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DEBATE DEBATE
Um balanço da Reforma Psiquiátrica Brasileira:
Instituições, Atores e Políticas

An assessment of Brazilian Psychiatric Reform:


Institutions, Actors and Policies

Ana Maria Fernandes Pitta 1

Abstract The article takes a look at Brazilian Resumo O artigo provoca olhares sobre a Refor-
Psychiatric Reform over the past decade, after the ma Psiquiátrica Brasileira (RPB) na última dé-
approval of Federal Law 10.216/2001 and seeks to cada, após a homologação da Lei Federal 10.216/
elicit long overdue discussion about the pressing 2001 e pretende suscitar o debate inadiável sobre
challenges that Brazilian Psychiatric Reform needs os novos desafios que ela precisa enfrentar para
to tackle to promote or review the long-desired alimentar ou reciclar a antiga utopia de “cidada-
utopia of “full citizenship for all in a society with- nia plena para todos, numa sociedade sem mani-
out asylums.” Is the Reform showing signs of ex- cômios”. Estaria a Reforma dando sinais de exaus-
haustion? The redirection of the care model for tão? É inegável a reorientação do modelo assis-
Mental Health in Brazil from the hospital to the tencial de Saúde Mental no Brasil do hospital para
community over the past decade is an undeniable a comunidade nessa última década. Ao tomar o
achievement. Taking the use of psychoactive sub- uso de Substâncias Psicoativas como objeto de
stances as the scope of policy and intervention, políticas e intervenção, incorpora demandas com-
this incorporates complex demands that the cur- plexas que o atual drama do Crack somente ime-
rent Crack drama makes it more urgent to ques- diatiza a necessidade de questionar sua história,
tion its history, its limits, its power. What will seus limites, sua potência. O que manterá acesa a
keep the flame alight of a successful movement that, chama de um movimento exitoso que, surpreen-
surprisingly, has resisted the force of time and stig- dentemente, resiste à força do tempo e do estigma
ma in the ten years since the Law was enacted? nesses dez anos da Lei? Essas e outras questões
These and other questions need to be worked on. It precisam ser equacionadas. Está na hora de reci-
is time to recycle the focus of assessment and anal- clar os focos de avaliação e análise no sentido de
ysis in order to identify what threatens its vitality. identificar o que ameaça sua vitalidade. Esse é o
This is the challenge to which the writer and de- desafio que a articulista e debatedores estarão pro-
baters will be enjoined to contribute. vocados a contribuir.
Key words Psychiatric reform, Mental Health Palavras Chaves Reforma psiquiátrica, Política
policy, Human Rights de Saúde Mental, Direitos Humanos

1
Universidade de São Paulo.
Av. Dr. Arnaldo 455,
Cerqueira César.
01246-903 São Paulo SP.
anapitta@usp.br
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Pitta AMF

Contexto re Levi com diferentes e fractais focos de atuação


na Saúde, na Cultura, na Justiça, na Previdência,
Após anos de resistência cívica e vitórias acu- na geração de renda e trabalho, nas Artes, bus-
muladas estaria a Reforma Psiquiátrica Brasileira cando ser intersetorial por excelência. E um bom
(RPB) dando sinais de exaustão? Foram décadas exemplo dessa nova vitalidade multifacetada se-
de crescimento de um movimento social desigual, ria o sucesso da “marcha dos usuários em Brasí-
constante e jamais visto no Brasil e no mundo em lia” em setembro de 2010, que conseguiu mobili-
torno da luta por Direitos Humanos fundamen- zar e pacificar interesses antagônicos dos diferen-
tais “dos loucos de todo o gênero”. Nessa última tes grupos para a convocação da IV Conferência
década muitas de suas bandeiras de luta se torna- de Saúde Mental Intersetorial, realizada em de-
ram realidade no país. Os Centros de Atenção zembro do mesmo ano, fazendo resgatar uma
Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Te- democracia participativa há muito não vista.
rapêuticos (SRT), o Auxílio de Reabilitação Psi- Escrever sobre uma história recente onde se é
cossocial “De volta pra casa”, expandiram, signifi- também protagonista e se pretende, isenta de
cantemente, a possibilidade de desinstitucionali- paixões, sustentar as controvérsias de uma era
zação responsável de pessoas submetidas a lon- turbinada da política de Saúde Mental do Brasil
gos períodos de internações psiquiátricas, ao tem- é missão quase impossível. Impõe-se compartir
po que se assistiu a uma redução expressiva de com outros, também atores e expostos aos mes-
leitos em hospitais psiquiátricos, particularmente mos riscos, como estratégia única de reduzir os
nos estados do sudeste e nordeste brasileiro. Pa- perigos de um etnocentrismo nocivo e previsto.
ralelamente se solidifica um modelo de atenção E não está eliminado o prejuízo que uma dialéti-
psiquiátrica baseado na comunidade e não cen- ca imperfeita “da perversidade natural do gênero
trado no hospital como a escolha da política pú- humano” de fazer “aferrar-se à razão, quando
blica de saúde mental no país. não se tem”1, no esforço de seguir o dever da
Estaria assim o movimento da Reforma Psi- crítica. Ainda não conseguimos assegurar o cui-
quiátrica sendo fagocitado pela força democra- dado das crises psicóticas ou das demandas de
tizante de gestões de Municípios, Estados e União, fissura e abstinência de usuários de crack em si-
na medida em que alguns de seus mais expressi- tuação de rua se os serviços ambulatoriais e co-
vos militantes assumiram funções públicas rele- munitários cerram suas portas às cinco da tarde
vantes no interior do aparelho de Estado? Ao in- na sua grande maioria. O que fazer quando a
corporar as clássicas bandeiras do movimento noite vem? Continua o manicômio no imaginá-
da luta antimanicomial, como o fechamento dos rio coletivo como o abrigo seguro para as situa-
manicômios e o aumento da acessibilidade ao ções críticas? Extremo retrocesso!
