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O DESTINO DA VONTADE FICTA:

A arquitetônica labiríntica de Hans Kelsen e a Formação do Magistrado.

Autor: Phellipe Bargieri Böy Massaro Marran


Orientador: Professor Dr. Silvio Rosa Filho

Texto apresentado pelo candidato,


como trabalho de conclusão de
Curso para obtenção o Grau de
Bacharel em Direito pelas
Faculdades de Campinas.

Faculdades de Campinas
Abril de 2011
Agradecimentos

Ao meu orientador e Professor Silvio Rosa Filho, pela formação, e acima de


tudo pela inigualável amizade.

Aos meus extraordinários pais e familiares, por terem me dado as


condições de ter chegado à conclusão deste trabalho.

Aos meus caros professores Gustavo Escher Dias Canavezzi, Gustavo dos
Reis Gazzola, e José Carlos Evangelista de Araújo, por serem exemplos de educadores e,
sobretudo, pela amizade.

A todos os amigos, professores e funcionários da Facamp, pelo apoio, pela


amizade e pela importância individual que cada um de vocês teve nessa minha
jornada, em especial, a Fernanda Alves, pessoa sem a qual esse trabalho talvez
nunca tivesse sido escrito.

Aos colegas e professores da turma de especialização em Direito Público.

Ao grupo de monitores de Estudos Orientados.

Ao grupo das Oficinas de Filosofia, em especial, a Higor Fabrício de


Oliveira, Flávio Machado de Oliveira e Thiago Borges.
SUMÁRIO

PROTOS LOGOS p. 1

I. DA LIBERDADE OU NÃO-LIBERDADE DO MAGISTRADO AO


ATRIBUIR SENTIDO E VALIDADE AO DIREITO p. 7

AQUÉM DAS FRONTEIRAS DA ANALÍTICA TRANSCENDENTAL p. 7

ARQUITETÔNICA DO ENTENDIMENTO p. 8

- A razão nos limites do simples entendimento


- A autonomia kantiana: elevada ao plano do pensamento ou
rebaixada a ficção supérflua?
- Expansão e contração do conceito de Liberdade: interesse prático ou
extravagância transcendente?
- Reducionismos hermenêuticos: do eclipse da moral ao eclipse da
ética
- Tensões e distensões na aporética da coisa-em-si
- Imperativo categórico per analogiam: uma apropriação indébita e
funcional
- A esfera do Sollen na arquitetura analítica
- Duas zonas de indiscernibilidade no “ponto terminal da imputação”

O ARBÍTRIO NO LIMIAR CONCEITUAL DA LIBERDADE P. 23

1
II. DA POSSIBILIDADE DE SUBVERSÃO POLÍTICA POR PARTE DO
MAGISTRADO p. 26

A INSTITUIÇÃO DA ORDEM JURÍDICA P. 26

A TENSÃO MODERNA DA LIBERDADE P. 27

UMA INVESTIDURA ESTATAL DA LEGITIMIDADE P. 28

- Soberano, demasiado Soberano?


- Do interprete autêntico: criador livre ou criador arbitrário?

UM DESDOBRAMENTO DA TENSÃO POLÍTICA DA LIBERDADE P. 33

- O impasse prático da legitimidade se anuncia

DESCORTINANDO UMA QUESTÃO P. 34

- Uma trama moderna: a tensão política da liberdade sob o foco da


crítica
- Um cenário contemporâneo da trama moderna
- Reducionismos da razão: característica do positivismo kelseniano
ou sintoma contemporâneo?

A SOBERANIA DO MAGISTRADO P. 40

- Uma investidura para além da legalidade


- O problema da legitimidade desvelado

2
III. DA LEGITIMIDADE E DA LEGALIDADE DA VONTADE FICTA DO
MAGISTRADO p. 44

A SOBERANIA DO MAGISTRADO EM SUA DIMENSÃO PRAGMÁTICA P. 44

- Retomada do problema de se atribuir legitimidade a um arbítrio


aparentemente ilimitado

A TRAGÉDIA DO MAGISTRADO P. 45

- O direito como ordem da culpa

A BALANÇA DO DIREITO P. 48

- A culpa e a desgraça alçadas a categorias de medida do homem

AS FRONTEIRAS DA VONTADE DO MAGISTRADO P. 50

- O magistrado enquanto herói trágico

DETERMINADA INDETERMINAÇÃO DA VONTADE FICTA DO MAGISTRADO P. 53

A FORMAÇÃO DE UM SOBERANO AMESTRADO P. 54

- O amestramento “conveniente” da razão

UMA CONTRADIÇÃO NO NÚCLEO DO DIREITO POSITIVO P. 58

CONCLUSÃO P. 60

BIBLIOGRAFIA P. 64

3
“o que mais merece ser pensado em nosso tempo
problemático é o fato de que nós não pensamos”.
Heidegger
Protos Logos

Na tentativa de expor a fisiologia, isto é, apresentar as múltiplas relações


mecânicas internas ao Estado de Direito, Hans Kelsen acabou revelando as formas de
uma considerável miragem burguesa: tornou perceptível seu fenômeno essencial, ou seja,
a vontade ficta do magistrado como fundamento de validade do próprio Estado de
Direito. Eis o escopo desse trabalho.

A Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre) proposta pelo jurista austríaco se


compõe como um esforço analítico cujo objetivo é apresentar o direito enquanto
conjunto de normas racionalmente escalonadas: ora, tal racionalidade só pode ser
descrita por uma ciência pura do direito. No avanço de sua empreitada, Kelsen nos
descreve minuciosamente cada aspecto desse conjunto de normas jurídicas. A
jurisprudência, entendida no seu sentido originário como ciência do direito, analisa e
descreve seu objeto em três matrizes: a matriz analítica, a matriz hermenêutica e a
matriz pragmática.

A matriz analítica subdivide-se em dois momentos, a analítica estática descreve


as relações constitutivas que a norma jurídica estabelece consigo mesma, já a analítica
dinâmica descreve as relações que a norma jurídica estabelece com todas as demais
normas que constituem o ordenamento jurídico1. A matriz hermenêutica descreve as
estruturas de sentido que se pode atribuir à norma jurídica positivada. Por fim, a matriz
pragmática descreve a relação que a norma jurídica, e não apenas uma proposição
jurídica, estabelece com a autoridade que lhe atribui sentido2.

1
Segundo Hans Kelsen, a analítica estática tem por objeto a norma jurídica em seu momento estático,
isto é, não analisa os movimentos de produção e de aplicação da norma jurídica; tais movimentos são
objetos da analítica dinâmica.

2
C.f. Hans Kelsen, “As proposições ou enunciados nos quais a ciência jurídica descreve estas relações
devem, como proposições jurídicas, ser distinguidas das normas jurídicas que são produzidas pelos
órgãos jurídicos a fim de por eles serem aplicadas e serem observadas pelos destinatários do Direito.
Proposições jurídicas são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o
sentido de uma ordem jurídica - nacional ou internacional - dada ao conhecimento jurídico, sob certas
condições ou pressupostos fixados por esse ordenamento, devem intervir certas conseqüências pelo
mesmo ordenamento determinadas. As normas jurídicas, por seu lado, não são juízos, isto é, enunciados
sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas são antes, de acordo com o seu sentido, mandamentos e,

1
Segundo Kelsen, o direito se organiza enquanto um sistema de sentido dinâmico
cuja validade das normas jurídicas é de caráter formal, ou seja, deriva da autoridade que
atribui sentido à norma, e não do conteúdo da mesma. Se assim fosse, o direito se
organizaria enquanto um sistema de sentido estático. Nos termos do próprio Kelsen:

“Segundo a natureza do fundamento de validade, podemos distinguir dois


tipos diferentes de sistemas de normas: um tipo estático e um tipo dinâmico. As
normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer dizer, a conduta dos
indivíduos por elas determinada, é considerada como devida (devendo ser) por
força do seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma
a cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o
ordenamento, como o particular ao geral.” Teoria Pura do Direito cap. V, p 136.

[...]

“O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental


pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de
normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou - o que significa o
mesmo - uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e
individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental.” Teoria
Pura do Direito cap. V, p 137.

Nesse passo a imagem de um Estado de Direito legitimado pela Lei começará a


esvanecer, ao mesmo passo que um fenômeno muito mais profundo tornar-se-á
perceptível, pois a validade do direito é atribuída pela autoridade que lhe dá sentido.

O estudo que aqui propomos não se orienta nem se desenvolve enquanto uma
leitura que buscasse apresentar a gênese da obra de Kelsen, o que implicaria desenvolver
uma investigação da Teoria Pura do Direito no intuito de localizá-la na tradição jurídica
alemã; tampouco é objetivo desse estudo apresentar uma leitura estrutural da obra, mas
sim, pressupondo leitura imanente, apresentar as insuficiências do kantismo analítico de
Kelsen, no enfrentamento do problema moderno que sua teoria acabou por manifestar.

O fato de ter tornado o problema da vontade ficta um problema manifesto


credita a Hans Kelsen o mais sincero elogio, pois não basta lançar mão do argumento
classificatório que os críticos do jurista tendem a exibir, o de que Kelsen na verdade

como tais, comandos, imperativos. Mas não são apenas comandos, pois também são permissões e
atribuições de poder ou competência.” Teoria Pura do Direito, cap. III, p. 51.

2
propõe uma ideologia ou que ele na verdade se posiciona como voluntarista. O
verdadeiro exercício da crítica não é rebaixar o objeto de seu entendimento, mas sim,
tornar perceptível as incongruências e antinomias — talvez as contradições — do objeto,
ressaltando, inclusive, a necessidade de certas ilusões.

Constatamos que, na análise de trechos centrais da Teoria Pura do Direito, o


kantismo de Kelsen não ultrapassa os limites da analítica transcendental, uma vez que o
jurista em nenhum momento se desobriga do esforço de entender o direito em si. Faz
parte das intenções deste trabalho mostrar que, procedendo a um tipo de sisifismo
mental, Kelsen tornou perceptível a dimensão trágica do fenômeno da vontade ficta.
Quando analisava o exercício de atribuição de sentido à norma jurídica, Kelsen faz
questão de ressaltar a seguinte diferenciação:

“Se queremos caracterizar não apenas a interpretação da lei pelos


tribunais ou pelas autoridades administrativas, mas, de modo inteiramente
geral, a interpretação jurídica realizada pelos órgãos aplicadores do Direito,
devemos dizer: na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação
cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito a aplicar
combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua
uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma
interpretação cognoscitiva. Com este ato, ou é produzida uma norma de escalão
inferior, ou é executado um ato de coerção estatuído na norma jurídica
aplicanda.” Teoria Pura do Direito cap.VIII, p 249.

Para Kelsen é exatamente esta interpretação realizada pelo aplicador do direito


que atribui validade ao mesmo, pois é o magistrado que deve escolher qual dos sentidos
do texto normativo será aplicado ao caso enquanto norma particular, como podemos ver
na seqüência:

“Através deste ato de vontade se distingue a interpretação jurídica feita


pelo órgão aplicador do Direito de toda e qualquer outra interpretação,
especialmente da interpretação levada a cabo pela ciência jurídica. A
interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica. Ela cria
Direito. Na verdade, só se fala de interpretação autêntica quando esta
interpretação assuma a forma de uma lei ou de um Tratado de Direito

3
internacional e tem caráter geral, quer dizer, cria Direito não apenas para um
caso concreto, mas para todos os casos iguais, ou seja, quando o ato designado
como interpretação autêntica represente a produção de uma norma geral. Mas
autêntica, isto é, criadora de Direito é-o a interpretação feita através de um órgão
aplicador do Direito ainda quando cria Direito apenas para um caso concreto,
quer dizer, quando esse órgão apenas crie uma norma individual ou execute uma
sanção.” Teoria Pura do Direito cap.VIII, p 249.

Por fim, Kelsen torna manifesto o problema da vontade ficta, ao ressaltar a


amplitude do arbítrio do intérprete autêntico como podemos ver no seguinte trecho:

“A propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer dizer,
da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se
realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma
norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da
moldura que a norma a aplicar representa.” Teoria Pura do Direito cap.VIII, p 250.
[nota: grifo nosso]

Como já mencionamos, o presente estudo se propõe a apresentar as insuficiências


do kantismo analítico de Kelsen. Porém, essas insuficiências não apresentam suas cores
mais nefastas na dimensão analítica do direito, tampouco na dimensão hermenêutica
propriamente dita. É que a envergadura da insegurança, que aqui só se começa a
vislumbrar constitui um problema cuja dimensão não se limita à esfera interpretativa,
como gostam de discorrer os críticos do positivismo jurídico de Kelsen.3

3
Podemos apresentar dois exemplos de críticas feitas ao pensamento de Hans Kelsen, às quais o
presente trabalho classifica como formais. Isto porque, não direcionam seu juízo crítico para o
fenômeno da vontade ficta do magistrado como sendo o elemento nuclear do problema des-velado por
Kelsen. O representante da chamada teoria realista do direito Alf Ross objeta à Teoria Pura do Direito
entre outras coisas, o fato de que a sua determinação do conceito de dever jurídico conduziria a um
regressum ad infinitum. O dever de realizar uma determinada conduta seria constituído por uma norma
que obriga um órgão jurídico a reagir com uma sanção, no caso de uma conduta oposta. Este dever do
órgão poderia, porém, ser constituído por uma norma que obrigasse outro órgão, no caso de o primeiro
não cumprir o seu dever, a reagir com uma sanção “e assim por diante, interminavelmente”. Já o
representante do marxismo soviético Evgeni Pachukanis foi certeiro ao identificar que no
desenvolvimento do capitalismo o direito acabou por tomar a forma da mercadoria. No entanto, ao
criticar o pensamento de Hans Kelsen, só se ocupa de afirmar que a teoria pura de Kelsen contribuiu
para cientificizar o do direito positivo ao qual Pachukanis se refere como direito burguês.

4
Quando se atribui uma soberania absoluta ao arbítrio particular, o fenômeno
político-jurídico que podemos perceber é a exceção. Este problema – moderno por
excelência – nos coloca diante de questões situadas no limiar da contemporaneidade,
pois, no limiar de sua constituição o direito parece se constituir como um ato político, o
que, por seu turno, nos devolve à consideração de um fenômeno especificamente
moderno: a alienação entre o direito e a política.

Diante de tal problema, supomos que o fenômeno da vontade ficta do magistrado


demanda um exercício racional que dê conta de suas complexas viravoltas; assim, e
somente assim, é que se pode dar conta do problema da particularização do direito
público. Nessa jornada, buscamos perpassar por questões relevantes, no enfretamento
das quais o kantismo analítico praticado por Kelsen se mostra insuficiente.

A primeira questão diz respeito à liberdade ou não-liberdade do magistrado ao


“atribuir sentido e validade” ao direito. A segunda questão concerne à possibilidade ou
não de uma “subversão política” por parte do magistrado. A terceira questão interroga os
limites da vontade do magistrado, ou seja, se esta vontade constitui a vontade –
propriamente dita – do Estado, ou se constitui a vontade — absoluta — do magistrado.
Por fim, a quarta e última questão examina a legitimidade e a legalidade dessa vontade,
de uma perspectiva peculiar; neste passo, devemos enfrentar questões que dizem
respeito ao uso público e ao uso privado da razão, bem como tratar de aspectos relativos
aos compromissos assumidos na formação dada pela Faculdade de Direito. Para tanto
devemos percorrer o trajeto kantiano na busca de responder à questão de saber o que é o
esclarecimento (Aufklärung), contemplando a analise que Kant faz do conflito da
Faculdade de Direito com a Faculdade de Filosofia. Ao tratar deste conflito, Kant
afirmava:

“A classe das Faculdades superiores (como ala direita do parlamento da


ciência) defende os estatutos do governo; no entanto, numa constituição tão livre
como deve ser aquela em que se trata da verdade, tem de existir igualmente um
partido da oposição (a ala esquerda) que é o banco da Faculdade filosófica,
porque, sem o seu severo exame e as suas objeções, o governo não estaria assaz
industriado sobre o que lhe pode ser útil ou prejudicial.” Immanuel Kant –
Conflito das Faculdades, Introdução.

Para enfrentarmos estas questões, devemos descer até o nono ciclo deste
submundo que parece se constituir à sombra da miragem burguesa: será necessário nos

5
valermos da visão aguda de Hegel sobre a formulação precisa do problema relativo à
particularização do direito público. É de se esperar que teremos, assim, uma visão
ampliada do problema em toda a sua envergadura: com efeito, é no próprio núcleo dessa
problemática que se engendra uma necessidade simultaneamente singular e concreta: a
de uma formação desse magistrado que parece se constituir como soberano absoluto,
formação esta que a Faculdade de Direito pretende ignorar completamente. Ora, as
exigências postas por esta Bildung nos apresentam a necessidade de pensar uma filosofia
política negativa que não se perca nos labirintos infernais da tradição liberal.

