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(Organizador)

Samuel Lima da Silva


Erotismo em Literatura
Conselho Editorial Técnico-Científico Mares Editores e Selos Editoriais:

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Erotismo em Literatura
1ª Edição

Samuel Lima da Silva


(Organizador)

Rio de Janeiro
Mares Editores
2017
Copyright © da editora, 2017.

Capa e Editoração
Mares Editores

Os textos são de inteira responsabilidade de seus autores e não representam


necessariamente a opinião da editora.

Dados Internacionais de Catalogação (CIP)

Erotismo em literatura / Samuel Lima da Silva


(Organizador). – Rio de Janeiro: Mares Editores, 2017.
143 p.
ISBN 978-85-5927-037-2
1. Análise e crítica literária. 2. Literatura. 3. Erotismo. I.
Título.

CDD 801.95
CDU 82

2017
Todos os direitos desta edição reservados à
Mares Editores
CNPJ 24.101.728/0001-78
Contato: mareseditores@gmail.com
Sumário

A demarcação do erótico: vias para uma escrita da carne ........... 9

As flechas tortas de Eros na poesia gauche do poeta Carlos


Drummond de Andrade .............................................................. 13

De tinta, Gozo e arrepio: os muros da transgressão em Contos


d´escárnio-textosgrotescos, de Hilda Hilst ............................... 37

A possibilidade de amar: o erotismo como emancipação do corpo


feminino em Mia Couto .............................................................. 56

O triângulo pendular: subjacências homoeróticas em Grania, de


Lady Gregory, eExiles, de James Joyce ...................................... 86

A sexualidade feminina em Drácula de Bram Stoker ............... 107

O sublime e a sarjeta: a percepção do excesso no romance Eu


receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal
Aquino ...................................................................................... 124

Sobre os autores ....................................................................... 141


A demarcação do erótico: vias para uma escrita da

carne

As representações do sexo, do corpo, mais especificamente do


fenômeno textual do erotismo, têm sido matéria de estudo nas mais
diversas áreas do conhecimento. Neste livro, no entanto, os artigos
que compõem o dossiê temático ocupam-se da percepção do erótico
enquanto elemento textual, percebendo-o como uma chave de leitura
que pode ascender a diversos caminhos, desembocando na literatura
o seu ponto de excelência. Em cada capítulo, é possível perceber uma
observância estética que valora a sexualidade, concedendo-lhe e,
sabiamente, valorando o literário como território estético a ser
investigado com extrema circunspeção.
O sexo e suas concomitâncias vêm, em nossa
contemporaneidade, obtendo um considerável espaço para
discussões e pesquisas que, independentemente da envergadura
teórica e abordagem analítica, contribuem para uma maior visibilidade
deste tema em nosso contexto social e acadêmico. A literatura, por
sua vez, ocupa um lugar de destaque nesse mosaico, representando
um forte matiz que reverbera a prática do sexo de maneira a pô-la
como uma espécie de arte maior perante a sociedade. Em solo
literário, o sexo é matéria-prima para a discussão da própria condição
humana.
Dos sonetos luxuriosos de Pietro Aretino à volúpia criminal de
Sade, da contemplação idílica das belas adormecidas de Kawabata à
poesia feroz e carnal de Roberto Piva, há sempre uma preocupação em
representar o sexo como fenômeno de ilação para a compreensão da
sociedade e de sua forte indução ao comportamento dos indivíduos.
O véu que recobre as literaturas que representam a sexualidade vai
muito além da usual dúvida sobre o que é ou não erótico ou
pornográfico, mas sim tenciona uma representatividade do corpo que
supera os muros misóginos e patriarcais da sociedade, vertendo o
desejo e a relevância do corpo por meio do verbo, presentificando
uma escrita da carne.
Nesta perspectiva, este livro compõe-se de artigos que versam
sobre diversas estruturações do erótico, plasmado na subjetividade
literária. Com uma reunião de seis artigos, as pesquisas exploram o
sexo e sua textualização, percebendo os mecanismos de composição
estético-literários que presentificam o erotismo e sua singularidade
em determinados gêneros.
No primeiro capítulo que abre nosso dossiê, “As flechas tortas
de Eros na poesia gauche do poeta Carlos Drummond de Andrade” , a
pesquisadora Luciana Bessa Silva propõe uma comparação analítica
tendo como material dois textos de Drummond: Alguma poesia (1930)
e O amor natural   (1992), objetivando compreender uma espécie de
escrita de Eros, elucubrando a questão batailleana da experiência
interior. O texto é habilmente escrito, tencionando entrever o
(1979), o sentimento amoroso atravessa implícito ou explicitamente,
a poética drummondiana” (BARBOSA, 1987, p. 8-9).
A mudança diz respeito a uma linguagem despido de pudores
poéticos e se inscreve dentro de uma tradição filosófica e poética do
erotismo e da obscenidade. Nesse sentido, Sant’Anna foi enfático ao
declarar que

Este [O amor natural ] é um livro que perturbará


alguns, decepcionará outros e em outros mais
reafirmará a admiração por Drummond. [...] Para
os cultores de Drummond, no entanto, O amor
natural será a oportunidade para prolongar
análises feitas em sua vasta bibliografia e adicionar
novas leituras interpretativas num jogo de
espelhos onde à fantasia do texto se somam as
alucinações (objetivas?) dos críticos. (SANT’ANNA,
2002, p. 7).

O teórico tinha razão: a obra ‘perturbou’ e ainda ‘perturba’ os


leitores. Essa ‘perturbação’  já aparece exposta na capa 23 da décima
primeira edição da referida obra. A capa traz um homem idoso.
E o conteúdo do livro? O que une a capa ao conteúdo? Não
temos, aqui, um poeta melancólico e enclausurado em sua dor que ao
pintar seu autorretrato declarou ser “[...] sério, simples e forte./ Quase
não conversa./ Tem poucos, raros amigos/ o homem atrás dos óculos
e do bigode” (OC, p. 5), mas um poeta vibrante, pulsional, libidinoso.

2
 No livro consta que a concepção da capa foi de Pedro Augusto Granã Drummond,
neto do poeta.
Além disso, o contexto em que o poeta escreveu tais versos é
completamente diferente daquele que tínhamos na década de 30.
A década de 60 foi marcada pelo surgimento da pílula
anticoncepcional e contribuiu para a emancipação feminina. Essa
liberdade teve consequências políticas, sociais, educacionais e
econômicas. As mulheres passaram a ser (mais) vistas, ouvidas e
respeitadas. Todavia, isso mudou rapidamente. Os ciúmes e a
possessividade prevaleceram sobre a liberdade sexual, a guerra entre
os sexos tornou-se mais acirrada, as mulheres se mostraram mais
disponíveis para o sexo sem compromisso. Ainda nesse período, a
indústria pornográfica, que sempre existiu, saiu do limbo e passou a
estar disponível 24 horas por dia na internet, na televisão ou mesmo
nas revistas.
O amor, “palavra essencial”,  na poesia drummondiana está
transvestida de uma excessiva eroticidade como podemos ver em
palavras como “bundas”, “vulva”, “nádegas”, “púbis”, “clitóris” etc.
Em O amor natural, cujo título “dessacraliza o amor de forma
radical”,  (SILVA, s.d, p. 8) Drummond une corpo e alma como
observamos nos versos “Amor, pois que é palavra essencial” (OC, p.
1365)

Amor - pois que é palavra essencial


comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,


fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu contemplados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.
Integração na cama ou já no cosmo?[...]

