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Escritos sobre a Dialética radical do Brasil Negro – Clóvis Moura.

Cap. IV: Especificidades e dinamismo dos movimentos de São Paulo:

Dois universos negros e sua dinâmica divergente em São Paulo (p.290)

Clóvis divide o universo negro em dois níveis: 1) plebeu, composto pelos negros
pobres, com pouca ou nenhuma escolaridade, que vivem em empregos mal remunerados ou
desempregados; 2) letrado, a classe média nega que ascende por meio de cargos burocráticos,
pelo crescimento econômico, pela arte, esporte ou academia. Esses dois grupos apresentam
diferenças de comportamento e ideologias divergentes (mesmo que possuam alguns
elementos em comum), fruto de suas diferentes condições materiais.

As propostas sobre a questão racial no Brasil, geralmente elaboradas por setores do


universo negro letrado não saúdam as problemáticas vividas pelo negro plebeu. Este, apesar
de ser reconhecido como parte do problema racial, não é visto como força política capaz de
resolver as contradições sociais e raciais devido a sua posição na estrutura do país, mas é visto
como instrumento (objeto) no qual o universo letrado deve atuar (contraditoriamente
veremos que é esse lugar social que o negro plebeu ocupa que o torna setor altamente
explosivo e potencialmente radical, fora é claro, o fato de que esse universo compõe um
numeroso setor da classe trabalhadora do país). Esses dois universos quase nunca se cruzam
na práxis política, principalmente no que diz respeito a questão racial. Alguns grupos negros se
voltam para o universo plebeu, mas geralmente, a partir de uma visão assistencialista e não de
fusão política e ideológica.

A divisão entre estes universos se evidencia nos processos eleitorais, onde figuras
negras (normalmente oriundas de setores letrados) se deparam com a contradição entre os
anseios do universo letrado e as reivindicações do universo plebeu. Então, nesse sentido se
igualam aos padrões brancos de buscar por resultados individuais ou de seus grupos, deixando
para trás as questões importantes para o universo plebeu.

Nesse momento – eleitoral – “apelar” pela ligação racial dos dois universos não
pode causar grandes resultados visto que essa ligação (ou tentativa de) é circunstancial. Então,
o universo negro plebeu, que também é manipulado e disputado pelos políticos brancos nega
a lógica que a classe média negra tenta levantar de que “negro vota em negro”. A partir de
análise de processos eleitorais anteriores o autor comprova que na realidade negro não vota
em negro em sua maioria.

As ideologias produzidas e circuladas nas camadas negras letradas vão da mais


profunda incorporação de valores capitalistas e brancos à radicalidade anti-sistemica e
antirracista. Dentre as organizações negras atuais, segundo o autor, o Movimento Negro
Unificado (MNU) é quem “(...) apresenta a proposta mais radiacal em termos de mudança
social, isto é, de dinamização da nossa estrutura, incluindo e enfatizando ou produzindo as
modificações radicais nas relações raciais e sociais”. (297)

O MNU foi na história a segunda grande organização do movimento negro pós-


abolição (sendo a primeira a Frente Negra Brasileira na década de 1930). Apesar de ter
importante papel na organização e radicalização dos negros e suas pautas, não foi capaz de
levar a luta antirracista até suas ultimas consequências por diversos fatores, dentre eles tem
peso importante os erros políticos históricos da esquerda de conjunto que devem ser
encarados de forma dura, merecendo profundo balanço por não ter conseguido analisar a
questão racial no Brasil e sua importância para o processo de revolução, sendo incapaz de
levantar junto ao movimento negro uma luta de massas de raça e classe. Outro fator diz
respeito aos limites impostos pela própria ideologia e programa do MNU.

O MNU foi parte e sujeito de um processo de reorganização do movimento negro,


esse processo aumentou o nível de consciência crítica radical do negro paulistano e se
expandiu em território nacional. Esse processo se inicia em meio à ditadura militar, num
ambiente de efervescência de articulações entre os negros, essa tem como base,
possivelmente, a necessidade de responder ao aprofundamento de diversos mecanismos
racistas, principalmente vindo do Estado e de seus representantes em diversos níveis.

Se, por um lado a ditadura aprofunda a divisão entre os dois universos negros
permitindo que setores do universo letrado se beneficiassem do “milagre econômico”
enquanto o universo plebeu se encontrava em aprofundamento de suas já péssimas
condições. A influência do movimento negro radical norte-americano da década de 1960
possibilitou a radicalização das posições de diversos setores do universo negro letrado, assim
como os processos de independência de países africanos, especialmente os de língua
portuguesa.

O universo negro plebeu neste período se encontrava majoritariamente organizado


em entidades de cultura popular que foram alvos de forte trabalho de cooptação, assim como
de uma grande assimilação de padrões culturais brancos.

A influência do universo letrado no universo negro plebeu acabo por construir uma
hierarquização entre esses dois universos onde os negros letrados se comportavam como
cabeça pensante e direção do conjunto dos negros. “Esta postura hierarquizante talvez tenha
influído para que os negros do universo não letrado se refugiassem ou se reordenassem em
organizações, grupos ou segmentos de reivindicações populares nos quais o problema racial e
as consequentes posturas de reivindicação étnica não fossem colocadas em primeiro plano,
mas de salários, habitação, educação, segurança e transportes – objetivos que sendo sociais e
econômicos são, por força do peneiramento imposto ao negro, também raciais, mas, para eles,
não são assim diretamente traduzidos”. (301-302)

A partir do que foi exposto, a questão que gostaria de levantar é como tanto o
movimento negro, quanto os movimentos sociais populares acabam, cada qual ao seu modo
se adaptando à ideologia da democracia racial, impossibilitando uma visão profunda e dialética
entre raça e classe levantando uma práxis radicalizada de transformação da realidade social e
racial (em vista que essas têm uma relação indissolúvel).

Se por um lados os movimentos sociais diluem a questão negra nas pautas sociais,
sem levantar suas especificidades, por outro o movimento negro ao tentar fortalecer/afirmar a
sua luta antirracista, nega por diversas vezes questões socioeconômicas que dizem respeito ao
conjunto dos setores oprimidos, sem perceber que estas são sentidas de maneira mais dura e
profunda pelos setores do universo negro plebeu.

Essas contradições colocam os negros (principalmente do universo plebeu) no


dilema de ter de “optar” entre se juntar à luta de um desses dois setores que na realidade são
incapazes de dar uma resposta radical, e por isto definitiva, aos seus problemas. Ainda assim,
segundo apontamentos do autor, para o universo negros plebeu as questões materiais de vida
acabam, na maioria dos casos, falando mais alto por uma questão óbvia de sobrevivência.

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