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Imagética:
C AMINHOS DA
D EVOÇÃO P OPULAR NO
B RASIL E NO M ÉXICO
1
© André Luiz da Silva (org.) , Daniel Gutiérrez Martínez, José Ro-
gério Lopes, Luis A. Várguez Pasos,Marcelo Henrique Santos de
Toledo, Monique Augras, Régis de Toledo Souza (org.)
1ª edição/2008
Impresso no Brasil
2
Agradecimentos
3
4
S umário
Introdução 02
Primeira Parte
Crenças populares emergentes no Brasil e no México
Capítulo 1
La creencia en lo trágico: el culto de la Santa Muerte.
Creencia o cultura populares Daniel Gutiérrez Martínez 03
Capítulo 2
Socorro urgente: o “show” de Santo Expedito Monique Augras 03
Segunda Parte
História e Metodologia dos estudos devocionais no Brasil
Capítulo 3
O catolicismo e suas faces: apontamentos da questão no Brasil
Régis de Toledo Souza 04
Capítulo 4
Imagens e figurações religiosas no catolicismo popular: perspectivas de
investigação da imagética devocional José Rogério Lopes 05
Terceira Parte
Estudos sobre devoção e imagética religiosa no Brasil e
no México
Capítulo 5
La imagen del Divino Niño como estrategia de la iglesia católica en una
parroquia popular de Mérida Luis A. Várguez Pasos 06
Capítulo 6
Devoções marianas, espaços sagrados e temporalidade: percursos atuais
da devoção popular no Brasil André Luiz da Silva 07
Capítulo 7
Espaços de coexistência de sacralidade nos meios populares: o ciclo de
Santos Reis no alto vale do Paraíba
Marcelo Henrique Santos de Toledo 08
5
6
Introdução
7
rais dos dois países. Ao mesmo tempo, podem ser interpretadas como
complementares, se o objetivo for pensar a religiosidade na América
Latina. Daniel Gutiérrez Martínez, em “La creencia em lo trágico: el
culto de la Santa Muerte. Creencia o cultura populares”, apresenta uma
densa leitura da ocorrência do culto a Santa Morte no México, a par-
tir da distinção entre sociedades trágicas e sociedades dramáticas na
modernidade. Em sua leitura, a cada tipo de sociedade corresponde-
ria uma forma própria de experienciar a morte, o que a coloca como
um dos principais problemas das sociedades modernas. A particula-
ridade de seu texto está na análise da Santa Morte como expressão da
sociedade mexicana enquanto uma sociedade trágica e a conseqüen-
te forma de adesão a este culto, o que impõe um conjunto de questi-
onamentos que vão desde a leitura da morte na religiosidade católi-
ca oficial até as diversificadas e contraditórias práticas produzidas e
reproduzidas por seus atuais devotos. O culto à Santa Morte remete
a aspectos de contextos violentos e de alto risco, aqueles processos de
difícil controle por parte dos seres humanos. A etnografia do culto à
Santa Morte possibilita ao autor pensar sobre as tensões culturais
que surgem no processo histórico de constituição de seu país que, no
caso da religiosidade, passa pela relação de crenças pré-hispânicas,
européias e africanas e também, passa pela relação entre o sagrado e
o profano. Além disso, essa etnografia aponta para o caráter transfor-
mador dos usos efetivos da Santa Morte diante das imposições regu-
lamentares do catolicismo oficial.
Monique Augras, no texto “Socorro urgente: o ‘show’ de Santo Ex-
pedito”, constrói uma etnografia de uma devoção bastante distinta da
anterior. No caso de Santo Expedito, não temos as referências das tra-
dições locais. Segundo a autora, trata-se de uma devoção midiatiza-
da, em que o socorro é urgente, como indica o título de seu trabalho.
Com isso, os produtos gerados a partir desse culto apresentam-se
como mágicos, constituindo uma redução do sagrado a tais aspectos,
o que leva à busca de satisfações imediatas para os problemas, pro-
cessos tão característicos das sociedades contemporâneas. Como apre-
sentado no texto anterior, a autora aponta para uma relação de con-
tigüidade entre práticas devocionais populares e o catolicismo ofici-
al. Além disso, suas observações permitem concluir que a relação de-
vocional altera a intenção da Igreja, uma vez que se estabelece não
uma admiração pela vida exemplar do santo, mas uma relação prag-
mática com o poder encerrado em sua imagem. Para uma sociedade
8
em crise, emergem e difundem-se novas formas de culto aos “santos
da crise”: os padroeiros dos desesperados, das causas impossíveis e ur-
gentes. Como se lê no texto, a devoção a Santo Expedito reflete esse
caráter imediatista de nossa sociedade.
Os ensaios reunidos nesta primeira parte tratam de forma dife-
rente os objetos de análise. No entanto, identificamos que a apro-
ximação dos textos ocorre na demarcação das devoções como ex-
pressão simbólica de formas de sociabilidade próprias da moderni-
dade tardia. Martínez analisa seu objeto enquanto uma produção da
“sociedade de risco” e Augras o faz a partir do imediatismo da “so-
ciedade de consumo” – ou seja, apontam para aspectos distintos,
mas bastante utilizados para definir as atuais sociedades modernas.
A segunda parte, intitulada “História e Metodologia dos estudos
devocionais no Brasil”, traz o ensaio de Régis de Toledo Souza, “O
catolicismo e suas faces: apontamentos da questão no Brasil”, que
descreve e analisa o processo histórico de constituição do campo
devocional do catolicismo popular brasileiro e o desenvolvimento
das formas de sua análise. Esse texto, ao realizar um esclarecimen-
to diacrônico das tensões formadas nessa área de estudos, prepara
o debate das especificidades presentes nos capítulos seguintes.
Na seqüência, temos o texto de José Rogério Lopes, “Imagens e
figurações religiosas no catolicismo popular: perspectivas de inves-
tigação da imagética devocional”. Esse autor articula duas referên-
cias acerca do estudo da imagem, apropriadas de R. Debray e G.
Deleuze, para apresentar uma discussão acerca dos fundamentos
metodológicos das investigações sobre imagética devocional no
catolicismo popular brasileiro. O trajeto da análise esboça passa-
gens históricas da relação entre as imagens e suas figurações reli-
giosas, como um itinerário do campo imagético devocional para
afirmar que, além das imagens, deve-se investigar também a tran-
sição da estrutura que se cria em torno delas e o sentido da expres-
são de suas formas. Esse estudo chama a atenção para a transfor-
mação da dimensão religiosa do espaço público contemporâneo,
sugerindo que as trocas no campo da imagética religiosa estão se
alterando de acordo com o atual contexto societário.
Na terceira e última parte da coletânea, intitulada “Estudos so-
bre devoção e imagética religiosa no Brasil e no México”, foram
reunidos trabalhos empíricos que tratam de temas comuns aos
9
quatro trabalhos anteriores. A diferença está na particularidade
das análises e na diversidade de contextos e objetos de estudo. As-
sim, Luís A. Várguez Pasos, em “La imagen del Divino Niño como
estrategia de la iglesia católica en una parroquia popular de Mé-
rida”, considera o uso específico da imagem do Divino Menino Je-
sus para a utilização que a Igreja católica faz dessa imagem para
ampliar e manter seu espaço de atuação frente aos que se opõe à
sua doutrina. Pasos analisa o uso dessa imagem por parte do cle-
ro de uma paróquia da capital de Yucatán, México, como recurso
para evitar o êxodo de fiéis para outras religiões. Isto ocorre de-
vido à identificação clerical do avanço irreversível dos “irmãos se-
parados”, segundo a categoria nativa que faz referência aos protes-
tantes. Como destaca esse autor, o que se passa hoje com a devo-
ção ao Divino Menino sugere o entendimento da crise atual pro-
vocada pela transformação das sociedades latino-americanas e, em
particular, o entendimento da leitura que a hierarquia da Igreja
católica faz desta mesma crise.
No texto “Devoções marianas, espaços sagrados e temporalida-
de: percursos atuais da devoção popular no Brasil”, André Luiz da
Silva discute as relações entre espaços e tempos sacralizados, par-
tindo do estudo de caso realizado junto a devotas da Mãe Peregri-
na – também conhecida como Nossa Senhora de Schoenstatt. As
categorias de tempo e espaço são reformuladas pela cultura popu-
lar no contexto de compressão tempo-espacial das sociedades da
modernidade tardia. Em seu entendimento, as devoções aos san-
tos podem, de modo particular, apontar para a presença simultâ-
nea de diversos tempos da religiosidade popular. No caso dos cul-
tos aos santos e às Nossas Senhoras, essa transformação repre-
senta a emergência de uma nova forma de se relacionar com os íco-
nes de devoção. Isso não se caracteriza pela relação necessária com
o espaço sagrado do santuário, mas estabelece formas alternativas
de experiência do simbolismo sagrado. Em oposição a um Centro
sagrado, o santuário, o autor afirma que se criam espaços provi-
soriamente consagrados para a manifestação das divindades.
10
os ciclos festivos/devocionais estruturados em torno dos festejos
de Natal e das festas de Santos Reis. Sua análise centra-se nas re-
des de devoção mediadas pela imagética religiosa do ciclo natali-
no. Em uma análise comparativa, o autor reconhece que os espa-
ços e tempos religiosos dos ciclos estudados nas comunidades do
alto vale do Paraíba, no estado de São Paulo, Brasil, estão signifi-
cativamente transformados. Apresentam mudanças sobretudo nos
rituais centrais do dia da festa de Santos Reis. Segundo esse autor,
a incorporação de novos códigos produziu mudanças no quadro
de representações religiosas que “espetacularizaram” as práticas
tradicionais. Finaliza o texto discutindo os fatores que têm cola-
borado de forma mais significativa para o surgimento dos confli-
tos simbólicos nestes ciclos festivos.
Acredita-se que os textos apresentados nessa coletânea possam
contribuir para o debate sobre a religiosidade na América Latina,
em especial por mostrarem que os países aqui analisados, apesar
de seus diferentes processos de colonização, apresentam caracte-
rísticas semelhantes quanto às formas de desenvolvimento histó-
rico, compartilhando em vários momentos os mesmos desafios
colocados pelas transformações da sociedade, como na recente vi-
rada neoliberal do continente. Destaca-se também que, no plano
simbólico, especialmente quanto à produção e reprodução das de-
voções populares católicas, as semelhanças parecem potencializa-
das, ainda que as diferenças reais sejam metaforicamente mantidas
na reinterpretação do mesmo simbolismo católico. A diversidade
cultural faz reconhecer a contradição presente na capacidade co-
mum de apropriação e transformação das formas de sociabilida-
de impostas pelas culturas e economias mundiais.
11
12
Primeira Parte
13
14
La creencia en lo trágico:
El culto de la Santa Muerte.
Creencia o Cultura Populares
1
Paz Octavio, El Laberinto de la Soledad, Cátedra, Letras hispánicas, cuarta edición, 1998, pp.188
15
I. La muerte como pilar antropológico de los
grupos humanos
2
Cabrero G. Teresa Ma., La muerte en el occidente del México prehispánico, UNAM,
Instituto de Investigaciones Antropológicas, México 1995, p. 15.
16
La muerte, cualquiera sea la región de referencia es sin duda el
proceso existencial de mayor necesidad de sentido y que ilustra
perfectamente la actitud del ser humano frente al mundo que le es-
pera. Vivimos sabiendo que la muerte está presente de manera
continúa. Poco importa si se trata de una actitud simbólica, o de
una retribución construida, es importante señalar que el pensami-
ento, la sensación acerca de la muerte acompaña siempre a lo lar-
go del tiempo a las sociedades, siendo esto precisamente la contra-
dicción misma que encontramos en la sacralidad hacia la muerte.
Así la relación con la muerte es un ejemplo característico de este
proceso de identificación, de espiritualización y materialización de
la existencia individual y colectiva.
Ahora bien, la contradicción que existe entre el acto de vivir física-
mente y el acto de no existir, es interpretada, simbolizada y ritualiza-
da de diferentes maneras en cada cultura y sociedad. Es precisamen-
te, en esta manera de concebir la muerte, de ritualizarla, de sacralizarla
que se pueden encontrar algunas pautas de comportamiento en los
seres humanos y algunas estructuras identitarias esenciales en dife-
rentes colectividades. En este sentido, la concepción de la muerte y su
representación ritual en México nos ofrecen algunos rasgos, que sin
duda son identificables en los comportamientos de algunos aspectos
de una idiosincrasia común. Así, al estudiar el sistema de cultos so-
bre la muerte de una sociedad podemos entender los fundamentos de
su sistema ideológico y de creencias. Siguiendo a Matos Moctezuma
en estas reflexiones, el hombre al tener necesidad de encontrar un algo
que explique los fenómenos que lo rodean, lo llevan a recurrir a su
imaginación creando y poblando el mundo real e irreal de dioses y
demonios, de seres mitológicos y elementos mágicos que vienen, por
decirlo así, a ayudarlo en la anhelada búsqueda3. En este sentido la
religiosidad y ritualidad en torno a la muerte presentan interesantes
y desafiantes paradojas para la sociología de las creencias. ¿Cómo en-
tender por ejemplo, particularmente cuando se trata de las socieda-
des llamadas occidentales modernas, la existencia de un culto a la
Muerte o incluso la existencia de una importante festividad cultural
y/o llamada tradicional en torno a los muertos?
3
Matos Moctezuma, Eduardo, Muerte a filo de obsidiana, los nahuas frente a la muerte,
Ilustraciones: Luis Servot, México, Secretaría de Educación Pública, 1975, p. 7.
17
Lo heurístico de la paradoja
4
El término de imaginario ha conocido diversas acepciones particularmente en su historia
de la búsqueda de conocimiento. Desde la antigüedad el imaginario era sinónimo de real,
para ser después relegado al dominio de lo irreal, de lo quimérico, o bien de la fantasía, si-
nónimo de imaginación que en suma no tiene nada que ver con la realidad. Sin embargo, ya
en el siglo XX la utilización del concepto como herramienta heurística de análisis es harto
importante mostrándolo como un sistema dinámico de análisis, organizador de las imáge-
nes tomando sentido gracias a su dinámica interaccional.
5
Cf. Gilbert Durand, L'imaginaire, sciences et philosophie de l'image, Hatier, París, 1994, p. 77.
19
Ahora bien, según el mismo Durand existen una serie de imagi-
narios diferenciados que él mismo llama diurnos y nocturnos, y que
dependiendo del contexto en el que uno se encuentre y en el momen-
to de referencia, uno de ellos puede dominar en el espacio simbóli-
co social sin que ello signifique que alguno tenga que desaparecer.
Otros autores (Maffesoli) llamaron de manera más sociológica a es-
tas dinámicas como los imaginarios trágicos y dramáticos del espa-
cio social6, donde según el grado de adhesión al espíritu de la Mo-
dernidad las sociedades pueden tender a ser más dramáticas o más
trágicas en sus procesamientos cognitivos y subjetivos.
6
Véase igualmente, Valentina Grassi, Introduction à la sociologie de l'imaginaire. Une
compréhension de la vie quotidienne, Eres, Paris, 2005.
7
Ariès Philippe, Essai sur l'histoire de la mort en Occident du moyen âge à nos jours, Edi-
tions du Seuil, Paris, 1975; Cashge Yves, Enigme de la fin d'un monde, Edition du rocher,
1979; Westheim, Paul, La calavera, traducción de Mariana Frenk, México, Fondo de Cul-
tura Económica, Secretaría de Educación Pública, 1985; Ziegler Jean, Les vivants et la
mort, Edition Seuil, 1975.
20
Esto es lo que conceptuaríamos en sociología como sociedades trá-
gicas para el primer caso y sociedades dramáticas para el segundo
(Maffesoli)8. La metáfora de trágico, tiene una variedad de interpre-
taciones y a veces se presta a confusiones, incluso al confundirse con
la misma noción de dramático. Valdría la pena, por tanto, dedicar un
pequeño espacio para realizar el ejercicio de distinción entre lo que
aquí consideramos lo dramático y lo trágico, ya que será el punto de
arranque para el análisis sobre el culto de la Santa Muerte.
Lo dramático ha sido, sin duda, el gran motor de las civilizaci-
ones modernas y progresistas. En su sentido etimológico, el dra-
ma significa el deseo de superar el mal y propagar el bienestar ab-
soluto a todos a como dé lugar. Esta perspectiva dramática ha ci-
mentado en las sociedades modernas el deseo de superar el desor-
den, el mal funcionamiento de las cosas, en superar la muerte,
como una negación de su propia vida. No es aquí menester descri-
bir la manera aséptica en que se han transformado estas socieda-
des, a partir de esta lógica, pero cabe mencionar, que una de las
grandes características que encontramos en la actualidad en estas
sociedades, si no la más importante, al menos la más común, es
esta especie de ambiente mortífero, en donde todo parece funcio-
nar bien, a la perfección, donde todo está completamente regla-
mentado a tal punto que se niega la muerte como un proceso ine-
vitable, volviéndose ésta, cuando así se presenta de manera ines-
perada, en un fenómeno dramático. Incluso los mismos ritos mor-
tuorios de estas sociedades denotan ese querer desdeñar, ignorar,
esconder, negar a la misma muerte, donde la tonalidad de los au-
tos fúnebres que han pasado a lo largo del tiempo del negro lujo-
so al gris blanquiazul es un vivo ejemplo. Recordemos que este
modo y lógica de funcionamiento tiene su raíz en el proceso de se-
paración de lo que se es considerado como malo y bueno en una
sociedad. En efecto, estas premisas encontradas en las sociedades
racionalistas-seculares por excelencia no dejan de encontrar efec-
to y huella en la misma ética y moral de las religiones de salvaci-
ón, pues no hay que desdeñar que las primeras frases del Antiguo
Testamento dicen: "Al principio Dios creó el cielo y la tierra. […]
Dios vio que la luz era buena: y Dios separó la luz de las tinieblas" ,
8
Maffesoli Michel, L'Ombre de Dionysos, contribution á une sociologie de l'orgie, Le
Livre de Poche, 1991.
21
es decir separó el bien y el mal, la vida y la muerte, y que no son
más que signos y huellas también de la ciencia ilustrada aún pre-
sente en la actualidad, y por tanto signo y herencia de la manera
de conceptuar las iglesias, la religión, las creencias y el mundo de
lo simbólico en el seno de los grupos humanos. Lo anterior sin
duda es lo que ha llevado a tantas reflexiones a asociar el raciona-
lismo secular, que tuvo su mayor auge con la Ilustración, con el
monoteísmo y la tradición judío-cristiana.
A lo opuesto de esto, encontramos sociedades en donde se pu-
ede respirar una atmósfera más bien de carácter trágico. En efec-
to, lo trágico en oposición a lo dramático no busca superar el mal
funcionamiento, la imperfección o la muerte, no busca separarlas,
sino vivir con ello, realizar con todo esto lo mejor posible la vida
de cada uno. Estas sociedades recalcan una concepción de la muer-
te serena, misteriosa, pero finalmente aceptable, llevadera, con la
que uno se puede reír y vivir. Así, una sociedad trágica es aquella
que no ignora la muerte en su cotidiano, no busca precisamente
separar el bien y el mal, sino que vive juntamente con las dos, no
las ve precisamente como entidades separadas. Acepta la fatalidad
de las cosas, el dolor y el sufrimiento y trata de catarsizarlas por
medio de manifestaciones comunitarias o rituales.
Cabe señalar, que no se está planteando aquí una reflexión di-
cotómica entre dos tipos de sociedades, sino que se propone la es-
tructuración de dos tipos de tendencias que pueden conformarse
en el interior de las sociedades a lo largo del tiempo y viéndose in-
fluidos por el contexto del momento. En otras palabras, todas las
sociedades en su interior se componen de aspectos dramáticos y
trágicos, pero hay algunas sociedades que tienden a expresarse, a
darle sentido a la existencia, en mayor medida, a partir de la lógi-
ca inscrita en uno ellos, y que son perceptibles en las estructuras
comportamentales de sus miembros.
Lo trágico de lo mexicano
23
orden de la muerte se hierve sinuosamente. Los antropólogos han
mostrado con mayor insistencia, que hay una relación entre lo trági-
co, la fiesta y la muerte al tiempo que se expresa una intensidad de la
existencia. De ahí la pregunta nada impertinente de saber sí en la fi-
esta del día de muertos, en los cultos a la muerte se pueden encontrar
relaciones entre lo trágico del comportamiento mexicano actual, y lo
trágico de las percepciones sobre la muerte que existen en muchas so-
ciedades como ha sido el caso en la historia cultural de México.
Así, desde este punto de vista, las cabezas de muertos hechas de azú-
car y chocolate durante las festividades del 2 de noviembre, las máscaras
mortuorias que se exhiben en las fiestas y que se venden cotidianamente,
así como los cultos de la Santa Muerte son ejemplos visuales caracterís-
ticos de esta cultura de lo trágico al que hacemos mención. Desde nues-
tro punto de enfoque, ha sido la herencia precolombina de la muerte la
que mayor impacto ha tenido en el imaginario histórico de lo trágico y
la memoria colectiva de las costumbres mexicanas. En todo esto si bien
no hacemos referencia a alguna innovadora reflexión, sí podemos decir
que son pocos los trabajos que no se conforman con la pura descripci-
ón, constatación o enunciación de estos ligues entre muerte y tragedia. El
mismo libro de Matos Moctezuma antes mencionado, permanece a pe-
sar de ser pionero en el tema en la descripción o interpretación de esta re-
lación, incluso deja un resquicio para hacer la relación entre los mexica-
nos antiguos y los contemporáneos. Son pocos los trabajos que han in-
tentando; ya no aunar en esta descripción, sino tratar de entender de qué
manera se establecen a lo largo del tiempo las transmisiones de creenci-
as, cómo perviven, cómo se ha dado este proceso de generación en gene-
ración, de tradición en tradición. Es a partir de estas reflexiones que nos
avanzamos a dar algunos esbozos reflexivos en torno al culto de la San-
ta Muerte en México y sus posibles interpretaciones.
10
Hay muchos documentos que ilustran las prácticas de la Santa Muerte pero pocos son de
índole académico. Se pueden citar entre los libros de divulgación a Juan Ambrosio, La San-
ta Muerte. Biografía y culto. Veintiséis rituales personales para conseguir salud, dinero y amor,
Martínez roca, Editorial Plantea Mexicana, México, 2003; Oriana Velásquez, La Santa Muer-
te. Milagros, ofrendas, oraciones y otros temas, Editores mexicanos unidos, México, 2006.
24
signar una fecha de origen, que algunos establecen en 1965 en el Esta-
do de Hidalgo, sino por el hecho de que sus orígenes simbólicos no se
pueden establecer en un momento fundacional único, sino en una serie
de umbrales históricos concatenados que representan los imaginarios
de la muerte que ha existido en las culturas mexicanas, incluyendo en
este proceso a las culturas precolombinas, las indígenas actuales, las cris-
tianas históricas e incluso las llamadas culturas racionalistas-seculares.
Hay quienes por ejemplo al encontrar diversas representaciones y ves-
tigios suponen que el culto data del siglo XIX y que algunos chamanes
de Catemaco11 también le rinden desde hace mucho tiempo pleitesía.
Lo que sí es acordado por todos es que el culto a la Santa Muerte existe
desde hace mucho tiempo y se remonta a tiempo muy antiguos, pues
entre casi todas las culturas prehispánicas eran veneradas los cultos a
la Muerte. Ahí es donde se encuentra el llamado Mictlán a donde van
las almas de los muertos, hombres y mujeres que han poblado este
mundo. La Muerte en el antiguo México era representada la mayor parte
del tiempo como femenina, de ahí que encontremos a la Coatlicue, la
gran diosa madre con su tocado de cráneos humanos. En todo caso,
dato curioso es el dar cuenta que la mayoría de las figuras representan-
do a la muerte están con el rostro totalmente descarnado. Estas creen-
cias llegaron a través de las festividades del Día de Muertos pues ha sido
la manera "permitida" y el lugar de posibilidades de continuar con di-
chas tradiciones o culturas de tiempos remotos.
De hecho muchos han insistido que en cuanto al culto de la Santa
Muerte se refiere no queda tampoco muy claro si proviene de cultos y
ritos originarios del mundo prehispánico, o bien como algunos lo atri-
buyen, encuentra sus raíces en prácticas chamánicas en las religiosida-
des post-independentistas. Hay quienes hablan incluso de un culto pro-
veniente de creencias africanas asociadas al Yoruba Lucumi, a la Sante-
ría proveniente de Cuba, al Palo mayombe, al macumba, al candomblé
de Brasil, al vudú haitiano. Algunos devotos de la Santa Muerte creen
que el origen se encuentra en la divinidad del orisha Oyá, diosa de las
centellas, los temporales y los vientos. Se le considera así como la dei-
dad de todos los ritos funerarios. La deidad de los ritos Yewá habita
dentro de la misma tierra acompañando directamente a los muertos,
por lo que se le asemeja bastante a la Santa Muerte. Para otros, el Palo
11
Zona conocida por las prácticas de limpias hechas por los chamanes, y que se encuentra en
el estado de Veracruz. Dicha zona ya tiene incluso un carácter turístico bastante importante.
25
Mayote que existe en un caldero posee atributos muy parecidos a la San-
tísima. Incluso se conoce el culto al San La Muerte (en masculino) de al-
gunas provincias de Argentina, Uruguay, Paraguay y el sur de Brasil. El
San La Muerte es un santo de origen guaraní, que habitó en parte del
actual territorio de Brasil, Argentina, Paraguay y Bolivia, su culto sur-
ge después de 1767 cuando fueron expulsados los jesuitas de sus misi-
ones en Argentina y Paraguay. Así los indígenas liberados de la domi-
nación católica retomarían ciertas tradiciones originarias de la época
prehispánica mezclándolas con la tradición cristiana, tal y como suce-
dió en México. La iglesia católica toleró su presencia en esta región a
partir del siglo XX celebrándosele el 15 de agosto. En algunas regiones
se le asociaba a San Pascual Bailón, tanto como en México se le asocia
a Santa Marta, Santa Teresa del Niño de Jesús, la Virgen del Carmen o
la Virgen de los Desamparados.
No obstante para los creyentes, practicantes o capellanes aseguran
que este culto no tiene ningún vínculo con prácticas de brujería, he-
chicería o satanismo. Lo anterior es importante pues evidentemente
catalogar a una creencia vertiente de dichos mundos contiene una in-
terpretación peyorativa que pocos fieles quieren atribuirle a su creen-
cia, pues ello la hace ilegitima ante la opinión pública dominante. En
todo caso parece que la Santa Muerte se apega más a las creencias de
tipo prehispánicas que a las coloniales o esotéricas, pues como bien
lo dice la historia de los chamanes, la Santa Muerte prometió auxili-
ar al pueblo mexicano porque ésta nunca se ha olvidado de ella. Asi-
mismo es importante señalar que se le atribuyen las primeras deifica-
ciones en los años sesenta en los barrios peligrosos y de mucho ries-
go, como el tan conocido barrio de Tepito en la Ciudad de México,
pero sobre todo asociándosele al narcotráfico (sin duda debido a su
asociación y confusión con el culto de Jesús Malverde)12, a la prosti-
tución, es decir a todos esos aspectos vinculados con la violencia, lo
ilegitimo y lo desviado. Empero, como veremos se trata en realidad de
una deificación que está más bien vinculada al riesgo, al peligro, es de-
cir, a todo esos procesos difícilmente controlables por los seres huma-
nos. Es la deidad del imponderable trágico. Es la patrona y defenso-
ra contra los asaltos, atropellamientos, heridas por armas de fuego,
accidentes automovilísticos y todas aquellas posibles muertes asoci-
adas con la violencia. De ahí viene su poder y su seducción así como
la explicación de los milagros de haber salido ileso de accidentes de
autos o de balaceras. En este sentido, así como la Santa Muerte pue-
26
de ser invocada por los narcotraficantes, también lo pueden hacer por
los policías, los bomberos, los taxistas, los mariachis, los cantineros,
los soldados, las meseras; en suma, por toda la gente que trabaja de
noche, o en ocupaciones de peligro y en general todos aquellos que se
sienten estar en profesiones de alto riesgo. De ahí que también se le
conozca como la Señora de la noche, y en estos riesgos también es co-
nocida como la Patrona de los matrimonios y de las relaciones fieles.
Se puede decir a manera comprensiva, que se trata de una creencia y
un culto que está más bien apegada al imaginario popular que desde si-
empre han circulado en la cultura mexicana, independientemente de los
orígenes que se le quieran atribuir. Lo que si se puede afirmar es que ha
sido en las últimas décadas que ha tomado fuerza y mayor visibilidad.
En la actualidad, al menos hasta donde se tiene conocido, el culto a la
Santa Muerte involucra los estados de la república mexicana como Guer-
rero, Veracruz, Estado de México, Tamaulipas, Campeche, Morelos,
Nuevo León, Chihuahua y de manera más evidente el Distrito Federal,
particularmente el llamado Barrio de Tepito. Los fieles crecen día con
día, tanto como las capillas y los altares. Su imagen es común en la ciu-
dad de México, particularmente en la zona del Centro histórico, así
como en los bazares esotéricos, en los bazares de materiales mágicos, en
los altares de los negocios. Su escultura es conocida como la señora de
las Sombras, la Señora Blanca, la señora Negra, la Niña Santa, la Para-
ca, la Flaca. El culto a la Santa Muerte involucra la imagen efectivamente
del esqueleto como el que se usa el día de muertos en México o en el
Halloween en otros lugares del mundo, y se le viste siempre como vir-
12
Jesús Malverde es un personaje del folclore mexicano dentro del Estado de Sinaloa, que ha-
bría sido salteador de caminos y es venerado como santo por muchos, aunque su existencia
real está discutida. La Iglesia Católica no le reconoce estatus oficial de santo, porque afirma que
no tiene datos concretos sobre su vida ni los milagros que habría realizado, pero su culto se ha
extendido por todo Sinaloa y fuera de él. Se le han levantado varias capillas: la originaria está
emplazada en Culiacán; también las hay en Tijuana, Malverde es conocido como "El Bandido
Generoso" o "El Ángel de los Pobres"; también como "El Santo de los Narcos". En torno a la fi-
gura de Malverde se ha desarrollado un culto sincretista que une creencias propias del catoli-
cismo popular y otras que la Iglesia Católica considera supersticiones. En la actualidad conti-
núa la tradición de llevarle, además de flores o veladoras, piedras del lugar de origen de los
devotos, como forma de rendir culto. El sepulcro de Malverde atrae a miles de devotos cada
año. Muchos dejan velas u otros objetos asociados con sus vidas, y algunos pescadores dejan
camarones en alcohol en agradecimiento por una buena pesca. Otras personas dejan fotogra-
fías de aquellos que necesitan ayuda. Cuando algún milagro tiene lugar, vuelven a agradecerlo
a Malverde, a menudo dejado placas que lo conmemoran. El culto a Malverde es el culto em-
blemático de los narcotraficantes de ahí que las autoridades lo confundan con el culto de la
Santa Muerte. Cf. http://es.wikipedia.org/wiki/Jes%C3%Bas_Malverde
27
gen y santa con atuendos de diversos colores significando cada uno de
ellos un símbolo particular según el momento y el lugar.
Por otro lado, vale mencionar que el culto a la Santa Muerte y los
altares que se van conformando a lo largo del tiempo, no son recono-
cidos por la Iglesia católica. En este sentido en los altares no se llevan
a cabo ni misas cristianas, ni misas negras o provenientes de la ma-
gia negra. Tampoco es considerada como una secta, pues lo único que
importa en este culto son los rezos, las ofrendas y las plegarias que se
le hacen a la Santísima. Vale la pena señalar que la mayoría de los
creyentes al culto de la Santa Muerte son católicos que al igual que pi-
den favores o ofrecen rezos a la Santísima lo hacen por Cristo, por el
Dios católico y por la Virgen de Guadalupe, más aún los rezos se ha-
cen con el rosario en la mano. Los creyentes consideran que la Santí-
sima no es ajena a la religión de Cristo, aunque sea sabido que este
culto no es reconocido por la misma Iglesia. Incluso hay que menci-
onar que los lunes de cada mes hay rosarios nocturnos donde los fi-
eles llevan a bendecir las estatuillas de la Santa Muerte o bien las imá-
genes, medallas, cajitas, tatuajes, etc. que se compran en algunas de las
esquinas del Centro histórico o en la tiendas aledañas.
Vale mencionar que lo predominante en este culto son las capillas y
los altares, más que los templos y las Iglesias. Todos los altares son pro-
tegidos por los populares portales de metal, de laminas rodeados de flo-
res, de adornos frutales donde la manzana es uno de los más importan-
tes debido a su asociación con la abundancia, pero también se ven ro-
deadas de veladoras, juguetes, billetes, monedas, dulces y golosinas de
toda índole, cigarros, puros bebidas alcohólicas en vasos y en botellas.
En ello es interesante observar en términos etnográficos desde las mar-
cas de los dulces y cigarros y bebidas hasta los juguetes que ocupan el
altar, pues ahí se denotan los barrios de pertenencia y las clases sociales
que acuden a su culto. Es notable dar cuenta que la mayoría de los prac-
ticantes son de origen humilde o no forzosamente con un alto grado de
educación escolar, aunque últimamente parece causar interés en las cla-
ses educadas del país. Al mismo tiempo es interesante dar cuenta de la
semejanza de las ofrendas que existe con el estilo de aquellas realizadas
en la celebración del Día de muertos en México13. Incluso los días de
mayor adoración como son los lunes, algunos negocios de tacos, refres-
13
El Día de muertos en México se celebra cada día 1 y 2 de noviembre. Se puede decir
que es la fiesta popular religiosa más importante de México.
28
cos, antojitos, flores, figuras de la Santísima, ropa, cigarros que supu-
estamente son elementos del mayor gusto de la Niña Blanca se instalan
alrededor de la celebración. De ahí que en el simbolismo de las cultu-
ras mexicanas tiene mucho más repercusión en el origen prehispánico
mezclado de los rituales.
