Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Faculdades de Campinas
Abril de 2011
Agradecimentos
Aos meus caros professores Gustavo Escher Dias Canavezzi, Gustavo dos
Reis Gazzola, e José Carlos Evangelista de Araújo, por serem exemplos de educadores e,
sobretudo, pela amizade.
PROTOS LOGOS p. 1
ARQUITETÔNICA DO ENTENDIMENTO p. 8
1
II. DA POSSIBILIDADE DE SUBVERSÃO POLÍTICA POR PARTE DO
MAGISTRADO p. 26
A SOBERANIA DO MAGISTRADO P. 40
2
III. DA LEGITIMIDADE E DA LEGALIDADE DA VONTADE FICTA DO
MAGISTRADO p. 44
A TRAGÉDIA DO MAGISTRADO P. 45
A BALANÇA DO DIREITO P. 48
CONCLUSÃO P. 60
BIBLIOGRAFIA P. 64
3
“o que mais merece ser pensado em nosso tempo
problemático é o fato de que nós não pensamos”.
Heidegger
Protos Logos
1
Segundo Hans Kelsen, a analítica estática tem por objeto a norma jurídica em seu momento estático,
isto é, não analisa os movimentos de produção e de aplicação da norma jurídica; tais movimentos são
objetos da analítica dinâmica.
2
C.f. Hans Kelsen, “As proposições ou enunciados nos quais a ciência jurídica descreve estas relações
devem, como proposições jurídicas, ser distinguidas das normas jurídicas que são produzidas pelos
órgãos jurídicos a fim de por eles serem aplicadas e serem observadas pelos destinatários do Direito.
Proposições jurídicas são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o
sentido de uma ordem jurídica - nacional ou internacional - dada ao conhecimento jurídico, sob certas
condições ou pressupostos fixados por esse ordenamento, devem intervir certas conseqüências pelo
mesmo ordenamento determinadas. As normas jurídicas, por seu lado, não são juízos, isto é, enunciados
sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas são antes, de acordo com o seu sentido, mandamentos e,
1
Segundo Kelsen, o direito se organiza enquanto um sistema de sentido dinâmico
cuja validade das normas jurídicas é de caráter formal, ou seja, deriva da autoridade que
atribui sentido à norma, e não do conteúdo da mesma. Se assim fosse, o direito se
organizaria enquanto um sistema de sentido estático. Nos termos do próprio Kelsen:
[...]
O estudo que aqui propomos não se orienta nem se desenvolve enquanto uma
leitura que buscasse apresentar a gênese da obra de Kelsen, o que implicaria desenvolver
uma investigação da Teoria Pura do Direito no intuito de localizá-la na tradição jurídica
alemã; tampouco é objetivo desse estudo apresentar uma leitura estrutural da obra, mas
sim, pressupondo leitura imanente, apresentar as insuficiências do kantismo analítico de
Kelsen, no enfrentamento do problema moderno que sua teoria acabou por manifestar.
como tais, comandos, imperativos. Mas não são apenas comandos, pois também são permissões e
atribuições de poder ou competência.” Teoria Pura do Direito, cap. III, p. 51.
2
propõe uma ideologia ou que ele na verdade se posiciona como voluntarista. O
verdadeiro exercício da crítica não é rebaixar o objeto de seu entendimento, mas sim,
tornar perceptível as incongruências e antinomias — talvez as contradições — do objeto,
ressaltando, inclusive, a necessidade de certas ilusões.
3
internacional e tem caráter geral, quer dizer, cria Direito não apenas para um
caso concreto, mas para todos os casos iguais, ou seja, quando o ato designado
como interpretação autêntica represente a produção de uma norma geral. Mas
autêntica, isto é, criadora de Direito é-o a interpretação feita através de um órgão
aplicador do Direito ainda quando cria Direito apenas para um caso concreto,
quer dizer, quando esse órgão apenas crie uma norma individual ou execute uma
sanção.” Teoria Pura do Direito cap.VIII, p 249.
“A propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer,
da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se
realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma
norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da
moldura que a norma a aplicar representa.” Teoria Pura do Direito cap.VIII, p 250.
[nota: grifo nosso]
3
Podemos apresentar dois exemplos de críticas feitas ao pensamento de Hans Kelsen, às quais o
presente trabalho classifica como formais. Isto porque, não direcionam seu juízo crítico para o
fenômeno da vontade ficta do magistrado como sendo o elemento nuclear do problema des-velado por
Kelsen. O representante da chamada teoria realista do direito Alf Ross objeta à Teoria Pura do Direito
entre outras coisas, o fato de que a sua determinação do conceito de dever jurídico conduziria a um
regressum ad infinitum. O dever de realizar uma determinada conduta seria constituído por uma norma
que obriga um órgão jurídico a reagir com uma sanção, no caso de uma conduta oposta. Este dever do
órgão poderia, porém, ser constituído por uma norma que obrigasse outro órgão, no caso de o primeiro
não cumprir o seu dever, a reagir com uma sanção “e assim por diante, interminavelmente”. Já o
representante do marxismo soviético Evgeni Pachukanis foi certeiro ao identificar que no
desenvolvimento do capitalismo o direito acabou por tomar a forma da mercadoria. No entanto, ao
criticar o pensamento de Hans Kelsen, só se ocupa de afirmar que a teoria pura de Kelsen contribuiu
para cientificizar o do direito positivo ao qual Pachukanis se refere como direito burguês.
4
Quando se atribui uma soberania absoluta ao arbítrio particular, o fenômeno
político-jurídico que podemos perceber é a exceção. Este problema – moderno por
excelência – nos coloca diante de questões situadas no limiar da contemporaneidade,
pois, no limiar de sua constituição o direito parece se constituir como um ato político, o
que, por seu turno, nos devolve à consideração de um fenômeno especificamente
moderno: a alienação entre o direito e a política.
Para enfrentarmos estas questões, devemos descer até o nono ciclo deste
submundo que parece se constituir à sombra da miragem burguesa: será necessário nos
5
valermos da visão aguda de Hegel sobre a formulação precisa do problema relativo à
particularização do direito público. É de se esperar que teremos, assim, uma visão
ampliada do problema em toda a sua envergadura: com efeito, é no próprio núcleo dessa
problemática que se engendra uma necessidade simultaneamente singular e concreta: a
de uma formação desse magistrado que parece se constituir como soberano absoluto,
formação esta que a Faculdade de Direito pretende ignorar completamente. Ora, as
exigências postas por esta Bildung nos apresentam a necessidade de pensar uma filosofia
política negativa que não se perca nos labirintos infernais da tradição liberal.
6
I
7
uma investigação sobre a antinomia da razão pura, a sua gênese e o seu
resultado. Podemos conferir essa leitura no trecho que segue:
ARQUITETÔNICA DO ENTENDIMENTO
8
sua análise da doutrina dos costumes. Os fundamentos últimos do Direito e da
Doutrina da Virtude (Ethica) são os mesmos, em conseqüência da unidade da
razão prática, sendo as duas legislações provenientes da — autonomia da
vontade — que é o fundamento de ambas, ao passo que o imperativo categórico
é o princípio supremo da doutrina dos costumes.
Formuladas essas proposições a respeito da importância da autonomia da
vontade como fundamento das legislações jurídica e ética, Kant define o direito a
partir de dois elementos básicos que, além de definir o próprio direito,
constituem seu princípio universal. Podemos identificá-lo na lei universal do
direito cuja formulação é a seguinte: “Age exteriormente de tal maneira que o
livre uso do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um, segundo
uma lei universal”4 . Os elementos básicos contidos nesta lei universal são a
relação mútua dos arbítrios e a universalidade da lei.
Kant identifica a especificidade do direito nesta relação mútua dos
arbítrios à medida que trata da relação externa das pessoas, ao mesmo passo em
que paralelamente caracteriza a liberdade como limitação mutua da liberdade.
Desta forma, há uma definição específica do direito: “O direito é a limitação da
liberdade de cada um como condição de seu acordo com a liberdade de todos,
enquanto essa é possível segundo uma lei universal5. Eis aqui uma primeira
tensão presente na obra de Kant, pois a liberdade se entende como limitação
recíproca (dos arbítrios e da liberdade de cada um), por um lado, e, por outro, é
entendida como autonomia.
Contudo, Kant constata que o móbil do Direito, ou seja, o respeito à lei
jurídica que obriga o indivíduo a praticar ou omitir-se à prática de uma
determinada conduta, não pode ser o próprio dever; é necessária uma coerção
(Zwang) externa que exija a realização de uma conduta determinada. Isto já nos
coloca diante de uma segunda tensão, o problema da conciliação da coerção com
a liberdade, que Kant resolverá a partir de um raciocínio que parece o levá-lo ao
limiar da dialética hegeliana6.