Silva (s.d), chama a atenção para contradição do poema de


abertura da referida obra, que tem o foco no termo “amor”, mas, na
verdade, descreve o ato sexual.
Na primeira estrofe, utilizando-se de um vocativo reforçado
pelo travessão, o poeta chama o amor para que o conduza e tome
parte de sua “canção”. O amor deve reunir “alma e desejo”, expressão
metafísica do corpo para em seguida reunir “membro e vulva”, a
expressão física. Todavia, na tradição cristã, o corpo “membro e vulva”
é lugar de pecado. Somente a elevação da alma fará com que
cheguemos a Deus. Mas o poeta questiona essa concepção quando
pergunta: “Quem ousará dizer que ele é só alma? ”. “O corpo noutro
corpo entrelaçado...” gera prazer, “até desabrochar em puro grito/ de
orgasmo” - momento em que o prazer da excitação sexual atinge o
máximo de intensidade. Na terceira estrofe, há a confirmação do ideal
platônico de que a alma precede o corpo e o amor pretende atingir um
plano transcendental. Para o sujeito poético a perfeição só se justifica
pela união corpo/alma, ou seja, “dois em um”.
Duas temáticas estão presentes nos versos acima: choque
social e amor. O choque social diz respeito a ousadia no tratamento da
linguagem, que o poeta, inclusive, já havia demonstrado em sua obra
de estreia, Alguma Poesia. Contudo, expor um poema mais direto,
mais íntimo, mais erótico a leitores desacostumados e/ou puritanos
causou certo estranhamento. De modo geral, “O  que se passa na
cama/ é segredo de quem ama” (OC, p. 1368). Ou seja, não pode ser
verbalizado para o conhecimento de terceiros. É um tabu – cuja dupla
função é controlar o profano; preservar o sagrado. Isso só será possível
quando os que amam forem silenciados “entre o lençol e a cortina/
ainda húmidos de sémen...” (OC, p. 1368). Vale ressaltar que às vezes
não dá tempo chegar na cama. Para esse tipo de amor “ O chão é cama
para o amor urgente/ amor que não espera ir para a cama./ Sobre
tapete ou duro piso, a gente/ compõe de corpo e corpo a úmida
trama” (OC, p. 1374)
Em O Amor Natural, o sexo aparece nas suas mais diversas
manifestações, seja através da negação do sexo “A moça mostrava a
coxa” (OC, p. 1369), seja pela realização sexual genital “O que passa na
cama” (OC, p. 1368), seja pela realização sexual oral “A língua lambe”
(OC, p. 1375), seja pela realização sexual anal “Quando desejos outros
é que falam” (OC, p. 1379), seja pela incitação à masturbação “À meia-
noite, pelo telefone” (OC, p. 1380), ou pela (re)memoração do sexo
que causa prazer “No pequeno museu sentimental” (OC, p. 1383).
Em suma, a concepção amorosa presentificada em Alguma
Poesia  difere de O Amor natural.  Conforme Barbosa (1987, p. 25)
nessa obra "o amor desencontro/desencanto transmuta-se, na
maioria dos casos, em encontro/satisfação, reduzindo ou eliminando
o humour e a ironia".
Dumoulié (2005, p. 83) declarou que “O cristianismo significou
a catástrofe do desejo”.  Além do desejo, a libido e o erotismo.
Subversivo e poderoso, o erotismo nos permite vivenciar experiências
múltiplas seja na vida ou na arte.
Cantado em prosa ou em verso, a eroticidade sempre esteve
presente na poética drummondiana. Nas obras iniciais, de maneira
mais velada; nas finais, de maneira mais escrachada, como é o caso de
A paixão medida  (1980), Corpo  (1984), Amar se aprende amando
(1985), Amor sinal estranho (1985) e O amor natural (1992).
O amor, ‘palavra essencial’, cantado em suas várias dimensões
e manifestações, paternal, fraternal, humanitário, solidário, erótico,
na concepção drummondiana, também não é puro, idealizado,
romântico, desprovido de sexo, à distância, ou seja, não é platônico. É
um sentimento caracterizado por sua completude, pois envolve
‘corpo’ e ‘alma’. É aristotélico, porque se trata sentimento de seres
imperfeitos.
Portanto, conforme Sant’Anna

Está na hora de o erótico (ou pornográfico?) fazer


parte natural da obra do poeta[...]Afinal, há alguns
milhares de anos que amamos desvairadamente de
todas as formas registradas ou não no Kama Sutra
e nos murais de Pompeia” (SANT’ANNA, 2007, p.
14).

O poeta gauche tinha razão: “Sejamos pornográficos”.


Referências

ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova


Aguilar, 2002.

 ______. Antologia poética (organizada pelo autor). 57ª edição.


Editora Record. Rio de Janeiro, 2006.

 ______. Erotismo - poesia e psicanálise. Folha de S. Paulo, caderno


Ilustríssima, em 08 de julho de 2012. Entrevista concedida a Marcelo
Bortolloti (Rio de Janeiro). Disponível em:
http://www.elfikurten.com.br/2012/07/carlos-drummond-de-
andrade-entrevista.html. Acesso em 23/06/2017.

BARBOSA, Rita de Cássia. Poemas eróticos de Carlos Drummond de


Andrade. São Paulo: Ática, 1987.

BATAILLE, George. O erotismo na experiência interior. In: O erotismo.


Tradução Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 35-
49

BRANCO, Lúcia Castelo. O que é erotismo. São Paulo: Editora Ática,


1985.

DUMOULIÉ, Camille. O desejo do homem. In: O desejo. Petrópolis:


Vozes, 2005, p. 7-145.

DUBOIS S. Jean. Dictionnaire de langue française: Lexis. Larousse.


1994.p. 881-882

GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da Mitologia Grega. São Paulo, Cultrix,


INL, 1972, p. 140.

HOUAISS, A. “Drummond”. In: Drummond mais seis poetas e um


problema. Rio: Imago, 1976.
LINHARES FILHO. O amor e outros aspectos em Drummond.
Fortaleza. Editora: UFC, 2002.

PLATÃO. O Banquete. Diálogos. Bauru/ SP: Edipro, 2010, p. 33-107.

SANSEVERINO, Antônio Marcos V. O poeta e o crítico, diálogo entre


Drummond e Candido. Revista Letras, Curitiba, n. 74, p. 101-116,
 jan./abr. 2008. Editora UFPR.

SANT'ANA, Affonso Romano de. O erotismo nos deixa gauche? In:


ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor natural. 11ª ed. Ed. Record:
Rio de Janeiro. 2007.

SILVA, C.R. “Falo gauche do poeta: a cartilha amorosa de


Drummond". Em: A língua de Eros: ensaios de literatura e outras
artes. Livro no prelo.

TELES, Gilberto Mendonça. Drummond: A Estilística da Repetição. 2ª.


Ed. Rio de janeiro, José Olympio, 1976.
De tinta, Gozo e arrepio: os muros da transgressão
em Contosd´escárnio-textosgrotescos, de Hilda Hilst

Natália Marques da Silva 3

(IX)
E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

(Hilda Hilst, Do desejo)

Considerações iniciais

Este trabalho se originou de uma tentativa. Tentativa, essa, de


compreender os limites daquilo que Hilda Hilst chamou de
bandalheiras. Tentativa, também, de adentrar ao universo das
palavras, especialmente, no universo da escrita erótica hilstiana, que
coloca a sexualidade e a representação do corpo em perspectiva. A
pesquisa se desenvolve a partir de uma averiguação acerca do tema
do Erotismo configurado na narrativa Clódia, que integra a obra Contos

3
Graduada em Letras pela Universidade do Estado de Mato Grosso  –  UNEMAT,
campus de Tangará da Serra.
d’escárnio/textos grotescos, segundo volume da chamada tetralogia
obscena, publicada em 1990.
De início, a narrativa de Clódia  já coloca o leitor perante uma
situação um tanto peculiar: os (des)caminhos do erótico e do
pornográfico sendo postos em consonância. Contudo, não é a
pornografia e suas concomitâncias que nos chamam a atenção neste
conto, embora tal narrativa esteja, também, situada nesse pólo, mas
um apelo voraz à carne, ao sexo, à transgressão. Justamente por essa
perspectiva é que nos deteremos, aqui, da questão que percebemos
como erótico-transgressor, isto é, de um discurso que presentifica
algum tipo de violação do corpo em uso.

O arredio se fazendo ordeiro: os muros da transgressão


Em Contos d´escárnio –  textos grotescos, temos como narrador
e personagem central, Crasso, que, como o próprio nome já indica, é
um personagem grosseiro e impudico. Aos sessenta anos, cansado de
ler tanto lixo, decide escrever seu próprio livro, narrando sobre as suas
memórias sexuais: “É tanta bestagem em letra de forma que pensei,
porque não posso escrever a minha?” (HILST, 2002, p. 14). Dessa
forma, decide revelar para os seus possíveis leitores as relações
sexuais que mais marcaram a sua vida, da forma mais anárquica
possível. E, ao optar por tal escolha, recusa-se a narrar de forma
ordeira, pretendendo escrever à maneira de versos chineses,
escolhendo não seguir um estilo formal durante sua escrita, sempre
rejeitando marcações temporais e opondo-se a qualquer expectativa
de retomada da tradição “início-meio-fim”.

A verdade é que não gosto de colocar fatos numa


sequência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão
cheios de histórias como começo, meio e fim.
Então não vou escrever um romance como... E o
Vento Levou ou Rebeca, Os Sertões e Ana Karenina
então nem se fala. Os verbos chineses não
possuem tempo. Eu também não. (HILST, 2002, p.
14).

