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O último bardo kobold

I
Numa época passada, já esquecida e sepultada pelo tempo, eu fui o cantor das memórias de
meu povo. Porém a desgraça, pouco antes de recair sobre a cidade, se abateu sobre mim.
Hoje, quando a guerra devasta toda a terra e o céu em chamas desmorona sobre o mundo, o
pai teme a mão parricida do filho, e o irmão não fala a mesma língua do irmão. A única
pátria que me resta é o meu cantar, e eu só posso dizer o canto da minha própria vida.
Abençoado seja o deus que possa me escutar: esta noite eu direi a noite de minhas
desgraças.

II
A antevéspera da manhã ainda não azulara o céu, quando os soldados vieram me despertar.
Eu ainda conhecia o sono sem sonhos, e o ópio corria macio em meu corpo inerme. As duas
escravas que me acompanharam a madrugada permaneciam próximas: Luara, que só sabia
encontrar o sono na pedra, e que me adormecera com falsas promessas de felicidade,
cochilava sobre chão encolhida num manto dourado. Ishtar, solitária e ríspida, que se
esquivara de todos durante toda nossa noite de festas, estreitava os braços em meu pescoço
e aninhava o rosto em meu tórax. Contra meu estômago vergou o peso de uma bota, e a luz
quente de uma tocha machucou meus olhos. A princípio, talvez o ópio, tive uma breve
alucinação de que os inimigos haviam invadido o Palácio, e agora roubavam nossas
mulheres e nos atravessavam com suas lanças. Mas eu não sentia perigo diante da morte,
porque nada poderia ofender a minha alma, e sorri. Os homens me arrancaram dos coxins e
me puseram de pé, só então reconheci os soldados que, dias atrás, marchavam ao meu lado.
- Recebemos um mandato oficial. Você está preso, e será conduzido até Minerva, para ser
julgado na presença do rei.
O mesmo homem que dividira um cálice de vinho comigo, jurando amizade eterna, me
dava voz de prisão tão solene quanto um sacerdote. Por um instante a grandeza da vida me
pareceu não mais que uma patética piada de mau gosto. E eu mergulhei de cabeça:
- nossa... não há nada melhor para se ouvir após uma festa...
De resto a solenidade do homem era mesmo ridícula, como um ator exageradamente
enfático de um teatro de bêbados. Tanto mais que me sentia traído, tão vilmente traído –
pelo soldado, pelo Rei, e todos da cidade – que eu não conseguia crer que aquilo não era
uma farsa, uma brincadeira de algum espírito de porco. Minha desgraça apareceu sob a
máscara da comédia.
- E por que estou sendo preso?
- Por traição.
Meu riso crescente encheu de gargalhadas o salão nobre. Ishtar, provavelmente sentindo
minha ausência, despertou. O soldado atirou em meu rosto um cálice de água fria, eu reagi
com um pontapé em seu joelho, e recebi um bofetão que me derrubou. Outros dois logo me
levantaram, e prenderam meus pulsos com cordas. Encontrei o olhar aflito de Ishtar,
ajoelhada sobre a cama, um transparente lençól enrolado em seu corpo, as mãos se
apertavam como se quisesse pedir súplicas – mas não havia a quem suplicar: e aquela
fêmea, que não era linda nem simpática, me pareceu a mais bela das criaturas.
Não houve adeus entre nós, e os homens logo me arrastaram pelo salão. Senti frio e quis
parar para recolher qualquer manto esquecido; os soldados se irritaram, pisaram em meu pé
e me puxaram pelas orelhas.
- Traidor kobold... Por tua causa, fomos derrotados ontem.
Cruzamos o salão, onde dormiam, embriagados, os nobres da cidadela. Calculei gritar,
despertar todos, pedir ajuda e intervenção. Mas uma estranha convicção de que nenhum
deles iria me ajudar silenciou o meu coração. Me conduziram até o átrio. Nerval, o chefe de
nossas tropas, vestindo uma leve cota de malha, o elmo debaixo do braço, nos aguardava de
pé. Não gostou de me ver amarrado, logo se adiantou e pôs a mão em meu ombro.
- É preciso força agora, meu irmão Ragnar, é preciso força.
Sua melancolia me fez compreender a gravidade de minha situação. Aquilo tudo não era
uma piada, o Rei ordenara realmente minha prisão, os juízes me esperavam no tribunal,
talvez um carrasco já preparava a forca. O sabor do ódio amargou minha boca.
- Isso é uma injustiça...
- Teremos de partir imediatamente. Eu te acompanharei até a Estrada de Arkadis. Ninguém
te tratará mal, meu pequeno irmão Ragnar.
Encarou com autoridade os soldados, que se fizeram de desentendidos. Em seguida com
dois passos saiu debaixo do átrio e observou o céu, confiando com felicidade que o tempo
de seca estava prestes a acabar, grossas nuvens se aproximavam do ocidente. Um carro real
me esperava, atrelado a dois cavalos raça-pura.
- Vamos, pequeno kobold, você viajará confortavelmente.
Não pude evitar o sobressalto, minha alma dilacerada por uma flecha. Todos evitavam
mencionar o nome de minha raça, afinal ter um kobold entre os nobres do reino era um tabu
que minha existência quebrava a todo instante. E desde que eu fora consagrado herói de
nosso povo, nunca o baixo estrato de minha raça me tinha me causado problemas. Reinava
uma espécie de convenção implícita, ditando que era um dever de todos ignorar a baixa
origem de minha condição. E enquanto os outros ganhavam apelidos de acordo com suas
origens – o velho elfo, o anão barba-ruiva, o pés-peludo – nunca, a não ser os intrigantes,
tocavam no assunto quando se referiam a mim. “Kobold” era uma palavra proibida, quando
eu chegava no ambiente. Então me mandam prender e, subitamente, todos passam a me
chamar de kobold, fazendo questão de esfregar na minha cara a baixeza de minha raça. E
inclusive Nerval, que se dizia meu irmão. Não entendi e fiquei humilhado. Procurei no
rosto do Cavaleiro alguma inimizade, alguma raiva oculta, no entanto o homem mantinha o
sorriso de bonomia, a mão amiga me convidando à cadeia. Nerval era o líder e o melhor
guerreiro de nosso exército, todos tinham certeza na vitória quando era ele quem partia à
frente no campo de batalha, girando a espada, avançando contra os dentes do inimigo. E
naquele breve minuto o herói me pareceu uma triste alma falsa, enclausurada na tolice da
demagogia. Afinal pra quê me chamar de irmão, se me considerava um reles “pequeno
kobold”? Pela segunda vez tive ódio contra aqueles que considerava os meus familiares.