6
I

DA LIBERDADE OU NÃO-LIBERDADE DO MAGISTRADO


AO ATRIBUIR SENTIDO E VALIDADE AO DIREITO

AQUÉM DAS FRONTEIRAS DA ANALÍTICA TRANSCENDENTAL

A certa altura do terceiro capítulo de sua Teoria pura do direito, Hans


Kelsen demarca a sua aproximação e o seu distanciamento em relação ao projeto
crítico de Immanuel Kant. Distingue, assim, entre duas ordens fundamentais, a
da causalidade natural, atinente à esfera do ser, e a da causalidade normativa,
atinente à esfera do dever-ser. Mas ao fazê-lo, como veremos, já se começa a
formular a questão da liberdade ou não-liberdade do magistrado:

“O caminho aqui seguido para a solução do problema do conflito entre a


causalidade da natureza e a liberdade da imputação normativa aproxima-se
da solução tentada por Kant na medida em que também ele pressupõe estas
duas diferentes ordens (Kritik der reinen Vernunft, Akademie-Ausgabe, III,
p. 373, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, IV, p. 458), a saber, uma
causal, constituindo a necessidade natural, e outra normativa ou moral,
constituindo a necessidade do dever-ser, sobre cuja base se produz a
imputação, que pressupõe a liberdade.” Teoria Pura do Direito, nota 24,
Cap. III

A seqüência do trecho em epígrafe nos coloca diante de certa leitura que


Kelsen faz da obra de Kant, a quem o positivista imputa, indebitamente, um
motivo vão para suspender a Liberdade ao plano do pensamento; pois para
Kelsen, esta suspensão promovida por Kant seria uma demanda para atribuir
validade à liberdade por conta de tal liberdade ser uma causa não efetivada, o
que está em jogo, entretanto, é uma antinomia da razão pura. Esta leitura, que
fornece os primeiros indícios de que Kelsen não faz jus à importância das idéias
transcendentais, não compreende que a antitética transcendental da razão não se
ocupa de asserções sobre conhecimentos dogmáticos em aparência, mas opera

7
uma investigação sobre a antinomia da razão pura, a sua gênese e o seu
resultado. Podemos conferir essa leitura no trecho que segue:

“Porém, como ele vê a liberdade numa causa não efetivada e, portanto,


num plano em que a lei por força da qual toda a causa tem de ter um
efeito e todo o efeito tem de ter uma causa não tem validade, mas tem
de admitir, no entanto, que essa lei vale sem exceção no mundo
empírico, o mundo dos sentidos ou dos fenômenos, é obrigado a
deslocar a liberdade - e, com ela, no fundo, a ordem normativa, e bem
assim a imputação, que nela se baseia - para um outro mundo, o
mundo da coisa em si, por ele chamado mundo inteligível.”
Teoria Pura do Direito, nota 24, Cap. III

Como visto, no intento de reduzir a envergadura do problema referente


aos limites da indeterminação da conduta humana, o sistema analítico proposto
por Kelsen padece de um certo kantismo que parece não ter transposto as
fronteiras da Analítica Transcendental. Deste modo é no enfrentamento da
questão da liberdade ou não-liberdade do magistrado ao atribuir sentido e
validade ao Direito que vamos expor não apenas insuficiências do kantismo
analítico de Kelsen, mas também apresentar como o jurista acaba incorrendo em
graves reducionismos no pensamento do filósofo.

ARQUITETÔNICA DO ENTENDIMENTO

A razão nos limites do simples entendimento

Uma leitura atenta da Fundamentação da Metafísica dos Costumes nos


fornece uma exata definição precisa e rigorosa de dever. Nas palavras de Kant
entende-se o dever como ”a ação à qual alguém é obrigado. É pois a matéria da
obrigação”; esta, por seu turno, é entendida como “a necessidade de uma ação
livre sob um imperativo categórico” (Rechtsl. VI, 222).Tal definição kantiana de
dever aparece no início do presente capítulo porque, ao tratar do problema
nuclear da modernidade, a saber, o problema da Liberdade, Kant vai aprofundar

8
sua análise da doutrina dos costumes. Os fundamentos últimos do Direito e da
Doutrina da Virtude (Ethica) são os mesmos, em conseqüência da unidade da
razão prática, sendo as duas legislações provenientes da — autonomia da
vontade — que é o fundamento de ambas, ao passo que o imperativo categórico
é o princípio supremo da doutrina dos costumes.
Formuladas essas proposições a respeito da importância da autonomia da
vontade como fundamento das legislações jurídica e ética, Kant define o direito a
partir de dois elementos básicos que, além de definir o próprio direito,
constituem seu princípio universal. Podemos identificá-lo na lei universal do
direito cuja formulação é a seguinte: “Age exteriormente de tal maneira que o
livre uso do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um, segundo
uma lei universal”4 . Os elementos básicos contidos nesta lei universal são a
relação mútua dos arbítrios e a universalidade da lei.
Kant identifica a especificidade do direito nesta relação mútua dos
arbítrios à medida que trata da relação externa das pessoas, ao mesmo passo em
que paralelamente caracteriza a liberdade como limitação mutua da liberdade.
Desta forma, há uma definição específica do direito: “O direito é a limitação da
liberdade de cada um como condição de seu acordo com a liberdade de todos,
enquanto essa é possível segundo uma lei universal5. Eis aqui uma primeira
tensão presente na obra de Kant, pois a liberdade se entende como limitação
recíproca (dos arbítrios e da liberdade de cada um), por um lado, e, por outro, é
entendida como autonomia.
Contudo, Kant constata que o móbil do Direito, ou seja, o respeito à lei
jurídica que obriga o indivíduo a praticar ou omitir-se à prática de uma
determinada conduta, não pode ser o próprio dever; é necessária uma coerção
(Zwang) externa que exija a realização de uma conduta determinada. Isto já nos
coloca diante de uma segunda tensão, o problema da conciliação da coerção com
a liberdade, que Kant resolverá a partir de um raciocínio que parece o levá-lo ao
limiar da dialética hegeliana6.

4
C.f. Ricardo R. Terra em A Política Tensa, ed. Iluminuras – São Paulo -1995.
5
Immanuel Kant - Theor. Prax VIII, 290.
6
Como veremos mais adiante.

9
No ímpeto de tratar o problema da liberdade sob o prisma da teoria pura
do Direito, Kelsen afirma que, quando um homem é moral ou juridicamente
responsabilizado pela sua conduta moral ou imoral, jurídica ou antijurídica, num
sentido de aprovação ou desaprovação, esta imputação encontra o seu ponto
terminal na conduta do homem interpretada enquanto ato meritório, como
pecado ou como ilícito. Para Kelsen, o verdadeiro significado da idéia de que o
homem, como sujeito de uma ordem moral ou jurídica, é livre implica a idéia de
uma conduta que constitui o ponto terminal da imputação que, de acordo com a
causalidade da ordem da natureza não é, nem como causa nem como efeito, um
ponto terminal, mas, apenas um elo numa série sem fim.
No passo seguinte, Kelsen começa a dar testemunho da natureza pré-
crítica de seu sistema, pois começa a aprisionar o exercício da Razão nos limites
do mundo fenomênico como podemos ver no trecho a seguir:

“Costuma afirmar-se: o homem é responsável, isto é, capaz de


imputação moral ou jurídica, porque é livre ou tem uma vontade livre,
o que, segundo a concepção corrente, significa que ele não está
submetido à lei causal que determina a sua conduta, na medida em
que a sua vontade é, deveras, causa de efeitos, mas não é ela mesma o
efeito de causas.” Teoria Pura do Direito – cap. III, p 66.

O trecho que acabamos de ler, nos mostra como Kelsen trata dos
conceitos de causalidade e imputação entendidos enquanto dogmas contrários.
Ele insiste em atribuir à imputação, mais que à causalidade, um direito especial à
aprovação. Isto porque, como dito no início deste capítulo, Kelsen se limita a
exercitar a razão apenas nos limites do entendimento; portanto, não procede à
devida exposição nem toma em devida consideração a antitética entre a
categoria causalidade e a liberdade. Ora, para Kant, a liberdade só pode ser uma
Idéia, visto que toda experiência supõe uma determinação causal dos fenômenos,
o que exclui, precisamente, o ato livre; contudo, embora seja apenas uma Idéia,
ela é, enquanto liberdade transcendental, fundamento da liberdade prática: ou
ainda, “a independência do arbítrio em relação à coação dos impulsos da
sensibilidade”7.

7
Kritik der reinen Vernunft, A534/B562.

10
A autonomia kantiana: elevada ao plano do pensamento ou rebaixada a ficção
supérflua?

Para Kelsen, se a liberdade fosse tomada como um pressuposto para que


se possa imputar uma responsabilidade à conduta do homem, estaríamos diante
de uma contradição:

“A verdade, porém, é que o pressuposto de que apenas a liberdade do


homem, ou seja, o fato de ele não estar submetido à lei da causalidade,
é que torna possível a responsabilidade ou a imputação está em aberta
contradição com os fatos da vida social.” [grifo nosso] Teoria Pura do
Direito – cap. III, p 66.

Na seqüência, Kelsen afirma que o absoluto determinismo da natureza


que constitui a série infinita da causalidade é pressuposto do próprio Direito, e
que a instituição de qualquer ordem normativa pressupõe um homem não livre:

“A instituição de uma ordem normativa reguladora da conduta dos


indivíduos - com base na qual somente pode ter lugar a imputação -
pressupõe exatamente que a vontade dos indivíduos cuja conduta se
regula seja causalmente determinável e, portanto, não seja livre.”
Teoria Pura do Direito – cap. III, p 66.

Podemos notar que Kelsen promove uma inversão lógica do terceiro


conflito entre idéias transcendentais: toma como tese a idéia de que não há
liberdade; não apresenta, porém, a relação de causalidade por liberdade como
antítese; nesta, a antinomia da Razão Pura aparece como antinomia invertida.
No lugar dessa relação por liberdade, Kelsen insere a imputação; mas não a
coloca, porém, numa relação antitética com a causalidade, pois, como foi dito, o
autor confere à imputação um direito especial à aprovação:

“Só através do fato de a ordem normativa se inserir, como conteúdo


das representações dos indivíduos cuja conduta ela regula, no processo
causal, no fluxo de causas e efeitos, é que esta ordem preenche a sua
função social. E também só com base numa tal ordem normativa, que
pressupõe a sua causalidade relativamente à vontade do indivíduo que

11
lhe está submetido, é que a imputação pode ter lugar.” Teoria Pura
do Direito – cap. III, p 67.

Ora, a afirmação de que a ordem jurídica pressupõe homens não livres nos
coloca um problema que, levado ao seu limite, se nos tornaria impossível pensar
o direto moderno. Kant é certeiro ao identificar que o fundamento, tanto do
direito quanto da ética, é a postulação de que a autonomia da vontade é pensável
como liberdade. Ao postular a autonomia, esta dimensão da liberdade é elevada
ao plano do pensamento; portanto, não mais restrita à dimensão dos objetos
cognoscíveis. Em nota ao capítulo concernente à aparência transcendental, Kant
formula o seguinte argumento:

“A sensibilidade, submetida ao entendimento como o objeto ao qual


este aplica a sua função, é a fonte de conhecimentos reais. Mas esta
mesma sensibilidade, na medida em que influi sobre a própria ação do
pensamento e o determina a julgar, é o fundamento do erro.” Crítica
da Razão Pura – nota ao A294/B351

Kelsen parece ignorar a gravidade de sua afirmação, classificando a


necessidade de se postular a autonomia da vontade enquanto fundamento da
legislação jurídica, como uma ficção supérflua, é o que podemos verificar no
trecho a seguir:

“Por vezes não se nega que a vontade do homem seja efetivamente


determinada por via causal, como todo o acontecer, mas afirma-se
que, para tornar possível a imputação ético-jurídica, se deve
considerar o homem como se a sua vontade fosse livre. Quer dizer:
crê-se que se tem de manter a liberdade da vontade, a sua não-
determinação causal, como uma ficção necessária19. Só que, quando a
imputação é reconhecida como uma ligação de fatos diversa da
causalidade, mas sem estar de forma alguma em contradição com ela,
esta ficção é desnecessária - revela-se inteiramente supérflua.” Teoria
Pura do Direito, Cap. III, p.67

Como podemos ver, Kelsen não se desonera da tarefa pré-crítica de


apenas pensar objetos ontologicamente sensíveis. No avançar de nossa análise,

12
nos deparamos com a formulação kelseniana do problema da liberdade,
formulação que nos levará a uma descida muito mais profunda no labirinto
analítico de Kelsen; pois a argumentação apresentada na nota 24 ao capítulo III
da Teoria Pura do Direito nos expõe não só insuficiências do kantismo de Kelsen,
mas, também, graves reducionismos cometidos contra o pensamento kantiano.

Expansão e contração do conceito de Liberdade: interesse prático ou extravagância


transcendente?

Na formulação kelseniana é a determinabilidade causal da vontade que


torna possível a imputação, de maneira que o homem só é livre porque se lhe
imputa algo. Portanto, Kelsen simplesmente torna indisponível a idéia
transcendental da liberdade; e se não nos for possível dispor da Idéia
transcendental de liberdade, a reflexão moral – em seu todo – perderia todo e
qualquer sentido. Daí ser possível – e mesmo necessário – falar em um interesse
não redutível ao Entendimento: um interesse da razão em sua vocação prática
que exige “salvar” tal “liberdade”. Desta forma a liberdade é posta na condição de
resultado prático da imputação tal como podemos ver a seguir:

“O homem é livre porque e enquanto são imputadas a uma


determinada conduta humana, como ao seu pressuposto a
recompensa, a penitência ou a pena - não porque esta conduta não
seja causalmente determinada, mas não obstante ela ser causalmente
determinada, ou até: por ela ser causalmente determinada. O homem
é livre porque esta sua conduta é um ponto terminal da imputação,
embora seja causalmente determinada.” Teoria Pura do Direito,
Cap. III, p.69

Para Kelsen, a conseqüência que tiramos deste arranjo analítico é que não
existe qualquer contradição entre a causalidade da ordem natural e a liberdade
sob a ordem moral ou jurídica, simplesmente porque a primeira é uma ordem de
ser e as outras são ordens de dever-ser. Podemos constatar que Kelsen se vale a-
criticamente da Razão, ao utilizar os conceitos do entendimento empregados em
toda atividade sintética, sem porém promover a devida expansão desses
conceitos, o que o levaria a operá-los para além dos limites desta experiência;

13
isto iria a produzir teses sofísticas, que da experiência não têm a esperar
confirmação, nem refutação a temer, sendo que cada uma delas não somente não
encerra contradição consigo própria, mas encontra mesmo na natureza da razão
condições da sua necessidade; a proposição contrária, porém, infelizmente, tem
por seu lado fundamentos de afirmação igualmente válidos e necessários.
Assim fica claro que Kelsen não dispõe da antitética ao tratar do problema
da liberdade, atendo-se a lançar mão de uma distinção tipológica entre
causalidade natural e imputação normativa, distinção em que se restringe à
afirmação de dogmas do lado contrário.
É necessário, porém, ir mais fundo na análise deste arranjo analítico, a fim
de identificarmos a amplitude do reducionismo que Kelsen vai empreitar contra
o pensamento kantiano.
De saída, a distinção tipológica que Kelsen faz entre causalidade natural e
imputação normativa é meramente formal, isto é, não permite avançar no
conhecimento dos limites da distinção, bem como não permite pensar a
distinção entre fenômenos reais e significações numênicas; e, como tal, ela
implica no exercício do arbítrio, isto é, não se permite dar voz à expressão
proposicional do contraditório. No trecho seguinte, Kelsen reduz a liberdade ao
dogma teológico do livre-arbítrio:

“Com efeito, a liberdade, que de fato está essencialmente ligada à


imputação, não significa, como Kant supõe, sob a influência do dogma
teológico da liberdade de arbítrio, a cessação da lei da causalidade, ou
seja, que a vontade do homem, criado à semelhança de Deus, seja -
como a vontade de Deus - causa de efeitos sem ser o efeito de uma
causa.” Teoria Pura do Direito – nota 24 ao capítulo III, p 262.

O que significa tal vontade? Ora o que está em jogo aqui é o fundamento
de validade que dá inicio à série da imputação. Kelsen acusa ilegalmente8 Kant de

8
Ilegal é uma disputa pública das opiniões, por conseguinte, um conflito erudito ou quanto à
substância, se não fosse sequer permitido impugnar uma proposição pública, porque não é permitido
proferir um juízo público sobre ela e o seu contrário; ou simplesmente quanto à forma, se o modo como
é conduzida a discussão não assenta em argumentos objetivos que se dirigem à razão do adversário,
mas em motivos subjetivos que determinam o seu juízo mediante a inclinação para, graças à astúcia
(que engloba igualmente a corrupção) ou à violência (ameaça), o levar ao consentimento. Conflito das
Faculdades, pp. 33-34.