4
C.f. Ricardo R. Terra em A Política Tensa, ed. Iluminuras – São Paulo -1995.
5
Immanuel Kant - Theor. Prax VIII, 290.
6
Como veremos mais adiante.
9
No ímpeto de tratar o problema da liberdade sob o prisma da teoria pura
do Direito, Kelsen afirma que, quando um homem é moral ou juridicamente
responsabilizado pela sua conduta moral ou imoral, jurídica ou antijurídica, num
sentido de aprovação ou desaprovação, esta imputação encontra o seu ponto
terminal na conduta do homem interpretada enquanto ato meritório, como
pecado ou como ilícito. Para Kelsen, o verdadeiro significado da idéia de que o
homem, como sujeito de uma ordem moral ou jurídica, é livre implica a idéia de
uma conduta que constitui o ponto terminal da imputação que, de acordo com a
causalidade da ordem da natureza não é, nem como causa nem como efeito, um
ponto terminal, mas, apenas um elo numa série sem fim.
No passo seguinte, Kelsen começa a dar testemunho da natureza pré-
crítica de seu sistema, pois começa a aprisionar o exercício da Razão nos limites
do mundo fenomênico como podemos ver no trecho a seguir:
O trecho que acabamos de ler, nos mostra como Kelsen trata dos
conceitos de causalidade e imputação entendidos enquanto dogmas contrários.
Ele insiste em atribuir à imputação, mais que à causalidade, um direito especial à
aprovação. Isto porque, como dito no início deste capítulo, Kelsen se limita a
exercitar a razão apenas nos limites do entendimento; portanto, não procede à
devida exposição nem toma em devida consideração a antitética entre a
categoria causalidade e a liberdade. Ora, para Kant, a liberdade só pode ser uma
Idéia, visto que toda experiência supõe uma determinação causal dos fenômenos,
o que exclui, precisamente, o ato livre; contudo, embora seja apenas uma Idéia,
ela é, enquanto liberdade transcendental, fundamento da liberdade prática: ou
ainda, “a independência do arbítrio em relação à coação dos impulsos da
sensibilidade”7.
7
Kritik der reinen Vernunft, A534/B562.
10
A autonomia kantiana: elevada ao plano do pensamento ou rebaixada a ficção
supérflua?
11
lhe está submetido, é que a imputação pode ter lugar.” Teoria Pura
do Direito – cap. III, p 67.
Ora, a afirmação de que a ordem jurídica pressupõe homens não livres nos
coloca um problema que, levado ao seu limite, se nos tornaria impossível pensar
o direto moderno. Kant é certeiro ao identificar que o fundamento, tanto do
direito quanto da ética, é a postulação de que a autonomia da vontade é pensável
como liberdade. Ao postular a autonomia, esta dimensão da liberdade é elevada
ao plano do pensamento; portanto, não mais restrita à dimensão dos objetos
cognoscíveis. Em nota ao capítulo concernente à aparência transcendental, Kant
formula o seguinte argumento:
12
nos deparamos com a formulação kelseniana do problema da liberdade,
formulação que nos levará a uma descida muito mais profunda no labirinto
analítico de Kelsen; pois a argumentação apresentada na nota 24 ao capítulo III
da Teoria Pura do Direito nos expõe não só insuficiências do kantismo de Kelsen,
mas, também, graves reducionismos cometidos contra o pensamento kantiano.
Para Kelsen, a conseqüência que tiramos deste arranjo analítico é que não
existe qualquer contradição entre a causalidade da ordem natural e a liberdade
sob a ordem moral ou jurídica, simplesmente porque a primeira é uma ordem de
ser e as outras são ordens de dever-ser. Podemos constatar que Kelsen se vale a-
criticamente da Razão, ao utilizar os conceitos do entendimento empregados em
toda atividade sintética, sem porém promover a devida expansão desses
conceitos, o que o levaria a operá-los para além dos limites desta experiência;
13
isto iria a produzir teses sofísticas, que da experiência não têm a esperar
confirmação, nem refutação a temer, sendo que cada uma delas não somente não
encerra contradição consigo própria, mas encontra mesmo na natureza da razão
condições da sua necessidade; a proposição contrária, porém, infelizmente, tem
por seu lado fundamentos de afirmação igualmente válidos e necessários.
Assim fica claro que Kelsen não dispõe da antitética ao tratar do problema
da liberdade, atendo-se a lançar mão de uma distinção tipológica entre
causalidade natural e imputação normativa, distinção em que se restringe à
afirmação de dogmas do lado contrário.
É necessário, porém, ir mais fundo na análise deste arranjo analítico, a fim
de identificarmos a amplitude do reducionismo que Kelsen vai empreitar contra
o pensamento kantiano.
De saída, a distinção tipológica que Kelsen faz entre causalidade natural e
imputação normativa é meramente formal, isto é, não permite avançar no
conhecimento dos limites da distinção, bem como não permite pensar a
distinção entre fenômenos reais e significações numênicas; e, como tal, ela
implica no exercício do arbítrio, isto é, não se permite dar voz à expressão
proposicional do contraditório. No trecho seguinte, Kelsen reduz a liberdade ao
dogma teológico do livre-arbítrio:
O que significa tal vontade? Ora o que está em jogo aqui é o fundamento
de validade que dá inicio à série da imputação. Kelsen acusa ilegalmente8 Kant de
8
Ilegal é uma disputa pública das opiniões, por conseguinte, um conflito erudito ou quanto à
substância, se não fosse sequer permitido impugnar uma proposição pública, porque não é permitido
proferir um juízo público sobre ela e o seu contrário; ou simplesmente quanto à forma, se o modo como
é conduzida a discussão não assenta em argumentos objetivos que se dirigem à razão do adversário,
mas em motivos subjetivos que determinam o seu juízo mediante a inclinação para, graças à astúcia
(que engloba igualmente a corrupção) ou à violência (ameaça), o levar ao consentimento. Conflito das
Faculdades, pp. 33-34.
14
tomar a liberdade como uma significação numênica, tal como Deus ou a
imortalidade da alma; mas, se assim fosse, a antinomia instaurada no exercício
antitético a respeito da idéia cosmológica da Liberdade se resolveria
simplesmente por constatarmos que não podemos nos apoiar num pretenso
conhecimento do mundo, ao mesmo passo que, dele, só podemos dispor com
uma intuição bastante limitada.
Mas desta forma sucita-se outra questão: de que trata a Terceira
Antinomia da Razão Pura? Sabe-se que a terceira antinomia diz respeito ao
dogmatismo, na medida em que este presume estabelecer efetivamente a
existência determinada de um certo número de representações do mundo
enquanto realidades substanciais. Entretanto, ao fornecer um fundamento
especulativo para o sentimento de liberdade, a terceira antinomia dá testemunho
de um interesse prático.
Levando em consideração que a idéia transcendental de liberdade é –
assim como a idéia da alma e a do mundo – um efeito inevitável da racionalidade
pura, conclui-se que não se há de tomá-la como um mero e simples erro. É
permitido esperar que a liberdade deva poder desempenhar um papel singular na
vida do espírito, contanto que, para ela, se admita uma disciplina muito
específica, capaz de impedir extra-vagâncias transcendentes, derivas na esfera no
supra-sensível.
15
homogeneidade, variedade e afinidade de todas as leis que, em seguida, o
entendimento poderá formar9.
9
Kritik der reinen Vernunft, A 657/ B 686.
16
conteúdos de sentido, e não os atos da ordem do ser insertos no nexo
causal, cujo sentido são as normas. Isso não significa de forma alguma
que as normas, como na Ética de Kant (Schlick, op. cit., p. 8), sejam
comandos sem um comandar, exigências sem um exigir, isto é,
normas sem atos que as ponham.” Teoria Pura do Direito, nota 1 ao
cap. III, p 256.
Tal como Kant, Kelsen não distingue a norma jurídica e a norma ética,
enquanto conteúdos de sentido e não enquanto atos da ordem do ser insertos no
nexo causal. Porém, como Kelsen substitui a relação de causalidade por liberdade
pela relação de imputação, a hipótese de autocoerção se torna irrelevante; o que,
para ele, é argumento suficiente para, neste passo da argumentação, rebaixar a
Ética ao status de uma legislação inefetiva.
Jamais ocorreria ao autor da Fundamentação da Metafísica dos Costumes
rebaixar a Ética a uma legislação inefetiva. Kant apresenta como critério de
distinção entre a legislação jurídica e a legislação ética o fato de que a coação
característica da norma jurídica é uma coação externa. Porém essa externalidade
não confere ao Direito o papel de legislação supra-moral, tal como postula
Kelsen.
Por isso pode-se dizer, do homem, numênico, que ele é livre tanto moral
como éticamente inserto na ordem transcendental; isto não impede que se diga,
do homem fenomênico, que sua vida é calculável como um fenômeno
considerável como inserto na ordem natural. Da Fundamentação da Metafísica
do Costumes à Crítica da Razão Prática tal distinção se torna explicita:
10
Kant, Crítica da Razão Prática.