cuidado mental comunitário, os governos demo- Já existem no país, corroborando estudos
cráticos a teriam esvaziado dos seus lemas mais internacionais, evidências de níveis de efetividade
mobilizadores? Entretanto, outro aspecto a se individual e social maiores para pessoas com
considerar seria se os militantes reformistas es- transtornos mentais que estão sendo tratadas na
tariam se consumindo em batalhas fratricidas, comunidade, se comparadas àquelas tratadas em
fragmentados em grupos e facções que se anu- regime de privação de liberdade2-9.
lam na ação política comum que deveria fazer As últimas Conferências de Saúde Mental,
avançar a Reforma, deixando frágil o movimen- municipais, estaduais e nacionais, populosas e
to social que foi o motor de mudanças na Legis- participativas, trazem quase como uníssona a voz
lação, nas políticas públicas, no enfrentamento de usuários e trabalhadores de saúde clamando
do estigma da loucura na sociedade. pela condenação dos manicômios e pela defesa
Por outro olhar, essa aparente fragmentação da “liberdade terapêutica”. Porque então ainda
de ações e propósitos poderia ser vista como a não alcançamos um consenso de como agir se já
estratégia mais competente para atravessar a cri- temos uma unanimidade discursiva onde nin-
se de crescimento do movimento da Reforma e as guém mais ousa defender explicitamente os ma-
novas provocações que as conquistas alcançadas nicômios como estratégia preferencial de cuida-
pelo próprio movimento vão acrescentando a dos em psiquiatria e saúde mental?
demandas já tão complexas. Acompanhada sem- Mesmo que na prática ajam de modo a boi-
pre por um volume importante de frustrações e cotar o crescimento e a qualificação dessa rede
desesperanças com a lentidão e as respostas nega- comunitária e evoquem, de modo nostálgico, os
tivas dos governos e da sociedade, a RPB vai assu- leitos psiquiátricos perdidos no processo da Re-
mindo características das redes inteligentes de Pier- forma, todos advogam uma diversificação de ser-
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viços comunitários no território para enfrentar As instituições...
a complexidade dos transtornos mentais e do
uso de substâncias psicoativas, e condenam as O maior desafio da saúde mental e da clínica
condições desumanas que muitos hospitais se- psiquiátrica é não ter o clinos=leito como avatar
guem dispensando a seus usuários. Entretanto, de sua “boa prática”12 e, uma vez ele sendo necessá-
observamos que o confinamento e a exclusão da rio deve estar acessível e disponível de modo des-
loucura e do uso abusivo de drogas está presente centralizado, no território, onde o paciente estiver.
entre políticos, legisladores, gestores, acadêmi- Pensar sua oferta na rede de hospitais gerais e co-
cos, mídia e no imaginário de setores hegemôni- munitários espalhados pelo país e dotar os CAPS
cos da sociedade. E é contrário a esses nichos de leitos disponíveis, funcionando em tempo inte-
conservadores que o movimento da Reforma gral, utilizando uma mais ampla capilaridade e
Psiquiátrica segue se insurgindo como “processo presença nos municípios, é o que seria mais útil.
político e social complexo, composto de atores, Seguramente será a forma mais efetiva e eficaz de
instituições e forças de diferentes origens, que garantir a hospitalidade diuturna, integral e reso-
incide em territórios diversos... nas associações lutiva, onde a crise ocorrer. Como afirma Domin-
de pessoas com transtornos mentais e de seus gos Sávio Alves: “a boa assistência em saúde men-
familiares, nos movimentos sociais”10. tal precisa menos de leitos e sim de vagas”13.
Entre os grupos contra e a favor da Reforma, A advertência de Mari e Thornicroft14 de “evi-
nos governos, na sociedade civil e na população tar o fechamento de um hospital psiquiátrico
em geral, o estigma contra o louco persiste e de antes que um serviço comunitário de assistência
vários modos, explícitos ou sutis. Evidências dis- esteja solidamente estabelecido na mesma área” é
so são localizadas na não escuta e não credibilida- mais que pertinente desde que se registre o fato
de da palavra dessas pessoas, gerando uma crôni- de que a criação desses leitos psiquiátricos no
ca postergação de suas demandas. Também pre- Brasil não obedeceu a qualquer planejamento de
sente num certo descompromisso ético-político cobertura populacional. Alta concentração de lei-
por parte de profissionais de saúde, profissionais tos psiquiátricos, não justificados, em algumas
do direito, da previdência e assistência social, que regiões do país e, nenhuma oferta na maioria
administram com ambiguidade a ideia de uma delas foi a justa medida de um planejamento per-
sociedade onde o louco e o usuário de substânci- verso, onde mais valeu o privilégio de alguns be-
as psicoativas sejam pares, parceiros na definição neficiários diretos e indiretos do poder instituí-
de políticas e nos seus próprios tratamentos. do, que das pessoas em sofrimento, a terem suas
A crise das políticas públicas que as deixam necessidades cobertas15. Percorrer esse mesmo
“fora de moda” talvez explique porque, mesmo traçado na implantação dos novos serviços seria
quando se alcança algum consenso para o cui- perpetuar uma distorção. O direito universal de
dado em liberdade, não se responda prontamente atenção à saúde mental e assistência psiquiátrica
às vulnerabilidades e fragilidades das pessoas em devem acompanhar as necessidades dos mora-
sofrimento nas práticas de saúde e intersetoriais dores dos 5.645 municípios do país. O que assis-
existentes. As demandas da saúde mental seguem timos nessa última década foi ao aparecimento
sendo postergadas: primeiro as criancinhas, de- de serviços de Saúde Mental tipo CAPS (1.645)
pois os velhinhos, a saúde da mulher (como apa- em vários municípios até então não cobertos,
relho reprodutor), mais recentemente a dos ho- embora ainda tenhamos muitos vazios assisten-
mens, porque andam morrendo mais e amea- ciais que merecem um enfrentamento corajoso
çando a economia e a previdência social. E os do Estado para que o país atinja uma cobertura
programas de saúde pública se organizam sem- assistencial decente16.
pre nas suas vertentes fisicalistas, sem direito à O aumento da acessibilidade ao cuidado em
subjetivação. As sutilezas do estigma presentes Saúde Mental na última década, no território
nas campanhas midiáticas de governos tipo “cra- nacional, após a aprovação da Lei, é fato inques-
ck: cadeia ou caixão” banalizam o apocalíptico e tionável (vide Tabela 1) e merece avançar uma
induzem a um mero “não ter o que fazer” cômo- vez que ainda não dispomos de um patamar sa-
do e paralizante. tisfatório de recursos assistenciais no país.