- Por que vocês tentam me prender sem que ninguém veja? Por que tentam me esconder aos
olhos do povo? Por que talvez ele se revolte de me ver amarrado e surrado, e caia furioso
contra vocês, autores de meu infortúnio, e depois me liberte. Por que não deixam o povo
julgar se sou, entre nós, um criminoso? No entanto querem me tirar às ocultas da cidade. Eu
também não marchei, junto a vocês, contra o inimigo, quando o inimigo estava em número
maior? Até ontem, os homens do povo me tratavam bem, e hoje vocês querem me fazer um
réprobo. Não: vamos esperar amanhecer. Vamos esperar que todos venham à rua. Entre a
multidão é que eu quero ser assim exibido, sem a nobreza de minhas roupas, amarrado e
aviltado.
Vi o príncipe Nerval empalidecer, e como um homem vacilante abaixou os olhos, incapaz
de me encarar. Pouco depois se restituiu.

- ora meu amigo Ragnar, não seja vaidoso... Qualquer um pode ser levado à julgamento...

Começou a gaguejar, forçando uma voz adocicada, tentando me convencer a não resistir;
no entanto logo percebeu como estava ridículo aos olhos dos soldados; limpou a garganta e
assumiu o tom do mando:

- Não temos tempo a discutir. Recebemos um mandato oficial, e seríamos traidores se não
obedecêssemos. Tudo o que você fez por nós será considerado, e pode ficar certo que,
desde já, está recebendo um tratamento muito mais cômodo do que os outros prisioneiros.
Agora vamos.

Os soldados me suspenderam pelos cotovelos, me empurraram pra dentro do carro. Nerval


escolheu um deles, e mandou que fosse lá fora, à boleira, junto ao cocheiro. Nós dois
viajaríamos na cabine.

III
Os dedos rosas da aurora tocavam o céu quando vi pela última vez a Vila de Áries, no topo
de uma colina. A carroça vencia os descampados com velocidade. Quando estávamos
longe, Nerval me permitiu descerrar as cortinas.

- Quer um pouco de vinho, meu amigo, ou a noite de ontem te deixou saciado?

Tínhamos voltado a nos tratar com mútua simpatia; tendo as mãos livres, pensei que a cena,
minutos atrás, não passava de exagero: afinal eu seria mesmo levado ao Rei, mas diria duas
ou três palavras, ouviria quatro ou cinco, e seria posto em liberdade. Uma bronca pelos meu
comportamento rebelde.

- Não, obrigado. Depois de ontem ficarei algumas noites sem ver bebida... E você não foi à
festa.

