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São Paulo
out/2014
JOÃO BATISTA CARVALHO DE BRITO CRUZ
KLANGFARBENMELODIE COM
PALAVRAS:
INTERSECÇÕES DA OBRA WEBERNIANA COM A
SÉRIE POETAMENOS
São Paulo
out/2014
SUMÁRIO
Resumo .................................................................................................................... v
Abstract ................................................................................................................... vi
Introdução .................................................................................................................... 1
clássicas................................................................................................... 12
1.2.2.3 Multi-direcionalidade........................................................ 16
1.2.3.2 Simetrias............................................................................. 20
ii
1.2.4 Melodiadetimbres .......................................................................... 21
instrumentos............................................................................................. 21
simultâneas............................................................................................... 25
Referências ................................................................................................................. 70
iii
LISTA DE FIGURAS
FIG. 1 – Compasso 1-4 do Quarteto opus 22 de Webern (in CAMPOS, 2005, p.314)14
manuscrito do compositor)....................................................................................22
Bach......................................................................................................................24
iv
RESUMO
para como o poeta Augusto de Campos se apropriou não somente de uma ferramenta
Webern, alocando dentro da série poéticas que contam com o seu uso estrutural do
Para situar essa interrelação entre as duas linguagens dadas, a análise comenta
esse passo, nasce a compreensão de como práticas se transpõe entre essas duas
poéticas num nível mais amplo de possibilidades e aberturas. Como está dado discurso
v
ABSTRACT
piece in which he use a technique of composition and orchestration seen also in Anton
Webern: the Klangfarbenmelodie. Starting from the discussion of this use, this essay
regarding the poet’s use of not only a technical webernian tool, but also a whole
reunion of caracteristical aspects of Webern’s, projecting inside the series, poetics that
includes a structural use of silence, briefness of the pieces and even the multi-
directionality of speech.
In order to place this inter-relation of the two given languages, the analysis
addresses how the poetics develop themselves, in each and every sign system. From
between this two poetics on a broader level of possibilities and openings. How does
vi
AGRADECIMENTOS
Para concluir esse trabalho, tive a necessária ajuda e impulso de diversas forças.
algumas pessoas.
Moura pela tão preciosa orientação da minha produção quando eu ainda estava na fase
de projeto. Fica também o meu muito obrigado ao professor Matheus Bitondi, que em
nessa linha, fica também o meu agradecimento à Talita Takeda, que em seu auxílio de
orientação colaborou muito para o meu texto e tem me ajudado a direcionar possíveis
pesquisas futuras.
Kafejian, que me recomendou e ainda recomenda inúmeros livros que foram e ainda
Agradeço a toda minha família, em especial meus pais José Armênio e Lúcia e
meus irmãos Francisco e Luciana, pelo apoio emocional e pelo suporte (inclusive
financeiro).
vii
Cabe agradecer também aos meus queridos amigos pelo suporte e conversa,
Xavier, por sempre refutar e tentar construir junto, e ao Iago Dacol, que sempre foi
um exemplo de foco para mim. Também agradeço muito ao Gabriel Barbosa, que
sempre discute e me mostra leituras tão bacanas, além do que foi quem me ajudou a
conseguir ler e digitalizar a série poetamenos. Ainda pensando nos amigos, não
música mesmo. Não por menos, agradeço também o Julio Massi pela sua ajuda
Agradeço também a Paula Duarte por sempre estar ao meu lado me auxiliando
tão carinhosamente em tantas, mas tantas coisas que nem cabe aqui listar.
Fica o meu agradecimento por fim a minha turma de monografia, da qual boas
viii
INTRODUÇÃO
mudanças radicais nas diversas áreas das artes. Na música de concerto, Arnold
Schoenberg (1874-1951) foi personagem chave para essa reformulação das ‘regras do
jogo’ musical, propondo uma alternativa para o fazer composicional da época, com a
Campos (1931- hoje) escreve uma série de poemas chamada poetamenos, lançada dois
anos depois (1955) dentro da segunda edição da revista Noigandres (cf. BANDEIRA,
Campos se apropriou da obra weberniana e também como uma técnica musical pode
1
se transformar em uma técnica poética, pensando diretamente quais são as
análise literária) e do uso de uma análise semiótica que possa propor uma discussão
com termos que unifiquem as duas linguagens. Dessa forma, a pesquisa torna-se um
O uso de uma abordagem semiótica se justifica por essa obra não tratar
dos quais é notável a constituição de uma obra tríplice: ao mesmo tempo verbal,
sonora e visual. Não por menos, poetas concretos chamam essa associação de
abordagem está na percepção de poetamenos como uma obra com uma poética
aberta, termo que Umberto Eco cunha para caracterizar as obras de arte do século XX
significação, ambiguidade, etc (cf. ECO, 1991). Tentaremos observar, dessa forma, a
poetamenos foi, se não a primeira, uma das primeiras obras do movimento artístico
denominado poesia concreta, já que ela reestrutura a noção de espaço, verso, ritmo e
1
Compreendendo-se por tradicional toda a tradição poética versificada, mesmo sendo os versos
regulares ou irregulares.
2
Termo criado pelo escritor James Joyce (1882-1941) em descrição a sua prosa. Esse termo foi
reapropriado pelos poetas concretos brasileiros para descrever o seu projeto poético na coletânea de
ensaios Teoria da Poesia Concreta (CAMPOS, CAMPOS, PIGNATARI, 1975). No Plano-piloto da
Poesia concreta (1958), a verbivocovisualidade é apresentada como uma “nova área linguística, (...)
que participa das vantagens da comunicação não-verbal sem abdicar das virtualidades da palavra”.
2
direcionalidade na poesia. A exemplo dessa série, a poesia concreta de Augusto de
Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari continuou um caminho (cada vez mais
música nova de Gilberto Mendes (1922 - hoje) e Willy Corrêa de Oliveira (1934 -
hoje) até a MPB de Caetano Veloso (1944 - hoje) e outros integrantes do movimento
tropicalista.
compreensão dessa obra multifacetada. A análise se dá, portanto, não como uma
negação do caráter aberto da obra, e sim por uma explanação de temas que podem
refletir sobre sua gênese e uso até Webern, houve um breve estudo sobre o conceito de
timbre musical usado no começo do século XX, traçando-se uma trajetória de algumas
essa discussão, foi imperativa a disposição das teorias de Jean Baptiste Fourier (1764-
Klangfarbenmelodie.