“... é preciso avançar na elaboração de dispo-
sitivos teóricos e de formas de ação que ao mes- Os Atores...
mo tempo retenham o horizonte fundamental
da clínica ... e ampliem o alcance da rede”11. Não é consenso o lugar, o tempo e os atores
que desencadeiam a Reforma Psiquiátrica Brasi-
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Tabela 1. Saúde mental em Dados 2002-2010

Indicadores 2002 2010 Observação


CAPS – Centros de Atenção Psicossocial 424 1650
SRT - Serviços Residenciais Terapêuticos 85 570
*
“De volta pra casa” – benefícios de Reabilitação 206 * 3.635 começa em 2003
*
Geração de Renda e Trabalho – Projetos 151 * 640 começa em 2005
Leitos em Hospitais Psiquiátricos 51.393 32.735
Gastos com Saúde Mental em Reais 24.293.39 58.270.26
Percentual de gastos da saúde mental no SUS 2,55 2,57
Fontes: Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas/DAPES/SAS/MS, SIH/SUS, PRH/CNES e Coordenações Estaduais.

leira. Consenso maior considera o processo de ção de “uma clínica em movimento”18. Cuidado
democratização do país no final da década de 1970, este sustentado numa ética de corresponsabili-
trazendo os movimentos sociais com suas diferen- dade que estende e muito o alcance das interven-
tes estratégias e em diferentes estados do país para ções em crises nos serviços comunitários quan-
transformar políticas e instituições desumanas, do a equipe consegue perceber a importância da
como o possível marco inicial. Nessa era de Re- contribuição de cada um dos seus integrantes.
formas tivemos dois movimentos sócio-políticos Tais espaços de trabalho dependem fortemente
mais determinantes dessa transição: na Saúde em desses profissionais para “o tomar a si a respon-
geral a Reforma Sanitária, e na Saúde Mental a sabilidade de cuidar”, numa ação transdiscipli-
Reforma Psiquiátrica, que conviveram e se alimen- nar potente. O lugar simbólico do medicamento
taram da mesma efervescência político-participa- e do médico na relação com o usuário é algo que
tiva e democratizante da época17. precisa ser trabalhado, valorizado, e a um só tem-
Entre os anos de 1975 a 1980 o Movimento da po, desmistificado por esses profissionais. O en-
Reforma Psiquiátrica Brasileira recebia da Euro- frentamento do “modelo médico hegemônico”,
pa em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo tão decantado, vai significar uma clínica implica-
Horizonte e Barbacena insumos importantes para da de atenção à crise e à cotidianidade dos sujei-
abastecer seus ideais reformistas: Franco Basa- tos desempenhada por todos os integrantes de
glia, Michel Foucault, Ronald Laing, Felix Guat- uma equipe de “serviços substitutivos” ao mani-
tari, Robert Castel vinham para Congressos, Se- cômio. Mais ainda e lembrando Luiz Cerqueira,
minários em Universidades, em missões ético- psiquiatra, professor de psiquiatria, coordena-
políticas cativantes, trazendo informações e levan- dor nacional de Saúde Mental nos anos setenta:
do notícias nossas; testemunhando e reconhecen- “a saúde mental é coisa muito séria para estar
do grupos de resistência, instigando jovens inqui- confiada em mãos apenas de psiquiatras”! Bem
etos (alguns presentes nesse debate) para movi- reflete quanta humildade e corresponsabilidade
mentos sociais como a defesa dos direitos dos são necessárias para se trabalhar nesse campo.
enfermos mentais, condições e processo de tra-
balho em instituições manicomiais, na contribui- A propósito, as Políticas...
