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Fragmentação do sujeito, experiência mercantilizada e

centralidade do consumo na modernidade


Fabricio Scaff Galvão∗

Índice 1 Introdução
1 Introdução 1 A Revolução Industrial ocorrida na Ingla-
2 Fragmentação da identidade e exclu- terra no século XVIII dá início a um mo-
são na lógica do mercado 3 vimento, ainda que modesto, de reconheci-
3 Considerações Finais 9 mento do consumidor e sua participação so-
4 Referências bibliográficas 10 cial. Passaram a ser considerados então fa-
tores inerentes ao gosto, modismos e inte-
resse individual pelo consumo de mercado-
Resumo rias e serviços como condições intimamente
Através de uma análise contextual do con- ligadas ao mercado e a atribuição de valores
sumo, partindo dos primórdios da Revolu- às mercadorias (D’ANGELO, 2004). Neste
ção Industrial, chegamos a uma das poucas período a prática do consumo relacionava-
áreas, frente ao movimento de especializa- se com o status social consensual, sem mo-
ção e segregação da experiência na atuali- bilidade entre classes, com mercadorias em
dade, em que os teóricos convergem seus ar- quantidades e variedades restritas e possibi-
gumentos numa postura quase consensual ao lidades de consumo igualmente limitadas.
assumirem o caráter errático, fragmentado e Atualmente a estabilidade das classes e do
volátil do indivíduo. A partir desta caracte- status é fragmentada e pulveriza-se em uma
rística da modernidade, pontuamos a centra- sociedade pautada pelo quase desapego às
lidade das dinâmicas do consumo na socie- tradições. As relações do capitalismo, en-
dade capitalista, e suas implicações para o gendradas pela lógica do mercado, tomam o
dilema da construção da identidade através lugar da imobilidade consensual e das res-
da experiência mercantilizada. trições da sociedade tradicional para assumi-

rem um papel central na contemporaneidade
Aluno regular do programa de pós-graduação, ní-
(SLATER, 2002). Desta forma, o capita-
vel mestrado, em comunicação midiática, da Facul-
dade de Arquitetura, Artes e Comunicação (FAAC), lismo constituí uma das dimensões instituci-
da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus onais mais relevantes da modernidade1 , e sua
Bauru. E-mail: fascaff@gmail.com. 1
Modernidade, alta modernidade e pós-
modernidade serão tratadas aqui como sinônimos de
uma época que refere-se ao padrão de organização
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influência sobre o indivíduo, através dos pro- forma, a tradição constituía uma forma de
cessos de percepção da experiência mercan- abordagem do espaço-tempo, que permitiria
tilizada, em detrimento da experiência perso- inserir as atividades e experiências da soci-
nalizada, é cada vez mais ampla (GIDDENS, edade na continuidade do passado, estrutu-
2002). rando o presente e o futuro a partir de práti-
A criação de padrões de consumo e deter- cas sociais recorrentes. Este caráter reflexivo
minação de públicos-alvo com segmentação pautado na tradição, adquire uma caracterís-
por estilo de vida promovida pela publici- tica diferente na modernidade, onde ocorre
dade, propaganda e marketing, torna-se con- uma ruptura. A experiência recorrente não é
dição necessária para a movimentação rá- mais orientada pelo valor e símbolos do pas-
pida da engrenagem capitalista e manuten- sado e da tradição, mas sim através de um
ção de seu modo de produção. A propa- movimento de constante atualização, na pró-
ganda transforma-se em um poderoso meca- pria base da reprodução do sistema em sua
nismo de atribuição de significado às merca- atualidade.
dorias, fazendo com que, virtualmente, qual- A reflexividade na vida social mo-
quer produto possa ser desenvolvido para ser derna consiste em um movimento de retro-
imbuído de qualquer significação possível, alimentação no qual as atividades e práticas
através da organização de unidades cultu- sociais são constantemente revistas e atua-
rais de significado, que sugerem o valor de- lizadas a partir de si mesmas, alterando as-
sejado ao produto em questão (MCCRAC- sim constantemente o seu caráter, sem gran-
KEN, 1989). des interferências de uma retomada ao pas-
A necessidade de modelagem do con- sado e a cultura tradicional. A rotinização da
sumo, faz com que os setores produtivos vida cotidiana desconecta-se do passado, ou
operem sem considerar a manutenção das pelo menos cria esta aparente ruptura, e não
formas preestabelecidas de comportamento e sanciona-se mais a prática por ela ser tradici-
valores da tradição cultural, buscando atra- onal, apesar de mesmo na mais moderna das
vés de seus imperativos mercadológicos, ob- sociedades a tradição ainda desempenhar um
ter subsídios semânticos para atribuição de papel, este é muito menos significativo, pois
valor a seus objetos, subverter conceitos pre- a tradição que requer uma justificada para se
estabelecidos, em detrimento da criação de validar, representa uma “tradição falsificada,
novos padrões que permitam a livre troca, que recebe sua identidade apenas da refle-
a expansão de mercados e a monopolização xividade do moderno” (GIDDENS, 1991, p.
das condições de produção. 45).
O passado, assim como os símbolos, pos- Observamos, com este breve comparativo
suíam grande valor nas culturas tradicionais, histórico, que uma das principais mudanças
pois a partir deles que eram perpetuadas as sociais das últimas décadas constituí-se na
experiências e atitudes das gerações, desta ascensão e na centralidade dos processos de
consumo. Esta questão é o núcleo opera-
social e vida cotidiana surgida no século XVII na
Europa e que gradativamente foi se tornando mais ou cional das relações sociais do mundo atual-
menos mundial em sua influência (GIDDENS, 1991). mente, “o cimento que liga os sistemas so-
ciais, suas instituições e as experiências co-