30
Espacio público y religiosidad alternativa
14
Se dice que el registro fue entregado por el entonces titular de la dirección de Asociacio-
nes religiosas Alvaro Castro "a hurtadillas, sigilosamente a escondidas". Cf. Periódico La
Jornada, "Elimina la figura del esqueleto como símbolo", sábado 21 de julio 2007, pág. 34.
15
Cf. w ww.asociacionesreligiosas.gob.mx
16
Periódico Reforma, sección Nacional, Viernes 18 de febrero del 2005, pág., 18A.
17
Idem.
31
tar solamente la doctrina católica. "Ninguno de nosotros ha sido
coaccionado a creer o a obedecer como ministros algo que no vaya
de acuerdo con lo que aprendimos en diversos seminarios, tenien-
do como madre y maestra la doctrina católica y ponemos en claro
que la Santa Muerte ha sido incluida en el santoral de esta iglesia
por petición y devoción del mismo pueblo"18 . En ese tiempo se
exhorto a las autoridades a indagar entre los fieles y los creyentes,
pues se trata de una santa en la que los feligreses creen, y a la cual
no se les iba a prohibir su creencia. Su fe proviene por los sorpren-
dentes milagros que continuamente les ha dado.
A pesar de que el 5 de marzo de 2005 hubo una marcha por todo el
centro de la ciudad de México para exigir el respeto de su registro ofici-
al, éste se les fue retirado en el mismo año, en razón de que la iglesia te-
nía actividades fuera de lo establecido en los documentos oficiales que
no mencionaban la veneración a la Santa Muerte19. En la actualidad exis-
ten tres templos "oficiosos" de la Santa Muerte que están vinculados a
las actividades del culto a la Santa Muerte, sin embargo los altares y las
capillas siguen creciendo y construyéndose, como el recinto que se co-
menzó a construir el 13 de octubre del 2000 en Pedro Escobedo, Que-
rétaro en el centro del país. A los files y feligreses poco les importa las
opiniones de la Iglesia Católica o de Gobernación, ellos erigen sus ca-
pillas y algunos sin duda ya están pensando en construirle una Catedral
a la "Niña Blanca". Y lo anterior es ineludible pues el compromiso de los
creyentes es digno de mencionar, pues según los creyentes así como se
18
Ibid.
19
La procesión se llevó a acabo desde la calle de Bravo en la colonia Morelos hasta el Ángel de la
Independencia y después hacia la Secretaría de Gobernación en la Ciudad de México. La proce-
sión fue liderada por el arzobispo de la Iglesia Católica Tradicional Mex-USA, David Romo. La
iglesia Católica no entró en confrontaciones con el arzobispo que no reconocen como tal, pero
sí advirtió que seguirá advirtiendo sobre el lucro que se hace con la figura de la muerte, que no es
ninguna deidad. De hecho los mismos chamanes, místicos y esotéricos califican de charlatán al
arzobispo. Algunos Obispos como Alejo Zavala de Tlalpan, al sur de la Ciudad de México reite-
ran sus críticas aludiendo a sus constantes "mescolanzas" de salmos, pasajes y evangelios en sus
alocuciones fundamentando en todo ello su acción fraudulenta, pues como bien lo afirma Ma-
nuel Valdés, especialista en el tema y locatario en este centro de abasto David Romo cobra 10 pe-
sos (1 dólar) a todo aquel que se quiera tomar una foto con la imagen de la muerte que tiene en el
santuario que regentea. También cobra mil pesos (100 dlls.) por cada bautizo y tres mil pesos (300
dlls.) por consagrar imágenes de la muerte a domicilio. De hecho es conocido que David Romo
ha acudido a casa de narcotraficantes para consagrar imágenes de la muerte, lo que sin duda lo
mete en situaciones de aclaración con el fisco. Para algunos mexicanos esta creencia es símbolo
de ignorancia, de lo absurdo en el que vive el país o de lo folklórico de ello. Véase El Sol de Méxi-
co Mediodía, sábado 5 de marzo de 2005, pág., 4.
32
ha crecido espiritualmente con su fe, con el culto y les ha cumplido sus
deseos, el hecho de abandonarla repercutirá en su misma suerte.
El caso fue retomado el 21 de julio de 2007 cuando la ya conoci-
da Iglesia supuestamente solicitó nuevamente su registro ante la Se-
cretaría de Gobernación para ser admitida como asociación religi-
osa20. Para la Secretaría de Gobernación se tiene sólo registrado un
aviso de apertura del culto público; obligación que tiene todo "local"
cultural o cultual cuando vuelve a abrir su espacio de congregación.
Ahora bien, independientemente de todos los jaloneos instituciona-
les que se lleven a cabo el culto a la Santa Muerte es interesante in-
cluso desde el aspecto de la constitución y de la libertad de credo es-
tablecido en el país, pues es sin duda problemático saber en que ru-
bro (denominación cristiana u Otras) se ubicaría el culto en caso de
que pidiera su registro nuevamente y éste se le fuera concedido, pues
éste sigue diversos fundamentos bíblicos y ejerciendo los sacramen-
tos, pero no reconocen como líder al Papa ni la asunción de María,
entre tantos otros aspectos de esta índole.
Lo curioso en este caso y la estrategia llevada fue el hecho que se eli-
minó el símbolo de la calaca (de la calavera del cráneo y el esqueleto
humanos), creando así el denominado Ángel de la Muerte. Así tene-
mos un Santo del Ángel de la Santa Muerte. Para ello se llevó a cabo
un proceso de canonización para elevar a santo al Ángel de la Santa
Muerte con el fin, según dice el arzobispo, de reencontrar la punta de
origen de una devoción popular que se había perdido. Para el cono-
cido monseñor este proceso es similar al protocolo de la Iglesia cató-
lica, pues indicó que no es un invento de hoy, sino que ya lleva varios
años, que inició en 1998, continúo en 1999 y terminarla en 2007. En
dicha canonización acudieron alrededor de veinte mil fieles quienes
desde el 15 de agosto del 2003 han ido creciendo cuando se aceptó di-
cha devoción como parte de la liturgia de dicho templo. De hecho ar-
gumentan los ministros de dicho culto que se han apegado a las en-
señanzas de San Pablo y en las santas escrituras, y no en mitos.
La estrategia de cambiar la imagen a la Santa Muerte ha causa-
do polémica y descontento entre los fieles, y ya no entre el Estado
y los fieles, sino entre la misma Iglesia y los fieles, particularmen-
te en aquellos que son propietarios de un altar, como ha sido el
20
Cf. Periódico la Jornada, "Elimina la figura del esqueleto como símbolo", sábado 21 de
julio 2007, pág. 34.
33
caso de Ivonne Valdez propietaria de un altar en la colonia Doc-
tores21 en el Centro-sur de la Ciudad de México, quien asegura que
no la van a cambiar de imagen y seguirán creyendo en ella a pesar
de los cambios que se le quieran hacer. Si bien este hecho no divi-
dirá a los fieles, sí marcará el descontento de algunos que seguirán
adorando a la imagen original de la "huesuda"22. Para ellos no se
tiene la intención de revertir las decisiones o hacer cambiar de pa-
recer al señor "que se dice arzobispo" del culto de la Santa Muer-
te, solamente se quiere reivindicar se creencia en la imagen de la
Santa Muerte tal y como está. Así, se piensa que los dueños de las
capillas no cambiarán en nada la imagen ni el sexo de la Santa pues
argumentan que pueden demostrar que la Santa Muerte sí tiene
sexo y es mujer. Así lo asegura una fiel que desde los siete años se
ha vuelto devota de la Santísima: "Dios nuestro señor la escogió
como lo hizo con la Virgen María, y la mandó para recoger nues-
tro espíritu, lo que queda de uno después de que muere; ella ya te-
nía a sus hijos, entonces Dios le anunció: te vas a llevar a tus hi-
jos; como toda madre se pudo a llorar y sufrir. Cuando iba a lle-
gar la hora de que su hijo muriera, ella comenzó a llorar por lo que
Dios le dijo: te voy a quitar los ojos para que tú no veas el sufri-
miento"23. Para muchos fieles cambiarle la imagen a la Niña Blan-
ca no es más que una estrategia del señor David Romo de apropi-
arse de algo que es de todos. Se argumenta que el señor Guillén no
es el máximo representante de la Santa Muerte sino de todos los
devotos quienes la pregonan y defienden. Además se argumenta
que fue así como se conoció a la huesuda, fue así como se dio a co-
nocer, y es así como se le ha pedido favores24 .
Asimismo cambiarle la imagen con el fin de lograr mayor acep-
tación es para los fieles algo aberrante pues no por cambiarle la
imagen y asemejarla a una hada o una princesa la gente la va a que-
rer y creer en ella, pues por paradójico que parezca para algunos
fieles no es el aspecto el más importante, sino el aceptarla tal y
como es, tal y como somos todos. "La gente te debe aceptar como
21
La colonia Doctores se encuentra cerca del centro Histórico en la Ciudad de México,
también se trata de un barrio difícil y peligroso donde se venden todo tipo de refaccio-
nes robadas de automóviles.
22
Cf. Periódico La Prensa, Información general, Domingo 12 de agosto de 2007, pág., 12.
23
Cf. Ibid.
24
Cf. Ibid.
34
uno es". Los argumentos hacen igual referencia al hecho que el es-
queleto donde se precisamente del esqueleto representa la igualdad
entre todos, pues una vez que no tenemos piel ni carne, todos ter-
minamos siendo los mismos: un esqueleto.
35
trabajo, al tiempo que es venerada por gente que vive en el mundo
del hampa y el crimen. Es un culto que hace recordar la Revancha de
la historia, es una catarsis de memoria colectiva que anima y sedu-
ce a sus fieles. De ahí que se le considere la más pura y honesta de
las santas, pues no se siente uno juzgado con lo que uno le pida, se
le puede pedir cosas que en otros cultos no se pueden solicitar.
Asimismo se pudo observar que es un culto particularmente urba-
no, que está concatenado con el cambio de modos de vida del mundo
industrial y moderno, donde el riesgo, la incertidumbre, la fragmenta-
ción de la vida social se ve involucrada; donde el culto de la Santa Muerte
es flexible y adaptable a cada circunstancia en la que cada fiel está inmer-
so. Lo paradójico con la Santa Muerte es precisamente que se trata de
un santo en el sentido más teológico católico ortodoxo, careciendo de
las mínimas esencia que suponen tener los santos, pues como es sabi-
do un santo no se descompone aunque se supone ya murió como enti-
dad física. La Santa Muerte, es santa y a la vez la muerte misma que no
está viva y por lo contrario completamente descompuesta carnalmen-
te, tan descompuesta que ya no se puede descomponer más.
Por otro lado como se pudo ver, se trata de un culto mayoritari-
amente mágico que los mismos fieles distinguen de lo esotérico, se
trata pues de una alternativa religiosa en el seno del cristianismo,
pero rechazada por muchas iglesias particularmente la católica por
contener una serie de paganismos inadmisibles. La Santa Muerte le
pega precisamente al centro y al núcleo duro de la tradición judío-
cristiana que es la de separar entre lo bueno y lo malo, la luz de las
tinieblas, lo sagrado y lo profano. En la Santa Muerte como solía
suceder con las antiguas culturas prehispánicas no hay división ni
corte, todo es un ritmo cíclico que se mueve constantemente a favor
y en contra del mismo fiel. Ella es justiciera pero eso no significa que
siempre sea buena con sus fieles, particularmente si no cumplen con
sus compromisos. Por tanto es una deidad presenteísta, que se vive
en el aquí y en el ahora, es flexible pero por lo mismo variable, mol-
deable y adaptable. Es en este sentido que se puede reflexionar a las
posibles diferencias entre religión, y religiosidad, entre una institu-
ción dictadora de normas de comportamiento, y un sentimiento
simbólico de pertenencia con algo, con una comunidad (imaginada
o real). La Santa Muerte representa precisamente un ir y venir entre
lo oficial, lo legitimado y la religiosidad y lo oficioso. Y por lo mis-
36
mo tiene un carácter personalizado e individualizado que se vive en
lo que algunos llaman los mini-relatos de la vida cotidiana. En este
sentido, todos pueden hacer su ofrenda, sus altares y sus ritos con
productos adquiridos en los mercados y crear en casa, negocio u
oficina su propio marco de religiosidad sin ningún adoctrinamien-
to específico o sin un cuestionamiento extra-ordinario a su institu-
ción religiosa de pertenencia, quizá sólo se necesitaría la compra de
un manual para llevar cultos, demandas y feligresías. Se trata enton-
ces de una santa que es pilar de una creencia y no parte forzosamen-
te de una creencia, como lo son los santos católicos, pero esto no
significa que la creencia en sí, al menos por el momento, se convier-
ta en una Iglesia y doctrina por sí sola. Su carácter cercano a los fi-
eles dentro de un mundo de posibilidades simbólicas, hace de la San-
ta Muerte un icono ejemplar en la dinámica de maleabilidad de las
creencias contemporáneas fuera de los esquemas institucionales a los
que se tendían a establecer a las religiones tradicionales.
Ahora bien, si es cierto que el culto de la Santa Muerte podría
acercarse a las interpretaciones de la llamada sociedad del riesgo,
ella entra más bien en el registro de la resistencia simbólica a la ins-
titución e imposición, que ha acontecido a lo largo de la Conquista
europea desde hace 500 años. Es una manera de reequilibrar la ri-
gidez de la creencia institucional católica que siempre ha existido.
Es una manera de salir de la represión simbólica que se impuso
con el establecimiento de una creencia venida del más allá. En
suma, podríamos decir que se trata del proceso de lo informal de
la creencia. De ahí que hablemos de un linde entre religión y reli-
giosidad, donde esta última es completamente autónoma de la pri-
mera, es decir de los designios institucionales de formas de com-
portamiento frente a lo sagrado.
Asimismo el culto de la Santa Muerte va más allá de la secula-
rización, pues lo privado, la creencia se expresa de manera cons-
tante en la vida pública. En otras palabras es la creencia en lo trá-
gico. De ahí la diferencia con la sacralización que se hace en un
mundo judío-cristiano y racionalista secular donde ven a la muer-
te como algo que se puede y se debe evacuar de la cotidianeidad de
los grupos humanos. El culto a la Santa Muerte representa un "boi-
cot" a la lógica de lo dramático, de negar lo que está ahí y que no
se quiere ver, es el "boicot" a la asceptización de la sociedad.
37
Lo anterior no carece de interés si se toma en cuenta precisamen-
te el aspecto de seducción de la muerte en las sociedades de la que
hace referencia George Bataille 25, y que ha sido reprimido en las
sociedades vertientes de la llamada Modernidad. De ahí que se pre-
fiera hablar más en términos de sociedad de riesgo, que de socie-
dades trágicas y dramáticas. Aquí se encuentra el interés que guar-
da el hecho de que el culto contenga elementos prehispánicos que
hacen un llamado al mundo arcaico (lo que es primero y funda-
mental) de la vida social que se experimenta día con día. Es ahí en
donde damos cuenta de la necesidad de encontrar fundamentos
míticos a la institucionalidad del rito y el culto constituido. Se trata
de la "invención de la tradición" (Hobsbawm) que constantemen-
te se ve actualizada por la memoria colectiva (Halbwachs)26 .
Lo anterior va de la par con el hecho de que se trata de un culto
que recoge las experiencias privadas de cada fiel. Es una Santa per-
sonalizada, un poco a la manera de las antiguas formas politeís-
tas de adoptar los tótems, en donde la importancia radica en la
manera de apropiarse de una identidad, de una identificación, de
generarse un sentimiento de pertenencia, y de comunalizar frente
a un grupo dado. En todo ello radica efectivamente el hablar en
términos de transfiguraciones religiosas en el mundo secular, así
como de la importancia que tiene lo instituyente en la conforma-
ción, mantenimiento de las creencias; se trata de la parte pagana,
de la parte mágica de todo sistema de creencias que se necesita
constantemente revitalizar. De ahí una vez más que se le atribuyan
dichas características a los procesos regeneradores del imaginario
y de lo simbólico, pues es ello lo que permite la transmisión y re-
avivamiento de una cultura, como lo es la creencia en lo trágico, y
que se puede manifestar de múltiples maneras como es el caso de
la Santa Muerte y de donde no se necesita adherirse específicamen-
te a una institución religiosa para lograrla. Como la cultura, el cul-
to a la Santa Muerte es pragmático.
De ahí que se hable de un culto, pues un culto no significa pre-
cisamente formar parte de una iglesia sino de usarla para legiti-
25
George Bataille, La part maudite, Les éditions de Minuit, Col. Critique, París, 1967.
26
Hobsbawm, Eric y Ranger Terence, La invención de la tradición, en (Eds.), Crítica, Bar-
celona, 2002; Halbwachs, Maurice, Les cadres sociaux de la mémoire, Les Presses Uni-
versitaires de France, Nouvelle édition, Collection: Bibliothèque de philosophie contem-
poraine, París, 1952.
38
marla o de ignorarla para revertirla. Esto es lo que significa una
cultura, es decir, una ética de vida. En suma, da cuenta de la ma-
nera en lo que lo instituido necesita de lo instituyente, y particu-
larmente de una lucha por la apropiación de la producción legíti-
ma de lo simbólico: lo que da sentido a la acción y a los sentimi-
entos de pertenencia. Incluso aunque ello signifique que en el mis-
mo seno de las sociedades se encuentren conflictos de interpreta-
ción y de producción de lo simbólico que pueden terminar por ex-
presarse en el espacio público de manera exacerbada.
Se trata de la lucha por la apropiación de la producción legítima de
lo simbólico, donde se obtiene el derecho de designar lo que es sagra-
do y no lo es, lo que es creencia y religión y lo que no lo es, lo que pu-
ede expresarse en el espacio público y lo que no. En este sentido es que
vale la pena dar cuenta de algunos argumentos y debates al respecto
que se han dado en la sociología de las religiones desde sus inicios.
De la profanización de lo sagrado a la
sacralización de lo profano
27
Cf. Gilbert Durand, Las estructuras antropológicas del imaginario, FCE, México, 2004.
28
. Poupard, Les religions, Que sais-je?, PUF, París, 1987, p. 120.
40
idea simbólica o religiosa de algo superior e inferior en el ámbito
de lo sagrado. De hecho, algunos argumentos plantean que la sa-
cralidad es todo aquello que termina por llevar al ser humano a la
creencia de algo poderoso representada en una fuerza, ajustando
así su comportamiento a esta creencia. De ahí la importancia de lo
sagrado en las mismas sociedades de la llamada Modernidad, pues
permite observar la manera en la cual ésta infiere en los compor-
tamientos de los actores y de los miembros a una comunidad
(creyentes). Precisamente el creyente, tanto como el religioso se re-
conoce a través de su estilo de vida y de maneras de actuar en el
mundo " él cree siempre que existe una realidad absoluta, lo sagra-
do, que trasciende, este mundo terrenal, pero que se manifiesta ahí
y de ese hecho, lo santifica y lo vuelve real. "29 La idea de sagrado y
profano vincula la idea del ser humano común y corriente y aquel
que es iluminado y que goza del despertar que le ofrece la posibi-
lidad de conocer los valores que el ser humano banal se ve impo-
sibilitado de ver. Es la diferencia entre el ser iluminado y el que vive
en el oscurantismo 30. Recordemos precisamente que esta idea ya
ha sido mitificada de manera racional por la filosofía platónica a
partir de su conocido Mito de la caverna, donde se supone que el
primer hombre en salir del mundo de las tinieblas, al aproximar-
se al reflejo que percibe fuera de la caverna, logra ver las sombras
de sus congéneres que están en la cueva. "Este hombre despierto y
descubridor de valores sagrados está en el Corazón de la historia
religiosa de la humanidad." 31 Este es el proceso de iluminación, que
trae consigo la lógica de la superioridad e inferioridad de seres y
creencias, es aquí donde se encuentra la primera dicotomía entre
sagrado y no sagrado, entre física y metafísica, entre realidad y su-
eños. Conociendo la influencia del platonicismo sobre el cristianis-
mo es posible imaginarse las consecuencias institucionales que
habría de tener en la conformación del catolicismo y después en el
discurso de la modernidad y las teorías de la sociología 32. Aquí
toma importancia el debate de lo sagrado en los análisis sobre
29
Mircea Eliade, Le sacré et le profane, Col. Folio/essais, Gallimard, París, 1957, p. 171.
30
Rudolf Otto, Lo Santo. Lo racional y lo irracional en la idea de Dios, El libro de bolsi-
llo, Religión y Mitología, Alianza Editorial, Madrid, 2001.
31
P. Poupard, Op. cit., p. 22.
32
Para el Mito de la caverna de Platón véase Libro VII de la Republica, 514ª-521b. Igual-
mente Cf. Ch. Guignebert, El cristianismo antiguo, Col. Breviarios, 114, FCE, México, 1956.
41
culturas diferenciadas en las sociologías de las creencias, pues es
aquí, en el momento de su nominación, en su apropiación legíti-
ma de producción, en su movilización e interpretación, de donde
se puede desenmarañar las relaciones de poder entre pueblos y
costumbres diferenciados, así como la acción de exclusión/inclu-
sión de saberes concretos, basados cada uno en formas diferenci-
adas de religiosidad, y por tanto de organizar política y económi-
camente la sociedad.
Se trata entonces de tomar conciencia de lo numinoso tal y
como lo describe R. Otto, y dar cuenta así de lo que es profano, de
lo que se queda relegado en el acto de la toma de conciencia de la
divinidad de las cosas. Será precisamente esta misma actitud de
racionalismo de darse cuenta de lo que es evidente que legitimará
los intervencionismos e imposiciones de todo tipo a en todas las
sociedades a partir de la legitimación de un solo Dios, una sola
cultura, un único desarrollo. "El hombre natural no tiene concien-
cia de la profanidad mientras que el hombre religioso distingue lo
que ha sido tocado por el valor numinoso y lo que no lo es. A tra-
vés de este descubrimiento del valor numinoso, capta la obligaci-
ón, el pecado, la obediencia, y el servicio, la necesidad de redenci-
ón, la necesidad de la apropiación y la expiación." 33 Lo que es im-
portante tener en cuenta en todo esto es particularmente la manera
en la cual lo numinoso participa a esta conformación de lo sagra-
do que representa en esencia la incuestionabilidad de una creencia;
sea que se trate en el dios todo poderoso, en la Razón, en la Repú-
blica, en el desarrollo, o en las fuerzas místicas del más allá.... To-
das ellas son creencias que se apoyan en esta numinosidad de lo
sagrado para sustentarse como verdaderas y legítimas.
Al respecto es interesante rescatar a un Mircea Eliade desde la
perspectiva sociológica, quien sin duda entendió de manera acer-
tada la importancia de estas problemáticas para el estudio de lo
simbólico y la historia de las religiones, al punto que constituyó
el título mismo de su libro: Lo sagrado y lo profano. Mircea Elia-
de, plantea de manera clara la visión de la existencia de dos polos
opuestos en competencia, en pugna o en antagonismo; de dos
mundos que coexisten en el mismo espacio y que se empecinan en
ser protagonistas de la interpretación de la realidad: para las so-
33
P. Poupard. Op. cit., p. 23.
42
ciedades modernas y republicanas lo sagrado se transfiguró en
búsqueda de la Verdad. Precisamente la manera de definir lo que
es sagrado se encuentra en aquello denominado como hierofania,
es decir en "ese algo de sagrado que se muestra a nosotros." Ese
nosotros constituye una comunidad que comparte la sacralidad
del grupo y en consecuencia, en un discurso moderno y/o mono-
teísta se niega la sacralidad de otros grupos, pues se le considera
profana como modo de expresión. Este es el efecto de la instituci-
onalización de lo profano. He ahí el meollo en el tema de la religi-
osidad en la actualidad tanto para la sociología como para la so-
ciedad misma, es decir, la importancia que toma la legitimidad que
se funda en el acto compartido de lo sagrado por un grupo dado,
y por ende de la eliminación como forma sagrada legítima de otro
grupo. Max Weber insistió mucho en este aspecto desde la dicoto-
mía magia-religión al hablar de la eliminación de la magia como
medio de salvación " que comenzó con las antiguas profecías judí-
as y que apoyado en el pensamiento científico helénico, rechazó
como superstición y ultraje todos los medios mágicos para bus-
car la salvación. "34 En este sentido es claro que la sociología de las
religiones heredó desde sus inicios esta tradición de separación,
jerarquización de las esferas simbólicas y de lo que se considera
como sagrado y privado, con lo que es profano y público, prove-
niente del judeocristiano andante.
Todos los pueblos, en todo momento y en cada época compar-
ten y se viven a través de las hierofanias que se manifiestan y que
son acordadas por el grupo como sagradas, es decir forman comu-
nidad (comunión). Algunas de estas hierofanias se encuentran de
manera menos elaborada que otras, algunas con una complejidad
inaudita como lo es la resurrección de Jesús Cristo, o la encarna-
ción de dios en Él 35 . Estas complejidades han jugado de manera
importante en el proceso de deslegitimación de creencias externas
diferenciadas. Todos los monoteísmos se basan en la superioridad
de una manifestación sagrada sobre las demás deidades. Es decir,
todas se sustentan en el grado de sacralidad de una deidad para
designarla como única verdadera y superior a la de las demás re-
34
Max Weber, La ética protestante y el espíritu del capitalismo, México, FCE, 2003, p.
167.
35
M. Eliade (1957), Op. cit., p. 17.
43
ligiosidades. He aquí, nuestro problema principal que nos permi-
te comprender la manera en la que las sociologías de las religiones
se han visto entrampadas para comprender procesos que van más
bien en la lógica de las creencias sagradas, y que además se vincu-
lan en nuestro enfoque principal de observar la manera en la que
un discurso se vuelve legítimo y venerado en una dinámica de tipo
religiosa, al tiempo que se marginalizan otras dinámicas y creen-
cias, como ha sido el caso de la Santa Muerte. Es precisamente en
lo que se considera, se define como sagrado donde se encuentra la
base sobre la cual se juegan los lazos de poder y de legitimidad en
la sociedad, incluyendo los procesos discursivos en las ciencias
sociales, así como en las políticas de designación cultural.
Dos aspectos esenciales hay que considerar para que estas hie-
rofanias se muestren a nosotros como sagradas: a) se trata de un
acto misterioso insoluble cuya manifestación muestra algo de má-
gico , y además de que se trata siempre del mismo "acto misterio-
so; la manifestación de algo completamente diferente, de una rea-
lidad que no pertenece a nuestro mundo, en objetos que hacen par-
te integrante de nuestro mundo 'natural' 'profano'."36 Se trata evi-
dentemente de un proceso de abstracción, universalización de lo
simbólico, de manera que pueda ser moldeado por cualquier gru-
po o individuos. Estos tres aspectos, lo misterioso, lo mágico y la
intromisión externa de realidades fuera de nuestro mundo son los
que componen el proceso de legitimación que a la postre terminan
por darle Fe a una cultura, a una creencia, una práctica y confor-
ma una religiosidad concreta. Es aquí, en el espacio de lo misteri-
oso y lo simbólico que se juega la lucha por la legitimación de lo
que es sagrado, y por tanto lo que genera sentido en las relaciones
y organizaciones que se dan en las sociedades. Es aquí el espacio
donde se juegan los apetitos de la significación.
Lo importante en todo ello, es que en tanto hierofania, ésta sólo toma
sentido para un grupo específico, y lo pierde para otro en particular.
Dicho de otro modo, para ciertos grupos la hierofania que se puede
manifestar a través de una piedra o una calavera (deja de ser piedra o
esqueleto cuando precisamente manifiesta esta sacralidad a un grupo),
pero para otros grupos esa piedra o esqueleto no contiene nada de sa-
36
M. Eliade (1957), Op. cit., p. 20.
44
grado y sigue siendo una piedra común y corriente, y por tanto no tie-
ne significación en la vida para ese grupo como para que tenga que ser
venerada. Imaginemos al respecto, las formas de designar y denominar
lo religioso en el mundo moderno, en donde para algunos la ciencia en
un mundo mejor, se sustenta en la creencia de una mejor producción
material y una mejor capacidad de consumo de esta producción, pero
en donde para otros no significa más que otra actividad común y cor-
riente característica a un grupo de humanos específico37. He aquí el
punto nodal de la dualidad sagrado-profana a la cual se refiere aquí,
tanto para enunciar los problemas epistemológicos de las sociologías
de las religiones, como para entender los procesos mismos de designa-
ción en el espacio público de lo que es sagrado y digno de ser legitima-
do y aceptado en sociedades étnicamente y culturalmente diferenciadas.
En efecto, para algunos una piedra, un espíritu, un esqueleto pueden ser
considerados como sagrados y avalados por un grupo específico, al
punto que contenga una legitimidad incuestionable. Pero, para otros
grupos los mismos elementos no constituyen más que elementos que
forman parte de su alrededor, no representando ningún valor sagrado
para el grupo al que pertenecen. En este sentido lo sagrado y lo profa-
no son dos formas de creencia que obtienen valor en la dicotomía a par-
tir de la consideración sagrada que obtenga de un grupo. Lo importan-
te es, para nuestro caso de análisis, comprender de qué manera esta con-
sideración sagrada se vuelve dominante, de qué manera se legitima al
entrar en competencia con otras consideraciones y se llegan a desvirtu-
ar, acompañando a este proceso lógicas de interacción de grupos vin-
culados a ellas, con sus estructuras organizativas y sus formas accio-
nantes que acompañan. Estamos hablando en suma de un proceso de
discriminación que se presenta en el acto de la nominación y designa-
ción de lo que es sagrado, con respecto a lo que no es sagrado. Para las
sociologías de las religiones, al menos en un inicio, esto ha significado
la delimitación de su campo de estudio a las religiones instituidas, des-
ligando así toda forma sagrada de vinculación (religare) a procesos má-
gicos, míticos y racionalistas.
Este proceso de discriminación también ha influenciado enton-
ces los análisis de las ciencias sociales, particularmente el de la so-
ciología, pues el objeto de estudio de las sociología de las religio-
37
Al respecto véase Pierre Clastres, La société contre l'État, Les édition de Minuit, París,
1974, pp. 165-191.
45
nes se ha basado en aquello que se considera como sagrado, en
aquello que se manifiesta como una hierofania para una sociedad,
y por tanto aquello que debe ser estudiado por la disciplina. Así
la magia y la religión se han separado en el análisis sociológico se-
gún el momento o espacio de manifestación o de consideración te-
órica. El problema con todo esto sigue siendo el mismo; a saber lo
que se puede considerar como sagrado o no, así como la legitimi-
dad que puede tener una instancia para considerar y dictaminar lo
que es digno de ser estudiado o no. Aquí la mirada inquisidora de
la ciencia determina desde su espacio " profano" lo que es sagrado
y por tanto digno de ser estudiado por la misma. Recordemos que
lo sagrado significa para quien la vive la "potencia sagrada, lo que
significa ala vez realidad, perennidad y eficacidad. " 38 Por tanto
aquello que se sustenta como sagrado representa la realidad a es-
tudiar. La ciencia se posiciona como entidad no sagrada y comple-
tamente deslindada de este proceso, por lo que la objetividad de
sus análisis no es cuestionable, pero termina por establecer sacra-
lidades académicas. Por mucho tiempo se negó en el estudio de la
sociología de las religiones todo aquello que no conformará gru-
po, comunidad e institución legítima, durable, fija y establecida,
como lo son las religiones de salvación.
Es así que la oposición entre sagrado y profano se traduce en la
oposición de lo real con lo irreal, de ahí la necesidad de vivir en lo
sagrado, de estudiar lo sagrado, pues esto es fuente de realidad y
de explicación de los hechos sociales. Huelga decir una vez más lo
paradójico que puede ser designar lo que es real y lo que es irreal
para una sociedad, sin que esto repercuta en la agresión a otras
formas sagradas y reales de vivir el mundo. Vale recordar que esta
dualidad, esta dicotomía se acentúan con el auge del pensamiento
de la modernidad. Si bien antes de la llegada del imperio de la ilus-
tración y del pensamiento racionalista secular, la dicotomía entre
lo sagrado y lo profano se limitaba a la jerarquización de creenci-
as y a suponer aquella (s) que se legitimarán como superiores; más
adelante esta jerarquización se convirtió en una problemática de
análisis. Lo sagrado y lo profano como división analítica tomó
sentido con el pensamiento ilustrado y con el nacimiento de la so-
ciología. Sin duda podemos ver aquí la clásica querella de la anti-
38
M. Eliade (1957), Op. cit., p. 18.
46
güedad entre creencias politeístas y monoteístas donde las llama-
das religiones históricas se confirmaron como entidades superio-
res de lo sagrado, al evacuar toda forma mágica y mítica de los
procesos sagrados y simbólicos.