- Não... Você sabe que não me sinto à vontade em festas.

- É, dizem que 10 soldados inimigos são mais inofensivos que uma de nossas dançarinas
bêbadas...

Nerval riu, encostando o rosto à janela e se perdendo em lembranças. Não se aguentou de


curiosidade, e me pediu notícias de ontem.

- se é que o vinho não apagou tuas memórias...

- não... Mesmo se eu tivesse a memória ruim, não conseguiria esquecer da última noite...
A lembrança da festa, ainda fresca em meu paladar, deve ter me causado uma engraçada
fisionomia, porque Nerval desatou a rir, imaginando mil e um acontecimentos devassos.
Gritou com alegria:

- Como são vaidosas as escravas dos nobres... Dizem que a Luara, agora, só aceita deitar
em tua cama, Ragnar! Põe pra correr até mesmo nosso querido artista o Mestre Gladiador, o
homem mais venerado pelas princesas do Império! Uma elemental do ar, aprisionada em
nossa vila, apaixonada por um kobold bardo: que amor maluco!

O cavaleiro, que de agora em diante se permitia me chamar pela minha raça, sem rebuços,
conseguiu ser de uma sinceridade que me comoveu. Noites atrás, ele nunca iria revelar o
quanto estranhava meu namoro com Luara, limitado a um esmorecido decoro cortês. Porém
naquela manhã, me desterrando da Vila de Áries, pôde ser franco comigo.

- Você sabe que um homem inteligente não revela sua intimidade...

- ah então muito bem, você não é um homem mesmo! Então me diga, a Luara está te
amando, meu irmãozinho?

Senti a face esquentar, e encarei Nerval, me perguntando se a franqueza começara somente


porque nele já não existia mais nenhuma consideração por mim, posto que agora eu era
apenas um “traidor kobold”. Porém achei somente o olhar da curiosidade, da mórbida
curiosidade, e o cavaleiro nem notou que poderia me ofender, me atirando à cara que eu
não era humano. Suspirei e pedi uma taça de vinho, tentando ignorar meus pensamentos
revoltados. Ademais, precisava desabafar, e aquela era ótima ocasião.

- A Luara me preocupa, meu chapa.

- Alto lá! Estamos falando da mesma criatura? A elemental do ar? A pequena cabeça de
vento?

- Ela mesma. E me preocupa.

- Ora, Ragnar! Quem pode se preocupar com uma escrava igual a Luara? Ela nos foi
vendida pelos elfos como uma criminosa. E após uma magia poderosa, não pode mais
controlar os ventos nem evaporar o corpo! “Não poderá mais cometer diabruras”, diziam os
elfos, mas quanta ingenuidade! Um cavaleiro, apenas por obrigar ela a ficar nua, no dia
seguinte acabou acordando amarrado num poste de praça pública, sem nenhuma roupa a
não ser um chapéu com orelhas de burro, e virou motivo de riso para todo o povo! Desde
então ninguém mais se atreve a contrariar os desejos da escrava! E como ela é voluntariosa
e volúvel! Fica uma semana junto a um velho rico e viúvo, recebendo flores e ouro e um
tratamento de princesa, na semana seguinte vai se entregar para os homens mais
maltrapilhos da mais suja taverna da vila! E mesmo assim os nobres adoram Luara, e
ninguém nunca é capaz de lhe dar uma surra! Ela tem só 1,50m, é verdade que tem uns
olhinhos muito lindos, e o jeito como anda atrai os olhares até das estátuas, mas seus modos
são inaceitáveis! Ah! Até a última noite, meu chapa, ela não saía da tua cama; a partir de
amanhã, nem se lembrará de teu nome! E você, a caminho da prisão, preocupado com ela!
- Ela está morrendo, Nerval. Seu lugar não é aqui, e ela não consegue se acostumar à vida
de humana. Por isso precisa passar todo o tempo embriagada. Talvez o vinho tenha, pra ela,
um gosto parecido com o da antiga liberdade, quando ela voava pelos campos junto aos
pássaros, quando podia ser uma só com o vento e com as nuvens. Luara não consegue
comer nem a nossa mais doce sobremesa, e emagrece dia após dia. Já não acredita mais na
bondade de ninguém, por isso esconde seu sofrimento e nunca pede ajuda. É preciso
encontrar o mago que retirou seus poderes, isso sim deveria ser considerado um crime! Se
ninguém libertar esta criatura, ela irá morrer de tristeza.

- não creio que outros pensem assim...

Resmungou meu amigo, se recostando no assento e esquivando o olhar para a janela. Tinha
perdido toda a animação de sua curiosidade. Até mesmo se arrependeu de ter entrado no
assunto, porque eu estava tentando encarregar Nerval da salvação de uma escrava, e ele já
tinha problemas demais para resolver.

