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Avancos e Retrocessos Nas Propostas para o Ensino Da Lingua Portuguesa A Didatizacao PDF
Avancos e Retrocessos Nas Propostas para o Ensino Da Lingua Portuguesa A Didatizacao PDF
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Maria Sílvia Cintra MARTINS
(Universidade Federal de São Carlos)
Abstract: In this paper I point out issues of ideology and power whose influence we are
seldom aware of, although they are always present in everyday classroom contexts. My
main objective is to call attention to the vectors that exert pressure on the teachers’
performance. Based on some concepts and results of my post-doctorate research
(FAPESP 2004/15539-3), I analyze the different Brazilian official guidelines for the
teaching of Portuguese, and discuss the way the recent guidelines adopted in the State
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Trata-se de versão modificada de trabalho já publicado (Martins, 2008 b). Trazemos, aqui, alguns
aprofundamentos a respeito da didatização dos gêneros do discurso.
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Professora do Departamento de Letras/Ufscar. Pós-doutora em Lingüística Aplicada (IEL/Unicamp).
Líder do Grupo de Pesquisa “Ethos, linguagem e construção da identidade (Cnpq) e pesquisadora
vinculada ao Grupo de Pesquisa “Letramento do Professor” (Diretório Cnpq). E-mail:
msilviam@ufscar.br
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of São Paulo, in the form of “Teachers’ Notebooks”, represent a historical set back due
to certain ideological and hegemonic aspects present in these materials. In this process,
I particularly emphasize the so called PCN for the teaching of Portuguese and its focus
on the pedagogical work with discourse genres.
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“Guias Curriculares Nacionais”, publicados no início da década de setenta e conhecidos pelos
professores como “Verdão”.
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Embora exploremos, neste item, o conceito de “letramento restrito”, não nos alinhamos com a
abordagem de Goody e de outros estudiosos como Olson (1997), por exemplo, que entendem o
letramento de forma relativamente independente ou autônoma com relação às condições sócio-históricas
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Dos diversos pontos que mencionamos acima, acreditamos que merece um primeiro
destaque aquele que diz respeito ao descompasso existente entre as prescrições advindas
das instâncias administrativas – e, indiretamente, da academia – e o trabalho efetivo do
professor em sala de aula.
Há uma pressuposição mais ou menos explícita, por parte de porta-vozes das instâncias
administrativas e, muitas vezes, também de pesquisadores nas universidades, de que o
professor que hoje trabalha nas escolas públicas alimenta uma visão endemicamente
tradicionalista, de que ele é resistente ou avesso às inovações e de que, em última
instância, ele seria o grande culpado pelo fato de que, por melhores que tenham sido as
diversas propostas ou normatizações, sempre foram precariamente implantadas. Ou
seja: as academias e secretarias diversas estariam cheias de boas intenções, mas haveria
algo na formação do professor que resiste – entendendo-se, de toda forma, a resistência
como algo negativo – e torna a escola, em certo sentido, impermeável às tentativas de
modernização. Outra voz – proveniente de sindicatos da categoria e muitas vezes
engrossada por vozes da universidade - advoga, por sua vez, que a falha deveria ser
atribuída à falta de condições mínimas para o trabalho pedagógico, seja em função da
baixa remuneração, da jornada de trabalho excessiva ou, ainda, do número excessivo de
alunos em sala de aula. No embate, uns culpam os outros e há quem postule que mesmo
se contempladas todas as condições infra-estruturais inerentes à instituição escolar, seria
insuficiente ou precário o trabalho do professor, em função – de volta ao mesmo
argumento – de sua formação limitada ou inadequada.
Esboçaremos, aqui, uma outra suposição, embasada em abordagem sócio-histórica mais
ampla que se alinha com a forma de análise própria dos assim chamados “Estudos do
Letramento”, ao considerar fatores existentes para além da instituição escolar de forma
isolada, ou de uma comunicação que se daria de forma simples, entre as instâncias
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administrativas, as academias e o professorado.
Conforme entendemos a questão, é preciso tecermos uma reflexão mais abrangente a
respeito da forma de circulação da cultura ou da informação em nossa sociedade, algo a
que o lingüista inglês Norman Fairclough (2001) se refere nos termos da produção,
em que é praticado. Nesse sentido, sentimo-nos próximos de Collins&Blot (2005) que retomam conceitos
desenvolvidos por Goody atribuindo-lhes uma visada sócio-histórica. Vale notar que as questões que
aparecem particularmente neste item foram desenvolvidas por nós no âmbito da pesquisa de pós-
doutorado que desenvolvemos com apoio de bolsa da FAPESP.
