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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 35 : 95-117 FEV.

2010

A REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA:


PROJETO EDITORIAL E RESISTÊNCIA CULTURAL (1965-1968)

Rodrigo Czajka

RESUMO

Nos primeiros anos da ditadura militar, instaurada no Brasil em 1964 por meio de um golpe de Estado,
diversas instituições desarticuladas pela repressão iniciaram um processo de resistência e oposição ao
governo militar. A resistência cultural foi uma das formas consagradas de oposição exercida por intelectu-
ais, artistas, professores, produtores culturais, entre outros, e que consistiu num fenômeno político e cultu-
ral sem precedentes na história do Brasil. Político, porque auxiliou no processo de reorganização dos
partidos de esquerda e na revisão dos postulados ideológicos do seu partido proeminente, o Partido
Comunista Brasileiro. Cultural, porque essa reorganização deu-se, muitas vezes, no âmbito das produções
culturais, no qual a esquerdas constituíram um espaço de contestação e engajamento através das artes e das
atividades intelectuais. Nesse processo é que a Revista Civilização Brasileira representou um espaço im-
portante para a construção dessa resistência cultural de esquerda contra a ditadura militar, entre os anos
de 1965 e 1968. A revista impôs-se com legitimidade política, ao mesmo tempo em que participou ativamen-
te na formação de um mercado de bens culturais sustentado pela chamada “hegemonia cultural de esquer-
da”.
PALAVRAS-CHAVE: imprensa comunista; intelectuais de esquerda; resistência cultural; ditadura militar.

I. INTRODUÇÃO: UMA REVISTA “ACIMA DE A complexidade reside, justamente, no fato de


QUALQUER PARTIDO OU CONCEPÇÃO SEC- que a RCB foi uma revista que esteve intimamen-
TÁRIA” te associada ao processo de mudança que afetou
as esquerdas desde antes do golpe militar e inten-
Muito já se falou da Revista Civilização Brasi-
sificou-se depois dele. Logo, a identidade editorial
leira (RCB) e da sua importância como veículo de
da revista esteve marcada pelos dissensos no in-
resistência das esquerdas na vigência dos primeiros
terior do Partido Comunista Brasileiro (PCB), pro-
anos da ditadura militar no Brasil. Foi uma publica-
eminente partido de esquerda que, desde o final
ção periódica de importância política e cultural, pois
da década de 1950, sofria o efeito das denúncias
constituiu-se num espaço de reorganização das es-
de Kruchtchev sobre os crimes de Stalin, torna-
querdas desagregadas pelo golpe de 1964, ao mes-
dos públicos no XX Congresso do Partido Co-
mo tempo em que seu projeto editorial contemplava
munista da União Soviética (PCUS), em fevereiro
um amplo debate sobre a cultura como um novo
de 1956. Também a reorganização da
campo de articulação das resistências. Em virtude
intelectualidade de esquerda, em geral, e da
destes, entre outros fatores, um número significati-
intelectualidade comunista, em especial, abriram
vo de pesquisas debruçou-se sobre a documentação
novas possibilidades àqueles que deixavam de
produzida por seus editores e colaboradores. Docu-
gravitar em torno do partido e apostavam em no-
mentos que não somente confirmam sua importân-
vas formações culturais, possibilitando a emer-
cia como objeto de pesquisa e do interesse de pes-
gência de novos núcleos intelectuais fundamenta-
quisadores, bem como revelam a complexidade de
dos no princípio da autonomia e independência
uma conjuntura específica de produção cultural im-
intelectual2.
pressa no projeto editorial da RCB1.

2 O conceito de formação cultural de Raymond Williams


1 Dentre os trabalhos mais recentes, deve-se mencionar:
é pertinente para se pensar as relações e as redes entre
Silva (1993); Motta (1994); Vieira (1996); Azevedo (1999); intelectuais, bem como o alcance e a influência que eles
Serpa (2001); Czajka (2005); Mariz (2005); Neves (2006); exerciam a partir de seus pólos de produção cultural. A
e Silveira (2007). questão central levantada por Williams é que “temos que

Recebido em 23 de setembro de 2008.


Aprovado em 9 de dezembro de 2008.
Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 18, n. 35, p. 95-117, fev. 2010
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A REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

Acrescido a esse contexto amplo de mudan- revista não se tratava de um órgão de imprensa a
ças da configuração das esquerdas no Brasil, em serviço do partido. Mais que óbvio e como sub-
face à modificação das diretrizes políticas e ide- terfúgio para escapar ao policiamento militar so-
ológicas do PCB, a RCB ainda cumpriu o papel bre PCB, entidades e órgãos ainda que vinculados
de ser um dos principais porta-vozes dessa ao partido, muitas vezes, ocultavam suas filiações
intelectualidade contra a ditadura militar. Isto é, para evitar qualquer tipo de repreensão por parte
como sintoma expresso da ambigüidade política dos governos militares. Vale lembrar que apesar
e ideológica desse contexto, a revista voltou-se do partido contar com militantes em atividade per-
desde o seu primeiro número para análise crítica manente, reuniões e congressos desde 1947, o
das orientações programáticas das esquerdas. PCB atuava como partido ilegal não reconhecido
Concomitantemente, exercia oposição aberta à oficialmente, logo, sem o direito de participar de
ditadura militar e ao desmantelamento das orga- qualquer pleito eleitoral ou ter representantes sob
nizações culturais, vinculadas ao “inimigo comu- sua sigla.
nista” pelos militares. A partir desses aspectos,
Desse modo, tanto a revista quanto a própria
os editoriais da RCB procuravam representar uma
editora de propriedade de Ênio Silveira, assumi-
linha de análise e exposição não-sectária destes
ram imediatamente uma postura que demonstras-
fatos (PRINCÍPIOS E PROPÓSITOS, 1965, p.
se essa autonomia em relação ao PCB. Uma auto-
3-4) e ainda tentavam delimitar um novo campo
nomia que, por sua vez, cumpria uma dupla de-
intelectual ao propor a articulação de artistas e
terminação: isentar-se da vinculação (ainda que
intelectuais dispersos no espaço público, sem
indireta) com o PCB, bem como reivindicar a in-
uma referência organizacional direta após o gol-
dependência necessária para tecer a crítica às di-
pe.
retrizes lançadas pelo Comitê Central (CC) do par-
Mas apesar de a RCB manter uma posição tido e os seus desdobramentos nas diversas ins-
distinta, com projeto editorial e orientações pró- tâncias da vida partidária e social. A propósito dessa
prias construídas no epicentro das transforma- questão, Ênio afirmava: “o que disse desde sem-
ções políticas e ideológicas, ela não efetuou ne- pre, e faço muita questão de enfatizar, a editora
cessariamente uma ruptura com o ideário [Civilização Brasileira] era uma editora com uma
pecebista – muito embora as decisões do partido linha de esquerda, não exclusivamente, ortodoxa-
tenham sido objeto de análise e crítica em deba- mente de esquerda, mas sobretudo e ortodoxa-
tes fomentados pela revista, sem assumir uma mente numa linha não partidária. Porque eu não
característica político-partidária. A revista era queria de maneira nenhuma ser submetido a limi-
coordenada por um conselho editorial, na sua tações e restrições partidárias que me poderiam
maioria composto por membros do PCB ou pró- tolher todo o desejo de contribuir para o areja-
ximos dele, o que demonstrava, por sua vez, a mento dos espíritos no Brasil” (SILVEIRA, 1992,
proximidade do periódico com o partido. Até p. 62) .
porque era conhecida a política de imprensa do
Em certa medida, foi a aposta nessa autono-
PCB, que mantinha uma ampla rede de publica-
mia mencionada por Ênio que possibilitou à sua
ções (editoras, gráficas e meios de comunica-
editora e à publicação periódica um respaldo da
ção), a fim de possibilitar a produção e circula-
intelectualidade que se articulou em torno da RCB.
ção do ideário comunista e com isso fortalecer a
Outras publicações do gênero coexistiram ou ha-
oposição política.
viam antecedido a publicação da editora Civiliza-
Entretanto, a posição assumida pela RCB foi a ção Brasileira, como é o caso da revista
de distanciamento em relação ao PCB e de que a Brasiliense3, mas nenhuma delas conseguiu ta-
manha repercussão entre as esquerdas, a ponto

lidar não só com instituições gerais e suas relações típicas, 3 No universo dos debates intelectuais, uma das primeiras
mas também com formas de organização e de auto-organi- publicações que procuraram abordar questões em torno do
zação que parecem muito mais próximas da produção cul- problema da cultura como espaço de organização intelectu-
tural” (WILLIAMS, 1992, p. 57). Tais processos de “auto- al foi a revista Brasiliense, editada entre 1955 e 1964, per-
organização” implicam modelos diferenciados de análise e fazendo 51 números. Sob a direção de Caio Prado Júnior e
subentendem-se à complexidade original das agremiações Elias Chaves Neto, sempre se manteve “ideologicamente à
culturais e intelectuais. esquerda, procurando entender em profundidade a estraté-

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de ser lembrada até os dias de hoje como impor- tada, sobretudo, pelo chamado “esquerdismo” do
tante veículo de resistência cultural ao regime governo de João Goulart (1961-1964).
militar na década de 1960. Isso, em parte, deve-
A politização de temas como os da cultura, foi
se também pelo modo como a publicação se auto-
um dos sintomas mais evidentes daquele contex-
representou desde o princípio: como um fórum
to, que vivia uma efervescência de suas entidades
de debates e de articulação das forças democráti-
de esquerda ou vinculadas à esquerda, por força
cas.
dos próprios acontecimentos no início da década
Esse propósito, ao longo da existência da re- de 1960. Sindicatos representados pelo Comando
vista, possibilitou a articulação de uma Geral dos Trabalhadores (CGT), entidades estu-
intelectualidade progressista que, com interven- dantis como a União Nacional dos Estudantes
ções por meio da RCB, pôde construir a sua visi- (UNE), assim como o Instituto Superior de Estu-
bilidade pública e sua legitimidade, frente ao avanço dos Brasileiros (ISEB), o Centro Popular de Cul-
da repressão patrocinada pelos militares, bem tura da União Nacional dos Estudantes (CPC da
como ao controle mantido pelo PCB sobre seus UNE) e o Comando dos Trabalhadores Intelectu-
militantes. Foi, pois, esse aspecto que atribuiu ao ais (CTI), compartilharam direta ou indiretamen-
periódico a identidade e a importância que se man- te das propostas do governo Goulart, da politização
tiveram mesmo depois do encerramento de suas das discussões e da participação crescente de di-
atividades, com o Ato Institucional n. 5 (AI-5). É versos setores da sociedade brasileira.
nessa perspectiva de análise que cabe entender
Esse processo acelerado de transformações,
“como essa discussão no espaço público das pu-
de reorganização das estruturas políticas e ideoló-
blicações de Ênio Silveira repercutiu nos grupos
gicas e, principalmente, o condicionamento do
de esquerda e centro-esquerda, em particular o
Estado às mudanças, propiciou o surgimento de
PCB, possivelmente dando elementos valiosos a
novos atores na cena política e cultural do país.
algumas áreas suas para sobreviver às tempesta-
Na medida em que a politização da sociedade fa-
des daqueles anos difíceis” (SANTOS, 2001, p.
zia-se na intenção de se constituir um projeto de
264).
transformação da realidade brasileira, tal projeto
II. INVENÇÃO E POLITIZAÇÃO DA CULTU- tinha raízes numa “cultura nacional”, que, por sua
RA: O ISEB E O CPC DA UNE vez, declarava-se também “autenticamente popu-
lar”. E essa justificação, por meio de noções como
Entre março de 1965 e dezembro de 1968 fo-
“nacional”, “popular”, “autenticidade”, entre ou-
ram publicados os 22 números da RCB. O gradu-
tras, aconteceu não somente em função do arran-
al processo de construção de sua identidade edi-
jo das ideologias em torno do aparelho estatal, no
torial esteve intimamente relacionado às transfor-
início da década de 1960, mas também pela for-
mações sofridas pela sociedade brasileira desde
ma como tais conceitos foram concebidos no fi-
final da década de 1950. Desde as denúncias de
nal dos anos 1950, na formulação de um projeto
Kruchtchev (em 1956), passando pela redação da
nacional de transformação da realidade brasileira
Declaração de março do PCB (em 1958), pelas
(TOLEDO, 1997).
discussões sobre o parlamentarismo (entre setem-
bro de 1961 e janeiro de 1963), pela articulação Essa movimentação e euforia vividas por enti-
do Plano Trienal (entre fevereiro e dezembro de dades e organizações de esquerda, espelhadas na
1963), até a agitação política pelas Reformas de mobilização de massas, criaram um novo e com-
Base (em março de 1964), cuja participação polí- plexo quadro político-ideológico. O desvio à es-
tica de inúmeros setores da sociedade foi fomen- querda do governo de Goulart e a sua consonân-
cia com as teses do PCB sobre as reformas de
base tornaram-se palavras de ordem nos últimos
comícios de João Goulart. Em sua maioria, pro-
gia do nacionalismo de esquerda de colaboração de classes, postas de reformas extraídas da Declaração so-
entre o proletariado e a burguesia nacional. Nesse sentido, bre a política do Partido Comunista Brasileiro
a cultura estrangeira era um fator de alienação da realidade
(NOGUEIRA, 1980), mais conhecida como De-
nacional. A intenção era promover a aproximação dos agen-
tes históricos com a cultura nacional. Logo, se construiu claração de março, que não somente auxiliaram,
uma bipolaridade entre o nacionalismo versus o mas justificaram a ascensão do movimento de
cosmopolitismo” (AQUINO, 1996, p. 98). massas durante o seu governo.