- É, meu irmão, há muita tristeza entre os filhos da Primavera!

- E Ishtar? Você tem se entendido com ela? Ou está preocupado também?

- Vou te contar um segredo... Mas fique entre nós... Se entre todas as fêmeas do Império, eu
pudesse escolher apenas uma para me visitar na cadeia...

Nerval saltou pra frente, incrédulo

- A Ishtar??? Não creio, você está a fazer piadas... De todas as mulheres do reino, escolher
a filha de um goblin? Ora, se ainda fosse a mãe dela, aquela camponesa... Mas a Ishtar!,
você deve estar maluco. Só por dizer isso, já merece ser preso!

Desatou a rir.

- É verdade que essa camponesa, a mãe de Ishtar, morreu pelas mãos de seu irmão?
Conheço a estória oficial, que ela foi assassinada por um ladrão, mas você sabe que há
muita fofoca no Império...

- Sim, é verdade... O mais velho, o primogênito, o que irá ficar com o reino de Minerva. Ele
se apaixonou e tentou fazer daquela camponesa analfabeta uma rainha.

- Mas até onde sei, ela já tinha noivo...

- Sim, um baloeiro maluco...

- E o baloeiro consentiu em ceder a esposa?

- Não. Meu irmão o matou. Ela teve um surto de desespero e fugiu pra floresta. Acabou
raptada por goblins. Meu irmão, furioso de ciúmes, fez o exército inteiro marchar contra a
aldeia. Dizem que eram 200 soldados, sem contar arqueiros e cavalaria, contra uns 30
goblins desarmados e magricelas. Não sobrou nenhum pra contar estória. Eu havia acabado
de sair da Academia, acompanhei meu irmão para aprender manobras de liderança militar.
... ... Mas você não acredita no pior.

- O quê?

- Ela estava vivendo numa cabana, com um goblin... E não estava achando nada ruim.
Estava cuidando de seus filhos, dois pequerruchos orelhudos do tamanho de minha mão!
Quando o exército chegou... ela se abraçou ao seus... filhos adotivos, e suplicou para que
deixassem eles viver. Foi essa a mulher que fugiu de meu irmão e não quis ser a rainha de
Minerva: uma camponesa apaixonada por um goblin. Nunca um príncipe se sentiu tão
humilhado diante do próprio exército.

- Por isso que matou?

- Não... Dessa vez ainda perdoou, e eles casaram, e ela se mudou para o Palácio de
Minerva. Até que um dia... tentou fugir com um jardineiro que não tinha onde cair morto.
Meu irmão decapitou, num só golpe, o pobre-diabo, e depois estrangulou a esposa.

- E Ishtar...?

- Já tinha nascido... Meu irmão, até poucos segundos antes do nascimento, olhava a
gravidez da camponesa e acreditava que iria ser pai. A parteira desmaiou, quando viu as
orelhinhas pontiagudas da criança... E como foi considerada resultado de um estupro, o
Mago não consentiu que ficasse junto da mãe. Foi vendida como escrava. A mãe arrancou
os cabelos e chorou por três dias, implorando aos deuses por Justiça e amaldiçoando toda a
minha família.

- Que tragédia...

Nerval deu de ombros, eu bebi o vinho. Voltando à alegria, me perguntou:

- Mas e então? Quer dizer que, se você voltar pra vila de Áries, teremos um casamento?

- Não é pra tanto... Mas eu gostaria de ver Ishtar mais uma vez.

- Confesse, meu irmãozinho, confesse! Seu pensamento ficou lá atrás, naquele Palácio de
Áries! Pois então digo pra não te preocupares: assim que eu voltar, irei despachar a escrava
pra Minerva. Ela irá te visitar na prisão. Afinal sou ou não sou teu irmão?

- É... Obrigado, cavaleiro, obrigado.

- Mas quem diria! A mais irascível das escravas da corte, conquistando a amizade do bardo!
Não sei se os nobres são pacientes ou idiotas: por que ninguém nunca expulsou Ishtar do
Palácio? Afinal ninguém consegue nem se deitar, nem conversar, nem passar um minuto
junto à tua pequena! Ela não sabe divertir com ditos espirituosos, porque é tímida e não
parece inteligente; não é um esplendor de beleza e ainda por cima chuta as genitálias dos
poucos que tentam beijá-la; não é amiga das outras escravas, e faz de má vontade suas
obrigações domésticas! Ah talvez só tenha vindo ao mundo para fazer um coisa: descobrir a
chave pra abrir o coração misterioso dos bardos!