Esta dualidad entre sagrado y profano se volvió un verdadero
envite (enjeux) cuando el pensamiento moderno se estableció como
legitimidad suprema al cantonarse a la esfera de lo profano, y por
tanto a la esfera de la "neutralidad" frente a toda forma de religiosi-
dad y toda forma sagrada. Lo anterior es más palpable cuando se
observa que el ser humano moderno occidental desacraliza el mun-
do, sin que ello signifique que se deje de asumir una existencia pro-
funda de las cosas. De ahí que "la desacralización caracterice la ex-
periencia total del hombre no religioso de las sociedades modernas;
que por consecuencia, este último resiente una dificultad cada vez
más grande para encontrar las dimensiones existenciales del hom-
bre religioso de las sociedades arcaicas. " 39 Como efecto de boome-
rang esta desacralización se sacraliza con el proceso de nominación
y jerarquización de las creencias que van de lo sagrado a lo profa-
no. De este modo, si bien la designación de lo que fuese sagrado fun-
gió en ciertos contextos como legitimador por parte de las religio-
nes de salvación frente a las formas elementales de la vida religiosa,
con el discurso de la modernidad (de la cual se fundamenta el Esta-
do) designarse como entidad profana terminó por posicionarse
como saber superior frente a las religiones históricas, y por tanto
con la autoridad de estudiarlas dentro del marco de una disciplina
científica como la sociología de las religiones, y de nominarlas des-
de el espacio sagrado del Estado-nación. El problema con ello es que
en la mayoría de los casos su referente sagrado continuó siendo el
heredado por las religiones históricas, confinando la magia, los mi-
tos a un ámbito lejano de las dinámicas de las sociedades modernas
o de la comprensión del fenómeno sagrado. En otras palabras lo
profano del discurso secular no incluía la diversidad de formas de
religiosidad. La obsesión del discurso de la Modernidad de diferen-
ciarse y distinguirse del discurso sagrado de las religiones históri-
cas, le impidieron ver más allá del campo que había sido designado
como sagrado por las mismas religiones históricas de salvación; a
39
M. Eliade (1957), Op. cit., p. 19.
47
saber la doctrina y liturgia institucionales con todo y su libro sagra-
do. La repercusión en términos teóricos de esta herencia tendría que
ser objeto de profundización a partir del estudio en detalle las no-
ciones de magia, mito y religión.
En este sentido se puede percibir que lo que se conceptualiza como
profano y sagrado puede ser considerado de manera llana como dos
formas de ser en el Mundo, con dos experiencias diferentes, pero que
permiten medir, en términos teóricos y doctrinarios, aquello que
supuestamente genera legítimamente significación. En efecto esto es
lo que permite medir la distinción que se genera en el seno de las so-
ciedades y las jerarquías que ahí se conforman. Es claro, evidente-
mente que esta conceptualización de profano y sagrado, acompaña-
do de la distinción de lo mágico y lo religioso, ha impedido por mu-
cho tiempo que la sociología de las religiones, tal y como se pudo ver
con el caso aquí enunciado, no sólo no vea que en el mundo moder-
no, es del lado del arte, de la política, del gozo del cuerpo o de la ci-
encia donde se envuelven los apetitos de significación, que suscitan
tanto como la creencia tradicional, esfuerzos ascéticos, comportami-
entos rituales, impulsos de devoción, incluso experiencias de éxta-
sis40, sino también que no dé cuenta del proceso de jerarquización
desigual legítimo que se da en un espacio compartido entre diferentes
formas de concebir el mundo, y en el interior mismo de las creenci-
as. Vale la pena entonces insistir que antes de tratarse únicamente
de una conceptualización teórica para la comprensión de lo simbó-
lico en las sociedades humanas, la distinción entre profano y sagra-
do trae implícito un proceso de distinción legitimante entre creen-
cias o sacralidades diferenciadas.
De este modo, si las religiones históricas se han legitimado fren-
te a las religiones mágicas a partir de la designación de que lo sa-
grado se encontraba en sus iglesias y no en el totemismo de lo má-
gico, el ámbito racionalista-secular transpuso esta lógica de distin-
ción y legitimación, ya no en lo que se designa como sagrado, sino
en lo que no lo es. Dando como resultado que lo sagrado se ter-
mina por deslegitimar frente a lo profano confinándolo a lo pri-
vado y a los análisis científicos, pero sobre todo confinándolo al
estudio de las religiones institucionales. Para ser tajantes en todo
esto, se puede ver que si bien tenemos sociología de las religiones,
40
Hervieu-Léger, Daniéle, La religión, hilo de memoria, Herder, Barcelona, 2005.
48
no hay sociología de la magia o sociología de los mitos, tanto
como se ha dicho en otros espacios que no hay Iglesias de lo má-
gico41 . Lo que cabe recalcar en todo esto es precisamente la lógica
de deslegitimación que se da en este proceso, y que se sigue dando
en las mismas teorías de la sociología de las religiones y en los pro-
cesos políticos del estado, con respeto a otras formas de sacrali-
dad, que desde un principio no han compartido la visión de lo sa-
grado de las primeras profecías religiosas de salvación.
Ahora bien, queda claro que lo sagrado constituye el fundamen-
to de legitimación de las relaciones asimétricas de poder y de las
desigualdades que se conforman en el seno de las sociedades. Con
el advenimiento del pensamiento racionalista-secular lo profano
se torna sagrado, por el hecho de nominar aquello que puede ser
científicamente estudiado como tal. Así, uno "se dará cuenta que
lo sagrado y lo profano constituyen dos modalidades de ser en el
mundo, dos situaciones de su historia. [...] Los modos de ser sagra-
do y profano dependen de las diferentes posiciones que el hombre
a conquistado en el cosmos." 42 El hilo de Ariadna en todo esto, y
lo que guía precisamente nuestra investigación entre creencias y re-
ligión en el seno de grupos culturalmente diferenciados es el saber
cómo se construye un espacio sagrado frente a otros, con todo y
las formas de organización y designación que le acompañan, y por
qué se vuelve cualitativamente diferente del espacio profano que le
rodea. Estos dos polos de estudio, ampliamente teorizados por los
especialistas a lo largo de cien años de la disciplina sociológica,
antropológica y/o etnológica, reiterarían más adelante la existen-
cia no nada más de la contraposición de dichas lógicas sagradas,
sino de igual manera de su conjunción, es decir, de la existencia de
diferentes mosaicos sagrados que participan en el vasto crisol de
creencias combinándose y mezclándose entre sí, incluso en lo que
conciernen las religiones históricas. Junto con estas dos lógicas de
lo simbólico se empezó a dar cabida a la existencia de prácticas y
creencias que se encontraban en constantes vaivenes entre las lla-
madas sagradas y profanas, entre las mágicas y las religiosas, las
autóctonas y las de la centralidad institucional de las religiones
41
E. Durkheim, Les formes élémentaires de la vie religieuse, PUF, París, 1968.
42
M. Eliade (1957), Op. cit., p. 18.
49
históricas de salvación. Dicha lógica ha sido definida la mayoría
de las veces como sincrética, en donde se han agrupado los estu-
dios particularmente de la religiosidad popular, implícita, etc.
Este matiz sagrado que se empezó a conceptualizar en las ciencias
sociales da cuenta efectivamente de prácticas que traen consigo dife-
rentes y alternativas maneras de relacionarse con el más allá, símbo-
los provenientes de otras instancias que alimentan y enriquecen la
cotidianidad de religiosidad del creyente y no creyente. Es precisamen-
te en estos vaivenes que se van constituyendo cotidianamente otras
formas de expresión espiritual y socialidad religiosa. Lugares en don-
de se combinan, se mezclan, se interrelacionan y se conectan otras
maneras de aprehender la realidad íntima de cada grupo o individuo.
Espacios en donde se esbozan manifestaciones de religiosidad, quizás
antes ignoradas o desdeñadas, pero que con el paso del tiempo, en
momentos de gran efervescencia pueden ser percibidas como fenóme-
nos re-emergentes, momentáneos pero con constantes y frecuentes
apariciones. Todas estas lógicas de religiosidad han dando cuenta y
están acompañadas a través de su propia historia; de los diferentes
procesos de maleabilidad; de las diferentes querellas, entre instituci-
ones religiosas dominantes por la apropiación legítima de la produc-
ción de símbolos y de las diferentes alianzas entre credos y manifes-
taciones espirituales. En suma, se trata de enfoques que poco a poco
han conformado los diferentes matices de creencias y valores consi-
derados sagrados y analizables por la ciencia sociológica.
De esta manera queda abierta la problemática de donde situar la
tensión entre lo profano y lo sagrado, ya no planteándola en térmi-
nos de separación tajante, sino desde la perspectiva de dos entida-
des que se complementan en una dinámica pendular, en el proceso
de las relaciones asimétricas de poder. De ahí que la noción de reli-
giosidad nos lleva a reconsiderar la idea del descenso de adhesión de
los individuos a partir de las normas institucionales (proceso de lai-
cización o separación de las instituciones entre Iglesia y Estado), y
del cambio religioso que es referido a las transformaciones que ocur-
ren en las organizaciones y por tanto la emergencia de nuevos gru-
pos y la declinación de otros. Habría que pensar quizás en una di-
námica histórica en donde la religiosidad es perenne e innata a los
grupos humanos (socialidad-socilizada-socializante) la cual se ve
constituida según el contexto geo-temporal por un sistema de cre-
50
encias específico, cuya dinámica interna siempre va a estar confor-
mada por las esferas de la religión, de la magia, del mito.
Como ya se ha mencionado, esta tendencia siempre ha existido, pero
en la actualidad es más perceptible a raíz del desgaste que ha tenido el
discurso legitimo de la modernidad (fundamentado por el universalis-
mo agustino de la Ciudad de Dios)43, o bien por el fortalecimiento del
discurso de la laicidad que promueve una intención de imparcialidad
con respecto a las diferentes prácticas y creencias que se observan en la
sociedad44. En suma, se trata de un fenómeno que siempre ha existido
y que a raíz de los discursos sobre la pluralidad y la tolerancia de cre-
do se ha generado una legitimación del mismo, tanto académicamente
como societal. De esta manera se puede observar en la actualidad, que
la existencia de adhesiones, prácticas, creencias o enriquecimientos de
otras entidades sagradas (magia, mito, racionalidad) en la adhesión es-
piritual doctrinaria colectiva o individual (religión), es aceptada sin
menos cabos o intimidaciones por parte de la población y los discur-
sos cientistas, más allá de la creencia dominantemente institucional de
lo que se define como religión, y sin que esto genere una desaprobaci-
ón social en el ámbito público o científico.
Así, en esta investigación no se pretendió erradicar lo que ya ha sido
logrado en el área de las teorías de las creencias y de la secularización
para la interpretación de los fenómenos de la religiosidad, sino abrir
otros espacios de discusión y otras ventanas de análisis para integrar
los avances ya realizados y generar alternativas en la constitución del
conocimiento sobre aspectos de la religiosidad que habían sido un poco
desdeñados por la sociología de las religiones. Es de esta manera que
entramos de lleno en el debate sociológico de cómo ordenar en la actu-
alidad la religión, lo religioso, la religiosidad, lo sagrado en las ciencias
sociales, particularmente en la sociología de las religiones y que ahora
claman por una participación de la sociología de las creencias.
43
Véase Alain Badiou, San Pablo: la fundación del universalismo, Anthropos, Editorial
del Hombre, Barcelona, 1999.
44
Cf. Blancarte, Baubérot, Milot, Baubérot, Jéan, Milot, Micheline, Declaración Univer-
sal de la Laicidad en el Siglo XXI, 2005. www.libertadeslaicas.org.mx.
51
52
Socorro urgente:
O "Show" de Santo Expedito 1
Monique Augras
1
Tradução e adaptação, pela autora, do artigo de M. Augras, "Secours d'urgence: le 'show'
de Saint Expédit". Sociétés - Revue des Sciences Humaines et Sociales, 72: 125-137, 2001/2.
2
Os grupos pentecostais, que fazem questão de se opor claramente a todas as demais for-
mas de culto, mesmo assim integram as entidades das religiões afro-brasileiras, já que
as classificam como "demônios". A noção de "porosidade" é tomada emprestada da obra
de Pierre Sanchis (2001).
3
Intitulado Existências lendárias:hagiografia e subjetividade (AUGRAS, 2000), contou
com o apoio do CNPq, e foi realizado graças à participação de nossos alunos do Curso
de Psicologia da PUC-Rio: Joana de Vilhena Morais, Renata Del Caro Daniel, Bruno
Abifadel [bolsistas IC], Heloísa Machado Micheletti [bolsista PIBIC], Daniele Salomão,
Luis Eduardo Granato Raulino, e Ana Beatriz Frischgesell Fonseca.
4
Para tanto, basta consultar as listas apresentadas por Louis Réau em sua Iconographie des
saints (RÉAU, 1958).
53
to práticas tradicionais permanecem vivas. Não só resistem, como
parecem expandir-se, aqui no Brasil, graças ao reforço propiciado
por recursos midiáticos.
É também forçoso reconhecer que, ao longo do tempo, a atitude
da hierarquia católica pode ser vista como bastante ambígua, ao tra-
tar dos aspectos puramente mágicos dessas práticas 5 . Hoje ainda,
parece, por vezes, oscilar entre a condenação de procedimentos bem
distantes das recomendações de Vaticano II, e a tolerância frente a
certos detalhes que, devidamente investigados, poderiam revelar um
uso por demais pragmático de coisas sagradas...
Na doutrina católica, os santos são apresentados como mode-
los de comportamento. Eles eram "gente como a gente", mas se
abriram totalmente à graça de Deus e, por conseguinte, se trans-
formaram em guias no caminho rumo à salvação. A enorme quan-
tidade de canonizações e beatificações promulgadas pelo papa João
Paulo II, deu a impressão de querer multiplicar o número de exem-
plos a serem seguidos para salvar um mundo em perdição.
Na perspectiva da mais estrita ortodoxia, é preciso lembrar que
os santos não têm poder. Próximos de Deus, têm a faculdade de
transmitir-Lhe os rogos dos fiéis, mas somente Ele pode atendê-
los. Os santos são apenas mediadores.
No nível dos devotos, porém, são vistos como depositários de
um poder que vai desde a ajuda espiritual necessária para supor-
tar as agruras desta vida, até a intervenção focada na solução de
um problema bem concreto. Desemprego, dívidas, doença ou de-
savenças familiares, é ampla a gama de dificuldades. Mas, em nossa
pesquisa, as solicitações dos devotos apresentam uma caracterís-
tica comum, seja qual for a questão: é a urgência da solução. E os
santos que hoje recebem o maior número de pedidos são aqueles
cuja fama assegura a presteza no atendimento.
Sem dúvida, esse caráter de urgência ilustra o momento crítico em
que se encontra a sociedade brasileira. Mas não deixa também de ex-
pressar a aceleração que, desde o início do século XX, foi identificada
como típica do momento cultural. A civilização do gozo imediato exi-
ge que qualquer problema seja instantaneamente resolvido. Nesse
5
Sem querermos entrar aqui em uma discussão de natureza teórica, classificaremos como
"mágica" qualquer utilização de poderes supranaturais para obter a realização concreta
de um desejo. A esse respeito, ver a excelente síntese de Pierucci (2001).
54
sentido, a dimensão mágica da solicitação dos santos, longe de cons-
tituir uma sobrevivência de tradições arcaicas, como geralmente se diz,
parece situar-se na perspectiva da sociedade de consumo, cujo lema -
tudo possuir, e já - igualmente implica, em outro plano, a crença na
onipotência mágica do desejo. É isso que pretendo mostrar.
Na busca da solução imediata de um problema concreto, a so-
licitação do devoto parece reduzir-se a práticas tão terra-a-terra
quanto a situação que o santo é chamado para solucionar. A pes-
quisa de campo realizada pela nossa equipe consistia na observa-
ção sistemática do comportamento dos freqüentadores de igrejas
do centro do Rio. É uma região de passagem e de comércio, e as
pessoas entram e saem das igrejas continuamente. O meu interes-
se a esse respeito foi despertado, há muitos anos, pela observação
de uma espécie de justaposição, por assim dizer, entre a devoção
aos santos e o culto católico "oficial". Pois, durante uma missa de
sétimo dia - rezada em prol da alma de um dignitário do terreiro
de candomblé em que realizava pesquisas na época - vi pessoas
entrar, ir junto de uma estátua, tocá-la, falar-lhe, e sair em segui-
da, sem minimamente atentar para o desenrolar da missa, nem na
hora da Eucaristia. O contraste entre o comportamento dos fiéis
que assistiam à missa e o dos devotos que preferiam dirigir-se aos
santos, sem sequer tomar conhecimento do momento mais sagra-
do para os católicos, me sugeriu a presença de um outro culto, pa-
ralelo, que estaria por merecer uma investigação específica.
De fato, ao longo das observações sistemáticas, e da realização de
entrevistas com os devotos, verificou-se a constância desse mesmo
comportamento. As pessoas entram na igreja, dirigem-se para uma
estátua, tocam-na, falam-lhe e, por vezes, escrevem-lhe um bilhete,
apoiando-se em um cantinho do altar - quando não escrevem dire-
tamente no muro junto da efígie - e, em seguida, prosseguem na fren-
te de outras estátuas, repetindo os mesmos procedimentos.
A nossa equipe observou que, não raro, uns devotos visitam su-
cessivamente todos os santos representados na igreja6 . Isso sugere
que, ao invés de uma devoção específica, aqui se trata de buscar o
apoio de todo e qualquer "poderoso do além" (DANIEL, 1999). Mas,
6
Na base das notas de Marcel Mauss (1968) sobre o sentido da rotação das rodas de dan-
ças tradicionais, a nossa equipe tentou verificar se "o giro dos santos" se dava sempre no
mesmo sentido, mas não conseguimos chegar a conclusão alguma.
55
o que nos impressionou sobremaneira, foi descobrir que muitos de-
votos ignoram o nome do santo ao qual pedem ajuda. Tudo deixa
supor que isso não importa7 . Não se trata, portanto, da devoção a
determinado santo, devida ao conhecimento de sua vida exemplar,
e muito menos - tal fora a minha hipótese inicial - de uma eventual
identificação com aquele santo. No nível dessas práticas cotidianas,
não se observa o menor traço de imitação da vida devota, mas sim,
uma relação pragmática com a imagem de um poder.
Desde o início dessas notas, pode-se verificar que, constante-
mente, estou a falar das relações que se estabelecem entre o devo-
to e a efígie do santo. É para ela que ele se dirige, ele a saúda, toca,
fala e, muitas vezes, lhe deixa um bilhete. Acontece também de to-
mar-lhe as medidas com uma fita.
Observamos isso na igreja de Nossa Senhora da Lampadosa, junto
à efígie do rei mago São Baltazar, cujo punho ostentava numerosas fi-
tas coloridas. O procedimento é o seguinte: quem quiser pedir-lhe uma
"graça" destaca uma das fitas - em princípio, cortada na exata medida
da estátua - e, quando for atendido, deve voltar com sete fitas de mes-
mo tamanho, para amarrar de novo no punho da estátua. Esse costu-
me parece ter uma origem ibérica, pois muitos conventos espanhóis e
portugueses ainda mantêm a prática de "tomar a medida do Menino
Jesus". Os textos de várias orações dirigidas para Santo Antônio, por
nós recolhidas nos bancos das igrejas cariocas, também se acompa-
nham frequentemente de uma fita azul, "medida" deste santo 8.
Pode-se concluir, por conseguinte, que a efígie é portadora de
poder. O significado desaparece em proveito do significante. O sa-
grado se reduz a um poder mágico, suscetível de ser manipulado
ao sabor das exigências dos desejos pessoais. É do uso das imagens
sacras que vamos agora falar.
56
cílio de Nicéia, em 787, até o de Trento, em 1563, acabaram por asse-
gurar o triunfo da iconofilia nos países de obediência católica. No en-
tanto, é preciso sublinhar o quanto a iconofobia expressa, de manei-
ra paradoxal, o extremo valor atribuído às imagens. Pois, se a simples
presença destas é uma ameaça para o culto do Deus verdadeiro, pode-
se deduzir que cada representação, sendo análogon do seu referente,
implica o risco de substituí-lo e, por conseguinte, de produzir como
que um desviar da imagem, como se a efígie fosse usurpar o poder sa-
grado inerente à divindade. Esse problema foi resolvido pelas Igrejas
Ortodoxas de maneira singular, com a tradição das imagens acheiro-
poietai, ou seja, "não produzidas por mãos humanas" e que, portan-
to, foram consideradas como diretamente emanadas da divindade.
Na teologia ortodoxa, haveria uma espécie de continuum entre a En-
carnação do Cristo e o aparecimento de tais ícones milagrosos: "A En-
carnação é também imagem [o Filho é a imagem do Pai, a Eucaristia é
imagem do Filho]; o Cristo, imagem, produziu imagens. As imagens são
verdadeiras: a sua existência é a prova de sua verdade, isto é, uma pro-
va da verdade que representam" (SPIESER, 1991:124)9 . A circularidade
da argumentação é evidente, e vai se desenvolver até abarcar a totalidade
do campo da representação. "A verdade das imagens as torna sagradas",
diz ainda Jean-Michel Spieser no seu belo texto sobre a programação
iconográfica das igrejas bizantinas, "mas, de fato, por serem sagradas,
as imagens só podem ser verdadeiras" (Ibid.:124). A tautologia põe em
evidência a importância da questão. A representação, ou seja, a produ-
ção de figuras que têm por função trazer aquilo que é invisível para o
plano do visível, é colocada no nível da Criação. O ícone, que dá a ver o
sagrado sob forma humana, atua como um dispositivo que, em retor-
no, lembra ao fiel que, criado por Deus "à Sua imagem e semelhança",
tem à sua frente um futuro de eternidade. Vale dizer: o ícone, visível su-
porte do sagrado, funciona em ambos os sentidos. Assegura a realida-
de da passagem entre os diversos níveis do existir, da Criação até a En-
carnação, e da vida devota até o reencontro com Deus depois da mor-
te. Daí provém o estilo estereotipado dos ícones, que não representam
pessoas concretas, mas encenam a possibilidade de os próprios seres
humanos acederem ao plano da divindade10 .
9
As citações de textos franceses são traduzidas por mim.
10
Bakhtine (1984) põe em evidência a correspondência entre hagiografia e produção de ícones:
em ambos os casos, a forma permanece tradicional e convencional, já que a vida do santo é
significativa em Deus, e não por si própria. Logo, não há lugar para variações individuais, as-
pecto também destacado por Certeau (1982).
57
Mas o catolicismo romano, no qual se situa o nosso campo de pes-
quisa, não parece ter explorado essa dimensão. Hoje, somente o San-
to Sudário de Torino permanece como único exemplo de imagem
aquiropoética ainda cultuado e, mesmo assim, é objeto de fortes po-
lêmicas. Talvez possamos incluir também nessa categoria as inúme-
ras estátuas - todas milagrosas - encontradas no meio das águas,
como é o caso de Nossa Senhora Aparecida. Pois, a rigor, ninguém diz
claramente de que modo foram produzidas. A mesma origem impre-
cisa, aliás, costuma acompanhar todas as efígies às quais a tradição
atribuí peculiares poderes. Jean Pirotte (1991), que estudou a evolu-
ção do valor atribuído às imagens ["santinhos"] distribuídas pelo cle-
ro belga, sublinha o quanto há de ambigüidade na maneira como a
Igreja lida com a imaginária. Hoje em dia, talvez não seja muito con-
veniente combater abertamente a antiga devoção a determinadas efí-
gies, mas sim deixa-la cair em desuso, bem devagarzinho.
Além do mais, embora a Igreja tenha recentemente declarado
inepto o culto de santos puramente lendários, como foi o caso de
São Jorge, isso não surtiu efeito. Tudo deixa supor que o imaginá-
rio popular segue um caminho próprio, sem levar em conta as re-
comendações da hierarquia eclesiástica. No Brasil, em todo caso,
apesar da tentativa, em meados do século XIX, de amoldar o com-
portamento dos fiéis dentro do quadro desejado por Roma11 , san-
tos historicamente identificados e santos puramente legendários
são cultuados nas mesmas igrejas, com o mesmo fervor.
Ao concluir uma pesquisa sobre o culto dos santos na província
espanhola de Saragoza nos anos 80, Ana Maria Rivas Rivas (1997)
observa o mesmo emaranhado entre devoções tradicionais e práticas
contemporâneas, e também nota que o santo é geralmente confundi-
do com a sua efígie. Longe de ser considerada como simples represen-
tação figurada, a imagem é vista como depositária do poder atribuí-
do ao santo: "o símbolo que domina os rituais é a estátua, a efígie sa-
grada que concentra a maior condensação de significados" (1997:109).
11
"Bispos Reformadores" foram designados para dar fim ao culto dos santos "populares"
de origem portuguesa, e substituí-lo por devoções "autorizadas", por exemplo, a do Sa-
grado Coração. Apesar de as recomendações sugerirem explicitamente medidas bas-
tante enérgicas - em 1852, o Bispo de São Paulo "determinou que, se não fosse obedeci-
da, a autoridade secular derrubasse as capelinhas do culto popular" (BRANDÃO,
1979:156) - os cultos tradicionais permaneceram, e estão florescentes até hoje.
58
Mais ainda: a nossa pesquisa no campo das práticas devocionais no
Rio de Janeiro não permite apenas verificar que a efígie é o santo, mas
que, em certos casos, é a imagem que parece criar o santo. No caso que
vamos descrever agora, não se trata de uma imagem no sentido visu-
al, iconográfico, mas de uma imagem verbal. Santo Expedito é hoje
objeto de um culto muito difundido, marcado, entre outros aspectos,
por uma dimensão fortemente midiática, que parece misturar inextri-
cavelmente interesses espirituais e materiais, fervor e manipulação,
resposta à aflição e exasperação do consumo, sem falar dos ângulos
políticos e institucionais, sempre presentes na gestão do sagrado...
Do nome à imagem:
a produção do culto de Santo Expedito
59
O fato é que circulam milhares de "santinhos" por toda parte. Não
só nas igrejas, onde se vêem pilhas mais ou menos discretas em al-
tares, ou dentro de pias bentas secas, mas também na rua, coladas
nos balcões das lojas, nas barraquinhas dos feirantes, nos táxis e,
como não poderia deixar de ser, no meu escaninho na PUC-RJ.
Logo mais, os jornais comentam essa avalancha. Conforme os
dizeres colocados em baixo da oração12 , e que sugerem a aquisição
do livro Santo Expedito: um Show de graças, é fácil localizar a ori-
gem dos "santinhos", quanto mais que o autor do livro, Renato Ta-
deu Geraldes (1999), o dono da gráfica, relata nele a sua vida.
Nascido em 1952 no Estado de Santa Catarina, educado por ca-
tólicos fervorosos, considerou a possibilidade de ingressar no semi-
nário, mas acabou casando, e fundou uma gráfica que, em conseqü-
ência dos problemas econômicos da era Fernando Collor (1990-
1992), faliu. Certo dia do ano de 1996, estava andando pelas ruas de
São Paulo à procura de emprego, quando, diz ele, uma velha senho-
ra se aproximou, e perguntou, de chofre, se ele era católico. Se fosse
o caso, deveria ler a oração a Santo Expedito, cuja capela se encon-
trava perto. Lá, achou um monte de folhetos com a oração, "impres-
sos em preto e branco", já com a recomendação de mandar impri-
mir um milheiro em agradecimento. Geraldes fez a promessa de im-
primir dez mil, e sua vida foi melhorando aos poucos.
Pediu a um desenhista amigo o projeto de um formato mais prá-
tico "para que as pessoas pudessem colocar a oração de Santo Ex-
pedito na carteira", e ele mesmo redigiu a introdução à oração, bem
como a recomendação final. Muita gente encomendou "santinhos",
a coisa foi se espalhando e, no dia da festa do santo, em 19 de abril
de 1997, trouxe para a capela dez mil cartazes com a imagem de San-
to Expedito, rapidamente esgotados.
O sucesso foi tão estrondoso que, pouco tempo depois, o padre
encarregado da paróquia onde Geraldes morava resolveu constru-
ir, na mesma rua, uma capela dedicada ao santo13 . No ano seguin-
te, em 1998, as pessoas que cuidavam da capela de Niterói entra-
12
"IMPRESSO na EDITORA SANTO EXPEDITO LTDA- R$ 38,00 o milheiro., com En-
trega Grátis via Sedex. Abril 97. Peça também o livro; "Santo Expedito, um Show de gra-
ças". Ligue Grátis 0800.55.1904 ou em S.P. 6951.2099. VISITE NOSSA PÁGINA NA IN-
TERNET: http.///www.santinho.com.br"
13
Geraldes (1999:71) pergunta se não se trata de simples coincidência [sic]. Há pouco
tempo, descobriu-se, no Estado de São Paulo, a existência de uma cidadezinha chama-
da Santo Expedito que, com certeza, há de expandir-se!
60
ram em contato com o gráfico, que passou então a produzir "san-
tinhos" com a imagem desta, no fundo.
Desde então, multiplicam-se as capelas de Santo Expedito. A
gráfica agora se tornou "Editora Santo Expedito". Além de sua pá-
gina na internet, surgiram outros sites, criados por outros devo-
tos. Em 2000, a Folha de São Paulo assinalava a criação de vários
sites desse tipo, que atendem à divulgação das graças obtidas pela
intercessão do santo. É bem mais prático que os "santinhos", di-
zem, e o celebérrimo Leonardo Boff, ex-frade franciscano, assegu-
ra que não há mal nisso, a não ser que as pessoas tenham "uma re-
lação mercantil com a religião, exigindo uma solução imediata"
dos seus problemas14 .
14
Entrevista publicada na Folha de São Paulo, caderno Cotidiano, p. 3: "Rede cria paga-
dor de promessa virtual".
61
Além disso, Santo Expedito é chamado de "Santo das Causas Justas
e Urgentes". Será uma alusão a outros protetores, nada católicos, capa-
zes de atender causas injustas? Muitos dos bilhetes que encontramos
nas igrejas cariocas parecem deixar clara a "porosidade" entre cultos de
origens diversas... E deixam supor que os devotos nem sempre vêem di-
ferenças entre os vários "poderosos do além" (DANIEL, 1999).
A rapidez atribuída a Santo Expedito revela-se, também, na es-
pantosa velocidade da expansão do seu culto. Pouco divulgado
antes de 1997, torna-se, graças à gratidão do gráfico que submer-
ge São Paulo primeiro, e o Rio de Janeiro em seguida, com milha-
res de "santinhos", o protótipo daqueles que apelidamos de "san-
tos da crise". Essa categoria agrupa intercessores mais tradicio-
nais: Santa Edwiges, protetora dos endividados, São Judas Tadeu,
padroeiro dos casos desesperados, e Santa Rita dos impossíveis,
todos já conhecidos, mas cuja devoção ganhou grande visibilida-
de no fim dos anos 90.
Podemos supor que o sucesso de Santo Expedito talvez se deva
ao seu relativo desconhecimento. Frente a esses intercessores já
bem procurados pelos devotos, não terá assumido um caráter de
novidade? Quanto mais que até o seu nome parece sinônimo de
rapidez, e os solicitantes aflitos poderão contar com mais um pro-
tetor, tão solícito quanto os demais e, além disso, capaz de aten-
dê-los imediatamente!
Quando se procura informações ao seu respeito nos tratados
hagiográficos, as referências se reduzem a um simples nome, em
meio a uma lista. Os autores auto-intitulados de Petits Bollandis-
tes (GUÉRIN, 1880), geralmente pródigos em relatos fantásticos15
, apenas assinalam que, em 19 de abril, o Martirológio Romano ce-
lebra a memória dos "santos mártires Hermógenes, Caius, Expe-
dito, Aristônico, Rufus e Gálatas", mortos em Melitena, na Armê-
nia. Entre todas as enciclopédias católicas presentes na biblioteca
da PUC-Rio, somente o Dictionnaire d'histoire et de géographie
ecclésiastiques [DHGE] lhe consagra um verbete, para dizer que
15
O tratado se compõe de 17 volumes. Aqui traduzo a integralidade do título: "Os peque-
nos B olandistas - Vida dos Santos do Antigo e do Novo Testamento, dos Mártires, dos
Padres, dos Autores sacros e eclesiásticos, dos Veneráveis e outras pessoas mortas em
olor de santidade - Notícia sobre as congregações e as ordens religiosas - História das
Relíquias, das Peregrinações, das Devoções populares e dos Monumentos devidos à pi-
edade desde o começo do mundo e até hoje"[sic].
62
não se conhece coisa alguma de sua vida, e que o seu culto, igno-
rado na alta Idade Média, teria sido assinalado no século XVI, mas
se teria expandido em meados do século XIX, na França e na Itá-
lia, apresentando "formas supersticiosas" [já!]... A opinião dos au-
tores do verbete é que Expedito jamais existiu.
Como sói acontecer, tratar-se-ia do erro de um monge copista
que, em vez de transcrever corretamente o nome de Santo Elpi-
dius16 , o teria substituído por Expeditus . Em seguida, o desconhe-
cimento da língua latina teria levado a um equívoco. "A sua origem
deve provir de um verdadeiro trocadilho, que fez dele o padroei-
ro das causas urgentes" (DHGE, vol.6: 257).
Trocadilho, de fato: em latim, expeditus não quer dizer "expeditivo",
mas sim, "livre, desembaraçado", do verbo expedire, "libertar, desemba-
raçar, deslindar". Basta consultar o dicionário latim-francês de Gaffiot
(1934) para encontrar a referência a soldados romanos expediti, isto é,
"portadores de armas leves". Acontece que esta simples menção de uma
corporação militar, devidamente aproveitada, vai desencadear a cons-
trução da lenda de Santo Expedito. Doravante, este último será um le-
gionário romano e até mesmo - porque não? - "um comandante em
chefe da legião". E será representado com a couraça, o saiote e as per-
neiras do soldado romano, com ampla capa vermelha - cada vez mais
ampla, conforme as imagens - e com um capacete, cada vez mais dou-
rado, colocado no chão. Na mão esquerda, carrega a palma do mártir
e, na direita, ergue uma cruz que leva a inscrição "hodie", enquanto pisa
em um corvo, de cujo bico sai a palavra "crás".
Essa representação já consta do tratado de Louis Réau sobre a
iconografia da arte cristã (1958), mas ele não fornece datas, de tal
modo que ignoramos até hoje qual poderia ser a antiguidade de
tais atributos. Podemos supor que os dizeres e a presença do cor-
vo expressam a contribuição de algum religioso bem intenciona-
do, que encontrou certa semelhança entre o advérbio latino crás
e o crocitar da ave17 , dando origem à lenda conforme a qual:
16
Devo honestamente confessar que tampouco encontrei vestígios de algum Santo Elpídio...