Ao longo da narrativa o leitor se depara com uma total


anarquia de gêneros, com o narrador-protagonista envolvendo, em
seus escritos, alguns elementos, quais sejam: poemas, o romance
memorialístico, excertos filosóficos, contos e mini-contos sobre as
personagens, crítica literária juntamente com piadas e paródias,
alusões políticas com alto teor de ironia e sarcasmo, bem como
diálogos soltos e intercalados no meio do texto. Tudo isso construído
de forma desordenada e híbrida. Dentre as diversas experiências
sexuais, Crasso se relaciona com mulheres elitistas, cultas e poetas,
porém, somente interessadas em dinheiro: “Olhares mis teriosos,
pequenas citações a cada instante [...], mas como adoram o dinheiro
as cadelonas!” (HILST, 2002, p.18). Também o narrador se relaciona
com outras personagens peculiares, tais como Josete, personagem
apaixonada por Ezra Pound, que tatua ao redor do ânus pequenas
damas em homenagem a um poema de seu ídolo. E, finalmente,
Clódia, ou também a lambe-cona, personagem sobre a qual
deteremos atenção.
Clódia é a quinta personagem inesquecível que se envolve
sexualmente com Crasso, conhecendo-o em uma igreja, enquanto
pensa sobre “o pau e a vida”. Museóloga e artista, pinta vaginas de
todas as cores, tamanhos e texturas, sendo através desse encontro
fortuito, em que o sagrado e o profano se misturam, que os dois se
tornam amantes por um longo período.
Segundo os estudos de Georges Bataille (1987, p.15), “somos
seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente numa
aventura ininteligível”, entretanto, temos a consciência de que somos
frutos de uma continuação anterior e por isso almejamos retornar
para tal estado. Essa busca pela continuidade perdida, a totalidade dos
seres, de acordo com a concepção batailleana, é o próprio erotismo,
que se manifesta em três formas - erotismo dos corpos, dos corações
e o erotismo sagrado - que trazem em questão a substituição do
isolamento do ser, de sua descontinuidade por um sentimento de
continuidade profunda. Em Clódia é possível perceber que a
representação das práticas sexuais e do uso do corpo como território
de prazer, faz-se calcada no erotismo dos corpos, principalmente no
que diz respeito sobre a violação dos corpos e da carne, bem como os
interditos e as transgressões que envolvem o prazer do gozo sexual.
A relação de Crasso e Clódia constrói-se em um ambiente
altamente transgressor e tal transgressão perpassa por toda a
narrativa hilstiana. Ainda na esteira de Bataille (1987), entendemos
por transgressão qualquer ato que se rebele contra as imposições
organizadas pelo mundo do trabalho e pela sociedade que vigia e pune
aqueles que não se adéquam as regras vigentes. Tais restrições e
imposições são assim denominadas de interditos, isto é, um conjunto
de regras que define a vida social. Segundo o autor, a transgressão só
é possível com base no interdito: ela o ultrapassa e o completa, e,
deste modo, traz preposições consensuais, de modo que haja a
possibilidade de transgredir o controle da violência, construído pela
modernidade, pelo discurso moral e por todas as manifestações que
recusam o corpo e as disposições que dele possam emergir e exceder
através do erotismo.
Um cenário propício para que a transgressão e suas formas
possam se manifestar está no local do primeiro encontro dos
personagens: a igreja. A imagem provocante da igreja, por sua vez, não
aparece por acaso na narrativa: ela ocorre em um momento de tédio
e vazio, numa busca por explicações e sentido existenciais, mais
especificamente quando o narrador faz uso da transgressão,
adentrando num ambiente considerado sagrado, debochando e
proferindo apelos contra as instituições católicas. O narrador subverte
a lógica do silêncio, da confissão e da oração, passando a proferir
insultos e críticas às relações de poder pré-estabelecidas na sociedade,
e, também, aos interditos que são impostos ao agirmos com certa
conformidade.
 –  não passa de uma mediação para o vínculo entre dois homens,
sacramentado por uma homenagem com foro de declaração de amor.
O caso em tela i) ilustra como os vínculos homossociais, ainda
que balizados pela hostilidade, dão-se na tênue fronteira com o
homoerotismo; ii) deixa entrever a coadjuvação da mulher em
triangulações amorosas nas quais, aparentemente, ocupa posição
central; e iii) evidencia a recursividade da mesma no estabelecimento
de coalizões entre homens e, por conseguinte, na perpetuação do
androcentrismo. Norteado por esses três pontos cardinais, este
capítulo empreende uma leitura das peças Grania, de Lady Gregory, e
Exiles, de James Joyce, examinando, à luz das teorizações de Lévi-

Strauss (1949), Girard (1961), Rubin (1975) e Sedgwick (1985), como


ambos os escritores, contemporâneos entre si, problematizaram em
suas respectivas obras questões de gênero e sexualidade que eram
prementes no contexto histórico de sua criação literária.

Inimigos íntimos
Para efeito das discussões que pretendo tecer, importa
ressalvar que, longe de circunscrito à (busca pela) relação sexual, o
erotismo, semanticamente análogo à libido, refere-se aqui à pulsão
rumo ao Outro, expressa por meio tanto da ternura quanto da
hostilidade, uma vez que ambos os afetos, se bem que antitéticos, têm
como força motriz em comum a função unificadora de Eros. Cumpre,
ainda, discriminar dois conceitos que tendem a ser tomados
indevidamente um pelo outro, quais sejam, o homoerotismo,
concebido neste trabalho como um impulso de união intragênero, e a
homossexualidade, concebida enquanto categoria identitária
engendrada pela economia taxonômica do discurso médico vitoriano.
Interessa, finalmente, sublinhar que dessa distinção conceitual
decorre que o desejo homoerótico não necessariamente enquadra o
desejante como homossexual ou o faz identificar-se como tal, uma vez
que esse desejo pode exprimir-se no ato mesmo da ratificação da
heteronormatividade  –  haja vista o modo como, no contexto de
deflagração da Primeira Guerra Mundial, um ideólogo militarista
erotizava o corpo-a-corpo entre rivais ao ponto de idealizar uma
situação de extremo risco de morte como uma experiência de vida
intensa:

Pode-se, com efeito, admitir que há um certo tipo


de excitação que nada além de uma luta real pode
produzir. Permanecer tentando matar um homem
que, ao mesmo tempo, está tentando matá-lo é
uma experiência bastante singular e, sem dúvida,
produz horas repletas de vida muito intensa.
Provavelmente, existem em todos nós profundos
instintos animalescos que não podem encontrar
satisfação completa em qualquer outra coisa
(GRAY, 1915, p. 12-13; tradução minha 8).

Numa matriz cultural heterocêntrica, na qual o afeto entre


homens é rigidamente controlado por tecnologias disciplinares as mais

8
 Todas as traduções de citações em língua estrangeira são de minha autoria.
diversas, a expressão homoerótica não raro é escamoteada sob os
auspícios da violência, que não só preserva como potencializa a
virilidade do sujeito que a pratica e ainda encerra, subliminarmente às
investiduras hostis, uma intimidade mais intensa do que outras formas
de afeto. De fato, a agressão física não passa, por vezes, de uma
camuflagem para a expressão do desejo de proximidade, tais como na
violência em regimes de confinamento homossocial, que
frequentemente não prescinde de abuso sexual, e, de modo mais sutil,
nas brincadeiras agressivas, peculiares à sociabilidade masculina, que
franqueiam aos homens o contato corporal entre si sem incorrer em
infração dos protocolos heteronormativos.
Empenhada em propugnar a hombridade dos irlandeses em
face da castração econômica, política e cultural decorrente de uma
experiência colonial mutiladora, a literatura vinculada ao nacionalismo
cultural irlandês é prolífica em exemplos de erotização de vínculos
homossociais aparentemente fincados na rivalidade, tal como aquele
protagonizado por Cuchulain, herói juvenil reabilitado pelos
nacionalistas como epítome da virilidade nativa. Segundo a mitologia
céltica, esse guerreiro, dotado de formosura tal que em certo episódio
os adversários não ousaram feri-lo graças à sua beleza ser
“convincente  o bastante para converter o ódio de um inimigo em
amor” (CASSIDY, 1922, p. 32), viu-se forçado a lutar contra seu grande
companheiro Ferdiad. Em um duelo que se estendeu por quatro dias,
“[t]ão rente era a luta [...] que suas cabeças se encontravam em cima,
seus pés embaixo e suas mãos no meio” (GREGORY, 1903, p. 238). A
paixão com que ambos se atracavam exemplifica como a violência
física, embora consagrada como signo de masculinidade
heteropatriarcal, tem um potencial homoerótico singular, uma vez
que o contato corporal satisfaz o impulso de união em que se pauta o
erotismo. Também a luta armada, em que “[c]ada qual permanecia
atirando no outro com lanças desde o meio-dia até o cair da tarde”
(op. cit., p. 232), revela como a face unificadora de Eros é favorecida
pela arma, capaz de penetrar e violar o corpo do adversário. Apesar de
obrigados a lutar um contra o outro, Cuchulain e Ferdiad exprimiam
seu afeto mútuo sob os ritos protocolares do duelo, tal como quando,
ao final de cada dia de combate, trocavam beijos e afagos: “Cada qual
veio junto ao outro, colocou suas mãos em volta do pescoço do outro
e deu-lhe três beijos” (op. cit., p. 232). Em um código de masculinidade
heterocêntrico no qual, de um lado, o afeto entre homens é
interditado e, de outro, a agressividade entre os mesmos homens é
investida como índice de virilidade, esse episódio mítico ilustra a
inscrição da violência como um elemento estruturante do desejo
homoerótico enquanto forma de expressão culturalmente
sancionada.