17
Para além do caráter problemático que reside em distorcer a noção
kantiana de autocoerção (Selbstzwang) enquanto móbil da Ética, podemos
constatar que Kelsen não leva em conta a amplitude do conceito de causalidade
por liberdade reduzindo a terceira antinomia da Razão Pura a uma questão
tópica. Ao passo que empreende esta redução, Kelsen incorre em outro
reducionismo grave, o de enclausurar o pensável ao cognoscível. Em Kant o
homem não aparece como objeto ontológico da Razão, se assim fosse, Kant seria,
simplesmente, um autor pré-crítico. Se levarmos a distinção kelseniana do
homem inteligível em relação ao homem empírico ao seu limite conceitual, isso
implicaria dizer que as três críticas de Kant não surtiram efeito algum na história
do pensamento.
No passo seguinte Kelsen acaba por incorrer num rebaixamento que, se
mantido, acaba por constituir um absurdo de obrigar o pensamento kantiano a
tratar tão somente da existência da coisa em si enquanto tal. Para sustentar sua
diferenciação entre causalidade e imputação, Kelsen incorre na indiferenciação
entre postular e pressupor.
18
Kelsen se apropria perversamente11 do conceito de imperativo categórico para
formular o seu próprio candidato a pressuposto (eis aí um problema conceitual
grave em relação ao kantismo) universal do Direito, a saber, a norma
fundamental (Grundnorm).
11
O sentido em que utilizamos o advérbio ficará elucidado no momento posterior do trabalho, no qual
trataremos minuciosamente do que consideramos perverso na apropriação kelseniana do conceito de
imperativo categórico.
19
Imperativo categórico per analogiam: uma apropriação indébita e funcional
12
KANT, Immanuel. “Fundamentação da metafísica dos costumes”. In Textos selecionados.
São Paulo, Abril, 1994 (Col. Os Pensadores). p. 101-162.
20
No exercício de sua analogia, Kelsen atribui à norma fundamental o status
de princípio objetivo universal, tomando-a como se fora um imperativo
categórico. Porém, como foi dito, essa apropriação realizada por Kelsen é
indébita, pois o jurista afirma que a norma fundamental é pressuposta
logicamente. Ora, se a norma fundamental é um princípio objetivo universal, ela
não pode ser pressuposta, mas apenas reconhecida por aqueles que vivem sob a
Idéia de Liberdade; e mais, exatamente por conta disso, a norma fundamental só
poderia ser postulada, e não um pressuposto lógico transcendental.
21
além do tempo e do espaço. No mesmo raciocínio, Kelsen atribui à norma
fundamental o status de princípio ordenador da pluralidade de normas jurídicas
gerais e individuais postas pelos órgãos jurídicos, como podemos conferir no
trecho que se segue:
“Assim como o caos das sensações só através do conhecimento
ordenador da ciência se transforma em cosmos, isto é, em natureza
como um sistema unitário, assim também a pluralidade das normas
jurídicas gerais e individuais postas pelos órgãos jurídicos, isto é, o
material dado à ciência do Direito, só através do conhecimento da
ciência jurídica se transforma num sistema unitário isento de
contradições, ou seja, numa ordem jurídica.” Teoria Pura do
Direito, p. 52, § 1.
22
substituição da legitimidade (puramente kantiana) por uma legalidade
(‘puramente’) kelseniana.
**
23
aplicação da norma jurídica ao caso concreto, a vontade livre não constitui uma
mediação entre o arbítrio e o dever-ser ou, o que é mais grave, a vontade ficta
começa a apresentar o arbítrio – arbítrio a-crítico – do intérprete autêntico.
“Também é verdade que, no sentido da teoria do conhecimento de
Kant, a ciência jurídica como conhecimento do Direito, assim como
todo o conhecimento, tem caráter constitutivo e, por conseguinte,
“produz” o seu objeto na medida em que o apreende como um todo
com sentido. Assim como o caos das sensações só através do
conhecimento ordenador da ciência se transforma em cosmos, isto é,
em natureza como um sistema unitário, assim também a pluralidade
das normas jurídicas gerais e individuais postas pelos órgãos jurídicos,
isto é, o material dado à ciência do Direito, só através do
conhecimento da ciência jurídica se transforma num sistema unitário
isento de contradições, ou seja, numa ordem jurídica. Esta
“produção”, porém, tem um puro caráter teorético ou gnoseológico.
Ela é algo completamente diferente da produção de objetos pelo
trabalho humano ou da produção do Direito pela autoridade jurídica.”
Teoria Pura do Direito, cap. III, p. 52, § 1.
13
Se estivermos certos, levar a arquitetônica analítica de Kelsen ao seu limite conceitual implica afirmar
que para Kelsen, toda produção da razão que se situar fora dos domínios do simples entendimento,
consiste numa ficção. Ora, isso levado às últimas conseqüências nos leva a concluir que, para Kelsen,
toda a racionalidade que se situar fora da dimensão analítica não passa de uma produção fictícia. Assim,
nos termos em que a arquitetônica kelseniana se nos apresenta, a Razão em sua plenitude consistiria
em nada mais que uma produção fictícia.
24
Mas isso não será pagar muito caro a destruição da metafísica dos
costumes? E valeria mesmo a pena fazer da moralidade kantiana uma “fábula
para adultos”, para fazer do Direito Puro uma dimensão necessária da existência
humana?
25
II
Kant define o Direito Público como um sistema de leis para um povo, que,
achando-se os indivíduos entre si numa relação de influência recíproca, necessitam do
estado jurídico sob uma vontade que os unifique, ou seja, necessitam de uma
Constituição. Este estado dos indivíduos num povo, em relação uns com os outros,
chama-se estado civil (status civilis) e o seu todo, em relação a seus membros, chama-se
Estado (civitas), e, pelo fato de a união entre os membros presumir-se hereditária,
chama-se, também, nação (gens).
A instituição de uma ordem jurídica em regiões em que uma ordem anterior já foi
instituída só pode se dar segundo Kant por meio de um contrato, pois, se ocorrer pela
violência, tal ordem jurídica seria fruto de uma injustiça, injustiça esta que não se desfaz
sob a alegação de que a instituição de tal ordem teve de ser violenta por conta de que a
ordem anterior fosse corrupta, primitiva, ou ainda, que tal região fosse um estado sem
lei. Tal raciocínio se desenvolve no trecho que podemos ver a seguir:
“— Pode objetar-se contra isto que face a uma tal reserva em relação a
começar por estabelecer mediante a força um estado legal talvez estivesse
ainda a terra inteira num estado sem lei: mas tal objeção não pode anular
aquela condição jurídica, como não pode a pretexto dos revolucionários
do Estado de que quando são más as Constituições cabe também ao povo
14
Teoria Pura do Direito – cap. III, p 66.
26
alterá-las pela força e ser de uma vez por todas injusto, para estabelecer
depois de modo mais seguro a justiça e fazê-la florescer.”
Visto que, segundo Kant, direito e competência para coagir significam a mesma
coisa, o problema que se apresenta é o da conciliação da coerção com a liberdade.
27
acordo com a liberdade segundo leis universais, ou seja, é
justa.”Rechtslehre,cap. VI, 231
Esse raciocínio não parece nos levar ao limiar da dialética hegeliana? Ora, o que
parece estar em jogo é o poder constituinte e, portanto, a fundação do próprio Direito.
Porém para avançar nessa questão devemos retomar o ponto mais polêmico da teoria
kelseniana, visto que, como dito na introdução do presente trabalho, Kelsen tornou
manifesto o fenômeno essencial do Direito, ou seja, em termos hegelianos, é permitido
afirmar que é da essência do direito positivo aparecer como a vontade ficta do
magistrado.
28
No trecho citado acima, notamos que esta interpretação que cria o direito se
distingue das demais interpretações do texto da Lei operadas pelos indivíduos privados
pelo fato de o interprete que cria o Direito ser investido de competência, ou seja,
autoridade para coagir. Isto fica mais claro quando nos remetemos à idéia kelseniana de
que o sistema jurídico peculiar ao Direito Positivo é um sistema cuja natureza é formal,
ou seja, o que dá sentido ao escalonamento da ordem jurídica é a autoridade de quem
positivou a norma, seja em um sentido geral, seja aplicada ao caso concreto. Assim
sendo, quanto mais ampla é a competência, mais próxima do ápice de tal escalonamento
fica a norma criada. Este sentido formal é para Kelsen um sentido dinâmico como
podemos ver no trecho a seguir:
Segundo Kelsen a lei enquanto texto normativo sempre estabelece o Direito a ser
aplicado: todavia, esta indeterminação sempre é ampla porque a lei constitui uma norma
em geral, sendo que, enquanto texto, esta norma em geral estabelece uma série de
sentidos possíveis. A esta série de sentidos Kelsen dá o nome de moldura da norma
jurídica, como podemos ver no trecho a seguir:
29
Desta forma ao aplicar a norma jurídica ao caso concreto, o magistrado estaria
em total concordância com a função que lhe é atribuída na divisão15 dos poderes estatais,
ou seja, a função de aplicar a lei criada pelo soberano do povo (o legislador).