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Aproveitamos para lembrar que Street (1993) faz diversas vezes menção a um divisor de águas que
diferencia a tendência presente nos Estudos do Letramento (“New Literacy Studies”), com sua ênfase
sócio-histórica, de outras abordagens a respeito do letramento: trata-se da maneira mais ampla com que o
contexto é considerado.
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Entre outros dados, o Movimento “Todos Pela Educação” aponta para o fato sintomático de que
“a cada dois minutos um aluno entre 15 e 19 anos deixa a escola”. Informação disponível no sítio
http://www.todospelaeducacao.com.br/ (Acesso em 08/06/2008).
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próprio desconhecimento das leis escritas, seja por falta de disponibilidade, ou mesmo
por acesso restrito a iniciados.
Os lingüistas, por sua vez, nessa sociedade ainda relativamente fechada, ora são
acusados de quererem, como o poeta Bandeira, aceitar todos os barbarismos 7 da língua,
ora não são devidamente compreendidos, uma vez que numa cultura de letramento
incipiente (e de democracia incipiente) ainda não pode ser bem aceita uma Gramática
que propõe a liberdade, a maleabilidade, a flexibilidade; mais apropriada a nosso tipo de
sociedade ainda parece ser a Gramática cheia de regras, de normatizações, uma
Gramática que cerca a língua materna com uma aura de idealismo. Uma Gramática para
iniciados.
Defendemos, assim, que o tradicionalismo que reconhecemos na escola é sintoma do
tradicionalismo que nem sempre enxergamos em nossa sociedade e que, por sua vez,
está relacionado com a democratização incipiente de nosso país em termos de falta de
organização da sociedade civil e de falta de acesso generalizado aos bens culturais. Que
a gramática tradicional ainda praticada com tanta freqüência nas escolas é continuidade
da gramática – em sentido amplo, ou seja, no sentido das regras e protocolos sociais
exigidos e praticados em diversos graus na vida cotidiana - presente de forma difusa em
nossa sociedade, fora dos muros da escola. Que essa gramática está entranhada de forma
bem mais profunda e que não se restringe apenas às normatizações da linguagem, mas a
uma série de idealizações próprias de uma exigência maior que atravessa toda a
sociedade e que confere ao letramento de prestígio uma aura de superioridade
intimamente relacionada ao estatuto hegemônico de que parecem desfrutar seus
portadores. Lembramos, ainda, que essa gramática de viés sociológico e antropológico –
em termos de padrões que atravessam a sociedade na forma de idealizações - é também,
em certo sentido, a mesma que se faz presente nas ambientações higienizadas das
novelas televisivas, no corpo escultural de atores, de atletas, dos personagens presentes
nas diversas propagandas. Padrões que estão presentes também de forma difusamente
normativa nas sociedades ditas avançadas, porém é de se supor que o acesso mais
generalizado a uma diversidade maior de práticas letradas complexas traga consigo a
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possibilidade de uma postura de objetivação crítica quanto a essas idealizações.
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“Abaixo os puristas/Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais/
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção/Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
(Bandeira, 1976).
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Vale lembrar, aqui, a desconfiança, de Adorno (2003), com relação à efetiva possibilidade de
emancipação do ser humano. De toda forma, o filósofo aponta para a necessidade de diversificarmos as
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Não vamos aqui nos deter nas questões que dizem respeito à necessidade ou não de se
trabalhar, ainda, com certos preceitos do ensino tradicional da Língua Portuguesa. A
pergunta que queremos, agora, levantar é: em se tratando de gêneros do discurso, o que
significaria trabalhar com metalinguagem?
Para responder a essa pergunta, precisamos, primeiro, lembrar que a própria proposta
das seqüências didáticas não se coaduna com o trabalho genuíno com os gêneros do
discurso, uma vez que, quando buscamos de fato inserir esse trabalho na dimensão
sócio-histórica mais ampla que lhe diz respeito por natureza, é impossível optar por um
gênero, ou postular que primeiro se deve trabalhar com certa modalidade, e depois com
outra. Em vez disso, o que se faz necessário é a criação de situações de interação rica,
que transcendam a sala de aula e mesmo o espaço escolar propriamente dito, de tal
forma que a linguagem possa ser praticada da forma mais próxima de sua dimensão real
– fugindo-se, nesse caso, ao artificialismo que tende a predominar no trabalho escolar.