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Fragmentação do sujeito 3

tidianas dos indivíduos” (ABERCROMBIE, teresses comuns, compartilhados pelos indi-


1994, p. 58). víduos que dispõe dos recursos3 necessários
para integrá-las.
A centralidade dos valores que atribuímos
2 Fragmentação da identidade e
às coisas é de suma importância para o en-
exclusão na lógica do mercado tendimento das dimensões psicológicas e so-
A cultura de consumo na modernidade é ciais de consumo. Segundo Rokeach (1973),
fragmentada e podemos observar, dentro de valores são crenças que não podem ser pro-
um sistema cultural mais amplo, diversas mi- vadas por um senso convencional, elas são
croculturas2 e tribos, orientadas basicamente “ideais abstratos” que representam o que o
por padrões distintos de consumo e compar- indivíduo entende como “concepção do de-
tilhamento de significados, práticas e valores sejável” (ROKEACH, 1973, p. 10, tradução
sociais (THOMPSON; TROESTER, 2002). nossa).
De acordo com os estudos culturais a mi- As relações do consumidor com os pro-
crocultura refere-se a uma rede de significa- dutos e marcas compartilham grande inti-
dos, estilos, visuais e práticas de estilo de midade na maneira pela qual o indivíduo
vida que são expressões exclusivas de um mantém seu senso de identidade através do
determinado tipo de classe socioeconômica tempo e se define nas relações com ou-
e ambiente social (THORTON, 1997). Sob tras pessoas. Os consumidores desta ma-
a ótica da cultura do consumo e da experi- neira, partem para o consumo de produtos-
ência mercantilizada a proposta de Thorton chave, que estendem, expandem e fortifi-
não se aplica. A microcultura no âmbito do cam seus sensos de identidade dentro de seu
consumo revela um fenômeno social de or- contexto sócio-cultural (AHUVIA, 2005;
dem inversa, não se mostrando limitada a BELK, 1988).
uma esfera socioeconômica particular, pelo O sujeito previamente vivido como tendo
contrario, permeia simultaneamente diversas uma identidade unificada e estável está
posições e ambientes sociais, através de in- se tornando fragmentado; composto não
2
Diversos autores utilizam nomenclaturas dife- de uma única, mas de várias identida-
rentes para classificar uma segmentação dentro da des contraditórias ou não resolvidas. (...)
cultura de consumo, na intenção de delimitar a es- À medida que os sistemas de significa-
pecificidade de subcategorias dentro de um macro-
ção se multiplicam somos confrontados
ambiente cultural que as engloba. Comunidades de
marca, comunidades de consumo, tribos de consumo, por uma multiplicidade desconcertante e
microculturas de consumo e subcultura de consumo cambiante de identidades possíveis (...).
são algumas das classificações que, a grosso modo, (HALL, 1997, p. 12)
não possuem uma linha diferenciadora notável que as
3
separe da intenção de delimitar o caráter fragmentado Neste aspecto devemos considerar que a parti-
da cultura do consumo na contemporaneidade, e quão cipação do indivíduo em determinada microcultura
variado pode ser seu escopo de significados e de cate- através do compartilhamento de interesses se dá por
gorias sociológicas maiores como idade, sexo, etnia, uma sucessão de processos de inserção e contra-
classe social, etc. Adotaremos aqui o termo microcul- tos que requerem experiências, conhecimento, inves-
tura para identificar a segmentação sugerida acima. timento financeiro, tempo, aceitação do grupo, etc
(THOMPSON; TROESTER, 2002).