3
Partindo dessa compreensão da natureza timbrística do som, nasce o segundo
primeiras aplicações. Nessa discussão, o texto base explanado foi o final do tratado de
peças que reflitam uma noção do timbre como dimensão a ser explorada. Para analisar
acadêmica de Webern feitos pelos teóricos Carlos Kater, Pierre Boulez, Henry
um olhar para designações dos autores acerca da obra weberniana (inclusive em lista,
4
utilizados elementos que coadunem as práticas musicais com as poético-verbais, a
discussão é dada num plano a priori das aplicações específicas, mesmo que
insistentemente utilizando-se dessas para a ilustração dos pontos. Para tanto, foram
utilizados ao mesmo tempo textos como Obra Aberta de Umberto Eco e também
subdivididas em duas secções (1.1; 1.2; 2.1; 2.2). Na primeira secção da primeira
segunda parte (2.2), o olhar para cada um dos poemas se torna específico, olhando-os,
5
CAPÍTULO 1
enquanto elemento da composição musical do século XIX para o século XX. Porém,
para compreender as discussões acerca desse assunto cabe fazer antes uma disposição
século XIX para o XX4, diferente da altura (gradação de sons graves x sons agudos),
longos x sons curtos) - (SETHARES, 2005, p. 27). Arnold Schoenberg corrobora essa
Dificilmente têm-se até aqui realizado experimentos de medi-lo (o som) nas outras
dimensões (tímbristica e dinâmica, em detrimento da altura) e menos ainda tentativas
de ordenar os resultados em um sistema. (SCHOENBERG, 2001, p.578)
3
Tradução de Augusto de Campos em Música de Invenção (2007)
4
Essa afirmação mostrou-se inverídica posteriormente, com novas descobertas tecnológicas que
medem científicamente níveis de complexidade em timbres. Tal descoberta influenciou profundamente
vertentes da música recente, como a música espectral.
6
Não longe disso, para descrever um timbre, se faz necessário o uso de
perceptivos que não o sonoro. Mas o que faz de um timbre ser, por exemplo, mais
francês Jean Baptiste Fourier (1768–1830), que elaborou a “Teoria dos Parciais”5.
Nessa teoria, demonstra-se que ondas sonoras podem ser somadas, resultando numa
nova onda cujo desenho é a soma de parciais das ondas anteriores. Partindo desse
tocando a mesma frequência tinham cores sonoras tão distintas6. A possível ideia de
timbre como somatória de alturas e intensidades dos parciais das alturas é, então,
alemão Hermann von Helmholtz (1821-1894), que pretendia unir as análises de ondas
de Fourier com a psicoacústica e a estética musical. Ele criou o conceito que chamou
5
O objeto principal de estudo de Fourier não era tão somente o comportamento do som como
objeto. Antes disso, suas teorias e proposições concernem a diversas áreas do conhecimento, focando
principalmente na matemática e na física.
6
Cabe assinalar, porém, que nessa época essa teoria só lidava com recortes senoidais ideais, e
descartava naturezas do som que também compunham o timbre como, por exemplo, o envelope
dinâmico. Em outras palavras, a análise dos parciais em questão só conseguia entender sinais sonoros
como elementos estáticos, sem mudança no tempo.
7
Décadas depois – em 1911 – Schoenberg discute, no seu livro Harmonia, o
assunto:
Não posso admitir, de maneira tão incondicional, a diferença entre timbre e altura tal
e como se expressa habitualmente. Acho que o som se faz perceptível através do
timbre, do qual a altura é uma dimensão. (...) A altura não é senão o timbre medido
em uma direção. (SCHOENBERG, 2001, p.578)
multidimensionalidade emanada por esse parâmetro. Cabe notar que, ainda que não
que compreender a altura como uma das características quem compõe toda a
dimensão timbrística.
levanta um ponto-chave:
Se é possível, com timbres diferenciados pela altura, fazer com que se originem
formas que chamamos de melodias, sucessões cujo conjunto suscita um efeito
semelhante a um pensamento, então há de ser também possível, a partir dos timbres
da outra dimensão (...) produzir semelhantes sucessões, cuja relação entre si atue com
uma espécie de lógica totalmente equivalente àquela que nos satisfaz na melodia de
alturas. (SCHOENBERG, 2001, p.578)
Ora, não seria exagero dizer que foi assim prenunciada (ou até profetizada) uma
8
Terminando o capítulo (e também o seu extenso tratado), Schoenberg inaugura,
com exclamação, o termo designado para esse novo tipo de articulação linguística:
proposição está na peça Farben (Cores), terceira peça da série Cinco Peças para
peça Quatro Lieder com Orquestra opus 22 de 1913-1915 (CAMPOS, 2007, p.253).
Como aponta Boulez, “pela primeira vez, portanto, vê-se um timbre utilizado por si
dos instrumentos, assim, “os diferentes períodos de uma frase têm sempre sua
Leibowitz:
Cabe citar ainda que, segundo alguns autores, o discurso harmônico da peça se
9
empilhamento dos parciais de ondas senoidais7 (MAIA, 2013, p.29) no jogo de
tem, em sua obra, a dimensão timbrística como algo estrutural. Certa vez, ele disse
que “entre cor e música não existe uma diferença de essência, mas apenas de grau” 8
(WEBERN, 1984, p.25), comentando a relação de sua leitura da estética musical com
a “Teoria das Cores” de Goethe. Não à toa, sua obra resignificou de uma maneira
7
É importante citar que a aproximação em questão é anacrônica, visto que as circunstâncias na
qual a síntese aditiva surgiu como técnica cristalizada são muito distintas da situação posta.
8
A proximidade entre cor e som se dá tanto sob um ponto de vista subjetivo, como para Webern
ou diversos outros compositores; quanto sob uma ótica científica, visto que os ambos os fenômenos
luminosos ou sonoros são descritos como fenômenos ondulatórios. A diferença de natureza entre esses
dois fenômenos está no caráter de cada onda e em como ela se propaga no espaço (MAIA, 2013, p.4).
10
saber: “ausência do pathos romântico; complexidade da organização espacial e
Para uma breve apreensão didática dessas diversas características, cabe enumerá-las e
estudá-las separadamente9.
Passacaglia para orquestra opus 1. (1908). Porém, nota-se que o próprio reuso da
forma passacaglia, que consiste no uso de um tema fixo passeando por registros e
para fora da tonalidade (BOULEZ, 2008, p.325). Esse processo de ruptura culminou
Schoenberg.
9
Para garantir coerência nesta monografia, alguns aspectos listados serão colocados como sub-
tópicos de outros, e consequentemente a ordem desses fatores será diferente da colocada por Carlos
Kater.