O triângulo invertido
O intrincado liame entre rivalidade e homoerotismo se torna
mais complexo quando acrescido de um terceiro elemento, a mulher,
que na injunção falocrática ocidental tem figurado, desde a literatura
cavalheiresca ao cinema hollywoodiano, como “prêmio”  em duelos
entre homens hierarquicamente superiores àquela que, no final das
contas, será possuída por um deles. Nessa contenda, ambos os rivais
se situam, numa escala valorativa, em posição superior à mulher
amada, pois os homens são agentes mesmo quando em posição
adversa na disputa, enquanto a mulher, destituída de agência porque
relegada à condição de expectadora, é inferiorizada não obstante sua
posição estatuária aparentemente favorável. 9
Esse paradoxo, no qual o elemento aparentemente central
ocupa, de fato, uma posição periférica tem sido problematizado, sob
diferentes pontos de vista, tanto por antropólogos como Lévi-Strauss
(1949) e Rubin (1975) quanto por críticos literários como Girard (1961)
e Sedgwick (1985). Em trabalho pioneiro acerca das estruturas
elementares de parentesco, Lévi-Strauss (1949) desconstrói a acepção
convencional de matrimônio ao observar, em sociedades patriarcais
tradicionais, que a aliança estabelecida pelo casamento não se dá
entre um casal, mas entre grupos de homens sob mediação da mulher

9
 Tal não ocorre quando, inversamente, duas mulheres duelam pelo amor de um
homem. Nos enredos de folhetins melodramáticos, por exemplo, não raro mulheres
em posições assimétricas nas relações de poder se digladiam pelo amor do herói,
incitando o público leitor/expectador (composto majoritariamente por mulheres) a
se identificar com aquela em desvantagem e torcer pelo seu triunfo: ser escolhida
pelo galã, investido da prerrogativa de eleger como sua a que se provar digna de seu
amor, como nas popularíssimas telenovelas mexicanas Maria do Bairro e  A
Usurpadora
por meio da exogamia. Uma vez que do parentesco depende a
organização societária, assegurada pelo casamento e pela
descendência, a mulher, reduzida à condição de commodity  investida
de valor de troca, não é um dos parceiros no enlace, mas, antes, um
bem negociado entre os homens de ambas as famílias, estes sim
parceiros entre si.10
Enquanto o antropólogo considera a comodificação da mulher,
porém não discute devidamente sua subalternização nesse arranjo
social, Rubin (1975), sob um viés feminista, atenta para as relações de
poder aí imbricadas e identifica que o heteropatriarcado se institui e
se mantém por força do “tráfico de mulheres” cuja permutabilidade
instaura e solidifica coalizões entre homens, favorecendo o
empoderamento destes e a subordinação daquelas. Se no regime
patriarcal a heteronomia da mulher é assegurada pela sua
comodificação e mercantilização, as relações de poder se estabelecem
entre os homens que as trocam entre si, despojando-as das esferas da
economia política e da política econômica e, portanto, do direito à
negociação nessas relações.
Já no campo literário, Girard (1961), ao analisar as estruturas
de poder em triângulos amorosos consubstanciados em narrativas do
gênero romance, observa que o enredo romanesco estabelece duas

10
 Como sugere a própria cenografia do cerimonial em que o pai conduz a filha (até
então sob sua guarda) ao altar e a entrega ao noivo, a quem confia a autoridade de
novo guardião, a mulher, ao se casar, é literal ou simbolicamente transferida de uma
propriedade a outra.
geometrizações distintas: enquanto numa estruturação mais simples
há uma linha reta que conecta diretamente o sujeito desejante ao
objeto de desejo, numa esquematização triangular um terceiro
elemento intercepta esse canal, desempenhando função mediadora.
Partindo da premissa de que o desejo é tomado de empréstimo a
outrem numa espécie de contágio no qual o sujeito escolhe
mimeticamente seu objeto por este ser desejado por um outro, o
crítico literário sustenta que o impulso rumo ao objeto também se dá
em direção ao mediador, pois mimetizar o desejo deste último pode
redundar na cobiça por ele próprio, na medida em que o objeto que
esse mediador deseja pode também desejá-lo e, neste caso, segue-se
um reposicionamento no qual o próprio objeto se institui como
mediador e este como alvo da cobiça.
À semelhança de Girard, Sedgwick (1985) sustenta que no
triângulo heteroerótico o laço que ata os rivais entre si é no mínimo
tão forte e intenso quanto aquele que une cada um deles ao objeto
cobiçado. Todavia, enquanto seu precursor passa ao largo das
determinações de gênero, deixando entrever que o gênero de cada
um dos atores pouco importa, pois pode ser mudado sem que se altere
a esquematização triangular, Sedgwick, em análise menos estrutural
do que cultural, não acredita que a rivalidade entre duas mulheres por
um objeto masculino manteria o mesmo jogo de identificação e
tampouco concorda que o desejo pela mulher decorra simplesmente
da admiração pelo mediador e da consequente emulação de seu
empoderamento dependente do homem, portador do falo, para sua
concretização. Tal busca é epitomizada pelo gesto em que toma a
coroa das mãos de Finn – que há muito a havia oferecido – em vez de
esperar que ele a coroe e, transgredindo os protocolos do amour
courtois, assume função proativa ao lhe pedir em casamento.

Em virtude de um romance extraconjugal que Lady Gregory


experienciou quando recém-casada, críticos como Coxhead (1961),
Kiberd (1995) e Murphy (2007) interpretam   Grania  em perspectiva
biográfica, estabelecendo analogia entre a autora e a personagem que
trocam um homem mais velho por um jovem sedutor e, no fim das
contas, regressam ao primeiro. Contudo, tal perspectiva induz a uma
leitura heterossexista que não atenta para o homoerotismo como
força estruturante dessa triangulação amorosa e à interpretação da
história como antirromântica  –  já que a relação triádica solidifica o
afeto entre os homens em detrimento da mulher  –, levando Coxhead
(1961), em exemplo patente desse heterossexismo, a afirmar que a
peça não é uma “história de amor”,  pois aqui o amor “é aquele de
homem para homem” (p. 145). Ora, ao tematizar o triângulo amoroso
sob um viés pró-feminista, sublinhando o estatuto da mulher no
circuito do desejo não como meta, mas como via, Lady Gregory
simultaneamente destaca sua marginalidade e lhe confere
centralidade como protagonista. Essa postura revisionista é visível já
no título da peça, em que a autora rompe com as versões precedentes
 – que a intitulavam Diarmuid and Grania, dando ênfase ao casal – ao
identificar a personagem como sem par  em um arranjo social no qual
a exclusão da mulher nas relações de desejo expressa
sinedoquicamente sua exclusão social.