- Ela é inteligente, Nerval, e ninguém adivinha o quanto. Ela teria sido a melhor feiticeira
de todo o Império, se alguém um dia tivesse tido o cuidado de não olhar pra ela com
desprezo. Porque eu te digo uma coisa, meu irmão: ela, como todos os goblins e todos os
kobolds, nunca teve chance de mostrar a ninguém o seu verdadeiro potencial. Nossas raças,
desde o primeiro minuto que surgiram neste mundo dominado por Homens, foram sempre
desterradas pelos olhares da xenofobia.

- Ora, você é um bardo, Ragnar, em tudo quer ver poesia! Mas eu te conheço de longa data,
e você não me ilude com a doçura de tuas palavras! Agora entendo porque tantas mulheres
já visitaram tua cama... Ora, você falar de preocupações, quando estava dançando
encharcado de vinho tendo em cada braço uma escrava semi-nua! Eu, Dom Poeta bêbado,
eu estava no campo de batalha, vendo meu exército cair!

Gritou num tom de piada, e riu às largas. Curioso que era eu o “encharcado de vinho” mas
no entanto o sóbrio cavaleiro que tinha as atitudes desconexas. Afinal como se pode rir
quando se está contando uma triste notícia? Felizmente suas gargalhadas foram cessando,
cessando, e deram lugar a uma expressão preocupada, quase melancólica. O assunto não era
pra menos. Quando ele riu, eu tive medo que meu amigo estivesse tresloucando.

- Ontem... Muitos dos nossos tombaram?

- Você não estava lá.

Murmurou, num misto de mágoa e acusação. A situação era tênue, e eu começava a


entender que nunca mais seria tratado sem desconfiança. Me precavi e, antes de falar,
organizei as idéias. Não queria responder meu amigo à altura, o que fatalmente nos faria
brigar.

- Nós precisamos saber de nossas escolhas, Nerval. Quando conquistamos a Vila de Áries,
a guerra pra mim deixou de ter qualquer sentido. Nunca mais estas minhas mãos irão tocar
música que incite os homens à matança, à aniquilação mútua. E além do mais... eu sou
apenas um bardo. Não fui feito para as guerras: um exército pode ganhar ou perder,
independente de minha presença.

- Mentira! Não é verdade, Ragnar, você sabe bem disso. Quando você toca, o Deus desce
sobre a terra em forma do Espírito da Guerra, e nos abençoa, e luta ao nosso lado! Nós
sentimos a grandeza do Espírito Santo, nossos braços ganham força! Com sua música, nós
já fomos capazes de vencer exércitos duas vezes mais poderosos! Mas ontem... você
novamente se negou a tocar. Ora, no campo de batalha nós surpreendemos um número
reduzido do inimigo, conseguimos cercá-lo, mas... as flechas paravam em suas armaduras,
as espadas quebravam ao contato de seus escudos. O Espírito da Guerra estava contra nós!,
e os soldados, Ragnar, tiveram medo! Homens que nasceram pra lutar e morrer lutando,
que aprenderam a rir das ameaças da Morte, eles fugiram! Procuraram abrigo na selva
como ratos! É verdade que perdemos poucos soldados, mas... todos voltamos
envergonhados para casa, muitos falavam de abandonar o exército.

- E é isto que me torna um traidor? É absurdo que eu seja penalizado por nossa derrota!

- Quanto a isso, o Mago decidirá. Ele conhece os segredos das estrelas: saberá julgar o que
aconteceu.

Entre nós falava-se bastante do Mago, mas nunca até então eu tivera chance de me
encontrar com ele. E francamente achava os homens supersticiosos, quando comentavam a
sabedoria ilimitada de nosso juiz-filósofo. Não quis discutir mais com Nerval, e fiquei
alguns segundos em silêncio. Ele teve o cuidado de me reanimar: saltou para meu lado num
abraço de grandes amigos

- Vamos, pequeno Ragnar! É outra vez que eu te digo: somos irmãos, meu amigo, somos
irmãos! E você sabe como são poucos aqueles que são caros pra mim. Preste atenção: fará
bem para você viajar, ficar distante da guerra. Descanse um pouco lá. Talvez depois... você
coloque esta cabecinha bêbada no lugar! Então voltará, com sua música, a nos fazer o
destino favorável!

- é... também eu posso dizer o mesmo a você, meu amigo: ficar longe da guerra te faria
bem. Olhe: por que você não aproveita e me acompanha até o Rei? Seu pai ficará feliz de te
ver.

- Mas não meus irmãos...

O príncipe retornou junto à janela, novamente preocupado.