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Essa mesma euforia repercutiu também na priedade do vir a ser. Neste sentido, como afir-
produção cultural. Muito embora a mobilização ma Ortiz, “eles privilegiarão a história que está
das massas tivesse um caráter político evidente, por ser feita, a ação social, e não os estudos his-
grupos de intelectuais e artistas dispuseram-se a tóricos; por isso, temas como projeto social, in-
referendar aqueles acontecimentos com a legiti- telectuais, se revestem para eles de uma dimen-
midade que lhes eram próprias. Ou seja, o movi- são fundamental” (ORTIZ, 1986, p. 45-46). Essa
mento político de ascensão das massas no início abordagem do conceito de cultura abriu novas
da década de 1960 procurava justificar-se a par- perspectivas de interpretação dos problemas bra-
tir de elementos de uma nova legitimidade, nesse sileiros e fortaleceu ainda mais a importância de
caso, a legitimidade de uma nova cultura que fos- entidades e associações intelectuais na constitui-
se, além de nacional, popular. Daí que a partici- ção da identidade nacional.
pação política e o engajamento de intelectuais e
Além do ISEB, a UNE e, em particular, o seu
artistas estavam condicionados à construção de
núcleo de produção cultural, o CPC, foram as ins-
um referencial de cultura popular que também
tituições político-culturais que absorveram e res-
fosse nacional. Era necessário constituir um
ponderam àquelas mudanças no início da década
referencial popular a partir da cultura, pois por
de 1960. O percurso destas instituições, a influ-
meio dele seria possível contemplar o “povo” no
ência delas exercida sobre a vida política e cultu-
interior de uma política voltada para a transfor-
ral brasileira, já foi detalhadamente investigada em
mação da realidade nacional (SODRÉ, 1963).
inúmeras pesquisas4. Todavia, importante reafir-
Essa nova condição permitiu compor um amplo
mar é que tanto com o ISEB quanto com o CPC
quadro de lutas sociais, engendradas pelas no-
da UNE, o processo de “esquerdização” destas
vas condições de organização política e ideológi-
instituições durante o governo Goulart deixou de
ca das organizações de esquerda, contra as “es-
ser apenas encarado como um desvio para ser
truturas arcaicas” de uma sociedade que avan-
concebido como um problema de polícia e assun-
çava aos poucos, no sentido da democratização
to de segurança nacional. O desvio à esquerda
dos bens sociais e culturais. Assim, em conso-
favoreceu, por um lado, a politização cada vez
nância com a política cultural do PCB, “no pré-
mais intensa dessas entidades e o ISEB, em espe-
64, o nacional, correlato da luta anti-imperialis-
cial, que desde 1956 filiava-se a uma tradição de
ta, reivindicava a afirmação de uma arte não-ali-
pensamento fundada nas teses do projeto
enada que refletisse a realidade brasileira que se
desenvolvimentista, formuladas durante o gover-
queria conhecer para transformar. O popular, por
no de Juscelino Kubitschek (1956-1961), a partir
sua vez, acenava para a democratização da cul-
de 1961, tornou-se um pólo de discussão sobre
tura e a conseqüente crítica à nossa tradição
os rumos do nacionalismo de esquerda e prosse-
elitista de uma arte concebida como ‘ornamen-
guiu até 1964, naquilo que Nelson Werneck Sodré
to’, como ‘intimismo à sombra do poder’”
chamou de “esquerdismo isebiano” (SODRÉ,
(FREDERICO, 1998, p. 277).
1977).
Com isso, tornou-se necessário aos intelec-
Quanto ao CPC da UNE (fundado em dezem-
tuais e artistas ligados a essas instituições, arti-
bro de 1961), sua estreita relação com as esquer-
cular um novo temário correspondente à reorga-
das ficava evidente na produção intelectual e ar-
nização dos grupos de esquerda. Foi o que acon-
tística de seus integrantes e, sobretudo, com a
teceu, por exemplo, com o ISEB a partir do
publicação do Manifesto do CPC, em março de
momento em que as discussões sobre o marxis-
1962, por Carlos Estevam Martins. Muitos inte-
mo, associado ao problema do desenvolvimento
grantes do CPC, por sua vez, tinham proximidade
nacional, ganharam espaços nos cursos promo-
com o ISEB, sobretudo em virtude da vinculação
vidos pela instituição. Segundo Renato Ortiz, al-
ideológica que favorecia inúmeras discussões e
guns grupos de intelectuais, sobretudo do ISEB,
ao constituírem uma teoria do Brasil, retomaram
a temática da cultura brasileira por meio de uma 4 Sobre o ISEB, ver: Toledo (1977); Mota (1980); Franco
posição epistemológica, substituindo, aos pou-
(1985); Pécaut (1990); Oliveira (1995); e Pereira (2002).
cos, expressões como “aculturação” por “trans- Sobre a UNE, ver: Chauí (1983); Fávero (1983); Berlinck
plantação cultural” ou “cultura alienada”, com a (1984); Ortiz (1986); Hollanda (1992); Barcellos (1994); e
intenção de incutir na questão da cultura a pro- Garcia (2007).

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seminários promovidos tanto pelo ISEB quanto ‘reformas de base’, os isebianos não só se apro-
pelo CPC5. Segundo o poeta Ferreira Gullar (na ximaram de organizações como o Partido Comu-
época, integrado às atividades do CPC), “havia nista, que animavam esta campanha, como tam-
um grupo que era ligado anteriormente ao ISEB, à bém redefiniam a posição dos intelectuais. Ao in-
Editora Civilização Brasileira, e um segundo gru- telectual com vocação natural para representar a
po formado no próprio CPC, que era um grupo nação, sucede-se o intelectual ‘engajado’ ao lado
mais jovem. Do primeiro grupo, por exemplo, das classes populares”. (PÉCAUT, 1990, p. 139).
surgiram os colaboradores dos Cadernos do Povo
Foi este posicionamento que, em certa medi-
Brasileiro (1962), os organizadores do Comando
da, influiu na decisão do governo Castelo Branco
dos Trabalhadores Intelectuais (1963) e o Conse-
(1964-1967) de encerrar as atividades do institu-
lho da Revista Civilização Brasileira (1965) e,
to por Decreto presidencial e investigar todos os
do segundo grupo saiu o Teatro Opinião (1964).
seus integrantes num extenso Inquérito Policial-
Percebe-se que o ISEB influenciava muitos seto-
Militar, o IPM do ISEB. O IPM 481, como tam-
res da produção cultural e intelectual antes do golpe
bém era conhecido, continha 30 volumes e perfa-
militar de 1964. O pessoal do CPC da UNE tinha
zia aproximadamente oito mil páginas de depoi-
ainda Carlos Estevam Martins que era ligado ao
mentos, documentos apreendidos, livros, recor-
ISEB [...]. Nesse sentido, o ISEB trazia um certo
tes de jornais, fotografias etc6.
suporte, uma visão crítica da sociedade burguesa
brasileira, a luta antiimperialista, e colocava uma Assim, a partir de abril de 1964 não havia mais
série de questões que até aí essa intelectualidade condições de se demandar do Estado as medidas
jovem não tinha conhecimento, e bebeu isso no necessárias para a manutenção de uma estrutura
ISEB” (Gullar apud VIEIRA, 1996, p. 93). organizacional como a do ISEB. Consumado o
golpe militar, entidades, organizações, grupos e
Nesse sentido, o ISEB destacou-se no início
núcleos intelectuais viram-se sem apoio, sem uma
da década de 1960 pelo fato de congregar muitos
política patrocinada pelo Estado que fomentasse
dos intelectuais que buscavam reunir-se sob as
os setores de produção e agitação cultural entre
novas condições de articulação das esquerdas. A
as esquerdas. A desmobilização forçada pelo novo
instituição serviu de espaço aglutinador de algu-
regime resultou na ausência absoluta – pelo me-
mas de suas tendências, o que se acentuou dra-
nos, num primeiro momento – de um instrumen-
maticamente, a ponto do instituto ser acusado de
tal político-jurídico junto ao Estado; por seu tur-
promover a “comunização” da sociedade brasilei-
no, implicou também a falta de legitimidade das
ra, por meio de seus cursos e de sua influência
entidades, antes expressa na vontade popular
junto ao poder executivo. De qualquer maneira, o
construída pelo movimento de massas em torno
ISEB encontrou no artifício da politização de sua
das reformas. Destituiu-se a legitimidade das es-
estrutura a forma de responder à euforia vivida
por artistas e intelectuais que almejavam a cons-
trução de uma identidade nacional-popular, além
de encontrar nas reformas de base e no trabalhismo 6 O IPM do ISEB de número 481, instaurado em 19 de
do governo Goulart, meios para conduzir o qua- junho de 1964, trazia na sua Delegação de Poderes que “o
dro heterogêneo das organizações políticas e ide- Marechal R/1 Estevão Taurino de Rezende Neto, tendo em
ológicas em jogo. A respeito, Daniel Pécaut afir- vista a Portaria n° 1, de 14 Abr 1964, do Comando Supre-
ma que “aliando-se ao movimento em favor das mo da Revolução que o encarregou da instauração do Inqu-
érito Policial Militar, a fim de apurar os fatos e as devidas
responsabilidades de todos aqueles que no País tenham
desenvolvido ou estejam desenvolvendo atividades
capituláveis das Leis que definem os crimes militares e os
5 Os seminários do ISEB, por exemplo, foram realizados crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social, resolve,
entre 1956 e 1959 nas dependências do próprio instituto, [...] delegar ao Cel. Prof. 1G-202.41 GERSON DE PINA
com o apoio do Ministério da Educação e Cultura e tinham poderes para presidir o Inquérito Policial Militar a fim de
por finalidade colocar em pauta os grandes temas da reali- apurar os fatos e devidas responsabilidades de todos aque-
dade brasileira. Alguns destes seminários foram publicados les que, no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB),
numa coletânea, ainda em 1956, sob o título de Introdução Guanabara, tenham desenvolvido atividades capituláveis
aos problemas do Brasil, organizada pelo então Diretor nas Leis que definem os crimes militares e os crimes contra
Executivo do ISEB, Roland Corbisier. Ver Corbisier (1956; o Estado e a Ordem Política e Social” (INQUÉRITO PO-
1959). LICIAL-MILITAR DO ISEB, 1964-1965a, p. 7).

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querdas, assim como seus espaços de represen- do orquestrado por setores militares e endossado
tação política e ideológica. Ainda que o ISEB ou a por parte da sociedade civil, que via no comunis-
UNE anteriormente constituíssem fóruns com mo um grande mal a ser combatido, o ano de 1965
grande poder de intervenção e de influência políti- aparece nas bibliografias consagradas como o iní-
co-cultural em diversos setores da sociedade, seu cio de um período fecundo de renovação política
respaldo oficial encontrava-se no Estado, pois, e cultural. Ainda que o regime militar perdurasse
como argumenta Ortiz, “os intelectuais, ao se com suas instâncias reguladoras, havia certo oti-
voltarem para o Estado, seja para fortalecê-lo como mismo em relação aos projetos de transformação
o fizeram durante Vargas, seja para criticá-lo, política e social. Um ano que prometia mudanças,
como os isebianos, o reconhecem como espaço pois eleições diretas para governadores eram es-
privilegiado por onde passa a questão cultural” peradas em todo território nacional. E apesar da
(ORTIZ, 1988, p. 51). “repressão restrita e branda”, fazia-se presente uma
intensa produção cultural, realizada de forma siste-
Mas o que se deve acentuar é que o
mática tanto pela grande indústria cultural quanto
desmantelamento destas instituições não fez com
pelos produtores culturais independentes, estimu-
que os projetos antes discutidos fossem totalmente
lados por este otimismo e pelos prometidos ven-
abandonados ou desencorajados, em virtude da
tos de mudança. Em grande medida, foi a reper-
repressão a partir de abril de 1964. Aos poucos,
cussão deste otimismo – resíduo ideológico re-
constatou-se a crescente reestruturação dos movi-
sultante da articulação das formações culturais,
mentos de esquerda, a partir da criação de novos
das produções musicais, teatrais, cinematográfi-
espaços de articulação das oposições. Ou seja, ain-
cas etc. – que possibilitou a cristalização de ícones
da que o Estado ou os partidos políticos não figu-
da cultura de resistência, tanto na década de 1960
rassem como elementos centrais na organização
como nas décadas subseqüentes.
do debate sobre os rumos da questão nacional (iden-
tidade, cultura, economia, política, educação, en- Uma das primeiras análises, senão a primeira,
tre outros), continuava presente a heterogênea com- que enfocou esse fenômeno no interior dos movi-
posição das esquerdas, agora equacionando novos mentos culturais de esquerda, foi a de Roberto
problemas, nas mais diversas formas de interven- Schwarz em seu ensaio Cultura e política, 1964-
ção no espaço público (CZAJKA, 2005). 1969, publicado originalmente na França e trazido
ao público brasileiro em 1978 (SCHWARZ, 1978,
Por outro lado, esses fatores estiveram pre-
p. 61-92). Essa recepção tardia justifica-se basi-
sentes não somente pelo arranjo das condições
camente em um aspecto fundamental: com a aber-
históricas da produção intelectual brasileira naquele
tura democrática, a partir da segunda metade da
momento, mas, sobretudo pela forma como os
década de 1970, houve também uma abertura ao
debates originários nos grupos cepecistas e
debate que possibilitou a muitos intelectuais, in-
isebianos foram encaminhados até o ano de 1965.
terpretações e revisões dos postulados políticos e
Ou seja, a composição heterogênea das esquer-
ideológicos sustentados na década anterior. O for-
das e, conseqüentemente, dos “grupos” de inte-
talecimento de novos espaços políticos e o
lectuais e artistas, favoreceu a formação comple-
surgimento de novos agentes de transformação
xa de núcleos de resistência cultural, que muitas
social, por sua vez, permitiram uma “leitura dis-
vezes tinham visões distintas sobre a realidade
tanciada” e mais crítica sobre os eventos vividos
nacional, mas que compartilhavam do mesmo es-
pelas esquerdas durante os primeiros anos da di-
paço de discussão, contra o militarismo, a favor
tadura militar. Nesse sentido, a estruturação das
da liberdade e da cultura. Esse mesmo panorama,
universidades como pólos de pesquisa e o fortale-
com as devidas ressalvas históricas, via-se repre-
cimento e a autonomia do ambiente acadêmico
sentado nas produções artísticas ainda no ano de
propiciaram a produção de inúmeras análises acer-
1962, com as dissidências estéticas e ideológicas
ca da realidade brasileira, da política nacional, da
em torno do manifesto do CPC e da esquerdização
cultura, criando condições para um debate muito
do ISEB, ambas fechadas pelo governo militar.
rico e importante do ponto de vista científico.
III. HEGEMONIA CULTURAL, RESISTÊNCIA
O ensaio de Schwarz foi publicado no Brasil
E MERCADO
nesse contexto de renovação dos debates, na se-
Se no Brasil o ano de 1964 foi difícil do ponto gunda metade da década de 1970. Entre as hipó-
de vista político, marcado por um golpe de Esta- teses desenvolvidas, talvez a mais significativa que