17
Para quem é de origem francesa, é impossível esquecer que, em francês, "crocitar" se
diz croasser, o que pode talvez sugerir uma pista, no tocante à língua original desse hi-
potético religioso, quanto mais que, de acordo com o DHGE, a França foi, em meados
do século XIX, um dos países mais tocados pela reinvenção do culto ao santo...
63
no mesmo momento de sua conversão, apareceu-lhe um corvo que,
simbolizando o Espírito do Mal, disse-lhe: "Cráss... Cráss... Cráss..." que,
em latim, quer dizer: 'Amanhã... Amanhã... Amanhã'. Isso significa que
o Espírito do Mal, até na hora da conversão de Santo Expedito ao cris-
tianismo, tentou persuadi-lo a deixar para depois, dizendo que não ha-
via pressa; deixe para amanhã a sua conversão! Santo Expedito, como
bom soldado que era, reagiu energicamente, esmagando o corvo com
o pé direito e esbravejou: "Hodie..., Hodie... Hodie...", não adiarei nada.
Não vou deixar para amanhã, a partir de hoje serei cristão.
Por isso, ficou conhecido como o santo que resolve os problemas com
rapidez, o "Santo da Última Hora" (GERALDES, 1999).
18
Entrevistado por uma revista, Geraldes declara que, em 1998, havia imprimido um to-
tal de 18,7 milhões de "santinhos", e projetava de produzir 76 milhões para o ano de 2000.
65
Trata-se, portanto, de uma multiplicação midiática, pela qual
cada elemento produz uma corrente que se desdobra em vários
níveis de produção, em um ritmo cada vez mais acelerado, e cujo
resultado é essa verdadeira inflação de imagens, de pedidos, e de
distribuição de "santinhos". Em que medida a velha fé católica tira
disso algum proveito, ou não? A pergunta fica em aberto.
Em todo caso, chama a atenção o deslocamento do papel atri-
buído aos santos, com essa passagem da mediação à midiatiza-
ção 19 , na qual o campo do sagrado parece reduzir-se a um merca-
do mágico, dominado pela satisfação imediata dos mais concretos
desejos. É verdade que, no decorrer da história, o culto dos san-
tos sempre se acompanhou de práticas mais ou menos "supersti-
ciosas". Hoje, porém, parece que a cena religiosa foi totalmente
contaminada pela proliferação de pedidos e de imagens que, em
uma progressão geométrica, cada vez mais se afastam da perspec-
tiva da salvação. Salvação esta, que para todo cristão, aponta para
o horizonte de sua esperança.
A forma que a devoção a Santo Expedito está tomando parece
oferecer um nítido exemplo da voracidade e do imediatismo da
sociedade de consumo. A sua imagem ilustra a perda de todo o
horizonte temporal, pois, ao pisotear o pássaro que fala em ama-
nhã, Expedito aniquila qualquer idéia de futuro.
19
Agradeço os comentários que seguiram a primeira apresentação de nossas observações,
intitulada "Le sacré en miettes: fonction des images dans les cultes populaires brésiliens",
no Seminário do Doutorado em Ciências da Educação, dirigido por Dany Dufour e Pa-
trick Berthier na universidade de Paris-VIII, em fevereiro de 2001. Estou igualmente grata
à Professora Claúdia Amorim Garcia, minha colega da PUC-Rio, por me mostrar que,
ao matar o corvo, Santo Expedito destrói toda e qualquer perspectiva temporal.
66
Referências bibliográficas
67
RÉAU, L. 1958. I conographie de l'art chrétien, t. III - Iconographie
des saints. Paris, PUF.
RIVAS RIVAS, A. M. 1997. Le pouvoir symbolique des images re-
ligieuses. Bastidiana, 19/20: 99-116.
PIERUCCI, A. F. 2001. A magia. São Paulo: Publifolha.
68
Segunda Parte
69
70
O Catolicismo e suas faces:
Apontamentos da questão no Brasil
Igreja e Estado:
do Brasil colônia ao Brasil república
1
Mesmo tendo a demarcação do período colonial entre 1500 e 1822, quando da procla-
mação da independência e a conseqüente criação do Estado monárquico, seguimos a
demarcação do Brasil-colônia apresentada por Hoornaert (1978).
71
O Estado brasileiro se estrutura a partir dos interesses comerciais
da metrópole. Com essa forma externa de governo, dada a pouca au-
tonomia que aqui se instala, temos uma forma de se pensar a religião.
Neste caso, o modelo é o da Igreja Católica Apostólica Romana. Esta
é imposta pelos portugueses, embora diferenciada das formas euro-
péias de se pensar a Igreja, pois a que vem para a colônia tinha auto-
nomia simbólica, mas pouca ou quase nenhuma autonomia econô-
mica2 . Nesse sentido, o Estado colonial se legitima como tutelador da
Igreja no Brasil3 . A relação entre Estado e Igreja é definida como pa-
droado. Sua característica fundamental é a dependência econômica e
organizacional da Igreja em relação ao Estado (HOORNAERT, 1978).
No contexto colonial, o catolicismo se caracteriza como luso-bra-
sileiro, dada a grande influência de práticas religiosas portuguesas.
Tal catolicismo também possui outras formas de se expressar como,
por exemplo, o catolicismo leigo, que se caracteriza pela pouca forma-
ção do clero no Brasil e pelas práticas religiosas diversificadas. Esta
forma de catolicismo mostra-se medieval, dada a maneira opressora
do Estado na relação com os índios, escravos e invasores. O catolicis-
mo leigo assume um caráter social, por haver, neste período, pouca
vida urbana, o que foi um fator importante para o fortalecimento de
práticas religiosas como expressão de vida social, como no caso das
festas. Como última forma de expressão, há um catolicismo familiar.
Neste caso, a família pode ser entendida como núcleo central de pro-
pagação ideológica. Como exemplo, temos a reunião das famílias em
torno do oratório como uma das práticas religiosas4 .
Nesse período, ao mesmo tempo em que existe uma posição mais con-
tundente da Igreja e do Estado frente à produção da vida cotidiana, cha-
2
Há de se destacar que os jesuítas criticavam essa forma de relação entre Estado e Igreja no Brasil
colônia, o que os levou à criação de comunidades com autonomia econômica e até religiosa
pelo território nacional durante este período. Essas posições compõem o quadro de motivos
que causou a expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759 (AZZI, 1976; HOORNAERT, 1978).
3
Azzi ressalta que para zelar pelos interesses religiosos da colônia, o monarca cria a Mesa da
Consciência e Ordens, uma espécie de Ministério do Culto. Assim, pois, a Igreja do Brasil se
implanta como uma obra do Estado português (AZZI, 1976, p. 97).
4
Essas cinco formas de expressão do catolicismo colonial são entendidas por Azzi (1976) como
sendo componentes do que ele chama de catolicismo tradicional. Nesse texto, o autor apre-
senta alguns elementos para pensarmos a formação do catolicismo popular. Destacamos que
o que o autor considera como catolicismo medieval será discutido com mais profundidade por
Hoornaert (1973), que apresenta essa expressão do catolicismo como sendo um catolicismo
guerreiro, reconhecido como uma expressão de luta contra aqueles que não aceitavam o do-
mínio português. A expressão de luta, também, pode ser observada no cotidiano da popula-
ção, em sua relação com aqueles que não aceitavam o catolicismo, como destaca Hoornaert:
72
ma a atenção o fato de que a extensão territorial e a limitação do Estado
e da Igreja, frente a um controle absoluto dessas produções, apontam para
outros personagens, percebidos nas próprias caracterizações do catoli-
cismo tradicional apresentadas por Azzi (1976). Em especial, três expres-
sões desse catolicismo chamam a atenção: o leigo, o social e o familiar.
Essas categorias indicam uma forma de organização menos controla-
dora do cotidiano. Organização que pode ser vista na realização de fes-
tas, romarias e confrarias, por exemplo. Há aqui uma primeira expressão
de apropriação de elementos simbólicos da religião oficial, com a conse-
qüente adaptação às condições da vida cotidiana. Com isso, podemos
afirmar que Estado e Igreja, enquanto posições hegemônicas, trazem con-
sigo outras formas de produção material e simbólica da vida cotidiana.
Portanto, somos induzidos a considerar que, frente à tensão dessas duas
instituições, o cotidiano passa a ser reinterpretado pela população, visto
que as dificuldades do dia-a-dia necessitam de respostas imediatas, e nem
sempre os representantes institucionais estão presentes.
Destacamos também a importância dos santos representados
pelas imagens, que contribuem para uma particularidade dessas
expressões leigas de devoção. Os santos fazem parte do dia-a-dia
dessa população, que busca neles as respostas para um cotidiano
opressor em função das difíceis condições ambientais em que vive.
Os santos trazidos para o Brasil se transformam com a criação de
cruzes, oratórios, santuários, enquanto uma releitura para o co-
tidiano vai sendo construído socialmente5.
4
Pode concluir: no período colonial, marcado pela fé na providência, as imagens dos santos
eram realmente imagens do Brasil. Elas nos revelam a verdade a respeito do Brasil. O simbo-
lismo religioso diz respeito a experiências humanas concretas, ele fornece material para inter-
pretar a vida dos antepassados. A empresa colonizadora ultramarina comportava numerosos
perigos: perigos do mar, da terra desconhecida, e sobretudo dos índios. A sacralização da con-
quista desta nova terra e da guerra contra o gentio ajudou os colonos à superação destas difi-
culdades. Contudo, essa sacralização provém de áreas interessadas no domínio completo,
como são as hierarquias. O sucesso dessa sacralização está no fato de que ela é capaz de trans-
mitir ao povo um entusiasmo religioso a serviço de uma causa que finalmente só serve às hie-
rarquias. Dessa forma, a guerra da aristocracia passa a ser a guerra popular, o próprio povo
combatendo e se sacrificando a serviço dos poderosos (HOORNAERT, 1973, p. 867).
5
Nesse período temos a construção de cruzes e cruzeiros, oratórios, ermidas, capelinhas e san-
tuários. Esses espaços eram construídos em sua maioria por leigos, como forma de demarca-
ção de sua religiosidade. Há um elemento comum no início do culto de todas essas devoções:
sua origem secular. Exceção feita aos santuários franciscanos do Nordeste, são pessoas leigas
que iniciam o culto, e posteriormente se nota a presença clerical (AZZI, 1978, p. 52). Como
exemplo, temos duas formas dessas produções: Desde o início da colonização até meados do
século XVII o culto religioso no Brasil foi celebrado principalmente em oratórios ou ermidas,
com um cunho acentuadamente familiar. Era nesses pequenos templos, construídos pela de-
voção particular, que o povo expressava a sua fé (AZZI, 1978, p. 51).
73
Nesse sentido, existe a organização de um imaginário devocional
que, por meio dos santos trazidos para cá, é apropriado e transfor-
mado, a partir da relação que os santos estabelecem com as dificul-
dades cotidianas desta população. Esse imaginário se constrói com
a necessidade da criação de mediadores, pois, se os padres não es-
tão próximos e Deus é tão distante6 - quando não opressor -, cabe
aos santos a resolução da tensão criada entre o céu e a terra. Ao
mesmo tempo em que se tinha a produção dessas formas alternati-
vas criadas pela população para a superação da opressão, há tam-
bém a resistência por parte de índios e negros frente à violência do
sagrado estabelecida por essas formas de dominação7 .
Ao final do período colonial, ocorrem algumas mudanças no quadro
que compõe a sociedade brasileira, mudanças que tomam corpo com a
vinda da família real para o Brasil, e a conseqüente instalação do perío-
do imperial. Para esta análise, trabalhamos com dois movimentos.
O primeiro é o da mudança, mesmo que inicial, da organização
da vida cotidiana, pois há o crescimento de algumas cidades devi-
do às novas formas de produção econômica que aqui se instala-
ram. Paralelamente, existe uma preocupação com a mentalidade
secularizada, trazida pela própria corte. Como destaca Azzi, "no
Rio, a presença da corte contribui para a difusão de uma mentali-
dade secularizada, e a vida católica entra em crise. São suspensas
diversas procissões, nessa época, por falta de espírito religioso"
(AZZI, 1976, p.119). Ao mesmo tempo, a presença da família real
possibilitou a vinda de outras denominações religiosas européias,
como os protestantes e espíritas8 (AZZI, 1976).
6
Este posicionamento dos santos, em função da proximidade com a população, é dis-
cutido por Otten (1999). Ele analisa esta proximidade como uma das alternativas cria-
das pelos devotos para amenizar a tensão que se expressa a partir da relação entre pa-
trão e Deus. Essa tensão faz com que os santos, pela proximidade, garantam a continui-
dade da devoção, superando o patrão como "porta voz" do sagrado.
7
Hoornaert discute essa questão, a partir das formas de resistência dos índios e negros fren-
te a esse catolicismo guerreiro: Os efeitos do espírito guerreiro católico não demoraram a
se manifestar: índios e africanos responderam logo ao desafio da violência sagrada, trans-
formando seus espíritos e orixás em deuses vingativos. Olho por olho, dente por dente.
(HOORNAERT, 1973, p. 873). Discussão semelhante, quanto às formas de resistência sim-
bólica, pode ser encontrada em Lanternari (1974), que faz uma reflexão sobre os movi-
mentos proféticos e messiânicos em regiões colonizadas, destacando a forma que estes
povos, a partir da religião dominante, criam e recriam formas alternativas de libertação.
8
Segundo Hoornaert (1973), no período colonial, o imaginário que envolvia o catolicis-
mo guerreiro, quanto à relação entre índios e negros, também era utilizado como resis-
tência aos invasores externos, que traziam também outras religiões.
74
Paralelamente a essa mudança no cenário urbano, há uma cri-
se da consciência católica. Crise que se instala com a reforma do
clero e a busca da introdução do modelo romano de Igreja, por-
que, no período colonial, a Igreja brasileira em quase nada seguia
as regras do Vaticano. Ora, no padroado, a dependência era dire-
ta entre Estado e Igreja. Portanto, no império emerge a busca de
uma reestruturação hierárquica da Igreja e o conseqüente afasta-
mento da monarquia:
9
Azzi (1976) destaca a expulsão dos jesuítas, em 1759, como um dos motivos para as cri-
ses da Igreja no Brasil.
10
Canudos pode ser considerado como uma expressão popular reprimida pela Igreja nes-
se período, dado o teor religioso que envolve a sua criação. Aqui, a repressão não é só
religiosa, mas também política, dadas as críticas de Antônio Conselheiro à ordem re-
publicana (AZZI, 1976). Outros exemplos de repressão são as críticas contra denomi-
nações religiosas pentecostais. As primeiras a chegarem no Brasil foram a Congregação
Cristã, em 1910, e a Assembléia de Deus, em 1911 (ROLLIM, 1987).
75
O problema que se instala é que, no contexto republicano, a re-
organização do Estado e da Igreja não reflete, necessariamente, uma
nova prática religiosa de determinados setores da sociedade. De um
lado, o modelo agrário passa a ser substituído por novas formas de
produção material - por exemplo a industrial -, acarretando a urba-
nização e a conseqüente busca de outros sentidos que se associam
a esta nova forma de vida cotidiana11 . De outro, a Igreja passa a ne-
gar as formas religiosas tradicionalmente instaladas, ou seja, pro-
cura negar três séculos de construção de uma mentalidade religio-
sa em detrimento de outra, até então "desconhecida".
É com essa transformação da realidade brasileira que surge a
necessidade da discussão desse novo contexto social e religioso
no Brasil. No que se refere ao contexto religioso, ocorreu a cria-
ção de espaços junto à Igreja no sentido da reflexão de suas prá-
ticas, tanto na perspectiva teológica quanto das práticas junto à
população, em parte, motivadas pelo crescimento protestante
junto a camadas populares da sociedade 12 . As questões apresen-
tadas caracterizam o reordenamento interno e externo da rees-
truturação da Igreja.
O caminho seguido até agora demarca a construção de um es-
paço religioso no Brasil que, aparentemente, apresenta duas fa-
ces - Igreja e Estado: faces que, no decorrer da história brasilei-
ra, se unem, uma vez que aportaram juntas na Terra de Vera
Cruz. O problema é que, mesmo aparentemente possuindo inte-
resses semelhantes, a história tratou de mostrar que a posição
destas instituições frente à sociedade são antagônicas.
Por mais que essas instituições acreditem poder naturalizar as
suas ações em um processo contínuo de alienação, o movimento
histórico mostrou formas diferenciadas de apropriações do coti-
diano. Essas, muitas vezes, podem se dar pela apropriação de ca-
11
A Revolução de 1930 marca o fim da República Velha no Brasil, e o país entra numa
negra fase. Até então a exploração da terra constituía a base econômica da nação, atra-
vés dos diversos ciclos do pau-brasil, da cana-de-açúcar, do ouro e finalmente do café
(AZZI, 1976, p. 125).
12
A influência européia é marcante nesta nova postura da Igreja. Influência que passa
pela renovação dos estudos bíblicos teológicos, por exemplo, criam-se também espa-
ços de discussão do novo contexto religioso. Fator importante a ser assinalado nessa
época é a criação da Revista Eclesiástica Brasileira, em 1941 (desde 1939 como nome de
Cor), que se torna o ponto de encontro das diversas correntes de pensamento nas di-
versas áreas da teologia católica (AZZI, 1976, p. 128).
76
racterísticas simbólicas do dominador como forma de resistência
e a conseqüente criação de algo diferente 13 .
As questões apresentadas acima trazem consigo a necessidade de
estudos que objetivem a apreensão de novas formas de configura-
ção do espaço religioso, que foram produzidas historicamente.
13
A idéia de formas de resistência simbólica frente às práticas de dominação podem ser
encontradas em Dussel (1986), Otten (1999), Lanternari (1974) e Parker (1995). Esta dis-
cussão é apresentada por esses autores, tanto no plano da apropriação simbólica como
forma de resistência ao cotidiano, quanto à possibilidade de produções teológicas.
14
Outro autor citado é Tales de Azevedo, em função da contribuição de seus estudos so-
bre religião, que são utilizados por outros autores, em especial Cândido Procópio Ferreira
de Camargo.
77
Ao final da década de 50, os estudos sobre configuração sócio-re-
ligiosa apontavam para uma tensão entre formas de organização
social causadas pela urbanização e industrialização e expressões re-
ligiosas. Em sua maioria, tais estudos utilizaram-se de referenciais
teóricos europeus15 . Nesse contexto, a questão passa a ser como es-
sas condições sociais influenciam a vida cotidiana da população, no
sentido de opções religiosas, pois, como se pôde ver anteriormente,
a urbanização trouxe consigo a possibilidade de expressão de outras
denominações religiosas. Este é o contexto em que Cândido Procó-
pio Ferreira de Camargo está inserido16 . A busca era de bases teó-
rico-metodológicas para os estudos da religião e identificação dos
estilos e orientações das práticas religiosas.
Do ponto de vista desse autor, para compreender o campo das reli-
giões, no Brasil, o "foco de análise é constituído pela vida religiosa, in-
terpretada como ideologia, e correlacionada com situações existenciais
de segmentos da população. Nesse sentido, cada religião é estudada
como alternativa ideológica competitiva" (CAMARGO, 1973, p. 11).
O destaque é o fato de este foco ser "constituído pela vida religi-
osa", "correlacionada a situações existenciais", ou seja, as mudanças
na estrutura social brasileira associadas às mudanças religiosas
apontam, neste sentido, para novas formas de ser e fazer o religio-
so. O que leva a considerar que a hegemonia da religião do século
passado passa a mostrar-se difusa, possibilitando emergirem outras
possibilidades dentro da religiosidade brasileira. Mas, como apre-
sentaremos, as outras expressões religiosas não são consideradas
como centrais nas análises e sim mencionadas como integrantes:
78
Os estudos destacam o crescimento de "religiões de massa" e,
dentre elas a Igreja Católica, como integrantes da vida religiosa
brasileira. Ressaltamos o fato de que as seitas passam a compor o
espaço religioso: mesmo não sendo consideradas numericamente
significativas 17 , as mesmas começam a ocupar o seu espaço. Há
também a preocupação com a secularização como um dado de ex-
trema relevância para este contexto analítico.
Até agora, constatamos que a concepção da sociedade brasilei-
ra como sendo composta de uma única expressão religiosa, hege-
mônica, começa a mover-se para o aparecimento de outras expres-
sões, ou seja, uma identidade religiosa nacional começa a apresen-
tar outras identidades, como forma de atribuição. E como se po-
derá ver, estas outras identidades apresentarão formas diferenci-
adas em sua composição interna. Outro problema que se apresenta
é que dentro dessas "religiões de massa", existem formas diferen-
ciadas de participação, que passam agora a ser contempladas, pelo
menos, em estudos relacionados às religiões no Brasil.
Para tanto, como indica Camargo, os estudos têm como eixo nor-
teador para o entendimento da participação religiosa - em particu-
lar o catolicismo - as formas de adesão. Esta fundamenta-se na idéia
do catolicismo como uma grande religião ecumênica, e aqui pensa-
da como uma adesão universal dos povos ao catolicismo. Reconhe-
cer um ecumenismo no catolicismo, como forma de contemplar a
participação de toda a população, implica considerar também que
esta participação é mediada por tradições culturais diferenciadas.
O autor apresenta ainda vários estudos realizados na Europa, es-
pecificamente na França, que objetivam o entendimento da ' appar-
tenance' religiosa que "teve sua origem ligada a preocupação pasto-
ral e o interesse eclesiástico (Conferência Internacional de Sociolo-
gia Religiosa)" (CAMARGO, 1973, p. 43). Estudos que influenciaram
no entendimento das formas de adesão à religião no Brasil 18.
Camargo (1973) destaca também que estudos brasileiros da "appar-
tenance" tinham como objetivo a análise pela dimensão litúrgica, e re-
alça que os estudos de Thales de Azevedo são um marco no entendimen-
17
Segundo os dados censitários da época (CAMARGO, 1973).
18
Parker (1995) apresenta uma discussão sobre a influência européia nos estudos da re-
ligião no Brasil. Essa questão se evidencia em Camargo, dada a utilização de estudos re-
alizados na França.
79
to das adesões, pois este considera "fisionomia variada, segundo as tra-
dições dos grupos sociais, antecedentes culturais, situações e experiên-
cias históricas" (CAMARGO, 1973, p. 47).
80
de meios e fins, para a conduta religiosa e o comportamento social le-
gitimado pela religião, não havendo explícita distinção entre os valores
e normas da sociedade global e os da coletividade religiosa. Destacam-
se, tanto na conduta religiosa como no comportamento social que a le-
gitima, sacralização e rigidez internas (CAMARGO, 1973, p. 49).
19
Bolon (1972) discute as questões que envolvem a secularização no Brasil neste perío-
do. Nesse texto fica explícita a preocupação com esse processo de secularização na pers-
pectiva de como o mesmo cria novas demandas junto à população e, consequentemen-
te, faz com que a Igreja tenha que se reposicionar.
82
apresentam uma consciência junto às formas de suas participações
na religião, ou seja, se reconhece a existência desses tipos junto ao
catolicismo, mas eles não são considerados a partir da possibili-
dade de uma participação autônoma, no sentido de pensarmos
uma produção singular de sua religiosidade 20 .
As expressões populares sempre são consideradas uma repro-
dução distorcida das formas institucionais de produção de senti-
do. As práticas devocionais populares, como por exemplo, a rela-
ção com as imagens, as procissões, as festas etc., não são entendi-
das como formas de devoção produzidas historicamente, e, por
não o serem, não possuem também autonomia. Ao contrário, nes-
se contexto todos os significados simbólicos expressos nas ima-
gens, assim como as formas das mesmas serem manipuladas, não
são reconhecidos. Exceção feita ao catolicismo internalizado, que
se constitui a partir da intersecção entre mudanças estruturais da
sociedade e mudanças das práticas religiosas.
Os estudos sobre a adesão, aparentemente, atribuem aos indi-
víduos características cristalizadas ao serem analisadas, pois par-
tem de um pressuposto conceitual do que seria aderir a formas
coletivas de produção de sentidos. A impressão é que a teoria an-
tecedeu a análise do movimento empírico da realidade estudada -
ainda mais se considerarmos a importação de modelos analíticos
europeus para o entendimento de nossa realidade - causando, na
análise, a cristalização das formas de produção simbólica e mate-
rial dos próprios indivíduos que participam do campo estudado.
Mas essa impressão deve ser vista com relatividade, pois o próprio
contexto histórico já apresentava um posicionamento de seus per-
sonagens, a partir dos interesses daqueles que buscavam o enten-
dimento desse contexto, visto que a leitura dessa realidade era fei-
ta a partir dos próprios referenciais.
20
Bolon (1972) reflete, a partir de Tales de Azevedo, que a religiosidade popular tende a
secularizar-se. Em relação à religiosidade popular no Catolicismo o antropo-sociólogo
Thales de Azevedo, tipificando o Catolicismo brasileiro em social, formal, nominal e
popular, e ao mesmo tempo afirmando ser a religiosidade popular uma estrutura de apoio
do 'status quo' admite que esta tende a se transformar e a secularizar-se: as cerimônias e
as festas religiosas...vêm sendo rapidamente secularizadas por festejos de índole comer-
cial (THALES DE AZEVEDO, apud, BOLON, 1972, p. 142). Essa reflexão apresenta da-
dos interessantes, pois, além de reconhecer a expressão popular do catolicismo como a
serviço do 'status quo'(o que com certeza a desqualifica), também busca prever suas
transformações a partir da secularização. Ambas as posições desqualificam as expres-
sões populares de religiosidade estudadas no período.
83
Uma outra questão se refere às modificações na participação da
vida religiosa, que se dão exclusivamente pela função que a religião
passa a exercer na vida dos indivíduos (Catolicismo Tradicional
Urbano e Internalizado). A análise dessas expressões do catolicis-
mo posicionam o indivíduo de forma extremamente passiva, ou
seja, modificações sociais e religiosas levam os indivíduos a formas
de adaptação mecânicas. Ela é sempre determinada pelo outro.
Essas categorias seriam a representação de níveis internos pro-
duzidos pela instituição. Então, é como se nessas produções não
existisse a presença de personagens ativos. Mas, sem eles, para
produzirem ou reproduzirem os produtos institucionais, como as
instituições se objetivariam?
Aderir, pelo menos no catolicismo tradicional rural e urbano,
não leva seus participantes para um fazer a religião de forma di-
ferente, pois o fazer certo é reconhecido a partir do fazer institu-
cional. Com isso, a heteronomia, entendida como subordinação
total a vontade de outrem, se estabelece impedindo qualquer pos-
sibilidade de autonomia.
As questões levantadas até aqui se desdobram em outras duas
para o entendimento da religiosidade brasileira. Uma especifica-
mente referente ao catolicismo, e outra, à religiosidade que passa
a ser discutida como campo religioso.
86
análise, percebemos a necessidade da pastoral em reconhecer os
vários elementos religiosos e humanos que estão presentes nessa
religiosidade - o catolicismo popular. Esse reconhecimento deslo-
ca, para o leigo, o ideário da Reforma enquanto centralizadora de
todas as expressões da religiosidade. Como se pôde observar, a ló-
gica que permeava a Reforma era justamente o contrário.
Por outro lado, discutir a renovação pastoral é considerar a ne-
cessidade de novas práticas frente à sociedade, e conseqüentemen-
te frente à religião popular 23. Nessa perspectiva, a própria idéia de
uma nova pastoral traz consigo a necessidade de considerar os
sujeitos desse novo ideal. Nesse contexto, existem as Comunida-
des Eclesiásticas de Base, que se associam a uma lógica libertado-
ra da Igreja, a partir de uma relação entre fé e práxis. Assim, apre-
sentar um contexto como este não é tarefa das mais fáceis, pois o
reconhecimento dessa expressão popular explicita vários ideais
que vão do campo sociológico ao antropológico, psicológico e te-
ológico. Toda essa dinâmica explicita, ainda mais, a complexida-
de do fenômeno. Mas, alguns apontamentos são necessários para
buscar uma demarcação do contexto em que Pedro Ribeiro de Oli-
veira e Carlos Rodrigues Brandão, na seqüência, estão envolvidos.
Uma primeira questão é a da afirmação e negação da autonomia
criativa do catolicismo popular. A discussão se pauta, de um lado,
na compreensão de que culturas podem recriar formas alternati-
vas de práticas religiosas, a partir da relação entre o seu acúmulo
cultural e a imposição dominadora. Criação que se estrutura junto
à própria história daqueles que a elaboram. De outro lado, há a
posição de um ideário que acredita que a sua forma de compreen-
são da realidade é universalista.
Uma segunda questão é a criação de novos personagens no
campo religioso católico, pois, ao buscar uma nova organização da
Pastoral, o controle institucional acaba criando a possibilidade de
reflexão sobre aqueles que compõem esse novo espaço dentro da
23
No Brasil, essa discussão é anterior à Conferência de Medellin. Azzi destaca que organi-
zada na década de 50 graças ao esforço de D. Helder Câmara, a Conferência dos Bispos
era uma tentativa de dar unidade ao trabalho no Brasil. Surge assim, o primeiro Plano de
Pastoral em Conjunto (AZZI, 1976, p. 128). Nesse contexto, o autor discute que vários
movimentos sociais e de estudos ligados à Igreja são criados, por exemplo, Movimento
de Educação de Base (MEB), Centro de Estatística Religiosa e Investigação Social (CERIS)
e outros. Assim, pois é através de todo o movimento de renovação pastoral que a Igreja
do Brasil volta a se reencontrar com a religião popular (AZZI, 1976, p. 129).
87
própria instituição. Até mesmo para as CEB's, vinculadas a uma
estrutura organizadora eclesial, pois seus espaços de funcionamen-
to são os da própria Igreja24 .
A segunda questão leva-nos a outro ponto da discussão, a do es-
paço enquanto organizador do cotidiano, porque, como observado
anteriormente, o catolicismo tradicional (AZZI, 1976) traz uma de-
limitação coletiva e familiar enquanto espaço de circulação da devo-
ção, ou seja, o sentido comunitário. Aqui há uma demarcação espa-
cial em torno de redes de devoção25 em uma comunidade. No inte-
rior dessas comunidades, existem também imagens que demarcam
a referência para a própria fé26 , o que nos possibilita afirmar que o
não reconhecimento desses espaços, assim como dos símbolos a eles
associados, leva ao não reconhecimento dessa prática religiosa.
Como última questão, dentro desse contexto, há o crescimento
das religiões afro, espírita, pentecostais e protestantes. Denomina-
ções religiosas que, em seu início, tinham o crescimento associado
à urbanização. Neste período, passam a tomar outros campos, aten-
der a novas demandas, e conseqüentemente, a ocupar e produzir
novos espaços dentro do campo religioso brasileiro. Portanto, é
neste contexto que Ribeiro de Oliveira e Brandão estão inseridos.
Ribeiro de Oliveira aprofunda o entendimento das formas de ade-
são, só que agora, especificamente, para a face não institucional do
catolicismo. Isso o distancia de Camargo, aproximando-o da face
reconhecida como popular, o que leva à necessidade de encontrar
uma definição do conceito de popular.
24
Hoornaert (1976) reflete sobre a relação entre discursos e lugares, frente aos movimentos
pastorais da época. Destaca que as novas estruturas, prédios, por exemplo, condicionam os
pensamentos, na medida em que estabelecem novos lugares para o entendimento do outro.
25
Lopes (2000) discute a questão de redes de devoção na contemporaneidade, a partir do
uso de capelinhas como forma de demarcação de espaços relacionais de devoção. Este es-
tudo foi realizado no município de Ubatuba, litoral norte do estado de São Paulo.
26
Há de se destacar que essa demarcação comunitária pode ser desdobrada na medida
em que se cria espaços considerados sagrados. Essa elaboração pode ser encontrada em
Azzi (1978), que discute a criação de cruzes, oratórios e santuários, destacando que a
maioria desses lugares são criados por leigos.
88
prático manejam o conjunto de esquemas de pensamento e de ação re-
ferentes ao sagrado, o qual se lhes apresenta em estado implícito e é ad-
quirido por familiaridade. Este é o caso das religiões populares, em opo-
sição à produção religiosa de especialistas (agentes socialmente reconhe-
cidos como únicos habilitados para produzir, reproduzir, gerir e discutir
os bens religiosos) (RIBEIRO DE OLIVEIRA, 1997, p. 44).
27
Outra reflexão é apresentada por Ribeiro de Oliveira quando do reconhecimento da posição
dos leigos quanto às suas formas de produção. Definição que apresenta, dado o seu contexto,
uma influência das transformações religiosas e sociais em que o autor estava inserido. Para ele
a noção de 'catolicismo popular' só poderia ser usada para designar aquele conjunto de práti-
cas e representações do catolicismo anteriores ao processo de romanização do catolicismo bra-
sileiro, isto é, aqueles que tinham como agentes responsáveis os próprios leigos. Mas prefiro
falar de 'catolicismo tradicional' que ainda existe, ao menos fragmentariamente, nas regiões
onde a presença clerical foi e ainda é reduzida, e onde os próprios leigos são os agentes pro-
motores de suas festas e práticas religiosas (RIBEIRO DE OLIVEIRA, 1978, p. 141).
28
Otten (1999) elabora essa questão como uma das formas de 'resistência popular', pois,
nesse contexto (colonial), há a herança de um Deus feudal, imagem que é utilizada a par-
tir da familiaridade com a figura do colonizador. Com isso, os santos abençoam a vida
em família, o casamento, o parto, a morte, zelam por meio de mutirão, compadrio e festa
pela coesão e sobrevivência da comunidade (OTTEN, 1999, p. 15).
89
ca e materialmente: organiza-se a partir do culto aos santos, de festa a pa-
droeiros e das danças de grupos religiosos. As comunidades se organizam
em torno da expressão religiosa sem a necessidade da presença do clero -
o santo já está presente. Não se tem a presença dos sacramentos católicos,
nem da Bíblia como norteadores de suas práticas religiosas. Os santos fi-
cam nas casas, em especial, nos oratórios, local também das rezas.