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Configuram-se ai duas inquietações cen- nar valorizado por aquilo que possui, e não
trais da sociedade capitalista a qual per- por aquilo que é. Como afirma Benson, 2000
tencemos. Uma vez que a construção da (apud D’ANGELO, 2004), o ato de consu-
identidade do indivíduo relaciona-se intima- mir é mais amplo do que sua aparente sim-
mente com seu comportamento e capacidade plicidade, sintetizando a amplitude do con-
de inserção no mercado de consumo, como sumo em nossa sociedade, o autor é categó-
vimos anteriormente, o primeiro problema rico ao afirmar acerca do consumo que “it’s
configura-se frente a crescente pluralidade not about buying, it’s about being”4 .
de opções de consumo, estilos de vida pa-
dronizados através da lógica do mercado e Na sociedade consumida pelas marcas
da sensação de impotência para responder comerciais, o consumidor é uma subje-
as perguntas que se colocam a nossa frente; tividade produzida como um objeto de
Quem sou eu; Quem eu quero ser?; Que es- consumo, através de uma estratégia de
tilo de vida quero para mim? pseudo-singularidade. O que lhe resta
é portar uma identidade transitória lí-
O ponto nevrálgico continua na condição quida, revogável e coletiva à busca fre-
de que “a revolução é uma construção nética pelo consumo, sendo gravada na
de identidade, mas justamente aí surge o sua mente a idéia de que para “ser” é pre-
pânico, proveniente de que toda a iden- ciso ter; uma servidão voluntária consu-
tidade é animadora”, isto é, toda identi- mista pós-moderna, que sublima a marca
ficação é uma força acionária e é justa- à condição de “sujeito” e senha virtual-
mente aí que “as forças identificatórias mente onipotente. (TAVARES, 2004, p.
com os universos isolados, onde o eu é 138)
[somente] identificado a si mesmo”, se
impõem numa diferença estrutural que se Sibilia aponta que:
“prolifera ao infinito, na moda, nos cos-
tumes, na cultura.” Nesse processo, tudo, Assistido pelo poder de processamento
inclusive a alteridade, cai sob a lei do do instrumental digital, o novo capita-
mercado, da oferta e da procura: “na re- lismo metaboliza as forças vitais com
volução é preciso perguntar: ‘eu sou al- uma voracidade inaudita, lançando e re-
guém, mas quem?’ (...) A partir do mo- lançando ao mercado, constantemente,
mento em que é necessário responder por novas formas de subjetividade que serão
si mesmo a essa questão quase ontoló- adquiridas e de imediato descartadas pe-
gica, metafísica, tudo fica flutuante e ale- los diversos targets aos quais são diri-
atório”. Essa é a lógica que o atual glo- gidas, alimentando uma espiral de con-
balismo impõe, que se diferencia de to- sumo de modos de ser em aceleração
das as outras tentativas de dominação de 4
Pode ser traduzido como “não é acerca da com-
povos e civilizações, historicamente co- pra, é acerca de ser”, em referência ao ritual de con-
nhecidas. (RIZZI, 2002) sumo como sendo uma experiência que vai além do
simples ato da compra e remete a dimensões huma-
A dinâmica do consumo altera a inserção nas do sujeito, como na construção do seu eu, da sua
social da pessoa, o sujeito acaba por se tor- identidade.