Essas situações podem comportar, é certo, algum grau de simulação.
Nessa dimensão, o trabalho com textos pertencentes a diferentes gêneros passa a
acontecer como conseqüência de necessidades reais de interlocução. Vamos imaginar,
por exemplo, que seja feito um passeio ao Parque Ecológico do município como parte
de um projeto maior que certo professor venha desenvolvendo com seu grupo de alunos.
Vários gêneros do discurso serão reconhecíveis nas práticas de linguagem que se darão
nesse momento, com o incentivo e a supervisão do professor: as conversas mais
formais, o bate-papo, a entrevista com guardas, as anotações em prancheta, o debate
acalorado em torno de uma questão polêmica (a questão da preservação ambiental, por
exemplo). A volta à escola pode propiciar outras práticas letradas: a escrita de um
relatório, de uma crônica, a editoração da entrevista para eventual publicação no jornal
escolar. Nesse âmbito, mesmo as normatizações lingüísticas passam a ser
contextualizadas dentro do reconhecimento da necessidade de aproximação de certos
padrões quando se trata da publicação de um texto em jornal.
Vale notar que as atividades epilingüísticas também passam a ser uma conseqüência das
atividades discursivas propriamente ditas, ou seja, é à medida que os estudantes vão se
conscientizando das características típicas ou mais típicas de cada gênero, que eles
aprendem a desenvolver esse jogo sutil com a linguagem, a qual permite a comunicação
inter-genérica e as retextualizações que vão fazendo com que determinado texto,
pertencente de início a certo gênero, possa, ao ser trabalhado, passar a ser reconhecido
dentro de outra tipologia.
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De toda forma, além de possíveis categorizações, ainda faz-se necessário pensar, junto
com os estudantes, sobre as questões de ideologia e de poder presentes, em diferente
medida, nos diferentes gêneros, sendo esses fenômenos mais visíveis em determinados
textos – como naqueles pertencentes às esferas da política e da propaganda – porém não
se resumindo a eles. Em função da dimensão reflexiva que este trabalho de
metalinguagem envolve e propicia, não é desejável, de toda maneira, que seja reservado
para alguma fase posterior do processo de ensino e aprendizagem da língua materna.
Em cada fase e com crianças de diferentes faixas etárias, será possível atentar para esse
tipo de reflexão: a cada momento com uma terminologia que lhe seja mais adequada e,
de preferência, em meio das atividades discursivas propriamente ditas, assim como dos
diferentes processos de trabalho com a linguagem, de manuseio, de retextualizações que
estejam em andamento. Neste caso, como não há gêneros do discurso que devam em
princípio ser trabalhados antes ou depois que outros, também não há atividades -
lingüística (ou lingüístico-discursiva), epilingüística ou metalingüística - que precisem,
por natureza, aparecer em primeiro lugar. O processo de ensino e aprendizagem passa a
ser dinâmico e processual, também no que diz respeito a este aspecto.
5. Considerações finais
Discutimos, no decorrer deste trabalho, a forma com que certas diretrizes oficiais de
ensino representam um retrocesso histórico quando comparadas com propostas e
diretrizes curriculares de vinte ou trinta anos atrás. Apontamos, também, para a maneira
com que o letramento do professor é parte do letramento que permeia a sociedade
brasileira como um todo, com seus componentes de poder e de ideologia que tenta
mascarar esse poder, atribuindo ao professor ou aos estudantes toda a responsabilidade
por não conseguirem ultrapassar as barreiras do poder estabelecido.
Entendemos que a análise crítica que leva em consideração o contexto social em sentido
amplo nos permite desvendar componentes que dizem respeito à estruturação social e,
dessa forma, dar conta de certos vetores que, estando presentes na sociedade de forma
difusa, influem, também, seja na atuação do professor em sala de aula, seja na maneira
com que se efetiva o diálogo entre as instâncias administrativas e o corpo docente, ou
entre o círculo acadêmico e as instituições escolares.
Levantamos, ainda, duas questões principais referentes ao ensino e aprendizagem de
Língua Portuguesa nas escolas brasileiras: os gêneros do discurso podem fazer parte de
forma genuína do trabalho escolar? O que significa o trabalho com a metalinguagem
nessa dimensão?
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6. Referências:
ADORNO, THEODOR W. Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
BANDEIRA, MANUEL. Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
COLLINS, JAMES; BLOT, RICHARD. Literacy and literacies: text, power and
identity. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.