92
pecificamente no campo do catolicismo popular. Pouco se refletiu so-
bre a relação entre essas transformações sociais com outras denomina-
ções religiosas. Mas, uma coisa clarificou-se com estes autores, o fato de
que, desde que ocorreram mudanças sociais, tivemos, também, mudan-
ças nas próprias expressões do catolicismo.
Paralelamente a estas transformações relacionadas às formas de pro-
dução - mudança de um modelo agrário para um modelo industrial - e
de reorganização do espaço cotidiano - urbanização -, existe, no contex-
to descrito por estes autores, outras denominações religiosas, que passa-
ram também a ocupar o espaço religioso no Brasil. Com isso, levanta-se
a hipótese de que transformações semelhantes às do catolicismo também
poderiam estar ocorrendo nessas denominações religiosas.
Se isso realmente ocorreu, poder-se-ia afirmar a existência de formas
diferenciadas de apropriação, simbólica e material das produções de sen-
tido institucionais, por determinados setores da sociedade. Ou seja, aquele
popular desqualificado em um primeiro momento, que ganha autonomia
em um segundo, passa agora a ser entendido como produtor de sentido30.
30
Três estudos da década de 80 chamam a atenção. O primeiro é de Ruggieri (1986), que apresen-
ta algumas reflexões a propósito das transformações do Catolicismo popular na Itália, especifi-
camente na Sicília. Apresenta como foco central de sua reflexão a relação entre fé e prática religi-
osa nas condições de seu contexto de análise. Destaca que as práticas populares historicamente
constituídas têm se transformado, o que o leva à questão de como a pastoral deve se posicionar
frente a essas transformações que afetam não só a tradição popular, como também a própria es-
trutura oficial. O segundo é de Eliozondo (1986), que discute a religião popular como esteio da
identidade. Discussão essa que se dá a partir da análise da preservação cultural mexicana nos Es-
tados Unidos. A questão debatida pelo autor é que no interior da sociedade mexicana há a recri-
ação de símbolos como, por exemplo, Nossa Senhora de Guadalupe, que possibilita a recriação
de uma identidade nacional. O terceiro é de Suess (1986). Sua reflexão estrutura-se no reconhe-
cimento da produção de normas do catolicismo popular. Normatização que o leva a considerar
uma produção teológica construída a partir da própria produção popular. Reconhece a religio-
sidade popular enquanto uma produção da cultura popular. A RP [Religião Popular] é um fe-
nômeno da cultura popular, que confere à totalidade das práticas sociais a coerência de um sen-
tido global. A RP é também um sistema cultural de comunicação, de práticas e interpretações
simbólicas. Como cada língua falada se desenvolve historicamente, impondo as mudanças da fala
(RP) às convenções gramaticais da língua (RO) [Religião Oficial], assim também a religião vivi-
da pelo povo é modelada por uma força criadora que emana da orquestração das suas condi-
ções e contradições sociais com a sua consciência histórica forjada na luta pela vida. Da fecun-
dação sócio histórica da RP surgem mudanças nas regras do jogo religioso, no significado sim-
bólico, na consciência sócio-política e na prática religiosa. A relativa autonomia do campo reli-
gioso, que preserva a fé do povo da sacralização ou ideologização política, confere às práticas
religiosas populares uma força de mobilização sócio-política alternativa muito grande (SUESS;
1986, p. 125). Essa citação pode ser relacionada à citação de Libâneo, na medida em que ambos
refletem sobre a dimensão teológica do catolicismo popular. Dada a diferença dos contextos, te-
mos em Libâneo a discussão da autenticidade teológica do catolicismo popular. Já em Suess, até
mesmo em função do reconhecimento dessa autenticidade, há o reconhecimento de uma nor-
matização dessa produção popular do catolicismo.
93
A questão, portanto, é de como podemos apreender essa produ-
ção do sentido popular, historicamente negado, que também se re-
afirma na própria história, levando a considerar que, ao falarmos de
religiosidade popular, falamos também de uma cultura popular. Esse
é o contexto em que está inserido o nosso terceiro autor.
Em Brandão (1986), o debate direciona-se para as formas em que
o popular produz e preserva sua religiosidade, não só no catolicis-
mo, mas também em outras denominações religiosas. A discussão
fundamenta-se no contexto em que o autor está inserido, em que há
o reconhecimento dessas expressões populares enquanto produto-
ras de sentido. Ou seja, a discussão agora não é mais a de reconhe-
cer ou não as expressões populares como autônomas, mas de en-
tender como, porque e a partir de quais elementos este 'popular'
produz as suas formas materiais e simbólicas. Nessa perspectiva, a
preocupação dos estudos não pode ser mais com o institucional.
Em Os deuses do povo: um estudo sobre a religião popular
(1986), Brandão, na primeira parte do trabalho, reflete acerca da
formação do campo religioso de Itapira/SP. Discussão que se pauta
na caracterização da região, e que envolve a descrição das mudan-
ças das formas de produção econômica da região. Como por
exemplo, temos a mudança de um modelo agrícola para a agro-in-
dústria, e os vários personagens que partilham dessas mudanças
- coronéis, pequenos proprietários, fazendeiros e camponeses.
Sua análise se refere às mudanças econômicas, historicamente
produzidas, e sua conseqüente influência nas pessoas que viviam
nesse espaço. Mas essa discussão é apenas uma contextualização
inicial, pois, na seqüência, o autor passa a destacar o surgimento
de personagens que compõem esse novo contexto social que vai se
formando. Personagens especificamente relacionados à religião. O
autor define a seqüência de sua análise, procurando saber "quem
são as agências, os agentes e os seguidores religiosos de Itapira,
segundo seus atributos e suas diferenças seculares e confessionais"
(BRANDÃO, 1986, p. 34).
Até aqui o autor nos apresenta um estudo que se pauta no en-
tendimento das transformações sócioeconômicas de Itapira e o
reconhecimento de que existe uma ampliação das formas de devo-
ção religiosa na cidade, junto com essas transformações.
O que chama a atenção neste autor é que, ao contrário de Ribeiro
de Oliveira e Camargo, ele propõe, como método para a apreensão de
94
seu objeto de análise, estudar as transformações religiosas no Brasil,
a partir do estudo de caso de um local específico, que o possibilita en-
tender essas transformações a partir da micro-estrutura social.
Para entender a forma em que esse campo religioso se organi-
za, Brandão dialoga com seus vários integrantes. Estes, nascidos
na própria cidade, (seguidores de um catolicismo tradicional ou
não), ou advindos de outras cidades, mas que passam a compor o
campo religioso da cidade. Nesse diálogo, Brandão identifica os
vários confrontos que se dão entre os personagens desse campo31.
31
Como exemplo desses confrontos, o autor descreve que, nessa região, durante muito tem-
po não se tinha a figura do padre como figura central na organização religiosa. Com sua che-
gada, estabelece-se um conflito entre ele e outros devotos que, são em sua maioria, devotos
especialistas. O autor destaca que Durante os anos da etapa da conquista, os atores das rela-
ções de conflito católico são quase só o padre versus os especialistas populares da periferia,
dos bairros e dos sítios (BRANDÃO, 1986, p. 98). Essa citação exemplifica os conflitos ocor-
ridos entre expressões oficiais e populares discutidas anteriormente. Outro conflito se dá en-
tre os "pastores de igreja e os presbíteros de seita". Essa tensão ocorre com a vinda de man-
datários (pastores) de outras regiões, que objetivavam as formas de produção dessas igrejas.
Isso faz com que as tradicionais (os protestantes históricos) tenham que se relacionar com
as produções populares do protestantismo.
95
hegemonia dentro do campo religioso. Mas, a partir do momen-
to em que esses novos atores são reconhecidos no e pelo próprio
campo, tendem a diminuir a busca por essa hegemonia. O espaço
já está garantido, resta agora a sua manutenção.
O problema é que, uma vez estabelecida essa acomodação, pode-
se ter novos cismas que acarretam em outras reorganizações do
próprio campo. Nessa perspectiva, as intenções que visam criar
novas denominações religiosas são muito variadas: interesses eco-
nômicos, religiosos, pessoais, etc. Essa leitura do campo religioso
e de suas formas de se produzir só é possível à medida que Bran-
dão dialoga com seus integrantes, buscando, a partir deles, apre-
ender o jogo de interesses envolvidos nessa produção.
Brandão preocupa-se com as pessoas que criam e recriam for-
mas interpretativas do cotidiano, que se desenvolve na tensão es-
tabelecida entre modificações históricas da base material e as con-
dições simbólicas e materiais.
O destaque é que tais produções, simbólicas e materiais, não se dão
apenas no catolicismo, mas também em outras religiões. Nesse contex-
to, o popular32 ocupa um espaço autônomo no que se refere à produ-
ção simbólica e material, ou seja, o campo religioso se organiza a par-
tir das formas em que seus vários personagens produzem suas ofertas.
Ao falar de personagens, passamos a considerar que os estudos
de Brandão deslocam a discussão para aqueles que produzem es-
sas formas religiosas diferenciadas, ou seja, por trás da discussão
que envolve a cultura popular, catolicismo popular ou religiosida-
de popular, existem pessoas que interpretam todas as transforma-
ções sociais ou religiosas, e, ao fazerem isso, produzem sentidos
que podem ou não ser coletivizados. São esses personagens que
Brandão chama para o diálogo, buscando apreender hermenêuti-
cas diferenciadas que se objetivam em práticas ou símbolos. Por-
32
Brandão (1986), após analisar o campo religioso, discute, na segunda parte de seu tex-
to, a religião popular, entendida a partir de suas práticas, como reconhecimento do pró-
prio campo, vocabulário utilizado para se reconhecerem e a conseqüente diminuição
da influência da erudição. Outra característica que define a religião popular refere-se aos
usos da fé, como o milagre. Este, como função organizadora da vida, é na maioria das
vezes narrado, como mitos e lendas. O autor destaca que em todos os setores populares
existe essa expressão, e quanto mais popular maior a realização de milagres. Os media-
dores são outros. As histórias e seus símbolos, vivos ou não, têm a função de mediar as
graças atendidas. Essas características fazem considerar a existência da autonomia do 'po-
pular' em recriar sua própria religião.
96
tanto, a discussão se desloca do popular enquanto categoria ana-
lítica, para aqueles que vivenciam e produzem essa categoria.
Existem personagens que se filiam a essas novas formas de produ-
ção simbólica que criam fronteiras mais frouxas entre seus componen-
tes, dado o grande número de ofertas do campo religioso. Isso garante
uma maior fluidez da fé33 , assim como dos objetivos que deseja alcan-
çar quando alguém se insere para fazer pedidos no campo religioso.
O campo é um espaço de trocas simbólicas em que se procura
o reconhecimento, não só por parte dos fiéis, mas também por
outras denominações religiosas do campo, ou seja, o campo reli-
gioso é um espaço de permanentes trocas de produções e usos sim-
bólicos e materiais, pelos personagens que dele fazem parte. Mes-
mo não tendo a aceitação das religiões de massa, essas formas di-
ferenciadas existem e coexistem. Isso nos sugere um movimento
histórico relacionado à cultura e ao indivíduo. Como se pode ob-
servar, em um primeiro momento, a discussão se pautava na ca-
pacidade de "grupos populares" produzirem a sua própria auto-
nomia. Mas o problema que se instalava era que a leitura dessa
produção sempre tomava como referência a dimensão institucio-
nal, o que levava à interpretação de uma reprodução e não de uma
produção da realidade. Mas, à medida que se passa a entender que
"nesta" reprodução há a "bricolagem" de elementos culturais ad-
vindos dos espaços desses "grupos populares", essa "reprodução"
se distancia do institucional e ganha autonomia.
As reflexões de Brandão fecham este texto onde, num primeiro
momento, vimos os estudos que apontam para o plano das religi-
ões de massa. Não que outras formas de expressão religiosa inexis-
tissem dentro das religiões de massa, mas a questão é que, tanto a
secularização, quanto o processo de industrialização e urbanização
davam, aparentemente, conta das necessidades produzidas no coti-
diano. O que sobrava ficava por conta das religiões de massa que
produziam e dominavam qualquer forma de expressão religiosa.
Nesse contexto, a produção simbólica de outras denominações re-
ligiosas, não consideradas de massa, era percebida, mas não reco-
33
Brandão (1986) descreve essa fluidez quando discute a apropriação de denominações pro-
testantes de simbolismos do catolicismo popular - a lógica é a de 'aproveitar' o que se tem
de bom. Como exemplo dessa fluidez, constatamos, em nossas pesquisas, sujeitos que se
dizem católicos, mas ao mesmo tempo praticam religiões afro-brasileiras, ou mesmo os
casos de católicos nas cidades pesquisadas que freqüentam igrejas evangélicas.
97
nhecida como autônoma e passível de análise. No segundo momen-
to, existe o reconhecimento dessas formas autônomas de produção
de bens religiosos dentro da própria Igreja, caso particular do ca-
tolicismo. Reconhecimento que faz perceber que a todo momento em
que há modificações institucionais, no sentido de adaptação às
transformações sociais, ou imposições de novos procedimentos re-
ligiosos (Concílios, por exemplo), há também formas diferenciadas
de expressão e, conseqüentemente, de produção das mesmas.
Em Brandão, as modificações do espaço religioso brasileiro
apontam para um processo de trocas simbólicas no plano da mi-
cro estrutura social. Esse foco passa a ser um indicativo de que
processos de achatamento desses modos de fazer religião, vistos
inicialmente neste texto, começam a se tornar mais explícitos. Nes-
te momento, por exemplo, a hegemonia das religiões de massa
pode ter sido superestimada.
No caso da hegemonia católica, isto se deu, primeiro, pela entra-
da no campo religioso de outras religiões de massa, segundo, pela
apropriação de símbolos religiosos pelos próprios católicos brasi-
leiros, que, historicamente, elaboram formas particulares de ser e de
participar do espaço religioso. Nesse contexto, há a transformação
das religiões, uma transformação do próprio campo religioso.
Esses processos de produção coletiva da religiosidade popular
sempre existiram ou, pelo menos, estavam implícitos nos autores, em
maior ou menor escala. A questão é que, no processo de construção
sócio-histórica, essas composições do campo religioso foram ganhan-
do forma, a ponto de, aparentemente, se tornarem autônomas. Fala-
mos aqui de adquirirem autonomia dentro do campo religioso. Nes-
se sentido, o catolicismo oficial passa a ter que negociar o seu espaço
no campo religioso, tanto externa quanto internamente.
Em Brandão e Ribeiro de Oliveira, há o reconhecimento de um
campo religioso que se organiza a partir de trocas simbólicas en-
tre os seus integrantes. Nesse sentido, esses autores ficam aproxi-
mados sob a perspectiva da valorização da categoria popular, en-
quanto possuidora de características próprias.
Mas uma diferença deve ser realçada, é o fato de que, em Bran-
dão, o foco de análise se desloca para as relações entre as produ-
ções populares, não só as católicas, produzidas no campo religio-
so. Ou seja, após o reconhecimento de características que se cons-
tituem a partir da relação com práticas religiosas semelhantes -
98
considerando aqui as categorizações apresentadas por Ribeiro de
Oliveira -, há agora um conjunto de características que passam a
se construir em um campo mais amplo de trocas simbólicas com
outras denominações religiosas.
Como destacamos anteriormente, as análises de Brandão estão em
um plano micro social de produções simbólicas. A questão passa a ser
a de reconhecer quando estas relações de trocas e possíveis conflitos
simbólicos, expressos na produção de sentidos no campo religioso,
acontecem na macro estrutura social. Isso nos leva a considerar uma
análise de como esse processo se apresenta na contemporaneidade.
Em Sanchis (1994) há alguns indicativos. O autor apresenta uma
análise do repto pentecostal à cultura católica-brasileira. A discus-
são desse desafio centra-se na problematização de uma cultura re-
ligiosa brasileira fundamentada no catolicismo. O discurso de um
Brasil estritamente católico passa a ser colocado em questão com
o avanço do pentecostalismo, fazendo com que as contradições do
próprio catolicismo passem a ser apresentadas como uma das
possibilidades desse crescimento.
Devemos ressaltar que não podemos levar essa discussão ao ex-
tremo, pois isso reduziria analiticamente o fenômeno. Mas, ao mes-
mo tempo, há que se considerar que essa tensão religiosa na macro
estrutura social se deu, e se dá, por um conjunto de tensões histori-
camente produzidas. E hoje adquirem mais espaço à medida que o
capital religioso - simbólico e material - não está mais centralizado
em apenas uma instituição, mas nesse campo religioso, no qual exis-
te uma distribuição do capital, que vai desde o devoto que monta a
sua Igreja na sala de sua casa, até àqueles que adquirem cinemas em
espaços centrais das grandes cidades.
Essa questão remete à discussão apresentada por Brandão so-
bre as formas de produção simbólicas e materiais da cultura po-
pular. Produções que, agora, se refletem em uma estrutura maior,
levando a formas diferenciadas de produção de características que
podem ser consideradas:
99
Tal destaque faz reafirmar que, ao mesmo tempo em que exis-
tem transformações na macro estrutura social, em determinados
tempos e espaços da história, existe também transformações na
micro estrutura social.
Portanto, há transformações que não acontecem na mesma in-
tensidade, mas no processo histórico podem se refletir na estrutura
social, o que impede de pensar em um determinismo analítico, vis-
to que, aqueles que pensavam que os processos de urbanização e
industrialização - com a conseqüente secularização - acabariam
com as religiões, na perspectiva da produção de sentido, hoje vêem
o ressurgimento de formas diferenciadas de religiosidade. Com
isso, "podemos afirmar que, mais do que falar em decadência, ter-
se-ia que redefinir o processo de secularização como um proces-
so de transformação da consciência e do sentido religioso, trans-
formação que se dá em vários níveis e em diversos planos do có-
digo simbólico" (PARKER, 1995, p.103).
100
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101
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132, 1986/4.
102
Imagens e figurações religiosas no catolicismo
popular: perspectivas de investigaçãode
imagética devocional
103
A afirmação de Aumont, quando aceita, implica em reconhecer
um importante aspecto metodológico nas investigações da relação
entre imagens e devoções religiosas. Poderia formular esse aspec-
to na forma da seguinte hipótese: as imagens religiosas, quando
inseridas em uma relação devocional, não somente representam
uma ausência que se reconhece através dela (o que ela evoca), mas
simbolizam uma forma que se explicita pela sua própria presen-
ça. Ou seja, toda imagem religiosa tem um registro para si e em si.
Entretanto, antes de aprofundar essa relação é importante rea-
lizar o reconhecimento do escopo significativo do termo imagem.
A palavra imagem comporta diversos significados, conforme se
passe do tradicional dicionário a suas expressões mais especifica-
mente apropriadas - considerando a ambigüidade do termo apro-
priação: verbal (apropriar: tomar como propriedade) ou substan-
tiva (apropriado: adequado ou próprio).
O dicionário a apresenta:
105
Assim, a duplicidade característica da imagem circunscreve uma
dada formação sensível do pensamento, uma capacidade de ima-
ginar coisas distintas dos objetos existentes, como também uma
necessidade de visualização, determinada pela presença de objetos,
pela apreensão de suas propriedades ou pela ausência de sua ma-
nifestação. Essa formação sensível do pensamento Francastel
(1993) denominou pensamento plástico, em contraposição ao
pensamento verbal.
O histórico dessa discussão é longo e remete a uma tradição que
se inicia na antigüidade Clássica. "Imagem (gr. (...), lat. Imago; in .
Image; fr. Image; al. Einbildung; it. Immagine) Semelhança ou sinal
das coisas, que pode conservar-se independentemente das coisas.
Aristóteles dizia que as I. são como as coisas sensíveis, só que não
têm matéria (De na. III, 8, 432 a 9). Neste sentido a I. é: 1º. produ-
to da imaginação; 2º. sensação ou percepção, vista por quem a per-
cebe. Neste segundo significado, esse termo é usado constantemen-
te tanto pelos antigos quanto pelos modernos. Os estóicos distin-
guiam os dois significados empregando duas palavras diferentes:
denominam imaginação (...) a I. que o pensamento forma por sua
conta, como acontece nos sonhos, e I. (...) a marca que a coisa dei-
xa na alma, marca que é uma mudança da própria alma. A I. pro-
priamente dita é "aquilo que é impresso, formado e distinto do
objeto existente, que se conforma à sua existência e por isso é o que
não seria se o objeto não existisse" (DIÓG. L., VII, 50). Desse pon-
to de vista, as I. podem ser sensíveis e não sensíveis (como as das
coisas incorpóreas); racionais ou irracionais (como as dos ani-
mais) e artificiais ou não artificiais (DIÓG. L., VII, 51). Conceito
igualmente geral da I. era o dos epicuristas, que admitiam a ver-
dade de todas as I. porquanto produzidas pelas coisas: pois o que
não existe não pode produzir nada (DIÓG. L., X, 32).
Esses conceitos passaram para a Idade Média e foram utilizados
com fins teológicos, para esclarecer a relação entre a natureza di-
vina e a natureza humana (cf. p. ex., S. Tomás, S. Th., I, q. 95). Na
filosofia moderna, foram retomados por Bacon (De augm. Scient.,
II, 1, § 5) e Hobbes; para este, a I. "é ato de sentir e só difere da sen-
sação assim como o fazer difere do fato"(De corp., 25, § 3). Mas, em
filosofia, o termo I., em seu significado geral, começou a perder ter-
reno para idéia, em Descartes, e representação em Wolff. A prefe-
106
rência por esses dois termos persiste na filosofia contemporânea,
que só lança mão do termo I., em seu 2º significado, quando quer
acentuar o caráter ou a origem sensível das idéias ou representa-
ções de que o homem dispõe. É o que faz, p. ex., Bergson: "Vamos
fazer de conta, por um instante, que nada sabemos das teorias so-
bre a matéria e sobre o espírito, que nada sabemos sobre as dis-
cussões acerca da realidade ou da idealidade do mundo externo.
Estaremos então em presença da I. no sentido mais vago em que
se possa tomar essa palavra, I. percebidas quando abro meus sen-
tidos, não percebidas quando fecho (Matière et mémoire, cap.
1)"(ABBAGNANO, 1998, p. 537).
Vê-se, na análise do filósofo, que o termo imagem perde signi-
ficação em decorrência dos debates acerca de sua ambigüidade
conceitual. Porém, como sugere Manuela Saraiva, a essência de tal
debate está estruturada mais em sua aplicação no que em sua se-
mântica. "O termo aplica-se a duas realidades diferentes: a) produ-
to ou resultado de um fenómeno psíquico que consiste na repre-
sentação das coisas sensíveis, na ausência destas; b) classe de ob-
jectos, geralmente de natureza artística, que funcionam como subs-
tituto, reprodução, evocação ou recriação de coisas reais ou de re-
alidades espirituais. No sentido de a) uma longa tradição criou a
expressão de 'imagem mental'; no sentido de b) a corrente fenome-
nológica fala de objecto-imagem (Bildobjekt)" (SARAIVA, 1990, p.
1328-29).
Aqui, o duplo registro da ausência e da presença se manifesta
mais claramente, tratando-se de definir o estatuto de realidades di-
ferentemente representadas pela imagem. Mais ainda, trata-se de
definir o lugar de produção ou conservação da imagem, como
dado concreto ou abstrato.
Neste sentido é que o debate se acirra, sobretudo com a crítica de
Husserl e Sartre1 à noção de "imagem mental" que, segundo eles,
implicaria que a imagem existiria no interior da consciência como
um quadro numa sala. Visando superar alguns pressupostos pre-
sentes neste debate, uma perspectiva atualizada da concepção de
"imagens mentais" é fornecida por Aumont: "A discussão sobre as
imagens mentais pode ser assim resumida: uma vez que numerosas
1
Veja-se sobretudo, de Sartre, "La imagination" (1936) e "L'imaginaire. Psychologie phé-
nomenologique de l'imagination" (1940).
107
experiências e a introspecção usual evidenciam a existência de ima-
gens 'internas' em nosso pensamento, como conceber essas imagens?
São elas (posição picturalista) verdadeiras imagens no sentido de
que, ao menos parcialmente e para algumas delas, representam a re-
alidade no modo icônico? Ou são elas (posição descricionalista) re-
presentações mediatas que se assemelham às representações ver-
bais? A querela é mais sutil do que as palavras 'imagem' e 'lingua-
gem' parecem supor, pois todo mundo concorda que não se trata de
imagens no sentido cotidiano, de fenômeno, da palavra. Talvez uma
das maneiras mais esclarecedoras de expô-la seja esta: é 'imagem
mental' aquilo que, em nossos processos mentais, não pode ser imi-
tado por um computador que utiliza informação binária. A imagem
mental não é portanto uma espécie de 'fotografia' interior da reali-
dade, mas uma representação 'codificada' da realidade (mesmo que
esse códigos não sejam os do verbal)" (AUMONT, 1995, p. 117-18).
Nem representações icônicas, nem representações verbais, mas
representações codificadas. O que significa tal afirmação? Em prin-
cípio, que desconhecemos o processo mental de produção dessas
imagens 'internas' 2 . O apelo à idéia de "representação codificada"
implica que o pensamento possui uma capacidade de imaginar (e
codificar as imagens) em uma escala intersticiária entre os códigos
socialmente arbitrados e cotidianamente intercambiados. Todavia,
sentimos regularmente o peso da cultura, que condiciona nossa vi-
são de mundo, nos impelindo a "traduzir" estas representações co-
dificadas em códigos inteligíveis e partilháveis socialmente.
Quando os estudiosos de fenômenos que se produzem a partir
da imagem, ou que produzem imagens, discutem seus fundamen-
tos, esse condicionamento se explicita pelas associações que po-
dem ser elaboradas entre planos abstratos e concretos de relações
ou de identificações com as imagens. Vejamos um exemplo.
Debray (1986), ao buscar a etimologia da palavra, escava os níveis
profundos de seu significado. Assim como Mora (1986), que associa
a etimologia de imagem com os vocábulos gregos traduzidos como
ídolo e ídolos, aquele autor escreve: "Ídolo vem de eídolon que signi-
fica fantasmas dos mortos, espectro e, somente em seguida, imagem,
retrato. O eídolon arcaico designa a alma do morto que sai do cadá-
2
Cabe esclarecer que a noção de "imagens mentais", como o próprio Aumont afirma, não
equivale ao conceito de imagens inconscientes, elaborado na teoria psicanalítica, sobre-
tudo em Freud e Lacan.
108
ver sob a forma de uma sombra imperceptível, seu duplo, cuja natu-
reza tênue, mas ainda corporal, facilita a figuração plástica. A imagem
é a sombra; ora, a sombra é o nome comum do duplo. Assim, como
nota Jean-Pierre Vernant, o vocábulo tem três acepções concomitan-
tes: 'imagem do sonho'(onar), aparição suscitada por um deus (phas-
ma), fantasma de um defunto (psyché)" (DEBRAY, 1994, p. 23).
Para além das acepções que se fundem no termo, Debray afirma
o desenvolvimento geral de sua aplicação: inicialmente, significa "fan-
tasmas dos mortos, espectro e, somente em seguida, imagem, retra-
to". Significados que se manterão próximos, contudo, pela sua asso-
ciação original: "a imagem nasce com a morte" (Idem., p. 22) e tor-
na-se o "lugar" onde se guarda a lembrança daquele que morreu, de
"onde" se evoca o que se foi, o que não está mais visível.
No desenvolvimento geral da aplicação do termo imagem, o au-
tor aponta para sua finalidade: tornar-se visível e, nesse proces-
so, representar algo 3 .
Ora, estamos aqui diante da associação original entre imagem e
representação, como o mesmo Debray sugere: "Em língua litúrgica,
'representação' designa 'um caixão vazio sobre o qual se estende
uma mortalha para uma cerimônia fúnebre'. E Littré acrescenta: 'Na
Idade Média, figura moldada e pintada que, nas obséquias, represen-
tava o defunto'. Trata-se aí de uma das primeiríssimas acepções do
termo" (Idem., p. 24).
Vê-se, aqui, o mesmo desenvolvimento geral de aplicação do
termo imagem: inicialmente, designa um "lugar"; posteriormente,
uma representação figurada que substitui o lugar, ou se associa
com ele. A representação não seria, assim, mais restrita que a ima-
gem em seu significado - talvez, em sua aplicação.
Em suas acepções iniciais, os termos imagem e representação já
estão muito próximos. Desta perspectiva, seria errôneo afirmar
que o termo imagem "perde terreno (...) para representação", como
o fez Abbagnano. Mais correto seria afirmar que o termo repre-
sentação, durante muito tempo secundarizado pela filosofia e pela
ciência, passa por uma ressemantização na modernidade, devido
ao renascimento da discussão sobre o imaginário, no século XX.
3
Das acepções que apreende de Vernant, porém, é sugestiva a indicação que o significa-
do profundo de imagem equivale ao de psyché.
109
Seguindo a lógica externalista do pensamento científico, o termo
modifica-se por pressão das reflexões sobre a alteridade, mas também
porque a necessidade que move a racionalidade ocidental, de incluir
a diferença num processo de homogeneização generalizante de seus
pressupostos convencionados como lógicos, primeiro através da co-
lonização - que incluía a expropriação do outro e a sua conversão ao
cristianismo - depois, pela imposição da lógica do mercado e, final-
mente, pela lógica da ciência. Frente à descoberta de modos alterna-
tivos de simbolizar fenômenos diversos em culturas diferentes da so-
ciedade ocidental e à penalização das que reagiam contra a ocidenta-
lização (LÉVI-STRAUSS, 1985) - durante muito tempo desenrola-se
uma verdadeira "guerra das imagens" (GRUZINSKI, 1995) - tornou-
se necessário elaborar significados abrangentes para o imaginário,
capazes de absorver o potencial simbólico dessas culturas.
Com as reflexões mais seriamente desenvolvidas nesse proces-
so, chega-se a importantes contribuições epistemológicas sobre a
questão. Sem tirar o mérito de vários pensadores, citarei duas con-
tribuições importantes para esta análise: primeiramente, o adjeti-
vo imaginário torna-se substantivo, pelo pensamento de Bache-
lard: "O vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não
é imagem, é imaginário. O valor de uma imagem se mede pela ex-
tensão da sua auréola imaginária" (BACHELARD, 1992, p. 7)4 .
Essa reflexão, no conjunto da obra, implica uma revalorização
da imagem em geral, associada com o símbolo, e ganha consistên-
cia com as contribuições da Antropologia, como descreve Saraiva.
"O problema da imaginação conhece brilhante renascimento no
início do século XX (...) do desenvolvimento das ciências humanas,
nomeadamente da psicologia patológica e da etnologia (estudo dos
ritos, simbolismo religioso, mitologia, iconografia). G. Durand
inspira-se em Cassirer, Freud, Jung, Adler, M. Eliade, Lévi-Strauss,
Bachelard, R. Bastide, Ricoeur e muitos outros investigadores, mas
sobretudo em Bétcherev e Dumézil e Piganiol. Graças ao método
complexo do 'trajecto antropológico 5 , estuda o patrimônio ima-
4
Veja-se também a importância atribuída a esse epistemólogo, no trato da questão, por
M. Eliade (1996)
5
Segundo Durand, o que "caracteriza o 'trajeto antropológico' é esse paradoxo dinâmico que
faz com que haja 'uma natureza humana' decerto, mas potencial, existindo somente no vá-
cuo e passando ao ato pela atualização singular de uma cultura"(DURAND, 1977: 25-26).
110
ginário da humanidade em que imagens e símbolos são conside-
rados conjuntamente. O seu método supõe a incessante interacção
que existe ao nível do imaginário, entre as pulsões subjectivas e
assimiladoras e as intimações objectivas que emanam do meio
cósmico e social" (SARAIVA, 1990, p. 1340).
Ora, a contribuição da Antropologia, por mais que explicitada
aqui por uma filósofa, não pode ser afirmada senão no processo
histórico que a enriquece de intercâmbios com outros campos ci-
entíficos. Neste processo, os estudos sobre a imagem adquiriram
seus contornos mais propriamente figurativos, mesmo quando as
interlocuções valeram-se de referências acerca do imaginário. Por
outro lado, essa elaboração constitutiva do escopo significativo do
termo imagem permite avançar para um movimento mais sofisti-
cado das e nas relações entre imagens religiosas e devoções: a de
que elas se movem em um campo de trocas de sentido entre os su-
jeitos devotos e o campo imagético devocional.
6
Veja-se, na p. 136, à nota 3 (DELEUZE, 1988), as três categorias fundamentais que regem todos
os fenômenos, segundo Gabriel Tarde (repetição, oposição e adaptação); segundo esse autor, as
repetições ocorrem de uma geração para outra, na ordem de oposição de pares binários.
7
Ver a discussão que Deleuze (1988) elabora sobre a idéia de "signo de um presente", do es-
toicismo, e a distinção entre signo natural, que remete ao presente no que ele significa, e sig-
nos artificiais, que remetem ao passado ou ao futuro como dimensões distintas do presente.
113
as que aqui me importam. Segundo o autor, se o presente traz em si
o paradoxo de constituir o tempo, mas passar neste tempo constitu-
ído, é mais porque ele se funda no hábito, que é a fundação do tem-
po, mas não seu fundamento. "O fundamento do tempo é a Memó-
ria [...] a memória é a síntese fundamental do tempo que constitui o
ser do passado (o que faz passar o presente)" (Idem, p. 142).
A memória inverte a relação entre geral e particular dada na pri-
meira síntese: com relação ao presente, em geral. "Do ponto de vis-
ta da reprodução da memória, é o passado (...) que se tornou ge-
ral, e o presente (...) que se tornou particular" (Idem, p. 142). Ora,
essas idéias remetem a uma discussão bem atual sobre as relações
entre a imagens e as devoções religiosas, mas também a uma revi-
são da história dessas relações. Trata-se da formação de um fun-
do cristão presente na imagética religiosa (sobretudo nas imagens
figuradas) e suas transfigurações contemporâneas.