Rivalidade e homoerotismo em Exiles, de James Joyce


O interesse de Joyce pelo trabalho de expoentes da sexologia
vitoriana, como Richard von Krafft-Ebing, Sigmund Freud e Havelock
Ellis, repercute na forma como o escritor traz à baila discussões então
prementes acerca da sexualidade (cf. TEAL, 1995). O homoerotismo,
presente de forma esparsa em Dubliners,  A Portrait of the Artist as a
Young Man e Ulysses, tem papel central no enredo de Exiles, embora

subliminarmente. Se bem que a peça ofereça diversas combinações de


triangulações amorosas13, a tríade nuclear envolve os protagonistas
Richard Rowan, escritor dublinense recém-retornado do exílio na
Itália, Bertha, com quem vive em regime de união estável, e o
 jornalista Robert Hand, que tenta seduzi-la.
Na geometria do triângulo amoroso, a mulher ocupa,
aparentemente, posição central e superior aos homens que lhe
disputam a atenção, mas, no transcorrer da trama, essa disposição
hierárquica assume configuração diversa. Em um ordenamento no
qual a posição sociojurídica da mulher dependia do cônjuge, o fato de
Bertha não ter o patronímico do companheiro e ser a única

13
 A esse respeito, ver Bauerle (1996).
protagonista cujo sobrenome não é mencionado evidencia seu não
pertencimento e, em última análise, seu não-lugar social. Desde a
mesma inicial R do prenome à carreira nas Letras, Richard e Robert
têm mais em comum um com o outro do que com Bertha, que, como
suposto alvo de desejo em comum, medeia a reaproximação entre
ambos, constituindo um nó que reata o vínculo entre os amigos de
longa data, rememorado com saudosismo por Robert: “Meu  Deus,
quando penso em nossas noites desenfreadas de tempos atrás  –
conversas toda hora, planos, esbórnias, farras…”  (JOYCE, 192114, p.
42). Na obliquidade com que Joyce trata o homoerotismo, as
reticências, ou os silêncios do texto, operam como atos de fala que
extrapolam a materialidade textual, como se na falta se presentificasse
algo inominável numa conjuntura histórica ainda sob impacto da
moral sexual vitoriana. Por seu lado, Richard se refere ao amigo por
meio de uma linguagem conjugal ao lembrar saudosamente o chalé
“para o qual tínhamos duas chaves, ele e eu. […] Onde costumávamos
passar nossas noites desenfreadas, conversando, bebendo,
planejando [...]. Noites desenfreadas; sim. Ele e eu juntos” (E , 57).
No decurso de uma contenda na qual os concorrentes desejam
mais um ao outro do que o prêmio em disputa, chama a atenção o
modo como o desejo homoerótico é incorporado na  mulher. Em
fantasia pigmaleônica, Richard se refere à companheira como sua

14
  Doravante o texto será referenciado pela abreviação E seguida do número da
página.
criação, considerando tê-la criado durante a estada na Itália, quando
tentou “dar a ela uma nova vida” (E , 84).15 É precisamente o estatuto
de obra-prima forjada pelo artista que assegura a Bertha seu
encantamento sobre Robert, que confessa ao rival: “Ela é [...] sua obra.
[...] E é por isso que eu também me atraí por ela. Você é tão forte que
me atrai, ainda que por meio dela” (E , 76-77). À semelhança dos
enredos romanescos nos quais Girard (1961) observa a determinação
da escolha da amada não tanto por seus predicados pessoais, mas,
sobremaneira, pelo fato de pertencer ao rival, o fascínio de Robert
pela criação não passa de um deslocamento do desejo pelo criador.
Em nota paratextual, Joyce (1991) orienta o leitor a interpretar
a peça como sadomasoquista ao defini-la como “um confronto entre
Marquês de Sade e Freiherr v. Sacher Masoch” (p. 172). De fato, ao se
eximir de orientar a companheira a assentir ou não ao assédio de
Robert, conferindo-lhe livre arbítrio, Richard renuncia ao pátrio poder
em postura crucial para a instauração do triângulo amoroso. Ao
transferir o direito de escolha à companheira em vez de impor sua
autoridade como pater familias e interditar a possibilidade de traição,
o escritor deseja que ela seja possuída pelo rival, ao qual confessa que
“no âmago do meu coração ignóbil eu ansiava por ser traído por você
e por ela” ( E , 88). De fato, longe de implicar uma perda, a traição lhe

15
 Essa fantasia é ainda mais flagrante nos rascunhos da peça, sobretudo quando
Richard afirma sentir-se “como se a tivesse carregado [...] no meu ventre” (apud
HENKE, 1990, p. 96).
proporciona gratificação erótica na medida em que a experiência
amorosa com a mesma mulher constitui um enlace simbólico com o
rival; donde sua confissão a Bertha: “Eu não consigo odiá-lo, já que os
braços dele te envolveram. Você nos uniu um ao outro” (E , 97).
Escrita numa conjuntura na qual o homoerotismo era
demonizado pela Igreja, patologizado pela medicina e criminalizado
pelo sistema judiciário, Exiles evidencia como a mediação da mulher
como suposto objeto de desejo franqueava aos homens a manutenção
de vínculos afetivos sob os protocolos da heteronormatividade. Nesse
sentido, é reveladora a nota explicativa em que Joyce (1991) afirma
que “[a] posse corporal de Bertha por Robert, repetida diversas vezes,
certamente colocaria em contato quase carnal os dois homens”, de
maneira que ambos seriam unidos “por meio da pessoa e do corpo de
Bertha”,  já que, enquanto homens, não poderiam “unir-se
carnalmente” um com o outro (p. 172). Portanto, os rivais cobiçam não
propriamente a amada, mas o que esta representa no campo do
desejo, isto é, o desejo do outro, pois seu corpo constitui menos uma
arena de disputa do que um ponto de encontro.

Considerações finais
Atentos às questões de gênero e sexualidade numa cultura
informada pela moral vitoriana, Lady Gregory e James Joyce
problematizam tanto o estatuto da mulher no estabelecimento e
manutenção de laços homossociais entre homens quanto as formas
sub-reptícias de expressão do desejo homoerótico constitutivo desses
laços. Embora localizem suas respectivas peças em conjunturas
históricas distintas, ambos convergem ao ressaltar a recursividade da
mulher em triangulações amorosas que a inscrevem como meio, não
como fim, bem como sua aparente superioridade na relação triádica
como um engodo que escamoteia sua subalternização. Assim, tratam
de questões cruciais para os estudos de gênero, tais como as formas
de desempoderamento da mulher, os limites entre a
homossociabilidade e o homoerotismo e os meios alternativos de
expressão homoerótica em um ordenamento social homofóbico.
De fato, tanto em Grania quanto em Exiles, no duelo entre dois
homens por uma mulher o vínculo mais sólido e intenso se estabelece
entre os primeiros, mas a varredura desta última para a margem das
dinâmicas de poder e desejo coincide com sua centralidade simbólica,
revelando como, numa matriz cultural heterocêntrica, por vezes a
instauração e manutenção de laços homoeróticos entre homens não
prescinde da mediação da mulher. Desse modo, ambas as peças
iteram o argumento de Sedgwick (1985) quanto à determinação do
gênero do participante para sua posição estatuária na esquematização
triangular e quanto ao componente homoerótico como catalisador
dessa esquematização.
Todavia, Lady Gregory e Joyce divergem no foco conferido às
relações de gênero e no nível de explicitação com que as abordam.
Menos interessada no vínculo homoerótico do que no não-lugar da
mulher no ordenamento social irlandês, a primeira, embora pouco
afeita ao feminismo, ressalta a proscrição da mulher nas dinâmicas de
poder e desejo; porém se esquiva de problematizar o vínculo
homoerótico ao simplesmente encerrá-lo com a morte de um dos
partícipes do triângulo. Já o segundo, favorecido, enquanto homem,
pela maior liberdade enunciativa, é mais inequívoco na exposição das
regras do jogo travado pela trindade amorosa e, além de expor
explicitamente a função mediadora à qual a mulher é relegada,
mostra-se arrojado na exploração do homoerotismo, demonstrando
consciência não apenas de sua ilegitimidade nos códigos de gênero
vigentes como também de sua expressão mediada pela fisicalidade da
mulher.
coexistência da mulher em relação ao homem, tendo este como seu
superior, reforçando, assim, a concepção de inferioridade feminina.
Tais representações do sujeito feminino podem ser analisadas
não somente na vida real como também na arte; neste caso,
especificamente, na literatura, considerando que a arte, por vezes,
consegue retratar a realidade em que vivemos, ao passo que nos
apresenta histórias capazes de despertar críticas inerentes a mais
profunda verdade sobre a essência humana.
Posto isso, objetivamos analisar como se apresenta a
sexualidade feminina em Drácula, clássico do escritor inglês Bram
Stoker, de modo que nos seja viável analisar o relacionamento entre
homens e mulheres e possíveis interpretações que competem a este
aspecto na trama, levando em consideração, ainda, o período em que
a obra foi lançada e a possível influência que os preceitos desta
sociedade possam ter ocasionado nos acontecimentos da narrativa.

A sexualidade na Era Vitoriana: a mulher e o seu lugar de


pertencimento
Denomina-se Era vitoriana todo o período em que a rainha
Vitória se manteve como a rainha regente da Inglaterra. Tal período
foi marcado pela ascensão da classe média, juntamente aos preceitos
morais ingleses e preconceitos que fomentaram a sociedade da época
(LINS, 2014, p. 20). Este período se estendeu de 1837, com a ascensão
da rainha Vitória ao trono, até 1901, com o então falecimento da
monarca.
Em História da sexualidade 1: a vontade de saber , Foucault nos
alerta para os preceitos competentes à sexualidade que nós
construímos, chamando atenção para as diferenças entre a franqueza
do século XVII, quando, segundo o teórico, as pessoas eram mais
sinceras, e “as coisas
“as coisas eram ditas sem reticência excessiva” (FOUCAULT,
excessiva” (FOUCAULT,
2007) e a austeridade e circunspecção do século XIX. Tais preceitos
foram atrelados à moralidade e, neste ponto, o teórico fez uma
analogia usando a sociedade vitoriana como viés para uma crítica às
concepções hipócritas que temos sobre sexo, uma vez que este foi um
período conhecido pela grande nuvem de opressão no que compete a
sexualidade.