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permaneceu no núcleo de sua análise, seja o pro- [...], recomendam desesperadamente, ao povo,
cesso de formação daquilo que o autor denomi- que compre o que puder, enquanto puder [...].
nou de “hegemonia cultural de esquerda”. Para Mas eu não era autor, nem crítico quando entrei
Schwarz, o dado mais interessante observado entre no Teatro de Arena [...]. Era um espectador como
as esquerdas, em especial no modo como suas todos os outros. Talvez mais sofisticado do que
produções artístico-culturais foram concebidas a muitos deles. Ou politizado, se quiserem. E o que
partir do golpe de 1964, é “que a presença cultu- vi e ouvi me causou uma profunda satisfação, ani-
ral da esquerda não foi liquidada naquela data, e mando-me a prosseguir no trabalho que tenho pro-
mais, de lá para cá não parou de crescer” (idem, curado realizar, na imprensa e fora dela. E por isso
p. 62). Ou seja, ainda que a repressão exercida considero que a esquerda festiva está cumprindo
pelos governos militares fosse recrudescente, que uma tarefa da maior importância. Não sou eu, ape-
fossem extintas diversas entidades e organizações nas, que reconhece isso” (ALVES, 1965, p. 6).
de esquerda, que houvesse a pulverização do Par-
A diferença entre as análises de Alves e
tido Comunista Brasileiro (PCB) e a fragmentação
Schwarz é bastante tênue e auxilia a compreender
dos partidos políticos em pequenos grupos de
melhor o fenômeno da produção cultural das es-
militantes que alimentavam as guerrilhas urbanas,
querdas no contexto da repressão. Embora o en-
e que, finalmente, ocorresse o fechamento dos
saio de Schwarz tenha sido consagrado pela
espaços de discussão e debate das esquerdas, ha-
acuidade teórica ao abordar tais problemas por
via ainda assim uma vasta produção cultural e artís-
meio de um prisma sociológico, vinculando sua
tica voltada para um público afeito, interessado
análise a questões mais amplas da produção cul-
nos temas clássicos da esquerda e do engajamento
tural na sociedade brasileira na década de 1960,
cultural.
sua escrita, ainda assim, está imersa nos debates
Como escrevera Schwarz, “apesar da ditadu- polimórficos sobre o papel da cultura, dos artis-
ra da direita há relativa hegemonia cultural de tas e dos intelectuais na oposição ao regime mili-
esquerda no país. Pode ser vista nas livrarias de tar. A popularização desse ensaio apenas no final
São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estréias da década de 1970 conferiu à análise um estatuto
teatrais, incrivelmente festivas e febris, às vezes crítico e revisionista que, de certa forma, imuni-
ameaçadas de invasão policial, na movimentação zou-o no ambiente acadêmico ao considerar a pro-
estudantil ou nas proclamações do clero avança- dução e a circulação de bens culturais das esquer-
do. Em suma, nos santuários da cultura burguesa das por meio do conceito de hegemonia. Isso
a esquerda dá o tom. Esta anomalia – que agora ocorreu devido ao próprio modo como se deu a
periclita, quando a ditadura decretou penas recepção do ensaio de Schwarz. Ou seja, sua lei-
pesadíssimas para a propaganda do socialismo – tura dos fenômenos das esquerdas culturais na
é o traço mais visível do panorama cultural brasi- década de 1960 coincidiu com a forma pela qual
leiro entre 1964 e 1969” (ibidem). se empreendiam revisões sobre a vida nacional,
sobre o papel das esquerdas e dos intelectuais no
Schwarz não foi o primeiro a notar esse as-
surgimento dos novos movimentos sociais com a
pecto “festivo” das esquerdas em concomitância
abertura democrática, patrocinada pelo governo
repressiva dos primeiros governos militares. No
de Ernesto Geisel (1974-1979). Esse foi o princi-
jornal carioca Correio da Manhã, no ano de 1965,
pal uso conferido ao ensaio de Schwarz.
o jornalista Hermano Alves já havido tecido alguns
comentários sobre a produção cultural de esquer- Entretanto, seu texto também possui o perfil
da, num artigo intitulado A esquerda festiva. Em de fonte ou documento, assim como o de Hermano
tom confessional, Hermano Alves escrevia: “Faço, Alves – e daí a similitude entre ambos no que
agora, por lembrar-me da emoção que causou, concerne à análise da resistência e hegemonia
outro dia, o espetáculo Liberdade Liberdade, en- culturais. A diferença entre as duas perspectivas
cenado aqui no Rio, pelo Teatro de Arena de São está no fato que Schwarz definiu seu objeto a partir
Paulo. A liberdade parece renascer no Centro Co- da formação de uma “hegemonia cultural” das
mercial de Copacabana (não deixa de haver um esquerdas, em vez de constituição da “resistência
certo simbolismo em tudo isso), entre quatro pa- cultural” ao regime militar, como fez Alves. A ques-
redes de um concreto despido e bruto [...]. Do tão, analisada do ponto de vista da “resistência”,
outro lado da rua, no intervalo, via-se um cartaz apenas estaria centrada na constatação da

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A REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

contraposição de forças operadas por dois gru- ciais. Os intelectuais são de esquerda, e as maté-
pos distintos, entre os quais a disputa em si mes- rias que preparam de um lado para as comissões
ma seria o epicentro das tensões e da própria re- do governo ou do grande capital, e de outro para
sistência. O jogo entre tais forças – a saber, o as rádios, televisões e os jornais do país, não são.
governo militar e as oposições – estaria determi- É de esquerda somente a matéria que o grupo –
nado por disputas localizadas e esgotadas no inte- numeroso a ponto de formar um bom mercado –
rior dos grupos em que foram geradas. A resis- produz para consumo próprio” (SCHWARZ, 1978,
tência exercida dessa maneira, apenas por grupos p. 73).
sociais ou agremiações políticas específicas, não
Dessa forma, a hegemonia cultural de esquer-
resultaria, na maioria das vezes, num projeto efe-
da para Schwarz, seria definida a partir de um
tivo de enfrentamento que arregimentasse toda a
amplo imaginário, compartilhado por intelectuais
sociedade civil contra a repressão; a resistência,
e artistas de esquerda no questionamento do im-
dessa forma, representaria apenas uma ação loca-
perialismo, no enfrentamento do autoritarismo dos
lizada e situar-se-ia num contexto específico em
governos militares e em favor do desenvolvimen-
que a repressão atuaria de forma também especí-
to da cultura nacional. Ao passo que as resistênci-
fica.
as estariam submetidas a disputas específicas de
Quanto ao conceito de “hegemonia”, nele está setores, também específicos da produção cultu-
contido não só a noção de resistência, bem como ral de esquerda7.
outros elementos que permitem, por exemplo,
No entanto, o dado interessante – e, muitas
entender como é possível a resistência ser
vezes, não observado pelas pesquisas sobre os
reproduzida socialmente. Noutras palavras, como
movimentos sociais e o processo de organização
grupos sociais não atingidos diretamente pela re-
das esquerdas a partir da década de 1960 – é a
pressão conceberam a resistência e o engajamento
incipiência de um mercado de bens culturais no
na forma de símbolos de organização política,
Brasil, assim como a estruturação de uma indús-
criando o aspecto aparentemente homogêneo e
tria cultural, constituindo uma cadeia de comuni-
unitário de resistência cultural. Assim, a diferença
cação e informação composta por emissoras de
entre “hegemonia cultural” e “resistência cultu-
rádios e televisões, revistas, jornais, livros etc.
ral” parece estar no fato da primeira trazer consi-
Schwarz não aponta a indústria cultural como pólo
go um conjunto de valores compartilhados (como
aglutinador das atividades de esquerda, mas
de engajamento, protesto, resistência etc.), a par-
menciona um mercado de bens culturais (como
tir de uma linguagem comum e universal acessí-
“solução formal”) que estrutura a comunicação e
veis, sobretudo, num mercado de bens simbóli-
reforça o debate em torno dos temas como o
cos e culturais (BOURDIEU, 2004, p. 99-182).
engajamento cultural. Segundo ele, “o processo
Ou seja, considerar a organização das esquerdas
cultural, que vinha extravasando as fronteiras de
culturais na década de 1960 a partir da noção de
classe e o critério mercantil, foi represado em 64.
“hegemonia cultural” é, por outro lado, conceber
As soluções formais, frustrado o contato com os
que as resistências culturais desorganizadas fazi-
explorados, para o qual se orientavam, foram usa-
am-se uniformes e unificadas, na medida em que
das em situação e para um público a que não se
essa mesma hegemonia das esquerdas na cultura
destinavam, mudando o sentido. De revolucioná-
realizava-se pelo viés do mercado de bens cultu-
rias passaram a símbolo vendável da revolução.
rais. Este mesmo mercado que transformava a
Foram triunfalmente acolhidas pelos estudantes e
resistência política desorganizada em símbolos
pelo público artístico em geral. [...] Formava-se
culturais de toda uma geração de intelectuais e
artistas, por meio de produtos específicos como
a música, o teatro, o cinema, a literatura etc. Por
7 Essa especificidade pode ser detalhada, por exemplo, na
isso, o domínio da hegemonia, segundo Schwarz,
consideração que José Joaquim Brunner faz dos chamados
“concentra-se nos grupos diretamente ligados à
“circuitos culturais”. Segundo ele, “chamamos a combina-
produção ideológica, tais como estudantes, artis- ção típica de agentes e instâncias institucionais de organi-
tas, jornalistas, parte dos sociólogos e economis- zação um circuito cultural que contempla, por sua vez, as
tas, a parte raciocinante do clero, arquitetos, etc., fases de produção, transmissão e consumo dos respectivos
– mas não sai daí, nem pode sair, por razões poli- bens culturais” (BRUNNER, 1992, p. 252).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 35 : 95-117 FEV. 2010