As pesquisas que realizei, ou coordenei, nesse campo de investiga-
ções, permitem afirmar que, no domínio devocional popular (também
denominado "culto aos santos"), enforma-se um campo de exterioriza-
ção das imagens religiosas que se tensiona entre sua produção plásti-
ca, institucionalizada, e uma "produção do consumo" (CERTEAU,
1994) devocional, popular8. E é aqui que a análise de Deleuze nos per-
mite colocar as imagens no centro da discussão sobre a repetição e a
diferença. Isso porque as imagens religiosas são ativas, depositárias de
sacralidade e, por isso, mediadoras com as esferas do sagrado. Mas a
Igreja atualmente não utiliza ou reforça isso. O motivo para a desvalo-
rização do "culto aos santos", de per si, está no fato de que os segmen-
tos populares de devotos, em todas as épocas, nunca aceitaram passi-
vamente a definição clerical de santidade e a institucionalização das de-
voções. Muitos dos santos canonizados pela Igreja e figurados na ima-
8
Para o entendimento do campo devocional popular, ou das religiões populares, remeto o
leitor às dissertações de mestrado de Régis de Toledo Souza, Identidade e devotos católicos:
iconografia e instituição religiosa como elementos mediadores (Psicologia Social, PUC-SP,
2001) e de André Luiz da Silva, Faces de Maria: catolicismo, conflito simbólico e identidade
(Ciências da Religião, PUC-SP, 2003). Veja-se também o artigo de Higuet, onde o autor defi-
ne o campo devocional como uma constelação que se "compõe da totalidade das práticas
pelas quais o homem toma contato diretamente com um ser santo e pessoal. São todos os
atos de piedade pelos quais pode ser estabelecida uma relação íntima para um ser santo, de
modo semelhante como se dá entre duas pessoas. As práticas que dão acesso a esta relação
direta e pessoal podem ter caráter individual como oração, novenas, práticas de piedade di-
ante de imagens de santos, ou coletivo (como festa, procissão)" (HIGUET, 1984, p. 27).
114
gética religiosa nem chegaram a ser cultuados ou difundidos ampla-
mente, enquanto outros se tornaram cultuados e aceitos institucional-
mente a partir de um movimento iniciado desde a experiência popular.
Após o Concílio de Trento, inclusive, pode-se perceber uma dis-
tinção clara entre os santos venerados eclesiasticamente e aqueles
venerados nos segmentos populares. Nos claustros dos mosteiros
e conventos, tanto na Europa como no Novo Mundo, são figura-
dos santos que exemplificam a disciplina e o rigor da vida monás-
tica, dos carismas das ordens religiosas, dos ideais de fé, castida-
de e desprendimento do trabalho missionário, assim como símbo-
los teológicos tradicionais, cenas bíblicas e figurações dos douto-
res da igreja, entre outros. Nas paredes, naves, absides, frontispí-
cios, capelas abertas e outros espaços públicos ou de visitação dos
mesmos mosteiros, conventos ou igrejas, além das capelas que se
disseminam pelas cidades, figuram-se os santos patronos e outros
santos que exemplificam a caridade, a piedade, o sacrifício, a fé ina-
balável, a missão evangelizadora, além de símbolos religiosos mais
populares - como os da paixão de Cristo - cenas históricas ou de
tradições religiosas associadas aos santos 9 .
Esta distinção entre as imagens figuradas para uns e outros su-
gere que o clero tinha seu gosto e sua concepção da imagética reli-
giosa, como também indica que o processo de evangelização dos
segmentos populares estava assentado num projeto figurativo con-
siderado apropriado à leitura de mundo dos mesmos. Por outro
lado, sugere também que a materialização das concepções sagradas
difundidas nas imagens religiosas figuradas ocorre a posteriori, ou
seja, mesmo que as imagens sejam esboçadas a partir de referênci-
as populares, sua elaboração, propriamente dita, é realizada no topo
da hierarquia religiosa e oferecida aos devotos. A incorporação da
imagem pode levar anos, ou não acontecer, dependendo da proposta
e da associação possível entre o processo de criação plástica e o de
9
Um grande exemplo desta separação está na Igreja da Assunção de Maria, Catedral de Cuer-
navaca, México, fundada por franciscanos (1529-1552). Enquanto o claustro e outros aposen-
tos reservados aos padres foram pintados com poucas e rígidas imagens de santos, além de al-
guns elementos decorativos em frisos ou nos tetos dos corredores, as paredes laterais da nave
da igreja foram pintadas com imensos painéis que retratam a história do martírio do santo me-
xicano San Felipe de Jesús, ordenado pelo Imperador Taycosama. Este projeto figurativo pode
ser constatado também nos demais conventos e mosteiros do estado de Morelos, e era uma ca-
racterística da presença dos franciscanos, tanto quanto da dos dominicanos, no processo de
evangelização, durante o período colonial.
115
recriação mítica. "As imagens são produtos de certas concepções
sagradas e catalisadoras de outras"10 .
São Bartolomeu, São Jorge, São Roque e São Lázaro são exem-
plos de imagens que, em suas figurações, são associadas a demô-
nios e a cachorros, respectivamente, gerando uma dupla devoção
- em uma dialética entre negação-afirmação, ou em uma dupla afir-
mação. Se essa dupla devoção não foi aceita pela estrutura eclesi-
ástica do catolicismo, por outro lado, essa mesma duplicidade foi
incorporada posteriormente pelos cultos sincréticos de origem
afro, como na umbanda brasileira. Ocorre que, nessa incorpora-
ção, a diversidade das figurações religiosas católicas se reduz a al-
gumas linhas estruturadas do campo da imagética das religiões
afro - que nem sempre exigem ou permitem representações figura-
das das suas entidades - onde as imagens se imbricam entre si se-
gundo qualidades e características atribuídas ou reconhecidas às
mesmas, produzindo assim um outro sentido e uma outra carga
de poderes, classificados rigidamente.
Como a aceitação da criação plástica das figurações religiosas
pelos segmentos populares não é passiva, opera-se nessa dinâmi-
ca uma combinação dos elementos presentes nas figurações, que
são produzidos novamente para atender necessidades ou ajustar-
se às referências próprias da visão de mundo dos segmentos po-
pulares. É aqui que a idéia deleuziana alcança sua expressão mais
forte: no domínio do hábito ocorre o entrelaçamento dos signos
naturais e dos signos artificiais. Como "as questões da contempla-
ção se desenvolvem em campos problemáticos ativos" (DELEUZE,
1988, p. 140), que marcam o presente, a memória, que é o funda-
mento do tempo, inverte a relação entre geral e particular dada na
primeira síntese, com relação ao presente. O mesmo ocorre com as
imagens devocionais, como afirma Londoño: "Na imaginária da
devoção, a figura, os motivos e os temas aos que está associada,
estão sujeitos a variações, adequações e modas, tributárias da es-
tética determinada pelo projeto de comunicação que conduz a de-
voção. O que é admitido sem muita dificuldade pelos devotos. O
que recentemente foi mostrado por estudo realizado sobre os san-
tinhos de Nossa Senhora Aparecida [...]. A devoção vai, pois, com-
10
Aqui, agradeço à sugestão enunciada por Oscar Calavia Sàez, que possibilitou superar
alguns entraves surgidos durante a pesquisa com os sujeitos e suas imagens.
116
pondo a representação, alterando a imagem, aproximando-a do
presente e do que faz sentido, carregando-a de símbolos fáceis de
reconhecer" (LONDOÑO, 2000, p. 257-258).
Na medida em que as imagens religiosas são figuradas de for-
ma diversificada, seja pela dinâmica histórica das transformações
técnicas de sua produção ou de estilos artísticos, seja pela dinâmica
de produção do consumo entre os segmentos populares, o senti-
do que carregam passa por metamorfoses mais ou menos profun-
das. Daí, a Igreja ter se preocupado em vários períodos com o con-
trole dessa produção, tanto quanto com a difusão do imaginário
que se desdobra aquém e além dos usos das imagens. Nesse senti-
do, explicita-se historicamente uma oposição estrutural sobre o
valor das imagens e o controle exercido sobre sua produção x sua
utilização mais ou menos autônoma (LOPES, 2000; LOPES e SOU-
ZA, 2001), que pode possibilitar o seguinte esquema:
117
mesmo tempo, esse processo sugere que as figurações religiosas evolu-
em seguindo um procedimento mimético, ou seja, ela opera difusões por
representações miméticas12 . Essa idéia, inclusive, permite pensar um
modelo de explicação sobre a reprodução, em locais diferentes, de ima-
gens diferentes de Maria, por exemplo (PELIKAN, 2000).
12
E é preciso reforçar aqui o papel da memória em cada um desses campos religiosos, para
compreender que a fluidez ou a rigidez dessas classificações das imagens tem uma dimen-
são temporal distinta. A operação mimética dessa difusão, e suas distintas classificações no
catolicismo e nas religiões afro, reforça a idéia deleuziana de que o alcance das contrações é
que define a duração do tempo. No caso aqui discutido, busco justamente uma aproxima-
ção entre essa idéia e a permanência das imagens, no campo devocional. Suponho que esta
duração depende das condições em que as necessidades dos sujeitos interferem na sua per-
cepção dos instantes que marcam seu presente, do número de sínteses que é capaz de ope-
rar: "não se pode ir mais depressa que seu próprio presente, ou antes, que seus presentes".
Na medida em que a memória é o fundamento do tempo, as imagens permanecem quando
estão profundamente relacionadas com uma memória devocional, ou religiosa. Daí se ex-
plica o caráter rígido de classificação da imagética nas religiões afro.
13
"Tefilin (hebraico, significa 'objetos de oração', ou aramaico, significa 'ornamentos') Duas
caixinhas de couro preto que contêm quatro passagens bíblicas (Êx. 13:1-10, 11-16; Deut
6:4-9, 11: 13-21) escritas por um escriba e que são presas com correias de couro ao braço
esquerdo e à testa. (...) Acredita-se que os tefilin inculcam humildade, e a recompensa por
usá-los é uma vida longa. Em português são chamados 'filactérios', significando 'amule-
tos', mas embora haja na literatura judaica histórias sobre os poderes de proteção dos te-
filin, eles não são considerados primordialmente talismãs mágicos. Na meditação que pre-
cede o ato de pô-los, os tefilin do braço são vistos como uma lembrança do braço esten-
dido de Deus quando tirou os israelitas do Egito (...) e são colocados junto ao coração para
sujeitar os anseios do coração de Deus." (UNTERMAN, 1992, p. 260-61).
118
manência de elementos semíticos na imagética religiosa que com-
põe o catolicismo popular.
Idéia semelhante orienta Ginzburg, em seu mais recente livro,
onde sugere que a imagem de culto cristã tem suas premissas em
uma característica recorrente nos textos proféticos judaicos (o
uso de frases nominais), com ênfase nas profecias de Isaías apro-
priadas pelos evangelistas (GINZBURG, 2001, p. 117; 121). Segun-
do o autor, essa característica teria levado à produção de uma sé-
rie de imagens de culto que enfatizavam os milagres, no século
IV, reforçando uma dimensão narrativa associada à imagética
(aliás, dimensão que persiste em várias figurações devocionais
até hoje produzidas, como nos santinhos populares).
Contudo, nos séculos seguintes, essa dimensão foi substitu-
ída por outra, ostensiva: "nos séculos V e VI, essa tradição foi
suplantada por algo completamente diferente: o surgimento de
imagens cultuais com conteúdo narrativo escasso ou inexis-
tente. Podemos falar então do 'retorno' da 'tradição greco-ro-
mana da imagem cultual', como sugeriu Kurt Weitzmann ao
introduzir um simpósio ligado à célebre exposição The age of
spirituality [...].
No mesmo simpósio, Ernst Kitzinger propôs outra expli-
cação. O aparecimento, ou reaparecimento, da imagem cul-
tual poderia ter sido uma resposta 'à necessidade de uma co-
municação mais direta e mais íntima com o mundo celeste.
Para o espectador, perceber a imagem como um documento
fatual ou histórico, ou então como parte de um sistema
auto-suficiente, não bastava mais. A imagem devia servir
aqui e agora'. Esse e outros elementos certamente podem ter
contribuído para a popularidade das imagens de culto"
(Idem, p. 118).
Embora Ginzburg discorde da proposição de Kitzinger, em
proveito de sua idéia - de que a experiência das imagens guar-
da relação com as experiências místicas, ou proféticas - a re-
ferência a essa passagem entre as dimensões narrativa e osten-
siva das imagens de culto permite articular outra transição
histórica. A própria constituição do campo devocional cató-
lico e popular passaria por uma síntese imagética dessas di-
mensões a partir da difusão dos exemplos cristãos.
119
Essa outra face, analisada por Franco Jr., é a da difusão dos
exempla 14 pela Legenda Aurea15 , escrita no século XIII, inau-
gurando uma longa tradição no catolicismo, que seria uma
referência ambígua, mas constituinte dos modelos de devo-
ção popular. Escrita no período do "Renascimento urbano",
em que a concepção de espiritualidade caracterizava-se por
três elementos articulados - "a pobreza evangélica, a prega-
ção apostólica e as especulações escatológicas" (FRANCO
JR., 1996, p. 222) - que se reproduziam num campo de men-
talidades marcado pelos traços do belicismo e do contratu-
alismo, próprios da Idade Média, a Legenda Aurea apresen-
ta o santos como serviçais de Deus 16 . "Expressando de for-
ma mais completa o belicismo e o contratualismo, os santos
eram vistos na Legenda Aurea como 'escravos de Deus' que
preparavam a humanidade para o juízo final. [...] O signifi-
cado escatológico, essencial nos exempla, tão importantes na
Legenda Aurea , transparecia, dentre out ras formas, at ravés
do papel de punidores desempenhado pelos santos. Da mes-
ma maneira que, pela visão totalizadora que se tinha da Di-
14
"Exemplum, isto é, 'uma narrativa breve, dada como verídica e destinada a ser inserida
num discurso (geralmente um sermão) para convencer um auditório por uma lição sa-
lutar'. Narrativa de inegável fundo mítico, o que garantia a receptividade almejada"
(FRANCO JR., 1996, p. 221). Sàez (1996) também refere-se ao termo, afirmando que "é
um termo de longa e reveladora tradição. Os exemplos, na literatura eclesiástica medie-
val, eram peças narrativas destinadas à pregação. Não palavra sagrada, como os evan-
gelhos, senão narrações profanas construídas em volta de um núcleo de significado re-
ligioso ou moral. Epifenômenos de um discurso escrito alhures. Interessa ressaltar que
tais exemplos exerceram grande papel na formação do cristianismo popular; à sua du-
plicidade de forma e conteúdo devemos em boa parte nossa procura de tal núcleo nas
mitologias alheias" (SÀEZ, 1996, p. 74 - nota 12).
15
Trata-se de uma famosa coletânea hagiográfica "elaborada pelo dominicano e futuro
bispo de Gênova, Jacopo de Varazze, por volta de 1620" (FRANCO JR., 1996, p. 221).
Deve-se destacar que o autor da obra era um pregador mendicante, que tinha por tarefa
e preocupação centrais enfatizar o papel dos santos como evangelizadores e atualizar
os fatos históricos das práticas pagãs ou perseguições ao cristianismo castigados pelos
santos, através da conversão dos hereges da sua época. Aproveito a atualidade dessa
obra, recentemente traduzida ao português e publicada no Brasil, para tecer alguns co-
mentários importantes.
16
Em seu estudo, Ginzburg também se refere à imagem de Jesus, no Deutero-Isaías,
como sendo grafada originalmente na forma "Servo de Deus", substituída por "Filho de
Deus" na tradução do hebraico para o grego. Seguindo essa pista, pode-se supor que a
imagem dos santos, na Legenda Aurea, buscava resgatar um sentido místico que permi-
tiu uma maior difusão dos exempla, como também sua associação com uma produção
figurativa, em torno dos santos, que foi se diversificando progressivamente.
120
vindade, os demônios eram 'feitores de Deus', os santos tam-
b ém O ser viam castigando pecadores. Ou melh or, assim
como os milagres benéficos tinham Deus como autor exclu-
sivo, sendo os santos apenas seus instrumentos, o mesmo
ocorria nos milagres punitivos" (Idem, p. 222-23).
A caracterização ambígua do papel dos santos, porém, ocorre em
um período de transformação das sensibilidades, que a Igreja pro-
curava conhecer e controlar. "O processo de cristianização de festas
e divindades pagãs que ocorria desde a Alta Idade Média não era
apenas uma estratégia de conversão, mas também expressão da per-
manência da sensibilidade antiga, que via o divino habitando a na-
tureza. Ao insistir repetidamente naquele processo, a Legenda Au-
rea reforçava a visão belicista e contratualista do mundo e sobretu-
do manifestava sua vinculação a uma espiritualidade que ia sendo
ultrapassada. Os milagres punitivos na Legenda Aurea, apesar de
dirigidos à população urbana, mais afeita àquela transformação,
correspondiam a uma espiritualidade mais pública que privada,
portanto arcaica" (Ibid., p. 224). Trata-se de uma estratégia de "cu-
rar os contrários com seus contrários", de combater as heresias e as
perspectivas populares e de usá-las como instrumento ideológico.
A Legenda Aurea apresenta, assim, uma síntese das transforma-
ções da época, possibilitando reconhecer a tensão existente nas re-
lações entre a diversidade das experiências religiosas populares e o
projeto de unidade da Igreja - assentado nas características de um
projeto programático da religião (SANCHIS, 1994) - através da uni-
formização daquelas. Nessa tensão, os milagres punitivos atribuí-
dos aos santos produzem três conseqüências que seriam caracterís-
ticas do desenvolvimento posterior das mesmas relações: "Primei-
ro, eles revelam a ambivalência dos santos, com seus atos benéficos
e/ou maléficos para os homens reforçando a velha e discutida tese
de os santos cristãos terem sido sucessores dos deuses ou ao menos
dos semideuses pagãos, tese aceitável desde que seja feita a ressalva
fundamental de os santos não terem poder próprio como as entida-
des pagãs, sendo apenas intermediários. Segundo, aquele tipo de
milagre representava uma tentativa de valorizar os santos num mo-
mento em que a Igreja - cada vez mais centralizada, porém também
ameaçada pelas heresias - passava a controlar a canonização, de for-
ma a aproveitar um traço da cultura vulgar para firmar a superio-
ridade da cultura clerical. Terceiro, os milagres punitivos funciona-
121
vam como uma Microparúsia, uma aceleração da História, ou mel-
hor, como a negação da História, pois seu objetivo se colocava para
além dela, no Fim dos Tempos. Enquanto os demais tipos de mila-
gre eram uma intervenção do Eterno na História, reafirmando a
própria existência desta, os milagres punitivos simbolizavam o Fim
da História, a passagem para o Eterno" (Ibid., p. 228-29).
Situados como intermediários nessa mão dupla da relação en-
tre o homem e Deus - ora instrumentos dos milagres benéficos, ora
dos maléficos - os santos passam a possuir um status dogmático,
o qual a Igreja utiliza para firmar sua hegemonia. Daí em diante,
cresce a distância entre os santos canonizados e os "santos" popu-
lares, relegados à periferia das zonas institucionais de produção
do ethos religioso. Essa dicotomia marca profundamente a ambi-
güidade do santoral católico popular, que oscila regularmente en-
tre uns e outros. Tal oscilação pode ser constatada nas insistentes
reivindicações populares pela canonização de santos que não se
enquadram no status dogmático estabelecido pela Igreja, como
também pelas produções de características populares atribuídas
aos santos canonizados segundo aqueles dogmas. Isso influi deci-
sivamente no processo de materialização das concepções sagradas
imprimidas nas imagens dos santos. As imagens que apresentam
um fundamento mais dogmático têm dificuldade em penetrar nos
círculos devocionais, uma vez que as devoções se afirmam para
aquém da profissão de fé. A centralidade da profissão de fé é mar-
cada pela imagem do absoluto e caracterizada por ser inalcançá-
vel. Assim, o milagre é obra, de Deus, mas os santos são seus ins-
trumentos de realização, como degraus numa escada que não leva
a lugar algum. Se o carisma que cerca o santo é muito dogmático,
sua simbologia torna-se desapegada da vida comum e sua figura-
ção não materializa concepções sagradas. Torna-se mais adequa-
do para os segmentos populares produzir seus próprios santos,
forçando sua entrada no espaço sagrado, segundo a projeção dos
lugares que habitavam mundanamente - prática ainda comum nos
segmentos devocionais populares do catolicismo.
Essa posição de intermediários e a dogmatização dos cânones de
santidade opera outra reação nos segmentos populares que, gros-
seiramente, pode ser definida como uma seletividade concorrencial
nas devoções aos santos. A capacidade e o poder de instrumentali-
zar os milagres divinos faz com que os santos sejam classificados
122
numa disposição hierárquica - mesmo que fluida - e numa escala de
especialidades que permite um inventário vastíssimo17 . Neste pro-
cesso, os santos transformam-se em especialistas. Supõe-se, aqui,
que a dogmatização da canonização dos santos, porque passa por
um processo de instrumentalização dos mesmos, reforçou a menta-
lidade popular de pensar a mediação realizada pelos mesmos segun-
do tais especialidades. Como não possuem, originalmente, o poder
de realizar os milagres, as suas capacidades instrumentalizadoras -
mediadoras - é que se especializam. Em geral, tais capacidades foram
sacadas estrategicamente de suas biografias, reais ou imaginárias, e
elevadas à uma condição hiperbólica 18 , ora pela apropriação que os
segmentos populares realizaram secularmente dos exempla utiliza-
dos no processo de evangelização, ora como estratégia de aprimo-
ramento e uniformização do imaginário popular, pelos agentes di-
versos da estrutura eclesiástica.
O desuso dos exempla no processo de evangelização, posterior ao
Concílio de Trento, foi importante para romper esse ciclo de apropri-
ações, rebatendo na diminuição das combinações populares produ-
zidas sobre os santos no campo da imagética religiosa. Uma vez que
o sentido das materializações das concepções sagradas que produzem
os santos e suas imagens têm por princípio, cada vez mais, a unidade
da Igreja, sua estrutura torna-se rígida e confunde-se com a própria
atuação da Igreja. Os santos canonizados contemporaneamente têm
um papel menor na afirmação da experiência devocional, na medida
que se torna maior o seu papel de afirmação do valor da Igreja.
Simultaneamente, o desuso dos exempla corresponde ao desu-
so das imagens no processo de evangelização, que agora retoma o
primado do método bíblico, abrindo caminho para a reinvenção
da produção do consumo da imagética religiosa. Tal concepção
17
Uma análise que considerasse uma abordagem diacrônica cruzando-se com uma abor-
dagem sincrônica dessas especialidades existentes no santoral católico permitiria anali-
sar os limites e as recorrências históricas dos sentidos das imagens, tanto quanto das es-
tratégias dessas construções materializáveis de concepções religiosas: o vai-e-vem dos
santos entre lugares e tempos sociais diferentes, enquanto Deus permanece impassível.
Uma análise desse tipo, realizada por Marlise Meyer (1993b) acerca da entidade da Um-
banda Maria Padilha, mostra bem a riqueza e a recorrência de tais concepções, sobre
horizontes sociais distintos, mas de apropriações circulares na história.
18
Essa condição hiperbólica por que é pensada a instrumentalização dos milagres muitas ve-
zes confunde-se com uma capacidade de realizar milagres, nos segmentos devocionais po-
pulares do catolicismo. Porém, essa idéia só se mantém entre devotos mais tradicionais, sen-
do que entre os católicos "romanizados" prevalece a idéia do poder mediador dos santos.
123
pode ser facilmente confirmada pelo motivo da associação entre a
iconografia religiosa utilizada em determinadas situações e suas
transfigurações na atualidade, já que o devoto atual pode não se
ocupar com o sentido tradicional da imagem19 .
Assim, o significado primeiro de imagem, aqui utilizado, poder ser
repensado segundo a lógica que leva Pastro a buscar sua etimologia
em um lugar comum ao aqui discutido, mas reduzi-la metaforicamen-
te, para sugerir uma apropriação ao campo da imagética religiosa.
Apresentando uma concepção reduzida da etimologia do termo,
Pastro assim a define:
IMAGEM
IMAGO = IMAGEM
Palavra latina que significa: sombra de um morto, espectro, fantasma, vi-
são, cópia, imitação, parábola, lembrança, sinal.
IMAGEM
IN + AGER = NO CAMPO
AGGER, IS
AGGERARE = AMONTOAR TERRA
IMAGEM = MONTE DE TERRA OU TERRA ARADA, MARCADA.
124
sentes e analisar os movimentos recíprocos entre os agentes pro-
dutores das figurações e os produtores do consumo das mesmas.
Fechando circuitos:
apontamentos metodológicos
125
devoção) podem se restringir. Tal restrição dificulta à investigação
desvelar o entrelaçamento dos signos naturais e dos signos artifi-
ciais envolvidos no campo da imagética devocional, desde sua pro-
dução plástica à sua produção do consumo. O que considero a di-
ficuldade central de tal abordagem é o fato de que as mediações
que se operam nesse entrelaçamento são de ordem da memória, e
lembre-se que a memória, que é o fundamento do tempo, inverte
a relação entre geral e particular dada na síntese do presente.
Procurei expor, anteriormente, que a produção do consumo de-
vocional das imagens renova-se em um movimento diacrônico, o
que sugere constantes situações de visibilidade e invisibilidade das
mesmas. Contudo, em várias ocasiões de pesquisa observei que a
invisibilidade das imagens não significa que elas desaparecem, mas
sim, que elas saem do espaço público.
A história conflituosa das relações entre as representações plás-
ticas institucionalizadas (eclesiásticas ou evangelizadoras) e as fi-
gurações devocionais populares, desde o período colonial brasilei-
ro (HOONAERT, 1983), confirma essa idéia. Mais ainda, essa his-
tória mostra que, na medida em que vai prevalecendo no espaço
público um novo tipo de estrutura de sentimentos (WILLIAMS,
1981), em detrimento de um anterior, a hegemonia muda, as repre-
sentações plásticas vão mudando e as imagens tradicionais vão
sendo retidas nos espaços privados. Sobretudo, no campo devo-
cional mais tradicional, essas imagens se tornam ausentes dos jo-
gos de combinação produzidos pelos segmentos populares.
Nas pesquisas que realizei ficou evidente que, frente a diversos
campos problemáticos ativos, os devotos deslocam o lugar das
imagens para manter um sentido tradicionalmente atribuído às
mesmas. Assim, as imagens tradicionais saem de um campo de
combinações mas mantêm-se em um campo de trocas entre sujei-
tos que partilham esses sentidos. Um senhora cuja filha tornou-se
evangélica e passa a questionar as imagens da mãe dá suas imagens
a uma comadre; um senhor cujos filhos passam a receber amigos
em casa muda as imagens da sala para o quarto e, após passar a
receber amigos para tocar viola no quarto, muda novamente as
imagens para uma edícula no quintal, onde constitui seu santuá-
rio particular. Na busca de manter suas devoções e suas imagens,
os sujeitos negociam com os componentes de organização do es-
126
paço social, como afirma Hoonaert: "O oratório, a capela, ou a igre-
ja, não é senão um espaço organizado em torno da imagem do
santo. Importa pois saber como se organiza esse espaço, quem é
julgado 'digno' de se aproximar do santo, como se faz a distribui-
ção dos lugares, como se fazem os percursos dentro da igreja. E
aqui se instala a dialética: a maneira como a sociedade brasileira
entendeu a relação entre os homens e o 'santo' não é absolutamente
pacífica, mas sim conflitual" (1983, p. 293).
Aqui, é possível pensar a atitude dos devotos frente à disposi-
ção das imagens no espaço social. Darei dois relatos rápidos 20 . O
primeiro é o de um devoto de Lagoinha, no estado de São Paulo.
Esse devoto tira imagens "católicas" dos trabalhos e despachos
umbandistas que encontra nas estradas. Trata-se aqui de um cam-
po problemático ativo que envolve imagens religiosas e identida-
de, mas não só. Quando tira a imagem de seu contexto ele rompe
com um ciclo de dupla filiação identitária das imagens (um sincre-
tismo que as caracteriza), e aí ele afirma - "Eu tiro e pronto". Mes-
mo que afirme conscientemente que "isso não tem que estar ali", é
possível perceber em sua atitude a compreensão de que a imagem
se move, se carrega de uma porção de sentidos. Vê-se isso no medo
da mulher dele, que diz - "O velho está carregado de um monte de
coisa". Então, a posse de imagens carrega de sentidos. Ela não acre-
dita que aquilo carrega no seu marido, mas que carrega e amplia
o sentido do que a própria imagem incorpora, do que leva dos lu-
gares onde esteve 21.
Por outro lado, esse exemplo mostra que a exteriorização das
imagens corresponde à definição de padrões sociais de ação, reco-
nhecidos segundo filiações e sentimentos de pertencimento atribu-
ídos às imagens. Tais padrões sugerem, também, que as imagens
religiosas cristalizam os sentidos da estrutura social em que cir-
culam, na sua forma exteriorizada.
Este é o mesmo sentido do caso que se passou com um conjunto
grande e diversificado de imagens que apareceu, um dia, sobre uma
grande pedra à beira da ferrovia que corta Taubaté, estado de São
Paulo, bem no centro da cidade. No dia em que apareceram, pela
20
Tais relatos estão melhor explicitados e identificados em Lopes (2000).
21
Essa idéia aproxima-se daquela desenvolvida por Malinowski, em Argonautas do Pa-
cífico Ocidental (SP: Abril, 1976), sobre as trocas de objetos realizadas durante o Kula,
pelos trobriandeses.
127
manhã, todas as imagens estavam inteiras e com aparência de no-
vas, continuando assim até a noite; na outra manhã, quando fui fo-
tografá-las, sobravam poucas inteiras. Haviam sido quebradas vi-
olentamente. O que permite a alguém quebrá-las, senão a conside-
ração de que estão carregadas de um sentido que não deviam ter?
Essa atribuição de sentidos é essencial para compreender o pa-
pel e o lugar das imagens devocionais no campo devocional mo-
dernizado, ou plural, onde as possibilidades de combinações das
imagens são mais variadas, como escreve Londoño: "[...] a imagem
religiosa multiplicada, feita santinho de gesso, madeira, papel ou
mesmo imagem virtual na tela do computador, tem como destino
ocupar espaços onde será carregada de sentidos particulares explí-
citos ou não, definidos pelas diversas práticas de veneração. Nos
santuários, nos oratórios domésticos, na cabina de um caminhão,
na vitrine de um negócio, na mesa de um escritório, na carteira ou
mesmo perdida em um livro de rezas, a imaginária das devoções
cumpre funções particulares e expressa significados. Ainda sendo
a reprodução gráfica ou virtual ilimitada, as possibilidades de cir-
culação da imagem e de presença em muitos lugares também se
multiplicam. Independente dos detalhes de sua iconografia, a ima-
gem passa a ser definida pelo uso e pelas expectativas depositadas
na intervenção do santo" (LONDOÑO, 2000, p. 258-261).
Em outros estudos (LOPES, 2000; LOPES e SOUZA, 2001), já ha-
via destacado essa situação: de que o campo imagético devocional
exterioriza elementos figurados diversificados, que se estabelecem
em uma rede de sentidos definidos em uma dialética produzida no
uso e pelo uso das imagens. Contudo, o destino das imagens não se
resume a ocupar espaços, embora a constituição de uma geografia
do sagrado seja um aspecto importante da imagética devocional.
Tais elementos exteriorizados só adquirem seu real significado na
forma que assumem ao interior da rede, devido à fragmentação dos
sentidos identificados com a especificidade de cada imagem, que ge-
ralmente encerra, em si, uma memória devocional superficial. Ou
seja, a identificação do devoto remete mais à dimensão ostensiva da
imagem, e sua repetição, que à sua dimensão narrativa.
A ausência da dimensão narrativa na experiência devocional com
as imagens religiosas (SÀEZ, 1996) sugere que os devotos ampliam o
poder da produção do consumo das mesmas na medida em que a
apropriação das imagens e sua exteriorização atende uma mediação
128
difusa. Os devotos apropriam e utilizam-se das imagens segundo al-
gumas propriedades atribuídas ao "santo", difundidas amplamente
no imaginário popular. Como tais propriedades não remetem à con-
figuração de uma alteridade absoluta, mas resultam das especialida-
des atribuídas aos santos, na dinâmica concorrencial que se efetiva
pela capacidade e o poder de instrumentalizar os milagres divinos, a
própria experiência devocional torna-se profundamente marcada por
essa fragmentação. Dessa forma, para além da constatação de que as
imagens cumprem funções particulares e expressam significados, é
importante reconhecer e investigar a rede de sentidos que se forma na
experiência devocional com um campo imagético plural.
Já no campo das mediações mais consistentes, a experiência de-
vocional somente se estrutura na familiaridade ou intimidade com
um santo quando se relaciona com uma experiência mística, o que
implica o domínio da dimensão narrativa e um suporte da memó-
ria coletiva. Essa característica não é extensiva a todos os devotos,
mas geralmente é atribuída a alguns especialistas populares reco-
nhecidamente legítimos, capazes de sintetizar a experiência devo-
cional e realizar as mediações necessárias para inverter a relação
entre o geral e o particular na síntese do tempo. Nesse domínio, a
imagem devocional permanece e ganha os sentidos que possibili-
tam sua reprodução figurativa, muitas vezes, para além de seu es-
paço "familiar". É nesse sentido que "as imagens também se inscre-
vem em uma tensão de usos, da qual não está excluída sua utiliza-
ção como objeto de poder" (LONDOÑO, 2000, p. 262).
Ocorre que, na difusão de toda e qualquer imagem, a dimensão
narrativa associada à devoção tende a perder seu sentido, em pro-
veito da dimensão ostensiva. Uma vez que os modos de reprodu-
ção da imagem devocional são mais diversificados e acessíveis que
os modos de reprodução de sua narrativa original, a tendência de
toda devoção que ganha um escopo alargado é a de despregar-se
da memória que a funda e sustenta.