ção teórico-crítica em diferentes cenários acadê-
micos, associativos, sindicais, estudantis. Com a entrada em cena de movimentos soci-
No limite, todos, de todas as profissões, que- ais de profissionais, trabalhadores, usuários, fa-
rem condições ideais de atendimento aos enfer- miliares, militantes dos Direitos Humanos, pres-
mos, e melhores condições de trabalho para si. tadores públicos e privados, gestores, sindicatos e
Entretanto, atualmente, muitos desses profissi- associações, nos fins dos anos setenta, o movi-
onais que poderiam fazer a diferença em termos mento da Reforma nasce ganha maior visibilida-
de implicação ética e técnica com a “boa prática”, de e força19 e também produz seus mais ferre-
para sustentar a interdisciplinaridade por conse- nhos inimigos. E não existe estratégia mais po-
quência a potência das equipes nos territórios, tente para criar coesão de um grupo ou de um
parecem desconhecer, ou não se sentem convo- movimento do que ter inimigos comuns contra
cados, ao apelo ético-político desses primeiros quem lutar! A ditadura militar, a não democracia,
momentos. Existe uma paradoxal estratégia de- o interesse mercantil dos industriais da loucura,
fensiva de fuga da responsabilidade na constru- forjaram o cenário favorável ao surgimento de
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múltiplos focos de movimentos sociais em torno de usuários e familiares. Quanto à incorporação
dos maus tratos aos usuários de instituições psi- desses novos protagonistas, o já denominado
quiátricas manicomiais no Brasil. Considerando Movimento pela Reforma Psiquiátrica Brasileira
as mudanças políticas importantes ocorridas no vai acumulando força e experiência: 1 - no En-
país, que antecedem a aprovação da Lei 10.216/ contro Brasileiro da Rede de Alternativas à Psi-
21, recortemos em décadas seus fatos mais signi- quiatria em 1983 em Belo Horizonte, MG com
ficativos para melhor contextualizar a trajetória mais de mil e quinhentos participantes; 2 - no I
da Reforma embora tenhamos claro que a histó- Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental de
ria como a vida “vem em ondas como o mar” e São Paulo, em 1985, em São Paulo, com mais de
sempre persistem resíduos de etapas anteriores mil participantes, organizado sem participação
enquanto tempo e movimento avançam. do movimento social, que ensinou a todos que o
processo de democratização em curso no país
Os anos 70 – a denúncia determinava que não mais poderia ser assim
(existiram dois “primeiros Congressos”, sendo
Tempos de característica hegemonicamente que apenas o segundo, organizado pela emer-
asilo-manicomial na assistência aos doentes men- gente Plenária de Trabalhadores de Saúde Mental
tais no Brasil, que experimentou nessa década uma foi reconhecido como tal pelo movimento soci-
grande expansão das internações psiquiátricas a al). Ambos aconteceram no Centro de Conven-
grupos cada vez maiores da população, após a ções Rebouças, na cidade de São Paulo, ambos
unificação dos Institutos de Aposentadorias, em com mais de mil participantes, mas havia a ale-
1966, centralizando recursos com a criação do gria participativa no segundo para compensar a
Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). tensão do jejum democrático do primeiro I Con-
Boas idéias no Ministério da Saúde, que não ti- gresso de Trabalhadores de Saúde Mental; 3 - na
nha dinheiro para implementá-las e muito dinhei- I Conferência Nacional de Saúde Mental em 1987
ro no INPS, no Ministério da Previdência Social, no Rio de Janeiro, também organizada sem o mo-
que o utilizava ao bel prazer da conjuntura e do vimento social e igualmente cenário de desobe-
Ministro de plantão sem que o emergente movi- diência civil pelo movimento da Reforma; 4 - no
mento social fosse escutado. Na era da “indústria posterior II Encontro Nacional dos Trabalhado-
da loucura”, em plena ditadura militar, se cons- res em Saúde Mental, em Bauru, São Paulo, (ter-
truía manicômios cada vez maiores e mais lucra- ceiro na cronologia e primeiro no significado his-
tivos sustentados por recursos públicos. O fluxo tórico-social, já organizado pelo movimento so-
do dinheiro público para a esfera privada nesse cial com apoio da municipalidade). É o Congres-
período é revelado no fato de que, entre 1965 e so de Trabalhadores de Bauru, realizado em 1987
1970 a população internada em hospitais públi- que alcança o consenso de ser o marco de articu-
cos permaneceu a mesma, enquanto a clientela lação de diferentes movimentos sociais em torno
das instituições conveniadas remuneradas pelo da Reforma Psiquiátrica, particularmente de São
poder público saltou de 14 mil, em 1965, para Paulo, Rio, Minas Gerais, onde se pactuou o lema
trinta mil em 197020. Anos depois, esses números “por uma sociedade sem manicômios” origina-
se multiplicariam para 98 mil leitos psiquiátricos do na Itália, trazido do último encontro da Rede
em 1982, concentrados na região sudeste e em de Alternativas à Psiquiatria que animou e parece
alguns estados do nordeste14, mantendo uma pro- seguir animando a utopia da Reforma Psiquiá-
porção de 80% de leitos contratados junto ao se- trica Brasileira. “A realização desse encontro foi
tor privado e 20% diretamente públicos21. decidida durante a I Conferência, pela constata-
Por outro lado, quase clandestinos, os mili- ção de que a perspectiva sanitarista de incorpo-
tantes da RPB, insatisfeitos com o sistema psi- rar as propostas reformistas nas políticas ofici-
quiátrico vigente, brigavam subterraneamente ais vinha sendo anulada pela resistência passiva
onde era possível brigar: congressos, associações, ou ativa da iniciativa privada, da estrutura mani-
sindicatos, redes, constituindo-se como movi- comial, da burocracia estatal e do conservadoris-
mentos sociais. mo psiquiátrico”11. O desejo de “uma sociedade
sem manicômios”, construído neste contexto,
Os anos 80 – tempos de “fazejamentos” aponta para a necessidade do envolvimento da
sociedade na discussão e encaminhamento de
Já ao final dos anos 70, o movimento pelas questões relacionadas à doença mental e à assis-
Reformas na assistência em Saúde e da Saúde tência psiquiátrica. De lá para cá, o Movimento
Mental caminhou junto aos movimentos sociais vem organizando no dia 18 e ao longo do mês de
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maio, o Dia da Luta Antimanicomial, com inú- na cidade de São Paulo, que o encontro de Luiz
meras atividades culturais, artísticas e científicas Cerqueira, então coordenador de Saúde Mental
nos estados, em muitas cidades do país, com o do estado e Guilherme Rodrigues da Silva, Pro-
objetivo de sensibilizar e envolver novos atores fessor Titular da Medicina Preventiva da USP e
sociais para a questão. Dezenas de associações de grande pensador da saúde coletiva brasileira, que
familiares, de voluntários e de usuários de servi- aparece em 1973 um projeto experimental de Saú-
ços psiquiátricos foram organizadas e outras dei- de Mental na Atenção Primária nos Distritos de
xaram de existir nessas duas décadas. O prota- Pinheiros, inicialmente, depois Butatã, na zona
gonismo dos usuários e familiares no Movimen- oeste da cidade, que foi semeador de um modelo
to tem crescido e amadurecido através do tempo de atenção integral e territorial que formou pes-
fazendo lideranças profissionais muitas vezes se soas, penetrou a mídia e influenciou a política
esquecerem de suas funções de cuidar para que pública para a área na medida do avanço da de-
esses segmentos tenham suporte para seguirem mocratização no estado e no país. Esse progra-
se desenvolvendo como sujeitos de suas histó- ma modelar para a atenção primária em saúde
rias. Da mesma forma, inúmeras entidades da mental foi embrião da inflexão comunitária nos
sociedade civil passaram a incluir o tema em seus “anos Montoro”, (1983-1987) com 91 equipes de
debates e pautas de atuação. psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais tra-
balhando em Centros de Saúde do estado. Acom-
A I Conferência: pioneira e tutelada panhou-se ainda da chamada “ambulatorização”
da saúde mental, transformando antigos e bu-
A 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental, rocráticos ambulatórios (psicofármacos + guias
1987, organizada pela Coordenação de Saúde de internação + estatísticas) em 22 centros co-
Mental do Ministério da Saúde e realizada no munitários de saúde, com seus programas de
Rio de Janeiro, não teve a participação da socie- intensidades mínima, média e máxima, manten-
dade civil, trabalhadores, usuários e famílias na do o nome de Ambulatórios de Saúde Mental
sua organização porque à época isso não se cogi- por força de um movimento corporativo de seus
tava. Tudo centralmente organizado, com gran- funcionários, cunhando a expressão “ambulato-
de esforço de setores contra hegemônicos do rização” para aqueles que seriam embriões dos
governo e uma grande sede de participação soci- futuros Centros de Atenção Psicossocial - CAPS,
al dos diversos segmentos de base interessados. para onde muitos deles foram lentamente se
Não deu outra: ali se exercitou uma tomada de transformando e hoje estão cadastrados como
poder pela sociedade civil. Perverteu-se o estabe- tal, enquanto outros desapareceram substituí-
lecido. Todo o Programa da Conferência organi- dos por novos modelos.