Porém Kelsen torna manifesto, no entanto, o fato de que o magistrado pode interpretar
até mesmo fora da moldura:
Esta afirmação nos expõe exatamente como o fenômeno da vontade ficta se insere
no núcleo da ordem jurídica, visto que cria e dá sentido de validade ao Direito. Porém a
inovação trazida pela Teoria Pura do Direito é o fato de esta vontade que criar o Direito
mesmo que em completa inconformidade com a Lei.
Assim, nos colocamos diante de dois problemas: o primeiro diz respeito à criação do
Direito, pois se levarmos a cabo a arquitetônica analítica de Kelsen esta vontade ficta será
sempre a manifestação pública do arbítrio (willen); o segundo problema se instaura por
conta do conceito de autonomia da vontade, pois, como pode o individuo livre ser
obediente a uma lei que não é fruto de sua vontade soberana enquanto membro do
povo?
15
Uma leitura equivocada da obra de Montesquieu levou os constitucionalistas brasileiros a pensarem
numa separação do poder estatal em três poderes, a saber, o Poder Legislativo, o Poder Executivo, e o
Poder Judiciário. Ocorre que tal leitura implicaria pensar que o Estado se fragmentou em três poderes,
quando na verdade a proposição de Montesquieu é a de que o exercício do poder estatal se divide em
três funções: a função de legislar, a função de executar as determinações da lei, e a função de julgar.
30
Ao enfrentar o primeiro problema cuja resolução é dada por Kelsen recorrendo à
distinção entre o que ele denomina como interpretação autêntica e interpretação não
autêntica, vamos tentar, agora, delinear a figura do interprete autêntico e de seu
antagonista, investigando sobretudo os passos dados pelo jurista no encaminhamento do
capítulo VIII da Teoria Puro do Direito.
Para Kelsen a interpretação feita pelos órgãos jurídicos é sempre autêntica, visto
que esta interpretação assume a forma de uma lei ou de um tratado de Direito
internacional e tem caráter geral, ou seja, cria Direito não apenas para um caso concreto
enquanto criação de uma norma individual ou execução de uma sanção, mas para todos
os casos iguais enquanto norma geral.
Portanto, para Kelsen, a interpretação autêntica é aquela que cria o Direito. Mas
se assim for, a solução kelseniana não passará de um exercício meramente tautológico: a
interpretação é autêntica porque a autoridade é competente; e a autoridade é
competente porque sua interpretação é sempre autêntica. Isto significa que toda
interpretação feita pela autoridade competente para coagir é considerada autêntica, e se
assim for, como determinar a vontade ficta enquanto vontade não arbitraria? Antes de
responder a esta pergunta, vamos recordar o que Kelsen entende por “autenticidade”.
16
Teoria Pura do Direito, cap. IV, p 102.
31
manifesta em todos os casos em que a ordem jurídica atribui a determinados indivíduos
um poder jurídico.
Todavia, para que o exercício deste poder jurídico seja definido como
competência, é necessário que o indivíduo que o está exercendo não o faça enquanto
uma pessoa privada, que delibera sobre os termos de um contrato, ou enquanto pessoa
jurídica de Direito público, tal como um Estado deliberando os termos de um tratado
internacional, mas o faça enquanto órgão da comunidade jurídica. Podemos ver tal
diferenciação no trecho que se segue:
Nota-se então que a competência é um poder jurídico muito específico, pois o ato
de vontade que o cria não se confunde com os interesses privados da pessoa que o
exerce, quer dizer, neste caso, o indivíduo é o órgão de uma comunidade na medida em
que exerce uma função pela comunidade. Vejamos como Kelsen explica esta ficção:
32
UM DESDOBRAMENTO DA TENSÃO POLÍTICA DA LIBERDADE:
Tal concepção nos coloca diante de um impasse prático: ela constitui uma das
dimensões em que a tensão entre a liberdade entendida como limitação recíproca (dos
arbítrios e da liberdade de cada um), por um lado; e, por outro, entendida como
autonomia, ela se instaura. Tal impasse prático é o de se ter de instituir princípios de
justiça que possibilitem a constituição de instituições capacitadas para garantir a
liberdade e a igualdade democráticas.
Parece natural aos juristas e politólogos17 que a promulgação da carta política seja
um ato de legitimidade pressuposta, o que quer dizer que tal promulgação seria legítima
por si mesma, uma vez que representaria a vontade de todos os indivíduos de uma
sociedade livre e igual. Como sabemos o fenômeno do pluralismo, ou seja, o surgimento
de doutrinas conflitantes e irreconciliáveis — existentes na cultura pública das
democracias constitucionais sejam essas doutrinas religiosas, filosóficas ou morais —, é o
fato social de maior relevância para o pensamento contemporâneo do Direito Público.
Pois, para a grande maioria dos autores que tratam do tema, sejam conservadores ou
intelectuais, a identificação do fenômeno do pluralismo bastaria para desconsiderarmos
a ficção burguesa de que a sociedade é formada por indivíduos livres e formalmente
iguais.
17
Os juristas em sua grande maioria tomam por inequívoca a legitimidade da carta política que está em
vigor. Tal certeza se deve ao dogma de que os representantes do povo sempre serão representantes dos
interesses de todos os interesses sociais presentes naquele território. Na mesma orientação pensam os
politólogos conservadores que apostam na “classe dos eleitos” como os mais capacitados para definir o
que é melhor para seus representados do que estes mesmos.
33
Parece faltar, a estes membros da bancada à direita do Parlamento da Razão,18 a
necessidade de se investigar o porquê de tal ficção ser socialmente necessária,
necessidade esta que não passa ao largo numa investigação filosófica. Kant teve a devida
medida da envergadura deste problema que a modernidade nos colocou: a idéia de
autonomia da vontade não pode eclipsar o fenômeno da coexistência dos arbítrios que se
limitam reciprocamente; da mesma forma, vimos que tal idéia não pode ser considerada
“supérflua”, pois se assim for, o pensar tornar-se-ia indisponível aos indivíduos. Ou
estariam os indivíduos, na perspectiva da bancada à direita do Parlamento da Razão,
indisponíveis ao pensamento?
Vimos, nos capítulo anterior, que sem a função reguladora da razão não é
possível realizar um triplo esforço: o esforço para entender por si próprio; o esforço para
ter por si próprio consciência; finalmente, o esforço para deliberar livremente, isto é,
decidir por si próprio que dieta seguir, o que se deve fazer e o que se deve deixar de
fazer. Em suma, sem a Liberdade, toda e qualquer possibilidade de “Esclarecimento”
(Aufklärung) é ab-rogada.
Assim, tal como a luz da alvorada nos permite perceber melhor os objetos, este
passo da nossa investigação nos disponibiliza a intuição de que o que está em jogo,
novamente, é a razão cujo uso prático consiste, em termos kantianos, na prescrição de
leis morais que conduzem à moralidade (Moralität). Como já vimos, tal moralidade só se
nos torna acessível porque a razão pura prática opera sob orientação da idéia
transcendental da liberdade, o que quer dizer que, para Kant, a moralidade só é possível
pela Liberdade, tornando indispensável necessidade de se orientar no pensamento.
Podemos dizer que, segundo Kant, a orientação do pensamento é necessária
uma vez que: no uso especulativo da razão ela servirá para evitar atitudes alumbradas e
fantasmáticas, cujo resultado é destronar a razão como única e verdadeira exegeta do
discurso dos indivíduos em face dos sofismas que os seduzem.
18
Immanuel Kant – Conflito das Faculdades, Introdução.
34
Para Kant, a liberdade de pensamento não está em conflito com a obediência à lei
moral, pois a razão se submete apenas às leis que dá a si mesma. Quando tal não
acontece, acabará por entrar em cena a coação civil, a tutoria espiritual que fomenta o
infantilismo e a cegueira ideológica ou o uso sem lei que nasce do capricho, do delírio,
do gênio vagabundo e entregue às suas cismas.
Desta forma, a lição dada pelo Professor Silvio Rosa Filho19 se torna indispensável
para concluirm0s que a — liberdade enquanto autonomia da vontade — é também o
fundamento do que podemos chamar de imperativo prático20, pois tanto o esforço de
buscar o esclarecimento, quanto a necessidade de orientar-se no pensamento demandam
a idéia transcendental da liberdade. Assim, na perspectiva kantiana, sem função
reguladora da razão, não é possível deliberar ou formar juízo sobre qualquer conduta.