- Seu pai é conhecido como o mais justo de todos os reis que esta terra já conheceu. Não sei
porquê você fica tão aflito quando se trata de ir ao Palácio de teu pai, onde você mesmo foi
criado.

- Sim, meu pai é justo...

- Seu pai foi o único que soube tornar um só povo, conosco, os Elfos da Floresta Negra, os
Anões dos Abismos do Leste, as caravanas dos homens-escorpiões no Deserto Sem-Fim, as
tribos nômades de homens-lagartos dos Rios Subterrâneos. Mesmo os Ciclopes, das Ilhas
flutuantes, protegem nossos barcos e todo ano nos enviam presentes. Hoje um grande
Império reune muitos povos em apenas um povo. Apenas o Oriente, a Terra Devastada, os
Pântanos do Ocidente fracassaram o avanço dos Exércitos. Entre nós, por maiores que
sejam as diferenças, todos são respeitados e vivem em paz. Por isso o Império é tão
querido. Seu pai, Nerval, é Okran, o justo, e construiu a maior cidade jamais lembrada:
Minerva.

- Mas a insaciável procura de justiça de meu pai o levou à cegueira, Ragnar. Os portões de
Minerva permitiram a entrada de muitos estranhos. Algumas criaturas trouxeram a
impureza, a nossa cidade se encheu de escravos, de toda mixórdia de criaturas. Minha mãe
é apenas uma de suas cinco mulheres, e eu tenho irmãos... que custo a chamar de irmãos!
Meu pai foi capaz até de...

Nerval agarrou meu braço, os olhos arregalados, o coração transtornado

- Há um entre o povo-escorpião, Ragnar, um entre eles que devo chamar de irmão! Que
bizarra Natureza, indo atrás de sua justiça, que bizarra Natureza ele não foi capaz de criar!
Deus descerá com sua fúria contra nós!

O cavaleiro me soltou, e voltou a atenção pra janela. Vendo sol nublado, sorriu com
brandura e ficou contente falando do fim das secas. Mas eu não consegui mudar de assunto.
Me senti ofendido, não entendia o que ele quis dizer. Eu também não era um humano.
Então eu seria um estranho, um portador da impureza, a quem, por cegueira do Rei, foi
permitido a entrada em Minerva?

- Você fala demais em Deus, Nerval...

- E você não acredita, Ragnar! – voltou a agarrar meu braço, mas pressionando com força –
Pensa que eu não percebo teus sorrisos, toda vez que falo o nome divino? Não é outro o
motivo deste teu triste destino, kobold! Você irá à prisão... É o teu caminho, infelizmente:
por causa da tua pouca misericórdia a Deus, você precisará descer ao Purgatório, se curar
de teus pecados, entender tua vaidade. Só então poderá enxergar toda a Glória.

Escapei de seu braço e me esquivei pro fundo da cabine, mas não me resignei a escutar
calado

- Uma coisa é o Purgatório e o depois da morte, Nerval, outra coisa é a Prisão, de tijolos e
grades, com carcereiros sem um pingo de santidade. Não foi Deus, esta manhã, que me
bateu e me prendeu: foram os soldados. Eu acredito nos deuses, mas eles não participam do
mundo. Quem participa do mundo somos nós e nós. Se houve matança alguma vez, foram
nossas mãos que mataram. Se houve fome em tempos de bonança, foi nossa injustiça que
causou infortúnios.

Tive de parar, porque meu amigo havia se levantado – a coluna encurvada, a cabeça junto
ao teto – e retirado metade da espada fora da bainha. Não tive medo. Apenas, na dignidade
do silêncio, me voltei para a janela. Entrávamos na Floresta Clara. Mais um pouco e
chegaríamos na Estrada de Arkadia.
Ficamos quieto no pouco que restava da viagem. Os cavalos diminuíram a velocidade,
enquanto o sol, encontrado falhas no manto de nuvens, invadia nosso carro – sem trazer
nenhuma rejuvenescência. Assim que paramos, Nerval saltou da carroça. Eu fui logo atrás.
Um segundo carro, próprio à condução de prisioneiros, estava à nossa espera. Três cavalos
magros e maltratados resfolegavam, enquanto, sob um tronco caído, um sargento e três
soldados jogavam cartas. Eram poucos mas causavam uma algazarra de multidão, por tanto
afinco que tinham na disputava do jogo. Estranhei como os soldados não mostravam a
menor reverência à autoridade do sargento – apenas tomavam o cuidado de não xingar,
diferente do que faziam entre si. Pareceram aborrecidos com nossa chegada. O sargento,
guardando suas cartas no bolso – como se ainda fosse voltar para o jogo – veio ao encontro
do Cavaleiro, e prestou com má-vontade as devidas reverências.

