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Desafio kelseniano: interpretação autêntica e doutrinária

Nesse texto, surge a distinção entre interpretação autêntica e doutrinária. A primeira, diz ele, é a
que é realizada por órgãos competentes (no sentido jurídico da expressão). A segunda, por entes que
não têm a qualidade de órgãos.
Com isso, porém, Kelsen frustra um dos objetivos fundamentais do saber dogmático, desde que
ele foi configurado como um conhecimento racional do direito. Ainda que lhe atribuamos um caráter
de tecnologia, de saber tecnológico, sua produção teórica fica sem fundamento, aparecendo como mero
arbítrio. Não teria, pois, realmente, nenhum valor racional procurar um fundamento teórico para a
atividade metódica da doutrina, quando esta busca e atinge o sentido unívoco das palavras da lei? Seria
um contrassenso falar em verdade hermenêutica? Enfrentar essa questão constitui o que chamaríamos,
então, de o desafio kelseniano.

Voluntas legis ou voluntas legislatoris

Ora, como deve haver um princípio inegável que impeça o recuo ao infinito (pois, no plano
da hermenêutica, uma interpretação cujos princípios fossem mantidos sempre em aberto impediria a
obtenção de uma decisão) e, ao mesmo tempo, pela própria natureza do discurso normativo, o sentido
do conteúdo das normas é sempre aberto, segue que o ato interpretativo dogmático se vê aprisionado
dentro de uma correlação dilemática entre dogma e liberdade, isto é, entre a necessidade de determinar
objetivamente os pontos de partida e a possibilidade subjetiva de, ao final, sempre se encontrarem
diversos sentidos. Essa tensão entre dogma e liberdade constitui o que chamamos de o desafio
kelseniano.
Savigny, numa fase de seu pensamento anterior a 1814, afirmava que interpretar era mostrar
aquilo que a lei diz. A alusão ao verbo dizer nos faz ver que Savigny estava preocupado com o
significado textual da lei. A questão, ainda meramente técnica, era, então, como determinar o sentido
expresso nas normas. Daí a elaboração de quatro técnicas: a interpretação gramatical, que procurava o
sentido vocabular da lei, a interpretação lógica, que visava a seu sentido proposicional, a sistemática,
que buscava o sentido global ou estrutural, e a histórica, que tentava atingir o sentido genético.
Essa oscilação entre um fator subjetivo – o pensamento do legislador – e outro objetivo – o
“espírito do povo’’ – torna-se assim um ponto nuclear para entender o desenvolvimento da ciência
jurídica como teoria da interpretação. Em meados do século XIX, ocorre, assim, na França e na
Alemanha, uma polêmica. De um lado, aqueles que defendiam uma doutrina restritiva da interpretação,
cuja base seria a vontade do legislador, a partir da qual, com o auxílio de análises linguísticas e de
métodos lógicos de inferência, seria possível construir o sentido da lei (“Jurisprudência dos
Conceitos’’, na Alemanha, e “Escola da Exegese’’, na França). De outro lado, foram aparecendo
aqueles que sustentavam que o sentido da lei repousava em fatores objetivos, como os interesses em
jogo na sociedade (“Jurisprudência dos Interesses’’, na Alemanha), até que, já no final do século XIX e
início do século XX, uma forte oposição ao “conceptualismo’’ desemboca na chamada escola da “libre
recherche scientifique’’ (livre pesquisa científica) e da “Freirechtsbewegung’’ (movimento do direito
livre) que exigiam que o intérprete buscasse o sentido da lei na vida, nas necessidades e nos interesses
práticos. Desenvolvem-se, nesse período, métodos voltados para a busca do fim imanente do direito
(método teleológico), ou de seus valores fundantes (método axiológico), ou de suas condicionantes
sociais (método sociológico), ou de seus processos de transformação (método axiológico-evolutivo),
ou de sua gênese (método histórico) etc.

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