Um rápido crepúsculo se teria seguido à luz


meridiana, até as noites monótonas da burguesia
vitoriana. A sexualidade é, então, cuidadosamente
encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família
conjugal a confisca. E absorve-se, inteiramente,
inteiramente, na
seriedade da função de reproduzir. Em torno do
sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a
lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma,
detém a verdade, guarda o direito de falar,
reservando-se o princípio do segredo. No espaço
social, como no coração de cada moradia, um único
lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e
fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta
encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os
corpos, a decência das palavras limpa os discursos.
E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente,
vira anormal: receberá este status e deverá pagar
as sanções (FOUCAULT, 2007, p. 9-10).

Com isso, o teórico chama atenção para a maneira como a


sexualidade foi reprimida no espaço social, reservando o sexo ao
espaço privado e salubre do lar, onde se encontra a família, instituição
instit uição
modelo para os indivíduos, capaz, neste momento, não somente de
 performar  os
 os princípios sexuais tidos como corretos, como também de
reger as “leis” da
“leis” da vivência humana no que concerne à sexualidade, de
modo que essa instituição passasse, neste momento, a delimitar a
maneira correta do indivíduo fazer uso da sua sexualidade.
Os preceitos da sociedade vitoriana foram moldados de forma
arbitraria (LINS, 2014, p. 20), de modo que a população se viu
estagnada em um extrato social no qual a sua conduta era
amplamente vigiada, atrelada a muitos fatores que controlavam e, até
mesmo, proibiam determinados comportamentos  – o
 – o que colaborou
para o aumento do senso de moralidade da época. Era esperado que
a Inglaterra transparecesse uma imagem de forte, sem falhas, que
servisse como exemplo para as outras sociedades da época (LINS,
2014, p. 20).
Com isso, apesar da mulher já ter garantido algumas
prerrogativas quanto a sua posição na sociedade perante os anos
anteriores, esperava-se dela, ainda, a manutenção de um
comportamento conciso, levando em consideração, também, que a
rainha Vitória estimava a harmonia no espaço doméstico,
prevalecendo, assim, a rigidez dos bons costumes prezados pela
sociedade vitoriana (LINS, 2014, p. 20), o que colaborava para o
processo de delimitação do papel do sujeito feminino na sociedade,
indo de acordo com os papéis de gênero pressupostos. Para Butler
(2016), tal ato é uma prática deliberada, posto que

Considerada coletivamente, a prática repetida de


nomear a diferença sexual criou essa aparência de
divisão natural. A “nomeação” do sexo é um ato de
dominação e coerção, um ato  performativo
institucionalizado que cria e legisla a realidade
social pela exigência de uma construção
discursiva/perceptiva dos corpos, segundo os
princípios da diferença sexual (BUTLER, 2016, p.
200).

Deste modo, como apresentado no excerto acima, o “ser


mulher”  se pauta em diversos atos performativos  que são
institucionalizados pela sociedade e que, para que um indivíduo seja
visto como pertencente a determinado sexo, este precisa
constantemente performar atos que o encaixem nesta posição. Posto
isso, a colocação de Butler sobre a  performance da sexualidade
esclarece o espaço destinado ao sujeito feminino na sociedade, indo
de encontro com os preceitos morais da sociedade vitoriana no que
compete ao lugar de pertencimento da mulher à luz dos princípios da
época.
Na próxima seção deste artigo, pretendemos analisar como a
sexualidade feminina se apresenta em Drácula, de Bram Stoker,
atentando para as características dos relacionamentos entre os
homens e mulheres na trama, bem como para os acontecimentos da
narrativa ligados ao sujeito feminino.

A sexualidade feminina em Drácula de Bram Stoker

“[...]É  tão natural pecar quanto viver” 


(Bram Stoker)

Drácula, de Bram Stoker, foi lançado em 1897 em forma de

romance epistolar, e conta a história do Conde Drácula, vampiro


centenário que vive na Transilvânia e está disposto a se mudar para
Londres; e para que tal fato aconteça, conta com a ajuda de Jonathan
Harker, advogado recém-formado que, ao passar dos dias, estranha o
comportamento do conde e passa a entender a sua verdadeira
natureza. O romance é um clássico da literatura inglesa e, juntamente
a O retrato de Dorian Gray  e O médico e o monstro, Drácula figura a
tríade dos romances góticos  fin-de-siècle.
Tornou-se um dos mais célebres trabalhos sobre vampiros na
literatura, com diversas adaptações para o teatro, cinema e televisão,
e, além de trazer à tona as características da narrativa gótica
decadente, Drácula  abarca os valores morais vigentes da sociedade
vitoriana, personificados nas performances das personagens do
romance. Posto isso, observamos como Stoker aplica tais preceitos às
personagens femininas, tal qual Mina Harker e sua melhor amiga, Lucy
Westerna, bem como às vampiras do conde, com as suas respectivas
participações na trama.

À minha frente, de pé num halo de luar, estavam


três jovens – três damas, a julgar por suas vestes e
suas caprichosas maneiras. Ao vê-las, acreditei
estar sonhando: embora se encontrassem contra a
luz da lua, elas não projetavam sombra alguma no
chão. As três de aproximaram de mim e, depois de
me observarem por alguns instantes, começaram a
conversar entre si, aos sussurros (STOKER, 2014, p.
106).

As três vampiras demarcam a primeira aparição do sujeito


feminino na trama quando aparecem para Jonathan Harker, e são
descritas como jovens muito bonitas, de grandes olhos penetrantes,
narizes aquilinos; lábios vermelhos e voluptuosos de dentes brancos e
brilhantes – características referentes a um caráter posto para seduzir
o herói da narrativa. Elas apresentam um comportamento que foge
dos padrões da época, fazendo alusão à prostituição e, apesar de estar
casado com Mina, Jonathan demonstra sentir atração pelas vampiras
(LINS, 2014, p. 26).
O personagem masculino assume, diante das três vampiras, um
papel essencialmente passivo (HINDLE, 2014, p. 21), havendo, deste
modo, uma inversão dos papéis de gênero nessa cena, onde as três
O sublime e a sarjeta: a percepção do excesso no
romance Eu receberia as piores notícias dos seus
lindos lábios, de Marçal Aquino

Samuel Lima da Silva19

DELÍRIO

O desejo revolvido
A chama arrebatada
O prazer entreaberto
O delírio da palavra
Dou voz liberta aos sentidos
Tiro vendas, ponho o grito
Escrevo o corpo, mostro o gosto
Dou a ver o infinito

(Maria Teresa Horta )

Prelúdio
Neste capítulo, propomos um percurso analítico no qual
averiguamos uma parte erótica específica do romance escrito por
Aquino, em que é possível perceber os mecanismos que compõem a
elaboração estética de sua protagonista. Eu receberia as piores
notícias dos seus lindos lábios apresenta uma estética na qual algumas

categorias presentes na construção da personalidade da protagonista,

19
 Doutorando do Programa de Pós-graduação strictu sensu em Estudos Literários,
UNEMAT, campus  de Tangará da Serra. Bolsista CAPES. Contato:
samuellds@live.com
Lavínia, sugerem uma bifurcação em sua própria condição de mulher,
mais especificamente de amante.
O romance, somos informados, narra a história do fotógrafo
Cauby, personagem que se envolve amorosamente com Lavínia,
esposa de Ernani, pastor evangélico de uma pequena cidade do estado
do Pará, local esse onde outrora havia incidido uma corrida em busca
de ouro. Narrado em primeira pessoa pelo próprio Cauby, a narrativa
se perfaz numa digressão memorialística que apresenta os fatos por
meio da experiência sofrida e arrebatadora de Cauby ao se relacionar
com Lavínia, ex-garota de programa, convertida ao evangelho pela
pregação de Ernani. São todos personagens que evidenciam uma
problemática do corpo, da religião, bem como do jogo entre
transgressão e sociedade, Deus e o Diabo.