14
tomar a liberdade como uma significação numênica, tal como Deus ou a
imortalidade da alma; mas, se assim fosse, a antinomia instaurada no exercício
antitético a respeito da idéia cosmológica da Liberdade se resolveria
simplesmente por constatarmos que não podemos nos apoiar num pretenso
conhecimento do mundo, ao mesmo passo que, dele, só podemos dispor com
uma intuição bastante limitada.
Mas desta forma sucita-se outra questão: de que trata a Terceira
Antinomia da Razão Pura? Sabe-se que a terceira antinomia diz respeito ao
dogmatismo, na medida em que este presume estabelecer efetivamente a
existência determinada de um certo número de representações do mundo
enquanto realidades substanciais. Entretanto, ao fornecer um fundamento
especulativo para o sentimento de liberdade, a terceira antinomia dá testemunho
de um interesse prático.
Levando em consideração que a idéia transcendental de liberdade é –
assim como a idéia da alma e a do mundo – um efeito inevitável da racionalidade
pura, conclui-se que não se há de tomá-la como um mero e simples erro. É
permitido esperar que a liberdade deva poder desempenhar um papel singular na
vida do espírito, contanto que, para ela, se admita uma disciplina muito
específica, capaz de impedir extra-vagâncias transcendentes, derivas na esfera no
supra-sensível.

Reducionismos hermenêuticos: do eclipse da moral ao eclipse da ética

Desta forma, a Idéia Transcendental da Liberdade exerce uma função


reguladora dos conceitos da razão, o que para Kant é indispensável, visto que,
antes mesmo de o entendimento intervir no conhecimento da natureza, a razão
instaura as idéias transcendentais: longe de serem um epifenômeno, posto em
acréscimo ao conhecimento do entendimento para pensar a unificação dos
fenômenos naturais, as idéias transcendentais preparam o terreno, um campo de
aplicação, mediante o estabelecimento de princípios como os de

15
homogeneidade, variedade e afinidade de todas as leis que, em seguida, o
entendimento poderá formar9.

Portanto, Kant não está ocupado em estabelecer a Liberdade enquanto


fundamento de validade para a legislação jurídica; por outro lado, se isso
imputássemos ao seu pensamento, estaríamos incorrendo em grave
reducionismo. Pois o que está em jogo para Kant é o próprio pensar. Com efeito,
sem função reguladora da razão não é possível realizar um triplo esforço: o
esforço para entender por si próprio; o esforço para ter por si próprio
consciência; finalmente, o esforço para deliberar livremente, isto é, decidir por si
próprio que dieta seguir, o que se deve fazer e o que se deve deixar de fazer. Em
suma, sem promover a suspensão da Liberdade ao plano do pensamento, toda e
qualquer possibilidade de Esclarecimento (Aufklärung) é ab-rogada.

Assim, já se pode afirmar que a recusa de Kelsen em atender exigência


puramente kantiana de que a liberdade seja essencial e de que a autonomia
absoluta do sujeito seja assegurada, implica em dois reducionismos: o primeiro é
de matriz analítica e consiste na redução da forma pura da autonomia kantiana à
ordem normativa; o segundo é de matriz hermenêutica e se constitui na forma de
um deslocamento sintático, uma vez que Kelsen transforma a estrutura da
relação de causalidade por liberdade em ordem normativa como base da
imputação.

Um primeiro exercício da razão pura prática nos forneceria, pois, a


seguinte proto-oposição: para Kelsen a legislação ética é uma legislação sem
efetividade, pois seu dever está imputado numa autopunição meramente moral.
Desta forma, a ética padece de uma ausência de auto-coercitividade como
conferimos nesta formulação kelseniana:

“A Ética, como a ciência jurídica, é ciência de normas ou ciência


normativa porque tem por objeto normas de dever-ser como

9
Kritik der reinen Vernunft, A 657/ B 686.

16
conteúdos de sentido, e não os atos da ordem do ser insertos no nexo
causal, cujo sentido são as normas. Isso não significa de forma alguma
que as normas, como na Ética de Kant (Schlick, op. cit., p. 8), sejam
comandos sem um comandar, exigências sem um exigir, isto é,
normas sem atos que as ponham.” Teoria Pura do Direito, nota 1 ao
cap. III, p 256.

Tal como Kant, Kelsen não distingue a norma jurídica e a norma ética,
enquanto conteúdos de sentido e não enquanto atos da ordem do ser insertos no
nexo causal. Porém, como Kelsen substitui a relação de causalidade por liberdade
pela relação de imputação, a hipótese de autocoerção se torna irrelevante; o que,
para ele, é argumento suficiente para, neste passo da argumentação, rebaixar a
Ética ao status de uma legislação inefetiva.
Jamais ocorreria ao autor da Fundamentação da Metafísica dos Costumes
rebaixar a Ética a uma legislação inefetiva. Kant apresenta como critério de
distinção entre a legislação jurídica e a legislação ética o fato de que a coação
característica da norma jurídica é uma coação externa. Porém essa externalidade
não confere ao Direito o papel de legislação supra-moral, tal como postula
Kelsen.
Por isso pode-se dizer, do homem, numênico, que ele é livre tanto moral
como éticamente inserto na ordem transcendental; isto não impede que se diga,
do homem fenomênico, que sua vida é calculável como um fenômeno
considerável como inserto na ordem natural. Da Fundamentação da Metafísica
do Costumes à Crítica da Razão Prática tal distinção se torna explicita:

“seria possível calcular com certeza a conduta de um homem no


futuro, tal como se pode calcular um eclipse da lua ou do sol, e
afirmar, no entanto, que o homem é livre” 10.

Assim podemos verificar que o reducionismo hermenêutico de Kelsen


acaba resultando naquilo que, com alguma liberdade, se poderia chamar de
“eclipse”, não da moral, mas eclipse da ética.
Tensões e distensões na aporética da coisa-em-si

10
Kant, Crítica da Razão Prática.

17
Para além do caráter problemático que reside em distorcer a noção
kantiana de autocoerção (Selbstzwang) enquanto móbil da Ética, podemos
constatar que Kelsen não leva em conta a amplitude do conceito de causalidade
por liberdade reduzindo a terceira antinomia da Razão Pura a uma questão
tópica. Ao passo que empreende esta redução, Kelsen incorre em outro
reducionismo grave, o de enclausurar o pensável ao cognoscível. Em Kant o
homem não aparece como objeto ontológico da Razão, se assim fosse, Kant seria,
simplesmente, um autor pré-crítico. Se levarmos a distinção kelseniana do
homem inteligível em relação ao homem empírico ao seu limite conceitual, isso
implicaria dizer que as três críticas de Kant não surtiram efeito algum na história
do pensamento.
No passo seguinte Kelsen acaba por incorrer num rebaixamento que, se
mantido, acaba por constituir um absurdo de obrigar o pensamento kantiano a
tratar tão somente da existência da coisa em si enquanto tal. Para sustentar sua
diferenciação entre causalidade e imputação, Kelsen incorre na indiferenciação
entre postular e pressupor.

“Com efeito, a coisa em si é a causa ou o fundamento do fenômeno e


não pode, por isso mesmo, ser idêntica a este. A contradição entre
causalidade e liberdade reside precisamente no fato de se afirmar de
uma e a mesma coisa que ela é causalmente determinada e, ao mesmo
tempo, que ela é livre, isto é, não causalmente determinada. Kant
pode evitar a contradição apenas pelo fato de não referir à mesma
coisa causalidade e liberdade, mas referir a causalidade à coisa como
fenômeno e a liberdade á coisa em si - portanto, precisamente pelo
fato de pressupor que o homem, como fenômeno, não é o mesmo ser
que ele designa por homem como coisa em si”. Teoria Pura do
Direito, nota 24, Cap. III.

Como veremos a seguir, a norma fundamental enquanto “condição lógico-


transcendental da interpretação” precisa ser “pressuposta”, não “postulada”. Esta
indébita aplicação do conceito gnoseológico-kantiano acaba por constituir uma
nova reincidência na distensão da aporética da coisa-em-si. Não bastasse isso,

18
Kelsen se apropria perversamente11 do conceito de imperativo categórico para
formular o seu próprio candidato a pressuposto (eis aí um problema conceitual
grave em relação ao kantismo) universal do Direito, a saber, a norma
fundamental (Grundnorm).

“Na medida em que só através da pressuposição da norma


fundamental se torna possível interpretar o sentido subjetivo do fato
constituinte e dos fatos postos de acordo com a Constituição como
seu sentido objetivo, quer dizer, como normas objetivamente válidas,
pode a norma fundamental, na sua descrição pela ciência jurídica - e
se é lícito aplicar per analogiam um conceito da teoria do
conhecimento de Kant -, ser designada como a condição lógico-
transcendental desta interpretação.” Teoria Pura do Direito, cap. V,
p. 141.

O sentido da analogia aqui anunciada está longe de remeter o leitor ao


conceito kantiano de analogia transcendental, até porque Kelsen não atribui à
idéia transcendental da liberdade a função reguladora dos conceitos da razão, o
que kantianamente falando impossibilitaria à razão pura prática operar tanto
analogias transcendentais quanto esquematismos transcendentais. Por isso, a
analogia aplicada por Kelsen assume um andamento tradicional. Isto dito vamos
verificar o andamento da analogia realizada pelo jurista:

“Assim como Kant pergunta: como é possível uma interpretação,


alheia a toda metafísica, dos fatos dados aos nossos sentidos nas leis
naturais formuladas pela ciência da natureza, a Teoria Pura do Direito
pergunta: como é possível uma interpretação, não reconduzível a
autoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza, do sentido
subjetivo de certos fatos como um sistema de normas jurídicas
objetivamente válidas descritíveis em proposições jurídicas?" Teoria
Pura do Direito, cap. V, p. 141.

11
O sentido em que utilizamos o advérbio ficará elucidado no momento posterior do trabalho, no qual
trataremos minuciosamente do que consideramos perverso na apropriação kelseniana do conceito de
imperativo categórico.

19
Imperativo categórico per analogiam: uma apropriação indébita e funcional

Nota-se que aqui Kelsen inicia uma apropriação do conceito de imperativo


categórico, uma apropriação que podemos classificar como indébita e perversa.
Antes de dizer por que tal apropriação é indébita e perversa, devemos retomar o
conceito kantiano de imperativo categórico. Para Kant, um princípio objetivo, na
medida em que se impõe necessariamente a uma vontade, chama-se
mandamento, e a fórmula deste mandamento chama-se imperativo. O
imperativo é uma regra prática que se dá a um individuo cuja razão não
determina à vontade. Kant subdivide os imperativos hipotéticos em
problemáticos (imperativos de habilidade) e assertóricos (ou imperativos de
prudência, chamados também pragmáticos). Os imperativos categóricos não se
subdividem porque todo o imperativo categórico é, por sua vez, apodítico. De
fato, todo o imperativo que mande incondicionalmente como se o ordenado
fosse um bem em si, é categórico. A fórmula universal do imperativo categórico é
a seguinte “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo
querer que ela se torne lei universal.”12 Somente sob a Idéia Transcendental de
Liberdade um ser racional pode ter vontade própria. Para Kant, um imperativo
categórico cujo fundamento está no princípio objetivo da vontade, é aquele
segundo o qual a natureza racional existe como fim.

Visto que o imperativo é regra prática que se dá a um indivíduo racional


que, embora sofrendo influência de apetites e inclinações, reconheceria no
imperativo categórico aquele imperativo que representasse uma ação como
objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra
finalidade, este imperativo só poderá ser postulado.

12
KANT, Immanuel. “Fundamentação da metafísica dos costumes”. In Textos selecionados.
São Paulo, Abril, 1994 (Col. Os Pensadores). p. 101-162.

20
No exercício de sua analogia, Kelsen atribui à norma fundamental o status
de princípio objetivo universal, tomando-a como se fora um imperativo
categórico. Porém, como foi dito, essa apropriação realizada por Kelsen é
indébita, pois o jurista afirma que a norma fundamental é pressuposta
logicamente. Ora, se a norma fundamental é um princípio objetivo universal, ela
não pode ser pressuposta, mas apenas reconhecida por aqueles que vivem sob a
Idéia de Liberdade; e mais, exatamente por conta disso, a norma fundamental só
poderia ser postulada, e não um pressuposto lógico transcendental.

É válido notar que esta indiferenciação entre postular e pressupor distorce


tanto o sentido kantiano de causalidade enquanto categoria de pensamento,
quanto o sentido humeano da causalidade como hábito da imaginação. No
trecho que segue podemos constatar uma afirmação na qual Kelsen empreita
uma infra-estrutura analítica, na qual tenta restringir o exercício da Razão aos
limites do entendimento; promovendo-se tal distorção, parece constituir-se o
ponto de gravidade sobre o qual Kelsen edifica o conceito de imputação:

“Mas importa, sobretudo, notar que os fatos que a imputação jurídica


conexiona entre si são diferentes daqueles. Com efeito, a imputação
não liga o ato de produção jurídica com a conduta conforme ao
Direito, mas o fato, determinado pela ordem jurídica como
pressuposto, com a conseqüência pela mesma ordem jurídica fixada.
A imputação é, da mesma forma que a causalidade, um princípio
ordenador do pensamento humano e, por isso, é, tanto ou tampouco
como aquela, uma ilusão ou ideologia, pois - para falar como Hume
ou Kant – também aquela não é mais que um hábito ou categoria de
pensamento”. Teoria Pura do Direito, p. 73, § 1.

Mas Kelsen não se limita a propor um imperativo categórico pressuposto,


o que parece indicar que para ele não existe uma vontade enquanto razão
prática, mas o constitui enquanto categoria sensível da intuição. Isso configura
uma apropriação perversa do conceito de imperativo categórico, pois, além de
esvaziá-lo de conteúdo moral, pois a norma fundamental não pode ter um
conteúdo senão o de atribuição de poder a uma autoridade legisladora, Kelsen
toma a norma fundamental como categoria sensível a priori, sem a qual seria
impossível perceber a ordem normativa, tal que não se pode conhecer nada para

21
além do tempo e do espaço. No mesmo raciocínio, Kelsen atribui à norma
fundamental o status de princípio ordenador da pluralidade de normas jurídicas
gerais e individuais postas pelos órgãos jurídicos, como podemos conferir no
trecho que se segue:
“Assim como o caos das sensações só através do conhecimento
ordenador da ciência se transforma em cosmos, isto é, em natureza
como um sistema unitário, assim também a pluralidade das normas
jurídicas gerais e individuais postas pelos órgãos jurídicos, isto é, o
material dado à ciência do Direito, só através do conhecimento da
ciência jurídica se transforma num sistema unitário isento de
contradições, ou seja, numa ordem jurídica.” Teoria Pura do
Direito, p. 52, § 1.

A esfera do Sollen na arquitetura analítica

Na seqüência Kelsen indica a função da norma fundamental enquanto


fundamento de validade objetiva de uma ordem jurídica positiva, função esta
que, como veremos mais adiante, acaba sendo um dos argumentos utilizados por
Kelsen para defender a posição que a vontade ficta do intérprete autêntico não
tenha como fruto unigênito o arbítrio.

“A função desta norma fundamental é: fundamentar a validade


objetiva de uma ordem jurídica positiva, isto é, das normas, postas
através de atos de vontade humanos, de uma ordem coerciva
globalmente eficaz, quer dizer: interpretar o sentido subjetivo destes
atos como seu sentido objetivo.” Teoria Pura do Direito, p. 141-142.

Duas zonas de indiscernibilidade no “ponto terminal da imputação”

Talvez impulsionado pela força de sua incontinente arquitetura analítica,


Kelsen opera uma distinção entre o Sollen moral e o Sollen jurídico tal, que
parece promover uma inversão entre ação por dever (puramente moral, legítima)
e ação conforme o dever (meramente jurídica, legal), o que implicaria uma

22
substituição da legitimidade (puramente kantiana) por uma legalidade
(‘puramente’) kelseniana.

“A palavra “dever” (“Pflicht”) está ligada na língua alemã -


especialmente depois da Ética de Kant - a idéia de um valor moral
absoluto. O princípio segundo o qual o homem deve cumprir sempre
o seu “dever” ou os seus “deveres” pressupõe evidentemente que haja
deveres absolutos, inteligíveis para todos. De outro modo, isto é, se se
admitisse que não há uma moral absoluta, mas várias e muito diversas
ordens morais que prescrevem condutas que se contrariam, o
princípio citado, que constitui o princípio fundamental da ética
kantiana, reconduzir-se-ia à tautologia de que o homem deve sempre
fazer aquilo que, de conformidade com a ordem moral tomada em
consideração, é prescrito, ou seja: que ele deve fazer o que deve fazer.”
Teoria Pura do Direito, cap. IV, p.82.

Nota-se claramente que, na construção de sua ciência pura do Direito,


Kelsen não se permite levar em conta o já mencionado conceito kantiano de
dever, pois se o fizesse seria obrigado a admitir, para a Ética, o mesmo estatuto
por ele conferido ao Direito. Isto implica o exercício lógico-formal de reduzir
toda a amplitude da noção de dever ao seu conceito jurídico.

“O conceito de dever jurídico refere-se exclusivamente a uma ordem


jurídica positiva e não tem qualquer espécie de implicação moral. Um
dever jurídico pode - embora isso se não verifique necessariamente -
ter como conteúdo a mesma conduta que é prescrita em qualquer
sistema moral, mas também pode ter por conteúdo a conduta oposta,
por forma a existir - como costuma admitir-se em tal hipótese - um
conflito entre dever jurídico e dever moral.” Teoria Pura do Direito,
cap. IV p.83.

