Você está na página 1de 222

A HERANÇA DOS

DESGRAÇADOS

COMO JESUS CRISTO CONVERTE BASTARDOS EM FILHOS

Norman M. Major
VERSÃO NÃO FINALIZADA

PROIBIDA A COMPARTILHA DESTE DOCUMENTO SEM A PERMISSÃO DO AUTOR


EM BRANCO
EM BRANCO
SUMÁRIO

Prólogo..................................................................................................................................................8

O CAMINHO DO BASTARDO.......................................................................................................13

A Desgraça do Primeiro Lar.......................................................................................................13

Princípio nº 1: Começa pelos mais frágeis.........................................................................15

Princípio nº 2: Busca contaminar o máximo.....................................................................20

Princípio nº 3: Seu foco principal é o lar............................................................................22

Promove disfunção familiar......................................................................................................30

Má comunicação....................................................................................................................31

Brutalidade.............................................................................................................................36

Abuso de álcool ou drogas...................................................................................................45

Facções.....................................................................................................................................51

Falta de intimidade e Apatia................................................................................................57

Perfecionismo........................................................................................................................63

AS CINCO HERANÇAS...................................................................................................................75

Herança I: A forma de ouvir.......................................................................................................76

Herança 2: A forma de falar.......................................................................................................86

Herança 3: A forma de agir........................................................................................................98

Herança 4: A forma de adorar..................................................................................................117

Herança 5: A Forma de ver.......................................................................................................129

A GRAÇA PARA O BASTARDO...................................................................................................147

A Reconciliação é Centrada em Deus....................................................................................150

O Filho perdido.........................................................................................................................158
O Lar Missionário......................................................................................................................167

Abraçando a Missão............................................................................................................176

Assumindo a Nova identidade...........................................................................................179

Considerações finais.................................................................................................................213
Prólogo

A dona Cremilda em voz desafiadora fitou aos olhos dele, e franziu umas palavras
que lhe deixaram totalmente chocados:
-Quem és tu para repreenderes a tua irmã, se você também é fruto de um
relacionamento ilícito? Será que o teu próprio pai enquanto casado não
engravidou outras mulheres de fora? Deixa-te disto pah, você agora pensa que
é o único cristão no mundo?

E com um suspiro de desdém terminou as perguntas que tinham o objectivo de


dar um ponto final, naquilo que devia ter sido uma conversa, mas acabou sendo
uma pequena discussão (com não pequenas implicações no relacionamento de
ambos), afinal de contas nenhum filho se sentiria confortável se a sua própria mãe
lhe lembrasse da sua origem “tu és um filho ilegítimo, um bastardo”, dito em outras
palavras, mas dito não obstante.
Naquele instante milhares de pensamentos surgiram de todas as partes que as
garras da sua imaginação podiam alcançar, mas todos eles concordavam e
terminavam no mesmo choque áspero “como pode a mãe me dizer isso?”. É
verdade que a bíblia diz “maldito o homem que confia em outro homem” (Jeremias
17:5) mas essa passagem lida contextualmente não diz que não podemos depositar
um grau de confiança nos homens, sobretudo naqueles que pela convivência se
revelam íntegros, a passagem busca dizer que a fé deve ser depositada unicamente
em Deus e não nos seres humanos. Na medida que saímos da infância para adultos
perdemos aquela ideia mágica de que os nossos pais são perfeitos e infalíveis,
entretanto, preservamos sempre uma opinião de estima acima do comum em
relação a eles, por vezes acontecem situações alheias ao nosso controlo que mexem
e de que maneira com tal imagem.
“Sinceramente mãe, eu esperava ouvir tudo menos isso que acabaste de dizer”,
respondeu ele, ainda sem acreditar no que acabava de ouvir. Tendo levantado
partiu para a sua casa chocado e a ponderar algumas coisas que foram surgindo
dentro de sua cabeça.
Fundamentos

Uma das coisas que o Nelson não conseguia aceitar é a ideia de que o facto de
seu pai ter sido um homem infiel, ao ponto de ter vários filhos e filhas fora do seu
casamento não podia ser razão para ele seguir o exemplo, doutro lado, o facto de
sua mãe ter-se envolvido com um homem casado também não implica que a
suafilha tenha que seguir no mesmo caminho. Já em sua casa, deitado na cama
Nelson tentou buscar todo tipo de subterfúgio imaginário para esquecer as palavras
que ouvira de sua mãe, mas sem sucesso.
As palavras se repetiam constantemente em sua cabeça como se fosse quando o
CD tem um erro de gravação ou um risco criando assim uma falha de reprodução
em que a mesma parte da música vai repetindo, estragando assim a harmonia. Ora,
com tais afirmações ficava claro que o relacionamento familiar estava minado, não
havia mais harmonia de princípios e por conseguinte caminhar juntos se tornaria
difícil (Amós 3:3). Pensou nas palavras de Cristo que dizem: “Não cuideis que vim
trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada; Porque eu vim pôr em
dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua
sogra; E assim os inimigos do homem serão os seus familiares” (Mateus 10:34-36).
Talvez o ponto mais difícil de engolir em tudo aquilo é o facto de sua mãe ser
membro de uma igreja evangélica, e ainda por cima, alguém que por vezes prega o
evangelho, especialmente nos cultos das mulheres (mamãs). Na verdade, não deixa
de ser chocante perceber que em certos valores morais até os mundanos são mais
zelosos do que os que se chamam de “crentes”.
Doutro lado, as palavras que Nelson ouvira naquele dia proporcionaram para ele
uma oportunidade única de encarar a realidade que apesar de tudo ele era um
“bastardo”, um filho ilícito. Nunca antes ele tinha ponderado com calma sobre a
sua origem, e sobre a sua identidade, até porque numa sociedade africana como a
angolana, a poligamia é cultural, e embora a Constituição não permita o casamento
polígamo, os filhos nascidos fora do casamento têm os mesmos direitos com os
filhos do casamento. Não existe, culturalmente, um grande preconceito em sermos
um “filho de fora”, e dificilmente os “filhos de fora” chegam a ser chamados
“bastardos”, um termo que classicamente trás consigo uma carga pejorativa.
Prólogo

Nenhum de nós se lembra de ter pedido a Deus (antes de existirmos) para que
nos introduzisse no presente mundo, tendo para tal escolhido quem seria o nosso
pai, a nossa mãe, o nosso país e etc. Essa ideia simplesmente não se enquadra na
nossa cosmovisão cristã, talvez encontrariam quem assim julga ter sucedido dentre
aqueles que acreditam na reencarnação. Na verdade, até mesmo dentre os que
acreditam na reencarnação não apresentam um relato em que se escolhe o que se
vai ser noutra vida, geralmente acreditam que na medida que nesta vida nos
comportarmos mal na próxima reencarnação poderemos acabar sendo algo de nível
inferior. Quer dizer que na outra vida, por castigo, acabaríamos por nascer um
gorila, depois um cão, um porco e sucessivamente.
Nelson não pediu para nascer um bastardo, assim como nenhum de nós pediu
para nascer branco, negro, asiático, etc. Imagina se todos tivéssemos a
possibilidade de escolher onde nasceríamos, em países subdesenvolvidos ninguém
provavelmente escolheria. Pais bêbados, famílias pobres, líderes corruptos;
ninguém igualmente escolheria. Nossas escolhas só começam depois de estarmos
aqui no mundo (porque antes não estávamos num outro mundo de qualquer
forma). Assim, fica injusto condenar alguém por nascer de um determinado jeito.
Quando no mundo todo se condena o racismo, a discriminação aos albinos, ou
as pessoas que sofram alguma doença congénita (Síndroma de Downs), e situações
semelhantes, é exatamente por ser do senso comum que não podemos condenar as
pessoas por aquilo que transcende as suas próprias escolhas. Entretanto,
biologicamente o bastardo não é culpado da sua existência, não escolheu ser
bastardo, ele simplesmente é um.
Num olhar espiritual e não biológico, o ser bastardo tem um outro significado, e
assim como biologicamente herdamos os genes dos nossos pais, espiritualmente
somos filhos de quem compartilhamos os mesmos princípios. O desgraçado,
entretanto, é aquele que herda a desgraça de seus parentes e posteriormente
transfere a mesma herança aos seus filhos. Os princípios ou o caminho do bastardo
é uma das principais desgraças no mundo, nós todos temos herdado tal caminho a
partir de Adão.
1.

O CAMINHO DO BASTARDO

Portanto, da mesma forma como o pecado entrou no mundo por um homem,


e pelo pecado a morte, assim também a morte veio a todos os homens, porque
todos pecaram. (Romanos 5:12)

A rebelião de Adão levou a expulsão da humanidade do jardim do Éden. Fora do


jardim o homem perdeu acesso a árvore da vida, cujo o fruto garantiria a vida
biológica da humanidade, e fora do jardim o homem perdeu a intimidade com
Deus, e isso significa que o garante da vida moral também ficou afectado. A vida da
humanidade fora do jardim jamais voltaria a ser o mesmo, por mais que o homem
se esforçasse, o relato da corrupção da humanidade em Génesis 6 e do dilúvio nos
mostra muito bem o que acontece quando o homem segue um caminho fora da
direcção de Deus.
Do mesmo jeito que Deus expulsou o homem do Éden, só o próprio Deus pode
restituir a integridade ou justiça no homem para que assim o homem volte no ideal
de Deus, num lugar onde há vida e há comunhão com Deus, longe da mentira da
Serpente. É isto que faz de Jesus Cristo o caminho, e a verdade e a vida (João 14:6).
Nos primórdios da Igreja cristã os discípulos de Jesus eram chamados de “Os do
Caminho” (Actos 24:14), isso significava que os discípulos seguiam a doutrina de
Jesus Cristo, seu modo de viver apontava para os ensinamentos de Jesus. Sendo
Jesus o filho unigênito de Deus (João 1:14), o caminho do bastardo será o modo de
viver, as doutrinas que são contrárias aos ensinamentos do Pai Celestial e único
Deus verdadeiro. Quando falamos de pai, filhos, e bastardos, estamos naturalmente
a falar do lar.
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

A DESGRAÇA DO PRIMEIRO LAR


Considerai, pois, aquele que suportou tais contradições dos pecadores contra
si mesmo, para que não enfraqueçais, desfalecendo em vossos ânimos. Ainda
não resististes até ao sangue, combatendo contra o pecado. E já vos
esquecestes da exortação que argumenta convosco como filhos: Filho meu,
não desprezes a correção do Senhor, E não desmaies quando por ele fores
repreendido; porque o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer que
recebe por filho. Se suportais a correção, Deus vos trata como filhos; porque,
que filho há a quem o pai não corrija? Mas, se estais sem disciplina, da qual
todos são feitos participantes, sois então bastardos, e não filhos. Além do que,
tivemos nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os
reverenciamos; não nos sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos, para
vivermos? (Hebreus 12:3-9)

Muitas são as ilações que podemos tirar quando as Escrituras nos dizem que “se
suportais a correção, Deus vos trata como filhos; porque, que filho há a quem o pai
não corrija? Mas, se estais sem disciplina, da qual todos são feitos participantes, sois
então bastardos, e não filhos”. Uma delas é que o ser bastardo não tem a ver com a
forma que nascemos biologicamente, mas sim com a forma pela qual nos
submetemos espiritualmente. Se nos submetemos a disciplina de Deus somos
filhos, se rejeitamos a disciplina de Deus seguimos o caminho do bastardo. A outra
ilação é que o bastardo não é um filho de Deus, Deus não tem filhos fora da
Aliança, fora da verdadeira Igreja de Cristo (Apocalipse 20:15).
No jardim do Éden encontramos o primeiro relato de como o homem abraçou o
caminho do bastardo, as Escrituras nos relatam a seguinte cena:
Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor
Deus tinha feito. E ela perguntou à mulher: "Foi isto mesmo que Deus disse:
‘Não comam de nenhum fruto das árvores do jardim’? " Respondeu a mulher à
serpente: "Podemos comer do fruto das árvores do jardim, mas Deus disse:
‘Não comam do fruto da árvore que está no meio do jardim, nem toquem nele;
do contrário vocês morrerão’". Disse a serpente à mulher: "Certamente não
morrerão! Deus sabe que, no dia em que dele comerem, seus olhos se abrirão,
O CAMINHO DO BASTARDO

e vocês serão como Deus, conhecedores do bem e do mal". Quando a mulher


viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além
disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, comeu-
o e o deu a seu marido, que comeu também. Os olhos dos dois se abriram, e
perceberam que estavam nus; então juntaram folhas de figueira para cobrir-se.
(Génesis 3:1-7)