zada como se fora um Congresso Psiquiátrico O surgimento de experiências institucionais
cai por terra para dar lugar a uma assembléia bem-sucedidas na arquitetura de um novo tipo
popular conduzida por uma mesa diretora esco- de cuidado em saúde mental pipocava em vários
lhida pela maioria. Também foi esse o critério pontos do país. Duas delas são consideradas
para escolher uma relatoria representativa das “marco inaugural e paradigmático” de uma nova
cinco regiões do país. Primeiro exercício demo- prática de cuidados: o Centro de Atenção Psicos-
cratizante na definição da política de saúde men- social Professor Luiz da Rocha Cerqueira, no
tal para o país, a I Conferência representa, por- Distrito da Bela Vista, na cidade de São Paulo; e a
tanto, o início do desconstruir no cotidiano das intervenção na Casa de Saúde Anchieta, realiza-
instituições e da sociedade as formas arraigadas da pela administração municipal de Santos, em
de se lidar com a loucura e a prescrição da de- São Paulo, como um projeto mais amplo e radi-
sinstitucionalização como estratégia de reversão cal de desinstitucionalização no país.
da exclusão dos loucos da cena pública22.
A partir dos anos setenta, em São José do A origem dos CAPS
Murialdo, no Rio Grande do Sul, uma experiên-
cia pioneira de saúde mental na atenção primá- O CAPS Luiz Cerqueira nasce em 1987 e é iden-
ria se desenvolvia e formava pessoas para essa tificado como “marco inaugural” de um modo de
nova prática. E Campinas, ainda na década de cuidar que considera o sujeito em sofrimento como
70, implanta na cidade um programa de Saúde estruturante de uma “clínica ampliada” que o ar-
Mental nas unidades básicas de saúde que ainda ticula no seu território e não o enclausura para
permanecem em várias unidades, recicladas por tratá-lo. Tal clínica teve na psicanálise, no uso ra-
gestões criativas que se sucederam. Entretanto, é cional dos psicofármacos e nas práticas de inclu-
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são social, o seu tripé de funcionamento. Tornou- Sobral, Fortaleza e outras tantas, na direção da
se o exemplo de um novo modelo de cuidado em superação de manicômios.
Saúde Mental, construindo um modo de cuidar,
sobretudo de pessoas psicóticas, mas também de Os anos 90 – A Reforma
não psicóticas, das suas famílias, de suas moradi- como política pública consentida
as, de suas artes, do seu trabalho, da sua renda...
no território. Pacientes psiquiátricos graves exi- Em 1989, o deputado Paulo Delgado (PT-
gem “condições terapêuticas que inexistem nos MG) apresentou o projeto de lei nº 3.657/89, que
ambulatórios e hospitais psiquiátricos” tradicio- viria a ser conhecido como a Lei da Reforma Psi-
nais2. Pensado na sua criação para funcionar diu- quiátrica. O projeto era simples, com três artigos
turnamente, o que jamais conseguiu, pode insti- estruturantes: o primeiro impedia a construção
tuir uma usina produtora de encontros e trocas ou a contratação de novos hospitais psiquiátri-
intersubjetivas que se tornou nacional pela sensi- cos pelo poder público; o segundo previa o dire-
bilidade do Coordenador de Saúde Mental à épo- cionamento dos recursos públicos para a cria-
ca, Domingo Sávio Nascimento Alves, com as ção de “recursos não-manicomiais de atendi-
portarias 189/91 e 224/92 do Ministério da Saúde mento”; e o terceiro obrigava a comunicação das
e realçada como política pública no país na por- internações compulsórias à autoridade judiciá-
taria ministerial 336/2001 e instrumentos norma- ria24. Depois de aprovado na Câmara dos Depu-
tivos subsequentes, já na gestão exitosa de Pedro tados, o projeto completou onze anos de substi-
Gabriel Godinho Delgado23. tutivos e postergações no Senado para de lá sair
em 1999, numa articulação do parlamentar pro-
Santos como ousadia ponente, do Ministério da Saúde e do movimen-
to antimanicomial. Voltou à Câmara já como
Já a experiência santista nasceu da interven- projeto substitutivo para nova rodada de nego-
ção pública de uma administração municipal eti- ciações, aprovação final e homologação pelo Pre-
camente comprometida com uma gestão demo- sidente da República somente em abril de 2001.
