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63 | 2012
A transição democrática portuguesa
Tiago Moreira de Sá
Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/lerhistoria/384
DOI: 10.4000/lerhistoria.384
ISSN: 2183-7791
Editora
ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa
Edição impressa
Data de publição: 1 Setembro 2012
Paginação: 109-125
ISSN: 0870-6182
Refêrencia eletrónica
Tiago Moreira de Sá, « «Quando Portugal contou para a América». Os Estados Unidos e a transição
democrática portuguesa », Ler História [Online], 63 | 2012, posto online no dia 09 abril 2015,
consultado no dia 03 maio 2019. URL : http://journals.openedition.org/lerhistoria/384 ; DOI : 10.4000/
lerhistoria.384
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Internacional.
Ler história | N.º 63 | 2012 | pp. 127-141
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Thiago Carvalho
| Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), CEHC-IUL
Introdução
Este artigo propõe-se analisar as relações luso-brasileiras a partir de
quatro acontecimentos concomitantes: a revolução e a transição para a
democracia em Portugal; o princípio da liberalização política no Brasil; a
descolonização em África. O lapso temporal incide no período que vai de
abril de 1974 a dezembro de 1976 e a sua escolha decorre da perceção de
que os quatro processos acima enunciados conduziram à revisão dos modelos
de inserção internacional português e brasileiro, bem como do padrão de
relacionamento entre os dois países.
O ponto de partida deste estudo é o impasse em que se encontravam as
relações luso-brasileiras nas vésperas do 25 de abril, decorrente, em grande
parte, das divergências existentes entre Lisboa e Brasília quanto à questão
colonial portuguesa. De seguida, examinaremos como a revolução repercutiu
nas relações bilaterais e em que medida a atuação da diplomacia brasileira
influenciou o processo de descolonização e a consolidação dos setores polí-
ticos moderados em Portugal. Por fim, avaliaremos se a mudança de regime
e a progressiva institucionalização da democracia conduziu a alterações no
padrão de relacionamento entre ambos os países.
1 Gonçalves, Williams da Silva, O Realismo da Fraternidade: Brasil – Portugal, Lisboa, ICS, 2003, p. 107.
2 Saraiva, José Flávio Sombra, O Lugar da África. A Dimensão Atlântica da Política Externa Brasileira (de 1947 a
nossos dias), Brasília, Universidade de Brasília, 1996, pp. 98-118.
3 «Relatório sobre as relações luso-brasileiras produzido pelo MNE, de 22 de junho de 1969, pp. 1-25», PEA confi-
dencial 16, n.º 337, AHDMNE.
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4 Oliveira, Pedro Aires, «A Política Externa», in A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-
-1974), coord. Fernando Rosas e Pedro Aires Oliveira, Lisboa, Editorial Notícias, 2004, pp. 302-303.
5 A estratégia de diversificação dos laços económicos e políticos, proposta pelo Pragmatismo Responsável, atingiu
os seus objetivos. Por um lado, alcançou níveis inéditos de internacionalização da economia, colaborando para o
projeto nacional-desenvolvimentista. Por outro, redimensionou o âmbito da política externa brasileira que avançou para
espaços até então secundarizados, propiciando a médio prazo uma inserção internacional mais ampla e autónoma
para o Brasil. Ver: Cervo, Amado Luiz e Bueno, Clodoaldo, História da Política Exterior do Brasil, Brasília, UNB,
2008, 3.ª ed., pp. 397-425.
6 «Relatório sobre as relações Brasil-Portugal, enviado pelo MRE, Mário Gibson Barboza, ao Presidente Garrastazu
Médici, de 22 de janeiro de 1974, pp. 1-45», AAS mre/ rb 19740523, Pasta III – A 1 (Anexo), CPDOC/FGV.
7 «Relatório sobre os principais problemas de natureza política, cultural e económica atualmente pendentes nesta
embaixada, enviado pela Embaixada de Portugal em Brasília ao MNE, de 9 de maio de 1974, pp. 1-7», PEA 31/1974,
n.º 337, AHDMNE.