A serpente induziu a Eva a errar contra a palavra de Deus (I Tim 2:14), esta
escolheu acreditar na palavra da serpente, enquanto isto, Adão ao invés de exortar a
Eva a não comer do fruto da árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, decidiu
igualmente comer o fruto e assim por escolha individual transgrediu a palavra de
Deus (Rm 5:14). O que deve ficar patente ao examinarmos estas passagens é que a
palavra de Deus foi banalizada e a palavra da serpente foi abraçada. A disciplina de
Pai foi rejeitada por aquele que era legitimamente seu filho (Lucas 3:38), Adão
seguiu o caminho do bastardo.
É preciso chamar a nossa memória outro aspecto importante aqui, e isto é que
em termos de tempo a esposa foi quem seguiu o caminho do bastardo primeiro, e é
esta é uma realidade espiritual reforçada no NT para que as esposas (mulheres)
tenham muito cuidado quanto aos falsos ensinos. A igreja é também apresentada
como sendo uma mulher, e não é mera coincidência que o Diabo investe no engano
e nos falsos profetas desde o princípio.
Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado, mas
a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão.(I Timóteo 2:13-14)

O caminho do bastardo é o caminho da serpente e dos seus anjos (Apocalipse


12:7-9), é ele o grande enganador, aquele que não se firma na verdade (João 8:44),
que seduz os homens a soberba e a insubmissão a palavra de Deus (Actos
13:10/Tiago 4:7/I Timóteo 3:6). Tudo que o inimigo faz é porque busca ser adorado
no lugar de Deus (Lucas 4:6-8), por isso se rebela contra Deus desde o princípio (I
João 3:8), tendo assim se tornado no pai de todos os bastardos; O bastardo!
Quando Adão decidiu receber a fruta das mãos da Eva e comer, Adão de sua
própria vontade havia decidido em seu coração rebelar-se contra a palavra de Deus
(I Tim 2:14), este acto segue o exemplo da própria Serpente, que tendo em seu
próprio coração rejeitado a verdade se tornou o pai da mentira (João 8:44), e deste
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

jeito o progenitor de todos mentirosos. A mentira neste caso se refere a todo o


caminho contrário ao caminho estreito, que nos mostra Jesus Cristo (Mateus 7:14).

Princípio nº 1: Começa pelos mais frágeis

O pecado é como um cancro que se espalha pelas artérias e tecidos do corpo de


um paciente com muita rapidez, no intuito de matar a sua vítima. Entretanto, o
pecador é o agente do cancro, onde quer que este esteja sua missão é espalhar a
morte aos mais frágeis. No jardim do Éden vemos exatamente isto, a Serpente cheia
de seu veneno se aproxima da pessoa mais frágil (I Pedro 3:7), engana-a, e esta ao
invés de ficar com o pecado só para si, pega na fruta e estende para o seu marido. É
como se o pecado fosse generoso, se doa a todos quanto poder, mas sua doçura é
fatal.
Se olharmos para o caso da dona Cremilde e o seu filho Nelson, encontramos aí
um cenário onde o erro dos pais reivindica o lugar de princípio, ou seja, pelo facto
de o Nelson ser fruto de adultério, sua própria mãe evangélica acha que ele não tem
moral para repreender sua irmã que estava a adulterar com um homem casado. Que
não haja equivoco, as histórias que o livro relata não são invenções, são resumos de
acontecimentos factuais, claro com alguns recortes e mudanças dos nomes das
pessoas envolvidas para salvaguardar suas identidades.
Nelson cresceu ao lado de sua mãe, distante de seu pai, sem figura paterna
presente, ora um tio, ora um professor, ora um pastor da igreja da mãe ocupava o
lugar vazio, e assim se moldou a identidade de mais um bastardo, algures em
Angola. Se Timóteo aprendeu os caminhos da fé não fingida com sua mãe Eunice, e
esta de sua avó Lóide (II Tim 1:5) a partir de casa, Nelson não teve o mesmo aporte.
Doutro lado, imaginemos o tipo de evangelho e o clima espiritual de uma igreja
onde a dona Cremilde é pregadora, que exemplo o mesmo herdou durante o seu
crescimento.
Nelson cresceu num ambiente religioso, mas não num ambiente espiritual, sua
tardia conversão é somente o reflexo de um dos frutos do caminho dos bastardos,
O CAMINHO DO BASTARDO

ou se perdem totalmente ou são salvos depois de muito tempo de andarem


perdidos na fé fingida. Hoje, milhares de Nelsons enchem as reuniões de culto nas
diversas denominações.
No lar, os filhos são os mais frágeis, e os pais representam a porta para o
caminho do filho de Deus ou para o caminho do bastardo. Filhos corruptos de hoje
serão os pais corruptores dos filhos de amanhã, e assim temos um sistema perpétuo
de corrupção. A mãe e o pai são figuras de vital influência na identidade dos filhos,
sendo que a fraqueza espiritual do casal é quase sempre a raiz da desgraça dos
filhos. É já notado mundialmente que a maioria dos criminosos são pessoas
oriundas de lares disfuncionais, sendo que existe maior propensão dos filhos
criados por apenas um dos progenitores acabarem por enveredar na vida do crime,
e finalmente mortos ou nas grades das prisões.
Vale a pena aqui dizer que as famílias mais vulneráveis são aquelas que não
seguem o caminho de Jesus Cristo, seus princípios não emanam de Deus, mas sim
do mundo ou, em pior dos casos, da Serpente. A disfunção no lar de Adão começou
com a esposa Eva dando ouvidos a serpente, foi conscientemente abraçada pelo
esposo Adão, e foi violentamente avivada em seu primogénito Caim e atingiu o seu
apogeu em Génesis 6, ao ponto de Deus ter decidido enviar um dilúvio:
E viu o SENHOR que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que
toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente.
Então arrependeu-se o SENHOR de haver feito o homem sobre a terra e
pesou-lhe em seu coração. E disse o SENHOR: Destruirei o homem que criei
de sobre a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à ave
dos céus; porque me arrependo de os haver feito. (Génesis 6:5-7)

Se Noé não tivesse achado graça aos olhos de Deus o que seria da humanidade?
Donde viria a linhagem através de quem o Logos se faria carne (João 1:14)?
Um ponto interessante relativo ainda a história de Adão e Eva é o seu reflexo na
vida de seu primogénito. Adão caiu em transgressão, Caim caiu em transgressão,
Adão respondeu com arrogância a Deus, Caim respondeu com arrogância a Deus,
mas no que tange a natureza da transgressão há uma clara diferença em termos de
peso, comparemos o castigo dado a Adão com aquele que foi dado ao seu filho:
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da


árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela, maldita é a terra por
causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos, e cardos
também, te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto
comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado;
porquanto és pó e em pó te tornarás. (Génesis 3:17-19)
E agora maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua
mão o sangue do teu irmão. Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua
força; fugitivo e vagabundo serás na terra. E agora maldito és tu desde a terra,
que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. (Génesis
4:11-12)

No primeiro Deus amaldiçoa a terra por causa de Adão, no segundo Deus


amaldiçoa o filho de Adão. No primeiro, Deus fala da dificuldade de labor para a
sobrevivência de Adão, no segundo, Deus fala do próprio carácter de Caim,
dizendo que por causa do sangue que o mesmo derramou o mesmo seria
vagabundo e fugitivo, duas vezes se repete “Maldito és tu desde a terra”. A
transgressão de Caim foi mais distante que a do seu pai e da sua mãe, nenhum deles
derramou sangue de seu próximo. Caim foi o primeiro assassino dentre os homens,
ele por vontade própria agrediu fatalmente um ser feito a imagem e semelhança de
Deus.
A semelhança de Caim que seguiu o caminho de seu próprio pai, tendo levado a
um outro patamar a rebelião, o descendente de Caim, Lameque assassinou uma
alma a mais do que o seu pai (Génesis 4:23-24). Já o seu filho Tubalcaim foi o
primeiro artífice de armas metálicas, se os seus pais tinham derramado sangue, ele
fez do derramar sangue sua arte e sua área de expertise. Se olharmos para estes
desenvolvimentos conseguimos ver que o mal herdado tende a ser o mal piorado.
Segundo o livro não canónico de Enoque, foi por inspiração maligna, de seres
espirituais que os homens aprenderam a fazer armas e as artes mágicas. O derramar
sangue é associado a bruxaria, que é a marca dos rebeldes (I Samuel 15:23).
O CAMINHO DO BASTARDO

Este progresso do pecado de pai para filhos e seus descendentes deve ser visto
não como mera coincidência, mas sim como a visão pela qual a Serpente seduziu a
Eva. Ela (a serpente) queria injectar o caos total na humanidade, é como um cancro
que deveria corromper todo e cada ser humano, por causa desta corrupção Deus
tinha de tirar o homem do Jardim do Éden, lugar santo é para os santos. O Diabo
sempre teve o seu foco nos filhos de Adão e Eva primeiramente, e para tal só
precisava corromper seus pais, segundo um ditado africano quando a cabeça do
peixe está podre o resto da sua carne também está contaminada . A serpente não
somente ataca n parte mais fraca, lá onde a fraqueza se revelar, lá ele ataca
primeiro.
Um outro caso que nos mostra como a disfunção entra numa família de especial
valor no plano da redenção da humanidade é o de Jacó. Depois de Jacó (o
trapaceiro) ter sido trapaceado por Labão, e acabado por possuir a Leia (ao invés da
sua amada Raquel), teve de trabalhar mais sete anos para realizar o seu sonho de
casar com a Raquel, as coisas complicaram-se um pouco com Labão e Jacó pega nas
suas esposas, filhos, servos, gado e foge, mas antes de fugirem, a sua amada furtou
os ídolos de seu pai. Três dias depois o sogro se apercebe e vai atrás deles, num
caminho de sete dias e os apanha na montanha de Gileade , mas pela intervenção
de Deus Labão não pode fazer mal a Jacó, já pela trapaça de Raquel, infelizmente
Labão não consegue recuperar seus deuses (Génesis 29 e 31). Lemos que:
E agora se querias ir embora, porquanto tinhas saudades de voltar à casa de
teu pai, por que furtaste os meus deuses? Então respondeu Jacó, e disse a
Labão: Porque temia; pois que dizia comigo, se porventura não me
arrebatarias as tuas filhas. Com quem achares os teus deuses, esse não viva;
reconhece diante de nossos irmãos o que é teu do que está comigo, e toma-o
para ti. Pois Jacó não sabia que Raquel os tinha furtado. Então entrou Labão
na tenda de Jacó, e na tenda de Lia, e na tenda de ambas as servas, e não os
achou; e saindo da tenda de Lia, entrou na tenda de Raquel. Mas tinha tomado
Raquel os ídolos e os tinha posto na albarda de um camelo, e assentara-se
sobre eles; e apalpou Labão toda a tenda, e não os achou. (Gen 31:30-34)

Raquel trás a idolatria na casa de Jacó. Ao longo do relato bíblico a casa de Jacó
não se vê livre da idolatria (Jeremias 3:9|Ezequie 16:17), seus filhos seguiram o
caminho da mãe, amaram os deuses dos caldeus, seguiram o caminho da idolatria,
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

seguiram o caminho do bastardo, herdaram a desgraça da mama. Um bom exemplo


disto podemos ver quando as tribos de Israel fizeram um bezerro no deserto,
quando Moisés subiu ao monte para falar com o Senhor (Êxodo 32:4). Só seguiram
o caminho da Raquel.
Entretanto, se notarem bem o paragrafo antes da citação, notarão a repetição da
ideia de trapacear, isso foi propositado. Jacó que traduzido é trapaceiro, era
naturalmente trapaceiro, mas para trapacear ao seu pai Isaac e receber a benção de
priogenitura teve a participação da trapaça da mãe. Já com Labão (seu tio) o
trapaceiro Jacó foi trapaceado quanto ao casamento, que significa que o seu tio
também era trapaceiro, e no que diz respeito a forma como Raquel enganou o seu
pai Labão fica mais do que claro que também era trapaceira. Resumindo, mãe
trapaceira, tio trapaceiro, filho trapaceiro e filhas trapaceiras, uma família
verdadeiramente trapaceira. Olha para a herança familiar.
O bom de Deus é que Ele não se conforma com as nossas desgraças, o
Trapaceiro foi transformado em Israel, bastou Jacó encontrar-se com Deus que seu
nome foi mudado, saiu do vergonhoso para uma posição de honra e nobreza (Gen
32:38). Entretanto, o pecado sempre que presente busca replicar e contaminar o
máximo de vítimas, essa é outra da sua característica.