- Vieram rápido de Áries. Mas também, com esses cavalos, poderiam chegar às ilhas do Sol
Nascente antes do fim da tarde...

Sorriu desdentado, e apontou para os próprios cavalos.

- A nós, porque levamos prisioneiros, dão verdadeiros pangarés. Levamos 3 dias para
cruzar duas léguas... E depois precisamos de mais 3 dias pros cavalos descansarem!

Riu às altas, acompanhado de todos os soldados. Reconheceu o que viajara conosco, e


tratou de ir apertar seu braço, num carinho ríspido.

- ah é o filho de Magna, ainda não está morto! Pois trate de continuar vivo, seu narigudo
pilantra, porque prometi pra tua mãe que você sairia inteiro da guerra! ... E ela sempre me
serve um grande pato assado, quando estou perto, para que eu não me esqueça da
promessa!

E abriu a gargalhada: assim era nosso povo, hospitaleiro e fanfarrão. Estávamos entre
militares, os homens da guerra e da disciplina, e não havíamos tocado no propósito da
missão. Eu me diverti e quis rir com eles, mas a visão da carroça – que iria me levar ao Rei
– me embrulhava o estômago: era uma cela de 60 centímetros de altura por 2 de largura e 3
de comprimento, com uma pequena boléia, mal adaptada em dois planos, para levar 4
pessoas. A cela já estava quase lotada. Nem animais de circo viajavam tão mal. Nerval, que
permanecia sério e altivo, não gostou dos comentários do sargento.

- Esses cavalos, sargento, esses pangarés, pertencem ao exército. Se estão mal cuidados, os
homens da sua unidade devem ser negligentes com os deveres. E isso muito me entristece,
sargento.

A alegria geral se dissipou como fumaça..Os soldados acharam injusto o duro tratamento
com seu querido sargento, que ficou totalmente embaraçado:

- Sim, claro, Cavaleiro, claro... Não se preocupe, não será preciso dizer duas vezes... E eu
estava brincando, são ótimos cavalos, só estão cansados, viajamos por muitos dias a fio e
com carga pesada... Afinal não param de surgir criminosos, não é mesmo?

O homem, forte e pançudo, tremia, sabia que uma palavra do príncipe ao comandante de
sua unidade seria o suficente para todos militares de baixa patente – inclusive ele – serem
castigados. Nerval nem se dignou a responder. Me apresentou com economias de palavras.

- Ele... está desamarrado...

Comentou com timidez o sargento. O cavaleiro meu amigo teve algo que, naquela hora, me
pareceu grandeza de espírito.
- Este prisioneiro é como meu irmão, está ouvindo? Se eu for informado de maus tratos pra
com ele, se mesmo ele demorar a ser entregue – ao dizer isto Nerval encarou com dureza as
cartas de baralho – eu serei obrigado a tomar as devidas providências. Mas confio na sua
competência, sargento.

O pobre-diabo concordou, abaixando a cabeça seguidas vezes. Eu quis apertar as mãos do


cavaleiro, porque, mesmo após nossa discussão, ele se lembrou de me proteger. No entanto
Nerval não se despediu nem com um olhar. Girou nos calcanhares e sumiu dentro do carro
real, como se eu nem existisse. O sargento me encarou, mediu minhas proporções, não pôde
acreditar

- irmão do príncipe... tá bom... Espero que vossa excelentíssima senhoria tenha uma
agradável viagem.

Resmungou sarcástico, e logo foi apressar os soldados.

- Vamos logo que essa carga é problema... Imagina se somos assaltados no meio do
caminho, e nos levam o nobre de pau-oco?

- É santo de pau-oco, sargento...

- Mas quem iria querer assaltar uma carroça que só leva ladrões?

Perguntou rindo um dos soldados. Outro se prontificou a ser mais engraçado:

- Ah hoje dia roubam tudo! Querem roubar até ladrões!

O sargento teve de berrar, furioso.

- Seus tapados! Os comparsas dos criminosos podem tentam nos assaltar, não percebem?
Essa pestinha cinzenta que a gente vai levar... Parece valiosa, talvez muitos queiram raptar
a Excelentíssima Senhoria irmão do príncipe, e depois extorquir a família real...

Foi didático como um pai. Os soldados atrelavam os soldados, um deles abriu a cela. Um
cheiro nauseabundo me feriu. O espaço era tão pequeno que eu, mesmo franzino, não
conseguiria ficar de pé ali dentro.

- Eu não vou entrar não.