crática e popular que elege a desinstitucionaliza- Grandes, polêmicos, apaixonados e frutíferos
ção de um manicômio - a Casa de Saúde Anchie- debates em todo o país em torno de uma lei,
ta – como o marco inicial de construção da polí- talvez tenha sido o maior subproduto nessa lon-
tica de saúde mental daquele município. A inter- ga quarentena. Enquanto isso, uma avalanche
venção, o desejo e a vontade política da equipe de movimentos por mudança de legislação dos
gestora foram motivadas por denúncias de mor- direitos dos enfermos mentais pipocou em mui-
tes, superlotação, abandono e maus-tratos que tos lugares em projetos de leis estaduais e muni-
logo se confirmaram. O trabalho determinado cipais similares. Começou pelo Rio Grande do
de uma equipe pode, em pouco tempo, deslocar Sul e contagiou o país: mais seis estados e o Dis-
o eixo do cuidado para o território organizado trito Federal.
em torno dos então criados Núcleos de Atenção Se, ao longo dos anos 1980, o Movimento da
Psicossocial (NAPS) em cada Distrito da cidade. Reforma Psiquiátrica inicia uma estreita relação
Já nasceram centros comunitários de Saúde men- com os movimentos sociais, nos anos 90 solidifi-
tal diuturnos, funcionando vinte e quatro horas ca essa união. E é o emergente Movimento da
ao dia, sete dias na semana. Foi a mais radical Luta Antimanicomial, a partir do seu I Encontro
experiência de um modelo substitutivo aos ma- em Salvador, Bahia em 1993, que mais tem estado
nicômios no país, conduzida por David Capis- presente nos rumos da RPB nessas últimas déca-
trano, Roberto Tykanori, Fernanda Néscio, An- das, apesar de todas as cisões e disputas internas.
tonio Lancetti e muitos outros. Cobria toda a O Movimento da Reforma Psiquiátrica é mais
cidade de quinhentos mil habitantes e fechou o amplo. Incorpora a militância do Movimento da
manicômio lá existente, substituído por uma Luta Antimanicomial e de suas dissidências, mas
rede diversificada de dispositivos. também setores contra-hegemônicos de gover-
Descontinuidades e recuos nas políticas em nos, sociedade civil, corporações da área, usuá-
estados e municípios fizeram com que a trajetó- rios, familiares, Universidades, aparelhos forma-
ria dessas experiências não tivessem um cresci- dores e outros. Foi importante e decisivo para a
mento linear, mas seguramente influenciaram consolidação de um projeto de saúde com pre-
várias experiências singulares e exitosas em Cam- tensões de acessibilidade universal, reorientação
pinas, Angra dos Reis, São Lourenço do Sul, Be- da Saúde Mental no Brasil e a aprovação da sua
tim, Aracajú, Feira de Santana, Belo Horizonte, Lei Federal 10.216/2001. Entretanto o início da ten-
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são dos movimentos sociais com os executores te. Na ocasião, considerava-se que a substituição
públicos da Reforma no interior do Estado (dife- asilar vinha acontecendo “de maneira inequívoca
rente do que aconteceu em outros países, como e regular no Brasil nos últimos dez anos”10, e que
Itália e Canadá, onde eram os mesmos atores que se podia esperar uma aceleração do processo. Por
reclamavam os que construíam as alternativas razões óbvias deixo de detalhar o período dos
substitutivas ao manicômio, com forte engaja- anos 1998-2000, mas cabe mencionar os seguin-
mento ético-político, clínico, e de reabilitação psi- tes fatos: a Lei 10.216 sai do Senado e retoma a
cossocial), desgastes, lutas intestinas e prejuízos tramitação na Câmara (1999), recursos para os
para sua sustentabilidade tem sido a tônica da primeiros 400 CAPS (1999), portarias e recursos
relação movimento antimanicomial & poder exe- para os Serviços Residenciais Terapêuticos (2000);
cutivo, com poucas exceções. E ao deslocar seu incentivo-bônus para a desinstitucionalização
foco de luta, a RPB começa a padecer do mesmo (1999) baseado no Programa de Apoio à Desins-
mal que acometeu a Reforma Sanitária – afastar- titucionalização (PAD)26 que a gestão seguinte
se ou ser afastada do movimento social. Deposi- pôde melhor operacionalizar com a Lei “De volta
tam-se nos que ocupam circunstancialmente fun- pra casa”23; psicofármacos básicos e de alto cus-
ções de poder todas as esperanças para, a seguir, to (1999), e o negociado retorno da Comissão
isolá-los de toda a força, vitalidade e princípio de Nacional de Saúde Mental no Conselho Nacio-
realidade que somente os sujeitos reais e concre- nal de Saúde (1999) que havia extinguido a Co-
tos, nos seus locais de ação podem nutrir. De ou- missão de Reforma Psiquiátrica em 1998, esteio
tro lado, a oposição, a tensão, o questionamento da participação do movimento social na política
e as críticas às políticas executadas pelo Estado, nacional de Saúde Mental.
vindas do movimento social, passam a ser vistas
como ataque ou obstáculo ao processo de Refor- Os anos 2000 – A Reforma legal
ma pelos que a estão executando. Talvez nesse
pêndulo esteja a força da radicalidade e da pru- Pode-se dizer que o avanço mais consistente
dência necessárias à sobrevida do movimento. da reforma psiquiátrica brasileira acontece nessa
Momento importante na constatação da ten- década. Um arcabouço normativo importante
são dos diferentes grupos envolvidos no proces- trata da expansão da rede comunitária e do con-
so da Reforma e negociação bem conduzida por trole dos hospitais23, onde as Portarias 336 e 189
um gestor público aconteceu na II Conferência expandem os CAPS e duas portarias, 106 e 1.220,
Nacional de Saúde Mental “a democrática”, reali- ambas de 200023, instituem os “serviços residen-
zada em Brasília em 1992. É um marco histórico ciais terapêuticos (SRT)” a fim de viabilizar a rein-
da reforma psiquiátrica brasileira com intensa serção social na comunidade dos moradores de
participação dos segmentos sociais envolvidos, hospitais cronicamente internados. Aliadas às
onde já 20% dos delegados à conferência foram portarias que deram existência institucional aos
os usuários e familiares. O relatório final da con- CAPS e NAPS (336/2001), se constituem em im-
ferência foi adotado como diretriz oficial para a portantes instrumentos normativos da Reforma.