assim um comércio ambíguo que de um lado ven- Opinião; o Show Opinião é montado por Arman-
dia indulgências afetivo-políticas à classe média, do Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes,
mas de outro consolidava a atmosfera ideológica” com a participação de João do Vale, Nara Leão e
(idem, p. 79-80). Zé Keti; em maio, no Teatro de Arena, é montado
o espetáculo Arena Conta Zumbi, de Augusto Boal,
Na grande maioria das análises subse-
Gianfrancesco Guarnieri e com música de Edu
qüentes que apreciam o contexto a que se refere
Lobo. Glauber Rocha lança o manifesto do Cine-
Roberto Schwarz, o problema do mercado de bens
ma Novo, intitulado A estética da fome. Entre
culturais, ou mesmo da indústria cultural em ge-
agosto e setembro, é organizado o Opinião 65,
ral, não é considerado no mesmo compasso da
no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
formação dos temários esquerdistas – por sua vez,
Ainda em setembro, outra montagem importante
a base desse mesmo mercado incipiente. Durante
no Teatro de Arena: Arena Canta Bahia, com a
a década de 1970, as investigações que analisam
participação de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal
esse aspecto estiveram, na maioria das vezes,
Costa, Tom Zé e Maria Bethânia. É inaugurada a
difusas no campo da comunicação de massa e
TV Globo, de propriedade de Roberto Marinho. E
dos meios de comunicação em geral. Por outro
na televisão outro programa de repercussão naci-
lado, essa associação entre setores da esquerda e
onal marcaria o ano de 1965: a estréia, no mês de
o mercado, bem como as ideologias das esquer-
setembro, do programa Jovem Guarda, na TV
das culturais resultantes dessa combinação, são
Record, com a apresentação de Roberto Carlos,
definidas pari passu por uma proposição muito
Erasmo Carlos e Wanderléa.
usual nas Ciências Sociais, usada para explicar
atipicidades geradas da tensão entre engajamento Tal fortalecimento paulatino das produções
político e indústria cultural: o populismo. culturais em fins de 1964 e meados de 1965 é
constatado também pelo surgimento de novos
Mas se, antes, a “hegemonia cultural de esquer-
periódicos (jornais, revistas e semanários), assim
da” era apenas uma intenção a compor o amplo e
como pelo aumento significativo de obras biblio-
diversificado leque ideológico da Frente Ampla das
gráficas editadas no Brasil8. Ao mesmo tempo em
oposições, a partir de então, o cenário político e
que o governo militar promovia o fechamento de
cultural sofreu transformações importantes. Ocor-
diversos espaços de articulação e discussão das
rera, pois, uma intensificação da produção cultural
esquerdas, outros tantos eram abertos, a fim de
em todos os níveis, que favorecia a relação entre
promover a integração cultural de diversos gru-
produtores culturais de esquerda e organizações
pos dispersos frente à desmobilização promovida
comerciais e de difusão cultural – estas, em expan-
pelo golpe de 1964. Entretanto, a produção resul-
são comercial nunca antes vista. O teatro, o cine-
tante desse rissorgimento era constantemente “ava-
ma, as artes plásticas, a música, a literatura foram
liada” por órgãos civis e militares, a fim de man-
não somente alimentados por novas idéias e novos
ter um controle das manifestações culturais que
projetos políticos, frente à aparente distensão do
se contrapunham ao pensamento oficial naquele
governo instaurado em 1964, mas foram favoreci-
momento9.
dos pela formação de novos públicos consumido-
res de cultura, devotados à questão do nacional-
popular por meio do filtro da indústria cultural
(NAPOLITANO, 2001, p. 55-120). 8 Apesar do censo irregular e das metodologias de pesqui-
sa variarem, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Entre abril e março de 1965, era transmitido Estatística (IBGE) colocam em evidência essa transforma-
pela TV Excelsior o I Festival da Canção Brasi- ção. No ano de 1960, foram postos em circulação 51 209
leira, que deu origem à chamada “era dos festi- 009 exemplares de obras bibliográficas. Em comparação
vais”, que se estenderia até início da década se- com o ano de 1970, esse número foi para 114 444 988
exemplares. Ver Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-
guinte. Estréia em maio daquele mesmo ano, na
tica (1970).
TV Record, O Fino da Bossa, com apresentação
9 Renato Ortiz refere-se ao modo pelo qual a censura
de Jair Rodrigues e Elis Regina. No teatro, duas
estréias marcaram o ano de 1965: em abril, Liber- procedia junto aos produtores de cultura que, por sua vez,
criavam determinado tipo de público para seu produto.
dade, Liberdade, escrita por Millôr Fernandes e Então conclui: “Mas é necessário entender que a censura
Flávio Rangel, é encenada por Paulo Autran, Te- possui duas faces: uma repressiva, outra disciplinadora. A
reza Rachel e Oduvaldo Vianna Filho no Teatro primeira diz não, é puramente negativa; a outra é mais

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A REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

IV. A RCB NO MERCADO DE PUBLICAÇÕES blicações, a Revista Civilização Brasileira (edita-


DE ESQUERDA da por Ênio Silveira e dirigida por Moacyr Félix e
Dias Gomes).
Assim, a partir de meados da década de 1960,
editoras, imprensas e gráficas mobilizaram-se para O crescimento do número de publicações pe-
a expansão de um mercado de leitores, alimenta- riódicas durante a primeira metade da década de
dos, sobretudo, pelo impulso do movimento estu- 1960 ocorreu devido a esse aspecto sócio-políti-
dantil, renovado pelos debates já propostos antes co importante: fortalecer espaços de debate, a fim
mesmo do golpe militar10. Aliás, a própria UNE, de dar continuidade aos projetos antes propostos
com os seus CPC’s, possibilitou ao movimento no interior das organizações desmanteladas pelo
estudantil uma articulação e a formação de uma golpe. Por outro lado, havia o aspecto sócio-cul-
consciência política entre os estudantes. E isso se tural que permitiu fazer dessas publicações o “lu-
refletiu na formação de um público estudantil que, gar” das discussões e dos debates antes em cur-
direta ou indiretamente, participou dos debates e so. Um periódico, diferentemente de uma entida-
integrou diversas formações culturais que faziam de ou organização política, precisava alcançar seu
oposição ao regime militar (GARCIA, 2007). objetivo primordial – noutras palavras, ele preci-
sava ser vendido. Uma organização política valia-
Com o advento do golpe, saíam de circulação
se de seu poder de agremiação e atuação junto à
os Cadernos do Povo Brasileiro (editados por Ênio
sociedade; para uma revista ou um jornal, essa
Silveira, Álvaro Vieira Pinto e dirigidos por Moacyr
mesma agremiação era apenas representada no ato
Félix), proibidos e colocados sob investigação no
de recepção dos seus leitores. Como escreve
IPM do ISEB; a revista Brasiliense (editada e
Roberto Schwarz, “esta implantação teve também
dirigida por Caio Prado Jr. e Elias Chaves Neto),
seu aspecto comercial – importante, do ponto de
além do periódico vinculado à UNE, a revista
vista da ulterior sobrevivência – pois a produção
Movimento. A partir de 1965, são postos em cir-
de esquerda veio a ser um grande negócio, e alte-
culação a Folha da Semana (dirigida por José
rou a fisionomia editorial e artística do Brasil em
Arthur Poerner), o Pif-Paf (dirigido por Millôr
poucos anos. [...] A vida cultural entrava em mo-
Fernandes), a revista Tempo Brasileiro (dirigida
vimento, com as mesmas pessoas de sempre e
por Eduardo Portella), que, interrompida em 1964,
uma posição alterada da vida nacional. Através de
voltaria a circular em 1965, os Cadernos Brasi-
campanhas contra tortura, rapina americana, in-
leiros (dirigido por Afrânio Coutinho), a revista
quérito militar e estupidez dos censores, a inteli-
Dados (dirigida por Cândido Mendes), o jornal
gência do país unia-se e triunfava moral e intelec-
semanal Reunião (editado por Ênio Silveira e diri-
tualmente sobre o governo, com grande efeito de
gido por Paulo Francis), a revista Paz e Terra (edi-
propaganda” (SCHWARZ, 2001, p. 14-25).
tada por Ênio Silveira e dirigida por Moacyr Félix),
a revista de Política Externa Independente (edita- A questão crucial dos editores responsáveis por
da por Ênio Silveira e dirigida por Celso Furtado), tais publicações era alcançar um grande número
além da mais significativa entre outras tantas pu- de leitores e, da mesma forma, manter um padrão
de qualidade de suas produções. E essa foi uma
das características da Revista Civilização Brasi-
leira (RCB), publicada entre março de 1965 e
complexa, afirma e incentiva um determinado tipo de ori- novembro de 1968 e divida em 22 números11.
entação. Durante o período 1964-1980, a censura não se Inserida, pois, no contexto de organização das
define exclusivamente pelo veto a todo e qualquer produto
cultural; ela age como repressão seletiva que impossibilita
a emergência de um determinado pensamento ou obra artís-
11 São eles: n. 1 (março, 1965); n. 2 (maio, 1965); n. 3
tica. São censuradas as peças teatrais, os filmes, os livros,
mas não o teatro, o cinema ou a indústria editorial. O ato (julho, 1965); n. 4 (setembro, 1965); n. 5 (novembro, 1965);
censor atinge a especificidade da obra, mas não atinge a n. 6 (março, 1966); n. 7 (maio, 1966); n. 8 (julho, 1966); n.
generalidade de sua produção” (ORTIZ, 1988, p. 114). 9-10 (setembro/novembro, 1966); n. 11-12 (dezembro, 1966/
março, 1967); n. 13 (maio, 1967); n. 14 (julho, 1967); n. 15
10 A expansão do ensino superior revela-se no significati-
(setembro, 1967); n. 16 (novembro/dezembro, 1967); n. 17
vo aumento de alunos matriculados em universidades e (janeiro/fevereiro, 1968); n. 18 (março/abril, 1968); n. 19-
faculdades brasileiras. Em 1960, eram 93 202 alunos matri- 20 (maio/agosto, 1968) e n. 21-22 (setembro/dezembro,
culados no Brasil e, em 1970, eram 425 478 alunos matri- 1968). Além dos números especiais: n. 1 (outubro, 1967);
culados. Ver Hallewell (1985, p. 286). n. 2 (julho, 1968) e n. 3 (setembro, 1968).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 35 : 95-117 FEV. 2010

esquerdas após o golpe e modelada a partir das Ênio Silveira e Roland Corbisier eram amigos
novas contingências do mercado de cultura, a e, em março 1965, na ocasião do lançamento da
publicação consolidou-se a partir da necessidade RCB, a amizade entre os dois era de conhecimen-
de aglutinação de intelectuais em torno de um es- to público. Ao menos desde 1958 eles mantinham
paço comum de organização, aliada à ampliação uma relação comercial, que resultou, entre diver-
dos circuitos culturais dos grandes centros urba- sas encomendas editoriais, na edição da coleção
nos como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Hori- Cadernos do Povo Brasileiro, dirigida por Álvaro
zonte, Porto Alegre, Salvador e Recife. Vieira Pinto, professor do ISEB, onde era respon-
sável pelo departamento de Filosofia. Em corres-
A edição da RCB pela editora Civilização Brasi-
pondência ao Ministério da Cultura, Roland
leira foi um sintoma importante e uma iniciativa
Corbisier apresentou uma proposta, ao então mi-
pioneira do editor Ênio Silveira e do poeta Moacyr
nistro Clóvis Salgado, de distribuição dos livros
Felix, na tentativa de construir um espaço demo-
editados pelo ISEB, com apoio financeiro do go-
crático de debates que acolhesse intelectuais de
verno. Roland Corbisier ressaltava no ofício que
oposição desarticulados institucionalmente desde
o material editado era apenas distribuído gratuita-
o golpe de Estado. A sua circulação durante 1965
mente em prédios do governo e durante eventos
e 1968 pode inclusive auxiliar na compreensão de
oficiais. Dizia que a “experiência [...] do proces-
alguns modelos de resistência cultural que dispu-
so de distribuição gratuita dos títulos não só des-
tavam entre si a primazia no espaço público. A
valoriza as edições, [...] mas também não permite
RCB, dada a sua dimensão simbólica como pro-
que as obtenha o grande público, principalmente
duto cultural possibilita entender, a partir dos de-
dos outros Estados. Parece-nos, pois, conveni-
bates e discussões promovidos em suas páginas,
ente, a fim de assegurar a mais ampla divulgação
a lógica das formações culturais envolvidas nesse
às publicações do ISEB, entregar a sua distribui-
projeto editorial e de resistência. Isso porque a
ção a uma firma idônea, capaz de colocar os li-
aglutinação de intelectuais em torno da RCB per-
vros do Instituto nas principais cidades do país.
mitiu a aproximação de projetos comuns que vi-
[...] Após examinar o assunto e fazer as necessá-
savam o restabelecimento do processo democrá-
rias consultas, chegamos à conclusão de que a
tico, assim como consolidar um espaço legítimo
empresa mais aparelhada e que nos oferece me-
de representação daqueles intelectuais no espaço
lhores condições para realizar esse trabalho é a
público.
Companhia Editora Nacional” (INQUÉRITO PO-
Como projeto editorial e intelectual, a RCB ten- LICIAL-MILITAR DO ISEB, 1964-1965b, p. 2
tou aglutinar diversos grupos de artistas e intelec- 574-2 575).
tuais numa frente de oposição ao regime militar,
A Companhia Editora Nacional (CEN) era uma
ao mesmo tempo em que buscou constituir-se
das principais editoras no país naquele momento
num espaço legítimo de reflexão e debate das es-
e havia sido fundada no ano de 1925, em São Pau-
querdas. A formação inicial teve a participação de
lo, por Monteiro Lobato e Octalles Marcondes
um grupo composto de indivíduos oriundos de
Ferreira. Este, pouco tempo depois, assumiria in-
diversas áreas da produção científica e cultural.
tegralmente a gerência da CEN e outras editoras
No conselho editorial figuravam os nomes de Ênio
surgiram em consórcio com ela, como foi o caso
Silveira, como diretor responsável, e Roland
da editora Civilização Brasileira, em 1932, no Rio
Corbisier, secretário. Os demais membros do con-
de Janeiro. Duas décadas depois, Ênio Silveira,
selho de redação eram Alex Viany, Álvaro Lins,
ao trabalhar para Octalles, assume a direção da
Antonio Houaiss, Cid Silveira, Dias Gomes, Ed-
editora Civilização Brasileira, em 1958, manten-
son Carneiro, Ferreira Gullar, Haiti Moussatché,
do-a como distribuidora da CEN. Daí a menção
M. Cavalcanti Proença, Moacyr Felix, Moacyr
de Roland Corbisier à CEN no ofício remetido a
Werneck de Castro, Nelson Lins e Barros, Nelson
Clóvis Salgado, pois a designação da editora de
Werneck Sodré, Octavio Ianni, Paulo Francis e
Octalles Marcondes estava diretamente relacionada
Oswaldo Gusmão. O primeiro número da RCB,
à Civilização Brasileira, sediada na cidade do Rio
de março de 1965, já apresentava em seu expedi-
de Janeiro e comprada por Ênio Silveira de
ente a diversidade das formações culturais e dos
Octalles Marcondes no ano de 1963. Foi, pois,
núcleos intelectuais envolvidos com a editora Ci-
Ênio, e não Octalles, o responsável pelas edições
vilização Brasileira.
encomendadas pelo ISEB, ou seja, a distribuição