10
A escolha pelo uso da passacaglia pode já demonstrar no compositor preocupações com
questões de orquestração, cor e timbre, mesmo antes do uso da chamada Klangfarbenmelodie.
11
As peças que seguem tem mais uma característica que é diametralmente oposta
Por fim, cabe concluir que ao escrever da obra de Webern como “ausente de
em detrimento da homofonia, mas é importante ressaltar que esse novo caráter foi
série de doze tons (além da perda de tonalidade e da série de doze tons como algo
inato e expresso como evolução social de uma demanda da “natureza universal”) com
a busca pela coerência até seu limite em uma obra musical (WEBERN, 1984, p.96).
A volta do uso do cânone foi, então, essencial. Vista nas peças Entfliecht auf
liechten Kähnen opus 2 e 5 Cânones opus 16 (não dodecafônico), esta é uma forma
clássica. Porém, cabe notar que, diferente de Schoenberg e Berg, “Webern voltou seu
12
olhar para procedimentos de contraponto pré barroco11” (BAILEY, 1992, p.94), o que
consolidou ainda mais seu rompimento com a tradição romântica. Nas palavras do
neerlandesa:
romantismo, pelo contrário, ele coloca em seus depoimentos a sua música como um
exclamar: “é com Mahler que temos acesso à modernidade!” (WEBERN, 1984, p.83)
Tanto o uso estrutural do silêncio, como a curta duração das peças e o peculiar
ser complexo sob um ponto de vista espacial e temporal, como veremos a seguir.
Esta divisão, num imenso espaço sonoro, de bolhas de música cercadas algumas vezes
de amplas zonas de silêncio, de início pode dar a impressão de abolir a expressão
melódica. Isto é apenas uma aparência. O sentimento melódico permanece presente
na música de Webern, mas é uma presença impalpável. (BARRAUD, 2005, p.105)
timbrísticas. Mas, sobre tudo isso, o silêncio é componente estrutural, visto inclusive
Quarteto para Violino, Clarinete, Saxofone Tenor e Piano opus 22 (1930) – (Fig. 1):
Nesse trecho (Fig. 1), é visivelmente claro o uso que Webern faz do silêncio.
Dentre os quinze tempos de colcheia nos quatro compassos, o instrumento com maior
número de notas escritas é o piano, com seis (compasso 3). Importante notar que essas
daquilo descrito por Barraud: numa “bolha” de música cercada de silêncio. O mesmo
ocorre com as outras vozes, que contém ou cinco notas (violino e saxofone tenor) ou
14
apenas duas notas (clarinete), sendo que o valor rítmico mais curto que é utilizado é a
colcheia.
por minuto, o que resulta em aproximadamente 8,3 segundos), 40% são momentos em
que nenhum instrumento está tocando (seis colcheias no total, o que resulta em
quatro LPs: cerca de três horas” (CAMPOS, 2005, p.317), e esse fato é explicado de
duas formas. Infelizmente, o compositor foi assassinado por engano por um soldado
Outro lado a ser observado (que é uma dos aspectos mais importantes em Webern) é
que o compositor produzia peças muito curtas em relação ao repertório de sua época e
até em relação às peças de hoje em dia. Suas peças mais longas tinham, no máximo,
dez minutos; algumas das mais curtas têm pouco mais de meio minuto.
Para ter peças com duração tão reduzida, Webern comprime bastante o material
de suas peças. Poucas notas, pouco tempo, muita qualidade, muito conteúdo: o lema
de Webern era “non multa sed multum’ – não muito (quantidade), mas muito
modo que cada célula sonora pode ser escutada isoladamente, pois estrutura-se em si
15
interrelações entre fenômenos autônomos bem mais que relações globais que se
exercem sobre um grupo em função de certos dados” (BOULEZ, 2008, p.330). Boulez
portanto, a seguinte frase de Webern, citando seu mestre: “uma importante afirmação
como ele dispõe variações sobre ideias iniciais (1.2.3. dessa monografia).
1.2.2.3. Multidirecionalidade
Sendo a música uma arte temporal que tem seu discurso artístico pautado em
16
de objetos musicais é possível vistos alguns pontos. Em primeiro lugar, fica a
e que escutar duas vezes qualquer peça musical, mesmo ela estando gravada, provoca
desse.
proposições parecidas entre si, mesmo que diferentes, que aconteceram na música do
final do século XIX e começo do século XX. São exemplos disso o começo de
principalmente com a sobreposição de frases dentro da música, e por isso pode ser
sobrepoem e interpenetram.
sintática, pois no seu discurso musical, não são frases musicais diferentes que são
dentro de uma mesma frase musical, notas com cargas semânticas divididas
generativas de possíveis frases musicais para serem lidas: múltiplos significados. Essa
17
enigmática noção muito se relaciona com a ideia de abertura da obra de arte musical
colocada por Umberto Eco quando comentando a música serial integral (pós-
weberniana):
É mais do que evidente que essa característica pontuada por Eco se encaixa,
uma forma bastante clara. Partindo do que ele chama de “desejo de uma coerência
compositor exclama:
Desenvolver tudo a partir de uma ideia principal! Eis a coerência mais forte – todas as
partes fazem a mesma coisa, como nos neerlandeses, onde o tema era trazido por cada
uma das vozes em todas as transformações possíveis, com entradas diferentes e em
18
diversas alturas. Porém, a palavra de ordem permanece sempre: temática, temática,
temática! (WEBERN, 1984, p.83-84)
citar que, relativo à esse esforço, Webern encontra na forma variação esse potencial
dodecafônica. Mas, diferente de Schoenberg e Alban Berg, Webern era o que mais
sistema dodecafônico. Porém, isso nunca foi, de forma alguma, limitador para sua
liberdade composicional. Sua relação com a série de doze tons era contemplativa, e,
p.90).
da série dodecafônica chegava a seu fim, era como se a peça tivesse terminado
(GRIFFITHS, 1987, p.48), o que marca uma grande diferença com os outros
19
Ainda sobre a economia intervalar de Webern, cabe citar que, segundo relatos,
o compositor, no ato de criação, escrevia suas peças e pouco a pouco riscava notas
musicais dos seus rascunhos, “enxugando” suas obras (MORAES, 1983, p.49),
1.2.3.2. Simetrias
Webern usa como recurso para composição o trabalho com simetrias. É sabido que o
relacionadas à série matriz, no que chamamos de retrogradação (ler a série de traz para
Um primeiro exemplo para esse uso é a série que Webern utiliza para a
composição do segundo movimento da sua Sinfonia (Opus 21, 1928) – (Fig. 2):
20
cânon duplo daquele tema, se constrói uma estrutura na qual “coerência maior não é
2007, p. 109).
obra do compositor Anton Webern, é mais simples pontuar e discutir questões sobre o
Interessante citar que, antes de Schoenberg inaugurar esse termo em seu tratado de
Harmonia, Webern já propunha, como no sua série de Seis Peças para Grande
Orquestra (1909) uma semente com alternâncias timbrísticas, mesmo que ainda com
aspecto funcional nas peças de Webern, onde as cores timbrísticas deixam de ser
p.254).
recortada por instrumentos também é importante que seja ressaltada, pois acentua a
similar:
... da melodia-de-timbres, que põe ênfase nos timbres dos instrumentos, fragmentando
a melodia num caleidoscópio multicolorido de sons e de ‘brancos’ sonoros.