reestruturação da atenção em saúde mental no Começa então a era mais vigorosa para a gestão
Brasil nas gestões de Domingos Sávio Alves, que da política de saúde mental no Brasil (2000 - 2011)
alquimicamente a conduziu, e nas que se segui- onde uma equipe dedicada, sob a coordenação
ram (Eliane Seidl, Alfredo Schechtman, Ana Pit- de Pedro Gabriel Delgado, liderança respeitada
ta, Pedro Gabriel Delgado). As recomendações do movimento da luta antimanicomial, geriu de
gerais sobre o modelo de atenção enfatizavam o forma competente os interesses da Reforma Psi-
território e a corresponsabilidade no cuidado quiátrica, por uma década.
como forma de garantir “o direito dos usuários Ainda em 2001, e sob o marco da nova Lei
à assistência e à recusa ao tratamento, bem como 10.216/2001, aconteceu a III Conferência Nacio-
a obrigação do serviço em não abandoná-los à nal de Saúde Mental, em Brasília, com grande
própria sorte”25. participação popular e democrática. Represen-
As análises existentes convergem ao apontar tação ampla de todos os setores envolvidos, e
que o processo da Reforma no país não consis- precedida por centenas de conferências munici-
tiu em um desmantelamento da rede hospitalar, pais, regionais e estaduais, em todo Brasil. Alí já
mas na sua transformação para alternativas não aparece a complexidade do campo da Reforma
hospitalares19. Na primeira metade da década de Psiquiátrica claramente delineado: enfrentamen-
1990, foram inaugurados quase cem serviços de to do estigma; reorientação do modelo assisten-
atenção diária que seguiu crescendo inercialmen- cial com garantia de equidade de acesso; direitos
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e cidadania com prioridade para a formulação nar, posterga e opacifica qualquer demonstração
de políticas que fomentem a autonomia dos su- de factibilidade para as políticas de saúde mental
jeitos; expansão do financiamento e controle so- e intersetoriais prescritas. A exclusão, a restrição
cial. Foi uma festa de participação democrática e de recursos é a política hegemônica dos governos
representação social com mais de dois mil parti- municipais e estaduais, desobedecendo assim às
cipantes, convidados e testemunhas nacionais e diretrizes nacionais da política de saúde mental.
internacionais, onde se pôde ratificar e criticar Sem consenso, o que ganha relevo em alguns
elementos contidos na Lei. momentos na agenda do governo federal, se dilui
Uma vez homologada a Lei 10.216 em abril nas demais esferas de governo, chegando aos ci-
de 2001 pelo Presidente da República, fica pres- dadãos de um modo pálido, em ações pouco po-
crita a elaboração de “política específica de alta tentes, com pequena margem de resolutividade,
planejada e reabilitação psicossocial assistida” com equipes que flutuam na dependência do pre-
para o paciente “há longo tempo institucionali- feito municipal em exercício.
zado” e para as situações de “grave dependência Como fato novo nesses últimos dez anos tem-
institucional”. Menciona os chamados “serviços se a entrada orgânica do enfrentamento do uso
residenciais terapêuticos” e todos os dispositivos prejudicial das substâncias psicoativas nos gover-
assistenciais para cuidar em liberdade. A lei foi o nos da União, dos estados e dos municípios. Área
ponto culminante de um processo de normati- que sempre mereceu referências da sua impor-
zação da assistência que vinha sendo implemen- tância epidemiológica sem jamais ter merecido
tada com o desenho da Reforma através das por- uma consequente resposta política e assistencial
tarias ministeriais e da indução financeira para de fato, entra nessa última gestão como priorida-
tal fim. A substituição progressiva dos manicô- de no discurso presidencial, particularmente refe-
mios e a implementação da rede de atenção psi- rida ao uso do Crack. Política se faz com ira, amor
cossocial que o tornará prescindível, está descri- e... dinheiro. Ira para indignar-se por alguma si-
ta na lei. De modo não linear e simétrico, e com tuação negligenciada ou aviltada; amor ético e
muitas resistências, essa rede vem sendo cons- universal para abraçar a causa que se pretende
truída no território nacional (vide Tabela 1). intervir e encontrar a estratégia mais sublime e
adequada de intervir; e, dinheiro, para dar conse-
Os desafios atuais... dez anos depois... quência às prescrições e desejos de enfrentamento
do problema identificado. A lei e o Decreto Presi-
Passados dez anos da homologação da Lei dencial, e as consequentes portarias ministeriais e
10.216, o que temos como tendência nessa últi- interministeriais, liberaram recursos financeiros
ma década? para o enfrentamento do crack, fechando assim o
A luz de todas as nuances de enfrentamento ciclo que prescreve uma intenção de governo para
do estigma que envolve a questão da enfermidade uma política de Estado com a consequência fi-
mental e o uso de substâncias psicoativas, avan- nanceira para executá-la. O grande desafio agora
çamos muito nas prescrições e nas diretrizes do para gestores e trabalhadores que operam as re-
Ministério da Saúde, da Justiça e Direitos Huma- des assistenciais é de como contemplar as necessi-
nos, da Cultura, do Trabalho, para a área. Tal dades reais e concretas das pessoas usuárias de
avanço prescritivo, presente na Legislação, nos drogas nos sistemas de cuidados. Quais respos-
relatórios das Conferências, nas portarias minis- tas vão ser produzidas no imediato?