105
A REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

dos livros editados pelo ISEB foi um dos primei- estava sustentada pelo argumento de ser, antes de
ros grandes trabalhos de Ênio Silveira na direção qualquer coisa, um amplo e dinâmico fórum de
da editora Civilização Brasileira, que contribuiu para debates. Segundo escrevia seu primeiro editorial,
a visibilidade de sua empresa e para torná-la uma “dentro desses limites amplos e com esses pro-
das principais editoras de esquerda do período pósitos definidos é que surge a Revista Civiliza-
(HALLEWELL, 1985, p. 453-455). ção Brasileira. Pretende ser o veículo em que es-
ses estudos e pesquisas da realidade nacional se-
Os demais membros do conselho de redação
rão divulgados. Quer ser, também, um amplo e
da RCB, como Ferreira Gullar, Moacyr Félix,
dinâmico fórum de debates. Seus colaboradores
Nelson Werneck Sodré, Nelson Lins e Barros,
permanentes ou ocasionais são pessoas que têm
Oswaldo Gusmão, Alex Viany e Dias Gomes,
algo de oportuno e importante a dizer” (PRINCÍ-
mantinham relações diretas ou indiretas com enti-
PIOS E PROPÓSITOS, 1965, p. 3-4).
dades de esquerda depostas pelos militares em
1964. E nomes como Paulo Francis, Álvaro Lins Entretanto, guardadas as diferenças e origens
e Antonio Houaiss eram tidos como intelectuais de cada um dos intelectuais que compuseram o
não vinculados a organizações de esquerda, logo, projeto da RCB, a ação conjunta e articulada por
atribuíam ao conselho a contrapartida ideológica, eles deu-se no fortalecimento do discurso, de certo
a fim de evitar que a revista fosse tomada como modo esboçado nas atividades do ISEB, nas dire-
um órgão do PCB, estritamente. trizes do Comando dos Trabalhadores Intelectu-
ais (CTI) ou, no caso de alguns, até nas edições
Estes intelectuais, representados simbolicamen-
dos Cadernos do Povo Brasileiro e do Violão de
te num conselho de redação tão diversificado como
rua12. E isso está também expresso no primeiro
o da RCB, advinham de inúmeros núcleos de es-
editorial da RCB, equacionado na forma de inda-
querda, formados num processo anterior ao gol-
gações: “O povo brasileiro está agora diante de
pe militar de 1964. Suas divergências e a tendên-
um grande e sério desafio: será capaz de, supe-
cia para o debate constituíram o fator substancial
rando falhas e contradições, superar também as
para a manutenção do projeto editorial, e inúme-
forças que se opõem ao desenvolvimento do País,
ras discussões foram travadas nas mais diversas
numa linha democrática e independente? Será ca-
áreas de produção cultural. Por este aspecto, a
paz de abandonar formulações meramente
revista foi um laboratório de articulação de inte-
especulativas e, através de estudo objetivo de to-
lectuais dispersos e desprovidos de um espaço
das as componentes da realidade nacional,
legítimo de aglutinação e representação (SAID,
equacionar e depois resolver seus graves proble-
2005) após 1964 e captou as tensões e distensões
mas? Terá capacidade para destruir os mitos e os
do quadro político e cultural da sociedade brasi-
clichês que dificultam ou impedem aprofundamento
leira da década de 1960. Verifica-se, por exemplo,
maior desse estudo?” (idem, p. 3).
que entre as temáticas consideradas em suas mais
de cinco mil páginas de texto, dentre seus 22 vo- As indagações aos leitores não apenas sugeri-
lumes, estavam desde os problemas que remeti- am novas abordagens sobre a realidade nacional,
am ao populismo, passando pela questão do como testavam os limites dos dois principais
engajamento das artes, até a formação da cultura interlocutores do grupo de colaboradores da re-
de massa. vista: de um lado, a pressão do PCB em conceber
a revista como espaço político-partidário a servi-
De certo modo, este mosaico político e ideo-
ço das causas comunistas; de outro, o governo
lógico posto pelas novas condições de arranjo das
militar a coagir a diretoria da RCB com interroga-
esquerdas em oposição ao regime militar explica,
tórios ou mesmo abrindo processos contra seus
ou pelo menos atesta, o caráter eclético da revis-
colaboradores. A respeito desse fato, inclusive,
ta, confirmado pela variedade de temas sugeridos
houve um episódio em que Ênio Silveira relatava
pelo seu conselho de redação. Entre as seções fi-
e, de certa forma, evidenciava essa tentativa de
xas da revista estavam contempladas “política in-
ternacional”, “política nacional”, “economia”, “li-
teratura”, “cinema”, “teatro”, “artes plásticas”, 12 A respeito da relação entre a Revista Civilização Brasi-
“música”, “problemas culturais e filosóficos”, leira, o Comando dos Trabalhadores Intelectuais e a cole-
além de “ciência e tecnologia”. Essa abrangência ção intitulada Cadernos do Povo Brasileiro, editada pela
temática coincidia com a proposta editorial, pois Civilização Brasileira, ver Czajka (2005).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 35 : 95-117 FEV. 2010

coação por parte dos militares. Ênio fora, em de- presentava seu comitê executivo. Essa postura
terminada oportunidade, convocado pelo General distanciada marcou a orientação da editora e, ob-
Golbery do Couto e Silva, para uma reunião no viamente, da RCB. Esta foi uma revista produzi-
Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). da, em sua maioria, por comunistas, mas não era
Contava Ênio que ele foi “supondo que ia ser uma um instrumento a serviço do PCB. E parece ter
conversa formal que ia durar quinze minutos ou sido essa particularidade que possibilitou a aceita-
meia hora no máximo, e o que aconteceu foi que ção da revista principalmente junto ao público aca-
houve três encontros com Golbery. O primeiro dêmico que, a partir de meados da década de 1960,
durou quatro horas seguidas, o segundo também endossou várias dissidências político-partidárias
e no terceiro encontro ele apresentou seu substi- sofridas pelo PCB desde 1962, quando, por exem-
tuto, que era um coronel que iria ficar em contato plo, foi fundado o Partido Comunista do Brasil
comigo. Para dar um resumo da história, ele me (PC do B).
disse o seguinte: ‘eu sei que o senhor é um adver-
No que tange aos integrantes do projeto edito-
sário coerente e intransigente da Revolução, mas
rial, entre a edição dos números 1 e 4, a revista
eu lhe chamei aqui para lhe dizer que a Revolução
manteve um mesmo núcleo de colaboradores que,
vê no senhor um patriota, que embora com ne-
ao mesmo tempo, tinha diversos vínculos profis-
nhuma sintonia com nossos métodos, tem sintonia
sionais e institucionais. Ênio Silveira permaneceu
com nossos ideais. [...] Queremos que você e seu
como diretor responsável da revista, secretariado
grupo venham fazer parte do nosso movimento
por Roland Corbisier. A presença, sobretudo, dos
pois é preciso que compreendam que nós quere-
nomes de Ênio Silveira e Roland Corbisier na di-
mos salvar o Brasil, tirar o país do atraso, etc.’”
reção do projeto conferiu à publicação uma
(Silveira apud VIEIRA, 1996, p. 55-56).
credibilidade que tanto Ênio quanto Corbisier man-
Apesar do aspecto inusitado presente na des- tinham juntos aos círculos de cultura: o primeiro,
crição de Ênio, há um dado interessante a ser con- editor da reconhecida Civilização Brasileira, e o
siderado nesse campo das tensões políticas: du- segundo, diretor do extinto ISEB. De modo que
rante o regime militar nenhum governo censurou um dos editoriais da revista atestava a orientação
a revista por atitudes supostamente “subversivas”, ideológica dos colaboradores, bem como apresen-
como fez com outras publicações similares. As- tava um olhar crítico sobre a conjuntura que en-
sim como, e do mesmo modo, o PCB não conse- tão se apresentava: “Em face dessa definição, surge
guiu determinar sua linha editorial, ainda que Ênio como corolário que a REVISTA CIVILIZAÇÃO
Silveira tivesse tornado pública sua filiação ao par- BRASILEIRA, não será orientada por qualquer
tido em meados da década de 1960. Mesmo que partido ou concepção sectária. No terreno dos
proeminente entre as oposições naquele momen- estudos políticos, sociológicos, econômicos e
to, o PCB não intervinha diretamente na revista, culturais, que constituem o campo de sua atua-
condição essa colocada por Ênio, de modo a evi- ção, buscará sempre amplitude de visão sem per-
tar as intervenções da entidade em sua editora. der profundidade de análise. Não se deve inferir
Ainda que a Civilização Brasileira apresentasse nas dessa atitude, porém que a Revista será ecumênica
suas edições uma orientação marxista, o objetivo ao ponto de abranger todas as correntes de pensa-
do seu editor era conduzir os debates para além mento. É preciso deixar bem claro que não somen-
das estruturas rígidas do partido e do seu marxis- te repudiará, como abertamente combaterá tudo
mo de cartilha (KONDER, 2008). Suas publica- aquilo que admitir como válida ou moralmente cor-
ções fundamentaram um debate não-sectário en- reta a presente estrutura sócio-econômica do Bra-
tre as esquerdas, no qual a propaganda partidária sil ou entender como inevitável e até mesmo ne-
não seria veiculada por meio da editora e de seus cessária a submissão dos interesses nacionais aos
produtos. das grandes potências, sejam elas quais forem”
(PRINCÍPIOS E PROPÓSITOS, 1965, p. 4).
Este posicionamento de Ênio Silveira em rela-
ção às edições da Civilização Brasileira consistiu Ao tentar realizar uma análise da realidade na-
num passo importante na consolidação de um cional sem comprometimentos ideológicos de
mercado e de um público interessado nas temáticas qualquer natureza, a RCB propôs o “deslocamen-
de esquerda, mas que por condições diversas, to” para temas antes ignorados pelas plataformas
preferia não se vincular ao PCB e àquilo que re- partidárias, a exemplo da questão cultural. As dis-

107
A REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

cussões derivadas de sua análise adquiriram ou- ção, devido à menção que fez à RCB, caracteriza-
tros contornos mais complexos e sutis; um con- da como um momento importante do processo
junto de novos mecanismos foi criado, a fim de de esquerdização da sociedade pelos intelectuais.
acompanhar as mudanças estruturais pelas quais Publicado em 1977, Ideologia da cultura brasi-
a sociedade passava, orientando os públicos para leira, de Carlos Guilherme Mota, consistiu num
um novo vocabulário que se cunhava na simbiose trabalho de grande fôlego e ainda hoje seu texto é
entre cultura e política após 1964. uma referência obrigatória quando se trata de con-
siderar a história e a formação da intelectualidade
V. EXPERIÊNCIAS E “FASES” EDITORIAIS
brasileira entre os anos de 1933 e 1974. Quanto à
A produção e a circulação da RCB entre março posição do autor em relação ao populismo e às
de 1965 e dezembro de 1968 representou, na questões correlatas a essa abordagem, Guilherme
memória de seus idealizadores, a realização de um Mota, de forma sutil, empresta de Mário de
projeto sem precedentes no mercado editorial e, Andrade uma epígrafe que, lançada no preâmbulo
mais ainda, no setor de revistas culturais. Ênio do seu trabalho, fundamentou histórica e social-
Silveira, anos mais tarde, recordaria tal importân- mente a sua compreensão: “o meu passado não é
cia ao dizer que o marco refulgente da editora “foi mais meu companheiro; eu desconfio do meu pas-
a edição da Revista Civilização Brasileira, [...] sado”. É, pois, a partir desse posicionamento que
sendo interrompida com a promulgação do Ato Guilherme Mota procurou buscar (e revisar) as
Institucional nº 5 (que equivaleu à cristalização da origens ideológicas da cultura brasileira.
ditadura). [...] Considerada nos meios culturais e
É nessa conjuntura de revisão do passado re-
universitários do Brasil e do mundo inteiro como
cente, que Carlos Guilherme Mota toma a RCB
um padrão de dignidade da intelligentsia brasilei-
como objeto de sua análise, muito embora ele des-
ra diante das forças do obscurantismo, essa pu-
creva a revista, inicialmente, como “um dos mar-
blicação, em suas duas fases, constitui um dos
cos fundamentais na história da cultura e do pen-
maiores galardões de minha carreira e marcará
samento político progressista no Brasil no século
para todo o sempre a presença da editora na his-
XX” (MOTA, 1978, p. 205). Segundo o autor, a
tória cultural do país. Um grupo corajoso e abne-
RCB realizava um trabalho de publicação com pro-
gado de intelectuais dignos desse nome e de sua
pósitos herdados da “era populista” e “houve, não
missão social em ajudar a conquistá-lo”
obstante, alguma radicalização na trajetória da re-
(SILVEIRA, 1998).
vista. Cumpre avaliá-la, através de algumas pro-
A ênfase de Ênio ao confirmar as “duas fases” duções significativas, por se tratar de uma das
da revista evidencia outro problema inerente à publicações ‘cultas’ de maior difusão na história
análise das tensões vividas pelas esquerdas cultu- desse tipo de imprensa periódica. Fruto de uma
rais durante a década de 1960. Inúmeros debates era populista, modificou paulatinamente sua ori-
que foram propostos a partir da segunda metade entação até seu fechamento, em 1968, por volta
da década de 1970 estiveram embasados em prin- do AI-5” (ibidem).
cípios mais ou menos coincidentes, no que tangia
Embora “fruto de uma era populista”, a RCB
à análise das forças políticas e ideológicas que atu-
ainda assim conseguiu constituir-se em um espa-
aram na sociedade brasileira na década anterior.
ço de reflexão crítica sobre a realidade brasileira,
Entre esses princípios, estava o conceito de
a ponto de tornar-se “um dos marcos fundamen-
populismo13.
tais da história da cultura e do pensamento pro-
O populismo consistiu numa forma de análise gressista no Brasil”. Esse processo, identificado
bastante condizente com a renovação política, na forma de uma mudança paulatina da revista,
social e cultural da sociedade em fins da década acusada por Carlos Guilherme como dois momen-
de 1970, com a abertura, a anistia e com o tos distintos, na qual pode ser reconhecida uma
surgimento dos chamados novos movimentos modificação temática. Segundo o autor, essas eta-
sociais. Destes estudos, um deles chama a aten- pas distinguem-se da seguinte forma: “um, defi-
nido pelos compromissos com as linhas de pen-
samento (progressista) vigentes no período ante-
13 Ver, sobretudo, Ianni (1968); Toledo (1977); Weffort rior, cobrindo, grosso modo, os anos 1965 e 1966;
(1978); Mota (1978); Franco (1985). Entre os trabalhos o segundo, onde se percebe a emergência de no-
mais recentes, destaca-se Ferreira (2001). vas linhas de diagnósticos, encaminhando-se para