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8 AHDMNE – PEA 31/1974, n.º 337, Jornal de Brasília, 6 de junho de 1974, sem página.
9 «Visit of general Galvão de Melo to Brazil, telegrama enviado pela embaixada dos EUA em Brasília ao Departamento
de Estado, de 24 de junho de 1974, pp. 1-8», NARA, Document Number: 1974Brasil04584.
10 Telo, António José, História Contemporânea de Portugal, Lisboa, Presença, vol. I, pp. 43-45.
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11 «Brazil recognizes Guinea – Bissau, telegrama enviado pela embaixada dos EUA em Brasília ao Departamento de
Estado, de 20 de julho de 1974, pp. 1-3», NARA, Document Number: 1974Brasil05392.
12 AHDMNE – PEA 31/1974, n.º 337, Jornal de Brasília, 23 de julho de 1974, sem página.
13 AHDMNE – PEA 31/1974, n.º 337, Estado de São Paulo, 20 de julho de 1974, sem página.
14 «Relatório do MRE sobre a descolonização dos territórios africanos sob Administração portuguesa, novembro de
1974, pp. 1-4», AAS mre/rb 19740523, Pasta II-4, CPDOC/FGV.
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15 «Brazilian recognition of Guinea-Bissau, telegrama enviado pela embaixada dos EUA em Brasília ao Departamento
de Estado, de 29 de julho de 1974, pp. 1-4», NARA, Document Number: 1974Brasil05590.
16 «Sobre a organização do ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal e as relações luso-brasileiras, telegrama
enviado pela embaixada do Brasil em Lisboa ao MRE, de 23 de maio de 1974, pp. 1-2», AAS mre/ rb 19740523,
Pasta I-3, CPDOC/FGV.
17 Rodrigues, Luís Nuno, Spínola, Lisboa, Esfera dos Livros, 2010, pp. 491-528.
18 «Aerograma n.º 449, sobre a visita do Chanceler do Brasil a Portugal, de 21 novembro de 1974, pp. 1-2», PEA
764/1973-74, n.º 337, AHDMNE.
19 A política externa «Pragmática e Responsável» assentava em três vetores: a política externa era entendida como
instrumento do desenvolvimento económico; a diversificação das relações diplomáticas pretendia aprofundar a
integração do país na economia mundial, ampliando a sua importância internacional e diminuindo as suas vul-
nerabilidades; a opção pela inserção autónoma e livre dos condicionalismos da Guerra Fria deveria maximizar a
capacidade de decisão do Estado face ao sistema internacional.
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Bloqueio político em Lisboa, avanço diplomático em África
Enquanto as relações com Lisboa atravessavam o seu momento de
maior tensão, o Governo brasileiro prosseguia a estratégia de aproximação
com a África. Uma das prioridades do Itamaraty era alterar a imagem do
Brasil no continente, dissociando-o do colonialismo português. Apesar do
reconhecimento da Guiné-Bissau, em julho 1974, ter sido recebido com
«entusiasmo» pelos diplomatas africanos credenciados em Brasília, não fora
suficiente para pôr fim às desconfianças dos movimentos de libertação quan-
to às reais intenções da ditadura militar brasileira23. Tão pouco assegurou
imediatamente ao Brasil uma posição mais favorável do que a portuguesa
junto a Angola e a Moçambique.
Se em princípios de 1975 as relações com Bissau estavam normali-
zadas, em parte devido à própria dinâmica da autodeterminação guine-
ense, o mesmo não ocorria em relação a Luanda e a Maputo. Faltava
ao Governo brasileiro dar prova inequívoca da sua nova política afri-
cana. Reconhecer a independência de Angola, sob a liderança de Agos-
tinho Neto, parecia ser a ocasião perfeita. Por um lado, a fragmentação
do poder político em Lisboa e a falta de operacionalidade dos meios
militares portugueses, assim como a limitada capacidade de intervenção
internacional da Administração Ford, geraram um vazio de poder em
África que foi explorado pelo Itamaraty. Por outro, apesar das reticências
quanto ao passado de apoio tácito ao colonialismo e à natureza do regime
brasileiro, havia recetividade por parte do MPLA em desenvolver relações
com o Brasil24.
