Você está na página 1de 2

MEMÓRIA FORJADA

Terapeutas podem induzir pessoas a “lembrar” fatos que nunca aconteceram


Que a memória humana é um instrumento falho todos sabem. Mas que é possível, de
modo relativamente fácil, fazer alguém se lembrar de algo que não aconteceu é uma
nova e preocupante descoberta da psicologia.
Mais ainda: a própria pessoa passa a inventar detalhes daquilo que “passou” com
ela, solidificando ainda mais a falsa memória.
Ë o fenômeno chamado “inflação da imaginação”, descrito pela psicóloga norte-
americana Elizabeth Loftus: depois de fazer a mente imaginar os detalhes do
“evento”, a certeza de que ele de fato ocorreu tende a aumentar.
Esses fenômenos seriam uma mera curiosidade científica se não estivesses
disseminados no dia-a-dia das pessoas. Estudos têm mostrado que a sugestão – por
um policial em interrogatório, por um psicanalista ou pelos meios de comunicação –
tem o poder de alterar a memória de fatos vividos.
Pior ainda: criou-se nos EUA uma “indústria”, diz Loftus, da “memória reprimida”
de eventos traumatizantes, que fez muitas mulheres imaginarem que foram
repetidamente abusadas sexualmente quando crianças.
Em pelo menos um caso, um sujeito inocente foi para a cadeia baseado apenas nessa
“prova” testemunhal, arrancada pelo terapeuta da memória de sua filha. Ele foi solto
após a filha ter inventado crimes que ele não poderia ter de modo algum cometido,
por estar viajando, e quando se notou a semelhança de uma descrição com um caso
real, bem divulgado pelos meios de comunicação na época do suposto “crime”, em
1969.
Em um caso, a prova de que a “memória” tinha sido implantada pelo terapeuta foi
mais fácil.
A norte-americana Beth Rutherford foi levada a crer pelo seu terapeuta que seu pai,
um ministro religioso – que teve que abandonar o sacerdócio -, a tinha estuprado
repetidas vezes dos 7 anos aos 14 anos e, em pelo menos um dos casos, com ajuda da
própria mãe.
Beth também se “lembrou” que teria abortado duas vezes com ajuda de cabides. O
caso terminou após um exame médico comprovar que ela nunca engravidara e era
virgem aos 22 anos de idade. Ela processou o terapeuta e recebeu indenização de US$
1 milhão.
As memórias “resgatadas” com ajuda do analista podem parecer pura loucura: a
norte-americana Nadean Cool, por exemplo, “lembrou” ter participado de um culto
satânico no qual se comiam bebês, de ter feito sexo com animais e de ser forçada a
presenciar o assassinato de sua amiguinha de 8 anos. Ela também foi à justiça contra
seu terapeuta e recebeu US$ 2,4 milhões de indenização.
Loftus, professora da Universidade de Washington, em Seattle (EUA), e presidente
da Sociedade Psicológica Americana, diz que esse “mito da memória reprimida” está
prejudicando a imagem dos terapeutas e das vítimas de abusos sexuais reais na
infância, que passaram a ser desacreditadas.
“O paciente não deve sair com um problema a mais além daquele com quem
chegou”, disse Loftus, em uma palestra em Heidelberg (Alemanha), em julho
passado, no 2º Congresso Mundial dos Céticos.
Ela lembra uma pesquisa sobre as técnicas utilizadas por um profissional da área de
saúde mental que indicou que cerca de um terço deles rotineiramente usa hipnose,
interpretação de sonhos e mostra de algum tipo de material para ajudar no resgate de
memórias.
Loftus e colaboradores fizeram vários experimentos de “implante” de memória,
usando “lembranças” que não seriam traumáticas após ser revelado que se tratavam
de invenções. Eram memórias como “você se perdeu em um shopping center quando
tinha 5 anos”, ou então “você derramou a tigela de ponche em cima dos pais da
noiva durante uma festa de casamento”.
Para determinar se de fato algo assim havia ocorrido ou não, era pedida a ajuda dos
pais do entrevistado. Após três entrevistas, nas quais descreviam suas memórias,
falsas e verdadeiras, 25% dos participantes insistiam que tinham derrubado o ponche
– e entravam em detalhes, como “era um casamento ao ar livre, eu estava correndo e
derrubei a vasilha”.
Loftus também estudou o papel do terapeuta na formação da “memória”. Em um
estudo feito com ajuda de um terapeuta italiano, ela notou que 89% dos pacientes
aumentavam a confiança na memória após uma sessão de meia hora com o analista,
na qual seus sonhos eram interpretados.
Fonte:Folha de São Paulo

Você também pode gostar