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crescente. Assim, a ilusão de uma identi- os outros esperam que ele seja [...] Eles
dade fixa e estável, característica da soci- parecem tão semelhantes ao seu entorno
edade moderna e industrial, vai cedendo que só podem ser distinguidos dele com
terreno aos “kits de perfis padrão” ou grande dificuldade. (FROMM, 1960, p.
“identidades prêt-à-porter”, segundo as 160 Apud GIDDENS, 2002, p.176)
denominações de Suely Rolnik em seu
Giddens afirma que se há um consenso em
instigante ensaio “Toxicômanos de iden-
praticamente todos os autores da atualidade
tidade”. Trata-se de modelos identitários
que discorrem sobre o indivíduo na socie-
efêmeros, descartáveis, e sempre vincu-
dade moderna, é o fato de “que o indivíduo
lados às propostas e aos interesses do
experimenta sentimentos de impotência em
mercado (SIBILIA, 2002, p. 33).
relação a um universo social cada vez mais
A segunda inquietação constitui-se no âm- amplo e alheio” (GIDDENS, 2002, p. 178).
bito da capacidade de inserção no universo Quanto mais extensos e diversificados os sis-
do consumo, e relaciona-se com as questões temas sociais, mais o indivíduo vê-se privado
socioeconômicas do indivíduo e políticas de de qualquer possibilidade de autonomia.
seu espaço-tempo. Com o crescente desenvolvimento globa-
Acerca da primeira inquietação apontada, lizante das forças de produção, sob a agenda
como já vimos anteriormente, a moderni- do capitalismo, o indivíduo na modernidade
dade possui caráter desagregador, mas tam- transfere, sem opção de escolha, o controle
bém incorpora características unificadoras. circunstancial da sua vida às influências do-
Nas sociedades pré-modernas a fragmenta- minantes das máquinas e mercados, em de-
ção da experiência não constituía uma im- corrência de uma contínua inversão cultural
portante fonte de ansiedade à época. Atual- em que, afirma Sodré, a multiplicidade de
mente uma grande quantidade de opções de identidades possíveis e seu poder de transfor-
comportamento e de exploração do mundo mação quase que instantânea denotam uma
se apresentam para o indivíduo, numa com- espécie de modulação existencial em que o
plexa variedade de contextos de interação. indivíduo torna-se vulnerável “à irradiação
Alguns constroem suas identidades em torno viral dos signos, e as identidades podem ser
de convicções fixas e são capazes de transitar produzidas como um bem de mercado” (SO-
por diferentes ambientes sociais e incorporá- DRÉ, 1996, p. 179).
los ou reagir a eles. Por outro lado podemos Para Rizzi, esta questão aponta para um
encontrar o indivíduo que se encaixa no con- significado pautado pelas questões político-
texto do conformismo autoritário, em que se- econômicas, em que a dicotomia do capita-
gundo Erich Fromm: lismo versus comunismo, torna-se subjugada
pela característica universal do capital.
O indivíduo deixa de ser ele mesmo; Daí a alcunha de ‘sem pátria’, cujo apa-
adota inteiramente o tipo de personali- nágio vai ser a tecnologia, através da
dade que lhe é oferecido pelos padrões qual se desenvolve a capacidade, cada
culturais; e, portanto, torna-se exata- vez mais sofisticada, de canalizar as pul-
mente igual a todos os outros e ao que sões divergentes, dando a impressão, por