**

O ARBÍTRIO NO LIMIAR CONCEITUAL DA LIBERDADE

Nesta formulação monológica, Kelsen parece constituir uma zona de


indiscernibilidade entre arbítrio (Willen), vontade (Wollen) e dever-ser (Sollen),
tal como se, em seu sistema cuja natureza cientificista o obriga a empreender um
raciocínio que salta da analítica transcendental para as conseqüências práticas da

23
aplicação da norma jurídica ao caso concreto, a vontade livre não constitui uma
mediação entre o arbítrio e o dever-ser ou, o que é mais grave, a vontade ficta
começa a apresentar o arbítrio – arbítrio a-crítico – do intérprete autêntico.
“Também é verdade que, no sentido da teoria do conhecimento de
Kant, a ciência jurídica como conhecimento do Direito, assim como
todo o conhecimento, tem caráter constitutivo e, por conseguinte,
“produz” o seu objeto na medida em que o apreende como um todo
com sentido. Assim como o caos das sensações só através do
conhecimento ordenador da ciência se transforma em cosmos, isto é,
em natureza como um sistema unitário, assim também a pluralidade
das normas jurídicas gerais e individuais postas pelos órgãos jurídicos,
isto é, o material dado à ciência do Direito, só através do
conhecimento da ciência jurídica se transforma num sistema unitário
isento de contradições, ou seja, numa ordem jurídica. Esta
“produção”, porém, tem um puro caráter teorético ou gnoseológico.
Ela é algo completamente diferente da produção de objetos pelo
trabalho humano ou da produção do Direito pela autoridade jurídica.”
Teoria Pura do Direito, cap. III, p. 52, § 1.

Por fim, uma segunda zona de indiscernibilidade se instala no ponto


terminal da série da imputabilidade. Pois uma vez que Kelsen não estabelece a
razão prática como mediação entre o puro arbítrio e o dever-ser, pergunta-se:
qual será o efeito pragmático de tal ausência de mediação?
O resultado de levarmos o kantismo analítico de Kelsen ao seu limite
conceitual no enfrentamento do problema da Liberdade é, no plano da Moral, o
puro arbítrio. Kelsen não se contém no esforço de tentar sopesar toda e qualquer
virtude que obste o processo de objetivação deste arbítrio na forma da norma
jurídica. Se nesta conclusão estivermos sob a inspiração de Apollo, no lugar de
termos uma razão pura prática teremos uma pura razão ficta. Isso significa dizer
que para Kelsen toda produção da razão consiste numa ficção13, inclusos aí os
objetos pensáveis.

13
Se estivermos certos, levar a arquitetônica analítica de Kelsen ao seu limite conceitual implica afirmar
que para Kelsen, toda produção da razão que se situar fora dos domínios do simples entendimento,
consiste numa ficção. Ora, isso levado às últimas conseqüências nos leva a concluir que, para Kelsen,
toda a racionalidade que se situar fora da dimensão analítica não passa de uma produção fictícia. Assim,
nos termos em que a arquitetônica kelseniana se nos apresenta, a Razão em sua plenitude consistiria
em nada mais que uma produção fictícia.

24
Mas isso não será pagar muito caro a destruição da metafísica dos
costumes? E valeria mesmo a pena fazer da moralidade kantiana uma “fábula
para adultos”, para fazer do Direito Puro uma dimensão necessária da existência
humana?

25
II

Da possibilidade de subversão política por parte do Magistrado.

A INSTITUIÇÃO DA ORDEM JURÍDICA

Na exploração da arquitetônica do entendimento edificada por Kelsen, pudemos


nos deparar com a afirmação de que a postulação da Liberdade, como necessária para
que se possa imputar algo a alguém, constitui uma contradição com os fatos sociais14. Tal
afirmação torna indispensável uma retomada do tema da instituição do Estado,
enquanto união de um conjunto de pessoas sob leis jurídicas a priori, portanto
necessárias, e do conjunto de leis que precisam ser universalmente promulgadas para
produzir um estado jurídico, ou seja, do Direito Público.

Kant define o Direito Público como um sistema de leis para um povo, que,
achando-se os indivíduos entre si numa relação de influência recíproca, necessitam do
estado jurídico sob uma vontade que os unifique, ou seja, necessitam de uma
Constituição. Este estado dos indivíduos num povo, em relação uns com os outros,
chama-se estado civil (status civilis) e o seu todo, em relação a seus membros, chama-se
Estado (civitas), e, pelo fato de a união entre os membros presumir-se hereditária,
chama-se, também, nação (gens).

A instituição de uma ordem jurídica em regiões em que uma ordem anterior já foi
instituída só pode se dar segundo Kant por meio de um contrato, pois, se ocorrer pela
violência, tal ordem jurídica seria fruto de uma injustiça, injustiça esta que não se desfaz
sob a alegação de que a instituição de tal ordem teve de ser violenta por conta de que a
ordem anterior fosse corrupta, primitiva, ou ainda, que tal região fosse um estado sem
lei. Tal raciocínio se desenvolve no trecho que podemos ver a seguir:

“— Pode objetar-se contra isto que face a uma tal reserva em relação a
começar por estabelecer mediante a força um estado legal talvez estivesse
ainda a terra inteira num estado sem lei: mas tal objeção não pode anular
aquela condição jurídica, como não pode a pretexto dos revolucionários
do Estado de que quando são más as Constituições cabe também ao povo

14
Teoria Pura do Direito – cap. III, p 66.

26
alterá-las pela força e ser de uma vez por todas injusto, para estabelecer
depois de modo mais seguro a justiça e fazê-la florescer.”

A Metafísica dos Costumes, § 62, p.242

Visto que, segundo Kant, direito e competência para coagir significam a mesma
coisa, o problema que se apresenta é o da conciliação da coerção com a liberdade.

A TENSÃO MODERNA DA LIBERDADE

Antes de tratar do raciocínio desenvolvido por Kant na resolução de tal


problema, vamos retomar duas concepções opostas de liberdade que estão no núcleo do
pensamento moderno: a primeira é uma concepção de natureza liberal defendida por
Montesquieu e afirma que a liberdade é a faculdade de realizar ou não certas ações, não
sendo impedido por outros que convivem comigo, ou pela sociedade como um
complexo orgânico ou, simplesmente, pelo poder estatal; a segunda é uma concepção
de natureza democrática defendida por Rousseau e afirma que a liberdade é o poder de
não obedecer a outra norma que não aquela que eu mesmo me imponho.
Vimos que, em Kant, a coexistência de arbítrios que se limitam reciprocamente e
a autonomia da vontade são postos lado a lado na constituição da Doutrina dos
Costumes. Porém, não basta empreender uma investigação como a de Norberto Bobbio,
cujo objetivo era classificar o pensamento kantiano como liberal; mais interessante é
investigar a tensão que se constitui no pensamento kantiano.
Nota-se que o tema da tensão entre a liberdade entendida como limitação
recíproca (dos arbítrios e da liberdade de cada um), por um lado, e, por outro, entendida
como autonomia, se coloca novamente nesse passo da nossa investigação, pois, cabe
perguntar-se: como poderá aquele que tem a competência para instituir o direito,
portanto competência para coagir, garantir a autonomia do indivíduo e paralelamente
imputar a obediência à norma objetiva? A démarche kantiana para tratar de tal tensão se
encontra no seguinte raciocínio:
“Tudo o que é injusto é um obstáculo à liberdade segundo leis universais,
mas a coerção é um obstáculo ou resistência que acontece à liberdade.
Por conseguinte: se um certo uso da liberdade mesma é um obstáculo à
liberdade segundo leis universais (ou seja, é injusto), então a coerção, que
lhe é oposta, como impedimento ao obstáculo da liberdade, está de

27
acordo com a liberdade segundo leis universais, ou seja, é
justa.”Rechtslehre,cap. VI, 231

Esse raciocínio não parece nos levar ao limiar da dialética hegeliana? Ora, o que
parece estar em jogo é o poder constituinte e, portanto, a fundação do próprio Direito.
Porém para avançar nessa questão devemos retomar o ponto mais polêmico da teoria
kelseniana, visto que, como dito na introdução do presente trabalho, Kelsen tornou
manifesto o fenômeno essencial do Direito, ou seja, em termos hegelianos, é permitido
afirmar que é da essência do direito positivo aparecer como a vontade ficta do
magistrado.

UMA INVESTIDURA ESTATAL DA LEGITIMIDADE

Soberano, Demasiado Soberano?

No capítulo anterior exploramos a arquitetônica analítica, postulada por Kelsen


como sendo o sentido lógico sem o qual não se organiza sistematicamente a produção
legislativa. O que está em investigação agora é a criação do próprio Direito e aquele a
quem é atribuída a competência para tanto.

Vimos que o princípio universal da legislação jurídica é para Kelsen a norma


fundamental, e que a norma fundamental não pode ter um conteúdo senão o de
atribuição de poder a uma autoridade legisladora. Porém Kelsen é explicito ao dizer que
a autoridade que cria o Direito é aquela que exerce o ato de vontade que atribui sentido
objetivo à norma, ato de vontade manifesta na interpretação da autoridade coatora:

“A interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica.


Ela cria Direito. Na verdade, só se fala de interpretação autêntica quando
esta interpretação assuma a forma de uma lei ou de um Tratado de Direito
internacional e tem caráter geral, quer dizer, cria Direito não apenas para
um caso concreto, mas para todos os casos iguais, ou seja, quando o ato
designado como interpretação autêntica represente a produção de uma
norma geral.” Teoria Pura do Direito, cap. VIII, p 249.

28
No trecho citado acima, notamos que esta interpretação que cria o direito se
distingue das demais interpretações do texto da Lei operadas pelos indivíduos privados
pelo fato de o interprete que cria o Direito ser investido de competência, ou seja,
autoridade para coagir. Isto fica mais claro quando nos remetemos à idéia kelseniana de
que o sistema jurídico peculiar ao Direito Positivo é um sistema cuja natureza é formal,
ou seja, o que dá sentido ao escalonamento da ordem jurídica é a autoridade de quem
positivou a norma, seja em um sentido geral, seja aplicada ao caso concreto. Assim
sendo, quanto mais ampla é a competência, mais próxima do ápice de tal escalonamento
fica a norma criada. Este sentido formal é para Kelsen um sentido dinâmico como
podemos ver no trecho a seguir:

“Segundo a natureza do fundamento de validade, podemos distinguir dois


tipos diferentes de sistemas de normas: um tipo estático e um tipo
dinâmico. [...] O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma
fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um
fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade
legisladora ou - o que significa o mesmo - uma regra que determina como
devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento
fundado sobre esta norma fundamental.” Teoria Pura do Direito, cap.V,
p 136.

Segundo Kelsen a lei enquanto texto normativo sempre estabelece o Direito a ser
aplicado: todavia, esta indeterminação sempre é ampla porque a lei constitui uma norma
em geral, sendo que, enquanto texto, esta norma em geral estabelece uma série de
sentidos possíveis. A esta série de sentidos Kelsen dá o nome de moldura da norma
jurídica, como podemos ver no trecho a seguir:

“O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro


da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao
Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que
preencha esta moldura em qualquer sentido possível.” Teoria Pura do
Direito, cap. VIII, p 247.

29
Desta forma ao aplicar a norma jurídica ao caso concreto, o magistrado estaria
em total concordância com a função que lhe é atribuída na divisão15 dos poderes estatais,
ou seja, a função de aplicar a lei criada pelo soberano do povo (o legislador).

Porém Kelsen torna manifesto, no entanto, o fato de que o magistrado pode interpretar
até mesmo fora da moldura:

“A propósito importa notar que, pela via da interpretação autêntica, quer


dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de
aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela
interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também se pode
produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a
norma a aplicar representa.” [nota: grifo nosso] Teoria Pura do Direito,
cap. VIII, p 250.

Esta afirmação nos expõe exatamente como o fenômeno da vontade ficta se insere
no núcleo da ordem jurídica, visto que cria e dá sentido de validade ao Direito. Porém a
inovação trazida pela Teoria Pura do Direito é o fato de esta vontade que criar o Direito
mesmo que em completa inconformidade com a Lei.

Tal hipótese é sem dúvida um fenômeno que ultrapassaria os limites do poder


judiciário visto que, segundo o próprio Kelsen, dizer que uma sentença judicial é fundada
na lei, não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro
que a lei representa - não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma
das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral.

Assim, nos colocamos diante de dois problemas: o primeiro diz respeito à criação do
Direito, pois se levarmos a cabo a arquitetônica analítica de Kelsen esta vontade ficta será
sempre a manifestação pública do arbítrio (willen); o segundo problema se instaura por
conta do conceito de autonomia da vontade, pois, como pode o individuo livre ser
obediente a uma lei que não é fruto de sua vontade soberana enquanto membro do
povo?

15
Uma leitura equivocada da obra de Montesquieu levou os constitucionalistas brasileiros a pensarem
numa separação do poder estatal em três poderes, a saber, o Poder Legislativo, o Poder Executivo, e o
Poder Judiciário. Ocorre que tal leitura implicaria pensar que o Estado se fragmentou em três poderes,
quando na verdade a proposição de Montesquieu é a de que o exercício do poder estatal se divide em
três funções: a função de legislar, a função de executar as determinações da lei, e a função de julgar.

30
Ao enfrentar o primeiro problema cuja resolução é dada por Kelsen recorrendo à
distinção entre o que ele denomina como interpretação autêntica e interpretação não
autêntica, vamos tentar, agora, delinear a figura do interprete autêntico e de seu
antagonista, investigando sobretudo os passos dados pelo jurista no encaminhamento do
capítulo VIII da Teoria Puro do Direito.

Do interprete autêntico: criador livre ou criador arbitrário?

Para Kelsen a interpretação feita pelos órgãos jurídicos é sempre autêntica, visto
que esta interpretação assume a forma de uma lei ou de um tratado de Direito
internacional e tem caráter geral, ou seja, cria Direito não apenas para um caso concreto
enquanto criação de uma norma individual ou execução de uma sanção, mas para todos
os casos iguais enquanto norma geral.

Portanto, para Kelsen, a interpretação autêntica é aquela que cria o Direito. Mas
se assim for, a solução kelseniana não passará de um exercício meramente tautológico: a
interpretação é autêntica porque a autoridade é competente; e a autoridade é
competente porque sua interpretação é sempre autêntica. Isto significa que toda
interpretação feita pela autoridade competente para coagir é considerada autêntica, e se
assim for, como determinar a vontade ficta enquanto vontade não arbitraria? Antes de
responder a esta pergunta, vamos recordar o que Kelsen entende por “autenticidade”.

Como anunciamos, o tema central deste passo da nossa investigação é a


competência para coagir, ou seja, criar o Direito; vimos também que, para Kelsen, esta
investidura de autoridade é o que dá sentido à organização sistemática do ordenamento
jurídico, e que a norma fundamental, enquanto ápice dessa organização escalonada não
tem outro conteúdo se não o de atribuir competência à autoridade legisladora.

Entende-se por competência um poder jurídico que, como função jurídica, é, no


essencial, da mesma espécie que a função de um órgão legislativo, dotado pela ordem
jurídica do poder de criar normas gerais, e que as funções dos órgãos judiciais e
administrativos, dotados pela ordem jurídica do poder de criar normas individuais por
aplicação daquelas normas gerais.16 Para Kelsen, a competência consiste numa
“atribuição de poder” (Ermächtigung) para produzir normas jurídicas. Tal poder se

16
Teoria Pura do Direito, cap. IV, p 102.

31
manifesta em todos os casos em que a ordem jurídica atribui a determinados indivíduos
um poder jurídico.

Todavia, para que o exercício deste poder jurídico seja definido como
competência, é necessário que o indivíduo que o está exercendo não o faça enquanto
uma pessoa privada, que delibera sobre os termos de um contrato, ou enquanto pessoa
jurídica de Direito público, tal como um Estado deliberando os termos de um tratado
internacional, mas o faça enquanto órgão da comunidade jurídica. Podemos ver tal
diferenciação no trecho que se segue:

“Se os indivíduos que realizam um negócio jurídico e as partes que, no


processo judicial ou administrativo, propõem a ação, interpõem recursos
ou apresentam reclamações são considerados como “pessoas privadas” e
não como “órgãos” da comunidade jurídica e, por tal motivo, o poder
jurídico que lhes é conferido não é considerado e designado como sua
competência, tal não pode fundar-se no conteúdo da sua função.”
Teoria Pura do Direito, cap. IV, p 105.

Nota-se então que a competência é um poder jurídico muito específico, pois o ato
de vontade que o cria não se confunde com os interesses privados da pessoa que o
exerce, quer dizer, neste caso, o indivíduo é o órgão de uma comunidade na medida em
que exerce uma função pela comunidade. Vejamos como Kelsen explica esta ficção:

“Um indivíduo é órgão de uma comunidade na medida em que exerce


uma função que pode ser atribuída à comunidade, uma função da qual por
isso se diz que é exercida pela comunidade, pensada como pessoa, através
do indivíduo que funciona como seu órgão. Há aí uma ficção, pois não é a
comunidade, mas um indivíduo humano, quem exerce a função. [...] Mas
ordem e comunidade não são dois objetos distintos. Uma comunidade de
indivíduos, quer dizer, aquilo que a estes indivíduos é comum, consiste
apenas nesta ordem que regula a sua conduta.” Teoria Pura do
Direito, cap. IV p.105.