Princípio nº 2: Busca contaminar o máximo

Este processo em que o pecador não guarda o pecado para si, mas busca
contaminar os mais frágeis é algo que transcende o controlo do pecador, é uma das
características do próprio pecado: contaminar o máximo de pessoas possíveis.
Assim como as células auto-replicam-se, o pecado também segue semelhante
princípio, é como um cancro que se alastra rapidamente para no final matar o
organismo em que habita. A Serpente não guardou seus propósitos malignos,
exteriorizou o mal de seu coração, este seu pecado levou a Eva a pecar e esta
convidou Adão a juntar-se a família dos bastardos. Por este pormenor Paulo nos
diz:
O CAMINHO DO BASTARDO

Portanto, da mesma forma como o pecado entrou no mundo por um homem,


e pelo pecado a morte, assim também a morte veio a todos os homens, porque
todos pecaram. (Romanos 5:12/NVI)

De facto, um pouco de fermento leveda toda a massa (I Coríntios 5:1-11). Por


essa razão Deus tem preparado o lago de fogo (Apocalipse 19:20, 20:10-15), para
não somente conter a contaminação do pecado, mas destruir todos os seus
promotores. É que a liberdade de um único pecador representa uma ameaça ao
bem máximo do universo. No NT temos o relato sobre um praticante de ciências
ocultas chamado Simão, O mago, as Escrituras nos contam o seguinte:
Um homem chamado Simão vinha praticando feitiçaria durante algum tempo
naquela cidade, impressionando todo o povo de Samaria. Ele se dizia muito
importante, e todo o povo, do mais simples ao mais rico, dava-lhe atenção e
exclamava: "Este homem é o poder divino conhecido como Grande Poder".
Eles o seguiam, pois ele os havia iludido com sua mágica durante muito
tempo. (Actos 8:9-11, NVI)

Simão influenciava toda a Samaria, tanto os grandes como os pequenos. A


feitiçaria de Simão não era para ludibriar um grupinho de pessoas, mas sim para
iludir uma cidade toda. Naquele tempo não havia televisão, não havia rádios para
fazer publicidade, nem mesmo panfletos coloridos para colar nas ruas e publicitar
shows de magia, mas o feiticeiro Simão com muita dedicação havia ganho o coração
dos samaritanos. Para os samaritanos este era o “Poder de Deus” ou o “Grande
Poder”. Ora, o verdadeiro poder de Deus é o evangelho de Cristo (Romanos 1:16),
querendo dizer que Simão se fazia de “cristo”. Jesus Cristo alertou-nos dizendo:
…Então, se alguém vos disser: Eis que o Cristo está aqui, ou ali, não lhe deis
crédito; Porque surgirão falsos cristos e falsos profetas, e farão tão grandes
sinais e prodígios que, se possível fora, enganariam até os escolhidos. (Mateus
24:23-24)

Muitos são os homens “de Deus” que movimentam massas, suas igrejas
congregam milhões, estes são pregadores famosos, eloquentes, cheios de
manifestações de poderes extraordinários, contam-se coisas incríveis sobre os
mesmos, e aos olhos de muitos parecem genuinamente revestidos do “Poder
Divino” ou do “Poder de Deus”, mas no fundo não passam de praticantes de
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

feitiçaria que iludem com mágica durante muito tempo países inteiros. São
insaciáveis, querem contaminar consigo o próprio globo.
No Velho Testamento podemos ver a influencia que a rainha Jezabel tinha sob
Israel, através de seu esposo o rei Acabe. Nós lemos inicialmente que de todos os
maus caminhos de Acabe um dos seus piores foi o facto de casar com esta mulher:
E sucedeu que (como se fora pouco andar nos pecados de Jeroboão, filho de
Nebate) ainda tomou por mulher a Jezabel, filha de Etbaal, rei dos sidônios; e
foi e serviu a Baal, e o adorou. E levantou um altar a Baal, na casa de Baal que
edificara em Samaria. (I Reis 16:31-32)

Estes versos são muito interessantes para mim, é fácil notar como o escriba que
escreveu I Reis busca transmitr uma mensagem através da repetição do termo
“baal”. Ele aponta que a Jezabel é filha de “Etbaal” que levou Acabe a servir “Baal”,
a levantar um altar a “Baal” na casa de “Baal”. Ou seja, a idolatria à Baal era a marca
da depravação associada a Jezabel. Casar com uma pessoa que não serve o Deus de
Abraão, Isaque e Jacó é uma porta a desgraça. É um comportamento bastardo.
Jesabel obviamente que foi um investimento da própria Serpente, alguém
trabalhada desde pequena para atingir a casa de Israel. Depois de dominar o seu
esposo com suas feitiçarias e encanto, ela não poupou esforços para materializar
sua missão, perseguiu e matou os profetas de Deus (II Reis 9:7), e levou Israel a
tamanha apostasia que foi preciso o profeta Elias levantar-se da parte de Deus para
desafiar o status quo (I Reis 18:19) e eliminar os falsos profetas da idolatria (I Reis
19:1). Nós lemos que:
Então Acabe convocou todos os filhos de Israel; e reuniu os profetas no monte
Carmelo. Então Elias se chegou a todo o povo, e disse: Até quando coxeareis
entre dois pensamentos? Se o SENHOR é Deus, segui-o, e se Baal, segui-o.
Porém o povo nada lhe respondeu. (I Reis 18:20-21)

A situação de Israel havia chegado a um ponto tal que o povo estava confundido
em relação a quem era o verdadeiro Deus. Eles haviam poluído as suas consciências
e corações pelo labor de uma só bruxa influente. A casa de Acabe estava possuída
O CAMINHO DO BASTARDO

por Baal através de sua esposa Jesabel, e isto permitiu confundir e corromper todo
Israel. A poluição espiritual não tinha como meta a corrupção de Acabe, mas sim de
todo o Israel, mas para tal tinha de começar no lar de Acabe. O lar é o foco especial
do labor da Serpente, afinal de contas os bastardos são produtos do lar.

Princípio nº 3: Seu foco principal é o lar

Como vimos no caso de Acabe, o foco do pecado é destruir o lar. Lembremo-nos


do lugar onde se desenvolveu a trama do pecado original, não aconteceu fora do
jardim, não aconteceu nos cantos do jardim, mas sim no centro do jardim (Gen
2:9). Este pormenor não pode ser nunca desprezado, é necessário examinarmos as
lições que o Criador quer nos passar sobre isso. Se de um lado o mundo que foi
criado era vasto, a vegetação densa e selvática, doutro lado o jardim do Éden era um
território sagrado, separado do resto da terra, onde o próprio Deus havia preparado
como o lugar certo para a habitação da humanidade (Gen 2:8-15). Um santuário ou
simplesmente o primeiro Templo na terra.
Aqui devemos parar um pouco e ver pelo menos duas coisas importantes. A
primeira é o facto de o lar ser o princípio da sociedade (Actos 17:16), ou em outras
palavras o pai e a mãe da sociedade, daí vermos que lares disfuncionais produzem a
maioria dos assassinos (Caims) da sociedade. É também a instituição mais atacada
pelos poderes malignos que conduzem as forças que mais influenciam o modo de
ser e de estar das sociedades.
Há uma guerra espiritual muito forte contra a estrutura bíblica e tradicional da
família, de tal dimensão é esta guerra que em alguns países, é quase que um crime
emitir uma opinião contrária ao homossexualismo. Tomar uma posição consistente
com a maioria da história da humanidade hoje é considerado homofóbico, mesmo
quando em nenhum momento apoiamos qualquer sorte de violência contra os
homossexuais. Jesus Cristo não ensina a violência contra aquelas pessoas com que
não concordamos doutrinalmente.
A televisão não para de bombardear as nossas casas com telenovelas que fazem
apologia ao homossexualismo, os fazedores de opinião não param de sugerir ou
considerar de anti-intelectuais ou preconceituosos todos aqueles que não apoiam o
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

homossexualismo. A pessoa pode nunca ter ofendido ou agredido um


homossexual, mas só por defender a posição bíblica é chamada de homofóbica.
Sabemos que Cristo não nos ensina a ofender ou agredir quem quer que seja, seja
este um mentiroso, um fornicador, ou um homossexual, mas também sabemos que
o mesmo evangelho nos exorta severamente a não nos fazermos participantes do
pecado (I Cor 6:9/Romanos 1:18-32).
Um outro ponto pelo qual vale a pena ver, é o lar ser o reflexo do santuário de
Deus. Assim como no jardim Deus coabitava com Adão (humanidade), do mesmo
jeito no Templo havia o lugar santo dos santos, onde o sumo-sacerdote uma vez ao
ano entrava na presença de Deus, sem esquecermos que assim como era tarefa de
Adão cuidar e guardar o Jardim do Éden, Deus havia ordenado os sacerdotes
guardar e cuidar os negócios do Templo (Num 18:1-6). Hoje, a Casa de Deus é a
igreja (Tito 3:14-15), a comunidade espiritual de todos discípulos de Jesus Cristo (I
Tim 3:15/Hb 10:21/IPd 4:17). Daí vermos o ataque do inimigo no seio da igreja;
divisões entre os cristãos, escândalos, falsos profetas, falsos apóstolos e falsos
pastores não param de surgir. Realmente temos testemunhado a realização da
seguinte profecia:
E também houve entre o povo falsos profetas, como entre vós haverá também
falsos doutores, que introduzirão encobertamente heresias de perdição, e
negarão o Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina
perdição. e muitos seguirão as suas dissoluções, pelos quais será blasfemado o
caminho da verdade. E por avareza farão de vós negócio com palavras fingidas;
sobre os quais já de largo tempo não será tardia a sentença, e a sua perdição
não dormita. (II Ped 2:1;3)

No jardim plantado por Deus havia abundante comida e água para a


humanidade, o melhor e do mais puro para o bem do homem estava lá, entretanto,
o homem tinha o dever de o lavrar e guardar. Este lugar não era como qualquer
outro pedaço de terra no mundo, era especial. Éden era o lar, a casa que Deus havia
construído para a humanidade.
O CAMINHO DO BASTARDO