Essa situação é importante porque justifica a significação de uma
rede de imagens devocionais. O que há na rede? Há um conjunto de
trocas que vão carregando de sentidos e de justificação esses ciclos
pelos quais as imagens passam. Essa lógica dos empréstimos, das de-
voções, da realização das novenas em que as imagens vão da casa de
um devoto para a de outro - o que ocorre também com as bandeiras
de grupos devocionais populares - é importante de ser trabalhada.
129
A multiplicidade dos modos atuais de produção e reprodução
da imagética devocional gera um campo de ressignificações que
de alguma forma cria dificuldades para a cristalização das ima-
gens e para a sua incorporação. Tudo se passa como que seguin-
do a lógica da produção de informação que Postmann (1994) dis-
cute em Tecnopólio: muita informação produzida por meios tec-
nológicos impede a manutenção de uma teoria, porque a função
da teoria é excluir informação, e não agregar. O mesmo ocorren-
do com a memória. Nesse caso, surge a necessidade de instituir
uma competição normativa, que também pode servir para o en-
tendimento da produção da imagética devocional contemporâ-
nea: se um sujeito pode produzir qualquer figuração plástica, as
concepções normativas do princípio da figuração plástica, rela-
cionadas com as estruturas de sentido que se fixam como memó-
ria, se abalam.
Atualmente, o processo de cristalização das imagens pode não
ocorrer de forma tão visível e profunda, na experiência devocio-
nal, porque a abundância dos modos de produção da iconogra-
fia, assim como das suas formas de exteriorização, abala a estru-
tura de sentido hegemônica. A possibilidade de individualizar a
dimensão plástica inviabiliza a constituição de uma estrutura de
sentido única, como memória; daí, essa diversidade de imagens
que hoje constatamos.
Os santinhos difundidos publicamente, na atualidade, são exem-
plos do abalo que se produz na estrutura de sentidos devocionais
contemporâneos. Da mesma forma, as novas combinações figura-
tivas produzidas nas estampas de luto, assim como nos cartões e
estampas trocados cotidianamente, nas camisetas, etc., não repre-
sentam mais aqueles símbolos religiosos tradicionais, o que per-
mite que eles transitem no espaço público de uma maneira mais
dinâmica, porque o sentido está amenizado. Dessa perspectiva,
esse abalo produzido pode ser percebido na difusão das figurações
religiosas para além das fronteiras aos padrões sociais de ação de-
finidos naquelas redes de trocas imagéticas, passando para uma
esfera maior de relações, onde o ethos religioso não é mais estru-
turado particularmente sobre as mediações operadas pela icono-
grafia religiosa, nem as determina.
A dimensão religiosa do espaço público contemporâneo mos-
tra que as trocas no campo da imagética religiosa são diferencia-
130
das e que a diferenciação está se processando na concepção da
quantidade ou da personalização. A própria lógica da exterioriza-
ção da iconografia está se espalhando segundo esse princípio: o
que a caracteriza hoje é essa profusão de imagens, como na arte,
nos jornais, nas estampas, nos calendários, etc.
Trata-se de uma forma de esgotamento, mas não de um esvazi-
amento. Porque agora, ao cristalizar-se, a imagem torna-se cheia.
131
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135
136
Terceira Parte
137
138
La imagen del divino niño como
estrategia de la iglesia católica en una
parroquia popular de Mérida 1
Introducción
1
La ciudad de Mérida es la capital del estado de Yucatán y está situada en el sureste de México.
2
El concilio de Trento, norte de Italia, se celebró en los años comprendidos de 1545 a 1563.
3
Manuel M. Marzal, Tierra encantada. Tratado de antropología religiosa de América
Latina, Madrid, Pontificia Universidad Católica del Perú-Trotta, 2002.
4
Stella María González Cicero, Nuestra Señora de Izamal, Mérida, Pro Historia Penin-
sular, A. C.-Fomento Cultural Banamex, A. C., 1999.
139
ón de su diócesis independientemente de que fuera indígena o no. Al sa-
ber que los mayas le daban un significado sagrado al pueblo de Izamal,
debido a la fuerte veneración que le tenían a su dios Zamná, decidió
combatir estas creencias y prácticas consagrando este sitio a la Inma-
culada Concepción. Posteriormente, esta imagen habría de ser conoci-
da como la Virgen de Izamal y considerada patrona de Yucatán. Con
el mismo fin, dividió el pueblo en tres barrios a los que les asignó como
patrones de cada uno a San Ildefonso, San Antonio y Santa María5.
En nuestros días, el uso de imágenes sigue siendo una práctica
común de la jerarquía de la Iglesia católica en Yucatán para difundir
la doctrina que predican y combatir a quienes se oponen a ella. Sólo
que, a diferencia de los primeros misioneros católicos, hoy los inte-
grantes de dicha jerarquía recurren a esta práctica entre sus fieles para,
en sus términos, combatir a las denominaciones religiosas que han
surgido en la entidad y así evitar el éxodo de aquéllos a esas nuevas
confesiones. El trabajo que aquí expongo se inserta en este horizonte
y tiene como objetivo analizar el uso que los sacerdotes de la parro-
quia Cristo Rey le dan a la imagen del Divino Niño. Las ideas que ori-
entan este análisis son dos. Una afirma que dichos sacerdotes, enca-
bezados por su párroco Álvaro Carrillo, bajo el argumento de com-
batir a las denominaciones religiosas que se han asentado en la juris-
dicción de su parroquia, originalmente promovieron la devoción a esta
imagen como estrategia para retener a sus fieles en el seno de la Igle-
sia católica y así evitar su deserción hacia esas denominaciones. So-
bra decir que el esfuerzo de esos sacerdotes ha resultado infructuoso.
La segunda idea, estrechamente vinculada con la anterior, sostiene que
ante el avance irreversible de los hermanos separados esos mismos sa-
cerdotes han reorientado dicha devoción a fin de que sus feligreses,
apoyados en la fe en el Divino Niño, le den un sentido alternativo a
la precariedad económica y social en la que transcurre su vida cotidi-
ana. En ambos casos, dichos sacerdotes le dan un uso clientelar a esta
imagen. Esta parroquia está ubicada en una zona popular de la ciu-
dad de Mérida, capital del estado de Yucatán en México y es conside-
rada como santuario del Divino Nño por lo que a ella acuden devo-
tos de Mérida y de distintos poblados tanto de Yucatán como de
otros estados del sureste mexicano.
5
S. Ma. González Cicero, Op cit.
140
El avance de los hermanos separados. ¿Problema
para quién?
6
Instituto Nacional de Estadística, Geografía e Informática, XII Censo General de Pobla-
ción y Vivienda.
7
Luis A. Várguez Pasos, "Popularidad y hegemonía del protestantismo en Yucatán" en
Francisco Anda Vela, Capitalismo y vida rural en Yucatán, Mérida, Departamento de
Estudios Económicos y Sociales del Centro de Investigaciones Regionales Dr. Hideyo
Noguchi, 1984. Hernán Menéndez afirma que las expresiones del protestantismo llega-
ron a la Península de Yucatán desde 1841 amparándose bajo la Constitución yucateca
de ese año en la que se preveía la libertad de creencias. Sin embargo, toma 1885 como
el año en el que las fuerzas liberales de la entidad le abrieron las puertas a la Iglesia del
Divino Salvador. Véase H. Menéndez Rodríguez, Iglesia y poder. Proyectos sociales, ali-
anzas políticas y económicas en Yucatán (1857-1917), México, Consejo Nacional para
la Cultura y las Artes-Nuestra América, 1995.
141
Desde su llegada a Yucatán, los pastores protestantes dirigieron
sus actividades proselitistas a los estratos inferiores de la sociedad,
especialmente en las zonas en las que la presencia de la Iglesia cató-
lica era débil. Los conflictos entre la jerarquía de esta Iglesia con las
autoridades estatales y la falta de sacerdotes hacían que su actividad
se concentrara en Mérida y desatendiera al resto de sus fieles en el
estado. Antes de finalizar el siglo XIX, los misioneros presbiterianos
ya habían extendido su fe a las actuales cabeceras municipales de Ti-
cul, Muna, Maxcanú y Kanasín, en el estado de Yucatán, y a la ciu-
dad de Campeche8. En Mérida, la Iglesia presbiteriana fundó el tem-
plo El Divino Salvador desde el cual organizó sus campañas de
evangelización para la ciudad y todo el estado.
La política anticlerical de los gobiernos constitucionalistas que se
instalaron en Yucatán, a mediados de la década de 1910, agravó la
falta de sacerdotes en la entidad. El 5 de octubre de 1914, a menos
de un mes de haber tomado el poder, el gobernador Eleuterio Avila
ordenó la salida de los sacerdotes extranjeros que tuvieran menos
de treinta años de residencia en el estado. Las acciones que el gene-
ral Salvador Alvarado emprendió tras su llegada a Mérida, 19 de
marzo de 1915, agudizaron estas medidas y por tanto el conflicto con
la jerarquía católica y los grupos sociales que le apoyaban 9.
La política anticlerical que los costitucionalistas dirigieron con-
tra la Iglesia católica hizo que las Iglesias protestantes, especialmen-
te la presbiteriana, extendieran su radio de acción. En 1927 creó el
colegio Turner Hodge para la atención de hijos de presbiterianos y
de todos aquéllos que ahí quisieran estudiar. Unos años más tarde,
1935, el número de sus alumnos era de 250 jóvenes y niños, de los
cuales el 20% eran presbiterianos y los demás católicos 10 .
Al momento presente, en Mérida las Iglesias protestantes, evangéli-
cas y no evangélicas se extienden por las colonias en las que viven fami-
lias pertenecientes a los estratos inferiores de la sociedad. Un recorrido
por la ciudad revela la presencia de templos y congregaciones de diver-
sas denominaciones. En ocasiones son de dos pisos y con recintos para
sus diversas actividades, en otras son de una sola nave y materiales más
8
L. A. Várguez Pasos, art. cit.
9
H. Menéndez Rodríguez, Op cit.
10
Azael T. Hansen y Juan R. Bastarrachea M., Mérida. Su transformación de capital colonial
a naciente metrópoli en 1935, México, Instituto Nacional e Antropología e Historia, 1984.
142
modestos y en otras son pequeños espacios con una superficie no
mayor de 60 metros cuadrados, paredes rústicas y techos de cartón
En algunos sitios estos templos están dispersos, pero en otros
podemos encontrar tres o cuatro en un área de 25,000 metros cua-
drados aproximadamente. Uno de estos casos es la colonia Petcan-
ché al noreste de Mérida. Situados en un eje oriente-poniente, no
mayor de un kilómetro de longitud, se encuentran una capilla de la
Iglesia católica; un templo de la Iglesia cristiana Amistad ministerial,
otro de la Iglesia bautista, que lleva el nombre de la colonia; otro
más de la Iglesia nacional evangélica presbiteriana de México; una
casa modesta, por su tamaño y materiales de construcción, en el que
se reúne un grupo de Testigos de Jehová y un pequeño templo, igual-
mente precario, del Ministerio evangelístico El Jordán. A poco más
de cien metros de este último se encontraba el templo Maranatha,
pero se trasladó más al norte de la ciudad debido a que sus dimen-
siones, no más de cien metros cuadrados, resultaban insuficientes
para el número de fieles que acudían a sus ceremonias.
La zona en la que se encuentra la parroquia Cristo Rey presen-
ta la misma situación. En las colonias aledañas podemos encon-
trar templos de distintas denominaciones religiosas. Así en la co-
lonia Nueva Pacabtún se encuentra la Iglesia de Dios en México .
Evangelio completo ; en la colonia Salvador Alvarado; la Iglesia
universal de Jesucristo; en la colonia Melchor Ocampo, el templo
Monte Sinaí, perteneciente a la Iglesia Presbiteriana Independien-
te de México; en la colonia Los reyes, la Iglesia Jesucristo Rey de
Reyes , miembro de la Confraternidad de Iglesias Cristianas; en la
colonia Chichén Itzá, el templo Eben Ezer y la Iglesia Cristiana
Emmanuel; en la colonia Nueva Chichén Itza, la Segunda Iglesia del
Nazareno ; en la colonia San José Vergel II, el Centro Evangélico
Kerigma , perteneciente al Concilio Nacional de las Asambleas de
Dios y en los límites de los fraccionamientos Del Parque y Pacab-
tún, el templo El Shadai que también pertenece a este concilio.
No obstante el crecimiento de esas Iglesias, los feligreses de la parro-
quia Cristo Rey no sienten que sea una amenaza para ellos, su fe y mu-
cho menos para la Iglesia católica. Respuestas como las siguientes, da-
das por algunos entrevistados, confirman lo dicho: "Para eso hay liber-
tad religiosa", "mientras respeten mis creencias", "cada quien con su fe",
"ya no estamos en tiempos de la Inquisición", "yo les oigo y no les hago
caso", "somos la mayoría y no pueden contra nosotros", "Cristo fundó
143
la Iglesia católica y dijo que nadie podrá contra ella", "nosotros tenemos
a la Virgen y ella nos protege". A lo anterior hay que añadir que en al-
gunos casos los miembros de esas Iglesias son vecinos, amistades e in-
clusive parientes de los feligreses de esa parroquia. De tal modo, la to-
lerancia por parte de éstos hacia los demás credos, o mejor dicho su in-
diferencia hacia ellos, y las redes de amistad y/o de parentesco entre unos
y otros impiden que tales denominaciones sean concebidas como ame-
naza y contribuyen a inhibir cualquier conflicto de tipo religioso.
11
Eliécer Sálesman, Los nueve domingos al divino niño Jesús, Santafé de Bogotá., s/f.
144
Hoy día, si bien este barrio cuenta con todos los servicios urbanos, si-
gue siendo una zona de trabajadores pertenecientes a los sectores po-
pulares de Bogotá por lo que los salesianos continúan sus actividades
asistenciales. El padre Del Rizzo nació en Italia el 16 de mayo de 1882 y
murió en Bogotá el 30 de junio de 1957. La labor que desarrolló en pro
de la devoción del Divino Niño y de la atención de los pobres hacen que
esté considerado en Colombia no sólo como el principal promotor de
esta devoción, sino también como un santo.
La devoción al Divino Niño, al momento actual, se extiende por
diversos países de Centro y Sur América. En México, poco a poco va
ganado terreno. Al menos en Yucatán y en el sureste es evidente.
La institucionalización de la devoción
147
discurso de los sacerdotes. La imagen del Divino Niño y la invo-
cación de sus milagros y bondades siempre están presentes en las
actividades del Movimiento de renovación y éste a su vez sirve de
escenografía para la realización de las del Divino Niño. Esto hace
que dicha devoción se subordine a la dinámica del Movimiento de
renovación y que los fieles los perciban como uno solo13.
Antes de continuar quisiera decir brevemente que la creación del
Instituto Religioso Hermanas Misioneras del Niño Jesús fue una
de las acciones más relevantes que el padre Carrillo emprendió
para promover e institucionalizar la devoción del Divino niño. De
acuerdo con sus ordenamientos, su misión, carisma y espirituali-
dad están inspirados en la infancia de Jesús, la Renovación cristi-
ana en el Espíritu Santo y en los Movimientos carismáticos mari-
anos. Como parte de ese proceso, el 25 de noviembre de 1998 se
acordó formar la Congregación de servidoras del Divino niño.
Poco tiempo después, el 30 de abril de 1999, se formalizó la Con-
gregación. Con tal motivo, el arzobispo Emilio Berlie Belaunzarán
celebró una misa en la parroquia Cristo Rey.
13
Este ciclo de fiestas incluye otras de tipo civil con motivo de los días de la madre, del pa-
dre, del abuelo y de la independencia de México. En cada una la parroquia organiza la pre-
sentación de artistas locales, entrega de regalos y la celebración de una misa. Invariablemente,
tanto el padre Carrillo como el sacerdote que preside la misa piden a los asistentes que a su
vez le pidan al Divino Niño su bendición para las madres, los padres, los abuelos o el país.
148
en colonias populares cercanas a la parroquia y en los municipios
aledaños a Mérida. No así los de las clases medias y altas que resi-
den en las colonias del norte de esta ciudad.
El primer Congreso del Divino Niño fue en 1996 y formaba par-
te de las actividades del Cenáculo mariano de la Llama de amor
que se realizó del 30 de abril al 10 de mayo de ese año. El día del
congreso, 30 de abril, el programa comenzó a las 16 horas con las
inscripciones de los participantes. Para ello, cada uno dio su nom-
bre y el lugar de procedencia y recibió un gafete que se prendió en
la camisa, camiseta o blusa. Media hora más tarde tuvo lugar la
presentación de la historia de la infancia del Divino Niño a cargo
de un grupo de payasos y marionetas. Durante esta escenificación,
uno de los pequeños alumnos de las clases de catecismo de la par-
roquia se vistió como el Niño Jesús. A las 17.30 se hizo un receso
para dar paso a la misa especial de sanación para los niños. Al
concluir la misa se realizó una pequeña procesión con la imagen
del Divino Niño y luego, para terminar el evento, los ayudantes del
padre Carrillo organizaron cantos, juegos y rifas y distribuyeron
regalos entre los niños. La jornada concluyó poco después de las
21 horas. Como si se tratara del cumpleaños de cualquier, todos
entonaron "En un día feliz…", se cortó el pastel, se repartió entre
los niños y se quemaron luces artificiales. Todo esto en medio de
aplausos y expresiones de júbilo al Divino Niño.
En 1997, el II Congreso del Divino niño igualmente se realizó el
30 de abril como parte del Cenáculo mariano de la Llama del
amor. A su vez, este evento tuvo lugar del 28 de ese mes al 4 de
mayo. En esta ocasión el programa fue más amplio, incluía confe-
rencias marianas impartidas por integrantes de la Misión guada-
lupana, misas de sanación a las 8 y 20 horas, imposición de manos
a cargo de un grupo de misioneras de Campeche, custodia juvenil
y un concierto de alabanza y danza.
Las actividades de esta segunda edición del Congreso del Divino
Niño se iniciaron a las 8 de la mañana con una misa que ofició el pa-
dre Álvaro Carrillo Lugo y continuaron a las 16.30 horas con una
procesión de la imagen del Divino Niño por el atrio de la parroquia
Cristo Rey. Posteriormente, un grupo de payasos, caracterizados por
integrantes del grupo parroquial denominado Pastoral juvenil, re-
presentó la historia del Divino Niño a través de episodios bíblicos.
Dos horas más tarde, el padre Carrillo y el presbítero Alfredo Pa-
149
checo Sosa concelebraron una misa en la que 30 misioneros del Di-
vino Niño renovaron sus promesas. Finalmente, dichos payasos y
misioneros repartieron regalos, pastel y refrescos entre los niños.
De acuerdo con los organizadores, los niños que asistieron a
este segundo congreso fueron dos mil y provinieron de las colonias
vecinas a la parroquia e inclusive del estado de Campeche.
El tercer Congreso del Divino Niño tuvo lugar del 30 de abril al
9 de mayo de 1998. A partir de este año todas las actividades estu-
vieron organizadas en torno a esta actividad, por lo que desde en-
tonces empezó a ser independiente de los demás eventos de la par-
roquia Cristo Rey. La supresión del Cenáculo mariano de la Llama
del amor del ciclo de fiestas de esta parroquia, contribuyó para que
dicho congreso se constituyera en un espacio propio para la devo-
ción al Divino Niño. No obstante, más que un congreso, como se
anunciaba en la prensa local, fue un "Novenario religioso y cultural
en honor al Divino Niño Jesús" 14 . De acuerdo con estos anuncios,
las actividades religiosas se iniciarían el día 30, de 16 a 20 horas, con
la misa de sanación e imposición de manos. En los días siguientes,
estas actividades incluirían entradas y salidas de gremios, rezos de
novenas y de rosarios y celebración de misas; todo ello, dedicado al
Divino Niño . En cuanto a las actividades culturales, empezarían el
día 1º y comprenderían la actuación del actor religioso de la arqui-
diócesis de México el payaso Rary, la presentación del ballet folkló-
rico infantil del Ayuntamiento de Mérida, Luz y sonido juvenil, una
súper kermés, baile del recuerdo con la banda América, la actuaci-
ón del ballet folklórico del Instituto Tecnológico de Mérida, serena-
ta yucateca con la orquesta típica Yucalpetén, función de cine infan-
til, vaquería con la orquesta jaranera de Arturo González y, en la
noche del 9 de mayo, la gran serenata del Divino Niño Jesús a la San-
tísima Virgen María. En esta ocasión, se anunció la presencia del ar-
zobispo de Yucatán Emilio Carlos Berlie Belaunzarán.
La última edición del Congreso del Divino Niño Jesús, hasta la
fecha, se realizó el 30 de abril de 2006; siguiendo con la norma ya
establecida, las actividades comenzaron el día 23 con el rezo de la
novena al Divino Niño y continuaron con la celebración de misas
y la presentación de espectáculos infantiles. Las misas empezaron
el lunes 24 y cada día tuvieron una intención diferente. Las de ese
14
Diario de Yucatán, 26 de abril de 1998, sección local, p. 10.
150
día fueron por los niños discapacitados; las del martes por los
niños con enfermedades crónicas, las de los miércoles por los
niños con familias disfuncionales, las del jueves por los niños que
han sufrido rechazos, las del viernes por los niños con miedos y
traumas y las del sábado por todos los niños. Las misas del do-
mingo correspondieron al Congreso del Divino Niño Jesús.
Los espectáculos infantiles, arriba mencionados, iniciaron el
miércoles 26 con la presentación del grupo Algazara, el jueves tocó
el turno al Ensamble musical del Centro Cultural del Niño Yuca-
teco, el viernes al payaso Pillín, el sábado al Show infantil de títe-
res y el domingo al grupo Magic Dreams cuyos integrantes repre-
sentaban a los personajes de la película La edad del hielo.
Lo novedoso en esta ocasión fue que el padre Carrillo denomi-
nó Sitio de Jericó Infantil al conjunto de actividades que integra-
ron este undécimo congreso. De esta manera, los congresos del
Divino Niño, sin perder la autonomía que tienen desde 1998, que-
daron articulados a los Sitios de Jericó que este sacerdote organi-
za desde que asumió la dirección de la parroquia Cristo Rey . Aun-
que estos eventos son abiertos a toda la gente, están dedicados a
los distintos grupos de edad de los feligreses de esta iglesia. Así, el
Sitio de Jericó de enero lo está a los jóvenes, el de abril a los niños
y el de agosto a los adultos.
La resignificación de la religión
15
Al respecto véase Luis A. Várguez Pasos, "De Dios como ser supremo a Dios como ob-
jeto personal. Su transfiguración entre los devotos del Divino Niño de una parroquia del
sureste mexicano", en prensa.
152
mexicanos de fútbol. O bien mercancías de uso menos inmediato e
inclusive suntuario. En el primer caso se incluyen calzado y ropa usa-
da, pequeñas toallas y servilletas de tela; muebles de madera y calza-
do nuevo y en el segundo botas vaqueras y sobreros texanos; cosmé-
ticos; juguetes de plástico; muñecas tipo Barbie; globos; CDs piratas
de música y DVDs piratas de películas recientes.
Otra forma como los devotos del Divino Niño resignifican su
imagen es incorporándola a su ideario y expresándola en la vida co-
tidiana bajo formas que son propias de la cultura popular. Por ejem-
plo, como un recurso publicitario para captar clientes y aumentar
las ganancias o como amuleto en sus vehículos para evitar acciden-
tes. El primer caso lo podemos encontrar en tendejones, fondas y
pequeños comercios de los más variados giros, ubicados en diver-
sos rumbos de la ciudad, que llevan por nombre El Divino Niño .
Dos de esos tendejones se encuentran precisamente enfrente de la
parroquia Cristo Rey y otro a escasos cien metros. El segundo caso
se da en quienes graban dicha imagen en los cristales de sus vehícu-
los, tienen una pequeña reproducción en el interior a modo de altar
o les pintan en la parte posterior la leyenda "Divino niño" o alguna
otra que le aluda. Por ejemplo, "Yo reinaré", "Divino Niño cuida mi
camino" o "El Divino Niño es mi copiloto". Usualmente esto ocur-
re entre conductores de vehículos de transporte de pasajeros o de
carga.
Desde mi perspectiva, el padre Carrillo y sus sacerdotes han co-
adyuvado a esa resignificación al reorientar la estrategia median-
te la cual introdujeron la devoción al Divino Niño en la parroquia
Cristo Rey. Sin dejar a un lado la intención de contrarrestar el avan-
ce de, como ellos les llaman, las sectas ni su discurso en el que con-
minan a sus feligreses para que le ofrezcan al Divino Niño todos
sus problemas y adversidades, les de la fortaleza necesaria para
sobrellevarlos, se sometan a su voluntad y vivan con la esperanza
de que se los resolverá, sus acciones y homilías van dirigidas para
que sus feligreses le den a su vida cotidiana un sentido basado en
la fe a esa imagen. Es decir, para que a través de esta devoción en-
cuentren individualmente lo que ahora el neoliberalismo, o mejor
dicho el Estado mexicano neoliberal es incapaz de proporcionar-
les socialmente. Ante su exclusión de los servicios de salud, su mar-
ginalidad laboral y su negación como sujetos sociales la opción
que les presentan es rezarle al Divino Niño para que les sane de al-
153
guna enfermedad, les encuentre algún trabajo y les haga participar
en la conducción y toma de decisiones de sus respectivos grupos
y redes de interacción social. O bien para que les conceda la justi-
cia que las instancias judiciales no les otorgan. En estos términos
el Divino Niño sustituye a los aparatos del Estado y adquiere ante
sus devotos el significado de dador de todo cuanto que este orga-
nismo ya no les proporciona. Las certezas que antes giraban en
torno al Estado benefactor hoy se articulan alrededor del Divino
Niño, pues, de acuerdo con esa fe, él les da salud, seguridad en el
trabajo, acceso a la educación e incluso a la recreación. Al menos,
así lo manifiestan en sus testimonios.
De manera semejante, las identidades que sus devotos cons-
truyeron a partir del sentido de pertenencia a una nación, a una
etnia o a una clase social, cuyo sustento les daba ese mismo Esta-
do, hoy las reconstruyen a través de su reconocimiento con esa
imagen, de su participación en las misas, ceremonias y demás ac-
tividades de la parroquia Cristo Rey y de la creencia de estar her-
manados con los demás asistentes a estos eventos y aun con devo-
tos del Divino Niño tan distantes como los que le veneran en su
santuario del barrio 20 de julio en Bogotá.
Reflexión final
155
156
Devoções Marianas, espaços sagrados
e temporalidade: percursos atuais da
devoção popular no Brasil*
157
quias de diferentes dioceses é que existem muitas maneiras de combi-
nação das duas presenças institucionais, que vão desde a integração efe-
tiva dentro dos projetos pastorais das dioceses, das paróquias e do
movimento de Schoenstatt, até a quase ausência completa da paróquia
e diocese, bem como dos organizadores institucionais do movimento.
Este último é o caso dos grupos de devotas da Mãe Peregrina que pes-
quisei na cidade de Ubatuba, estado de São Paulo, Brasil2. Ali o clero,
apesar de aceitar e autorizar a vinda das primeiras capelinhas, atuou no
sentido de organizar uma devoção paralela e concorrente. O pároco que
concedeu as primeiras autorizações criou uma devoção ao Imaculado
Coração de Maria seguindo a mesma estrutura, depois que conheceu e
observou a aceitação da Mãe Peregrina. Pelo menos no início, o páro-
co que "criou" a nova devoção aproveitou para oferecer a sua própria
devoção às devotas que vinham lhe pedir a autorização exigida pelo
movimento da Mãe Peregrina. Atualmente, existem três capelinhas da
Mãe Peregrina na cidade e outras dezesseis capelinhas do Imaculado
Coração de Maria que são controladas pela paróquia (cf. SILVA, 2003).
Considerando a possibilidade de manutenção e desenvolvimen-
to autônomo da devoção à Mãe Peregrina na cidade de Ubatuba,
gostaria de sugerir algumas idéias a respeito dos caminhos que a
devoção popular aos santos vem trilhando atualmente, e de que for-
ma estes percursos modificam as representações sobre espaço sagra-
do e combinam, no presente, religiosidades inscritas em intervalos
de tempo distintos. A minha hipótese é que as categorias de espaço
sagrado e de tempo sagrado são reformuladas pela cultura popular
no atual contexto de compressão tempo-espacial, num esforço de
produção de táticas de consumo das experiências e crenças moder-
nas. Porém, as novas modalidades de crenças só podem ser signifi-
cadas enquanto registros de continuidades que carregam a sanção
dos costumes tradicionais como parâmetros de veracidade 3. Neste
2
Balneário turístico do litoral norte do estado de São Paulo, Brasil. Esta cidade foi mar-
cada por um crescimento populacional intenso em função do fluxo imigratório de me-
ados da década de 80 até meados da década seguinte, momento em que também chega
à cidade a campanha da Mãe Peregrina, trazida por uma devota oriunda da cidade de
Atibaia, estado de São Paulo, onde se encontra um Santuário de Schoenstatt.
3
Não me detenho aqui na explicitação de alguns conceitos chaves na formulação do texto;
quanto às noções de estratégia e tática de consumo sigo a leitura de Certeau (1994), já
para a sugestão de continuidade e de veracidade das práticas atuais tomo emprestadas
as idéias de Hobsbawm & Ranger (1984). A definição da realidade atual como compres-
são tempo-espacial pode ser encontrada em Giddens (1991) ou em Balandier (1999) con-
forme a discussão que realizo a seguir.
158
sentido, a análise das devoções aos santos pode, de modo particu-
lar, reconhecer a presença simultânea e complementar de diversos
tempos da religiosidade popular.
Os santuários tradicionais
4
Utilizo "sagrado" para qualificar o espaço atribuindo um significado que o transporte
para a esfera simbólica e o separe das demais esferas da vida cotidiana, como por exem-
plo, as esferas política e econômica (cf. ROSENDAHL, 1996, p. 11-12). A sacralização
do espaço e a polaridade entre espaço sagrado e espaço profano, ordena o mundo do
fiel e, portanto, orienta sua conduta cotidiana.
160
No caso dos cultos aos santos, essa transformação representa a
emergência de uma nova forma de se relacionar com os santos de
devoção. Essa nova maneira, por um lado não se caracteriza pela
relação necessária com o espaço sagrado do santuário, por outro
lado, estabelece formas alternativas de experiência do simbolismo
sagrado. Antes de apresentar estas novas maneiras de relação com
os santos e com Nossa Senhora especificamente, gostaria de regis-
trar algumas características da vida atual que prefiro definir como
supermodernidade ou sobremodernidade, para permanecer no re-
gistro do excesso de modernidade que acredito estarmos vivendo.
Neste sentido, partilho das visões de Giddens (1991), Balandier
(1999) e Augé (1994) que acreditam que vivemos não numa época
pós-moderna, mas num momento em que as conseqüências da mo-
dernidade (a individualização, a mobilidade, a efemeridade, a refle-
xividade, a comunicação de massa e a não-interação social, entre
outras experiências) têm sido levadas ao extremo.
163
Carismática Católica (RCC). Para examinar de perto esta alteração de
paradigma no culto de aparição, talvez seja importante analisar rapi-
damente o desenvolvimento diacrônico de um caso específico.
164
uma passou a retransmiti-la. E lentamente foi ocorrendo uma transfor-
mação do self divinizado do fenômeno, as mensagens foram se deslo-
cando do "ela" para o "eu". A vidente principal, a mensageira, foi deixan-
do de ditar a mensagem que via, para transmiti-la na primeira pessoa,
à maneira da locução interior. Essa transformação possibilitou não só
a proliferação da vidência entre vários membros do grupo, como tam-
bém a extrapolação do fenômeno para fora do "lugar sagrado". A men-
sageira passou a receber a mensagem em locais independentes do con-
texto inicial, ampliando significativamente o público atingido pelas
mensagens. Neste momento as mensagens passaram a se dirigir à "hu-
manidade", despersonificando seus receptores. Na mesma ocasião,
quando as mensagens eram dirigidas para a heterogênea comunidade
do santuário que se criou, tornaram-se inconclusas ("façam o que os
seus corações mandarem", "acontecerá o que Deus quiser"), abrindo
margem para diferentes interpretações subjetivas, respondendo, desta
forma, às mais diferentes aspirações reunidas no local.
Para Steil (2001, p. 125-132) é exatamente a presença dos carismá-
ticos no contexto das aparições o que vai caracterizar e diferenciar
as aparições contemporâneas. A partir de Medjugorje as aparições
(eventos localizados) perdem o monopólio clerical da mediação com
o universal. A presença dos carismáticos enquanto mediadores en-
tre o local e o universal re-configura os aspectos das aparições. E
para poderem circular no mercado globalizado dos bens simbólicos,
pela via dos carismáticos, uma das transformações que ocorre nas
aparições é exatamente a interiorização do self sagrado, ou seja, nos
novos fenômenos de aparições, as profecias (elemento comum en-
tre as aparições e os ritos carismáticos) se deslocam do ritual da vi-
dência para a experiência das locuções interiores. Porém, esse pro-
cesso de mudança cultural ocorre na via contrária. Isto é, nos con-
textos carismáticos de locuções interiores, o self sagrado se desloca
da figura do Espírito Santo para Maria. Em outras palavras, há um
duplo mimetismo no qual Maria se subjetiva, manifestando-se di-
retamente e intimamente na consciência individual dos "videntes",
ao mesmo tempo em que o Espírito Santo que fala à consciência do
carismático vem sendo substituído pela figura de Maria7. Essa con-
7
A presença de estudos sobre os carismáticos católicos aqui ocorre dentro de um qua-
dro de argumentos que apresento para ilustrar o caráter singular da religiosidade no
mundo contemporâneo. Ao contrário do desenvolvimento das aparições de Piedade dos
Gerais e de Taquari, o movimento de Schoenstatt em Ubatuba, até o momento final da
pesquisa, não estava ligado ao carismatismo.