teriais, até mesmo em manifestações públicas de Tomando como referência crianças, adoles-
Presidentes, Governadores, Prefeitos e Secretári- centes, adultos e idosos em situação de rua, situ-
os não se fazem acompanhar, entretanto, de ações ação comum entre os que o uso da droga deses-
consequentes que viabilizem o dito ou o escrito truturou laços sociais e familiares, se observa um
na intensidade na qual se faz necessária. Mesmo descompasso entre o prescrito e o real. Para um
em governos democráticos onde tivemos lideran- grande avanço normativo, com portarias e edi-
ças expressivas do Movimento da Reforma Psiqui- tais prescrevendo e se dispondo a financiar a rede
átrica ocupando postos de real poder de decisão de cuidados, encontramos poucas iniciativas nos
(refiro-me a Ministro e a cargos de segundo e estados e municípios, onde as pessoas vivem co-
terceiro escalão), a desqualificação da subjetivi- tidianamente. As academias se acomodam nos
dade humana nas políticas públicas é um fato. A serviços ambulatoriais diurnos que melhor se
sistemática negação de direitos que a condição adequam aos seus ritos acadêmicos. Nesse vazio
marginal dos usuários de instituições psiquiátri- de alternativas oficiais públicas de rede assisten-
cas e de substâncias psicoativas parece determi- cial continente, as “comunidades terapêuticas”
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seguem se insinuando na ocupação desse espaço Em seu livro, intitulado “A Reforma Psiquiá-
diuturno no SUS. Se a vida é crônica, precisamos trica”, Manuel Desviat27 dedica um capítulo à re-
aprender a cuidar dos nossos usuários cronica- forma psiquiátrica brasileira, que considera um
mente, em liberdade, diuturnamente, oferecen- dos mais frutíferos, promissores e vigorosos pro-
do-lhes chances de sobrevida digna nos diversos cessos de transformação no campo da saúde
cenários em que a vida de todos os humanos se mental e da psiquiatria no mundo. Benedetto Sar-
dá: moradia, locais de tratamento e reabilitação, raceno, que frequenta o Brasil desde 1987 e que
trabalho, escola, renda, lazer, etc. acompanhou de perto, em muitos estados brasi-
A solução das “comunidades terapêuticas”, na leiros, os movimentos da Reforma Psiquiátrica,
sua maioria oferece apenas o enclausuramento como pesquisador do Instituto Mario Negri e
do problema, na ausência de uma ação mais efe- como Diretor do Departamento de Saúde Mental
tiva e eficaz do Estado. O movimento da Refor- e abuso de Drogas da Organização Mundial de
ma Psiquiátrica inclui tais instituições entre as Saúde, em diferentes ocasiões pode externar sua
asilo-manicomiais que precisam ser substituídas opinião da Reforma Psiquiátrica Brasileira ser das
progessivamente. A Reforma Psiquiátrica Brasi- mais profícuas experiências no mundo28.
leira segue defendendo ações efetivas em rede na Estamos falando em desinstitucionalização
Atenção Básica, nos Ambulatórios Especializados, responsável, isto é, tratar o sujeito em sua exis-
nos CAPS AD III, nas Unidades Residenciais Tran- tência e em relação com suas condições concre-
sitórias, nos Serviços Residenciais Terapêuticos, tas de vida. O tratamento deixa de ser a exclusão
nos leitos em Hospitais Gerais e nas pequenas em espaços de violência e morte social para tor-
enfermarias especializadas. Ainda enfatiza os Pon- nar-se criação de possibilidades concretas de sub-
tos de Encontro, os Centros de Convivência, as jetivação e interação social na comunidade.
Oficinas de Geração de Renda e Trabalho e o “ge- As celebrações do 18 de maio nos alertam
renciamento de casos” nas comunidades, basea- para o que deve acontecer: inclusão social da lou-
dos na lógica de redução de danos. Defende ainda cura em liberdade. Chama a atenção para os de-
ações intersetoriais de inclusão social no traba- safios próprios do crescimento do bem sucedido
lho, na escola, nas artes, nos esportes, na cultura movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira
e a produção de chances de novos protagonis- no interior de um estado burocrático, refratário
mos sociais que ocupem o lugar das drogas nos a inovações, e a radicalidade que a mudança do
projetos de vida dos usuários. modo de cuidar requer. O doente mental, antes
A Reforma Psiquiátrica tenta dar ao proble- excluído do mundo dos direitos e da cidadania,
ma uma resposta não asilo-confinante, reduzin- se transforma em sujeito cidadão e não objeto de
do danos e desvantagens sociais que trazem o políticas públicas. Sendo esta uma questão mais
confinamento associado aos transtornos men- ético-política e cultural do que técnica, o futuro
tais e ao uso de substâncias psicoativas. O suces- da Reforma Psiquiátrica Brasileira está na espe-
so da reforma reside na percepção da necessida- rança que os usuários, familiares, trabalhadores
de da construção de um amplo espectro de cui- - esses novos protagonistas que amadurecem e
dados para sustentar a existência de pessoas/usu- se renovam a cada dia - encontrem modos mais
ários/pacientes que, sem isso, estariam conde- sensíveis de reduzir os danos causados pelas nos-
nados a perambular pelas ruas abandonados, sas instituições e nossas escolhas insensatas.
ou, a vegetar em manicômios em longas inter-
nações. Foram criados serviços capazes de ser
uma referência institucional permanente de cui-
dados (os CAPS), serviços residenciais terapêu-
ticos e outros serviços ambulatoriais de referên-
cia. Foram incorporados ao campo da saúde
cuidados e procedimentos tais como renda (o
auxílio Reabilitação De volta pra casa, Lei Fede-
ral), trabalho protegido (Programa geração de
renda e trabalho, MS/MT), lazer assistido (Pon-
tos de cultura, MINC/MS) e outras formas de Agradecimentos
intervenção intersetorial ampliada. É constituí-
da uma rede de atenção psicossocial que diz res- Alfredo Schechtman, Sonia Barros e Maria das
peito à própria existência do sujeito assistido8. Graças Miranda Ribeiro.
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