19
Lição aprendida em momento preparatório para a realização deste trabalho.
20
Cf. Kant, I. “O que significa orientar-se no pensamento? 1786
21
Rúrion Soares Melo - O uso público da razão como procedimento: Um contraste entre Rawls e
Habermas - Universidade de São Paulo / Cebrap
35
Em particular, essas condições devem situar equitativamente as pessoas
livres e iguais, não devendo permitir a algumas pessoas maiores vantagens
de barganha do que outras. Além disso, coisas como a ameaça do uso da
força, a coerção, o engodo e a fraude devem ser excluídas” RAWLS John,
p. 66, conferência I, §4, 1993.
Para Rawls, a posição original tem um papel central na articulação dos princípios
de justiça e seu posterior reconhecimento público, visto que, enquanto elemento
representativo interno ao procedimento, tal posição nos permite ver que a idéia de
imparcialidade seria, antes de tudo, uma condição necessária, inscrita no pressuposto
normativo de que princípios de justiça seriam objetos de um acordo racional: para que os
princípios de justiça fossem os mais adequados a uma cooperação social justa, os termos
equitativos da cooperação deveriam ser concebidos de acordo com a autonomia de cada
um dos cidadãos.
36
sujeitas na posição original, e pelas condições impostas à sua deliberação.”
RAWLS John, p. 360, 1993.
A demanda pela idéia de uma razão pública nos coloca duas questões: a primeira
interessou diretamente a Jürgen Habermas, que questionou se o procedimento imparcial
seria suficiente para fundamentar os princípios de justiça; a segunda questão, por seu
turno, é a que mais interessa à nossa investigação. Pois se os artifícios rawlseanos, o da
posição original e o do véu de ignorância, se mostram ambos insuficientes para sanar a
arbitrariedade da instituição de uma ordem jurídica ou de princípios de justiça,
pergunta-se: como um uso público da razão postulado daria conta de tal tarefa?
22
HABERMAS, J. .“‘Vernunftig’ versus ‘Wahr’ oder die Moral der Weltbilder”.
37
o que nos leva a pensar que as pessoas morais não estariam integralmente representadas
no procedimento. Como a constrição do véu de ignorância impede que, no
procedimento, as partes possam se autodeterminar plenamente, podemos concluir que,
do ponto de vista da posição original, a razão prática não está disponível aos cidadãos
para que possam realizar suas capacidades morais, tampouco exercer plenamente sua
autonomia.
Desta forma, não podemos deixar de concluir: a autonomia plena exige que se
saia do procedimento proposto por Rawls. Sendo assim a teoria de Rawls acaba por nos
colocar a seguinte questão: como garantir que, sem as constrições do véu de ignorância,
cada cidadão mantenha um senso de justiça e respeite as convicções do outro?
A tentativa de solução dada por Rawls a esta questão acaba por nos dar noticia
sobre as afinidades eletivas23 que o seu pensamento mantém com a concepção de
liberdade defendida por Montesquieu; para Rawls, com efeito, os cidadãos cujas
convicções particulares estão em equilíbrio reflexivo com princípios de justiça gerais
podem alcançar um “consenso sobreposto” no que toca à concepção política que
compartilham, sem que isso implique em uma modificação de suas próprias visões de
mundo. Assim sendo, Rawls defende a idéia de que a unidade social estável pode ser
preservada sob a vigência do liberalismo político. Por isso, Rawls não pode prescindir da
imparcialidade do procedimento mesmo no âmbito reflexivo da razão prática.
23
Cf. PIERUCCI, Antônio Flávio, Afinidades eletivas: em alemão Wahlverwandtschaften. Originária das ciências
naturais, mais específicamente da química do século XVIII, a expressão em latin - attractio electiva - passou a circular em
1782 com a publicação do livro De attractionibus electivis (1792), de autoria do químico sueco Torbern Bergmann, que
usava o termo para se referir à existência, constantada pela química inorgânica de época, de elementos que foram
combinações preferenciais, as quais, porém, em presença de determinados outros elementos, se mostram
impermanentes, dissolvendo-se em favor de novas combinações. Goethe inspirou-se nesses fenômenos do mundo
natural descritos por Bergmann e, vendo neles manifestações de irresistível inclinação, atração e envolvimento afetivo,
transferiou o teorema das atrações eletivas - justamente com o termo que o descrevia - para o reino das relações
amorosas de atração mútua e recombinação seletiva: sua novela intitulada Die Wahlverwandtschaften [As afiinidades
eletivas] acabou por divulgar na Alemanha não só a terminologia como também seu modo de usá-la em sentido
figurado, inspiração seguida mais tarde por Webber em mais de um contexto de sua sociologia. O uso webberiano mais
conhecido dessa expressão se acha no final do terceiro capítulo da Parte I d'A ética protestante, para descrever a
individualidade histórica daquela atração, grávida de consequências para a civilização ocidental, entre a ética religiosa
do protestantismo ascético e a racionalidade prática da cultura capitalista moderna.
38
Ora, podemos notar que para sustentar a opção de defender uma concepção
liberal da Liberdade, Rawls opera o que Habermas chamou de deflação da razão prática,
pois um “consenso sobreposto” demanda que a autonomia da vontade dos cidadãos seja
inevitavelmente uma autonomia parcial. Isto significa que, em termos kantianos, Rawls
também opera um reducionismo da razão: como as partes não operam com a razão
regulada pela idéia transcendental da Liberdade, estão, portanto, incapacitadas de
instaurar livremente seus imperativos práticos; submetidas ao véu de ignorância, as
partes precisam lidar com as “conseqüências de uma autonomia que lhes é vedada em
sua extensão integral, assim como as implicações do uso de uma razão prática a que elas
próprias não podem recorrer” HABERMAS, 1997c, p. 6924.
Importa dizer que, nos limites do sistema filosófico edificado por Kant, o
pensamento de Rawls não se ocupa em aprisionar a razão nos limites do entendimento
tal como o faz o pensamento de Kelsen. Isto porque, ao contrário do que faz o jurista
austríaco, Rawls leva em conta não apenas a esfera da analítica transcendental, mas
também a metafísica dos costumes; contudo, ele parece empreender um salto da
dimensão analítica da razão pura imediatamente para a Metafísica dos Costumes. Desta
forma, Rawls promove uma distensão entre as duas concepções de liberdade.
Tal distensão é defendida por Rawls num raciocínio que, como já vimos, procede
a um esvaziamento da razão prática, o que torna impossível o exercício de uma
autonomia plena da vontade. Isto nos permite dizer que optar pela concepção liberal da
Liberdade como sendo a mais válida para fundamentar a instituição de princípios de
justiça ou de uma ordem jurídica, implica, antes de tudo, no esvaziamento da razão
prática, o que significa que, neste passo do argumento, o soberano não poderá recorrer à
razão para deliberar ou criar juízo sobre a instituição de uma ordem jurídica.
24
HABERMAS, J. .“‘Vernunftig’ versus ‘Wahr’ oder die Moral der Weltbilder”.
39
cria o direito até mesmo fora da moldura interpretativa da Lei. Ora, em termos políticos,
isso significa que o magistrado acaba assumindo a posição de soberano.
A SOBERANIA DO MAGISTRADO
25
C.f. José Joaquim Gomes Canotilho, in. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª Edição - 5.ª
Reimpressão, Editora Almedina, 2008.
40
4.10.195826, com a criação do Conselho Constitucional ou Conseil Constitutionnel27, que
possui atribuições múltiplas, destacando-se a de juiz constitucional. Tal conselho é um
órgão político, composto de membros nomeados, que não são juízes, e exerce um
controle meramente preventivo; pode ser judicial de natureza difusa, ou seja, exercido
pelo Poder Judiciário em qualquer uma de suas instâncias, e cujo efeito concreto é
sempre inter partes; pode ser judicial de natureza concentrada, ou seja, de competência
exclusiva de uma corte que acaba por possuir uma espécie de função constitucional
autônoma, de certo modo comparável à função legislativa negativa cujo efeito concreto é
sempre erga omnes; e pode ser misto como o sistema brasileiro, um controle judicial no
qual encontramos características tanto do controle difuso quanto do controle
concentrado.
26
Referimo-nos, aqui, à Constituição da Quinta República Francesa que substituiu, em 1946, o
governo parlamentarista por um sistema semi-presidencialista, apoiada por Charles de Gaulle, primeiro
presidente da quinta república francesa de 1958 a 1969.
27
Henry Roussillon, Le Conseil constitutionnel, Paris, Dalloz, coll. « Connaissance du droit », octobre 2008, poche,
121 p.
41
apenas preenchida, mas delimitada por um colegiado de cidadãos que não possuem
soberania para tanto.