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 35 : 95-117 FEV. 2010

revisões radicais (inclusive criticando-se partici- A partir desse momento, Manuel Cavalcanti Pro-
pantes do primeiro momento), perscrutando no- ença é nomeado o diretor responsável, no lugar
vas frentes de reflexão e afinando um novo ins- de Ênio Silveira, e Moacyr Felix assume a secre-
trumental de analise. Cobre esse segundo momen- taria, no lugar de Roland Corbisier. Essa mudan-
to os anos de 1967 e 1968, até o fechamento da ça, de forma alguma representa um radicalismo
revista” (idem, p. 205-206). dos editores RCB, mas apenas uma medida de
proteção judicial, pois o Superior Tribunal Militar
A divisão sugerida por Carlos Guilherme Mota,
(STM) havia indiciado Ênio em três IPM’s (o do
justificada por ele por meio da reformulação do
ISEB, o da Imprensa Comunista e o da Civiliza-
grupo de colaboradores, entre 1966 e 1967, foi
ção Brasileira) e Corbisier, no IPM do ISEB.
questionada ainda em 1977, quando da publica-
ção do seu livro. Moacyr Felix, que havia sido um Com o falecimento de Manuel Cavalcanti Pro-
dos responsáveis pela edição da RCB, numa longa ença, no segundo semestre de 1966, Moacyr Felix
entrevista concedida ao jornal O Pasquim, comen- presidiu a revista e o teatrólogo Dias Gomes as-
tava que, se havia uma diferenciação no grupo de sumiu a secretaria da RCB no número duplo 9-
colaboradores, não decorria do fato do segundo 10, de setembro-dezembro de 1966. Assim como
grupo estar imbuído de um radicalismo que o pri- as edições anteriores, o conselho de redação é
meiro não possuía. Segundo Felix, tal modifica- omitido em todas as edições posteriores até o nú-
ção dos planos editoriais ocorreu em função das mero 22, em dezembro de 1968. Entretanto, o
próprias circunstâncias do debate, do contexto que os documentos têm demonstrado, é que essa
social que favoreceu o acolhimento de sociólo- omissão não foi resultado necessário da
gos, economistas, historiadores e filósofos reformulação do conselho ou mesmo do formato
paulistas; até porque o meio acadêmico via-se da revista. A “segunda fase” da RCB foi represen-
envolvido, neste momento, nas discussões políti- tada muito mais pelas condições adversas deriva-
cas com maior intensidade e visibilidade, propici- das do recrudescimento do regime militar do que
adas, sobretudo pela participação estudantil no de uma guinada em direção a um “pensamento
movimento de resistência contra a ditadura do radical” por parte de seus colaboradores. Ora, deve
governo Costa e Silva (FELIX, 1977, p. 10-13). ser levado em consideração que muitas investiga-
ções militares colocavam sob suspeita muitos dos
Para Felix, o argumento das duas fases da RCB
colaboradores da revista. Ou seja, a omissão dos
não explicava o sentido das mudanças sofridas
nomes dos conselheiros foi a forma não somente
pelo conselho editorial que, a partir de 1966, por
de “retirar de cena” aqueles indiciados em IPM’s,
exemplo, começou a aproximar-se da
como de estruturar a revista a partir de “uma li-
intelectualidade paulista. Ora, se a inserção de
nha independente”. Muito embora o conselho não
novos colaboradores na revista foi um sintoma de
funcionasse na prática – não se reunia e nem de-
uma nova fase editorial, esse fato deveria levar
cidia pela forma e conteúdo da revista – ele existia
em consideração a iniciativa do próprio Moacyr
para preservar uma identidade RCB e as forma-
Felix de ter convidado o sociólogo Octávio Ianni
ções culturais próprias de um contexto de reno-
para fazer parte do conselho editorial da RCB, ainda
vação das esquerdas em torno do engajamento
em 1965. Pode-se mencionar a participação des-
cultural na década de 1960.
tes intelectuais na elaboração de uma nova pro-
posta temática a partir de 1966. Contudo, essa Logo, a mudança não reflete simplesmente uma
questão não foi inerente a um grupo específico radicalização da RCB, como afirma Mota. Ainda
em torno na RCB que decidiu pela mudança de que esta seja uma explicação mais cômoda, fo-
rumos ideológicos, no sentido de uma ram inúmeros os fatores que, em conjunto, im-
“radicalização”. A radicalização, se houve, não foi primiram novos rumos à publicação. É necessá-
da revista, mas do próprio mercado editorial, do rio considerar também que o público da revista,
imaginário esquerdista e das resistências culturais do seu primeiro exemplar até o número 13, havia
que o alimentavam. mudado significativamente; o público universitá-
rio passou a ser um dos públicos alvos da RCB,
Vale lembrar que os nomes publicados no con-
tanto como objeto de estudos quanto como públi-
selho de redação, em março de 1965, foram man-
co leitor-consumidor. Isso ficou evidente na ma-
tidos até o número 7 da revista, quando, enfim, a
neira como se diferenciam os prefácios do pri-
lista de nomes deixa de ser regularmente publicada.

109
A REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

meiro e do décimo terceiro números: “Sabemos da revista Anhembi, fiel ao antigetulismo e desde-
que nenhuma interpretação de mundo é válida se nhosa em relação ao nacional-populismo nos mol-
não tomar em conta, e como ponto de partida, os des do de Goulart. É verdade que os sociólogos
dados das realidades fundamentais que a paulistas colaboram na Revista Brasiliense de Caio
existencializam e dentro dos quais ela se situa como Prado Jr., mas dois anos após a interrupção de
liberdade e ação. Sabemos também que não é fá- Anhembi é a vez da Revista Brasiliense desapare-
cil definir essas realidades fundamentais: entre elas, cer. A participação dos sociólogos paulistas na
sempre em movimento, e nós, ergue-se a alienante Revista Civilização Brasileira deve-se em parte à
teia de esquemas feitos, das “verdades” falta de grandes revistas paulistanas, mas traduz
estabelecidas, dos preconceitos, do cotidiano ene- também uma mudança de atitudes por parte da
voado em toda a sua mítica espessura pela intelectualidade paulista e a transformação da es-
irracionalidade dos imediatismos e das mistifica- querda intelectual após 1964” (PÉCAUT, 1990,
ções, reflexivamente resultantes de uma vasta sé- p. 211-212).
rie de condicionamentos” (DOIS ANOS DE RCB,
Embora Pécaut não considere efetivamente o
1967, p. 3-4).
mercado de bens culturais como fator
Se deve ser considerada a mudança pela qual determinante no processo de mudanças de edi-
passou a RCB no número 13 – momento no qual ção, publicação e mesmo venda da revista, ele le-
Carlos Guilherme Mota reconhece diferentes po- vanta outro problema oriundo da esfera restrita
sições expressas no “radicalismo” da revista –, tal de organização dos intelectuais paulistas, sobre-
mudança deve ser apreciada no interior do pro- tudo, com o fechamento dos espaços de debate
cesso de transformações sociais daquele período, como eram as revistas Anhembi e Brasiliense. A
sobretudo com o surgimento do movimento estu- questão que parece existir nas entrelinhas desse
dantil nos grandes centros urbanos e também na processo de adequação dos intelectuais paulistas
formação contínua de um público para a revista. ao núcleo de produção carioca é a representação
Justamente essas duas condições não são cogita- pública de suas obras e de suas análises. Noutras
das por Carlos Guilherme Mota, em Ideologia da palavras, o debate entre cariocas e paulistas, se-
cultura brasileira, ao abordar a questão da gundo Pécaut, só possuía valor ou determinava o
“radicalização” da revista. interesse de seus leitores na medida em que a dis-
puta fosse posta a partir da noção de um interesse
Em geral, as pesquisas posteriores – que ou
público. Ora, se as revistas paulistas, depois de
tomam a RCB como objeto de análise ou a menci-
terem suas edições encerradas, não conseguiram
onam como importante instrumento politicamen-
mais articular seus leitores em torno de novas dis-
te aglutinador do PCB (o que ela não foi) – em-
cussões, o fechamento de suas redações não afe-
prestam o argumento de Carlos Guilherme Mota
tou o interesse de seu público, que, segundo
e assumem a perspectiva das “fases” da revista
Pécaut, era restrito a um grupo específico. Logo,
por ele formulada. Inserida no contexto do mer-
esse fato não produziu impacto na opinião públi-
cado de bens culturais, a RCB constituiu-se num
ca, nem tampouco fomentou algum tipo de resis-
produto de grande circulação em circuitos cultu-
tência.
rais específicos durante a década de 1960; daí
que qualquer transformação editorial derive mais Daí a afirmação de Pécaut de que isso se tra-
diretamente do processo de recepção do público duziu numa mudança de atitudes por parte da
leitor, do que apenas das decisões ideológicas de intelectualidade paulista. Ou seja, para a legitimação
seus colaboradores. do debate e fortalecimento social da figura do in-
telectual, foi preciso existir um espaço que articu-
Um dos primeiros autores a reconsiderar este
lasse e representasse os interesses públicos dos
problema, à luz dos nacionalismos carioca e
produtores de cultura. Essa condição possibilitou
paulista, foi Daniel Pécaut, ao discernir a forma-
aos grupos de intelectuais e artistas a “relativa li-
ção de dois pólos de debate intelectual naquele
berdade” de que tanto falava-se, entre os anos de
momento: os terceiros-mundistas da RCB e os
1964 e 1968. Essa primeira fase da ditadura mili-
nacionalistas críticos de São Paulo. A participa-
tar, concebida por alguns autores como um perí-
ção, segundo ele, “do pólo paulista nos debates
odo de menor repressão e ironicamente denomi-
nacionais da esquerda é um fenômeno novo em
nada de “ditabranda”, consagrou-se, por meio de
muitos aspectos. Notamos o isolamento soberbo