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um lado, de que a homogeneização do mia pessoal, autodefinição, vida autên-


social atingiu seu sucesso e, por outro, tica ou perfeição pessoal são todas tra-
conforme Valéry (1974:48), de que “a duzidas na necessidade de possuir e con-
máquina governa; a vida humana é ri- sumir bens oferecidos no mercado. Essa
gorosamente controlada por ela”. Essa tradução no entanto faz parte da aparên-
é, na realidade, a mais profunda expres- cia de valor de uso de tais bens, e não do
são do fetiche, o auge da fragmentação próprio valor de uso; como tal, é intrinse-
do indivíduo, condição sine qua non para camente inadequada e em última análise
a alienação, em escala mundial, que, (...) conduz à autoderrota, levando ao alívio
foi substituída por esta condição de “pós- momentâneo dos desejos frente à frus-
orgia”, cujo recurso mágico é o poder tração duradoura das necessidades... O
do símbolo sobre o sujeito, e sem con- abismo entre as necessidades humanas e
traposto. (RIZZI, 2002) os desejos individuais é produzido pela
dominação do mercado, o abismo é, ao
Se por um lado os movimentos de globali-
mesmo tempo, uma condição de sua re-
zação produzem mudanças que não estão ao
produção. O mercado se nutre da infeli-
alcance da apropriação individual, por outro
cidade que gera – os medos, ansiedades,
lado este mesmo contexto produz na moder-
sofrimentos da inadequação pessoal que
nidade certas condições de domínio anterior-
induz liberam o comportamento consu-
mente não presentes na vida pré-moderna. A
midor indispensável à sua continuidade.
impotência e a apropriação (ou até mesmo a
(BAUMAN, 1989, p. 189 Apud GID-
reapropriação) se permeiam de maneiras di-
DENS, 2002, p. 183)
versas em contextos e momentos diferentes.
Há uma grande disparidade entre a ansi- Bauman (1999) afirma que vivemos em
edade do indivíduo por uma coerência na uma sociedade de consumo na qual seus
construção da sua identidade, e uma falta de membros são moldados, sem opção de esco-
suporte sócio-cultural para este projeto, em lha, ao dever de desempenhar o papel de con-
função de uma ausência significante da co- sumidores. Para tal os indivíduos não devem
munidade, da tradição e do significado com- nunca ter descanso dos estímulos ao con-
partilhado. O indivíduo experimenta estas sumo, precisam estar sempre alertas e expos-
ausências e suas conseqüências através de tos a novas mercadorias e valores simbóli-
um sistema de valores voláteis, incorporando cos, manterem-se sempre num estado de ex-
a ausência como um vazio emocional crô- citação contínua mas que permita um estado
nico e indiferenciado. de suspeita e alternância de valores, prontos
Desta forma as pessoas são provocadas a a darem lugar a próxima novidade de con-
se inserir em um projeto cíclico (e provavel- sumo.
mente interminável) de periodizados estilos
Para abrir caminho na mata densa, es-
de vida, na busca pela identificação daquele
cura, espalhada e “desregulamentada” da
que irá lhe trazer preenchimento ao vazio ci-
competitividade global e chegar à ribalta
tado anteriormente (CUSHMAN, 1990).
da atenção pública, os bens, serviços e si-
As necessidades individuais de autono- nais devem despertar desejo e, para isso,