É no Éden onde Adão foi localizado na terra, lá Adão recebeu a ordem de


dominar sobre a flora e a fauna (Gen 1:26-27). O Éden representava o governo, a
base de autoridade sobre o resto do mundo, de lá Adão tinha o governo e o poder
dado por Deus, fora do Éden naturalmente que tal poder e autoridade ficava
alienada. Com a Eva no Éden o jardim se tornava num lar, a casa ideal da família
humana. Entretanto, com a presença de Deus no Éden o jardim representava o
templo, o lugar de comunhão entre o Criador e os homens (Apocalipse 21:3,22).
Foi neste templo e lar, onde sucedeu a transgressão.
Não é coincidência que um dos principais sinais da aproximação da vinda de
Cristo é nada mais nada menos do que a apostasia, que é o abandono da fé. Se
levarmos em conta que o Templo de Deus é a Igreja (I Cor 3>16-17), podemos
facilmente perceber que a apostasia é um pecado estritamente cometido por
aqueles que fazem parte do Templo. Essa é a marca do agir da Serpente, sempre a
cuspir o seu veneno, e atacar no coração do Jardim do Éden ou Templo de Deus. Os
seguintes textos mostram muito bem essa verdade:
Ora, irmãos, rogamo-vos, pela vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, e pela nossa
reunião com ele, que não vos movais facilmente do vosso entendimento, nem
vos perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola, como de
nós, como se o dia de Cristo estivesse já perto. Ninguém de maneira alguma
vos engane; porque não será assim sem que antes venha a apostasia, e se
manifeste o homem do pecado, o filho da perdição, o qual se opõe, e se
levanta contra tudo o que se chama Deus, ou se adora; de sorte que se
assentará, como Deus, no templo de Deus, querendo parecer Deus. (II Tes 2:1-
4)

Tal como aconteceu com a Eva e depois Adão, o Espírito expressamente diz que
nos últimos tempos apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos
enganadores, e a doutrinas de demónios . Milhares de milhares de almas (grandes e
pequenos) continuam sendo seduzidas, pelos seus pastores e líderes de suas
denominações, são organizações que para todo o efeito se apresentam como
representantes de Deus, por vezes possuem um legado histórico, têm uma grande
contribuição social, têm influência política, mas em sua direcção não está Cristo.
Não são nem quentes, nem frias, para são o vomito de Jesus Cristo (Apoc 3:15-16).
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Por causa desta realidade espiritual não paramos de assistir escândalos


envolvendo líderes cristãos, com relatos de actos tão vergonhosos que ultrapassam
até o padrão moral dos mundanos mais perversos. Assim a sociedade acaba por
olhar para o evangelho com desdém, tal como está escrito:
E também houve entre o povo falsos profetas, como entre vós haverá também
falsos doutores, que introduzirão encobertamente heresias de perdição, e
negarão o Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina
perdição. e muitos seguirão as suas dissoluções, pelos quais será blasfemado o
caminho da verdade. E por avareza farão de vós negócio com palavras fingidas;
sobre os quais já de largo tempo não será tardia a sentença, e a sua perdição
não dormita. (II Ped 2:1-3)

Igualmente assistimos hoje a desestruturação dos lares, fruto da dessacralização


do matrimónio entre um homem e uma mulher (Gen 2:24). Nunca houve tanto
divórcio como nos nossos dias, um fenómeno que ocorre num índice semelhante
tanto no mundo secular como no seio da Igreja. Na verdade, se olharmos com
calma os escândalos no seio da Igreja rapidamente se faz notável envolver a
infidelidade conjugal. Sodoma e Gomorra hoje é a vida íntima (lar) dos líderes
cristãos e a vida espiritual (igreja) dos mesmos. Muitos seguiram o caminho do
bastardo.
Agora imaginemos o que acontece quando o lar de um líder evangélico está
contaminado com o pecado, com o rancor, com a ira, com a infidelidade ou com a
mentira. O Ap. Pedro falando sobre relacionamento matrimonial diz que:
Semelhantemente, vós, mulheres, sede sujeitas aos vossos próprios maridos;
para que também, se alguns não obedecem à palavra, pelo porte de suas
mulheres sejam ganhos sem palavra; considerando a vossa vida casta, em
temor. O enfeite delas não seja o exterior, no frisado dos cabelos, no uso de
jóias de ouro, na compostura dos vestidos; mas o homem encoberto no
coração; no incorruptível traje de um espírito manso e quieto, que é precioso
diante de Deus. Porque assim se adornavam também antigamente as santas
mulheres que esperavam em Deus, e estavam sujeitas aos seus próprios
maridos; como Sara obedecia a Abraão, chamando-lhe senhor; da qual vós sois
O CAMINHO DO BASTARDO

filhas, fazendo o bem, e não temendo nenhum espanto. Igualmente vós,


maridos, coabitai com elas com entendimento, dando honra à mulher, como
vaso mais fraco; como sendo vós os seus co-herdeiros da graça da vida; para
que não sejam impedidas as vossas orações. (I Ped 3:1-7)

O que devemos captar destas palavras apostólicas não devem ser somente os
conselhos, mas também as advertências. A oração de um esposo que desonra a sua
esposa e a mal trata simplesmente não chega ao coração de Deus, é igual a tentar
obter respostas da estátua do pensador. Imaginemos a situação dos presbíteros
com lares manchados pela desonra de suas esposas e desentendimentos constantes,
qual deus ouvirá as suas orações, para além do deus dos mortos? Imagina uma igreja
liderada por pessoas que não recebem resposta nenhuma da parte de Deus? Pior,
quando estes oram inclusive irritam a Deus (Prov 15:8).
Quando Deus não responde o clamor dos líderes estes geralmente buscam
alternativas, buscam métodos carnais e carnalizam suas igrejas. Entretanto, muitos
recorrem a feitiçaria, como fez Saul (I Sam 28:6-8), ou como o Simão o Mago (Act
8:9-11) fazem da igreja a sua Samaria, e enganam desde os pequenos até os grandes
dentre os seus membros. Assim se levantam falsos profetas, oráculos dos espíritos
enganadores que introduzem heresias de perdição.
No outro polo, encontramos as esposas evangélicas, que na maioria dos casos
não levam as palavras do Ap. Pedro a peito, não são sujeitas aos seus esposos, e por
vezes apresentam comportamentos iguais as mundanas. A espectativa de Deus é
que as suas filhas sejam tão castas, tão piedosas que sem sequer abrirem a boca,
convençam os seus maridos do caminho de Deus. Como a Igreja deve sujeição a
Cristo, a esposa deve sujeição ao seu esposo (Ef 5:22-24). Basta a cada esposa cristã
perguntar a si mesma se a forma como fala ou responde ao seu esposo serviria como
um bom exemplo para igreja imitar ao se dirigir a Jesus Cristo.
Tanto os filhos, como as filhas que crescem na mão de um casal que não se
submete a palavra de Deus, tarde ou cedo seguirão o caminho de Caim, o caminho
dos bastardos. É isso que o Diabo quer com as famílias e as igrejas, quando o lar é
manchado com o pecado, a igreja segue no efeito, produz falsos profetas, falsos
discípulos, falsas doutrinas e falsos irmãos, por isso o lar deve ser preservado o mais
santo dentre todas as instituições (Heb 13:4), preservada no padrão da palavra de
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Deus, sendo que a igreja deve começar no próprio lar, tal como o foi no Jardim do
Éden.
Como apontado antes, não foi em qualquer parte do jardim, foi no centro do
jardim, no centro do lar e Templo onde o aguilhão da morte foi injectado. Lá onde
estava a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal (ACBM) e a Árvore da Vida (AV)
se fez o palco do pecado. Naquele lugar estava o conhecimento, de um lado, e a vida
do outro, sendo o apoderar-se do conhecimento em transgressão teve como
resultado a expulsão do jardim, que por sua vez significou deixar de ter acesso a
vida, ou seja estar a mercê da morte (Gen 3:22-23). O bastardo é filho da morte.
A serpente não atacou a Árvore da Vida no coração do jardim, a serpente atacou
os principais beneficiários dos frutos da Árvore da Vida, isto porque Adão e Eva na
terra representam o coração de Deus, a humanidade que Ele amou ao ponto de
entregar seu próprio filho a fim de os salvar (João 3:16). Aqui podemos tirar muitas
lições, sobre Deus, sobre os homens e as mulheres e sobre o inimigo.
O coração de Deus não está, primeiramente, sobre o fruto da Árvore da Vida,
mas sim naqueles a quem a vida é destinada. Podemos aplicar esta conclusão
afirmando que o coração de Deus não está nas Escrituras, mas sim naqueles por
quem elas foram escritas (João 5:39). Ora, tanto a Árvore da Vida como as Escrituras
são meros instrumentos para nos revelar o amor do Criador que nos quer o maior
bem, que é o conhecimento do Criador (João 17:3).
A humanidade perde a possibilidade de conhecer o propósito de sua existência,
enquanto alienada da revelação de Deus e de Jesus Cristo (João 17:3), e toda
existência privada de tal conhecimento naturalmente que necessita morrer, não
primeiramente por juízo, mas por necessidade da própria misericórdia e
compaixão divina. Por esta razão a vida eterna é conhecer a Deus, pois o significado
e o valor de viver nunca podem ser dissociados da fonte da própria vida.
A morte é tudo que pode produzir aquele que por orgulho não se submeteu ao
conhecimento de Deus, ao contrário, preferindo a mentira se corrompeu ao ponto
O CAMINHO DO BASTARDO

de reduzir a verdade a um instrumento táctico, num esquema maléfico que tem


como objectivo roubar a glória de Deus. A serpente é astuta, tão astuta que
percebeu que lançando dúvidas sobre a palavra de Deus abre portas para toda sorte
de mentiras, visto que Deus é a verdade (João 8:32) e duvidar é o antónimo de crer.
Só abraçando a mentira é que o inimigo aprisiona os homens e assume a posição de
senhor sobre eles (João 8:34), se o homem foi criado para servir a verdade,
obedecendo o pai da mentira passam a servir o Diabo, tornando-se não mais filhos
de Deus, mas verdadeiros bastardos e filhos do Diabo (João 8:44).
Se o núcleo central da sociedade é a família o ataque foi feito bem em seu ponto
primordial, no relacionamento do casal. Como resultado imediato da transgressão
houve uma alienação em dois sentidos, Adão e Eva ganharam a consciência da sua
nudez diante de Deus, e diante de um do outro:
Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e
coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais. E ouviram a voz do
SENHOR Deus, que passeava no jardim pela viração do dia; e esconderam-se
Adão e sua mulher da presença do SENHOR Deus, entre as árvores do jardim.
(Génesis 3:7-8)