Assim sendo, o exercício da competência se diferencia dos demais poderes


jurídicos devido ao fato de que, ao se manifestar, o indivíduo investido de competência
fala enquanto órgão da comunidade; o que significa que esta manifestação não é a
manifestação da simples “opinião” de um membro desta mesma sociedade.

32
UM DESDOBRAMENTO DA TENSÃO POLÍTICA DA LIBERDADE:

O impasse prático da legitimidade se anuncia

Tal concepção nos coloca diante de um impasse prático: ela constitui uma das
dimensões em que a tensão entre a liberdade entendida como limitação recíproca (dos
arbítrios e da liberdade de cada um), por um lado; e, por outro, entendida como
autonomia, ela se instaura. Tal impasse prático é o de se ter de instituir princípios de
justiça que possibilitem a constituição de instituições capacitadas para garantir a
liberdade e a igualdade democráticas.

Nota-se que a tensão que encontramos no pensamento kantiano se desdobra,


novamente, ao tratarmos do problema da justificação pública dos princípios que
fundamentam a instauração de uma nova Constituição. Isto porque o reconhecimento de
tais princípios demandaria que estes não fossem fruto do simples arbítrio das partes,
mas, sim, manifestação de uma razão pública. Por este viés, o que está sob investigação é
se a constituição promulgada consiste no uso público da razão ou se é prole do puro
arbítrio.

Parece natural aos juristas e politólogos17 que a promulgação da carta política seja
um ato de legitimidade pressuposta, o que quer dizer que tal promulgação seria legítima
por si mesma, uma vez que representaria a vontade de todos os indivíduos de uma
sociedade livre e igual. Como sabemos o fenômeno do pluralismo, ou seja, o surgimento
de doutrinas conflitantes e irreconciliáveis — existentes na cultura pública das
democracias constitucionais sejam essas doutrinas religiosas, filosóficas ou morais —, é o
fato social de maior relevância para o pensamento contemporâneo do Direito Público.
Pois, para a grande maioria dos autores que tratam do tema, sejam conservadores ou
intelectuais, a identificação do fenômeno do pluralismo bastaria para desconsiderarmos
a ficção burguesa de que a sociedade é formada por indivíduos livres e formalmente
iguais.

17
Os juristas em sua grande maioria tomam por inequívoca a legitimidade da carta política que está em
vigor. Tal certeza se deve ao dogma de que os representantes do povo sempre serão representantes dos
interesses de todos os interesses sociais presentes naquele território. Na mesma orientação pensam os
politólogos conservadores que apostam na “classe dos eleitos” como os mais capacitados para definir o
que é melhor para seus representados do que estes mesmos.

33
Parece faltar, a estes membros da bancada à direita do Parlamento da Razão,18 a
necessidade de se investigar o porquê de tal ficção ser socialmente necessária,
necessidade esta que não passa ao largo numa investigação filosófica. Kant teve a devida
medida da envergadura deste problema que a modernidade nos colocou: a idéia de
autonomia da vontade não pode eclipsar o fenômeno da coexistência dos arbítrios que se
limitam reciprocamente; da mesma forma, vimos que tal idéia não pode ser considerada
“supérflua”, pois se assim for, o pensar tornar-se-ia indisponível aos indivíduos. Ou
estariam os indivíduos, na perspectiva da bancada à direita do Parlamento da Razão,
indisponíveis ao pensamento?

DESCORTINANDO UMA QUESTÃO

Uma trama moderna: a tensão política da liberdade sob o foco da crítica

Vimos, nos capítulo anterior, que sem a função reguladora da razão não é
possível realizar um triplo esforço: o esforço para entender por si próprio; o esforço para
ter por si próprio consciência; finalmente, o esforço para deliberar livremente, isto é,
decidir por si próprio que dieta seguir, o que se deve fazer e o que se deve deixar de
fazer. Em suma, sem a Liberdade, toda e qualquer possibilidade de “Esclarecimento”
(Aufklärung) é ab-rogada.
Assim, tal como a luz da alvorada nos permite perceber melhor os objetos, este
passo da nossa investigação nos disponibiliza a intuição de que o que está em jogo,
novamente, é a razão cujo uso prático consiste, em termos kantianos, na prescrição de
leis morais que conduzem à moralidade (Moralität). Como já vimos, tal moralidade só se
nos torna acessível porque a razão pura prática opera sob orientação da idéia
transcendental da liberdade, o que quer dizer que, para Kant, a moralidade só é possível
pela Liberdade, tornando indispensável necessidade de se orientar no pensamento.
Podemos dizer que, segundo Kant, a orientação do pensamento é necessária
uma vez que: no uso especulativo da razão ela servirá para evitar atitudes alumbradas e
fantasmáticas, cujo resultado é destronar a razão como única e verdadeira exegeta do
discurso dos indivíduos em face dos sofismas que os seduzem.

18
Immanuel Kant – Conflito das Faculdades, Introdução.

34
Para Kant, a liberdade de pensamento não está em conflito com a obediência à lei
moral, pois a razão se submete apenas às leis que dá a si mesma. Quando tal não
acontece, acabará por entrar em cena a coação civil, a tutoria espiritual que fomenta o
infantilismo e a cegueira ideológica ou o uso sem lei que nasce do capricho, do delírio,
do gênio vagabundo e entregue às suas cismas.

Desta forma, a lição dada pelo Professor Silvio Rosa Filho19 se torna indispensável
para concluirm0s que a — liberdade enquanto autonomia da vontade — é também o
fundamento do que podemos chamar de imperativo prático20, pois tanto o esforço de
buscar o esclarecimento, quanto a necessidade de orientar-se no pensamento demandam
a idéia transcendental da liberdade. Assim, na perspectiva kantiana, sem função
reguladora da razão, não é possível deliberar ou formar juízo sobre qualquer conduta.

Um cenário contemporâneo da trama moderna

Assim, Kant não se permite ignorar a tensão entre as duas concepções de


liberdade, pois, se assim o fizesse incorreria, no mesmo equívoco de tratar do problema
com fins meramente classificatórios, portanto, de modo a-crítico. Kant também não
opera a possibilidade de uma distensão, tal como o autor de Uma Teoria da Justiça John
Rawls opera. Como nos ensina Rúrion Soares Melo21, Rawls parte das teorias de Locke,
Rousseau e Kant para chegar a um modo de representação compatível com a idéia de que
princípios de justiça são objetos de um acordo racional, como podemos ver no trecho a
seguir:

“os termos equitativos da cooperação social são concebidos como um


acordo entre as pessoas envolvidas, isto é, entre os cidadãos livres e iguais,
nascidos numa sociedade em que passam sua vida. Mas esse acordo, como
qualquer acordo válido, deve ser estabelecido em condições apropriadas.

19
Lição aprendida em momento preparatório para a realização deste trabalho.
20
Cf. Kant, I. “O que significa orientar-se no pensamento? 1786
21
Rúrion Soares Melo - O uso público da razão como procedimento: Um contraste entre Rawls e
Habermas - Universidade de São Paulo / Cebrap

35
Em particular, essas condições devem situar equitativamente as pessoas
livres e iguais, não devendo permitir a algumas pessoas maiores vantagens
de barganha do que outras. Além disso, coisas como a ameaça do uso da
força, a coerção, o engodo e a fraude devem ser excluídas” RAWLS John,
p. 66, conferência I, §4, 1993.

Temos que levar em conta que, no intento de fundamentar os princípios de


justiça de uma sociedade bem ordenada, Rawls busca esclarecer o ponto de vista a partir
do qual poderíamos responder à questão de saber como é possível fundamentar
princípios que estabeleçam uma cooperação justa e imparcial entre cidadãos livres e
iguais. Para tanto, na dimensão interna de sua teoria, Rawls insere a noção de posição
original: surgida como um artifício conceitual, ela dá forma à idéia de que seria possível
encontrar procedimentos razoáveis de decisão para uma justa avaliação de interesses em
conflito.

Para Rawls, a posição original tem um papel central na articulação dos princípios
de justiça e seu posterior reconhecimento público, visto que, enquanto elemento
representativo interno ao procedimento, tal posição nos permite ver que a idéia de
imparcialidade seria, antes de tudo, uma condição necessária, inscrita no pressuposto
normativo de que princípios de justiça seriam objetos de um acordo racional: para que os
princípios de justiça fossem os mais adequados a uma cooperação social justa, os termos
equitativos da cooperação deveriam ser concebidos de acordo com a autonomia de cada
um dos cidadãos.

Na posição original, as partes representadas estão constituídas apenas


formalmente, o que Rawls entende ser uma das capacidades morais dos cidadãos, a saber,
a capacidade de ser racional. Uma vez que esses indivíduos se encontram em uma
situação ideal de escolha, as partes escolhem racionalmente aqueles princípios que
seriam os melhores para os cidadãos representados. Porém, Rawls afirma que as
exigências razoáveis do procedimento, por sua vez, não se esgotam nesse passo de
escolha puramente racional, o que podemos ver no trecho a seguir:

“O razoável, ou a capacidade das pessoas de ter um senso de justiça, que


aqui é sua capacidade de respeitar os termos equitativos da cooperação
social, é representado pelas várias restrições às quais as partes estão

36
sujeitas na posição original, e pelas condições impostas à sua deliberação.”
RAWLS John, p. 360, 1993.

Para dar conta de garantir possibilidades práticas ao exercício de tal capacidade,


Rawls lança mão do artifício do “véu de ignorância”, de acordo com o qual seria possível
remover características e circunstâncias particulares para assim assegurar que cada um
dos cidadãos representados como racionalmente autônomos escolhessem
razoavelmente, princípios substantivos de justiça.

Entretanto, Rawls parece perceber que a posição original é insuficiente para


especificar o ideal de aceitação pública das normas sociais e instituições. Para dar conta
de tal tarefa, é necessário recorrer à idéia de razão pública, pois ele entende que uma
sociedade democrática é regulada por princípios de justiça publicamente reconhecidos: a
própria justificação destes princípios é realizada com referência à idéia de uma “razão
pública livre”. Desta forma, a razão pública opera como o modo legítimo por meio do
qual uma sociedade política estabelece, no nível mais profundo, os valores morais e
políticos básicos que determinam a relação do Estado com a Sociedade Civil assim como
as relações dos membros dessa sociedade uns com os outros.

A demanda pela idéia de uma razão pública nos coloca duas questões: a primeira
interessou diretamente a Jürgen Habermas, que questionou se o procedimento imparcial
seria suficiente para fundamentar os princípios de justiça; a segunda questão, por seu
turno, é a que mais interessa à nossa investigação. Pois se os artifícios rawlseanos, o da
posição original e o do véu de ignorância, se mostram ambos insuficientes para sanar a
arbitrariedade da instituição de uma ordem jurídica ou de princípios de justiça,
pergunta-se: como um uso público da razão postulado daria conta de tal tarefa?

Podemos notar que estamos novamente diante de um reducionismo empreitado


contra a razão pura prática. Como diz Habermas, na teoria de Rawls a razão prática “é
como que moralmente destituída de seu cerne e deflacionada a uma racionalidade que
incorre na dependência às verdades morais fundadas em outra parte.” HABERMAS
Jürgen, 1997c, p 104; grifo nosso.22

Podemos ver que, em Rawls, a autonomia das partes no procedimento imparcial


é uma autonomia racional parcial. Talvez ele não tenha se convencido de que a
autonomia plena dos cidadãos não se restringe apenas à posição original como um todo,

22
HABERMAS, J. .“‘Vernunftig’ versus ‘Wahr’ oder die Moral der Weltbilder”.

37
o que nos leva a pensar que as pessoas morais não estariam integralmente representadas
no procedimento. Como a constrição do véu de ignorância impede que, no
procedimento, as partes possam se autodeterminar plenamente, podemos concluir que,
do ponto de vista da posição original, a razão prática não está disponível aos cidadãos
para que possam realizar suas capacidades morais, tampouco exercer plenamente sua
autonomia.

Desta forma, não podemos deixar de concluir: a autonomia plena exige que se
saia do procedimento proposto por Rawls. Sendo assim a teoria de Rawls acaba por nos
colocar a seguinte questão: como garantir que, sem as constrições do véu de ignorância,
cada cidadão mantenha um senso de justiça e respeite as convicções do outro?

A tentativa de solução dada por Rawls a esta questão acaba por nos dar noticia
sobre as afinidades eletivas23 que o seu pensamento mantém com a concepção de
liberdade defendida por Montesquieu; para Rawls, com efeito, os cidadãos cujas
convicções particulares estão em equilíbrio reflexivo com princípios de justiça gerais
podem alcançar um “consenso sobreposto” no que toca à concepção política que
compartilham, sem que isso implique em uma modificação de suas próprias visões de
mundo. Assim sendo, Rawls defende a idéia de que a unidade social estável pode ser
preservada sob a vigência do liberalismo político. Por isso, Rawls não pode prescindir da
imparcialidade do procedimento mesmo no âmbito reflexivo da razão prática.

Reducionismos da razão: característica do positivismo kelseniano ou sintoma


contemporâneo?

23
Cf. PIERUCCI, Antônio Flávio, Afinidades eletivas: em alemão Wahlverwandtschaften. Originária das ciências
naturais, mais específicamente da química do século XVIII, a expressão em latin - attractio electiva - passou a circular em
1782 com a publicação do livro De attractionibus electivis (1792), de autoria do químico sueco Torbern Bergmann, que
usava o termo para se referir à existência, constantada pela química inorgânica de época, de elementos que foram
combinações preferenciais, as quais, porém, em presença de determinados outros elementos, se mostram
impermanentes, dissolvendo-se em favor de novas combinações. Goethe inspirou-se nesses fenômenos do mundo
natural descritos por Bergmann e, vendo neles manifestações de irresistível inclinação, atração e envolvimento afetivo,
transferiou o teorema das atrações eletivas - justamente com o termo que o descrevia - para o reino das relações
amorosas de atração mútua e recombinação seletiva: sua novela intitulada Die Wahlverwandtschaften [As afiinidades
eletivas] acabou por divulgar na Alemanha não só a terminologia como também seu modo de usá-la em sentido
figurado, inspiração seguida mais tarde por Webber em mais de um contexto de sua sociologia. O uso webberiano mais
conhecido dessa expressão se acha no final do terceiro capítulo da Parte I d'A ética protestante, para descrever a
individualidade histórica daquela atração, grávida de consequências para a civilização ocidental, entre a ética religiosa
do protestantismo ascético e a racionalidade prática da cultura capitalista moderna.

38
Ora, podemos notar que para sustentar a opção de defender uma concepção
liberal da Liberdade, Rawls opera o que Habermas chamou de deflação da razão prática,
pois um “consenso sobreposto” demanda que a autonomia da vontade dos cidadãos seja
inevitavelmente uma autonomia parcial. Isto significa que, em termos kantianos, Rawls
também opera um reducionismo da razão: como as partes não operam com a razão
regulada pela idéia transcendental da Liberdade, estão, portanto, incapacitadas de
instaurar livremente seus imperativos práticos; submetidas ao véu de ignorância, as
partes precisam lidar com as “conseqüências de uma autonomia que lhes é vedada em
sua extensão integral, assim como as implicações do uso de uma razão prática a que elas
próprias não podem recorrer” HABERMAS, 1997c, p. 6924.

Importa dizer que, nos limites do sistema filosófico edificado por Kant, o
pensamento de Rawls não se ocupa em aprisionar a razão nos limites do entendimento
tal como o faz o pensamento de Kelsen. Isto porque, ao contrário do que faz o jurista
austríaco, Rawls leva em conta não apenas a esfera da analítica transcendental, mas
também a metafísica dos costumes; contudo, ele parece empreender um salto da
dimensão analítica da razão pura imediatamente para a Metafísica dos Costumes. Desta
forma, Rawls promove uma distensão entre as duas concepções de liberdade.

Tal distensão é defendida por Rawls num raciocínio que, como já vimos, procede
a um esvaziamento da razão prática, o que torna impossível o exercício de uma
autonomia plena da vontade. Isto nos permite dizer que optar pela concepção liberal da
Liberdade como sendo a mais válida para fundamentar a instituição de princípios de
justiça ou de uma ordem jurídica, implica, antes de tudo, no esvaziamento da razão
prática, o que significa que, neste passo do argumento, o soberano não poderá recorrer à
razão para deliberar ou criar juízo sobre a instituição de uma ordem jurídica.

Agora se torna perceptível o fato de que tanto a arquitetônica analítica de Kelsen,


que aprisionou a razão nos limites do simples entendimento, quanto a teoria de justiça
de Rawls, que esvazia a razão prática para garantir um consenso sobreposto, não dão
conta de sanar o problema da arbitrariedade que parece fundamentar a vontade do
soberano. É válido salientar, no entanto, que a distinção fundamental inserta no
momento decisivo do pensamento kelseniano, é o fato de que o intérprete autêntico, que
na clássica teoria da separação dos poderes se insere como membro do poder judiciário,

24
HABERMAS, J. .“‘Vernunftig’ versus ‘Wahr’ oder die Moral der Weltbilder”.

39
cria o direito até mesmo fora da moldura interpretativa da Lei. Ora, em termos políticos,
isso significa que o magistrado acaba assumindo a posição de soberano.