110
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 35 : 95-117 FEV. 2010

uma bibliografia específica, como um momento porém, tolerada a propaganda de guerra, de sub-
no qual, apesar das restrições políticas, a liberda- versão da ordem ou de preconceitos de raça ou
de (ainda que relativa) era preservada (GASPARI, de classe”. Essa descrição, pelo seu aspecto le-
2002). Mas esse relativismo, entretanto, levou a gal, com base na ideologia da segurança nacional,
conclusões precipitadas sobre os eventos que de- demonstra que a perseguição, se houvesse, não
terminaram esse fato: a relativa liberdade entre seria realizada sobre o veículo promotor da sub-
1964 e 1967 não foi um atributo concedido ex- versão, mas sobre seus agentes – já que, em tese,
clusivamente pelos governos militares vigentes o setor editorial não sofreria com a censura pré-
nesse período, mas foi ela mesma construída e via. No que tange à RCB, como vimos, ela não
mantida pela atividade cultural permanente de nú- concentrava apenas colaboradores vinculados ao
cleos de intelectuais e artísticos, por meio de re- PCB ou que militavam na esquerda. Seu
vistas, jornais, teatro, entre outros, produzindo ecumenismo intelectual, sempre reivindicado pe-
condições materiais para a formação de uma los editoriais ou notas da direção, impedia que o
hegemonia cultural de esquerda e para a expres- periódico fosse unilateralmente classificado como
são das liberdades individuais. um veículo mantido por grupos comunistas.
De qualquer forma, essa apreensão, se tem um O mesmo se aplica, por exemplo, a Ênio
caráter didático e da mesma forma superficial, Silveira, que foi processado e preso, mas sem que
auxilia a compreensão e serve de argumento para isso resultasse que sua empresa, a editora Civili-
justificar as mudanças observadas na RCB, so- zação Brasileira, fosse proibida pela repressão.
bretudo, no que tange à mudança dos conselhos, Havia, por outro lado, medidas tomadas por ór-
diretores e da redação, assim como da alteração gãos do governo militar que impediam, por exem-
das temáticas e das formas de abordagem. Mas plo, que agências bancárias públicas efetuassem
isso não implica necessariamente dividir a RCB empréstimos ao editor, a fim de saldar dívidas ou
em “fases”, considerando tão unicamente a sua investir em novas edições. Da mesma maneira,
mudança editorial, nem sequer propor essa mes- também existia uma pressão sobre os represen-
ma divisão na valorização dos aspectos estrutu- tantes da editora e livreiros que revendiam os títu-
rais que, como “reflexos”, determinaram sua iden- los publicados por ela, por tratar-se de uma em-
tidade até dezembro de 1968. É fato, por exem- presa de propriedade de um comunista. Ênio
plo, que a revista não sofreu a intervenção dos Silveira lembrava que “a editora sofreu não ape-
órgãos censórios do governo de Castelo Branco nas a violência de dois atentados a bomba, um
ou Costa e Silva, mas muitos de seus colaborado- dos quais fez com que ela perdesse sua sede e sua
res foram inquiridos em inúmeras investigações livraria, que era a maior do Rio de Janeiro, na rua
policial-militares. Mais que a “relativa liberdade”, Sete de Setembro, mas foi alvo de uma sistemáti-
a falta dela pode ter determinado de modo mais ca campanha de descrédito e de intimidação que
contundente qualquer transformação. Aliás, com se voltava não tanto contra ela, mas sobretudo
isso enriquecemos o argumento e contra os livreiros, aos quais se dizia: ‘Se vocês
problematizamos os núcleos intelectuais envolvi- trabalharem com os livros da Civilização Brasilei-
dos no projeto da RCB, pois como é possível, por ra, que é uma empresa comunista, vocês correm
exemplo, ter havido controle sobre os colabora- risco’. Isso afetou enormemente o mercado. Vá-
dores, mas não sobre o veículo que lhes permitia rias empresas, sobretudo pequenas livrarias, tive-
exprimirem suas idéias? ram medo de trabalhar com os nossos livros. Além
disso, em decorrência da minha cassação fomos
Uma das maneiras de se entender esse para-
proibidos de operar com o Banco do Brasil. [...]
doxo é que entre os anos de 1964 e 1967, quando
Ora, se nós estávamos proibidos de operar com
se deu a edição dos atos institucionais I, II, III e
ele, isso nos fechava muitas portas” (SILVEIRA,
IV, além da promulgação da constituição militar
1998, p. 46-47).
em março de 1967, havia designações legais que
compreendiam essa questão, entre as quais a pró- Desse modo, as mudanças que ocorreram nas
pria Constituição, que descrevia, no seu capítulo edições foram resultantes de vários fatores. Ou
IV (dos direitos e garantias individuais), pará- seja, não foram os dispositivos militares, a mu-
grafo 8º: “a publicação de livros, jornais e periódi- dança dos conselhos editoriais, a mudança
cos independe de licença da autoridade. Não será, temática, com a inclusão de colaboradores

111
A REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

paulistas na RCB, que influíram individualmente da identidade nacional. Essa nova mentalidade,
no padrão da revista, mas estes e outros fatores nutrida pelo velho imaginário em torno da Frente
que atuaram em conjunto e forçaram inúmeras Única organizada pelas esquerdas, considerava
mudanças que puderam ser constatadas de diver- tanto a reavaliação dos postulados sobre os quais
sas formas. Ainda que se suponha que a primeira se assentava a intelectualidade brasileira, quanto a
fase terminou com a publicação do número 5-6, diversificação temática das publicações, bem como
no qual foram suprimidos nomes que compõem o das discussões fomentadas pelas publicações da
conselho editorial da revista, as questões alimen- editora Civilização Brasileira. Essa diversificação,
tadas pela “fase” anterior fizeram-se presentes na somada à reformulação das edições na tentativa
continuidade do projeto. Essa continuidade este- de acompanhar a renovação do público e do mer-
ve expressa na nota redigida pela direção, que a cado, foi sentida em todos os níveis de produção
partir deste número era de responsabilidade de M. da editora.
Cavalcanti Proença e Moacyr Felix, que, além de
Um sintoma evidente foi o lançamento de ou-
acusar a tiragem de 20 mil exemplares a partir do
tro periódico capitaneado por Ênio Silveira: a re-
número 2 da revista, afirmava que “apesar de tudo,
vista Paz e Terra. Esta surgiu com um propósito
tanto dos problemas imanentes como dos circuns-
bastante específico e procurava atender um pú-
tanciais, aqui estamos de novo em contato com
blico que não se via devidamente contemplado na
os nossos leitores. [...] Lamentamos a quebra da
RCB. Seu primeiro número circulou em julho de
periodicidade, mas esclarecemos que o atraso na
1966 (momento em que a RCB de número 8 foi
publicação deste número, que se deve à soma de
publicada) e trazia, inicialmente, Waldo A. César
circunstâncias políticas que têm mantido em so-
na direção, secretariado por Moacyr Felix. Como
bressalto a Nação e nos obrigam a diversas modi-
descrevia o próprio Felix, “nós achávamos que
ficações estruturais e administrativas, não signifi-
queríamos também publicar a nossa revista, pois
ca qualquer alteração em nossa linha de conduta.
a RCB ficou muito marcada pelo socialismo, den-
Continuaremos independentes, como sempre fi-
tro de uma linha materialista. E as pessoas mais
éis ao nosso propósito inicial” (DUAS NOTAS,
católicas não mandavam, e tinha uma série de
1967, p. 3)
católicos de esquerda, o pessoal da AP [Ação Po-
A mudança expressa em forma de alterações pular] etc. [...] Eu falei: ‘Ênio, vamos abrir uma
pontuais das edições da RCB é, na realidade, sen- revista’; fui eu que sugeri o título Paz em Terra,
tida em toda a extensão das atividades editoriais que era o título da encíclica papal, Pacem en Terris.
da Civilização Brasileira na segunda metade da Pouco depois ela ficou conhecida como Paz e
década de 1960. E muito embora esta nota de re- Terra. Em seguida convidamos o Waldo, que era
dação, publicada no volume 5-6, remetesse às protestante, para justificar o nome da revista. Ele
ações repressoras do governo militar, ela repre- trabalhou muito pelo periódico e sempre manteve
sentava, no contexto mais amplo de produção da uma orientação humanista” (FELIX, 1996).
editora, uma “solução formal” (SCHWARZ, 1978,
Esse “materialismo”, constatado por Felix em
p. 78-80) do projeto editorial originalmente pro-
menção à RCB, era, justamente, a percepção de
posto. Isto é, as modificações visíveis na RCB
que a revista havia direcionado os debates para a
foram resultados de um processo mais amplo de
discussão do marxismo e das novas revisões em
mudanças na dinâmica de produção da própria
torno do socialismo fomentadas, sobretudo, pela
editora, no sentido de manter sua identidade (se
configuração do comunismo no leste europeu e
não editorial, ao menos ideológica) crítica e não-
pelo surgimento das guerrilhas urbanas no Brasil.
sectária, para, enfim, reafirmar sua autonomia in-
A Paz e Terra procurou dar voz a outro grupo de
telectual frente à pressão do PCB e à coerção do
intelectuais de orientação humanista, não neces-
regime militar.
sariamente católica, ao mesmo tempo em que en-
Dessa forma, o nacionalismo de esquerda pre- dossava os movimentos eclesiais de base, que
sente nas páginas da RCB, sobretudo entre os propunham uma noção de resistência política que
números 1 e 5-6, começava a dar vazão às dis- passava pela valorização da espiritualidade. Movi-
cussões que reconsiderassem tal projeto à luz dos mentos fundados no engajamento de setores do
novos eventos, e não simplesmente negando-o clero progressista chamaram a atenção de diver-
como etapa superada no processo de construção sas formações culturais, que se articularam a par-

112
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 35 : 95-117 FEV. 2010

tir desses movimentos, organizando, por sua vez, acolheu a participação de intelectuais que em tor-
espaços de resistência política e cultural contra a no e a partir dela auxiliaram na criação de um pro-
ditadura. jeto ecumênico de resistência. Sua representativi-
dade, inclusive, impulsionou a proposição de um
A revista Paz e Terra, que mais tarde deu ori-
novo selo editorial a partir de 1968, que, como des-
gem à editora homônima, auxiliou nesse primeiro
creve Laurence Hallewell, destinava-se a exprimir
momento de articulação das formações culturais
o rapprochement entre os progressistas religiosos
que buscavam exercer outras formas de resistên-
de todas as igrejas cristãs, protegida por uma orga-
cia, diferente da abordagem já formulada pela
nização reconhecida legalmente aos olhos da Justi-
RCB, por exemplo. Esse propósito, inclusive, es-
ça militar e que iniciou como selo próprio, publi-
teve expresso no editorial do primeiro número da
cando 16 títulos, em 1968, e 25 títulos, em 1969.
Paz e Terra: “Nenhum encontro é mais fecundo
Uma vez que quase todas as questões sociais e
que paz e terra. Dele provém a verdadeira dimen-
políticas podiam ser encaradas pelos cristãos radi-
são do diálogo e do humanismo que possibilita às
cais do Brasil como merecedoras de uma aborda-
criaturas fazer do universo a sua morada. [...] A
gem ou interpretação religiosa, seu alcance foi de
terra não é mais o isolamento, o fim de suas bus-
amplitude notável (HALLEWELL, 1985, p. 484).
cas e pesquisas, e sim o lugar onde o homem se
afirma, transformando o mundo, acelerando a his- Com repercussão semelhante, a RCB continu-
tória, colocando a seu serviço todas as forças dis- ava, ainda assim, sendo editada. A partir de maio
poníveis. [...] Com plena consciência, o homem de 1967, com o número 13, a revista assumiu o
assume o seu papel de protagonista da história. aspecto visual e temático que foi mantido até de-
Neste mundo um objetivo nos une: a confiança zembro de 1968, quando do seu fechamento pelo
nesse homem. Não num homem qualquer, mas AI-5. Houve uma reformulação significativa na
nesse homem concreto e situado, pois o nosso estrutura de composição da revista, como, por
ponto de partida é antropológico. [...] Esse ho- exemplo, as capas e o formato do sumário, no
mem vive um processo de libertação. Libertação qual o “índice” substituía o “roteiro” temático que
de todas as suas alienações e contradições. Busca era apresentado desde os primeiros números. Essa
permanente de mais ser. Busca permanente de mais modificação foi observada no editorial que abria o
paz. A paz no mundo. Paz que una os homens num número 13, ratificando os propósitos da revista.
ecumenismo cujos limites se confundem com a Segundo consta, “com este número iniciamos o
humanidade toda. [...] Paz e Terra é o campo onde terceiro ano do nosso empenho em contribuir para
os humanismos, as igrejas e os diálogos dos ho- a formação de uma cultura autenticamente brasi-
mens de boa-vontade superam as diferenças de leira. [...] O que é importante é não esquecer que
estrutura e de instituição, raça e credo, cultura e sem indagar, a qualquer preço, pela verdade das
partido, para se encontrarem no reconhecimento realidades, a função do intelectual perde sua ca-
da necessidade de defender e promover os valores pacidade criadora [...]. Tarefa crescentemente
que se ligam à dignidade e à grandeza da vocação difícil, o importante é que isto é o que vimos ten-
do homem” (APRESENTAÇÃO, 1966, p. 2). tando – com muitos tropeços, dúvidas e erros –
durante esses dois anos de luta em um período
A partir de então, a revista Paz e Terra demar-
que toda a Nação conhece, e durante o qual o
cou um campo específico de problemas e, da
manifesto apoio das camadas sociais mais lúcidas
mesma forma, constituiu e aprofundou laços com
do nosso País foi o principal alento que tivemos.
seu público leitor. Sua orientação humanista deu à
[...] Não acreditamos em cultura – sobretudo na
publicação um novo impulso às formações cultu-
fase de perplexidade, de indagações e de crítica
rais que, de alguma forma, mantinham relações
que ora atravessamos – que não seja o diálogo
com setores da Igreja Católica e que procuravam
entre tendências e opiniões divergentes [...]. Não
também fazer resistência ao regime militar, que,
queremos nem devemos ser uma revista cultural-
cada vez mais, por meio das edições dos Atos
mente “fechada”, onde apenas um grupo ou um
Institucionais, declarava-se ditatorial.
determinado setor da inteligência brasileira se re-
Sua consolidação entre as esquerdas, setores veza na repetição alongada de dois ou três impor-
do clero e mercado de edições foi subitamente tantes acertos que fizeram: só se fecham para as
reconhecida. Em pouco tempo, a revista, como amplitudes da vida os que vão dormir ou morrer.
espaço aglutinador de resistências, fomentou e Isto porque a nossa finalidade maior [...] é a de