165
fluência com nítida valorização da locução interior, segundo Steil,
corresponde "a uma tendência mais geral da religião na condi-
ção pós-moderna ", marcada pela reflexividade entre tradição e
a inovação e expressa, entendemos, pela privatização da expe-
riência religiosa.
Essa dimensão da subjetividade e da reflexividade, presente na
condição pós-moderna da religião, demonstraria a leitura que a tra-
dição vem fazendo das novas formas de expressão religiosa.
Outro aspecto de diferenciação observado por Steil (2001,
p. 132-133) é que nas aparições anteriores a Medjugorje os ri-
tuais e mensagens se mostravam chaves de leitura da cultura
e da estrutura social das comunidades locais, hoje as aparições
já não representam mais uma realidade anterior. As comuni-
dades formadas pelas aparições reúnem a mais expressiva al-
teridade contemporânea: diferentes pessoas vindas dos mais
diferentes lugares.
Agora, portanto, as pessoas que se agrupam em função das
aparições são instruídas na vivência dos rituais, passam a se
organizar e pautam as suas vidas em função da criação de um
self coletivo - ou um novo mundo, tido como dado - que forne-
cerá os modelos de organização da vida e do culto. "...De modo
que, mais do que revelar comunidades referidas a um espaço
material, as aparições contemporâneas estão criando comuni-
dades rituais que, ao se depreenderem da paisagem local, aca-
bam inserindo-se na extensa rede de referência do movimento
carismático...". Esse processo pode ser observado tanto na apa-
rição de Taquari, RS, estudada por Steil (2001), como em Pieda-
de dos Gerais (ALMEIDA, 2001).
Vejamos de que forma ocorrem as relações entre estes dois
gêneros católicos de religião (o catolicismo popular das apari-
ções e o catolicismo de massas da RCC). No estudo sobre as
aparições marianas, Steil destaca o que ele já havia observado
em outro contexto de religiosidade popular (STEIL, 1996).
Ele afirma que há uma disputa, no campo dos sentidos e das
estratégias dos grupos mediadores envolvidos no fenômeno
(clero e carismáticos), em busca de legitimidade e hegemonia.
Conforme estes dois grupos se relacionam, isto é, disputam e
negociam significados e rituais, troca de favores e espaços de
166
atuação, a abrangência do evento será maior ou menor, tanto
na sociedade local quanto entre os peregrinos (Idem, 2001) 8.
Considerando o estudo da Mãe Peregrina em Ubatuba (SILVA,
2003), talvez devêssemos nos perguntar se estas características de
subjetivação, reflexividade e desterritorialização, destacadas por
Steil (e também por Almeida) não ultrapassam tanto o contexto das
aparições contemporâneas quanto a RCC. Ao concordar com Steil
(2001) a respeito da condição pós-moderna (ou sobremoderna,
como prefiro chamar) da religião - de todas as religiões e não uma
em específico - como sendo a radicalização da subjetividade, da que-
bra do monopólio da produção dos bens religiosos e da reflexivida-
de cultural, sinto-me autorizado a transferir suas observações a res-
peito das relações entre o carismatismo católico e as aparições ma-
rianas para as redes de devoção da Mãe Peregrina que estudei.
167
pároco da época. O fato de o clero ter passado a praticamente rene-
gar a Campanha da Mãe Peregrina, ao mesmo tempo em que o gru-
po teve cortado o seu vínculo com a coordenação regional do mo-
vimento (em função da ausência da leiga que levou a Campanha à
cidade), abriu a possibilidade de um desenvolvimento anônimo e
autônomo da devoção. É neste sentido que afirmo que a devoção
originariamente elitizada e clericalizada foi reapropriada por um
grupo de devotas populares9. Meu objetivo esteve centrado na ten-
tativa de perceber os ethos religiosos encerrados nesses símbolos
marianos, principalmente, na capelinha da Mãe Peregrina de um
bairro específico da cidade (Perequê-Açu), porque considero que,
neste caso, esta devoção ganha sentidos específicos de novos modos
de viver o catolicismo devocional tradicional (cf. SILVA, 2003)10 .
As católicas que entrevistei possuem inúmeras representações
materiais de santos, incluindo variadas imagens marianas11. Mas,
a despeito da presença permanente destas imagens, a "visita" men-
sal da Mãe Peregrina opera uma transformação do espaço domés-
tico num santuário particular - um "espaço sagrado" - concomi-
tante com um sentimento de que há estreitas relações com o san-
tuário original de Schoenstatt 12 . Como vimos, a devoção consiste
em cuidar por um dia inteiro, todos os meses do ano, de uma ca-
pelinha que circula entre trinta famílias.
Os relatos sobre o que acontece e o que as devotas fazem no dia
da visita da Mãe Peregrina parecem deixar claro o caráter de
transformação que a capelinha aciona quando visita as casas, além
9
Entendo devoção popular no estrito sentido de uma devoção que se apresenta em opo-
sição á forma ortodoxa de devoção aos santos.
10
Aqui não me detenho no conflito em si e nem em seus motivos. Dado a limitação de
espaço me permito referenciar aos interessados a dissertação acima citada (SILVA, 2003).
11
No caso de Ubatuba, as participantes da devoção são na sua maioria mulheres perten-
centes à classe média, média baixa. Temos aquelas que têm uma intensa participação na
vida paroquial até católicas não praticantes. A maioria das senhoras que entrevistamos
participa efetivamente da vida comunitária da igreja (SILVA, 2003).
12
Essas relações se estabelecem não pelo lado da devota ou de sua atenção, mas pela at-
enção que ela imagina que as guardiãs do santuário devotam a sua família naquele dia.
Em substituição à peregrinação dos devotos até o santuário do padroeiro, temos a pere-
grinação da imagem do santo (e de Maria) pelas casas dos fiéis. Há que se destacar tam-
bém o fato de as capelinhas de Schoenstatt não retornarem ao santuário de origem. No
caso de muitas imagens de santo ou de Nossa Senhora que peregrinam pelas comuni-
dades e pelas casas dos devotos, ocorre um retorno periódico ao santuário de origem,
preservando, desta forma, um forte vínculo simbólico com o espaço sagrado.
168
de apresentar um sentimento de eleição e regozijo para as mulhe-
res, pelo fato de terem sido convidadas para receber Nossa Senho-
ra. Para as devotas da Mãe Peregrina, a visita mensal da capelinha
instala ou aumenta a consagração do espaço doméstico transfor-
mando-o num santuário "privado", que inaugura um tempo sagra-
do e transforma os lares. Não importa o fato de Maria já estar pre-
sente no local, através das imagens de outras invocações, a passa-
gem da Mãe Peregrina transforma a casa em um santuário priva-
do, inaugura um tempo sagrado, cheio de graças para a devota e
os seus. Segundo a visão de uma devota, Maria traz uma força
muito grande nesta peregrinação, ela realiza uma grande transfor-
mação nos lares que visita. Criando assim uma ocasião especial,
para agradecer e pedir as graças da Mãe de Jesus. A produção sim-
bólica de um santuário familiar abre a possibilidade para experi-
ências religiosas que não são vivenciadas nos serviços paroquiais.
Estes simbolismos verificados na devoção à Mãe Peregrina reme-
tem-se à noção desenvolvida por Eliade sobre o "lugar santo" provi-
sório: um espaço provisoriamente consagrado e " cosmizado", através
de símbolos e rituais (cf. ELIADE, 1992). Porém, esta noção de um es-
paço provisoriamente consagrado contém um dado não desenvolvi-
do por Eliade, que é a experiência do tempo sagrado provisório. Nas
culturas tradicionais a revelação do sagrado dá-se espacialmente na
projeção de um ponto fixo. Da mesma forma, o lugar santo inaugu-
ra um tempo sagrado, o tempo mítico provisório. Mas este tempo
provisório não é propriamente efêmero, possui uma duração relati-
vamente longa - um período ritual, cosmologicamente definido.
Em oposição, no mundo atual, assistimos à aceleração do tem-
po que interfere até mesmo na definição dos usos dos espaços em
geral. No mundo urbano, encontramos utilizações efêmeras dos
espaços, utilizações de curtíssimo prazo e mesmo utilizações dis-
tintas - algumas vezes opostas - do mesmo espaço, conforme o pe-
ríodo observado (cf. ABUMANSSUR, 2001, p. 214). Um dos locais
mais dinâmicos são os espaços de utilização informal: pontos de
comércio ambulante, por exemplo, tornam-se locais de prostitui-
ção no período noturno. As concepções de tempo e espaço sagra-
do foram alteradas pela modernidade. Os cinemas tornam-se tem-
plos, ou mais revelador: alugam-se espaços de atividade profana
para a instalação de templos religiosos. A casa, no bojo da secu-
larização religiosa, perdeu muito do caráter santo que a caracte-
169
rizava nas culturas tradicionais, aquele caráter ainda permanece,
mas agora de forma residual ou descontínua.
Neste ponto, as observações de Steil sobre as aparições marianas en-
contram um lastro muito apropriado. Atualmente, segundo este autor,
o espaço deixa de existir enquanto mediação para o sagrado cedendo
lugar aos mensageiros do sagrado (videntes e acrescentaria as imagens)
que ultrapassam a referência espacial e inserem o sagrado "...numa ex-
tensa rede de comunidades organizadas muito mais como movimento
do que como circunscrições geográficas..." (2001, p. 133). Assim, em opo-
sição a um Centro sagrado, o santuário, criam-se espaços provisoria-
mente consagrados para a manifestação das divindades.
Parece-me que a idéia de que a Mãe Peregrina constrói a sua eficá-
cia simbólica na circulação entre as famílias e com isso torna-se um
lugar de autoprodução religiosa, que resiste (mas não "compete") ao
monopólio de bens religiosos (sacramentos como mediação do mun-
do material e espiritual) representados pela Igreja católica instituci-
onal, a torna uma modalidade de devoção emblemática que se mos-
tra afinada com nosso tempo e afinada com a vivência dos católicos
urbanos porque requer pouco tempo, permite um culto mais parti-
cularizado e liberado, pouco ou nenhum compromisso com serviços
comunitários ou paroquiais. Ao mesmo tempo, esta é uma experiên-
cia religiosa profunda pelo fato da pessoa ser convidada por uma ze-
ladora para fazer parte da devoção, o que, na acepção das entrevista-
das, corresponde a receber a graça de ser escolhida pela própria Mãe
Peregrina 13. Gerando assim um sentimento de valorização da singu-
laridade, tão renegada pela "sociedade de massas" - lugar mais comum
da sociabilidade dos tempos atuais. A construção deste espaço de re-
ligiosidade sugere que a visão religiosa "alternativa" das devotas - em
relação à visão oficial - não as coloca em oposição direta ao pároco.
13
O sentimento moral de eleição, construtor de transformações e significações identitá-
rias, constitui-se num dos pólos da força simbólica do movimento. Este sentimento en-
contra lastro na opinião de que é Maria que quer circular, sendo as pessoas meros ins-
trumentos desta "vontade divina". Uma devota da Mãe Peregrina lembra, reproduzindo
o discurso institucional, que a "missão" de Maria é caminhar. Foi assim desde a concep-
ção de seu divino filho, quando ela se dirigiu para a casa de sua prima Isabel. Receber a
visita de Maria, neste sentido, torna a devota equivalente à Isabel. Fazendo uma com-
paração desta experiência com a que o fiel vivencia quando visita o santuário de seu
padroeiro(a) e traz para casa sua imagem, percebemos logo os contrastes. Nesta última,
foi o fiel quem trouxe - ou no caso muito comum de ele ter ganhado a imagem, ela foi
doada por outra pessoa, "normal" como ele. No movimento da Mãe Peregrina, é a pró-
pria divindade que escolhe as famílias por onde ela quer se deslocar.
170
Em outras palavras, como vem ocorrendo em Ubatuba, essa devo-
ção permite um culto mais individualizado, livre das amarras severas
da burocracia paroquial e do compromisso sócio-comunitário, que
abre a possibilidade das devotas construírem sua relação com Nos-
sa Senhora segundo seus costumes tradicionais (de intimidade com
entidades sagradas e o reconhecimento das mesmas) e com a indepen-
dência que o espaço doméstico estabelece em relação à paróquia.
Mas o que difere a prática de prestar culto individual a uma ca-
pelinha de Maria do hábito tradicional de entronizar em casa a ima-
gem do santuário e do padroeiro trazidos da romaria? No caso das
devoções tradicionais, Beozzo (1977, p. 752) afirma que "as orações
em família perante o seu santo e a reprodução do santuário man-
têm vivo o laço religioso do devoto com o seu santuário". O mesmo
não ocorre com a Mãe Peregrina. Primeiro, porque na maioria dos
casos, nem se conhece o santuário original. Em segundo lugar, por-
que a eficácia simbólica desta devoção está no fato de, justamente,
não ser o devoto que peregrina, mas sim a Virgem Maria. A trans-
formação da residência num santuário e a obrigação de aumentar
as graças, isto é, a força simbólica do santuário irradiador, garante
o poder de intercessão da Mãe Peregrina. É enfim, a rede que as de-
votas formam que estabelece a relação de forças simbólicas que aju-
dam a dar sentido ao catolicismo cotidiano que elas vivenciam. O
fato de se envolver com um objeto sagrado de devoção, que não lhe
pertence efetivamente, de maneira particular e/ou familiar - mas que
do mesmo modo não é da paróquia - oferece um sentimento, ao
mesmo tempo de posse, de eleição, de participação em alguma coi-
sa que a ultrapassa, de familiaridade com algo importante porque
é universal (ao menos supralocal e não paroquial).
Diferentemente, no caso das devoções tradicionais aos santos,
percebe-se que o sentido e a ordenação do mundo cotidiano são
garantidos pela formação da rede de santos de um devoto em par-
ticular, através da soma de seus poderes, ou melhor, através da
aglutinação da especialidade de cada um dos santos cultuados.
As constatações acima são importantes, pois pressupõem que as
práticas de culto aos santos não são residuais ou reminiscências do
passado, mas, ao contrário, constituem práticas fundamentais do
catolicismo contemporâneo. As práticas autônomas de culto aos
santos demonstram, ainda, que estes símbolos reproduzem-se con-
171
forme o movimento dos grupos, das redes ou categorias de pesso-
as representadas pelos santos ou associações (ZALUAR, 1983, p. 64).
Conclusão
14
Não podemos esquecer que as práticas culturais, por mais idiossincráticas que possam
parecer, sempre têm ancoradouro nas teias de significados tecidas pelo grupo social.
173
Referências Bibliográficas
174
Schoenstatt na cidade de Ubatuba. São Paulo: PUC-SP, 2003. (Dis-
sertação de Mestrado, Programa de Ciências da Religião, 2003).
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rismatismo católico. In: SANCHIS, Pierre (org.). Fiéis & Cidadãos:
percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: EdUerj, 2001.
p. 117-146.
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias: um estudo antro-
pológico sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa - Bahia. Petró-
polis: Vozes, 1996.
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atualidade. Revista Grande Sinal, Petrópolis, ano 49, n. 5, p. 545-
555, set.-out. 1995.
TURNER, Victor Witter & TURNER, Edith. Image and Pilgrima-
ge in Christian culture: Anthropological Perspectives. New York:
Columbia University Press, 1978.
ZALUAR, Alba. Os homens de Deus: um estudo dos santos e das
festas no catolicismo popular. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1983.
175
176
Espaços populares de coexistência de
sacralidade nos meios populares: ociclo de
Santos Reis no Alto Vale do Paraíba
1
Na cidade de São Luís do Paraitinga, presenciamos um exemplo desse controle: a no-
meação de uma comissão de festeiros indicada pelo padre, em detrimento da prática tra-
dicional do sorteio de um festeiro, como se fazia até poucos anos atrás. Nota-se que o
sacerdote controla não apenas as intermediações com o sagrado (que é a sua função),
mas também ele tem o controle de todos os movimentos financeiros da festa.
177
O acompanhamento das jornadas de grupos de Folia de Reis
por bairros rurais no alto vale do Paraíba2 permitiu-nos reconhe-
cer, numa análise comparativa entre os mesmos, que os espaços e
tempos religiosos dos ciclos estudados nas comunidades dessa re-
gião apresentam-se fragmentados e com registros significativos de
mudanças. Essas mudanças são perceptíveis, sobretudo, nos ritu-
ais centrais do dia da festa de Santos Reis. Algumas comunidades
incorporam novos códigos que implicam na alteração das práti-
cas tradicionais, ou seja, produzem uma mudança no quadro de re-
presentações religiosas desse ciclo festivo-devocional 2, transfor-
mando-as em uma apresentação (espetáculo), o que é sentido de
forma mais evidente na festa de um dos bairros observados, o de
Santa Cruz do Rio Abaixo3 , em São Luís do Paraitinga.
A análise debruçou-se sobre um denso trabalho de campo que foi
realizado através do acompanhamento do movimento peregrinató-
rio dos grupos de Folia de Reis, em seu deslocamento pelo espaço ru-
ral, nas visitas às moradas. Por intermédio desse acompanhamento
constante, tivemos a oportunidade de vivenciar e presenciar momen-
tos e situações que confirmaram a eficácia simbólica da imagética dos
Santos Reis, legitimada nos comportamentos dos sujeitos rurais.
Por essa estratégia, os momentos de observação não ficaram
centrados apenas no dia da festa ou da entrega da bandeira, mas
buscavam apontar para uma gama de acontecimentos, geralmen-
te excluídos em muitos estudos sobre essas Folias, que se repor-
tam apenas aos atos cerimoniais mais festivos.
2
A região percorrida por ocasião da pesquisa localiza-se geograficamente no alto vale
do Paraíba, no nordeste do estado de São Paulo. Esta região encontra-se entre as duas
maiores cidades brasileiras: São Paulo e Rio de Janeiro. Os trabalhos de campo foram
realizados nas regiões serranas dos municípios de Cunha e São Luís do Paraitinga. Em
Cunha, percorremos bairros que se encontram muito afastados da sede do município e
praticamente no topo da Serra do Mar, outros em seu contra-forte, cabendo citar Parai-
tinga, Cabeça Branca, Dingau, Taquaral entre outros. Já em São Luís do Paraitinga, tam-
bém pesquisamos em bairros situados na Serra do Mar: Cachoeirinha, Rio da Prata,
Campo Grande, Toca da Cotia, entre outros. Exceção se faz ao bairro de Santa Cruz do
Rio Abaixo e adjacências, cujas casas visitadas situam-se à margem e/ou relativamente
próxima à margem do Rio Paraitinga.
3
Estruturadas em torno do natal e das festas de santos de reis. Geralmente, no Brasil, ocor-
re no dia 6 de janeiro, mas na região o ciclo se estende até fevereiro porque neste mês
comemora-se a Festa de Nossa Senhora das Candeias ou Candelária.
4
Nesse bairro observamos a tentativa do controle eclesiástico, impondo normas institucionais para
a celebração das atividades direcionadas ao ciclo de Santos Reis, que não se confirmaram.
178
As redes de devoção mediadas pela imagética
religiosa do ciclo natalino e os conflitos
simbólicos
As redes de devoção
5
Pode-se tomar como parâmetro para reforçar o que foi afirmado a seguinte analogia: se o es-
paço vivido equivale ao espaço do cotidiano, o espaço da festa remete ao espaço do extraordi-
nário ou do incomum, pois é, na verdade, a rotina interrompida por alguns momentos.
6
Para os moradores dessas localidades rurais, "romaria" significa visitar o Santuário Nacional de
Nossa Senhora Aparecida. Devido à proximidade, ao se dirigirem ao espaço sagrado, muitos o
fazem em atitudes de sacrifícios, viajando por dias a cavalo ou a pé. As principais procissões que
acontecem nos bairros identificados para esse estudo são: Nossa Senhora da Capela do Alto, no
bairro da Cachoeirinha, distrito de Catuçaba, no município de São Luís do Paraitinga, no mês de
setembro; Santa Cruz, no bairro de Santa Cruz do Rio Abaixo, no mês de maio e Santa Luzia, no
mês de dezembro; na Capela do bairro do Taquaral na região do Sertão da Bocaina.
7
O festeiro é alguém que por devoção ou por ter alcançado alguma graça realiza uma festa em
homenagem a Santos Reis, como forma de pagamento à graça atendida. Faltando alguns me-
ses para o dia da festa, ele sai com os foliões de Santos Reis em jornada devocional/peditória
pelos bairros da região. Leva consigo a bandeira imagética de Santos Reis, o que lhe abre as
portas praticamente em todas as moradas. A visita tem um duplo sentido: o primeiro é o do
contato do devoto com o seu santo de fé e devoção e o segundo é o de angariar contribuições
de ordem monetária e/ou em espécie que financiarão as despesas da festa.
181
ao conduzi-la. Quem a recebe são os donos da casa, que se apresen-
tam na qualidade de devotos fervorosos.
Esta relação entre levar e receber estabelece uma série de com-
promissos e procedimentos rituais que merecem reflexão. O pri-
meiro é o do morador frente ao símbolo sagrado. Ao receber a
bandeira, ele vai proceder reverenciosamente (ajoelhar, benzer e
beijar) para depois levá-la para o interior de sua morada, como
forma de receber sua deferência espiritual. A motivação para agir
de tal forma manifesta-se principalmente na experiência de fé do
devoto, em sua relação contratual com a imagética dos Santos Reis,
devido à eficácia dos mesmos no atendimento de seus pedidos.
Constata-se, então, que a bandeira de Santos Reis é inegavelmen-
te o objeto ritual de maior valor religioso.
Aqui, consideramos relevante reproduzir o comentário de uma
devota, moradora no bairro da Várzea do Paraitinga, no municí-
pio de Areias, no alto vale do Paraíba, que justificou o seu respei-
to à bandeira e aos foliões de Santos Reis, confirmando que na zona
rural e principalmente nos bairros mais isolados, ainda impera a
manutenção de uma "religião de muita reza e pouco padre e mui-
to santo e pouca missa" (cf. RIBEIRO DE OLIVEIRA, 1997, p. 47):
A gente que mora por esses lados do sertão e que não tem condução pra
sair de casa, a gente não assiste missa. É muito difícil um padre sair da cida-
de de Cunha ou Areias vim celebrar missa por esse lado do sertão. Mesmo
quando tem festinha na Capela, não vem padre, quem dirige a festa é o Ca-
pelão. Como a gente não tem padre pra tá ensinando a gente, a gente tem
é que ter fé nos santo. E eu tenho muita fé mesmo é em Santos Reis, por-
que ele é muito poderoso e ajuda a gente nas horas mais difíceis 8.
8
Depoimento coletado em 21/01/2001.
182
mas também, implicitamente, a sua insegurança e fragilidade fren-
te aos percalços que a vida e o mundo impõem. Ao contrário da
devota, a bandeira de Santos Reis é poderosa, segura e forte. E é
somente através dos seus atos de fé, devoção e subordinação que
poderá auferir algum tipo de benefício. Estamos, assim, frente a
uma devoção que renova o ato de fundação do sagrado, como afir-
mou Eliade (1996, p. 26): "para viver no mundo é preciso fundá-lo".
Porém, essa renovação só possui eficácia porque também serve
a uma diferenciação fundamental, na medida em que "o sagrado
manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente
das realidades naturais" (ELIADE, 1996, p. 26).
A atitude da devota estabelecida frente à bandeira de Santos Reis
remete ao seguinte questionamento: qual concepção de sagrado
sustenta essa motivação individual? É possível manter tal concep-
ção num espaço religioso e coletivo, se o mesmo é construído con-
forme a motivação do sujeito e sua relação com o santo? Estamos
aqui frente ao princípio de sustentação do sentido da ação social
na relação social, segundo Weber (1987, p. 46-47):
O pouso de Folia
9
Caso semelhante é apresentado por Brandão (1983, p. 200) quando relaciona os procedi-
mentos rituais da chegada de Folia uma do Divino Espírito Santo a um pouso o qual pode
ser aplicado no caso em questão: "1º - cantoria de chegada no arco; 2º - cerimônias de culto
à bandeira de Santos Reis; 3º - cerimônias diante do presépio oratório; 4º - janta sempre mui-
to festiva; 5º - danças: catira cana verde; e 6º - cantoria de despedida do pouso".
185
O grupo de Folia, logo após encerrar os atos cerimoniais - que in-
clui fazer a "chegada", cantar nos arcos, no presépio e, depois, dire-
cionar o ritual da coroação dos novos festeiros - deposita a bandeira
bem ao lado do presépio. Simbolicamente, ambos (presépio e ban-
deira) se atraem e se unem em um mesmo espaço e tempo e são con-
sagrados pelos devotos. Percebe-se que "as imagens dominantes ten-
dem a associar-se" (BACHELARD, 2000, p. 140), tornando-se recí-
procas não só na aproximação, como também na hegemonia e con-
solidação do sagrado, criando espaços demarcados e fortes.
Deste procedimento coletivo determinado pelo grupo, apreen-
de-se o individual ou privado, respaldado no exemplo da exterio-
rização de fé da devota já mencionada, que deslocou a bandeira de
sua casa até o centro de convergência da devoção - o terreiro da
casa do festeiro do Sertão da Bocaina, espaço não institucional.
Essa atitude, que mostra o fervor religioso e exprime explicitamen-
te sentimentos devocionais, formou um "espaço de coexistência"
por intermédio dessa experiência, apreendido ora coletivamente,
ora individualmente pelos sujeitos devotos.
Constatamos um procedimento semelhante a esse descrito so-
bre a festa do Sertão da Bocaina, no bairro de Santa Cruz do Rio
Abaixo, onde os espaços de sacralidade da festa são demarcados
nas esferas de interior/exterior. A questão simbólica está presen-
te tanto na casa como no terreiro e está representada no presépio
(casa) e nos rituais de coroação dos novos festeiros (terreiro). Por
analogia, a sala onde se encontra o presépio é constantemente sa-
grada. O terreiro, predominantemente profano e de forma opos-
ta, só se sacraliza quando o grupo de foliões chega ao lugar.
Percebemos, então, que nas comemorações aos Santos Reis no
bairro de Santa Cruz do Rio Abaixo, as imagens se mostram sepa-
radas espacialmente, ao contrário do Sertão da Bocaina, onde as
imagens dominantes se associam.
No contexto desta análise, a avaliação é que as referências hege-
mônicas (no que se relaciona ao espaço externo) são ao mesmo
tempo distantes e próximas e a festa de Santa Cruz do Rio Abai-
xo evidencia essa diferença.
Como afirmado anteriormente, a chegada da Folia aproxima as
pessoas do sagrado, por conduzi-lo e manipulá-lo, assim como tam-
bém permite associar outros elementos que têm o poder de manifes-
tá-lo, aproximando os sujeitos envolvidos na experiência devocional.
186
A título de exemplo, acreditamos ser relevante abrir um parênteses
para comentar o surgimento de um quadro fotográfico de pessoas já
falecidas, que desempenharam um papel relevante na comunidade,
durante o ritual da Folia em Santa Cruz do Rio Abaixo. Essa fotogra-
fia expressou, naquele momento, uma associação com a Folia de Reis,
pelo fato das pessoas retratadas terem sido foliões em vida.
A presença de um quadro sacralizado na festa implica na multi-
plicação da manifestação do sagrado (nos objetos). Relativamente
à sua posição quanto aos espaços, dá-se sua acomodação devido à
associação das imagens predominantes exibidas - bandeira de San-
tos Reis e o quadro dos antigos foliões - que expressam a memória
materializada de um grupo do qual a maioria dos componentes foi
extinta. O quadro fotográfico, levado para o espaço do terreiro onde
se reconheceram e estabeleceram importantes transações sentimen-
tais e devocionais, é também capaz de produzir ou gerar um proces-
so de aproximação com o símbolo que o mesmo expressa, ao mes-
mo tempo em que assume a forma de culto à memória coletiva,
como estratégia de manter a lembrança de acontecimentos originá-
rios. Podemos, então, recuperar a afirmação de Halbwachs (1990) de
que "o exercício da memória é coletivo". Como também vemos es-
tabelecida a relação entre tradição e memória, a partir do passado.
Possamos ainda incluir a análise de Rivera (1998, p. 55):
187
como criação plástica passam por uma "produção do consumo"
(CERTEAU, 2000) que gera uma recriação mítica (cf. LOPES, 2000).
Assim, podemos afirmar que na festa de Reis do bairro de Santa
Cruz do Rio Abaixo, os rituais e/ou os atos cerimoniais reviveram
não apenas a tradicional trajetória dos três Reis Magos, localizada
em um espaço e tempo distantes, como também e de forma similar
reviveram, em uma dimensão de espaço e tempo oposta à primeira,
a memória da fundação da comunidade, simbolicamente represen-
tada por uma foto que dá sentido ou acrescenta sentido à festa.
A observação de uma terceira rede de devoção na região permite
apontar para outros aspectos da devoção imagética de Santos Reis. As
redes de devoção do bairro da Cachoeirinha, no distrito de Catuçaba,
em São Luís do Paraitinga, são mediadas apenas através do movimen-
to da Folia e pelo recebimento do devoto, o que se finda nesse mesmo
ato, não tendo prosseguimento com a festa de encerramento do ciclo,
como ocorre nos bairros da Bocaina e Santa Cruz do Rio Abaixo. Vê-
se que não se estabelece uma troca de dons entre o domínio espiritual
e o material, afetando, conseqüentemente, o prolongamento da rede.
Devido ao estilo adotado pelo grupo de Folia de Reis do bairro da
Cachoeirinha (caracterizada como Folia Paulista), encontramos apenas
a relação estritamente devocional, eliminando o caráter comunitário
que acompanha as festas de tradição mineira. Neste bairro, ocorre uma
relação em que os devotos apenas pedem pela deferência espiritual do
ser sobrenatural, não investindo bens materiais, mas recebendo bens
espirituais, segundo os comentários de muitos devotos. O contato e a
mediação com o santo terminam quando a Folia de Reis realiza a lou-
vação às imagens do presépio. O dado principal desse grupo é prestar
atos de louvação aos presépios montados nas redondezas. Esses cor-
tejos cerimoniais localizam-se estritamente dentro do ciclo natalino, que
para muitos vai do período da véspera do natal até o dia 06 de janeiro.
Fora desse período, a função simbólica e devocional está rompida e não
se justifica a necessidade ou o objetivo de sua peregrinação.
Os conflitos simbólicos
189
Como exemplo, vale citar o ocorrido na Festa principal do bair-
ro de Santa Cruz do Rio Abaixo, que se realiza sempre no começo
do mês de maio. No ano de 1999, nas comemorações em que se ce-
lebram homenagens ao "orago" do bairro, as exigências impostas
pelo sacerdote foram refutadas pelos moradores dessa localidade,
que reagiram dizendo que não precisariam de sua autorização para
a realização do evento. O conflito, por outro lado, adquiriu maio-
res proporções. Em contrapartida, o padre ameaçou recolher a cha-
ve da capela, proibindo dessa forma a sua abertura, caso não seguis-
sem suas orientações. A festa realizou-se com atividades bastante
reduzidas em suas funções quer religiosas quer recreativas.
Desestimulados, muitos afirmam que não têm mais vontade de
colaborar com a Igreja, porque esta só pensa na arrecadação e im-
pede a continuidade de práticas rituais muito representativas no
universo religioso dos sujeitos rurais.
A nova cultura religiosa estabelecida na cidade, que implica na
incorporação de novos elementos, devido à orientação de superi-
ores da Igreja, preocupados com a necessidade de "mudar para não
ficar para trás", entra em colisão com os registros das práticas po-
pulares devocionais do catolicismo tradicional, há mais de dois
séculos sedimentado no município.
As mudanças ocorridas neste contexto geram conflitos que re-
percutem as contradições produzidas historicamente pela posição
da própria igreja, que, ao se instalar no local, há mais de dois sé-
culos, incentivou o modelo de devoção que hoje busca transformar.
Com esse posicionamento, as interdições estabelecidas ou impos-
tas pelo sacerdote implicam na tentativa de controlar, ou então, de re-
duzir a autonomia e a presença popular em suas práticas religiosas10 .
Se no espaço urbano os procedimentos diretivos sugeridos pela
Conferência de Medellín tiveram êxito, o mesmo não se pode dizer
com relação ao meio rural. As festas rurais de culto aos santos pa-
droeiros, que são de muita importância para os sujeitos "caipiras",
são também autônomas ou independentes da orientação oficial.
No bairro de Santa Cruz do Rio Abaixo, as atitudes do agente
eclesiástico tiveram relativo sucesso apenas na proibição da aber-
tura da igreja para a realização do evento da "Festa de Santos Reis",
10
Ver a este respeito Leers (1977) e Santos (1978).
190
mas, nem por isso, a festa deixou de se realizar, sendo transferida
para uma propriedade rural.
Aí se verifica que a festa, os seus organizadores e a comunidade
não se submetem ou se subordinam à Igreja, pois no bairro não
acontecem celebrações sacramentais, a exemplo das missas. E con-
seqüentemente, não havendo missas, o "sermão" do padre fica pre-
judicado, não servindo como forma de definir parâmetros de com-
portamento à comunidade.
Mas, se por um lado, a intervenção do sacerdote foi soluciona-
da devido à mudança do local da celebração (da capela - espaço
comunitário e centro da vida religiosa - foi transferida para uma
propriedade particular), a comemoração festiva/devocional vem
também apresentando significativas mudanças, inclusive com a
utilização de recursos tecnológicos no ritual central das festas, pelo
deslocamento dos sentidos tradicionais que estruturam o próprio
ciclo festivo que, de certa forma, o tornam atualmente um espetá-
culo. Essa análise deve também se voltar prioritariamente à Folia
e à festa de Santos Reis do bairro de Santa Cruz do Rio Abaixo. É
o que veremos com maior ênfase a seguir.
Tradição e Modernidade
Conclusão
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Referências Bibliográficas
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