(CAMPOS, 2007, p.96)
forma que cada nota e timbre de um instrumento individual (ou grupo) tem
seguir, uma situação na qual uma melodia dada é picotada em diversos timbres. A
10 compassos da peça.
22
Nota-se que, nos primeiros oito compassos, não há abertura de vozes e nem
deste.
Agora, o arranjo dos primeiros cinco compassos desta mesma peça por Anton
23
Imediatamente, são perceptíveis dois fatores: 1) a melodia é apresentada
exatamente como foi escrita e 2) para a apresentação da melodia nos primeiros cinco
melodia, então, começa a passar por outros instrumentos, não saindo da família dos
metais (do trombone para a trompa, e para o trompete em dó) o que cria um colorido
espacial pouco contrastante. No quinto compasso, a melodia volta para a trompa, mas
em seu ataque conta com uma dobra quinta abaixo da harpa, o que confere a um
instrumento repetido uma coloração diferente. Prosseguindo com o arranjo (Fig. 5):
24
Fig. 5 – Compassos 6-10 do arranjo de Anton Webern para a fuga Ricercata de J. S. Bach
compasso oito: a melodia continua a ser fragmentada dentro da família dos metais (da
dó). O recurso da dobra com a harpa reaparece no compasso oito, só que dessa vez a
melodia que estava na família dos metais (acrescida a dobra da harpa) deixa esses em
pausa e muda drasticamente para a flauta e para o segundo violino, este fazendo o
contêm apenas uma frase com uma melodia solo e dois compassos da reapresentação
dessa com uma linha contrapontística, houve sete instrumentos utilizados (trombone,
trompa, trompete em dó, harpa, flauta, violino e viola) e a linha melódica principal foi
simultâneas
curioso: ao mesmo tempo que elas se tornam dependentes das vozes de outros
25
instrumentos para estruturação da melodia, elas são instâncias findas em si mesmas de
certa forma devido à importância que lhes é dada. Nessa linha, Boulez afirma:
“Não se trata do emprego dos instrumentos concebido sobre uma base acústica, no
sentido em que a acústica pode engendrar fenômenos estruturais – caso particular do
Debussy da última fase -, mas estamos diante de uma escrita contrapontístico-
instrumental em que cada timbre desenha um caractere estrutural da obra” (BOULEZ,
2008, p.330)
atreladas à lógica tonal emanada por essa melodia. Em obras como o quarteto opus 22,
também já colocado aqui, as “bolhas” de música são muito mais independentes entre
26
CAPÍTULO 2
CAMPOS
27
Em 1955, Augusto de Campos lança, dentro da segunda edição da revista
série (Fig. 6), na qual não estão os poemas propriamente ditos, e sim uma série de
Em primeiro lugar, é preciso entender sob o ponto de vista da poética12 da obra, qual a
relação dela com o discurso musical. A primeira e mais evidente relação que pode ser
(QUEIROZ apud CAMPOS, 2004, p.296). Como veremos, essa mímesis se dispôs ao
fundamento da estrutura do que era considerada a poesia para o trio dos poetas
poesia concreta como manifestação artística também sonora13, ou, como Haroldo de
12
Entende-se, aqui, o conceito de poética tal qual descrito por Umberto Eco, “como programa
operacional que o artista se propõe de cada vez, o projeto da obra a realizar tal como é entendido,
explícita ou implicitamente, pelo artista.” (ECO, 2005, p.24)
13
Proposição que parte da tentativa de “ataque direto à medula do objeto (material artístico)”,
estabelecendo uma “atualização ‘verbivocovisual’ do objeto virtual” (CAMPOS, CAMPOS,
PIGNATARI, 1975, p.46). Em outras palavras, a tentativa de descompartimentar a proposição artística
de suas diversas linguagens engendrando uma nova abertura de pensamento para a questão essencial da
expressão artística: a organização. O confronto pauta-se aqui então com a estrutura (por suposto
múltipla) do objeto a ser significado artisticamente, em seu estado virtual – pós matéria.
28
oral”14 da palavra (CAMPOS, CAMPOS, PIGNATARI, 1975, p.46). Colocado esse
sua natureza simbólica para uma noção pautada na fruição sonora musical.
palavras são como notas escritas em uma partitura acopladas de um sentido semântico
Pignatari, que diz que a poesia escrita nada mais é do que a transmutação de uma
articulação linguística oral sonora, e toda leitura poética se concatena sonora e, como
14
Além das outras duas dimensões que compõe a palavra para os concretos: a gráfico-espacial e
a conteudística.
15
Mallarmé é repetidamente apontado com um dos escritores que mais influenciou a poesia
concreta. No Plano-piloto da Poesia Concreta (1958), o poeta francês é é apontado como o primeiro
dos percursores da poesia concreta, e contribuição para o movimento é descrita como “o primeiro salto
qualitativo: ‘subdivisions qualitatives de l’idée’(subdivisões prismáticas da ideia – tradução
interpretativa minha); espaço (‘blancs’) e recursos tipográficos como elementos substantivos da
composição” (CAMPOS, 1958).
29
imaginação sonora dos objetos transcritos (CAMPOS, CAMPOS, PIGNATARI,
1975, p.11). Partindo desse ponto de vista, é possível compreender como o conceito
de obra verbivocovisual (termo de James Joyce aplicado para obras com as três
utilizar para transpor a técnica weberniana para o seu discurso poético. É dito que,
nessa série, os instrumentos musicais e seus timbres com suas (falta de) cargas
usado nos poemas, aponta-se que cores serão utilizadas a fim de estabelecer os saltos
palavra, etc” traz uma noção diferente de articulação entre timbres do que a mudança
poderia até ser colocada como característica geral de quase qualquer mensagem oral.