A mancha da culpa e da transgressão faz com que o casal perca intimidade. Se


antes a existência do marido e da esposa era de perfeita unidade (Génesis 2:2-25),
com o pecado surge uma abstracção, um barulho, uma confusão. Adão e Eva se
percebem como um casal de bastardos, bem próximo um do outro (como nenhum
outro ser no jardim), mas simultaneamente tão distantes como nunca antes.
Quando Adão responde “a mulher que me deste por companheira, ela me deu da
árvore, e comi” vemos aí uma atitude de desrespeito e acusação a Deus e uma
atitude de desdém do marido a sua esposa; egoísmo.
Nós podemos até compartilhar a mesma cama, mas vivermos um mundo a parte.
O ser humano é muito mais do que carne, ossos e sangue, a vida não para de nos dar
exemplos da nossa complexidade existencial. Como explicar o suicídio de
milionários, divórcios de pessoas que viveram décadas juntos, sem brigas e sem
adultérios? Tinham dinheiro, tinham casa, tinham carreiras bem-sucedidas, mas de
repente são encontrados pendurados em uma corda no quarto, ou com a cabeça
perfurada com um tiro (cometendo assim um crime contra eles mesmo). Ou
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

simplesmente alguém acorda (depois de tantos anos de casados) e confessa: “Não


posso mais continuar com você, estou cansado de fingir, eu e você não fomos feitos
um para o outro, quero o divórcio”.
Neste mundo pós-moderno, é um cenário quase que normal, as pessoas com os
seus telemóveis ou tablets acabarem gastando mais tempo conversando com
pessoas a milhares de quilómetros de distância, do que com os mais próximos bem
em frente ao seu nariz. Uns anos atrás fui a casa de minha tia em Luanda para ver as
minhas primas que acabavam de chegar do Huambo para passar férias, como a
própria tia tinha os três filhos em casa, pensei que encontraria uma casa cheia de
vida, como na era quando eu tinha a idade destes. Entro na sala e encontro um
silêncio, e todos eles bem sentadinhos, cada um atento a sua actividade nas redes
sociais, juntinhos aí naquele espaço e no tempo, mas totalmente distantes um do
outro em termos emocionais.
O pecado faz isso no homem, Adão e Eva entraram numa espécie de facebook
espiritual, onde Deus deixou de ser o centro da identidade deles, e a face de cada
um deles passou a ser o foco de suas vidas. O egoísmo usurpou o trono da palavra
de Deus em seus corações, e “eu, eu e eu” passou a ser o princípio de como Adão e a
Eva passaram a enxergar o resto do mundo. Notemos como duas pessoas egoístas
agem, elas não conseguem ser “Um” como Deus manda, e elas preocupam-se por si
próprias antes de se preocuparem com Deus, daí Adão e Eva só terem pensado em
Deus quando ouviram os seus passos, o que lhes fez esconder por detrás das
árvores. Um lar deste tipo está condenado a produzir que tipo de pessoas para a
sociedade?
Visto de outro ângulo, o coração do lar não são os bens materiais como a fruta da
Árvore da Vida, nem tão pouco o sexo, mas sim a palavra de Deus. Ao distorcer a
palavra de Deus a serpente conseguiu impingir um golpe mortal no templo de Deus
(I Cor 3:16), manchando assim a idoneidade sacerdotal da humanidade, de tal
forma que só vindo Cristo, o sacerdote eterno, é que a herança da desgraça
encontra o seu fim.
O CAMINHO DO BASTARDO

Um lar verdadeiramente feliz e maturo encontra sua segurança e manutenção


em Cristo e em sua palavra. Infelizmente são poucos os casamentos que
diariamente renovam seus votos e aliança em oração e devoção total a Deus; um
casamento mergulhado em adoração a Deus é o único casamento estável. Por esta
razão a rejeição da palavra de Deus causa disfunção familiar.

PROMOVE DISFUNÇÃO FAMILIAR


Nelson depois de ter sofrido aquele choque de realidade em relação a sua mãe,
tal o corte do umbigo, se viu mergulhado num oceano de crispação com dona
Cremilda. Toda a tentativa de aproximação e comunicação entre ambos acabava
manchada com incompreensões, desconfiança, piadas e críticas de toda sorte.
A relação entre ele e a irmã havia atingido a parte mais baixa do chão, poucos
dos familiares conheciam a profundidade dos problemas, entretanto, o silêncio e o
medo de desagradar uma das partes confinava-lhes a expressão de juízo de valores
pelas costas. Ninguém ousava reunir a família afim de abertamente tentar
ultrapassar o mau-cima reinante. Nelson teve de aprender em carne a não depositar
a sua confiança nos homens (Jeremias 17:5-7):
Assim diz o SENHOR: Maldito o homem que confia no homem, e faz da carne
o seu braço, e aparta o seu coração do SENHOR! Porque será como a
tamargueira no deserto, e não verá quando vem o bem; antes morará nos
lugares secos do deserto, na terra salgada e inabitável. Bendito o homem que
confia no SENHOR, e cuja confiança é o SENHOR.

As palavras são provavelmente o espelho do estado da situação em qualquer


relacionamento. Por vezes exprimem a dor causada por alguém, por vezes a ofensa
intendida para causa a dor a alguém. Não obstante as palavras, o pior é quando se
chega ao silêncio, quando se prefere evitar a comunicação para evitar a dor, seja
causada de outrem, como por descuido causar a alguém.
“Vou evitar ter contacto com a mãe, não me faz bem tentar me aproximar, para no
final acabar sendo somente uma oportunidade para ser ferido deste jeito”
Estes foram os pensamentos de Nelson saindo da presença da dona Cremilda,
esta decepção acabava de acontecer quando Nelson, junto de sua noiva Ana saindo
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

de um culto decidiram passar e cumprimentar a mãe. Ana levara um presente para


aquela que seria sua futura sogra, e depois dos cumprimentos iniciais (num clima
frio e apático), Ana, pegando o presente em suas mãos, se esforçando disse “mãe,
feliz aniversário, eu trouxe este presente para mãe”, e dona Cremilda com uma
expressão facial de antojo e deixando escapar na sua intonação um miasma de
desprezo respondeu “obrigada, pode pousar aí”.
De um modo geral, uma família disfuncional se caracteriza com os seguintes
males, má comunicação (Caim), luta de poder entre os membros, brutalidade
(física ou oral), facções (José é vendido, o preferido de Jacó), abuso de álcool ou
drogas (Noé), falta de intimidade (Salomão e seu irmão), apatia e perfecionismo.
Isto se aplica entre marido e mulher, filhos, comunidade, país e o próprio mundo.
No caso de Nelson e dona Cremilda fica bem claro que a comunicação não era mais
das melhores, na verdade o relato bíblico do efeito do pecado no lar não é
diferente.

Má comunicação

Talvez o primeiro exemplo de má comunicação que podes encontrar nas


Escrituras é o caso subsequente a primeira queda da humanidade:
Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e
coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais. (Alienaram-se um do
outro pela culpa) E ouviram a voz do SENHOR Deus, que passeava no jardim
pela viração do dia; e esconderam-se Adão e sua mulher da presença do
SENHOR Deus, entre as árvores do jardim. (Alienaram-se de Deus)E chamou
o SENHOR Deus a Adão, e disse-lhe: Onde estás? E ele disse: Ouvi a tua voz
soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me. E Deus disse: Quem te
mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore de que te ordenei que não
comesses? Então disse Adão: A mulher que me deste por companheira, ela me
deu da árvore, e comi. (Gn 3:7-12)

A comunicação é afectada pela distância entre o emissor e o receptor. Hoje, com


o avanço da tecnologia é quase insignificante o espaço geográfico que afecta os
O CAMINHO DO BASTARDO

agentes de um acto de comunicação verbal. Basta ter um telemóvel da nova geração


e um bom saldo que podemos não somente conversar com pessoas a milhares de
quilómetros de distância, mas inclusive ver em tempo real estas pessoas.
Não obstante, o uso de telemóvel na ilustração acima é por si só uma boa prova
de como a distância afecta a comunicação. Na verdade, foi fundamentalmente a
distância entre as pessoas que obrigou os engenheiros a desenvolver um dispositivo
eletrónico que pudesse facilitar a comunicação à distância. Porém, ao falarmos de
distância não devemos nos restringir a geografia, mas devemos também reconhecer
que existe uma distância espiritual ou moral, onde as pessoas compartilham do
mesmo espaço físico, mas estão em desacordo ou simplesmente não compartilham
de uma disposição harmoniosa um com o outro.
Quando Deus pergunta “Onde estás?” a humanidade, uma das primeiras pistas
que podemos identificar é que o homem devido ao pecado acabou deslocado, foi
levado a um “outro lugar”. E este “outro lugar” é distante, se podermos medir a
distância com honestidade concluiremos que é exatamente igual a distância de
uma culpa. Uma culpa, para termos uma ideia, é a distância que separa “ esta é agora
osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto
do homem foi tomada” (Gn 2:23) e “a mulher que me deste por companheira, ela
me deu da árvore, e comi” (3:12).
A primeira instância que as Escrituras relatam Deus a fazer uma questão é aqui
“onde estás?”. Antes deste momento as Escrituras nos mostram Deus fazendo
afirmações criativas “haja luz”, “produza a terra”, “façamos o homem”, mas logo
depois a transgressão, vimos Deus questionando “onde estás?”, uma questão que
carrega consigo um dos sentimentos mais tristes de toda Bíblia, é como se Julius
César questionando “até tu, Brutus, meu filho?”. Afinal de contas, essa interrogação
não captava somente a distância geográfica, a humanidade não havia se escondido
somente entre as árvores do jardim, ela havia se escondido no orgulho, pois Deus é
amor (I João 4:16), e nas trevas pois Deus é luz (Tiago 1:17).
A resposta que Deus ouviu só confirma a realidade da distância que havia
surgido. Se olharmos para a resposta de Adão com calma notaremos algo muito
sinistro que aconteceu. Olhemos para o seguinte trecho:
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Então a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis. Porque Deus


sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis
como Deus, sabendo o bem e o mal. (Gn 3:4-5)

O Diabo ao contradizer o que Deus havia dito e usando subtileza de palavras


estava a acusar a Deus de ser mentiroso (que o Diabo é) e de ser manipulador e com
segundas intenções (que o Diabo igualmente é). Em suma há uma linguagem de
acusação e de desonra ao nome ou carácter de Deus. Na resposta de Adão “a
mulher que me deste por companheira...” encontramos a mentalidade do próprio
Diabo, a acusação de que Deus é quem deu uma má mulher à Adão.
Na cabeça de Adão o culpado não era ele, mas sim o próprio Deus que lhe deu
uma mulher capaz de lhe oferecer uma fruta proibida. Como se Adão não tivesse
volição para negar a oferta. Naturalmente que isto ofende o carácter de Deus,
pintando-lhe como mau-intencionado, manipulador e hipócrita (características da
Serpente). A distância é isso, é a incompreensão do outro, é a descomunicação da
verdade, é distorção da realidade. O caminho do bastardo é a distância que nos leva
até a terra de Node (Gn 4:16).
Contudo, a mesma acusação surge no capítulo a seguir, quando Caim após
assassinar Abel responde: “Não sei; sou eu guardador do meu irmão?”. Em outras
palavras “você que lhe criou é quem devias ser o guarda dele”. Caim está a
manifestar o seu ódio pela então existência de seu irmão, e sugere em sua
justificação que Deus seria injusto em lhe responsabilizar pela guarda de uma
“criatura” tão indigna de vida quando Abel. É deste jeito que a violência polui o
mundo, quando os homens se negam a ser responsáveis pela vida do próximo.
Um certo homem de Deus dizia que é característico dos animais se associarem
com os seus semelhantes. Os patos se ajuntam com os patos, os pombos com os
pombos e daí por diante, sendo de todo normal que os seres humanos devam
nutrir um sentimento de comunidade com todos os humanos, por instinto.
Infelizmente esse instinto é esquecido de modo muito especial pelos homens, daí o
derramamento de sangue humano, as guerras, o homicídio os abortos.
O CAMINHO DO BASTARDO

Não causar ao próximo aquilo que não gostaríamos de sofrer (Lev 19:9-18) é o
princípio do bom senso, e não devia ser algo que precisássemos ler para acatar; a
nossa consciência em seu normal funcionamento devia nos convencer deste
princípio, “Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as
coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei, os quais mostram a
obra da lei escrita no seu coração, testificando juntamente a sua consciência e os
seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os ” (Rm 2:14-15). Mas é
óbvio que a consciência de um bastardo não é disciplinado na justiça e na verdade,
pois a verdade é a legitimidade do Pai.
Quando as Escrituras nos dizem que a humanidade é criada a imagem e
semelhança de Deus esta verdade traduz responsabilidade à todo ser humano de
tratar o semelhante com dignidade, afim de evitar desonrar o Criador, visto que
sempre que injuriamos a um homem a honra daquele por quem os homens foram
feitos imagem é manchada. Tiago explica isto quando nos diz que:
...mas nenhum homem pode domar a língua. É um mal que não se pode
refrear; está cheia de peçonha mortal. Com ela bendizemos a Deus e Pai, e
com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus: de uma
mesma boca procede bênção e maldição. Meus irmãos, não convém que isto se
faça assim. (Tiag 3:8-10)