113
A REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

nos esforçarmos em ser uma publicação para to- litaram que fossem questionados e revistos os
das as expressões do pensamento” (DOIS ANOS rumos da música popular brasileira, numa série
DE RCB, 1967, p. 3-4). de debates e entrevistas que se seguiram do nú-
mero 3 (julho de 1965) ao 9-10 (setembro-no-
Foi com esse pressuposto de dar voz a “todas
vembro de 1966). Nas artes plásticas e no cine-
as expressões do pensamento” que a RCB iniciou
ma, as discussões também foram importantes,
um processo de aprofundamento das discussões,
sobretudo quando os debate envolviam o Cinema
sobretudo em torno do marxismo e do estruturalis-
Novo e as artes visuais de cunho experimentalista.
mo. Pouco antes, a revista já havia publicado, por
exemplo, textos de Antonio Gramsci (n. 5-6), Adam Discussões como estas continuaram abrindo
Schaff (n. 9-10), Jean-Paul Sartre e Lucien novas “frentes” de debates, propiciando sempre
Goldmann (n. 11-12). Processo que se intensifi- uma abertura maior da revista para outros temas
cou com a publicação de artigos e ensaios de Ernst que, até então, não eram contemplados entre as
Fischer, Georg Lukács (n. 13), Erich Fromm, Eric formações culturais de esquerda. Se, após 1964,
Hobsbawm (n. 14), Karel Kosic (n. 15), Louis as esquerdas revisam suas posições, a fim de ga-
Althusser (n. 16), André Gorz (n. 17), Herbert rantir espaços e a legitimidade de representação
Marcuse, Adolfo Sánchez Vázquez, Theodor Ador- no universo das produções culturais, a partir de
no (n. 18), Roger Garaudy, Maurice Duverger, 1967 outros dilemas fizeram-se presentes na or-
Walter Benjamin (n. 19-20) e Lucien Pelessier (n. ganização dessas esquerdas intelectualizadas. Uma
21-22), entre tantos outros. Desse modo, a RCB delas, já mencionada anteriormente, foi a profun-
propôs-se a trazer novas abordagens e questões da revisão pela qual o marxismo passou nas pági-
concernentes à organização do campo intelectual nas da RCB. As discussões geradas a partir de
naquele período, bem como considerou a ensaios e artigos de Leandro Konder, Carlos Nel-
inexorabilidade e o surgimento de um novo público son Coutinho, entre outros, fizeram com que o
que naquele momento organizava-se com força marxismo (e toda sua linha de interpretação mantida
política sem precedentes: o movimento estudantil. pelo PCB) fosse submetido à análise, sobretudo
Crescente, sobretudo no meio universitário, o mo- no momento em que colaboradores do meio aca-
vimento estudantil, a partir de meados de 1967, dêmico e universitário contribuíram para a dis-
influiu de forma decisiva nos debates sobre os ru- cussão com um vocabulário mais conceitual. Esse
mos da democratização no país, que, por sua vez, aspecto, por sua vez, modelou os catálogos da
envolviam setores da intelectualidade de esquerda. própria editora Civilização Brasileira, pois fez com
que Ênio Silveira providenciasse a tradução d’O
Ocorreu, devido à participação do mercado no
Capital, de Marx: a primeira tradução para o por-
processo crescente do contingente de leitores e
tuguês foi publicada pela editora em 1968. Muito
das articulações de diversos núcleos intelectuais
embora, como escreve Luiz Renato Vieira, a “ado-
de esquerda, uma série de discussões sobre os
ção do marxismo como explicação para os fenô-
rumos da transformação política e ideológica da
menos econômicos, políticos e sociais no plano
sociedade brasileira. Mesmo com a fiscalização
nacional e internacional desse o tom dos debates
dos órgãos policiais e de informação do Governo
e de muitas das publicações da editora, não era o
Federal, havia uma intensa circulação de novas
principal elemento unificador entre os intelectuais
idéias e projetos de transformação; debates sobre
que ali se reuniam. Tratava-se, sobretudo, de re-
a sociedade de massas e de consumo, como nos
conhecer no ‘povo’ a origem dos interesses mais
textos de Ferreira Gullar nos números 5-6, 7 e 8;
legítimos, e que deveriam nortear a política naci-
debates sobre o nacional-popular na cultura, em
onal rumo à construção de uma sociedade demo-
especial no teatro, em textos de Paulo Francis,
crática e independente” (VIEIRA, 1996, p. 169).
Dias Gomes, Luiz Carlos Maciel, Yan Michalski.
Aliás, a discussão sobre teatro foi contemplada VI. CONCLUSÕES
com uma edição especial de número 2 da RCB,
Todos estes fatores aqui mencionados, em
em julho de 1968, intitulada O teatro e a realidade
conjunto, possibilitaram a permanência da RCB e
brasileira.
da própria editora na cena cultural durante a dé-
Os debates estenderam-se também à música e cada de 1960. A revista e a editora propuseram-se
às artes plásticas. Discussões que envolveram a a discussões em torno do engajamento e do com-
participação de músicos, compositores e possibi- prometimento social dos intelectuais, sobretudo

114
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 35 : 95-117 FEV. 2010

na sua vertente marxista, fomentando um con- âmbito da cultura, viu-se atrelada desde o princí-
junto de pequenas mudanças, que, consideradas pio à estrutura de mercado. Essa condição possi-
individualmente, podem sugerir etapas de uma bilitou não somente coordenar o plano de produ-
“evolução” da revista ou do grupo de seus cola- ção e circulação dos produtos culturais, mas dar
boradores. No entanto, essas mudanças pontuais sustentação a esses produtos junto a um público
consideradas num conjunto mais amplo de orga- consumidor que, ao mesmo tempo, fomentava as
nização dos intelectuais no espaço público, assim discussões adquirindo as revistas nas bancas de
como a construção de sua representação social jornal e na livrarias.
no mercado de bens culturais, apontam para um
Daí também a importância em considerar es-
quadro mais complexo no qual estas questões se
ses dois aspectos como fatores constituintes de
encerram.
uma resistência cultural na vigência do regime
Do ponto de vista da organização, os intelec- militar: de um lado, a organização dos intelectuais
tuais envolvidos no projeto editorial da RCB esti- que passava em revisão as bases do seu
veram sempre empenhados em debater os pres- engajamento e sua vinculação direta a uma insti-
supostos de sua articulação no plano da cultura. tuição partidária, no caso o PCB; de outro, a afir-
Sua legitimação dava-se proporcionalmente na mação da figura do intelectual livre, independente
afirmação da importância da figura do intelectual e crítico, alentado pelo mercado que oferecia o
no espaço público – em especial, nos meios de “lugar” necessário para a concretização dessa
comunicação –, como um epicentro pelo qual pas- mudança. É, pois, dentro desse contexto que a
savam em debate os projetos para a transforma- RCB esteve inserida, como espaço para a articu-
ção da sociedade brasileira. lação da intelectualidade nacionalista de esquerda
e também como laboratório para as novas gera-
Por outro lado, essa mesma organização, por
ções de intelectuais que na década de 1970 passa-
meio da representação social dos intelectuais no
riam por uma nova fase de renovação.

Rodrigo Czajka (rodrigoczajka@yahoo.com.br) é Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de


Campinas (Unicamp) e Professor na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 35 : 233-238 FEV. 2010

CONSTRUCTION OF THE STATE, THE POLITICAL SPHERE AND THE


PROFESSIONALIZATION OF JOURNALISM IN BRAZIL
Fernanda Rios Petrarca
This article analyzes the relationship between processes of State construction and proposals for the
organization of professional groups in Brazil, taking the case of journalism and its professionalization
as our empirical reference. We consider the relationship between a series of phenomena – the
emergence of formal criteria for exercise of the profession, the creation of representative entities
and the establishment of institutions for professional training – and the social uses of this process
with the trajectories of the agents who participate. One of the major goals of our text is to supply
elements, based on particular theoretical and methodological conceptions, to reflect on the process
of organization and institutionalization of the professions in Brazil and their broader relation to the
political sphere. Within the Brazilian context, we have seen that the dynamics for construction of
political and professional spheres occur simultaneously and with heavy mutual interference. Thus,
through the experience of journalism, we are able to demonstrate that professional recognition
becomes a resource of action in Brazilian politics.
KEYWORDS: State; professions; journalism; political sphere.
* * *
THE JOURNAL REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA: EDITORIAL PROJECT AND CUL-
TURAL RESISTENCE (1965-1968)
Rodrigo Czajka
During the first years of the military dictatorship, established in Brazil through a coup d’État, a
number of institutions which repression had left unarticulated began a process of resistance and
opposition to the military government. Cultural resistance was one of the consecrated forms of
resistance that was exercised by intellectuals, artists, professors and cultural producers, among
others, and that became an unprecedented political and cultural phenomenon in the country’s history.
Political, insofar as it aided in the process of re-organizing left-wing political parties and in the
revision of the ideological postulates of its preeminent party, the PCB (Partido Comunista Brasileiro
– Brazilian Communist Party). Cultural, because this re-organization occurred, frequently, within the
ambit of cultural productions, in which the left created a space for contestation and engagement
through the arts and intellectual activities. Within this process, between the years 1965 and 1968.
The journal Civilização Brasileira became an important space for the building of leftist cultural
resistance against the military dictatorship. The journal was able to impose its political legitimacy
while at the same time participating actively in a market o cultural goods sustained by the so-called
“cultural hegemony” of the left.
KEYWORDS: communist press; leftist intellectuals; cultural resistance; military dictatorship.
* * *
THE MILITARIZATION OF PUBLIC SECURITY: AN OBSTACLE FOR BRAZILIAN
DEMOCRACY
José Maria Pereira da Nóbrega Júnior
Maintaining members of the military and increasing their prerogatives within the ambit of the public
security issues are criteria that limit civil autonomy in areas of management, planning and strategic
actions in security. This authoritarian legacy in the Federal Constitution and within some institutions
of coercive power, particularly the Ministry of Defense and the Brazilian Intelligence Agency (Agência
Brasileira de Inteligência – ABIN), has led to the non-consolidation of democracy in Brazil, since
civilian control therein remains quite fragile. In this regard, the goal of this paper is to demonstrate

235
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 35 : 241-246 FEV. 2010

période antérieure aux années 1980. Ensuite, l’accent est mis sur l’impact restrictif des crises
économiques internationales sur la situation en Afrique et au Brésil tout en cherchant à identifier
son impact sur la politique étrangère du Brésil vers l’Afrique. Le troisième thème porte son attention
sur le potentiel disponible au Brésil sur le continent africain, mettant l’accent sur les politiques et les
propositions de politique étrangère mises au point par le gouvernement Lula. La dernière section
tente de résumer les arguments présentés.
MOTS-CLÉS : politique étrangère ; agenda politique ; relations commerciales ; Brésil ; Afrique.
* * *
CONSTRUCTION DE L’ÉTAT, CADRE POLITIQUE ET PROFESSIONNALISATION DU
JOURNALISME AU BRÉSIL
Fernanda Rios Petrarca
Cet article analyse la relation entre le processus de construction de l’état et le projet proposé pour
l’organisation des mondes profissionnels au Brésil, en ayant comme référence empirique le cas du
journalisme et sa professionnalisation. On a pris en compte la relation entre l’introduction des critères
formels d’entrée dans l’activité professionnelle, la création d’organismes représentant la catégorie
professionnelle et la mise en oeuvre des institutions d’enseignement avec les usages sociaux de ce
processus et les trajectoires des agents impliqués. L’un des principaux objectifs de ce texte consiste
à fournir des éléments, base sur certains concepts théoriques et méthodologiques, qui puissent
mener à la réflexion du processus d’organisation et d’institutionnalisation des professions au Brésil
et son rapport au politique en général. Dans le contexte brésilien, on a observé que la dynamique de
la construction d’une sphère politique et professionnelle se produit simultanément avec une forte
interférence entre elles. Donc, de l’expérience du journalisme il est demontré que la reconnaissance
professionnelle est devenue une ressource pour l’action dans la politique brésilienne.
MOTS-CLÉS : État ; profession ; journalisme ; politique.
* * *
LA REVUE CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA : PROJET D’ÉDITION ET RÉSISTANCE
CULTURELLE (1965-1968)
Rodrigo Czajka
Dans les premières années de la dictature militaire, instaurée au Brésil, en 1964, par un coup d’État,
plusieurs institutions dispersées par la répression ont commencé un processus de résistance et
d’opposition au régime militaire. La résistance culturelle a été l’un des moyens consacrés de résistance
chez les intellectuels, artistes, enseignants, producteurs culturels, entre autres, et qui a aussi été un
phénomène culturel et politique sans précédent dans l’histoire du Brésil. Politique, parce qu’il a mis
en oeuvre la réorganisation des partis de gauche et la révision des postulats idéologiques de leur parti
de premier plan, le Parti communiste brésilien. Culturel, parce que cette réorganisation a eu lieu
souvent dans le cadre des productions culturelles, dans lequel la gauche a créé un espace de
contestation et d’engagement par le biais des arts et des activités intellectuelles. C’est au cours de
ce processus que le magazine Civilisation Brésilienne a représenté un espace important pour la
construction de cette résistance culturelle de gauche contre la dictature militaire, entre les années
1965 et 1968. La revue s’est imposée avec une légitimité politique tout en participant activement à la
formation d’un marché pour les biens culturels soutenu par ce qu’on appelle “l’hégémonie culturelle
de gauche”.
MOTS-CLÉS : presse communiste ; intellectuels de gauche, résistance culturelle, dictature militaire.
* * *

243

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