Augusto tivesse que considerar a mensagem poética como, pelo lado da escritura, não
melódica. Dessa forma, talvez seja mais apropriado colocar que, sob uma ótica
30
No final da página introdutória, Augusto ainda coloca que a série de poemas que
dela seguem são feitas para serem oralizadas ou, em suas palavras, são passíveis de
“reverberação oral” na qual vozes reais leem os textos de acordo com seu aspecto
leitura oral, o poema também é feito para ser lido de qualquer maneira desejada pelo
weberniana.
Elas são: o uso de uma complexidade da organização espacial e temporal (na qual
já citadas, caso a caso nos poemas da série. Dessa maneira, de todas as características
31
romântica não será abordada nesse capítulo, visto que essa discussão não concerne
diretamente o diálogo entre a poesia e a música nesse caso, já que o diálogo com a
tradição artística no Brasil nos anos 1950 se mostra muito diferente do que a tradição
artística europeia na virada do século XIX para XX. Contudo, cabe citar a colocação
de Antonio Bessa, ainda nessa mesma linha: “Como en Webern, hay ecos de otras
Como que adotando o lema de Webern – non multa sed multum - todos os seis
poemas de poetamenos têm apenas uma página, nas quais palavras coloridas estão
cromática da obra. O paralelo com Webern fica aqui explícito, já que o compositor se
PIGNATARI, 1975, p.9). Dessa frase, é possível pois entender que todo poema é,
também, organizado ritmicamente tal qual uma estrutura sonora (por que não,
16
“Como em Webern, há ecos de outras obras e estilos incorporados à obra – o estilo
provençal, barroco, parnasianismo” - tradução minha
32
musical), visto que Pignatari equipara a escrita (“palavra”) à dimensão sonora
(“silêncio”)17.
também se faz notar, na série, não apenas na forma fragmentada e comprimida dos
redutiva da série, fica a discussão de Bruce Williams sob o título da série de poemas:
A partir do próprio título, que constitui, de fato, o Leitmotiv de um dos poemas, Augusto
de Campos já inicia o seu processo de palavras compostas. poetamenos, junção das
palavras “poeta” e “menos”, sugere talvez a natureza mínima sem retórica da linguagem
poética da obra. Também, presente nesta palavra está o conceito de “amenos”, conceito
que antecipa o aspecto suave de algumas obras. (WILLIAMS, 1986, p.56)
mínimo dois lados bem distintos em termos de significado partindo da escrita ambígua
da escrita de Campos. As palavras são dotadas de ambiguidade, o que faz com que
qualquer frase composta tenha uma abertura de possíveis significados. Assim, como
mesmo discurso.
17
O silêncio na Poesia Concreta é provido, ao mesmo tempo, de diversas matrizes. Além da
relação já colocada e clara com Webern, cabe citar a relação dos poetas concretos com o uso do branco
em Mallarmé ou e.e. cummings (cf. CAMPOS, CAMPOS, PIGNATARI, 1975).
18
Tal qual a escrita ideogrâmica chinesa ou a construção de conceitos na língua alemã. Esse
tipo de articulação é nomeada de palavra-valise, um tipo de neologismo caracterizado pela soma de
duas ou mais palavras pré-existentes.
33
A outra abertura de direções de leitura é mais que evidente na maioria dos
como será visto na secção 2.2.1), há possibilidades para o leitor criar simultâneas
no poema dias dias dias). Associando-se a essa noção, está ainda o cromatismo das
palavras, que pode criar, por si só, um discurso próprio, ao se ler uma cor de cada vez.
como ramos deslocados de uma direcionalidade una, conceito que se aplica totalmente
à série poetamenos:
discursiva, pois ela pode servir apenas para uma coesão interna da articulação de
34
2.1.2. A Klangfarbenmelodie weberniana em poetamenos
dos poemas, Augusto explica a técnica como sendo o uso de uma “melodia contínua
próprio.
relação entre as cores como artifício do poema, algo claro principalmente no uso da
cores, sendo que todas elas simultaneamente só são apresentadas em um dos poemas
dos poemas, o corte se dá entre palavras ou frases, mas há poemas nos quais os cortes
são mais específicos, feitos em sílabas e até em letras (como em lygia fingers e
35
pouco dessa característica, tendo apenas duas mudanças de cor no poema todo. Dessa
forma, é possível separar todas as fragmentações dos poemas em três tipos: 1) corte
entre duas palavras; 2) corte entre duas sílabas; e 3) corte entre dois fonemas.
recolocação das características visitadas até agora diretamente nos textos. Tem-se
como finalidade nesse momento a resposta para a seguinte pergunta: como todas as
série? Para tanto, há a necessidade de se criar redundância tanto com tudo que já foi
colocado nas partes anteriores a esta quanto entre os objetos que estão sendo
analisados, visto que o estudo aqui deixa de ser generalista e passa a ser mais
empírico, material.
original, mesmo levando em conta que, como bem afirma Bruce Williams em seu
36
Não se pretende, em nenhum momento, tentar esgotar as possibilidades de
leitura da série analisada, mas colocar em evidência possíveis leituras dos poemas a
série. Esse aspecto semântico será consequência do foco da análise aqui presente:
sintáticas.
37
2.2.1 poetamenos
38
O primeiro poema da série (Fig. 7), homônimo a ela, é sem dúvida o que mais
destoa dos ulteriores. poetamenos é um poema curto, no qual todos os curtos versos19
uma cor – o roxo – mas há o uso do amarelo (sua cor complementar) em quatro
pequenos trechos.
são alinhados a esquerda, e são tão curtos que é possível lê-los como se eles fossem
uma linha quase contínua; como se a versificação fosse invertida da horizontal para a
vertical. Não há aqui nenhum espaço a mais, nenhuma palavra solta no papel, de
modo que a direção de leitura se torna única, mesmo com um discurso pautado na
fragmentação.
primeiro texto como sendo um “proêmio lírico”20 da série toda (BESSA, 2007, p.62),
aparições, o ponto de corte é dado dentro das palavras usadas (“roch-aedo”, “rup-
primeira palavra, a divisão se dá entre o radical roch-, relativo a rocha, e aedo (do
19
Nesse caso, talvez ainda faça sentido usar o termo verso, diferente dos outros poemas da
série. Isso de dá pelo uso do espaço não ser estrutural nesse caso. O discurso aqui se dá não de forma
precisamente concreta, ou seja, negando uma narrativa temporístico-linear, e estabelecendo um
desenvolvimento espácio-temporal (cf CAMPOS, 1958).
20
Entende-se aqui por proêmio um pequeno trecho introdutório de uma peça que ao mesmo
tempo que a inicia, também é uma síntese de seu todo.