As Lavínias  –  o deleite do sexo


De início e sob uma perspectiva panorâmica, é necessário que
compreendamos o que se entende por excesso neste estudo. Aqui, o
compreendemos como uma figura presente em todo o texto erótico,
contudo, podendo ser encontrada em demais tipos de textos, mas
sendo na erótica literária seu ponto de manifestação por excelência.
Não o pensamos como conceito, mas como um operador produtivo
que é delineado na narrativa, que desencadeia uma série de
dilapidações e desregramentos na diegese no qual está circunscrito.
Em estudo sobre a obra de Bataille, Luiz Augusto Contador Borges
esclarece que o excesso é uma força:

[...] que supera o que quer que seja, venha de onde


vier, de fora ou de dentro do homem. O excesso é
perpétuo devir. Nenhum discurso o contém,
nenhum saber o detém. Tal movimento responde
por si só se rende a si mesmo, numa relação de
forças em que a mais fraca sempre supera a mais
forte. Se há um limite para o excesso, existe sempre
a possibilidade de um excesso ainda maior poder
suplantá-lo, e assim por diante. A cada ato
excessivo supera-se um limite e ao mesmo tempo
se assinala outro, que via de regra é excedido
depois. (2012, p. 12).

Borges explica que o excesso é quase um fator de manutenção


humana, um ciclo vicioso que é enlaçado à existência do indivíduo,
sempre perpassando a sua relação com o meio que o cerca. Bataille
compreende o excesso  como uma “parte maldita”,  mais
especificamente como uma parcela existente e profundamente cara
aos limites humanos. Aqui, compreendemos o excesso, em solo
erótico-literário, como o desvio, uma bifurcação que sugere algo
incomum no ambiente em que o personagem está inserido.
A ensaísta Eliane Robert Moraes (2014), em palestra na
Universidade de Lisboa, esclarece o excesso como um desvio, como
algo que foge à rota habitual, por isso sua classificação como uma
operação simbólica ao invés de um conceito. De igual modo, não o
consideramos sinônimo de hipérbole, sentido óbvio do termo, mas sim
o dinamizamos como uma operação simbólica que está relacionada
com a construção arquetípica da protagonista criada por Aquino,
percebido na correlação desta com o erotismo pungente em toda a
trama.
Na plataforma narratológica em que se consolida a prosa de Eu
receberia..., a questão do erotismo está intimamente ligada à

interação entre os personagens principais, fazendo com que suas


atitudes sejam calibradas por meio do desejo incontrolável da carne,
da pele que toca e é sorvida pela boca ávida do amante. A forma como
o gênero romance absorve essa manifestação naturalista do desejo é
bastante tonalizada pelo discurso em primeira pessoa, com a voz de
Cauby imersa no contingente da sua memória, presentificando um
enredo em que a proximidade com a verdade do personagem se
consolida pela sua experiência, isto é, o caráter verossímil da condição
de herói consegue firmar-se com mais veracidade na realidade
diegética em questão.
Aquino é um exímio contador de histórias, estabelecendo um
projeto estético cuja posição dos seus personagens é sempre
condicionada ao fator erótico da existência humana. Da mesma forma
como em O amor e outros objetos pontiagudos  (2000) e Famílias
terrivelmente felizes (2003), textos nos quais o sexo e suas implicâncias

obtêm considerável sustentabilidade dentro da trama desenvolvida,


em Eu receberia... essa incidência erótica que perfaz o sujeito amoroso
vai se consolidando na medida em que os fatos narrados são
apresentados in media res, desenvolvendo uma oscilação entre
primeira e terceira pessoa na narrativa. A digressão focaliza um
discurso melancólico, revestido de amargura e desejo de liberdade por
parte do narrador.
O romance divide-se em quatro partes 20, mas aqui nos
interessa um trecho presente na primeira, bastante elucubrado por
algumas questões que exprimem o excesso por meio de um processo
transgressor em relação ao desejo, matrimônio e, sobretudo, a si
mesmo. A cena ocorre dentro da casa de Cauby, espaço para quase
todos os trechos eróticos do romance, em um dia no qual o narrador
e Lavínia praticam sexo no quintal. A ação estende-se com Lavínia
dormindo pela primeira vez na casa do amante e, posteriormente,
sendo vista pelo jornalista do vilarejo. É curiosa a maneira
ma neira como o sexo
é descrito nessa passagem, bem como nas demais; porém, nesta em
particular, acabamos por perceber que a duplicidade percebida em
Lavínia é traduzida, quase sempre, pela forma
fo rma arredia e seca da prática
sexual, quase uma animalização do ser humano quando este se
encontra em tal situação.
Num primeiro momento, ao retornar para casa, Cauby pondera
acerca de sua atração por Lavínia, comparando-a com a de Ernani: “Ele
também era obcecado por Lavínia. Por metade dela, de certa maneira.
Pela Lavínia dócil, que ele ergueu da sarjeta e salvou. Da outra, que

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 Capítulos: I - O amor é sexualmente transmissível; II- Carne-viva; III - Postais de
Sodoma à luz do primeiro fogo; e IV - Poema escrito com Bile.
não consegui compreender nem controlar, Ernani tinha medo”
(AQUINO, 2005, p. 55). A compreensão por parte do personagem em
traduzir a amante em duas, tendo como ponto de arranque a relação
desta com o esposo, é o primeiro indício da configuração maciça do
excesso nessa personagem. Cauby arquiteta a amante em duas: a dócil 

e a incontrolável . Tais demarcações, adjetivos estabelecidos por ele na


reflexão acerca da relação matrimonial do casal, é o fio condutor da
sexualidade que se revela no romance, pois aqui compreendemos o
fenômeno do erotismo literário como algo que se desnuda nos
domínios da fantasia e não da prática. Há um trecho, em particular,
que chama a atenção por seu expressivo caráter simbólico:

Uma coisa incrível: até o cheiro das duas era


diferente.
diferente.  A Lavínia sem juízo tinha cheiro de
bicho.
bicho. Suor e tesão. Estava sempre à beira da
excitação. E era imprevisível.
imprevisível. Um dia se atracou
comigo no quintal, de repente. Levantou o vestido
 – o
 – o vestido verde que eu tanto amava  – e
 – e fez com
que eu me ajoelhasse à sua frente. Não estava
usando calcinha.(AQUINO, 2005, p. 2005). (Grifo
nosso).

O narrador enquadra Lavínia em duas personalidades que


oscilam de acordo com algo que próprio narrador não consegue
diagnosticar. A ex-garota de programa segue como um mistério, um
reduto de qualquer coisa que lhe dá prazer em desvendar. A primeira
linha caracteriza o discurso de Cauby num ponto já aludido
anteriormente, ou seja, a associação entre a amante e a ideia de
animal, bicho no cio. O excesso na linguagem romanesca de Aquino
surge como um estreito atalho entre o apreensível e o inapreensível,
ruborizando-se na tensão psicológica e sexual dos personagens
principais, principalmente Cauby, em sua tentativade compreender a
mulher incognoscível com a qual se deita.
Quando lemos até o cheiro das duas era diferente, o verbete
cheiro  remete à condição erótica dos sentidos, ao olfato que se

aprimora e se reveste de lascívia quando tencionado pela carne. O


excesso, nesse trecho, manifesta-se no desejo de descoberta, de

tradução do enigma feminino posto à frente do protagonista. Suor e


tesão  correspondem à libido excessiva na relação entre ambos,

transformando a transgressão num ritual de sobrevivência: Lavínia é


para Cauby não o excesso do proibido, mas sim do emblemático.
Muito da perspectiva de Lavínia pode ser percebida através da
figura do ausente, descrita por Barthes como: “todo  episódio de
linguagem que põe em cena a ausência do objeto amado  – quaisquer
que sejam a causa e a duração – e tende a transformar essa ausência
em prova de abandono” (1994, p. 27). Justamente por essa percepção
e argumentação barthesiana é que percebemos em Lavínia uma
espécie de ausência que está figurada, estritamente, no limiar entre as
suas duas personalidades. Como o próprio Barthes descreve acima, há
uma forte associação entre a ausência e o abandono, tornando estes,
em Eu receberia..., quase sinônimos. A construção bifurcada de Lavínia
cede espaço a uma ausência percebida somente por Cauby, mas que
no futuro causa uma ausência real de meses por parte da amante.
É necessário que atenhamos ao fato de que a conformação da
personagem Lavínia é advinda em grande parte por um discurso em
primeira pessoa, o de Cauby, que sobrepõe a diegese somente à
verdade e a certeza deste personagem. Nesse processo narrativo (que
lembra Bentinho e Capitu em Dom Casmurro), a composição dúbia de
Lavínia é percebida com mais acuidade na descrição da súbita
investida da amante para com Cauby:

E curvou-se à minha frente.