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Fragmentação do sujeito 7

devem seduzir os possíveis consumidores seus objetos imbuídos de maior valor sen-
e afastar seus competidores. Mas, assim timental, ou amados, nas próprias palavras
que o conseguirem, devem abrir espaço do autor, sobre qual podemos traçar uma li-
rapidamente para outros desejos, do con- nha paralela ao discurso errático e fragmen-
trário a caça global de lucros e mais lu- tado, quase unânime, que observamos até
cros (rebatizada de “crescimento econô- agora acerca da lógica da substituição de de-
mico”) irá parar. (BAUMAN, 1999, p. sejos, valores e crenças da tradição em prol
86) do consumo desenfreado de bens cada vez
mais descartáveis, substituíveis e de identi-
Baudrillard (1972), afirma que o consumo dades voláteis, de projetos desencontrados.
não reflete uma necessidade natural de mu- As principais descobertas do estudo apon-
dança, mas atua como mecanismo de san- tam que, apesar de uma vasta quantidade de
ção psicológica para inquietações de outra mercadorias serem consumidas através desta
ordem, social e de prestígio. lógica descartável, e substituível, o indivíduo
elege alguns poucos objetos com os quais es-
À medida que se sobe na escala social, os tabelece uma relação de amor, e os utiliza
objetos multiplicam-se, diversificam-se, para solucionar os conflitos e tensões do seu
renovam-se. Muito rapidamente, aliás, projeto do eu, na busca de uma identidade
e sob o signo da moda, a sua circula- que não seja contraditória e momentânea,
ção acelerada acaba por significar e fa- numa tentativa de subverter a realidade, que
zer ver uma mobilidade social que não para Giddens (2002), trata-se de uma eterna
existe realmente. É já este sentido de cer- luta do eu contra as imposições do mercado.
tos mecanismos de substituição: muda-
se o carro porque se não pode mudar o Algumas vezes os objetos amados auxi-
apartamento. É ainda mais claro que a re- liam simbolicamente na demarcação das
novação acelerada dos objetos compensa fronteiras entre o eu e a as identidades
muitas vezes a frustração de uma aspira- que este consumidor rejeita. Em ou-
ção ao progresso social e cultural. (BAU- tros casos estes objetos ajudam a man-
DRILLARD, 1972, p. 39-40) ter simbolicamente uma identidade que
combina aspectos potencialmente confli-
Em um estudo realizado em 1989, tantes do eu – como as tensões entre a
Shulktz, Kleine e Kernan (apud AHUVIA, identidade passada do consumidor ves-
2005), solicitaram aos participantes que lis- rus a identidade que ele quer atingir ou
tassem os sentimentos que lhes vinham à ca- os conflitos sobre quem o consumidor
beça ao pensarem em objetos com os quais deva ser, que são valorizados por agentes
tinham algum tipo de envolvimento emocio- socializadores. Comumente a combina-
nal. A palavra amor foi a segunda mais ci- ção de aspectos conflitantes da identidade
tada, ficando atrás somente do termo felici- faz com que o consumidor assuma com-
dade. promissos maiores, mas ocasionalmente
Ahuvia desenvolveu um estudo focado nas os consumidores criam uma síntese das
identidades dos consumidores a partir de identidades em oposição que lhes dão