A SOBERANIA DO MAGISTRADO

Uma investidura para além da legalidade

A “soberania”, entendida como o monopólio do poder de instaurar uma ordem


jurídica, portanto, como monopólio da violência, é dividida pela teoria contemporânea do
Direito Público25 em três graus: no grau mais elevado encontra-se Poder Constituinte
Originário, ou seja, a soberania de promulgar a Constituição; no grau intermediário
encontra-se o Poder Constituinte Derivado-Reformador, ou seja, a soberania de reformar
a Constituição; e por fim no plano infra-constitucional encontra-se o Poder Legislativo.

Como vimos, cabe ao Poder Judiciário a função de interpretar e dar sentido de


validade às normas criadas pelo soberano, sendo que, para cada grau de soberania, temos
um grau de jurisdição competente para operar tal interpretação. A interpretação que se
opera em relação à Constituição não visa, todavia, apenas ao preenchimento da moldura;
visa estabelecer, também, uma uniformidade em todo o ordenamento jurídico.

O procedimento hermenêutico cuja finalidade é averiguar a compatibilidade de


uma norma infraconstitucional ou de um ato normativo com a constituição é o que a
teoria do Direito Público denomina controle de constitucionalidade. Tal averiguação se
opera tanto em relação aos requisitos formais quanto em relação aos requisitos materiais.
No plano dos requisitos formais, verifica-se se a norma foi produzida conforme o
processo legislativo disposto na Constituição. No plano dos requisitos materiais, verifica-
se a compatibilidade do objeto da lei ou ato normativo com a matéria constitucional.

O controle de constitucionalidade pode ser de várias espécies: pode ser político,


tal como o controle de constitucionalidade francês instituído com a Constituição de

25
C.f. José Joaquim Gomes Canotilho, in. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª Edição - 5.ª
Reimpressão, Editora Almedina, 2008.

40
4.10.195826, com a criação do Conselho Constitucional ou Conseil Constitutionnel27, que
possui atribuições múltiplas, destacando-se a de juiz constitucional. Tal conselho é um
órgão político, composto de membros nomeados, que não são juízes, e exerce um
controle meramente preventivo; pode ser judicial de natureza difusa, ou seja, exercido
pelo Poder Judiciário em qualquer uma de suas instâncias, e cujo efeito concreto é
sempre inter partes; pode ser judicial de natureza concentrada, ou seja, de competência
exclusiva de uma corte que acaba por possuir uma espécie de função constitucional
autônoma, de certo modo comparável à função legislativa negativa cujo efeito concreto é
sempre erga omnes; e pode ser misto como o sistema brasileiro, um controle judicial no
qual encontramos características tanto do controle difuso quanto do controle
concentrado.

O controle de constitucionalidade concentrado nos interessa de saída, pois foi


concebido sob inspiração da teoria de Kelsen, sendo instituído pela Constituição
austríaca de 1920 que transformou o antigo Tribunal do Império na Alta Corte
Constitucional (Verfassungsgerichtshof), com competência para, de modo concentrado e
exclusivamente por via de ação direta, efetuar o controle abstrato de normas, mediante
requerimento especial (Antrag) formulado pelos entes competentes, sendo
as decisões anulatórias proferidas em controle incidental produzidas com efeitos
retroativos.

O problema da legitimidade desvelado

Poderá parecer imperceptível, a leitores mais desavisados, a envergadura do


problema que se coloca diante de nossos olhos; pois, se cabe a uma Corte Constitucional
determinar a devida interpretação da Constituição estamos diante de outra possibilidade
de arbítrio, uma vez que a moldura da norma criada pelo soberano constituinte é não

26
Referimo-nos, aqui, à Constituição da Quinta República Francesa que substituiu, em 1946, o
governo parlamentarista por um sistema semi-presidencialista, apoiada por Charles de Gaulle, primeiro
presidente da quinta república francesa de 1958 a 1969.
27
Henry Roussillon, Le Conseil constitutionnel, Paris, Dalloz, coll. « Connaissance du droit », octobre 2008, poche,
121 p.

41
apenas preenchida, mas delimitada por um colegiado de cidadãos que não possuem
soberania para tanto.

Assim parece ficar cada vez mais claro que Kelsen eleva a competência para criar
o Direito até o plano da soberania em todos os graus, pois apenas o interprete autêntico
tem a competência não só para criar o Direito e atribuir sentido de validade à norma
jurídica, como, também, pode criar o Direito completamente fora da moldura; sendo que,
como vimos, a própria moldura da norma constitucional também acaba sendo
delimitada por este intérprete. Em suma, se estivermos certos, Kelsen acaba investindo o
magistrado de uma soberania cujos limites parecem não ser estabelecidos por qualquer
forma de freio ou contrapeso.

Ao chegarmos à fronteira da dimensão hermenêutica de nossa investigação, já


tivemos a oportunidade de verificar que a vontade do soberano kelseniano parece não
encontrar qualquer limitação seja de natureza jurídica ou política; que tal separação
entre Direito e Política parece ser cada vez mais um artifício formal cuja necessidade
social encontra-se no fato de que não se pode deixar de determinar qual é o fundamento
da vontade do soberano.

Vimos em certo passo desse momento da nossa investigação que, para


determinar qual é o fundamento da vontade do soberano, não podemos simplesmente
ignorar a tensão existente entre a concepção liberal e a concepção democrática de
liberdade; assim, optar por uma das duas, isoladamente, parece ser, necessariamente,
uma implicação oriunda de um reducionismo da razão. Em termos práticos, torna
intangível qualquer possibilidade de uma sociedade formada e governada por indivíduos
socialmente livres.

Importa notar nesse passo que as ciências sociais em geral costumam decidir
pela distensão entre as duas concepções de liberdade, como se a contradição própria do
fenômeno da coexistência entre liberalismo e democracia fosse de menor importância,
ou até como se tal contradição não existisse. Seria a decisão por tal distensão um sintoma
de que tanto conservadores quanto intelectuais acabam por operar, de maneira
imanente, um reducionismo da razão?

Não por outro motivo se nos parece válido afirmar que, a exemplo das chamadas
ciências exatas, as ciências sociais mantêm afinidades eletivas com a idéia de uma razão
reduzida, o que nos permite situá-las como membros da bancada à direita do Parlamento
da Razão. Na bancada à esquerda, encontrar-se-íam todas as manifestações da razão

42
humana que não se permitissem reduzi-la à esfera do simples entendimento, pois tanto a
Arte quanto a Filosofia, sobretudo por força de suas respectivas autonomizações
modernas, não teriam outro compromisso senão para com a racionalidade, e a vivificação
do pensamento e da sensibilidade.

Se não cometermos o equívoco de reduzir a dimensão prática da racionalidade,


se nos aliarmos aos membros da bancada à esquerda do Parlamento da Razão, podemos
dizer que a instituição racional e moral da liberdade não constitui apenas uma parte, mas
o fim último na globalidade da doutrina do Direito nos limites da simples razão; pois o
estado de liberdade é o único em que estão assegurados, mediante leis, o meu e o de
outrem no seio de um conjunto de pessoas vizinhas umas das outras; reunidas, portanto,
numa Constituição.

Assim, ao chegarmos ao limiar da dimensão pragmática da nossa investigação


poderemos começar a perceber que o problema que se instaura no momento em que a
vontade ficta do magistrado se torna manifesta é o problema da legitimidade. Pois, se tal
vontade não é governada pela razão, como seu fundamento poderá destituir-se do
imediato arbítrio que a constituiu? E desta forma, como este arbítrio autêntico pode
produzir efeitos concretos que não sejam uma espécie de pura exceção legitimada?

43
III

Da Legitimidade e da Legalidade da vontade ficta do Magistrado

A SOBERANIA DO MAGISTRADO EM SUA DIMENSÃO PRAGMÁTICA

Retomada do problema de se atribuir legitimidade a um arbítrio aparentemente ilimitado

No encaminhamento de nossa investigação, analisamos a arquitetônica analítica


edificada por Kelsen e pudemos notar que tal arquitetônica se constitui na forma de
uma espécie de labirinto, cuja função resultaria em aprisionar a razão nos limites do
simples entendimento. Ora, em termos estritamente kantianos, este aprisionamento
constitui um reducionismo da razão. Tal reducionismo implica, como vimos no capítulo
anterior, uma distensão entre a concepção liberal de liberdade e a concepção
democrática de liberdade, a saber: a concepção liberal é a de que a Liberdade é a
faculdade de realizar ou não certas ações, não sendo impedido por outros que convivem
comigo, ou pela sociedade como um complexo orgânico ou simplesmente pelo poder
estatal; a concepção democrática afirma que a Liberdade é o poder de não obedecer a
outra norma que não aquela que eu mesmo me imponho.
Vimos também que, por força do próprio andamento de sua teoria, Kelsen parece
investir o magistrado de uma soberania cujos limites não parecem ser estabelecidos por
qualquer forma de freio ou contrapeso, pois apenas o intérprete autêntico teria a
competência, não só para criar o Direito e atribuir sentido de validade à norma jurídica,
como também para criar o Direito completamente fora da moldura; sendo que, como
vimos, a moldura da norma constitucional também acaba sendo delimitada por este
interprete.

Assim, neste passo da nossa investigação, vamos tratar da dimensão pragmática


do problema de se atribuir um poder aparentemente ilimitado seja a um individuo
particular ou a um colegiado, cuja vontade ficta parece ser fundamentada no puro
arbítrio.

44
A TRAGÉDIA DO MAGISTRADO

O direito como ordem da culpa

A ordem do Direito parece se apresentar, como constatou Walter Benjamin no


texto Destino e caráter 28, na forma de um resíduo de um momento da História em que o
homem se encontrava completamente submerso nas névoas da culpa e da menoridade
do espírito; pois eleva as leis do destino, a desgraça e a culpa, à categoria de medidas da
pessoa humana. Não podemos nos esquecer que mesmo que o Direito tenha mantido em
seu núcleo a culpa e o dolo como medidas da pessoa humana, tais categorias não são
mais fundamentadas na esfera religiosa, mas, sim, numa certa idéia de racionalidade.

Tal como na tragédia, o homem moderno encontraria no Direito Positivo um


methodos para emergir da névoa da culpa. Porém, tal emersão demanda uma saída da
menoridade espiritual na qual este indivíduo se encontra. No campo da tragédia o
homem que rompe com as amarras infernais da ordem do destino percebe que é melhor
do que os seus deuses, porém não dá conta entretanto, de tomar consciência de si e para
si mesmo, pois — homem emudecido, destituído de linguagem — parece perder por
completo a constelação de significações sem as quais seria impossível estabelecer uma
representação de seu mundo. Se estivermos certos, na ordem do Direito Positivo parece
ocorrer um fenômeno análogo de insuficiência, pois caberia à racionalidade interna ao
direito positivo a função de fornecer apenas as significações necessárias para que a ordem
jurídica se instaurasse como a representação de um mundo regido pela liberdade e pela
igualdade.

Valendo-nos de certa ousadia poderíamos dizer que o reducionismo da razão


operado pelos membros da bancada à direita do Parlamento da Razão tem como
conseqüência a indisponibilidade de significações sem as quais não se pode estabelecer
uma representação de mundo que dê conta de significar a contemporaneidade.

Benjamin realiza uma investigação não convencional sobre os conceitos de


destino e de caráter, na qual busca identificar além da definição destes conceitos, qual é
a relação que se pode estabelecer entre ambos e em qual esfera podemos inseri-los. Logo

28
Texto de juventude de Walter Benjamin escrito em 1921.

45
no inicio do texto, Benjamin deixa claro que é comum a idéia de que destino e caráter
estão dispostos numa relação causal:

“O que está subjacente a esta idéia é o seguinte: se, por um lado, o


caráter de uma pessoa, ou seja, também o seu modo de reagir, fosse
conhecido em todos os seus pormenores, e se, por outro lado, o acontecer
universal fosse conhecido nos domínios em que se aproxima daquele
caráter, seria possível prever exatamente, tanto o que aconteceria a esse
caráter como o que ele seria capaz de realizar.” Walter Benjamin –
Destino e Caráter, p 4.

Desta forma, a idéia de que mediante a definição do caráter de um indivíduo


conseguiríamos conhecer o seu destino parece ser característica ao imaginário comum.
Segundo Benjamin, deve-se a isso o fato de o homem moderno aceitar a idéia de
que o caráter possa ser lido a partir dos traços físicos de uma pessoa, porque encontra de
algum modo em si mesmo esse saber do caráter, tal como se o homem moderno
obtivesse capacidades cognitivas que lhe permitiriam identificar e decifrar o sistema de
sinais caracteriológicos sem os quais o conhecimento do destino e do caráter de um
indivíduo se torna indisponível.
Porém Benjamin constata que, se no ativermos à análise dos objetos “destino” e
“caráter”, perceberemos que o ponto de vista tradicional, ou positivista, ou cientificista,
ou ainda empirista, sobre a essência e a condição de tais objetos é problemática, porque
não se compreende racionalmente, e falsa, porque a separação sobre a qual se assenta é
teoricamente inconcebível. No que diz respeito à problemática mantida pelo ponto de
vista tradicional, a crítica benjaminiana é certeira ao identificar que não é possível
apreender o conhecimento a respeito de objetos indistintos, de maneira que a
intersecção constituída ao se dispor os objetos destino e caráter numa relação causal,
torna-se impossível o estabelecimento de uma exata distinção entre ambos; em outras
palavras, torna-se impossível conceituá-los.

“Não só é impossível, em qual quer caso, dizer o que, afinal, deve


ser visto como função do caráter ou como função do destino na vida de
uma pessoa (isto não teria aqui qualquer significado se ambos, por
exemplo, se interpenetrassem apenas na experiência), como também o
exterior que o homem ativo encontra pode remeter, numa escala quase

46
sem limite, para o seu interior, e este para o seu exterior, na mesma escala
e por princípio, ou mesmo ser tomado essencialmente por esse exterior.”
Walter Benjamin – Destino e
Caráter, p 6.

Nos termos de uma tipologia nietzcheana, isso significaria dizer que: segundo a
moral do senhor, quando alguém tem caráter, o seu destino é, no essencial, constante; já
segundo a moral do escravo, quando alguém tem moral, não tem destino; assim do
ponto de vista positivista, o caráter e o destino acabam por coincidir teoricamente.
Portanto, a fim de delimitarmos o conceito destes objetos devemos promover uma
distinção clara entre ambos, excluindo de plano a idéia de que destino e caráter se
encontram numa relação causal. Por isso, Benjamin prescreve a necessidade de se
caracterizar rigorosamente o conceito de caráter em completa separação do conceito de
destino, que, por sua vez, só será devidamente caracterizado após a rigorosa definição do
primeiro.
Segundo Benjamin, o primeiro movimento a ser operado é dar atenção ao fato de
que estes dois conceitos não podem permanecer contidos nas esferas onde comumente
são inseridos, a saber, o caráter é geralmente colocado num contexto ético, e o destino
num contexto religioso.
No que diz respeito ao conceito de destino, o erro que permite inseri-lo na esfera
da religião deve-se, segundo Benjamin, à relação estabelecida entre conceito de destino e
o conceito de culpa:
“Assim, para referir o caso mais típico, a desgraça interpretada
como fatalidade é entendida como resposta de Deus ou dos deuses a uma
culpa na esfera religiosa. E no entanto não podemos esquecer que nunca
se estabelece uma tal relação do conceito de destino com o conceito de
culpa que toda a moral implica, nomeadamente com o conceito de
inocência. A idéia clássica grega do destino encara a sorte que cabe ao
indivíduo não como confirmação de uma vida inocente, mas sempre como
tentação de cair numa culpa grave, na hybris. Não existe, portanto, no
destino uma relação com a inocência.” Walter Benjamin – Destino e
Caráter, p 7.

O trecho supracitado nos fornece a idéia de que a ordem do destino parece


possuir como únicos conceitos constitutivos a desgraça e a culpa. Isto — somado ao fato

47
de que, ao que podemos perceber, a ordem do destino exclui a possibilidade de salvação
— ; nos leva a concluir que tal ordem jamais pode ser religiosa. Assim sendo, torna-se
necessário procurar outro domínio no qual o que conta é apenas a desgraça e a culpa,
uma balança em que a sorte e a inocência revelam ser demasiado leves e se elevam num
dos pratos.