39
grego: poeta, bardo). Já no segundo caso, há a soma de rupestre (relativo a rochas)
com estro (também do grego: inspiração) – (SCARDINO, 2011, p.7). Com efeito,
assim cria-se a partir dos pontos de corte de roxo para o amarelo, uma relação de
complementaridade (como das cores roxo e amarelo) entre dois elementos muito
palavras e trechos desse poema (como as palavras poetamenos, uni-sono), mas esses
do verso para picotar a ‘melodia’ contínua sem uma mudança de cor. Assim como
dentro de uma mesma palavra estabelece um ponto de corte através da cor, atribuindo
àquela palavra um significado extra, o ponto de corte dado pela ‘linha pulada’ é
significa uma mudança brusca, súbita. No verso seguinte, essa mudança se dá,
subitamente, sem deixar a palavra terminar sua construção inteira, o que coloca no ato
terceira linha para a décima quarta: ao construir a frase “us somos um uníssono”
ruptura no meio da palavra uníssono, ao mesmo tempo saltando para o próximo verso
40
e mudando de cor do roxo para o amarelo. Esse corte diz em si mesmo a qualidade do
cores e de ruptura dos versos. É cabido reiterar que essas certamente não são as únicas
Mesmo sendo um poema lírico-contínuo no qual uma voz solo fica presente do
início ao fim, o silêncio no poema também pode ser evidenciado, não tanto pela
espacialização, e sim pela brevidade do texto, que se manifesta tal qual uma “bolha de
do poema no sentido vertical contribui para tanto, já que nessa orientação as palavras
criadores de pausas na leitura, a partir do momento que esses fatores criam rupturas e
Um último ponto que cabe ser colocado, ou melhor, reiterado, sobre esse poema
que não há uma voz resultante de cada cor. Porém, cabe pontuar que as diferentes
cores nesse poema, mesmo não tendo uma independência de vozes, em certo
momento podem estabelecer uma independência de caráter (tal qual visto no exemplo
dos pontos de corte roch-aedo e rup-estro, nos quais a voz em roxo se refere a rochas
41
2.2.2 paraíso pudendo
42
espacial das palavras bastante distribuída, com as algumas palavras de fato espalhadas
no papel. O poema faz uso de quatro cores, a saber: azul, vermelho, verde e amarelo.
questão amorosa apresentada no primeiro texto, com a ideia de ser uníssono. Essa
continuidade fica evidenciada quando, em uma das linhas, é usado o termo “petr’eu”
(soma de petr- relativo à pedra, com eu), que se relaciona diretamente com o poeta-
rocha descrito na secção anterior. Isso nada mais é do que o uso motívico dos
elementos trabalhados no primeiro poema, de forma que seja criada uma coesão de
material já posto.
Um aspecto que tem de ser discutido sobre esse poema é como o silêncio se
constrói no universo próprio do texto. Dentro desse caminho, cabe pontuar algo
a colocação visual das palavras nesse poema se dá de tal forma que o silêncio é
poema o uso de espaçamentos maiores dentro de cada linha, entre diferentes palavras
ou em relação à margem. Coadunando-se com isso, a maior parte das linhas da peça
tem poucas palavras. Tal recurso cria espaços vazios dentro da fruição da leitura,
expressão “ah”, escrita em azul na segunda linha, que se encontra totalmente isolada,
43
décima segunda linha: escreve-se “espalmas” com espaços maiores e homogêneos
entre cada uma das letras. Dessa forma, a leitura fica condicionada a uma rítmica mais
distendida, lenta.
como a palavra “ah-braços” decorrente da soma desses dois fragmentos em azul, visto
que eles estão alinhados (BESSA, 2007, p.62). Assim, o discurso é definitivamente
com eu ou “elila” – estranha possível soma de ele e ela). Para essa construção
multidirecional, o poema poderia até não ser multicolorido, e então o uso de cores
possível dizer que, como em poetamenos, as cores têm caráter e motivos fonéticos
generativos de significantes sui generis, de forma que dentro de cada cor, às vezes é
possível ver um trabalho acústico-oral que a distingue das outras. Dessa forma, é
possível ler tanto o discurso que cada cor coloca separadamente quanto os recorrentes
melodia composta, ou de uma textura polifônica: mais de uma voz no mesmo plano
pelas vozes vizinhas. Para ilustrar essa noção de sobreposição de direções no mesmo
44
plano, vale o olhar para como se constrói o discurso da cor vermelha nesse poema,
em sus-penso sendo que a primeira parte da palavra aparece cinco linhas antes da
45
2.2.3 lygia fingers
lygia fingers (Fig. 9) é o terceiro e o mais radical dos poemas no que se refere ao
eufórica. Augusto de Campos comenta essa obra como talvez a experiência mais bem
46
Antes de tudo, cabe citar que o paralelo que Campos estabelece é precisamente
com o Quarteto opus 22 para Violino, Clarinete, Saxofone Tenor e Piano de Webern,
vozes. Coadunando-se com a fala do poeta, em lygia fingers essas mudanças de vozes
e seus pontos de corte são levados ao extremo: o corte no meio de frases e até de
dentro das mesmas palavras, dado entre sílabas e até entre letras.
que não há como picotar uma palavra em uma instância verbivocal menor do que um
fonético. Importante colocar que é possível trazer da temática do poema uma imagem
do porquê dessa picotagem mais acentuada: o poema, em certo lado, trata do ato de se
datilógrafo).
veremos, na disposição de um quase serial de ecos das palavras. Assim como Webern
exaustivamente sobre uma mesma série dodecafônica, Campos trabalha, aqui, cada
cor como matriz serial para a construção do poema. Para tanto, é designada uma cor
47
para cada “campo fonético”, e sempre que no decorrer do poema esse “campo
fonético” for acessado, a cor é recolocada. O melhor exemplo para isso é a disposição
reafirmação disso pela cor, a palavra lygia é inserida em diversos contextos, a saber:
“digital”, “illa”, “grypho”, “linx”, “felyna”, “ly”, “figlia”, “felix”, “nx”, “only”,
“lonely”. É construída dessa forma uma ampla descrição de uma personagem, lygia,
Seguindo por essa lógica, sempre que uma informação fonética nova é
palavra “lynx” (talvez a palavra lince misturada com link, relação em inglês), duas
foneticamente da palavra lynx, e não de lygia. Como em Webern, uma relação muito
forte de coesão interna se estabelece assim dentro de cada cor, transpondo a coesão
narrativa definida, apenas com blocos semânticos (PONDIAN, 2005, p.4) que
48
amada, Lygia. Algumas temáticas recorrentes seriam, a fim de exemplo: a relação
com Lygia tal qual uma relação familiar – posta nas palavras mãe, figlia (filha em
italiano) e sorella (irmã em italiano); Lygia como ser felino – nas palavras felyna
diálogo do autor com o ato de se escrever, digitar – nas palavras digital, fingers (dedos
como Sterzi discute uma impressão primeira do texto, ainda a fim de compreender o
Campos ter, na ocasião da gravação de diversos dos seus poemas, gravado esse poema
totalmente solo, sem dividir as vozes ou as cores com outra voz (CAMPOS, 2002,
criativa, porém muito parecida com o visto em paraíso pudendo, sob o ponto de vista
enigmático exemplo que pode ser dado nessa linha é o do final do poema, que termina
49
com um fonema t duplicado (“tt”) ligado por um traço de salto de linha a uma letra “l”
solitária no outro extremo oposto da linha. Esse salto pode ser interpretado, por
retorno para a letra “l” (de “lygia”), primeiro e último elemento apresentado no
poema.