A 11 de novembro de 1975, o Governo de Ernesto Geisel foi o pri-
meiro a reconhecer o MPLA como representante do novo Estado angolano,
adotando uma decisão de amplo significado geoestratégico. Em primeiro
23 Folha de São Paulo, 20 de julho de 1974, p. 4. A decisão brasileira foi interpretada pelos meios diplomáticos africanos
como uma «demonstração de independência da política externa» do Governo Geisel «frente a Portugal» e como
resposta à solicitação enviada pela a OUA ao Itamaraty, a 31 de maio de 1974, para que o Brasil exercesse maior
influência no processo de descolonização. A repercussão positiva que o reconhecimento de Bissau teve junto aos
membros da OUA foi salientada pelo Chanceler Azeredo da Silveira em correspondência com o Presidente Geisel.
Ver: «Informação Para o Senhor Presidente da República. Guiné-Bissau, de 6 de setembro de 1974, p. 1», EG.PR.
1974.03.00/2 – CPDOC/FGV.
24 O MRE recebeu da missão em Luanda várias indicações de que o MPLA seria recetivo às relações com o Brasil após
a transferência de poderes, tendo inclusive convidado o presidente Geisel a participar na cerimónia de independência.
Ver: «Aerograma n.º 507, conversa entre Azeredo da Silveira e Vasco Futscher Pereira sobre o reconhecimento do
MPLA e as suas repercussões, enviado pela embaixada de Portugal em Brasília ao MNE, de 11 de novembro de
1975, pp. 1-3», PEA 21/1975, n.º 320, AHDMNE.
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25 Segundo a embaixada dos EUA em Brasília, o chanceler Azeredo da Silveira recebera garantias do seu homólogo
moçambicano, Joaquim Chissano, de que em breve Maputo poderia estabelecer relações com o Brasil. Ver: «Reaction
to Brazilian recognition on MPLA as Government of Angola, telegrama enviado pela embaixada dos EUA em Brasília
ao Departamento de Estado, de 18 de novembro de 1975, pp. 1-4», NARA, Document Number: 1975Brasil09965.
26 «Approach to Brazil on question of Angolan recognition, telegrama enviado pela embaixada dos EUA em Brasília
ao Departamento de Estado, de 10 de novembro de 1975, pp. 1-4», NARA, Document Number: 1975Brasil09749.
De 1972 a 1977 o Brasil elevou mais de seis vezes as suas exportações para África, saltando de US$ 90.390 mil
para US$ 568.987 mil. Esse crescimento tornou-se ainda mais expressivo na primeira metade da década de 1980.
Em 1972, África tinha uma participação de 2,30% no total das exportações brasileiras, enquanto em 1981 – ano
do maior volume do comércio africano – o percentual elevou-se a 8,40%. Enquanto em 1971 15% das exportações
brasileiras para África eram de manufaturados, em 1978 esse índice atingiu 81%. Em contrapartida, as importações
provenientes da África concentram-se em produtos primários. Importa salientar que essas trocas decorreram com
poucos países africanos, com destaque para os produtores de petróleo, tendo o comércio com os demais um
comportamento irregular. Na segunda metade da década de 1970, oito países absorviam o equivalente a 80% das
exportações brasileiras para África, enquanto que cinco – Argélia, Líbia, Nigéria, Congo, Gabão e Angola – forne-
ciam cerca de 90% das exportações para o Brasil. A utilização do countertrade – pagamento parcial ou total de
mercadorias por meio de mercadorias – deslocou as compras brasileiras de petróleo do Médio Oriente e da América
Latina para África, posicionando a Nigéria e Angola – sobretudo a partir de 1984 – como os principais parceiros
comerciais do Brasil em África. Ver: Santana, Ivo, A Experiência Empresarial Brasileira na África (1970 a 1990),
Salvador, Ponto e Vírgula, 2004, pp. 57-69.