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algo mais próximo ao melhor de ambas ralizadas pelo fracasso do sistema socialista,
as identidades. (...) Uma contribuição em detrimento do capitalismo, que por sua
desta pesquisa é a de verificar que nos ca- vez foi se imbricando na sociedade ao ponto
sos estudados os objetos amados derivam de ser aceito e legitimado como o único mo-
da sua capacidade de ajudar a resolver es- delo possível. Nele, as formas de exercício
tes conflitos. (AHUVIA, 2005, p. 182, da cidadania e as reivindicações tradicionais
tradução nossa) se modificam devido à degradação das ins-
tituições e da política tradicional. Por con-
Apesar de ser uma situação de suposta re- seqüência, as formas de participação popu-
tomada de autonomia por parte do indivíduo, lar se enfraquecem, e originam como via de
na construção de uma identidade sólida, em inclusão a sociedade de consumo.
um projeto melhor definido, podemos cons-
tatar que esta realidade, que parte da atribui- Homens e mulheres percebem que muitas
ção de valor especial a um grupo limitado das perguntas próprias dos cidadãos – a
de objetos e mercadorias, é uma prática con- que lugar pertenço e que direitos isso me
flitante em relação às imposições da socie- dá, como posso me informar, quem re-
dade de consumo, não representando uma re- presenta meus interesses – recebem suas
alidade a ser estimulada ou valorizada pelo respostas mais através do consumo pri-
mercado publicitário ou produtores de bens vado de bens e dos meios de comunica-
de consumo, uma vez que o caráter descar- ção de massa do que nas regras abstratas
tável das mercadorias é o que cria a ansi- da democracia ou da participação cole-
edade pela próxima novidade, pelo modelo tiva em espaços públicos. (CANCLINI,
mais novo e por sua vez é o que movimenta 1999, p. 37)
o ciclo de produção e geração de lucros do Nesta dinâmica social, as classes substi-
modelo capitalista. tuem os seus anteriores direitos de cidadania
A segunda inquietação que surge diz res- pelo direito ao consumo, como sendo o âm-
peito à inclusão do indivíduo no mercado de bito do consumo, análogo na contemporanei-
consumo. dade ao seu antecessor tradicional, o âmbito
As atividades da publicidade, propaganda da cidadania. Há sem dúvidas uma pressão
e marketing estimulam (e simulam) que a ca- social midiatizada, de cima para baixo e de
pacidade de acesso aos bens de consumo é baixo para cima, para que direitos tradicio-
praticamente igualitária, numa tentativa de nais de cidadania sejam substituídos pelo di-
omitir a lacuna, cada vez maior, entre os ex- reito de acesso ao consumo, fato que ocorre
cluídos e os incluídos, ou como classifica- por configurar-se como um dos elementos
ria Baumam, entre os seduzidos e os repri- de inclusão social na ordem contemporânea.
midos (ABERCROMBIE, 1994), principal- Observando que os meios de participação
mente na realidade latino-americana. política se apresentam cada vez mais limita-
As reivindicações sociais tradicionais im- dos, o indivíduo, através do chamado poder
buídas de maior valor simbólico, surgidas do de compra, busca sua inserção na sociedade,
pensamento socialista, como trabalho, edu- vislumbrando assim a diminuição de sua ex-
cação e saúde, foram subvertidas e desmo- clusão.

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Fragmentação do sujeito 9

Quanto mais elevada a “procura do consu- do consumidor, em suas decisões cotidianas,