nos espaços assimétricos entre palavras (como na quinta linha, onde as repetições da
palavra “linx” estão totalmente separadas da palavra “quando”), nas linhas quase
do texto, de forma que se podem criar inúmeras frases com poucas palavras. Um bom
exemplo disso é a primeira linha do poema, “lygia finge”, seguido de “rs”. Lendo
apenas a primeira linha, podemos inferir que Lygia finge, usando essa segunda
palavras seguintes, “ser digital”, as direções de leitura se ampliam: pode-se inferir que
“Lygia é um ser digital” ou até que “Lygia finge ser digital”. Dessa forma todas as
50
2.2.4 nossos dias com cimento
Logo após lygia fingers, nossos dias com cimento é o quarto poema da série
poetamenos (Fig. 10). Sob um ponto de vista estrutural, ele é muito semelhante ao
segundo poema da série, paraíso pudendo, como veremos a seguir, mas tem como
característica a criação de níveis de leitura com frases mais longas. No poema são
51
utilizadas quatro cores: roxo, verde, vermelho e amarelo. É também o segundo maior
poema da série.
abertura de direções entre uma leitura de cada cor e a possível leitura de todas as cores
leitura nesse poema bem mais longas do que nos poemas anteriores, onde as
Aqui, há construções de possíveis frases mais longas mesmo que essas frases estejam
construídas sobre a mesma estrutura base de pontos de corte do segundo poema (quase
sempre entre duas palavras). A fim de exemplificar esse crescimento dos fragmentos
lidos, cabem alguns exemplos. Um primeiro exemplo que pode ser dado está na
segunda metade do poema, com a entrada da voz vermelha (“mendigos são...”). Nesse
“mendigos são os que sentam dois nos bancos da praça ao vento tão ventre segurando
tanto as mãos”, mesmo que, dentro dessa grande frase, outras possam emergir como
“mendigos são dois nos bancos da praça ao ventre tantos passos”. No final do poema,
qual uma polifonia musical – na escrita verbal. Enquanto as cores roxo e vermelho
estão dialogando entre si (versando sobre a despedida, o “boa noite”, o “até amanhã”)
a cor amarelo urge como novidade ao diálogo e coloca, como em vocativo, o verbo
52
“perguntam”, tal qual um narrador descrevendo e propondo o momento seguinte. Em
Tal qual em Webern, em nossos dias com cimento temos como recurso para a
comprimidas. Na primeira metade do poema, é plausível dizer que cada voz utiliza-se
pudendo e lygia fingers. Dentro das vozes, uma vez que motivos fonéticos são
Ilustrando essa técnica, podemos observar primeiramente o caminho que a cor verde
toma na primeira metade do poema: nesse trecho, as palavras designadas para essa cor
rearticulação mínima. O segundo exemplo para essa construção está na voz vermelha,
também em suas primeiras palavras: “e o menos, em, menos, men digos”. Aqui
também, está claro o trabalho sempre dentro das consoantes m e n e das vogais e e o.
sob temas fonéticos com suas consequências semânticas) e a segunda parte do poema
fonética).
Nessa separação entre técnicas, o uso do silêncio se faz estrutural, assim como o
primeira e a segunda metade do poema, separação essa construída três linhas bastante
53
Um ponto interessante a ser colocado nesse momento é, também, como esse
poema é totalmente coeso com os que o precedem na série dada. Como bem afirma
Scardino:
“O nome Lygia, que propomos atuar como a série weberniana a guiar a composição,
se insinua no texto — foneticamente, na palavra ―conchiglia (concha em italiano)—
como refúgio, que protegeria o poeta, e, também, como material (calcário) que
constitui a cidade, como parte do cimento.” (SCARDINO, 2011, p.9)
reverberação oral feita por Augusto de Campos, na qual ele mesmo recita o poema e
todas as suas vozes com apenas um timbre (CAMPOS, 2002, faixa 6).
54
2.2.5 eis os amantes
Em eis os amantes (Fig. 11), quinto poema da série, a construção poética é feita
apenas com duas cores em constante contraposição. Essas cores são o azul e o laranja,
cores complementares, fato que já começa a traçar como esse discurso colorido é
estruturado.
55
Ao usar apenas duas cores (complementares) para exprimir sua relação com sua
amada, o poeta coloca, em cada voz, a fala de um dos amantes em questão. De uma
cor, o poeta; da outra, sua amada: eis os amantes. Edificando-se o poema dessa
maneira, percebemos nas duas vozes uma relação de trocas e fluidez: ambas as vozes
Campos deste mesmo poema, já que ele escolhe fazer essa reverberação oral ao lado
de Lygia de Azeredo Campos (sua esposa), dividindo-se a ele em uma cor (laranja) e a
qual se torna um tanto inevitável escapar. Ao passo que o poeta criou uma constância
na relação entre as duas vozes (sempre uma completando a outra), o nível de abertura
semântico posto por cada uma torna essencial pontuar como elas também estabelecem
mesmo texto. Os exemplos dessa divisão estão no poema todo, seja em pequenas
Partindo da compreensão desse poema como uma relação entre dois polos que
se completam, nasce uma característica muito peculiar desse texto: o uso da simetria
56
como estruturante na construção do poema. Em um primeiro nível, cabe falar dessa
no final dessa construção estabelece uma síntese entre as duas vozes em questão. A
Nesse trecho (Fig. 12), fica evidente a relação binomial entre diversos termos
(“um” com “outr-”; “cima” com “baix-”; “eu” com “ela”), numa construção
complementaridade: “ecoraçambos”.
Durante todo o poema, esse eixo central é respeitado, mas diferentes usos espaciais
momento, se torna pertinente fazer um pequeno paralelo de eis os amantes com uma
das análises gráficas feitas por Carlos Kater sobre os cânones de Webern (Fig. 13).