Assim parece ficar cada vez mais claro que Kelsen eleva a competência para criar
o Direito até o plano da soberania em todos os graus, pois apenas o interprete autêntico
tem a competência não só para criar o Direito e atribuir sentido de validade à norma
jurídica, como, também, pode criar o Direito completamente fora da moldura; sendo que,
como vimos, a própria moldura da norma constitucional também acaba sendo
delimitada por este intérprete. Em suma, se estivermos certos, Kelsen acaba investindo o
magistrado de uma soberania cujos limites parecem não ser estabelecidos por qualquer
forma de freio ou contrapeso.
Importa notar nesse passo que as ciências sociais em geral costumam decidir
pela distensão entre as duas concepções de liberdade, como se a contradição própria do
fenômeno da coexistência entre liberalismo e democracia fosse de menor importância,
ou até como se tal contradição não existisse. Seria a decisão por tal distensão um sintoma
de que tanto conservadores quanto intelectuais acabam por operar, de maneira
imanente, um reducionismo da razão?
Não por outro motivo se nos parece válido afirmar que, a exemplo das chamadas
ciências exatas, as ciências sociais mantêm afinidades eletivas com a idéia de uma razão
reduzida, o que nos permite situá-las como membros da bancada à direita do Parlamento
da Razão. Na bancada à esquerda, encontrar-se-íam todas as manifestações da razão
42
humana que não se permitissem reduzi-la à esfera do simples entendimento, pois tanto a
Arte quanto a Filosofia, sobretudo por força de suas respectivas autonomizações
modernas, não teriam outro compromisso senão para com a racionalidade, e a vivificação
do pensamento e da sensibilidade.
43
III
44
A TRAGÉDIA DO MAGISTRADO
28
Texto de juventude de Walter Benjamin escrito em 1921.
45
no inicio do texto, Benjamin deixa claro que é comum a idéia de que destino e caráter
estão dispostos numa relação causal:
46
sem limite, para o seu interior, e este para o seu exterior, na mesma escala
e por princípio, ou mesmo ser tomado essencialmente por esse exterior.”
Walter Benjamin – Destino e
Caráter, p 6.
Nos termos de uma tipologia nietzcheana, isso significaria dizer que: segundo a
moral do senhor, quando alguém tem caráter, o seu destino é, no essencial, constante; já
segundo a moral do escravo, quando alguém tem moral, não tem destino; assim do
ponto de vista positivista, o caráter e o destino acabam por coincidir teoricamente.
Portanto, a fim de delimitarmos o conceito destes objetos devemos promover uma
distinção clara entre ambos, excluindo de plano a idéia de que destino e caráter se
encontram numa relação causal. Por isso, Benjamin prescreve a necessidade de se
caracterizar rigorosamente o conceito de caráter em completa separação do conceito de
destino, que, por sua vez, só será devidamente caracterizado após a rigorosa definição do
primeiro.
Segundo Benjamin, o primeiro movimento a ser operado é dar atenção ao fato de
que estes dois conceitos não podem permanecer contidos nas esferas onde comumente
são inseridos, a saber, o caráter é geralmente colocado num contexto ético, e o destino
num contexto religioso.
No que diz respeito ao conceito de destino, o erro que permite inseri-lo na esfera
da religião deve-se, segundo Benjamin, à relação estabelecida entre conceito de destino e
o conceito de culpa:
“Assim, para referir o caso mais típico, a desgraça interpretada
como fatalidade é entendida como resposta de Deus ou dos deuses a uma
culpa na esfera religiosa. E no entanto não podemos esquecer que nunca
se estabelece uma tal relação do conceito de destino com o conceito de
culpa que toda a moral implica, nomeadamente com o conceito de
inocência. A idéia clássica grega do destino encara a sorte que cabe ao
indivíduo não como confirmação de uma vida inocente, mas sempre como
tentação de cair numa culpa grave, na hybris. Não existe, portanto, no
destino uma relação com a inocência.” Walter Benjamin – Destino e
Caráter, p 7.
47
de que, ao que podemos perceber, a ordem do destino exclui a possibilidade de salvação
— ; nos leva a concluir que tal ordem jamais pode ser religiosa. Assim sendo, torna-se
necessário procurar outro domínio no qual o que conta é apenas a desgraça e a culpa,
uma balança em que a sorte e a inocência revelam ser demasiado leves e se elevam num
dos pratos.
A BALANÇA DO DIREITO
A culpa e a desgraça alçadas a categorias de medida do homem
48
Kelsen refere-se aqui ao raciocínio agostiniano segundo o qual a ordem coercitiva
do Direito se distingue da ordem coercitiva dos salteadores, apenas se, em seu conteúdo,
a ordem jurídica apresentar a Justiça. Assim, uma ordem jurídica pode ser julgada como
injusta do ponto de vista de um determinado princípio de Justiça, o que, em termos
estritamente kelsenianos, não constitui de maneira alguma um fundamento para se
desconsiderar a validade dessa ordem coercitiva. Nota-se que este argumento é de
grande validade na empreitada kelseniana, pois, sem separar a ordem jurídica e o
princípio de Justiça que constitui o conteúdo dessa mesma ordem coercitiva, Kelsen não
poderia edificar uma labiríntica estrutura analítica que conformasse a toda e qualquer
ordem jurídico-positiva.
Desta forma, podemos entender que, para Kelsen, confundir a ordem do Direito
com a Justiça é um equívoco devido ao fato de que os princípios de Justiça de nada
servem à ciência do direito cujo objetivo é descrever o Direito, e não estabelecer juízo de
valor sobre as normas jurídicas. É que tal juízo de valor não produz nenhum
conhecimento sobre a existência da norma, existência que, em termos estritamente
kelsenianos, significa o mesmo que a validade da norma jurídica. Ora, não parece cada
vez mais nítido que, se levarmos esse raciocínio kelseniano ao seu limite, estaremos
nesse passo diante de mais um indício de que se instaura a legitimação do arbítrio?
Traduzindo esta questão em termos políticos; será que a autocracia pode ser legitimada
independentemente dos valores e princípios que a constituem?
Walter Benjamin certamente não fez concessões ao reconhecer que confundir a
ordem do Direito com a esfera da Justiça implicaria em tomar a validade do Direito como
um princípio de Justiça, o que, em outros termos, significa que devido a tal confusão, o
princípio de Justiça que orienta uma ordem coercitiva seria legitimado simplesmente
porque se manifesta na forma de uma ordem coercitiva válida.
Convém aqui recordar que o que está em jogo quando nos deparamos com essa
conclusão a que chegou Benjamin; ao edificar sua arquitetônica analítica, Kelsen
empreendeu um esforço notável para descrever cientificamente o Direito positivo, o que,
por força de seu positivismo estrito, demandou que sua ciência pura não manifestasse
qualquer juízo de valor a respeito desta ordem coercitiva. Porém nos parece cada vez
mais nítido que, ao fazê-lo, Kelsen acabou por manifestar um fenômeno muito mais
intrigante e sombrio, pois parece que é exatamente a forma do Direito positivo que
acabaria por legitimar uma ordem coercitiva estabelecida pela vontade ficta do
magistrado, vontade cujo fundamento não seria a razão, mas sim o puro arbítrio.
49
Ao avançarmos na análise do problema que se colocou diante de nós, poderíamos
tentar delinear as principais características dessa vontade. Para tanto, é necessário que
voltemos novamente nossos olhares para a personagem central da Teoria Pura do
Direito, uma personagem a quem não se pode dar declaradamente o papel de
protagonista, pois, se assim for ,todo o discurso se esvaneceria logo na primeira aparição
que fizesse.
Mais uma vez nos é de enorme valia a análise benjaminiana, pois é de forma
certeira que Benjamin identifica que tal como uma prefiguração do personagem
kelseniano, é na tragédia que o gênio emerge das névoas da culpa. Segundo ele, é
precisamente na tragédia que o homem rompe com seu destino demoníaco. Na tragédia
o homem pagão percebe que é melhor do que seus deuses, porém essa tomada de
consciência permanece indistinta, pois, ao realizá-la, o homem pagão acaba por perder
sua linguagem, ou seja, torna-se incapaz de significar seu mundo, tornando-se incapaz
de distinguir culpa e redenção como medidas diferentes.
Isto se dá porque o fortalecimento desse homem que realizou tal tomada de
consciência não configura um restabelecimento da ordem moral do mundo, mas o esforço
de um homem que, em sua mudez moral e menoridade espiritual, tenta erguer-se no
meio do grande abalo daquele mundo de dor, homem a quem é dado o nome de herói.
Desta forma, parece que, tal como o destino, o Direito é um contexto de culpa em
que se inserem os homens, que, por conta da coerção à qual estão submetidos, estariam
tão afastados de sua condição natural, que nunca conseguiriam retornar a ela, limitando-
se a permanecer invisíveis sob o seu domínio e apenas na sua melhor parte. Portanto, fica
claro que não é o homem natural que tem um direito: o sujeito do direito é
indeterminável.