O ultraje era tão grande que me neguei a obedecer. O soldado me empurrou, e assim que eu
me livrei de suas mãos, saltando pra trás, o sargento quase me arrebentou a cabeça com
uma porrada de cassetete. Perdi os sentidos durante alguns segundos. Mal senti os fracos
chutes dos soldados, que me mandavam levantar. Afinal desistiram, me agarraram os
braços, foram me passando pelo “buraco da portinhola”, que funcionava como porta, dentro
da cela. Eu acordei com o sargento quase me esganando, apenas minha cabeça pendendo
pra fora.
- olha aqui, diabinho cinza... Você pode ser quem for: aqui é um criminoso como qualquer
outro. Se tentar desobedecer, toma porrada. Queria viajar na boléia, é? Pois vai viajar aí
dentro, e quietinho.

Talvez Nerval só tenha me visto quando o carro real fazia meia-volta. Não sei: sei que
escutei sua voz exasperada, gritando impropérios. Agarrou o sargento pelo pescoço, quase
o derrubou no chão Hoje, revisitando essa sofrível lembrança, tenho dúvidas se o Cavaleiro
era impulsionado pelo sentimento de fraternidade. Creio que se irritou somente por ver um
subalterno desobedecer suas ordens (de me tratar bem). Penso assim porque, depois que ele
largou o sargento, não teve a menor preocupação com a ferida em meu rosto. Estava já
partindo embora, quando escutou minha voz

- Nerval! Nerval!

Veio até mim... eu fingi não conseguir falar, apenas sussurrar. Quando o Cavaleiro pôs o
ouvido junto à minha boca, eu não tive dúvidas:

- me deixa fugir, irmão! Eles, que ontem me glorificavam, irão querer me esfolar vivo! Pra
que serve ao Império um bardo esfolado, me diz? Se és meu irmão de verdade, salva-me
agora, me dê fuga! Quem irá saber, quem irá se importar? Estamos só nós aqui... Em
poucos dias ninguém se lembrará de meu nome, de minha existência, eu mesmo tomarei
cuidado de sumir, de andar sempre em frente pelas Terras Devastadas! Eu juro: é a primeira
e a última vez que apelo à nossa irmandade! Salva-me!

O cavaleiro se endireitou. Empurrou, quase com menosprezo, minha cabeça pra dentro da
cela, e fechou a portinhola.

- Não podes fugir ao teu destino, meu irmão. Precisa cumprir tua jornada. Precisa descer ao
purgatório e se lavar de teus pecados. Apesar de ser um kobold, uma raça inferior, você tem
uma alma nobre, e se tiver misericórdia você entrará no reino dos Céus. É preciso fé! E
então iremos nos encontrar, meu irmão, diante de toda a luz da Glória de Deus.

O ódio que brotou no meu coração foi tão intenso, que voltei a sentir a seiva da vida
circulando por meu corpo. Como um hipnotizado me levantei, me voltei na direção de
Nerval – que se afastava – e pressionando meu rosto contra as grades consegui reunir forças
para fazer meu grito ecoar por léguas:

- Pois então que vá ao diabo o teu desvairio, Nerval! Porque no final das contas teu Deus
não passa disso: de um delírio! Vocês estão com medo, porque subitamente começaram a
perceber que os humanos talvez não sejam tão melhores assim do que os outros... Você
renegou teus próprios irmãos de sangue, os filhos do teu pai: pois então sabe que hoje é o
teu irmão de existência, a quem você volta as costas, que te renega! De hoje pra sempre,
nunca mais me venha com esta lenga-lenga de “irmãozinho Kobold”! Afinal quem é esse
que deixa o irmão para os abutres? E quanto essa estória de eu ser “um kobold, uma raça
inferior”, pois que vá desentortar banana, seu humano safado!
Com um súbito chacoalhão, nossa cela começou a andar. Um troll de quase 3 metros jazia
estirado de ponta a ponta da cela, mal tendo espaço para mover os braços, seus pés
espinhentos às vezes me arranhavam a pele. Não sei quanto tempo estava ali, magro como
um graveto, respirando com dificuldade, à beira da morte. Ao meu lado, um orc cheio de
hematomas brincava idiota com os dedos dos próprios pés, sentado e todo encolhido. Mais
à frente, percebi o motivo do cheiro putrefato, um cadáver de águia dourada. Só depois vim
a saber que o sargento queria mandar empalhar e dar de presente à sua esposa. Tanto o orc
como o troll riram baixo, quando eu disse “seu humano safado!”, e me olharam com
ternura. E me doeu entender que aquele homem, tão próximo e verdadeiramente amigo,
príncipe verdadeiramente justo como o próprio pai, seria totalmente incapaz de me ajudar.
Seria mesmo incapaz de me compreender: não por sermos de outra raça, mas de outro
estrato social.

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