiro (via Instagram) Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001

Um ano de ultraliberalismo
24 Um reacionário na vanguarda
O astrólogo que inspira Jair Bolsonaro MISTO

de coturnos e pés de barro Por Gilberto Calil


O povo brasileiro está tão anestesiado que traba-
lha pela compulsão, precisa comer, pagar aluguel 26 Copenhague sem para-brisa
Quando a bicicleta reinventa uma cidade Distribuição nacional
ou prestação e tem as crianças, o carro, as férias. Por Philippe Descamps DINAP – Distribuidora Nacional de Publicações Ltda.
Bom, essa é a tal da sociedade. E tem as mazelas Av. Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678 – Jd. Belmonte –
Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624
da saúde e as epidemias.
Marcelo dos Santos (via Instagram)
29 A conquista dos parques nacionais africanos
Proteção da natureza, safáris e bons negócios
LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
Por Jean-Christophe Servant,
enviado especial Fundador
Hubert BEUVE-MÉRY
Participe de Le Monde Diplomatique Brasil :
32 Impactos ambientais e humanos do crescimento Presidente, Diretor da Publicação
envie suas críticas e sugestões para Serge HALIMI
Explosões químicas em cadeia na China
diplomatique@diplomatique.org.br Por Mohamed Larbi Bouguerra Redator-Chefe
Philippe DESCAMPS
As cartas são publicadas por ordem
34 Uma condição para o estado de direito Diretora de Relações e das Edições Internacionais
de recebimento e, se necessário, Anne-Cécile ROBERT
resumidas para a publicação. Reprimir as delinquências dos poderosos
Por Vincent Sizaire Le Monde diplomatique
1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
secretariat@monde-diplomatique.fr
Os artigos assinados refletem o ponto de
vista de seus autores. E não, necessariamen- 36 Ficção científica
Zona de sonho coletivo
www.monde-diplomatique.fr

te, a opinião da coordenação do periódico. Por Zanzibar Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava
com 37 edições internacionais em 20 línguas:
32 edições impressas e 5 eletrônicas.

38 Miscelânea
ISSN: 1981-7525
Capa: © Cesar Habert Paciornik
Canal Unico PDF - Acesse: t.me/jornaiserevistas

Você também pode gostar