midor”(isto é, quanto mais eficaz a sedução como uma ação totalmente racionalizada e
do mercado), mais a sociedade de consumi- objetiva, em busca de uma compra ideal, sem
dores é segura e próspera”. (...) mais amplo considerarmos os fatores contextuais envol-
e mais profundo é o hiato entre os que dese- vidos no ato do consumo. Os conceitos fun-
jam e os que podem satisfazer os seus dese- damentais e estáticos dos estudos econômi-
jos. (BAUMAN, 1998, p. 55) cos e de marketing, que perduraram por dé-
Como dito anteriormente, Bauman sugere cadas, já não se aplicam mais à centralidade
a existência de dois grupos sociais: os sedu- do consumo na contemporaneidade. Faze-se
zidos e os reprimidos. Os primeiros têm suas necessária à apropriação de conhecimentos
vidas fortemente incorporadas à cultura de de outras ciências para o desenvolvimento de
consumo e dedicadas à aquisição de bens, já uma compreensão mais ampla do objeto em
os reprimidos são caracterizados como aque- si, para que possamos compreender o com-
les que encontram-se excluídos dessa reali- portamento do consumidor e dos atores do
dade da sociedade de consumo, e também mundo do consumo, bem como o papel fun-
apresentam suas vidas relacionadas ou li- damental que este desempenha nas socieda-
gadas de alguma forma ao Estado, mesmo des capitalistas. Para tal a contribuição da
que na busca pela inclusão social através do psicologia, sociologia, antropologia e das ci-
acesso aos bens de consumo. ências da comunicação são de suma impor-
Nota-se no aqui que nem todos são capa- tância.
zes de ingressar no clube do consumo; os Procuramos expor, através do pensamento
excluídos, os pobres, também são produto de diversos autores, algumas das faces da
da cultura de consumo porém não tem pa- modernidade, que nos coloca frente a uma
pel participativo dentro dela. Warde (2002) realidade globalizante, agendada pela cen-
diz que o Estado não cria a fronteira entre tralidade das relações de consumo, numa di-
seduzidos e reprimidos, contudo, ele pode li- nâmica capitalista que envolve o indivíduo
dar de forma diferente com as pessoas que em uma dinâmica complexa de construção
se encontram temporariamente nos diferen- da sua identidade, em conflitos inerentes à
tes lados dessa fronteira. Se o Estado tem época em que vivemos.
impedido os reprimidos de se desenvolve- O processo de construção do valor da mer-
rem e controlarem suas vidas, então aque- cadoria, através da atribuição de unidades de
les que, em contraste, tem os recursos para significado, sua própria produção, em diá-
se envolverem na cultura do consumo neces- logo permanente com as necessidades indi-
sariamente desfrutam de algum poder real viduais e coletivas do indivíduo, dão forma a
(ABERCROMBIE, 1994). um modelo que aliado a fatores socioeconô-
micos (como o trabalho e as estruturas de po-
der), legitimam e constituem o núcleo do ci-
3 Considerações Finais
clo que, permite a proliferação e a manuten-
Ao final da nossa exposição, podemos afir- ção do modo de produção capitalista.
mar com clareza que já não existe mais es- O mercado opera com um discurso, acerca
paço para considerarmos o comportamento da diversidade de mercadorias e da indivi-

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10 Fabricio Scaff Galvão

dualidade do consumidor, que incumbe-se Economia Política do Signo. São Paulo:


da responsabilidade de amenizar os efeitos Martins Fontes, 1972.
de segregação, promovida pela centralidade
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambi-
do consumo em nossa sociedade, e por ou-
valência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
tro lado, de tranqüilizar os consumidores e
1999.
proprietários, assegurando-lhes a manuten-
ção de uma ordem social que lhes permita BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-
manter o status e suas diferenciações através modernidade. Rio de Janeiro: Zahar,
do consumo e seus estilos de vida. 1998.
Como classifica Bauman (1999), os ex-
cluídos do jogo, são vistos à margem da so- BELK, Russel. Possessions and the exten-
ciedade de consumo e caracterizam-se por ded self. Journal of Consumer Rese-
serem consumidores falhos, cujos meios ne- arch, Gainesville, v. 15, p. 139 a 169,
cessários para o ingresso neste universo não set., 1988.
se realizam, impossibilitando a efetivação do CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e
ato de possuir as mercadorias que lhes co- cidadãos. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.
locariam mais próximos de uma inserção no
grupo social desejado, conferindo-lhes uma D’ANGELO, C. André. Valores e signifi-
identidade e a consequente inclusão social cado do consumo de produtos de luxo.
através do poder ter. Nestes moldes, a so- 2004. 209 f. Dissertação (Mestrado
ciedade do consumo produz, como subpro- em Administração), Programa de pós-
duto de suas dinâmicas, um aumento consi- graduação em Administração, Univer-
derável do abismo social que separa aqueles sidade Federal do Rio Grande do Sul,
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