Tiago capta bem o coração de diz quando diz “não convém que isto se faça
assim”, mas é assim o procedimento do bastardo. O bastardo é legalista, ele busca
suprimir as verdades implantadas em sua consciência, e busca legitimidade naquilo
que está escrito em pedras (II Cor 3:7) ou papel e não no seu próprio interior (Jer
31:33).
Jesus Cristo responde a questão de Caim com sua vida sacrificial. Ele mostra o
carácter de um filho legítimo, se esvaziando de sua glória e assumindo a posição de
servo compassivo de seus irmãos, oferecendo a sua própria vida para proteger do
mal o próximo (Fil 2:7-9/Isa 53:4-7), no caso, não somente Israel, mas a
humanidade, da qual se fez semelhante (Col 2:13-15). O bom samaritano é digno de
louvor por não rejeitar a sensibilidade divina que diferencia o filho do bastardo. Ele
não precisa ser judeu para ser filho, do mesmo modo que o judeu não precisa ser
samaritano para ser bastardo (Luc 10:30-37).
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Caim não havia reflectido sobre o testemunho que recebeu dos seus pais,
relativamente a forma como a humanidade havia sido criada. Ele não atingiu o
cerne do que significa ser criado a imagem e semelhança de Deus, se por ventura
pensou nestas coisas, simplesmente não guardou isto em seu coração. Contrário a
Caim, Jesus Cristo reflectia no testemunho do VT, e isto valeu-lhe muito, quando
foi tentado pelo inimigo a transformar pedras em pão, sua resposta foi: Nem só de
pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus (Mat 4:1-4),
mas vejamos donde Jesus tirou esta resposta:
E te lembrarás de todo o caminho, pelo qual o SENHOR teu Deus te guiou no
deserto estes quarenta anos, para te humilhar, e te provar, para saber o que
estava no teu coração, se guardarias os seus mandamentos, ou não. E te
humilhou, e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu não
conheceste, nem teus pais o conheceram; para te dar a entender que o homem
não viverá só de pão, mas de tudo o que sai da boca do SENHOR viverá o
homem. (Deut 8:2-3)

Quem diria que Jesus tiraria o seu “está escrito” desta parte do VT, onde Moisés
está a exortar ao povo de Israel a guardar os mandamentos que de Deus haviam
recebido? Jesus não podia se limitar aos dez mandamentos como muitos buscam,
na tentativa de tornar os dez mandamentos os mais especiais e prioritários. Jesus
havia se comprometido desde menino a aprender todas as lições que se podiam
perceber do VT e aplica-los em sua vida. Para Jesus “... o homem não viverá só de
pão, mas de tudo o que sai da boca do SENHOR viverá o homem ” é um princípio
fundamental para poder vencer o príncipe que gere os poderes malignos deste
mundo.
O bastardo não vê interesse em aplicar o seu coração na meditação e estudo
daquilo que Deus comunicou a humanidade, seja como revelada pelo universo,
como aquela revelada no VT e no NT. Entretanto, para que os homens não
seguissem o exemplo de Caim Deus exprimiu de modo explícito o princípio da
valorização da vida humana:
O CAMINHO DO BASTARDO

E certamente requererei o vosso sangue, o sangue da vossa vida; da mão de


todo animal o requererei, como também da mão do homem e da mão do
irmão de cada um requererei a vida do homem. Quem derramar o sangue do
homem, pelo homem o seu sangue será derramado; porque Deus fez o homem
conforme a sua imagem. (Gen 9:5-6)

Se lermos Génesis 9 veremos que Deus está praticamente a recomeçar a criação


da humanidade, visto que as mesmas palavras de bênção que proferiu em Genesis 1
ele repete â Noé e seus filhos. Por exemplo, frutificai e multiplicai (Gen 1:28/9:1,7),
ser imagem e semelhança/reinar sobre a terra (Gen 1:26/ 9:2-6), e as palavras nos
versos 5 e 6 só mostram como o cuidado do próximo é tarefa de todo o semelhante,
isto por serem não somente criaturas de Deus, mas acima de tudo por serem
criados segundo a imagem e semelhança do próprio Criador. Infelizmente a
brutalidade humana não inibe o homem de desvalorizar o semelhante.
Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também
vós, porque esta é a lei e os profetas. Entrai pela porta estreita; porque larga é
a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que
entram por ela; e porque estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à
vida, e poucos há que a encontrem. (Mt 7:12-14)

Brutalidade

Outra característica de uma família disfuncional é a alta presença de violência.


Como falamos no ponto anterior, a má comunicação acaba sendo consequente ao
afastamento moral entre as pessoas, e a violência é a coisa mais natural de surgir no
seio daqueles que não têm uma boa comunicação. Por isso Adão responde com
violência a Deus, e reduz aquela que era inicialmente “osso dos meus ossos, e carne
da minha carne” à “a mulher que você me deu”.
Quando a brutalidade contamina Caim ela já aparece mais madura, ela cresceu e
se tornou homicídio. Caim vai igualmente responder com arrogância e acusação
(mentira) como seu pai, mas em seu coração já havia florido o assassinato. Tanto o
homicídio como a mentira serão depois apresentados como a marca do próprio
Diabo (Jo 8:44). Jesus Cristo faz um diagnóstico do homicídio como sendo um
problema do coração:
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será
réu de juízo. Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar
contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca,
será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do
inferno. Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que
teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai
reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta.
(Mt 5:21-24)

A ira ou cólera no coração contra o próximo é a mãe do homicídio. João vai


elaborar um pouco mais sobre esta verdade quando nos diz que “Porque esta é a
mensagem que ouvistes desde o princípio: que nos amemos uns aos outros. Não
como Caim, que era do maligno, e matou a seu irmão. E por que causa o matou?
Porque as suas obras eram más e as de seu irmão justas. Meus irmãos, não vos
maravilheis, se o mundo vos odeia. Nós sabemos que passamos da morte para a
vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama a seu irmão permanece na morte.
Qualquer que odeia a seu irmão é homicida. E vós sabeis que nenhum homicida
tem a vida eterna permanecendo nele.” (I Jo 3:12-15)
Ser do maligno é acusar como ele acusa, é odiar aqueles que são feitos
semelhança e imagem de Deus, é viver segundo a mentira (Jo 8:36-44). Este é o
caminho do bastardo, caminho este que é largo e leva ao inferno. Um caminho de
brutalidade é aquele trilhado por aqueles que se afastam de Deus.
A brutalidade parte do coração, e é do coração que partem as coisas que
contaminam a humanidade. O Senhor deixou isto bem claro ao explicar que “... O
que sai do homem isso contamina o homem. Porque do interior do coração dos
homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as prostituições, os homicídios,
os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfêmia, a
soberba, a loucura. Todos estes males procedem de dentro e contaminam o
homem.” (Mc 7:20-23).
O CAMINHO DO BASTARDO

Lameque

Só depois deste contentor de lixo estiver cheio é que começa a transbordar, em


palavras e depois em acções, caracterizadas pelo mal e brutalidade. Assim como
Caim levou a transgressão a um nível superior na casa de Adão, lemos de um dos
descendentes de Caim levando a transgressão ainda a um nível mais alto:
E disse Lameque a suas mulheres Ada e Zilá: Ouvi a minha voz; vós, mulheres
de Lameque, escutai as minhas palavras; porque eu matei um homem por me
ferir, e um jovem por me pisar. Porque sete vezes Caim será castigado; mas
Lameque setenta vezes sete. (Gn 4:24)

Lameque sem duvidas era um homem bruto, com um temperamento vulcânico,


rápido em vingar-se do modo mais agressivo possível. A bíblia não nos diz como foi
que um suposto homem lhe feriu, e um outro jovem o pisou (açoitou/feriu) mas
seja como for, a reacção de Lameque foi mata-los. Esta espécie de homens que
reclamam por “respeito” são os que perfazem as gangues mais violentas do mundo.
São aqueles que por ciume torturam suas esposas ou esposos, são aqueles que
cometem crimes hediondos por coisas pequenas, deixando a sociedade chocada e
perplexa. Os psicólogos devem ter classificação para estes bastardos.

Os irmãos de José

Um outro exemplo de violência no lar, para além do caso de Adão no Éden e de


Caim contra seu irmão, é a brutalidade dos irmãos de José contra este que
infelizmente era abertamente o favorito de seu pai (Gn 37:3). Este favorecimento
(separatismo) vai criar no coração dos outros irmãos ódio, a mãe do homicídio. Nós
lemos que:
E viram-no de longe e, antes que chegasse a eles, conspiraram contra ele, para
o matarem. E disseram uns aos outros: Eis lá vem o sonhador-mor! Vinde,
pois, agora, e matemo-lo, e lancemo-lo numa destas covas, e diremos: Uma
besta-fera o comeu; e veremos que será dos seus sonhos. E, ouvindo-o Rúben,
livrou-o das suas mãos e disse: Não lhe tiremos a vida. Então, Judá disse aos
seus irmãos: Que proveito haverá em que matemos a nosso irmão e
escondamos a sua morte? Vinde, e vendamo-lo a estes ismaelitas; e não seja
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

nossa mão sobre ele, porque ele é nosso irmão, nossa carne. E seus irmãos
obedeceram. Passando, pois, os mercadores midianitas, tiraram, e alçaram a
José da cova, e venderam José por vinte moedas de prata aos ismaelitas, os
quais levaram José ao Egito. (Gn 37:18-21, 27-28)

A historia de José é muito interessante, ele era não somente agraciado de seu pai
Israel mas também de Deus, daí ter recebido sonhos que mostravam que Deus o
havia escolhido para um propósito especial (9-11). Isto nos trás a lembrança de Abel
por quem Deus havia se alegrado em seu procedimento (I Jo 3:12/Gn 4:4). De
modo semelhante ao que Caim fez a Abel, algures no campo foi que os seus irmãos
se viraram contra ele.
Ao venderem José, e acabarem por trapacear à Jacó (que por sua vez havia
trapaceado a Isaque), para esta família José estava (para todos efeitos) morto. Os
irmãos de José sacrificaram um bode para convencer a Jacó da morte de seu filho
preferido, e venderam José ao preço de 20 moedas de prata. Quem mais foi
vendido por um irmão e sua morte reflecte o sacrifício de um cordeiro? Jesus o
escolhido de Deus. A morte de Jesus foi sem sombras de dúvidas o acto mais cruel e
brutal que os judeus fizeram ao irmão deles.