A BALANÇA DO DIREITO
A culpa e a desgraça alçadas a categorias de medida do homem

Neste momento surge no horizonte de nossa investigação a balança do Direito,


pois não nos parece permitido esquecer que o elemento nuclear da ordem jurídica é a
coerção, e que em seus domínios, as leis do destino, a saber, a desgraça e a culpa, são
alçadas à categoria de medidas da pessoa humana. Por isso, é falso pensar que nos
domínios do Direito não encontramos a desgraça, pois toda culpabilização jurídica pode
ser demonstrada enquanto desgraça.
Assim como Kelsen, Benjamin classifica como equívoco confundir o Direito com
a Justiça. Isto porque ambos entendem que a Justiça enquanto valor é sempre utilizada
para legitimar a violência, violência esta que, segundo uma concepção tradicional, é
sempre legítima se for praticada pelo Estado. O discurso apologeticamente construído
para justificar essa legitimidade aparentemente incontestável da violência praticada pelo
Estado tem fundamento na idéia de que tal violência é demandada para que se possa
garantir a segurança coletiva ou a paz. Notemos, porém, como Kelsen pensa tal questão:

“A verificação, por parte da ciência jurídica, de que uma ordem


jurídica estabelece a paz na comunidade jurídica por ela constituída não
implica qualquer espécie de juízo de valor e, especialmente, não significa
o reconhecimento de um valor de Justiça, que, destarte, não é por forma
alguma elevado à categoria de um elemento do conceito de Direito e, por
isso, também não pode servir como critério para a distinção entre
comunidade jurídica e bando de salteadores,...” Teoria Pura do Direito,
Cap. I, pg. 34

48
Kelsen refere-se aqui ao raciocínio agostiniano segundo o qual a ordem coercitiva
do Direito se distingue da ordem coercitiva dos salteadores, apenas se, em seu conteúdo,
a ordem jurídica apresentar a Justiça. Assim, uma ordem jurídica pode ser julgada como
injusta do ponto de vista de um determinado princípio de Justiça, o que, em termos
estritamente kelsenianos, não constitui de maneira alguma um fundamento para se
desconsiderar a validade dessa ordem coercitiva. Nota-se que este argumento é de
grande validade na empreitada kelseniana, pois, sem separar a ordem jurídica e o
princípio de Justiça que constitui o conteúdo dessa mesma ordem coercitiva, Kelsen não
poderia edificar uma labiríntica estrutura analítica que conformasse a toda e qualquer
ordem jurídico-positiva.
Desta forma, podemos entender que, para Kelsen, confundir a ordem do Direito
com a Justiça é um equívoco devido ao fato de que os princípios de Justiça de nada
servem à ciência do direito cujo objetivo é descrever o Direito, e não estabelecer juízo de
valor sobre as normas jurídicas. É que tal juízo de valor não produz nenhum
conhecimento sobre a existência da norma, existência que, em termos estritamente
kelsenianos, significa o mesmo que a validade da norma jurídica. Ora, não parece cada
vez mais nítido que, se levarmos esse raciocínio kelseniano ao seu limite, estaremos
nesse passo diante de mais um indício de que se instaura a legitimação do arbítrio?
Traduzindo esta questão em termos políticos; será que a autocracia pode ser legitimada
independentemente dos valores e princípios que a constituem?
Walter Benjamin certamente não fez concessões ao reconhecer que confundir a
ordem do Direito com a esfera da Justiça implicaria em tomar a validade do Direito como
um princípio de Justiça, o que, em outros termos, significa que devido a tal confusão, o
princípio de Justiça que orienta uma ordem coercitiva seria legitimado simplesmente
porque se manifesta na forma de uma ordem coercitiva válida.

Convém aqui recordar que o que está em jogo quando nos deparamos com essa
conclusão a que chegou Benjamin; ao edificar sua arquitetônica analítica, Kelsen
empreendeu um esforço notável para descrever cientificamente o Direito positivo, o que,
por força de seu positivismo estrito, demandou que sua ciência pura não manifestasse
qualquer juízo de valor a respeito desta ordem coercitiva. Porém nos parece cada vez
mais nítido que, ao fazê-lo, Kelsen acabou por manifestar um fenômeno muito mais
intrigante e sombrio, pois parece que é exatamente a forma do Direito positivo que
acabaria por legitimar uma ordem coercitiva estabelecida pela vontade ficta do
magistrado, vontade cujo fundamento não seria a razão, mas sim o puro arbítrio.

49
Ao avançarmos na análise do problema que se colocou diante de nós, poderíamos
tentar delinear as principais características dessa vontade. Para tanto, é necessário que
voltemos novamente nossos olhares para a personagem central da Teoria Pura do
Direito, uma personagem a quem não se pode dar declaradamente o papel de
protagonista, pois, se assim for ,todo o discurso se esvaneceria logo na primeira aparição
que fizesse.

AS FRONTEIRAS DA VONTADE DO MAGISTRADO


O magistrado enquanto herói trágico

Mais uma vez nos é de enorme valia a análise benjaminiana, pois é de forma
certeira que Benjamin identifica que tal como uma prefiguração do personagem
kelseniano, é na tragédia que o gênio emerge das névoas da culpa. Segundo ele, é
precisamente na tragédia que o homem rompe com seu destino demoníaco. Na tragédia
o homem pagão percebe que é melhor do que seus deuses, porém essa tomada de
consciência permanece indistinta, pois, ao realizá-la, o homem pagão acaba por perder
sua linguagem, ou seja, torna-se incapaz de significar seu mundo, tornando-se incapaz
de distinguir culpa e redenção como medidas diferentes.
Isto se dá porque o fortalecimento desse homem que realizou tal tomada de
consciência não configura um restabelecimento da ordem moral do mundo, mas o esforço
de um homem que, em sua mudez moral e menoridade espiritual, tenta erguer-se no
meio do grande abalo daquele mundo de dor, homem a quem é dado o nome de herói.
Desta forma, parece que, tal como o destino, o Direito é um contexto de culpa em
que se inserem os homens, que, por conta da coerção à qual estão submetidos, estariam
tão afastados de sua condição natural, que nunca conseguiriam retornar a ela, limitando-
se a permanecer invisíveis sob o seu domínio e apenas na sua melhor parte. Portanto, fica
claro que não é o homem natural que tem um direito: o sujeito do direito é
indeterminável.

“O juiz pode descortinar destino onde quiser, e ditará às cegas um


destino com cada condenação. O ser humano nunca será atingido por
esse destino, mas apenas a vida nua nele, que participa da culpa natural e
da desgraça devido àquela aparência. Este vivo pode, assim, ser

50
relacionado com cartas e astros, e a vidente serve-se da técnica simples de
inserir isso no contexto da culpa recorrendo às coisas mais previsíveis e
mais certas – coisas que, de forma não inocente, estão prenhes de
certeza.”
Walter Benjamin – Destino e
Caráter, p 9.

O trecho acima nos coloca diante de dois problemas: o primeiro é o problema de


diagnosticar ou de predeterminar qual será o impacto de cada decisão do magistrado na
vida dos cidadãos a quem se imputará a coerção; o segundo é de natureza mais profunda,
pois, como vimos, o Direito, ao apresentar-se como uma forma racionalizada de
legitimação da violência, não poderia simplesmente ignorar a existência do homem
natural; afinal, os efeitos desta coerção se dão na vida do indivíduo concreto.
No que diz respeito ao primeiro problema, entramos no campo do infindável
embate político em que os membros da bancada à direita do Parlamento da Razão se
digladiam entre si. Isto por que cada uma das chamadas ciências humanas reclama para
si o predicado de responder às questões de saber de que maneira deve se dar a
intervenção coercitiva do Estado na vida dos indivíduos e em quais interesses e valores
tal intervenção deve ser fundamentada. Assim, tal como a cartomante, vidente que
profetiza evidências, os representantes de cada ciência humana denuncia um aspecto
que o representante do outro “partido” deliberadamente deixou de evidenciar.
É por esse motivo que o presente estudo se propõe a esquivar-se de tal embate
sob pena de recair no mesmo equívoco. Mas tal movimento só é possível se
prom0vermos um deslocamento da questão relativa aos efeitos concretos da decisão
judicial para o cerne do segundo problema ao qual vamos ao enfrentamento desde já.
Ao contrário do que faria supor o senso comum, importa apreender que tal como
o herói trágico, o intérprete autêntico ao se constituir como tal, se encontra num estado
de mudez moral e de menoridade espiritual. Tal estado de mudez e de infantilidade
moral acaba por torná-lo incapaz de estabelecer “autonomamente” significações que
dêem conta de representar a realidade efetiva sobre a qual sua decisão surtirá efeitos
concretos. Assim sendo, como promover uma saída desse estado de mudez moral e de
menoridade espiritual?
Para tanto, retomemos os passos da investida benjaminiana de buscar definir o
conceito de caráter, pois parece que esse trajeto nos dará um elemento necessário para
pensar o problema que se colocou diante de nós.

51
Segundo Benjamin, para definirmos o que vem a ser o caráter devemos remetê-lo
à esfera da natureza, e não à esfera da ética, como fazem os positivistas. Isto porque são
os sinais da natureza, seja em si mesmos ou induzidos experimentalmente, que
anunciam a natureza no homem, o que nos permitiria dizer algo sobre o homem natural.
No entanto, é preciso não perder de vista que, na observação dos traços do
caráter de um individuo, não são as qualidades que não se mostram moralmente
importantes, mas sim, as ações praticadas por esse indivíduo. Ainda assim, a teoria do
ponto de vista tradicional tende a afirmar o contrário, pois não são apenas palavras como
“ladrão”, “esbanjador”, “corajoso”, que parecem conter valores morais; são sobretudo
palavras como “abnegado”, “traiçoeiro”, “vingativo”, “invejoso” que parecem indicar
traços de caráter que já não é possível separar de valorações morais.
Benjamin é novamente certeiro ao reconhecer que é na comédia que essas
designações pseudomorais são devidamente remetidas para a sua verdadeira esfera. Na
comédia as ações do protagonista, a saber, do herói cômico, nunca atingem o seu público
enquanto tais, nem enquanto ações morais; os seus atos só interessam na medida em que
refletem a luz do caráter. Isto porque, na comédia, o caráter revela-se de forma solar, no
brilho do seu único traço, ofuscando todos os demais traços que possam aparecer no
horizonte do espectador. É no domínio da comédia de caráter que o indivíduo anônimo
responde com o gênio àquela sujeição mítica da personagem à trama da culpa. Assim,
parece ocorrer uma transmutação da complicação trágica da personagem culpada
Aqui novamente aparece a liberdade, mas esta liberdade à qual Benjamin faz
referência não é o dogma liberal da liberdade, tampouco é o dogma democrático.
Benjamin leva a sério a resolução kantiana da Terceira Antinomia da Razão Pura, e lança
luz sobre a idéia kantiana de que a Liberdade deve exercer uma função reguladora da
razão, função sem a qual o herói não poderá de forma alguma superar o estado de mudez
moral e de menoridade espiritual em que se encontra.

52
DETERMINADA INDETERMINAÇÃO DA VONTADE FICTA DO MAGISTRADO

Dito isto, voltemos nossos olhares para a figura do intérprete autêntico, que,
como vimos, parece encontrar-se num perene estado de menoridade espiritual e de uma
flagrante incapacidade de produzir significações que lhe permitissem estabelecer uma
representação que daria conta de todas as circunstâncias efetivas do caso concreto ou da
realidade social. Note-se que o que está aparecendo diante de nós é um problema
relativo à formação do magistrado, pois é fato que, admitida a sua regressão espiritual,
esta criança à qual nos referimos tem o dever de decidir quando e em que medida a
coerção do Estado afetará a vida dos cidadãos.
Devemos realizar uma derradeira visita ao pensamento de Immanuel Kant, a fim
de entendermos outro aspecto do problema da determinada indeterminação da vontade
ficta do magistrado. Neste movimento vamos iniciar nossa investigação seguindo os
passos dados por Kant na formulação teórica do imperativo prático.29
Na quarta proposição sobre a Idéia de uma história universal de um ponto de vista
cosmopolita, Kant aborda enquanto antagonismo a insociável sociabilidade dos homens,
ou seja, a tendência do homem a entrar em sociedade, pois se sente mais como um
homem num tal estado em que pode desenvolver suas disposições naturais. Mas este
homem também tende ao isolamento, pois encontra em si uma qualidade insociável que
o impulsiona a querer conduzir tudo em proveito próprio, o que o leva a esperar que os
demais membros da sociedade se oponham da mesma forma que ele fará oposição ao
querer egoísta dos demais cidadãos. Note-se que essa situação hipotética configura os
termos da concepção liberal da Liberdade. Segundo Kant, é esta oposição que leva o
indivíduo a superar sua tendência à preguiça, na medida em que é movido pela busca de
projeção (Ehrsucht), pela ânsia de dominação (Herrschsucht) ou pela cobiça (Habsucht);
assim, o indivíduo tem de proporcionar-se uma posição entre companheiros que ele não
atura, mas dos quais não pode prescindir. Para Kant, a disposição natural do homem à
cobiça, à projeção, ou mesmo à busca pelo poder, consistem em patologias
características de uma sociedade constituída a partir de um acordo que, em termos
kantianos, é extorquido patologicamente.

29
C.f. KANT, I, “O que significa orientar-se no pensamento?”.

53
Mesmo ressaltando o caráter patológico das disposições insociáveis do homem,
Kant lança luz sobre o fato de que tais patologias são propulsoras do comportamento
humano; sem elas, com efeito, o homem permaneceria eternamente num estado de
menoridade:
“Agradeçamos, pois, à natureza a intratabilidade, a vaidade que
produz a inveja competitiva, pelo sempre insatisfeito de ter e também de
dominar! Sem eles todas as excelentes disposições naturais da
humanidade permaneceriam sem desenvolvimento num sono eterno. O
homem quer a concórdia, mas a natureza sabe mais o que é melhor para a
espécie: ela quer a discórdia.” Immanuel Kant - Idéia de uma História
Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, Quarta Proposição.

Pudemos ver que Kant constata que a intratabilidade gerada pela disposição
natural do homem a comportamentos egoístas como a cobiça, acaba por impulsioná-los
a abandonarem o estado de contentamento ocioso e de vida amestrada no qual
permaneceriam eternamente, não fosse sua insociável sociabilidade. Note-se que a
disposição natural do homem a não se submeter a normas que não sejam fruto de sua
própria vontade, constitui uma situação hipotética que configura os termos da
concepção democrática da Liberdade.
No último passo de nossa investigação sobre a legitimidade da vontade ficta do
magistrado, a tensão kantiana entre as concepções liberal e democrática da liberdade se
reposiciona no nível do imperativo prático, pois nada mais se coloca diante de nossa
personagem, além da obrigatoriedade de decidir. Se ainda estivermos sob a irradiação da
luz de Apolo, podemos pensar que este magistrado se acha em grave — se não gravíssima
— situação: é coagido a decidir, mesmo estando num estado de mudez moral, ou seja,
num estado de incapacidade de estabelecer significações para representar objetivamente
a vontade do soberano. Ora, se o nosso personagem principal encontra-se na mais plena
mudez, a quem será dado o papel de ventríloquo?

A FORMAÇÃO DE UM SOBERANO AMESTRADO

No opúsculo de 1786, “Que significa orientar-se no pensamento?”, Kant nos dá


como ponto de partida para tratar dessa questão, o conceito de orientar-se, que, no

54
genuíno significado da palavra, quer dizer: a partir de uma dada região cósmica, a saber,
norte – sul – leste – oeste, encontrar as restantes, ou seja, o ponto inicial. Porém, como o
que nos interessa aqui não é o orientar-se no espaço, mas sim, no pensamento em geral,
isto é, de modo teórico, devemos tomar o conceito de orientar-se na sua forma mais
ampliada:

“Orientar-se no pensamento em geral significa, pois, em virtude da


insuficiência dos princípios objetivos da razão, determinar-se no
assentimento segundo um princípio subjetivo da mesma razão.”
Immanuel Kant - Que significa orientar-se no pensamento?, nota 2,
p. 6.

O princípio subjetivo ao qual se refere Kant é o sentimento da necessidade


(Bedürfnis) da própria razão. Kant explica que:

“é possível resguardar-se de todos os erros, se não nos


aventurarmos a julgar, quando não se sabe o que é exigido para um juízo
determinado [...] se uma necessidade real e, de fato, em si mesma inerente
à razão tomar necessário o juízo, [...] toma-se necessária uma máxima
segundo a qual proferimos o nosso juízo; porque a razão quer ser
pacificada.” Immanuel Kant - “Que significa orientar-se no
pensamento?”, p. 7.

É imprescindível entendermos que o século XVIII não disponibilizou a Kant,


fenômenos que evidenciassem um problema contemporâneo que nos valendo de alguma
ousadia, poderíamos chamar de amestramento da razão. Evidentemente o presente
estudo não comporta e nem se presta a desenvolver a necessária investigação a respeito
da idéia de amestramento da razão; contudo, nos parece suficiente, para os fins a que se
propõe o presente estudo, dizer que entendemos como “amestramento” a tecnicização
da razão, ou seja, a redução da razão aos limites da técnica.
A paixão pela técnica pode ser considerada um dos fenômenos mais importantes
do século XIX, isto porque, era inerente à idéia de que o desenvolvimento da ciência
implicaria no progresso da humanidade, tal como se fora possível, no século XX, irmos

55
todos à presença do Altíssimo, confortavelmente acomodados nos bancos dianteiros de
um Cadillac.
O sentido que aqui utilizaremos para a “técnica” é o de procedimentalização do
trabalho, no nosso caso específico, a procedimentalização do raciocínio ciêntífico. Ora o
que entra em jogo nesse momento é não apenas a formação da vontade ficta do
magistrado, mas a formação de todo o aparato cognitivo deste nosso personagem. Isto
passa a ser de suma importância para o desfecho de nosso trabalho, devido ao fato de
termos nos questionado a respeito do problema de se atribuir um poder de coerção
aparentemente ilimitado, a quem mesmo se encontrando num estado de completa
mudez moral, opera diariamente sua função de dizer o direito.30 Assim sendo, devemos
deslocar o foco de nossa investigação para o papel que a Universidade tem nesse
processo de formação do magistrado.