50
relacionado com cartas e astros, e a vidente serve-se da técnica simples de
inserir isso no contexto da culpa recorrendo às coisas mais previsíveis e
mais certas – coisas que, de forma não inocente, estão prenhes de
certeza.”
Walter Benjamin – Destino e
Caráter, p 9.
51
Segundo Benjamin, para definirmos o que vem a ser o caráter devemos remetê-lo
à esfera da natureza, e não à esfera da ética, como fazem os positivistas. Isto porque são
os sinais da natureza, seja em si mesmos ou induzidos experimentalmente, que
anunciam a natureza no homem, o que nos permitiria dizer algo sobre o homem natural.
No entanto, é preciso não perder de vista que, na observação dos traços do
caráter de um individuo, não são as qualidades que não se mostram moralmente
importantes, mas sim, as ações praticadas por esse indivíduo. Ainda assim, a teoria do
ponto de vista tradicional tende a afirmar o contrário, pois não são apenas palavras como
“ladrão”, “esbanjador”, “corajoso”, que parecem conter valores morais; são sobretudo
palavras como “abnegado”, “traiçoeiro”, “vingativo”, “invejoso” que parecem indicar
traços de caráter que já não é possível separar de valorações morais.
Benjamin é novamente certeiro ao reconhecer que é na comédia que essas
designações pseudomorais são devidamente remetidas para a sua verdadeira esfera. Na
comédia as ações do protagonista, a saber, do herói cômico, nunca atingem o seu público
enquanto tais, nem enquanto ações morais; os seus atos só interessam na medida em que
refletem a luz do caráter. Isto porque, na comédia, o caráter revela-se de forma solar, no
brilho do seu único traço, ofuscando todos os demais traços que possam aparecer no
horizonte do espectador. É no domínio da comédia de caráter que o indivíduo anônimo
responde com o gênio àquela sujeição mítica da personagem à trama da culpa. Assim,
parece ocorrer uma transmutação da complicação trágica da personagem culpada
Aqui novamente aparece a liberdade, mas esta liberdade à qual Benjamin faz
referência não é o dogma liberal da liberdade, tampouco é o dogma democrático.
Benjamin leva a sério a resolução kantiana da Terceira Antinomia da Razão Pura, e lança
luz sobre a idéia kantiana de que a Liberdade deve exercer uma função reguladora da
razão, função sem a qual o herói não poderá de forma alguma superar o estado de mudez
moral e de menoridade espiritual em que se encontra.
52
DETERMINADA INDETERMINAÇÃO DA VONTADE FICTA DO MAGISTRADO
Dito isto, voltemos nossos olhares para a figura do intérprete autêntico, que,
como vimos, parece encontrar-se num perene estado de menoridade espiritual e de uma
flagrante incapacidade de produzir significações que lhe permitissem estabelecer uma
representação que daria conta de todas as circunstâncias efetivas do caso concreto ou da
realidade social. Note-se que o que está aparecendo diante de nós é um problema
relativo à formação do magistrado, pois é fato que, admitida a sua regressão espiritual,
esta criança à qual nos referimos tem o dever de decidir quando e em que medida a
coerção do Estado afetará a vida dos cidadãos.
Devemos realizar uma derradeira visita ao pensamento de Immanuel Kant, a fim
de entendermos outro aspecto do problema da determinada indeterminação da vontade
ficta do magistrado. Neste movimento vamos iniciar nossa investigação seguindo os
passos dados por Kant na formulação teórica do imperativo prático.29
Na quarta proposição sobre a Idéia de uma história universal de um ponto de vista
cosmopolita, Kant aborda enquanto antagonismo a insociável sociabilidade dos homens,
ou seja, a tendência do homem a entrar em sociedade, pois se sente mais como um
homem num tal estado em que pode desenvolver suas disposições naturais. Mas este
homem também tende ao isolamento, pois encontra em si uma qualidade insociável que
o impulsiona a querer conduzir tudo em proveito próprio, o que o leva a esperar que os
demais membros da sociedade se oponham da mesma forma que ele fará oposição ao
querer egoísta dos demais cidadãos. Note-se que essa situação hipotética configura os
termos da concepção liberal da Liberdade. Segundo Kant, é esta oposição que leva o
indivíduo a superar sua tendência à preguiça, na medida em que é movido pela busca de
projeção (Ehrsucht), pela ânsia de dominação (Herrschsucht) ou pela cobiça (Habsucht);
assim, o indivíduo tem de proporcionar-se uma posição entre companheiros que ele não
atura, mas dos quais não pode prescindir. Para Kant, a disposição natural do homem à
cobiça, à projeção, ou mesmo à busca pelo poder, consistem em patologias
características de uma sociedade constituída a partir de um acordo que, em termos
kantianos, é extorquido patologicamente.
29
C.f. KANT, I, “O que significa orientar-se no pensamento?”.
53
Mesmo ressaltando o caráter patológico das disposições insociáveis do homem,
Kant lança luz sobre o fato de que tais patologias são propulsoras do comportamento
humano; sem elas, com efeito, o homem permaneceria eternamente num estado de
menoridade:
“Agradeçamos, pois, à natureza a intratabilidade, a vaidade que
produz a inveja competitiva, pelo sempre insatisfeito de ter e também de
dominar! Sem eles todas as excelentes disposições naturais da
humanidade permaneceriam sem desenvolvimento num sono eterno. O
homem quer a concórdia, mas a natureza sabe mais o que é melhor para a
espécie: ela quer a discórdia.” Immanuel Kant - Idéia de uma História
Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, Quarta Proposição.
Pudemos ver que Kant constata que a intratabilidade gerada pela disposição
natural do homem a comportamentos egoístas como a cobiça, acaba por impulsioná-los
a abandonarem o estado de contentamento ocioso e de vida amestrada no qual
permaneceriam eternamente, não fosse sua insociável sociabilidade. Note-se que a
disposição natural do homem a não se submeter a normas que não sejam fruto de sua
própria vontade, constitui uma situação hipotética que configura os termos da
concepção democrática da Liberdade.
No último passo de nossa investigação sobre a legitimidade da vontade ficta do
magistrado, a tensão kantiana entre as concepções liberal e democrática da liberdade se
reposiciona no nível do imperativo prático, pois nada mais se coloca diante de nossa
personagem, além da obrigatoriedade de decidir. Se ainda estivermos sob a irradiação da
luz de Apolo, podemos pensar que este magistrado se acha em grave — se não gravíssima
— situação: é coagido a decidir, mesmo estando num estado de mudez moral, ou seja,
num estado de incapacidade de estabelecer significações para representar objetivamente
a vontade do soberano. Ora, se o nosso personagem principal encontra-se na mais plena
mudez, a quem será dado o papel de ventríloquo?
54
genuíno significado da palavra, quer dizer: a partir de uma dada região cósmica, a saber,
norte – sul – leste – oeste, encontrar as restantes, ou seja, o ponto inicial. Porém, como o
que nos interessa aqui não é o orientar-se no espaço, mas sim, no pensamento em geral,
isto é, de modo teórico, devemos tomar o conceito de orientar-se na sua forma mais
ampliada:
55
todos à presença do Altíssimo, confortavelmente acomodados nos bancos dianteiros de
um Cadillac.
O sentido que aqui utilizaremos para a “técnica” é o de procedimentalização do
trabalho, no nosso caso específico, a procedimentalização do raciocínio ciêntífico. Ora o
que entra em jogo nesse momento é não apenas a formação da vontade ficta do
magistrado, mas a formação de todo o aparato cognitivo deste nosso personagem. Isto
passa a ser de suma importância para o desfecho de nosso trabalho, devido ao fato de
termos nos questionado a respeito do problema de se atribuir um poder de coerção
aparentemente ilimitado, a quem mesmo se encontrando num estado de completa
mudez moral, opera diariamente sua função de dizer o direito.30 Assim sendo, devemos
deslocar o foco de nossa investigação para o papel que a Universidade tem nesse
processo de formação do magistrado.
Para tanto, vamos nos valer dos passos dados por Kant na obra Conflito das
Faculdades. Recorde-se que as universidades prussianas eram institucionalmente
organizadas, no século XVIII, numa divisão entre quatro instituições de ensino
universitário ou faculdades: Teologia, Direito, Medicina, Filosofia, designando-se
oficialmente esta última como inferior às três primeiras31. Segundo uma hierarquia
determinada pelo próprio Estado, a faculdade superior é aquela que serve de
instrumento do Estado, e inferior aquela que é inútil nesta função. Trata-se, portanto, de
uma divisão institucional que segue não uma hierarquia posta pelo próprio pensamento,
mas unicamente de um projeto hierarquizante que concebe a faculdade como uma
instituição estatal e lhe atribui, a pretexto das suas finalidades educacionais, um papel na
representação dos interesses e do poder do próprio governo.