Amnom e Absalão

O VT tem muitos relatos que mostram famílias marcadas por violência e


brutalidade, e talvez a família mais disfuncional que podemos encontrar é a do rei
Davi (que teve mutiplas mulheres). Amnom foi o primogênito de Davi, com a
Ainoã, assim como Caim foi de Adão com a Eva, e Absalão foi o seu terceiro filho
com a Maaca, nós lemos que:
E aconteceu, depois disso, que, tendo Absalão, filho de Davi, uma irmã
formosa, cujo nome era Tamar, Amnom, filho de Davi, amou-a. E angustiou-se
Amnom, até adoecer, por Tamar, sua irmã, porque era virgem; e parecia, aos
olhos de Amnom, dificultoso fazer-lhe coisa alguma. Tinha, porém, Amnom
um amigo, cujo nome era Jonadabe, filho de Siméia, irmão de Davi. E era
Jonadabe homem mui sagaz. E ele lhe disse: Por que tu de manhã em manhã
O CAMINHO DO BASTARDO

tanto emagreces, sendo filho do rei? Não mo farás saber a mim? Então, lhe
disse Amnom: Amo a Tamar, irmã de Absalão, meu irmão. E Jonadabe lhe
disse: Deita-te na tua cama, e finge-te doente; e, quando teu pai te vier visitar,
dize-lhe: Peço-te que minha irmã Tamar venha, e me dê de comer pão, e
prepare a comida diante dos meus olhos, para que eu a veja e coma da sua
mão. Deitou-se, pois, Amnom e fingiu-se doente; e, vindo o rei visitá-lo, disse
Amnom ao rei: Peço-te que minha irmã Tamar venha e prepare dois bolos
diante dos meus olhos, para que eu coma de sua mão. Mandou, então, Davi a
casa, a Tamar, dizendo: Vai a casa de Amnom, teu irmão, e faze-lhe alguma
comida. E foi Tamar a casa de Amnom, seu irmão (ele, porém, estava deitado),
e tomou massa, e a amassou, e fez bolos diante dos seus olhos, e cozeu os
bolos. E tomou a assadeira e os tirou diante dele; porém ele recusou comer. E
disse Amnom: Fazei retirar a todos da minha presença. E todos se retiraram
dele. Então, disse Amnom a Tamar: Traze a comida à câmara e comerei da tua
mão. E tomou Tamar os bolos que fizera e os trouxe a Amnom, seu irmão, à
câmara. E, chegando-lhos, para que comesse, pegou dela e disse-lhe: Vem,
deita-te comigo, irmã minha. Porém ela lhe disse: Não, irmão meu, não me
forces, porque não se faz assim em Israel; não faças tal loucura. Porque, aonde
iria eu com a minha vergonha? E tu serias como um dos loucos de Israel.
Agora, pois, peço-te que fales ao rei, porque não me negará a ti. Porém ele não
quis dar ouvidos à sua voz; antes, sendo mais forte do que ela, a forçou e se
deitou com ela. Depois, Amnom a aborreceu com grandíssimo aborrecimento,
porque maior era o aborrecimento com que a aborrecia do que o amor com
que a amara. E disse-lhe Amnom: Levanta-te e vai-te. Então, ela lhe disse: Não
há razão de me despedires assim; maior seria este mal do que o outro que já
me tens feito. Porém não lhe quis dar ouvidos. E chamou a seu moço que o
servia e disse: Deita a esta fora e fecha a porta após ela. E trazia ela uma roupa
de muitas cores (porque assim se vestiam as filhas virgens dos reis, com capas),
e seu criado a deitou fora e fechou a porta após ela. (II Sam 13:1-18)

O coração do homem é traiçoeiro, e este desejo que vimos em Amnom é um dos


maiores exemplos da traição dos desejos que levam os homens a ruína. A atitude de
Amnom é no mínimo demoníaco, e o Diabo usou a má companhia de Amnom, seu
amigo Jonadabe, para lhe mostrar o caminho de sua própria desgraça. Os bastardos
caminham com bastardos.
Imaginemos a falta de consideração à Deus, falta de consideração à Davi, falta de
consideração a Tamar e a falta de consideração à Israel por parte de Amnom. Como
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

vamos medir e ou descrever tamanha brutalidade e comportamento animal de


Amnom? E como este comportamento depravado vai lhe custar a vida dois anos
depois:
E Absalão deu ordem aos seus moços, dizendo: Tomai sentido; quando o
coração de Amnom estiver alegre do vinho, e eu vos disser: Feri a Amnom!
Então, o matareis; não temais; porventura, não sou eu quem vo-lo ordenou?
Esforçai-vos e sede valentes. E os moços de Absalão fizeram a Amnom como
Absalão lho havia ordenado. Então, todos os filhos do rei se levantaram, e
montaram cada um no seu mulo, e fugiram. (II Sam 13:28-29)

A desonra que sofreu Tamar produziu a vingança de seu irmão Absalão. O plano
levou dois anos para ser executado, Absalão esperou o tempo passar, Davi não havia
tomado nenhuma medida contra o seu primogénito, segundo a Lei Amnom devia
ser morto (Lev 18:11-29), mas quem teria coragem para pousar as mãos no filho do
rei? Então Absalão decidiu preparar um convívio, para se comer e beber, e buscou
insistentemente a presença de seu irmão mais velho, que do mesmo jeito que havia
enganado a Tamar, foi enganado e assassinado por vingança. Violência leva a
violência.
Um aspectos igualmente relevante nesta história é o mimo aparente que Davi
deu ao seu primogénito, e provavelmente aos seus outros filhos. Os filhos mimados
tendem a ser estes que seguem o caminho largo, não têm freios, querem tudo do
jeito dos seus corações, e não respeitam nenhuma autoridade. Se alguém tem um
pai condescendente, que não disciplina, a tendência é achar que Deus é
condescendente, que a sociedade deve realizar os seus caprichos, e são estes que
tendem a trazer vergonha e desgraça para os seus pais (os mimadores).
Os estudos mostram por exemplo que a ausência de pais nos lares dos pretos
americanos é um dos principais factores pelo alto índice de crime na comunidade.
A comunidade de negros em 2020 é de aproximadamente 13,4% da população
americana, entretanto a percentagem de crimes violentos cometidos por negros é
superior as restantes franjas da sociedade americana. Os mesmos crimes são
principalmente cometidos contra negros.
O CAMINHO DO BASTARDO

Davi não sabia disciplinar os seus filhos, e seus filhos se tornaram a sua maior
vergonha. É possível que a postura de Davi tenha sido influenciada pela própria
forma com que ele cresceu no seio da sua família. De todos os irmãos ele era o
menos querido de seu pai, desconfiava-se que tivesse sido fruto de um
relacionamento ilícito. No entanto, vemos que Davi vivia de certa forma separado
do núcleo de sua família, confinado ao campo com as ovelhas (I Sam 16:11). Ele
próprio não teve um pai presente, que lhe amasse e disciplinasse como convém.
Depois de um tempo o mesmo Absalão começou a conspirar contra seu Davi
pelo trono (II Sam 15:3-6) ao ponto de Davi acabar por fugir intimidado pela força
e apoio que Absalão havia angariado (15:14). Até mesmo o conselheiro de Davi
juntou-se a Absalão seu filho (15:31). Como se não bastasse essa brutalidade toda
nós lemos que:
Então disse Absalão a Aitofel: Dai conselho entre vós sobre o que devemos
fazer. E disse Aitofel a Absalão: Possue as concubinas de teu pai, que deixou
para guardarem a casa; e assim todo o Israel ouvirá que te fizeste aborrecível
para com teu pai; e se fortalecerão as mãos de todos os que estão contigo.
Estenderam, pois, para Absalão uma tenda no terraço; e Absalão possuiu as
concubinas de seu pai, perante os olhos de todo o Israel. (II Sam 16:20-22)

Os mimados de Davi se tornaram a sua desonra. Tamanha brutalidade e falta de


consideração por parte de seus próprios filhos não podia ter surgido do nada. Davi
não teve zelo para ensinar “ a criança no caminho em que deve andar; e até quando
envelhecer não se desviará dele” (Pro 22:6). Segundo a Lei que condenava Amnom
a morte, a acção depravada pública de Absalão também tinha como sentença a
morte:
Não descobrirás a nudez da mulher de teu pai; é nudez de teu pai. Nem te
deitarás com a mulher de teu próximo para cópula, para te contaminares com
ela. Porém, qualquer que fizer alguma destas abominações, sim, aqueles que
as fizerem serão extirpados do seu povo. (Lev 18:8-29)

Falando sobre “descobrir a nudez do pai” vejamos um outro, e anterior,


incidente que descreve a mesma violência:
E começou Noé a ser lavrador da terra, e plantou uma vinha. E bebeu do
vinho, e embebedou-se; e descobriu-se no meio de sua tenda. E viu Cão, o pai
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

de Canaã, a nudez do seu pai, e fê-lo saber a ambos seus irmãos no lado de
fora. E despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor lhe fizera.
E disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos seja aos seus irmãos. (Ge 9:20-22,
25)

Agora, existe ainda um debate em torno deste incidente, alguns teólogos acham
que Noé se embriagou e ficou nu, e seu filho Cão ao vê-lo não o cobriu e nem
encobriu o negócio, outros acreditam que o hebraísmo “descobrir a nudez” se
refere a incesto, e portanto, o relato em questão implica um acto sexual incestuoso,
seja de filho para com pai, ou de filho para com a esposa do pai. A minha posição é
esta última, considerando inclusive o facto de que a maldição foi feita a semente de
Cão, o seu filho Canaã, filho de incesto, ou seja, um bastardo. A bíblia vai relatar as
práticas idolatras do povo de Canaã, vemos como desde o início começou muito
mal.
Aproveitar-se de alguém em sua bebedeira é não somente covardia, mas também
uma brutalidade animalesca, até porque os predadores de modo minucioso
procuram identificar as prezas partindo dos mais vulneráveis. Quando os
predadores atacam, geralmente buscam prender o pescoço da vítima, o lugar mais
frágil e letal.

Eli e seus filhos mimosos

A violência e o mimo são como se gémeos siameses, inicialmente talvez não seja
detectável, mas eventualmente os mimosos são os monstros detestáveis. Deus é um
pai que disciplina os seus filhos, e não suporta mimos. As Escrituras nos mostram
que o caso dos filhos mimados de Eli:
Eram, porém, os filhos de Eli filhos de Belial; não conheciam ao SENHOR.
Porquanto o costume daqueles sacerdotes com o povo era que, oferecendo
alguém algum sacrifício, estando-se cozendo a carne, vinha o moço do
sacerdote, com um garfo de três dentes em sua mão; e enfiava-o na caldeira,
ou na panela, ou no caldeirão, ou na marmita; e tudo quanto o garfo tirava, o
sacerdote tomava para si; assim faziam a todo o Israel que ia ali a Siló.
O CAMINHO DO BASTARDO

Também antes de queimarem a gordura vinha o moço do sacerdote, e dizia ao


homem que sacrificava: Dá essa carne para assar ao sacerdote; porque não
receberá de ti carne cozida, mas crua. E, dizendo-lhe o homem: Queime-se
primeiro a gordura de hoje, e depois toma para ti quanto desejar a tua alma,
então ele lhe dizia: Não, agora a hás de dar, e, se não, por força a tomarei. (I Sa
2:12-16)

Este comportamento era já costume dos filhos de Eli o Sumo Sacerdote, sua
resposta a essa conduta não foi severa, e a altura da transgressão que aos olhos de
Deus era “…, pois, muito grande o pecado destes moços perante o SENHOR,
porquanto os homens desprezavam a oferta do SENHOR ” (17). Se olharmos para o
verso 16 vemos que os filhos de Eli com brutalidade tomavam a carne dos
sacrifícios, essa violência na verdade não era só cometida contra aqueles que
sacrificavam, mas em primeiro lugar, contra o Deus para quem se sacrificava. Deus
culpa Eli de pisar os seus sacrifícios (29):
Por que pisastes o meu sacrifício e a minha oferta de alimentos, que ordenei
na minha morada, e honras a teus filhos mais do que a mim, para vos
engordardes do principal de todas as ofertas do meu povo de Israel? Portanto,
diz o SENHOR Deus de Israel: Na verdade tinha falado eu que a tua casa e a
casa de teu pai andariam diante de mim perpetuamente; porém agora diz o
SENHOR: Longe de mim tal coisa, porque aos que me honram honrarei,
porém os que me desprezam serão desprezados. Eis que vêm dias em que
cortarei o teu braço e o braço da casa de teu pai, para que não haja mais ancião
algum em tua casa. E verás o aperto da morada de Deus, em lugar de todo o
bem que houvera de fazer a Israel; nem haverá por todos os dias ancião algum
em tua casa. O homem, porém, a quem eu não desarraigar do meu altar será
para te consumir os olhos e para te entristecer a alma; e toda a multidão da tua
casa morrerá quando chegar à idade varonil. E isto te será por sinal, a saber: o
que acontecerá a teus dois filhos, a Hofni e a Finéias; ambos morrerão no
mesmo dia. (I Sa 2:29-34)