A doida.
A outra Lavínia, a mansa, tinha cheiro, sabor e
pudores diferentes. A Lavínia melancólica. A que
às vezes deixava se envolver por uma nuvem de
culpa e paranoia. Ficava se achando suja. A que
gostava de dizer que era triste em legítima defesa.
A Lavínia maluca não estava nem aí.  Vivia de
surpresa. Teve uma vez que, depois de farrearmos
a tarde inteira na cama e fora dela, essa Lavínia me
comunicou:
Vou passar a noite aqui. (AQUINO, 2005, p. 56).
(Grifo nosso).

O trecho acima apresenta uma ruptura importante dentro da


questão do excesso  no romance, pois é o momento em que a
presentificação desse operador se manifesta com maior intensidade.
Como dito anteriormente, o sexo, em Aquino, liga-se fortemente à
noção de duplicidade em Lavínia. Desta forma, conforme a narração
de Cauby, podemos perceber a estratificação da personagem sendo
advinda da sua ex-profissão, ou seja, de prostituta. Alguns trechos da
fala do narrador merecem destaque, tais como os adjetivos que este
dá à amante na tentativa de desvendá-la ou, ao menos, adentrá-la. Os
termos são populares, mas carregados de uma simbologia que
evidencia muito da personagem: à primeira das Lavínias, o narrador
descreve como doida e maluca, características associadas de maneira
um tanto imprecisas, mas ao longo do romance tais imprecisões são
dissipadas partindo do momento em que a trajetória da personagem
é apresentada ao leitor, expondo sua vida de prostituição nas ruas da
cidade de Vitória - SC.
Em contrapartida, a outra, ou seja, a que se encontra com o
narrador, era mansa, tinha cheiro, sabor e pudores diferentes. Tais
elucubrações, mais especificamente particularidades da visão do
narrador, exprimem efusivamente o excesso do qual tratamos, mais
especificamente quando a linguagem literária proporciona um
aumento no crescimento e construção da personagem, determinando,
desta forma, uma nova conduta, quase o surgimento de outra
personagem. O adjetivo suja  é direcionado à Lavínia casada com
Ernani, à mulher redimida trazida de volta às rédeas da normatividade
social pelas mãos de um servo de Deus. Mesmo sendo “resgatada”, a
personagem não se sente pura o suficiente, alternando momentos de
instabilidade emocional. Há um extravasamento de dor e melancolia
que Lavínia descarrega em cima do amante, fazendo-nos perceber que
o detentor de seu “melhor” lado é Cauby, aquele que desperta nela a
quanto as próprias reflexões do narrador sobre Lavínia. É uma fusão
corporal que no breve momento em que é vivida consegue desfazer os
impasses criados pelos personagens.
Nesse ponto, há uma expressão latente sobre o discurso em
voga, que possui forte catalisação no texto. Abordamos, nesse
horizonte, a sedução como uma expressão na respectiva diegese, que
se difere, mas não se distancia da concepção de erotismo vista em
Aquino. Para tanto, trazemos a argumentação de sedução proposta
pelo pensador francês Jean Baudrillard. Nas asseverações do autor:

A sedução é algo que se apodera de todos os


prazeres, de todos os afetos e representações , que
se apodera dos próprios sonhos para convertê-los
em algo diferente de seu desenrolar primário, um
 jogo mais agudo e sutil cuja aposta já não tem fim
nem origem, seja o de uma pulsão, seja a de um
desejo. (BAUDRILLARD, 1992, p. 142). (Grifo
nosso).

Os pensamentos de “apoderação de todos os prazeres, afetos


e representações” , alicerçam-se na percepção não de uniformidade da
conduta sexual, mas sim de uma série de meandros, conjecturas, eixos
que contornam a libido humana e tornam a sedução como um ritual
que aciona outras molas propulsoras da libido, tais como o desejo, a
luxúria, o erotismo e o sexo propriamente dito. Se, por um lado, o
excesso  é percebido na descontinuidade da configuração da ex-

prostituta, uma espécie de vertigem, de desfalecimento de si próprio,


também é perceptível entre ambos os protagonistas. O que se molda
na relação amorosa dos personagens é uma conduta estritamente
ligada à transgressão, mais necessariamente à violação de matizes
normativos da sociedade, como o casamento, a religião e o pudor. É
necessário, contudo, que enxerguemos o sexo como mola-mestra de
uma série de outros lugares dentro do comportamento social humano.
É precisamente em um desses lugares, o da sedução, que o homem
encontra seu estado de catarse, de experiência pessoal redentora que
o eleva a um nível superior relacionado a qualquer outra existência.
Justamente nessa experiência pessoal que encontramos Cauby, pois
este está engendrado num contínuo processo de autocomiseração,
anestesiado pela adrenalina e prazer causados pelo deleite sexual e,
acima de tudo, pelo mistério advindo de Lavínia.

Considerações finais
Sob uma perspectiva geral, o romance de Aquino se constitui
de pequenos detalhes que, quando somados, atrelam valor
significativo ao universo diegético posto em cena. Uma dessas
particularidades está intimamente ligada a um processo de
dilapidação moral que assola quase todos os personagens do romance,
mas que encontra seu ponto de simulação nos protagonistas,
principalmente em Lavínia. Tal dilapidação pode ser compreendida
como uma figura do excesso, que se manifesta na configuração
artístico-literária de Lavínia, tornando-a uma personagem repleta de
sinuosidades. A representação literária do que chamamos de excesso
foi investigada partindo de um recorte substancioso do romance de
Marçal Aquino.
Em Eu receberia... o que prepondera é o discurso do amor não
romântico, mas condensado pelo desejo da carne, da alma e dos
recursos que o erotismo pode contrapor à condição humana. Lavínia é
representação do excesso, não em sua totalidade, numa contingência
hiperbólica, mas em uma diminuição provinda de sua alegórica
bifurcação comportamental. Sua personalidade é constructo de um
processo de descoberta e venda do corpo que, não obstante, choca-se
com a atual realidade da personagem, ou seja, imersa em um universo
religioso, num espaço geográfico diminuto.
A irregularidade da personagem é uma consequência
profundamente acoplada à transgressão, ao interdito, à proibição do
uso do corpo. A vinculação do excesso por entre a concepção do texto
de Aquino é minuciosa e carregada de simbologias que, conforme
percebidas, podem não representar uma literatura do excesso, mas
contribuem para a percepção do sujeito amoroso ligado a um desejo
transmissível, uma pele pincelada pela violação: uma ânsia pelo
proibido atrelado ao desespero da perda. Como o próprio narrador diz:
“o que
“o que diferencia uma pessoa de outra
o utra é o quanto cada um quer o que
não pode ter. Nossa ração de poeira das estrelas”.
Referências

AQUINO, Marçal. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos


lábios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

 ______. Famílias terrivelmente felizes. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

 ______. O amor e outros objetos pontiagudos. São Paulo: Geração


editorial, 1999.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad.: Marcia


Valeria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 ______. Como viver junto. Trad.: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:


Martins Fontes, 2003, pp. 11-12.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

 ______. A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”. 2ª ed.


Trad.: Júlio Castañon Guimarães. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

BAUDRILLARD. Jean: Da Sedução. 4ª edição. Papirus. 1992.

BORGES, Luiz Augusto Contador. O louvor do Excesso:  Experiência,


Soberania e Linguagem em Bataille. 102 f. 2012. (Tese de Doutorado
em Filosofia). Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP. 2012.

MORAES, Eliane Robert. Sade, Bataille & Cia: literatura, erotismo e


subversão. Vídeo/ Youtube. (Círculo de Cipião: academia de jovens
investigadores/ Universidade de Lisboa). Publicado em 21 de maio de
2014. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=m_8ahfNYtPM&t=2667s.
Acesso em 30/04/2017>.
 ______. Puta, putus, putida - Devaneios etimológicos em torno da
prostituta. Revista da Biblioteca Mário de Andrade, volume 69, 2014.
p. 38-49.

 ________. O Efeito Obsceno. Cult (São Paulo), volume 30. 2000. p. 48-53.

Figura 1 - Cena do filme Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios
(2012), baseado no livro de Marçal Aquino, dirigido por Beto Brant.
As representações do sexo, do corpo, mais especificamente do
fenômeno textual do erotismo, têm sido matéria de estudo nas mais
diversas áreas do conhecimento. Neste livro, no entanto, os artigos
que compõem o dossiê temático ocupam-se da percepção do erótico
enquanto elemento textual, percebendo-o como uma chave de
leitura que pode ascender a diversos caminhos, desembocando na
literatura o seu ponto de excelência. Em cada capítulo, é possível
perceber uma observância estética que valora a sexualidade,
concedendo-lhe e, sabiamente, valorando o literário como território
estético a ser investigado com extrema circunspeção.

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