Assim, esta estruturação institucional da universidade prussiana se deve ao modo
pelo qual o Estado pretende compor sua própria estrutura burocrática. No caso da
Prússia do século XVIII, a Teologia é exposta como tendo um papel ainda mais relevante
do que o Direito, isto porque a Teologia é uma instituição oficial imposta pelo Estado e a
30
Referimo-nos aqui ao sentido originário da palavra jurisdição do latim juris, "direito", e dicere, "dizer". Por isso é
que a mesma denominação é dada á competência de um magistrado a positivar normas aos membros da sociedade.
31
C.f. KANT, I. Conflito das Faculdades. Além das observações coligidas ao texto do próprio Kant, a obra
de Harvey Goldman, “Politics, Death and the Devil: Self and Power in Max Weber and Thomas Mann.
Berkeley, Los Angeles, Oxford: Un. California Press, 1992:, sobretudo o segundo capítulo “The Crisis of
Bildung and Science”.
56
serviço do governo, é a instância de justificação de um credo e de um clero oficiais,
respectivamente uma afirmação nacional e política, e uma corporação de agentes
eclesiásticos que interfere, há séculos, em todas as instâncias do poder.
57
Filosofia tem compromisso apenas com a Razão, portanto não se prostra diante dos
propósitos do Estado.32
Portanto, parece ficar cada vez mais evidente o fato de a Faculdade de Direito se
mostrar estruturalmente insuficiente para fornecer, ao jurista, um “sistema de sinais
caracteriológicos” com os quais o magistrado poderia estabelecer uma representação
objetiva do conflito de interesses sobre o qual deve decidir. Será suficiente, contudo, para
constituir uma doutrina cujo melhor resultado desta última terá sido uma etiqueta de
conduta a ser seguida à risca pelo próprio magistrado, além de ser imposta por ele, aos
membros da sociedade civil.
32
C.f. KANT, Immanuel, in “Conflito das Faculdades”, Primeiro Conflito: O conflito da Faculdade de
Filosofia com a teológica, Introdução, I. Da condição das faculdades, Secção II – Conceito e divisão da
Faculdade inferior, p. 39, “Ora ao poder de julgar com autonomia, i.e., livremente (segundo princípios
do pensar em geral), dá-se o nome de razão. Há, pois, que conceber-se a Faculdade filosófica, porque
deve responder pela verdade das doutrinas que tem de acolher ou até só admitir e, nesta medida, como
livre e unicamente sob a legislação da razão, não sob a do governo.”.
58
Digamos que questão se formula de maneira intratável, pois, devido à
envergadura que o problema da separação entre o direito e a política insinua, tal questão
parece ultrapassar os limites tanto da teoria do direito público, quanto da ciência
política. Se ademais levássemos em consideração que o “amestramento da razão” é um
dos possíveis desdobramentos da crise pós-kantiana da racionalidade, seria válido então
apostar na necessidade de retomar tal questão como problema pertinente a uma filosofia
política negativa? Tal filosofia política negativa demandaria, com efeito, revisitar o que
há de mais vertiginoso e intratável na dialética hegeliana; pois, ao que pudemos
investigar, ao tratar da tensão entre as determinações conceituais da Liberdade, a liberal
e a democrática, o pensamento kantiano teria chegado ao limiar da dialética de Hegel.
Já nos Princípios da Filosofia do Direito de 1820, logo após opor a razão enquanto
espírito autoconsciente e a razão enquanto efetividade presente, Hegel ultrapassa o
entrave de termos abstratos que ainda não se liberaram a ponto de se tornarem
“conceito”:
“Conhecer a razão como rosa na cruz do presente e regozijar-se
com este último, tal discernimento racional é a conciliação com a
efetividade, concedida pela filosofia àqueles que já foram atingidos pela
requisição interior de conceitualizar e manter igualmente a liberdade
subjetiva naquilo que é substancial, assim como permanecer, com sua
liberdade subjetiva, não em algo particular e contingente, mas naquilo
que é em si e para si.” G.W.F. Hegel, Princípios da Filosofia do
Direito, Prefácio, p. XXXVIII.
59
Conclusão
33
“ Esprit fort”, “Freigeist”, se nos for consentido recorrer aqui às expressões empregadas por Ludwig
Feuerbach ao final de um capítulo decisivo de “ A essência do cristianismo” (ed. Vozes, Petrópolis, RJ,
2007), intitulado “ A essência da religião em geral”.
60
ao antigo regime, pois, se assim fosse, a religião da humanidade não passaria de uma mera
reposição da ordem teocrática.
61
que, se assumisse uma forma diferente do que a de labirinto, a empreitada satânica
estaria gravemente prejudicada. Isto porque o Diabo então convida o homem que se
descobriu “espírito livre” para um passeio que o torne incapaz de orientar-se. Só assim o
homem se submeterá à “nova” doutrina da libertação; libertação, não mais do domínio
de um ente externo, mas dos próprios desejos que o levaram a perder completamente o
próprio senso de orientação.
Assim, os homens pactuam com o Diabo e aceitam se submeter a duas doutrinas
muito específicas: a primeira doutrina é a doutrina que será professada no púlpito de
todas as sedes da igreja da religião da humanidade; a segunda doutrina será aplicada
pelos homens em todas as circunstâncias de reprodução de suas vidas, seja no contexto
da vida material seja no contexto da vida espiritual.
Após selar o pacto de danação com os homens, o Diabo teve de se ocupar da
educação de suas autoridades ministeriais, cuja tarefa seria positivar e garantir a eficácia
da doutrina da objetividade. Segundo tal doutrina, a formação espiritual do homem deve
ser determinada pelos desej0s particulares que este homem pretende satisfazer, de
maneira que uma formação integral era c0nsiderada completamente desnecessária. Em
outros termos, para ter condições de satisfazer seus desejos, o homem tem de se
submeter a uma educação que o condicione a desenvolver seu trabalho da maneira mais
eficiente.
Para o Diabo, foi crucial submeter os homens a este verdadeiro amestramento,
pois, se eles fossem capazes de recordar sua condição de espíritos livres, a nova
dominação à qual se submeteram esvanecer-se-ia como uma fantasmagoria se desfaz à
luz da presença de Apolo. Por isso torna-se imprescindível ao Diabo impor o mesmo
amestramento às suas autoridades ministeriais; porém, de forma muito mais profunda,
pois estes são investidos de competência para coagir os membros da igreja.
Com o passar de dois séculos, a humanidade já não se recorda dos fatos que
deram origem à sua condição de não-liberdade. Para se extrusar da figura de dominador,
o Diabo conseguiu esconder seu controle sobre o imaginário e sobre os desejos dos
homens operando um deslocamento no qual todas as circunstâncias que foram
atribuídas à sua existência, seriam, na verdade, frutos de uma tal condição humana.
Um dia, porém, longos anos depois, um dos seus fiéis que praticava antigas
virtudes, não todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, pôs-se a falar depois de
muito pensar, o que para a doutrina da igreja era uma heresia:
“— Contrata obreiros às centenas, prometendo todas as regalias do mundo,
pagando, estimulando e forçando-os ao recrutamento. Estou ciente de como se
62
desenvolve a obra da humanidade. Nos domínios da Igreja a massa humana vive, se não
livre, ao menos ativa e pacífica”.
63
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, Walter, Destino e Caráter. Trad. Pedro M. S. Alves ;Coleção: Textos Clássicos
de Filosofia, Universidade da Beira Interior ,Covilhã: 2011.
FERRY, Luc, “ O momento kantiano: O sujeito da Reflexão”. In: Homo Aestheticus. Trad.
Eliana Maria de Melo Souza, São Paulo: Ensaio, 1994.
KANT, Immanuel, O Conflito das faculdades. Trad. A. Mourão; Lisboa, Edições 70, 1993.
KANT, Immanuel, Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita. Trad. R.
Naves e R. Terra; São Paulo: Martins Fontes, 2004.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, Trad. Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre Frandique Morujão; 5ª ed. – Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, Trad. Valério Rohden e U. B. Moosburger. Col.
Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, Trad. João Baptista Machado; 6ª ed. -
São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LEBRUN, Gerard. “Uma escatologia para a moral”. In: Idéia de uma história univesal de
um ponto de vista cosmopolita; São Paulo: Martins Fontes, 2004.
MELO, Rúrion Soares. Artigo “O uso público da razão como procedimento: Um contraste
entre Rawls e Habermas”. Curitiba, São Carlos, vol. 5, n. 2, p.113-141, outubro, 2008.
TERRA, Ricardo R., “Especificidade do Direito”. In: A política tensa; São Paulo:
Iluminuras, 1995.