57
Fig. 13 – Análise gráfica de Carlos Kater sobre o a 6ª variação nos cânones de WEBERN
síntese para essa construção, como já visto no caso das palavras “cim-eu” (esquerda),
58
Um outro ponto em eis os amantes que cabe ser dito é como nessa disposição
simétrica se faz um trabalho rítmico bastante diferenciado, que sempre usa o branco-
eixo). Em outro momento, palavras são distendidas, colocando-se espaços entre suas
diretamente com o espaço que o texto ocupa na página. Dessa forma, o silêncio é,
também aqui, essencial para a elaboração do poema: ele que permite toda a
ambiguidades e diferentes leituras se dão tanto pela organização espacial (mesmo que
ela direcione para uma linearidade única, já vimos que os elementos mais isolados
linear textual lhe traz) quanto pela colocação de palavras-valise. Ilustrando-se isso,
verbo gemer e também a palavra gêmea, completando-se o termo irmã gêmea com a
concreta. Assim, eis os amantes também utiliza-se de uma compressão própria para
59
multidirecionalizar o discurso poético, suprimindo conteúdos múltiplos dentro de
palavras carregadas.
60
2.2.6 dias dias dias
No último poema da série (Fig. 15), finalmente todas as seis cores (verde,
vermelho, azul, roxo, amarelo e laranja) da série aparecem juntas. Aqui se elabora a
cromática. Um primeiro ponto que cabe colocar é como cada cor estabelece, de modo
geral, uma direção e uma entonação própria, com uma disposição fonética própria.
Assim, cada cor seria uma das facetas dos sentimentos inerentes ao caos interno
memória textual interna e entre os poemas da série. A primeira cor que aparece no
poema é o verde. Alienando-a das outras cores, sua voz fica aproximadamente da
seguinte forma: “dias dias dias esperança deum só dia expoeta expira: “sphynx e gypt
repetição constante da palavra dia e um uso grande das letras g, y e x. De tal forma, se
observar como a construção espacial da voz se dá de tal forma que não é possível lê-la
de forma fluida, as linhas são sempre interrompidas, não há uma sintaxe tradicional
culminando, inclusive, com a voz acabando com uma consoante flutuante (“g”),
fortalecendo ainda mais uma Klangfarbenmelodie não entre diferentes cores, mas
dentro de uma mesma cor! A segunda cor que é apresentada é o vermelho, que segue
com o seguinte texto, também alienando-o do resto das vozes e do espaço: “sem uma
percebemos uma fala diferente da primeira (verde), pautado numa coesão interna
21
A cor verde foi, inclusive, utilizada para um campo fonético semelhante (g, y, n e x) em lygia
fingers.
62
cadeia, ou seja, uma palavra em geral relembra aquela que a precede (“linha” – “minh
a”; “a mor” – “amemor IA”; “stertor – AR”). Porém, da mesma forma que a verde, a
cor vermelha conta com uma disposição profundamente fragmentada dentro de uma
mesma cor, de forma que a melodia fica duplamente fragmentada, entre cores e dentro
da mesma cor. Cabe colocar que há fluidez na leitura dessa linha isoladamente, tanto
pela coerência interna que ela estabelece quanto pela sua disposição espacial, sempre
centralizada no meio da página. Fica evidente que a cor roxa se constrói de maneira
direita da página. A quarta cor a aparecer, o amarelo, conta com um recurso um tanto
uso da caixa alta (nesse caso no texto todo, mas esse motivo perpassa outras cores de
forma discreta), pois ela cria, para além do discurso cromático e do textual espacial,
uma nova possibilidade de articulação, como uma nova forma de fragmentar uma
determinada linha já fragmentada com cores. Exemplo disso é como a palavra amarela
inaugurando entre si uma coerência sonora, mas também uma articulação semântica,
mesmo acontece com a cor azul, última a ser apresentada no poema. Nela, a coerência
63
se dá pela fragmentação excessiva da linha em questão, com uma sequência de
articulam entre si. Tal qual nos outros poemas, as direções de leitura aqui também são
claro exemplo para isso é como o fragmento “dias sem uma” pode ao mesmo tempo
ser completado pela palavra “esperança” quanto pela palavra “linha”, o que confere à
frase ao mesmo tempo um caráter objetivo (de dias sem escrever) e subjetivo (da
Como já pode se perceber, aqui, como nos outros poemas, há uma organização
como dias dias dias relaciona-se tematicamente e serialmente com todos os poemas
da série que o precedem. Além de tratar também da separação com a amada Lygia, o
a saber: a palavra “LY GIA” pode ser lida entre a cor amarela e a cor vermelha, e a
64
palavra “s e p a r a m a n t e” também é uma construção que remete diretamente ao
de linhas verbais e ideias (como já visto) quanto para criar diferentes velocidades de
Dessa maneira, estabelece-se aqui nesse poema uma síntese profunda e densa de
palavras!
65
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finda a análise da série poetamenos, é possível concluir não apenas que a obra é
poetamenos é não menos do que uma obra de arte pautada na intersemiose das
linguagens verbal, sonora e, como não dizer, também espacial. Conclui-se isso,
partindo das análises, pelo uso da palavra com uma profunda preocupação com sua
mesmo tempo três fatores que dialogam com todas as matrizes possíveis da
espaços brancos inseridos no corpo do texto, o que, por si só, já propõe uma leitura
66
inseridos dentro de palavras, o que necessariamente impõe uma condição rítmica
adversa para a leitura da peça. Assim, reforça-se ainda mais a ideia de poema-
coloca para a sintaxe do texto. As palavras não precisam seguir mais uma lógica
de Augusto de Campos (sem esquecer que poetas que o precedem já tenham feito
Ainda desse ponto, é possível concluir que Augusto de Campos constrói (por
Klangfarbenmelodie para o discurso verbal, mesmo que anunciando que iria utilizar-
se apenas de uma.
linguagem verbal é também, como já visto com base Pignatari e nos irmãos Campos,
acústicos sob um ponto de vista semântico e melódico sob um ponto de vista sintático
67
construção técnica na qual as frases são sucessões de timbres, não há pontos de corte
Augusto de Campos, dentro do uso das cores no texto se dão inúmeros cortes e
poemas.
nesses poemas nasce quase que diretamente das descobertas científicas dos séculos
68
Klangfarbenmelodie weberniana, diversas outras texturas musicais podem ser
forma, é necessário assumir aqui que as análises dos poemas feitas no capítulo
(in)decifrável.
69
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