O amestramento “conveniente” da razão

Para tanto, vamos nos valer dos passos dados por Kant na obra Conflito das
Faculdades. Recorde-se que as universidades prussianas eram institucionalmente
organizadas, no século XVIII, numa divisão entre quatro instituições de ensino
universitário ou faculdades: Teologia, Direito, Medicina, Filosofia, designando-se
oficialmente esta última como inferior às três primeiras31. Segundo uma hierarquia
determinada pelo próprio Estado, a faculdade superior é aquela que serve de
instrumento do Estado, e inferior aquela que é inútil nesta função. Trata-se, portanto, de
uma divisão institucional que segue não uma hierarquia posta pelo próprio pensamento,
mas unicamente de um projeto hierarquizante que concebe a faculdade como uma
instituição estatal e lhe atribui, a pretexto das suas finalidades educacionais, um papel na
representação dos interesses e do poder do próprio governo.
Assim, esta estruturação institucional da universidade prussiana se deve ao modo
pelo qual o Estado pretende compor sua própria estrutura burocrática. No caso da
Prússia do século XVIII, a Teologia é exposta como tendo um papel ainda mais relevante
do que o Direito, isto porque a Teologia é uma instituição oficial imposta pelo Estado e a

30
Referimo-nos aqui ao sentido originário da palavra jurisdição do latim juris, "direito", e dicere, "dizer". Por isso é
que a mesma denominação é dada á competência de um magistrado a positivar normas aos membros da sociedade.

31
C.f. KANT, I. Conflito das Faculdades. Além das observações coligidas ao texto do próprio Kant, a obra
de Harvey Goldman, “Politics, Death and the Devil: Self and Power in Max Weber and Thomas Mann.
Berkeley, Los Angeles, Oxford: Un. California Press, 1992:, sobretudo o segundo capítulo “The Crisis of
Bildung and Science”.

56
serviço do governo, é a instância de justificação de um credo e de um clero oficiais,
respectivamente uma afirmação nacional e política, e uma corporação de agentes
eclesiásticos que interfere, há séculos, em todas as instâncias do poder.

“Com efeito, entre as Faculdades superiores contam-se somente


aquelas em cujas doutrinas o governo está interessado, se elas devem ser
constituídas assim ou assado ou publicamente expostas; pelo contrário,
aquela que unicamente tem de velar pelo interesse da ciência diz-se
inferior, porque pode lidar com as suas proposições como lhe aprouver. O
que mais interessa ao governo é o meio de ele manter a mais forte e
duradoura influência sobre o povo, e desta natureza são os objetos das
Faculdades superiores; quanto às da Faculdade inferior, deixa-as para a
razão peculiar do povo erudito. – Embora sancione tais doutrinas, ele (o
governo) não ensina, mas pretende apenas que certas doutrinas sejam
acolhidas pelas respectivas Faculdades na sua exposição pública, com
exclusão das doutrinas contrárias.” Immanuel Kant - Conflito das
Faculdades, p. 21

Com o advento das repúblicas modernas, a saber, repúblicas instauradas


mediante promulgação de constituições de inspiração franco-britânicas, a faculdade de
Direito passou a ter a função de instância de justificação de um credo, não mais na
vontade inequívoca de Deus, mas na imparcialidade racional da Lei; visto que, desde o
século XVIII, os Estados modernos devem se caracterizar como laicos.
A Faculdade de Direito permite, ao governo do Estado, exercer influência sobre o
modo como os indivíduos concebem e aspiram ao bem civil como membros da
sociedade, o que, em termos políticos, significa que a doutrina da Faculdade de Direito
permite ao Estado manter o comportamento externo dos homens sob o freio das leis
públicas. Assim, a Faculdade de Direito tem a função de estabelecer uma interpretação
autorizada do Direito positivo, interpretação esta comandada pelo Jurista erudito.
Como dissemos anteriormente, as Faculdades que integram a bancada à direita
do Parlamento da Razão tendem a operar reducionismos contra a Razão. Não é por outro
motivo que Kant constata que a Faculdade de Direito encontra-se à direita do
Parlamento da Razão, visto que parece demandar um aprisionamento da razão nos
limites do que podemos chamar de Doutrina Oficial. Em contraposição, a Faculdade de

57
Filosofia tem compromisso apenas com a Razão, portanto não se prostra diante dos
propósitos do Estado.32
Portanto, parece ficar cada vez mais evidente o fato de a Faculdade de Direito se
mostrar estruturalmente insuficiente para fornecer, ao jurista, um “sistema de sinais
caracteriológicos” com os quais o magistrado poderia estabelecer uma representação
objetiva do conflito de interesses sobre o qual deve decidir. Será suficiente, contudo, para
constituir uma doutrina cujo melhor resultado desta última terá sido uma etiqueta de
conduta a ser seguida à risca pelo próprio magistrado, além de ser imposta por ele, aos
membros da sociedade civil.

UMA CONTRADIÇÃO NO NÚCLEO DO DIREITO POSITIVO

Diante de tal fenômeno, podemos pensar que nosso personagem principal, a


saber, o magistrado a quem Hans Kelsen tratou pelo epíteto de interprete autêntico,
parece ser obrigatoriamente mantido no estado de mudez moral. Mas, se estivermos
certos, há uma contradição no fato de o Estado atribuir ao magistrado a possibilidade de
legitimar seu puro arbítrio, e, paralelamente, impor a ele uma mudez moral.
Ao contrário do que poderia esperar um leitor desatento, o presente estudo não
tem por objetivo identificar culpados ou inocentes, mas, sim, tornar mais visível uma
questão que se insere no núcleo da representação jurídico-positiva do mundo, e que só se
tornou potencialmente evidenciável a partir de uma análise minuciosa da arquitetônica
analítica edificada por Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito.
A questão a que nos referimos pode ser formulada da seguinte maneira: se o
magistrado é obrigado a criar o Direito, mesmo estando posicionado fora dos limites da
Lei; e, enquanto interprete autêntico, se ele forma sua vontade ficta de maneira a operar
objetivamente uma legitimação do puro arbítrio, não obstante o fato de se encontrar num
estado de completa mudez moral e de menoridade espiritual, como desconsiderar, então,
o fato de que a norma jurídica contraditoriamente se manifeste enquanto uma exceção
legitimável?

32
C.f. KANT, Immanuel, in “Conflito das Faculdades”, Primeiro Conflito: O conflito da Faculdade de
Filosofia com a teológica, Introdução, I. Da condição das faculdades, Secção II – Conceito e divisão da
Faculdade inferior, p. 39, “Ora ao poder de julgar com autonomia, i.e., livremente (segundo princípios
do pensar em geral), dá-se o nome de razão. Há, pois, que conceber-se a Faculdade filosófica, porque
deve responder pela verdade das doutrinas que tem de acolher ou até só admitir e, nesta medida, como
livre e unicamente sob a legislação da razão, não sob a do governo.”.

58
Digamos que questão se formula de maneira intratável, pois, devido à
envergadura que o problema da separação entre o direito e a política insinua, tal questão
parece ultrapassar os limites tanto da teoria do direito público, quanto da ciência
política. Se ademais levássemos em consideração que o “amestramento da razão” é um
dos possíveis desdobramentos da crise pós-kantiana da racionalidade, seria válido então
apostar na necessidade de retomar tal questão como problema pertinente a uma filosofia
política negativa? Tal filosofia política negativa demandaria, com efeito, revisitar o que
há de mais vertiginoso e intratável na dialética hegeliana; pois, ao que pudemos
investigar, ao tratar da tensão entre as determinações conceituais da Liberdade, a liberal
e a democrática, o pensamento kantiano teria chegado ao limiar da dialética de Hegel.
Já nos Princípios da Filosofia do Direito de 1820, logo após opor a razão enquanto
espírito autoconsciente e a razão enquanto efetividade presente, Hegel ultrapassa o
entrave de termos abstratos que ainda não se liberaram a ponto de se tornarem
“conceito”:
“Conhecer a razão como rosa na cruz do presente e regozijar-se
com este último, tal discernimento racional é a conciliação com a
efetividade, concedida pela filosofia àqueles que já foram atingidos pela
requisição interior de conceitualizar e manter igualmente a liberdade
subjetiva naquilo que é substancial, assim como permanecer, com sua
liberdade subjetiva, não em algo particular e contingente, mas naquilo
que é em si e para si.” G.W.F. Hegel, Princípios da Filosofia do
Direito, Prefácio, p. XXXVIII.

59
Conclusão

“Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo


dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem
contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia
desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem
nada.”
Machado de Assis - A Igreja do Diabo

Que este trecho do conto machadiano, de inspiração na tragédia de Fausto, nos


forneça o fio condutor para a representação da ordem jurídica positiva e seus meandros.
Em certo passo de nossa investigação, vimos que, nos domínios da tragédia, o herói
trágico apercebe-se de que é melhor que seus deuses; de maneira que a ordem
hierárquica do cosmos deve ser remanejada. O homem que se encontrava predicado pela
vontade divina, agora julga encontrar em si a mesma centelha divina que lhe valia como
causa primeira.
Astuto desde a primeira hora de toda a Criação, o Diabo percebeu que seria de
muito mais valia convencer o homem a se proclamar semelhante a Deus, do que
puramente convencê-lo de que os pecados capitais na verdade são virtudes. Assim, o
astuto Diabo nota que a prática do “novo” ateísmo levaria à instituição de uma nova
religião, a religião da humanidade, e que o caminho mais rápido para a vitória da negação
de toda a criação era pela via da positivação de uma nova ordem que, aquela deveria
substituir todas as significações da ordem anterior.
A construção da nova ordem hierárquica do cosmos tinha então, como condição
sine qua non, um homem que se constituísse não mais como mero subordinado das
determinações externas; ao contrário, o homem deveria tomar ciência de sua condição
de “espírito livre”33 e re-significar todo o cosmo sob o prisma da razão humana.Tal re-
significação do mundo não poderia se valer de qualquer sinal caracteriológico pertinente

33
“ Esprit fort”, “Freigeist”, se nos for consentido recorrer aqui às expressões empregadas por Ludwig
Feuerbach ao final de um capítulo decisivo de “ A essência do cristianismo” (ed. Vozes, Petrópolis, RJ,
2007), intitulado “ A essência da religião em geral”.

60
ao antigo regime, pois, se assim fosse, a religião da humanidade não passaria de uma mera
reposição da ordem teocrática.

Visto que seria necessário criar e impor coercitivamente um novo sistema de


sinais caracteriológicos, a religião da humanidade apresentaria como sua essência um
caráter positivista. Note-se que o fato de os homens terem tomado consciência de sua
condição de “espíritos livres” obstaria toda e qualquer tentativa de o Diabo submetê-los
ao seu poder.
Assim, o Diabo percebeu que o caminho mais apropriado para alcançar o objetivo
de dominar o cosmos era ter a máxima influência sobre o íntimo dos pensamentos e os
mais recônditos desígnios da vontade dos seus súditos, a fim de descobrir aqueles e
dirigir estes. Isso só seria possível se o Diabo exercesse controle sobre a constituição
desse sistema de sinais caracteriológicos.
Para que seus planos diabólicos lograssem êxito o Astuto foi ardiloso ao descobrir
que seria necessário que ele determinasse qual seria a igreja universal da religião
positivista. Tal igreja universal teria a competência para manter o comportamento
externo dos homens sob o freio da Lei. A Lei, agora, não mais verbalizaria a inspiração
que a musa da Justiça exercia sobre os membros da polis, mas serviria como uma
aveludada capa de autenticidade para legitimar os arbítrios a serem cometidos pelos
homens. Estes sequer perceberiam que, assim procedendo agiriam em favor do Diabo,
que, em troca do controle sobre suas formações espirituais e sobre como eles organizam
a reprodução de suas vidas materiais, lhes oferecera a prometida resolução de suas
carências materiais e espirituais mediante a aplicação incontestada e incontinente de
uma ética muito específica e sutilmente ardilosa.
Sob promessa de que entre as colunas da igreja universal da religião positivista os
homens veriam realizados única e exclusivamente a sua própria vontade e não a de um
pai que, com o passar dos séculos, deveria ser apagado de suas memórias, o Diabo
convocou a todos os mestres obreiros das primeiras terras em que os homens bradaram
sua liberdade para que o ajudassem a edificar a grande catedral, que serviria de modelo
arquitetônico obrigatório a todas as demais igrejas que se declarassem professantes da
nova religião universal.
Por orientação constante e estrita do Diabo, a grande catedral da igreja universal
do positivismo foi edificada com uma arquitetônica deliberadamente labiríntica, visto

61
que, se assumisse uma forma diferente do que a de labirinto, a empreitada satânica
estaria gravemente prejudicada. Isto porque o Diabo então convida o homem que se
descobriu “espírito livre” para um passeio que o torne incapaz de orientar-se. Só assim o
homem se submeterá à “nova” doutrina da libertação; libertação, não mais do domínio
de um ente externo, mas dos próprios desejos que o levaram a perder completamente o
próprio senso de orientação.
Assim, os homens pactuam com o Diabo e aceitam se submeter a duas doutrinas
muito específicas: a primeira doutrina é a doutrina que será professada no púlpito de
todas as sedes da igreja da religião da humanidade; a segunda doutrina será aplicada
pelos homens em todas as circunstâncias de reprodução de suas vidas, seja no contexto
da vida material seja no contexto da vida espiritual.
Após selar o pacto de danação com os homens, o Diabo teve de se ocupar da
educação de suas autoridades ministeriais, cuja tarefa seria positivar e garantir a eficácia
da doutrina da objetividade. Segundo tal doutrina, a formação espiritual do homem deve
ser determinada pelos desej0s particulares que este homem pretende satisfazer, de
maneira que uma formação integral era c0nsiderada completamente desnecessária. Em
outros termos, para ter condições de satisfazer seus desejos, o homem tem de se
submeter a uma educação que o condicione a desenvolver seu trabalho da maneira mais
eficiente.
Para o Diabo, foi crucial submeter os homens a este verdadeiro amestramento,
pois, se eles fossem capazes de recordar sua condição de espíritos livres, a nova
dominação à qual se submeteram esvanecer-se-ia como uma fantasmagoria se desfaz à
luz da presença de Apolo. Por isso torna-se imprescindível ao Diabo impor o mesmo
amestramento às suas autoridades ministeriais; porém, de forma muito mais profunda,
pois estes são investidos de competência para coagir os membros da igreja.
Com o passar de dois séculos, a humanidade já não se recorda dos fatos que
deram origem à sua condição de não-liberdade. Para se extrusar da figura de dominador,
o Diabo conseguiu esconder seu controle sobre o imaginário e sobre os desejos dos
homens operando um deslocamento no qual todas as circunstâncias que foram
atribuídas à sua existência, seriam, na verdade, frutos de uma tal condição humana.
Um dia, porém, longos anos depois, um dos seus fiéis que praticava antigas
virtudes, não todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, pôs-se a falar depois de
muito pensar, o que para a doutrina da igreja era uma heresia:
“— Contrata obreiros às centenas, prometendo todas as regalias do mundo,
pagando, estimulando e forçando-os ao recrutamento. Estou ciente de como se

62
desenvolve a obra da humanidade. Nos domínios da Igreja a massa humana vive, se não
livre, ao menos ativa e pacífica”.

O pasmo não deu ao Diabo tempo de refletir, comparar e concluir, do espetáculo


presente, alguma coisa análoga ao passado. Ansioso de conhecer a causa secreta de tão
singular fenômeno, não percebeu o Diabo que também se esquecera de um fato
primordial na fundação da igreja da humanidade. O fato ao qual a memória do Astuto,
até então infalível, não deu maior importância, é o de que tal como ocorrera com a
religião do antigo regime, a igreja da humanidade está à mercê da intervenção ateísta do
herói.
Porém o herói, que agora se apresenta no palco do cosmos, não é mais o herói
trágico cuja mudez moral e a menoridade espiritual não lhe permitiram entender que,
após negar-se a se submeter à predicação imposta por um ente externo, acabava
reincidindo no mesmo equívoco; só que, neste turno, submetia-se ao dogma da culpa
natural da vida humana, da culpa original, cuja insolubilidade de princípio constitui a
doutrina do paganismo, e cuja eventual solução é a base do culto da igreja humanidade.
É o herói cômico que faz raiar, tão claro quanto a luz do dia, o traço do caráter
que nada mais é que o sol do indivíduo no céu descorado, anônimo, do ser humano em
geral, o que projeta a sombra da ação cômica. A complicação trágica do homem culpado,
assim, torna-se simplicidade. O fado, liberdade.

63
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