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27 Santana, Ivo de, «Notas e Comentários Sobre a Dinâmica do Comércio Brasil-África nas décadas de 1970 a 1990»,
Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 49 (2), 2006, pp. 120-129.
28 O Estado brasileiro desempenhou um importante papel no estreitamento dos vínculos políticos e económicos com
África. Tendo o propósito de facilitar as exportações brasileiras de bens de capital e produtos de consumo duráveis,
bem como o pagamento de serviços, o Governo brasileiro disponibilizou linhas de crédito a países como Angola,
Moçambique, Senegal, Costa do Marfim, Gabão, Guiné-Bissau, Níger, Mali, Togo, e Zaire. Outra medida relevante
foi o posicionamento do Brasil dentre os cinco maiores participantes – com cerca de US$ 20 milhões – no Fundo
Africano de Desenvolvimento, o que facilitava a presença das empresas brasileiras nos projetos financiados pelo
Banco Africano de Desenvolvimento ou por ambas as entidades. A criação de trading companies, privadas e esta-
tais, e de joint ventures, aprofundou as relações com os países supracitados e alargou-as a novos parceiros como
a Tanzânia, Mauritânia, Libéria, Marrocos, Sudão e Zimbábue. A partir de finais da década de 1970, e sobretudo
na primeira metade dos anos 80, estes mercados africanos abriram-se às empresas brasileiras de prestação de
serviços, especialmente àquelas voltadas para a construção de obras-públicas e de infraestrutura, exploração de
petróleo, projetos agrícolas e prospeção mineral. Os países africanos beneficiaram da transferência tecnológica e
de serviços brasileiros, e poderiam reduzir a sua dependência em relação aos tradicionais parceiros comerciais
no hemisfério norte. A aposta nas relações com o Brasil também tinha em consideração as baixas possibilidades
de Brasília ingerir na política interna africana, por falta de meios e por opção estratégica. Ver: Santana, Ivo, A
Experiência Empresarial Brasileira na África (1970 a 1990), Salvador, Ponto e Vírgula, 2004, pp. 68-75.
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29 Teixeira, Nuno Severiano, «O 25 de abril e a Política Externa Portuguesa», Revista de Relações Internacionais.
Lisboa: IPRI, n.º 1, 2004, pp. 9-10.
30 AHDMNE – PEA 21/1976, n.º 33/BRA/18, Jornal do Brasil, 18 de outubro de1976, p.10.
31 Expresso, 24 de janeiro de 1976, p. 2.
32 «Aerograma n.º 285, sobre as novas perspetivas nas relações luso-brasileiras, enviado pela embaixada de Portugal
em Brasília ao MNE, de 2 de fevereiro de 1976, p. 1». PEA 21/1976, n.º 33/BR/18, 1986, AHDMNE.
33 Carvalho, Do Lirismo ao Pragmatismo…, pp. 146-148.
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39 «Aerograma n.º 421, declarações do ministro da Relações Exteriores, Azeredo da Silveira, à imprensa brasileira
sobre a visita do primeiro-ministro Mário Soares ao Brasil, enviado pela embaixada de Portugal em Brasília ao MNE,
de 27 de outubro de 1976, p. 1», PEA 8/1977, n.º 33/BRA/9, AHDMNE.
40 Diário de Noticias, 17 de dezembro de 1976, p. 7.
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Conclusão
Com o 25 de abril as relações luso-brasileiras passaram por uma revi-
são profunda que lhes pretendeu atribuir novo significado. Terminava um
longo período de diferenciação de objetivos e de perceções estratégicas
entre Lisboa e Brasília, que se acentuou à medida que a questão colonial se
encaminhava para o seu fim, e que conduziu ao questionamento do padrão
de relacionamento bilateral. A revolução e a transição para a democracia
em Portugal, bem como o início da liberalização do regime autoritário no
Brasil, repercutiram na formulação das respetivas políticas internas e externas
e, por conseguinte, no modo como os dois países interagiam.