Não há nada que destrói a honra de um pai e de uma mãe como o fim de um
filho mimado e mau educado. Como profetizado, os filhos de Eli acabaram mortos
nas mãos dos filisteus num mesmo dia (4:11) e o próprio Eli teve uma morte
desonrosa (18). Por causa da complacência de Eli e falta de zelo a honra de Deus a
desgraça chegou a sua casa e eliminou a sua descendência do sacerdócio.
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Um vídeo vazado na internet capta de um modo muito conciso a vergonha que


um filho mimado pode trazer aos seus pais. Uma senhora entra na recepção de um
estabelecimento com o seu filho de entre 4 à 6 aos de idade, este indignado por
alguma situação qualquer e a fazer toda sorte de confusão, e claramente um
mimado, a mãe ignora (tal como Eli) e faz de contas que está tudo bem, se aproxima
da recepcionista e explica alguma coisa, desatenta as birras do menino, o rapaz
inquieto decide então baixar as saias de sua mãe para captar a sua atenção,
deixando-a somente de roupa interior, tendo a camera gravado o sucedido. Assim
acontece com o mimo, cria filhos egoístas e brutais.
Um outro incidente, em 2020 poucos, foi noticiado em Moçambique, durante o
período de confinamento social devido a pandemia do COVID19, uma ocorrência
totalmente repugnante, um rapaz de 17 anos engravidou suas duas irmãs em
Maputo, uma de 15 anos e a mais nova de 13 anos. Segundo o relato, os mesmos
viviam com a mãe e só tinham a visita da empregada nos dias laborais, sendo que na
ausência da mãe e da empregada envolviam-se sexualmente para passar o tempo.
Imaginemos tamanha atrocidade, falta de escrúpulos, e brutalidade dos
participantes. Quem limpará tamanha mancha familiar? Tudo isso terá sucedido,
mais provavelmente, sob o abrigo do mimo e ausência de um braço disciplinador.
Desde a brutalidade verbal, violência física contra mulheres, até ao incesto e
pedofilia são fenómenos que encontram o seu ninho, fundamentalmente, no lar. E
não poucas vezes o abuso de drogas ou álcool como foi no caso de Noé facilita a
ocorrência destes actos danosos a paz e harmonia familiar.

Abuso de álcool ou drogas

O abuso de álcool no caso de Noé proporcionou a ocasião perfeita para Cão


manifestar a sua brutalidade “descobrindo a nudez de seu pai”. Como resultado
Noé amaldiçoa Canaã, o filho de Cão, sendo que este povo desgraçado vai ser
apresentado como muito depravada (Lev 18:24) e inimiga de Israel no VT. Ou seja,
O CAMINHO DO BASTARDO

o futuro da descendência do bastardo é caracterizada por maldição. Entretanto,


esta maldição surgiu pela ocasião de uma bebedeira.
Os autores bíblicos não esconderam as partes mais embaraçosas dos heróis da
fé, mostrando abertamente o lado mais fraco de muitos destes, seja Davi com o caso
com a Berseba, seja Noé, com a bebedeira, Elías com medo da Jezabel, ou Pedro ao
negar o Senhor três vezes dentre outros casos semelhantes. Acredito que estes
exemplos foram escritos para mostrar a realidade da fraqueza humana, e sobretudo
o carácter e o poder de Deus que consegue concertar esta mesma humanidade
carente.

Ló e as suas filhas

O abuso de álcool e seu efeito no lar e na sociedade é captado pelas Escrituras de


modo bem claro no caso de Noé, mas este não é o único relatado no VT, muitos
conselhos podemos identificar na Bíblia tratando sobre o abuso e consumo de
álcool. Vejamos o caso de Ló:
E subiu Ló de Zoar, e habitou no monte, e as suas duas filhas com
ele; porque temia habitar em Zoar; e habitou numa caverna, ele e as
suas duas filhas. Então a primogênita disse à menor: Nosso pai já é
velho, e não há homem na terra que entre a nós, segundo o costume
de toda a terra; vem, demos de beber vinho a nosso pai, e deitemo-
nos com ele, para que em vida conservemos a descendência de nosso
pai. E deram de beber vinho a seu pai naquela noite; e veio a
primogénita e deitou-se com seu pai, e não sentiu ele quando ela se
deitou, nem quando se levantou. E sucedeu, no outro dia, que a
primogénita disse à menor: Vês aqui, eu já ontem à noite me deitei
com meu pai; demos-lhe de beber vinho também esta noite, e então
entra tu, deita-te com ele, para que em vida conservemos a
descendência de nosso pai. E deram de beber vinho a seu pai
também naquela noite; e levantou-se a menor, e deitou-se com ele; e
não sentiu ele quando ela se deitou, nem quando se levantou. E
conceberam as duas filhas de Ló de seu pai. E a primogénita deu à
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

luz um filho, e chamou-lhe Moabe; este é o pai dos moabitas até ao


dia de hoje. (Gen 19:30-37)
O álcool é apresentado como aquela substância que altera o estado normal da
consciência humana, chegando a levar Ló num estado onde o mesmo perdeu a
consciência de si mesmo, e aí a mentalidade de Sodoma e Gomorra (filhas de Ló)
aproveitaram brutalizar o pai, cometendo incesto com o mesmo, ou na linguagem
de Levíticos 18 “descobriram a nudez do pai” delas.
Os moabitas e os amonitas (descendentes da segunda filha de Ló) eram filhos de
incesto, uma origem de todo maldita e as Escrituras mostram que este povo era
deprava e metido com práticas abomináveis aos olhos de Deus. Eram inimigos de
Israel (Deu 23:3-6/Nu 22:2-6) e foram as suas filhas que levaram Salomão a adorar
os deuses Milcom, Quemós e Amom (I Reis 11:1-8). Tudo isso provindo da
bebedeira de Ló. De facto não podemos subestimar o que o Diabo pode fazer a
partir de uma bebedeira.
O álcool está associado ao surgimento de doenças crónicas, pressão alta,
doenças cardíacas, acidente vascular cerebral, doenças hepáticas e problemas
digestivos, bem como cancros da mama, boca, garganta, esófago, fígado e cólon.
Muita além dos danos causados a saúde de quem abusa do álcool, o consumo
excessivo do álcool, e drogas está presente na maioria dos casos de violência
doméstica segundo vários estudos.
A bíblia usa no NT um termo que pela tradução acaba perdendo uma das
variantes do seu significado, esta palavra grega é φαρμακεία pronunciada
farmakeia (strong G5331) que nas três instâncias que aparece é traduzida por
feitiçaria:
E não se arrependeram dos seus homicídios, nem das suas feitiçarias, nem da
sua prostituição, nem dos seus furtos. (Apoc 9:21)
… porque os teus mercadores eram os grandes da terra; porque todas as
nações foram enganadas pelas tuas feitiçarias. (Apoc 18:23)
O CAMINHO DO BASTARDO

Idolatria, feitiçaria, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões,


heresias, invejas, homicídios, bebedices, glutonarias, e coisas semelhantes a
estas, acerca das quais vos declaro, como já antes vos disse, que os que
cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus. (Gal 5:20-21)

A NAS Exhaustive Concordance explica o termo como significando o uso de


medicamentos, drogas ou encantamentos. Desde a antiguidade que existe um
relacionamento muito estreito entre a prática de tratamento com raízes e outros
produtos naturais, com a prática de ocultismo, ou seja, os praticantes de ocultismo
ou feitiçaria tendem a ser os mesmos que dominam as propriedades das plantas e
raízes para tratamento de doenças. Não que todos os que conheçam os
tratamentos naturais sejam ocultistas per se.
Em Angola é comum as pessoas no geral não fazerem uma distinção entre o
curandeiro e o kimbandeiro, sendo que o anterior é apresentado como aquele que
cura ou faz tratamento usando produtos naturais, e o último usando conhecimento
espiritual ou seja ocultismo. A verdade é que a separação destas duas figuras acaba
sendo um negócio dificil, visto que a maioria dos curandeiros também usam
encantamentos e rituais de carácter espiritual na administração de certos
tratamentos.
Em Luanda, lembro-me ter ocorrido comigo mais de duas vezes, receber
panfletos publicitários anunciando um certo centro ou entidade tradicional capaz
de tratar com ervas e raízes várias doenças listadas, como impotência sexual,
infertilidade, diabetes e curiosamente na mesma lista continha mau-olhado, falta
de emprego, má sorte na vida, fazer voltar o marido e outras situações de uma
categoria diferente à doenças.
Entretanto, não é novidade que exista a prática sistemática de consumo de
substâncias psicotrópicas por parte de praticantes de ocultismo, sejam os Shamans,
kimbandeiros, bruxos assumidos e semelhantes. Parece peculiar que o inimigo
busca ao máximo desarmar os homens do seu pleno e controlado funcionamento
da consciência. Inclusive práticas como Yoga visam “esvaziar a mente” prometendo
uma “paz interior”. Entretanto, o nosso Pai através dos seus oráculos nos ensina o
contrário:
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis o vosso


corpo em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional.
E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação
do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e
perfeita vontade de Deus. (Rom 12:1-2)

Apóstolo Paulo nos exorta a termos uma postura consciente e não embriagada
na dedicação de nossa vida integral ao louvor de Deus. O nosso entendimento deve
ser iluminado pela vontade de Deus, e isso é de forma racional (do grego logikos).
Ora, tanto Noé como Ló embriagados não tinham consciência do que se passava
com eles, estavam ausentes da realidade, sem consciência nenhuma. Deus nos deu
a consciência para nos guardar do erro. Vejamos as seguintes passagens que
enfatizam a necessidade da sobriedade:
Não durmamos, pois, como os demais, mas vigiemos, e sejamos sóbrios. (I ITe
5:6)
Mas nós, que somos do dia, sejamos sóbrios, vestindo-nos da couraça da fé e
do amor, e tendo por capacete a esperança da salvação. (I Pe 5:8)
Portanto, cingindo os lombos do vosso entendimento, sede sóbrios, e esperai
inteiramente na graça que se vos ofereceu na revelação de Jesus Cristo. (I Pe
1:13)
Sede sóbrios; vigiai; porque o diabo, vosso adversário, anda em derredor,
bramando como leão, buscando a quem possa tragar. (I Pe 5:8)

A sobriedade nos remete a uma consciência activa e atenta, em pleno


funcionamento, estado este que contrasta 180º em relação a embriagues. O cristão
é chamado a manter a sua consciência sã, vigilante as ciladas do inimigo, preparado
para executar toda boa obra para glória e honra de Deus. A falta de sobriedade é
associada a indisciplina, infidelidade, e fraqueza as obras da carne. Já a sobriedade é
associada a sabedoria, maturidade, obediência, fé, pureza e as obras do espírito.
Um é animal ou carnal e outro é espiritual ou santo. Um é associado ao
comportamento de filhos e outro associado ao comportamento de bastardos. Nós
lemos Pedro exortando:
O CAMINHO DO BASTARDO

Porque é bastante que no tempo passado da vida fizéssemos a vontade dos


gentios, andando em dissoluções, concupiscências, borrachices, glutonarias,
bebedices e abomináveis idolatrias. (I Ped 4:3)

Vemos como o modo de vida indigno de um discípulo abarca as bebedices, e


como um abismo chama outro abismo aqueles que vivem em bebedices também
são as mesmas pessoas presas em dissoluções, desejos desenfreados, idolatrias
abomináveis e coisas parecidas, sobre as mesmas Paulo adverte:
Porque as obras da carne são manifestas, as quais são: adultério, prostituição,
impureza, lascívia, idolatria, feitiçaria, inimizades, porfias, emulações, iras,
pelejas, dissensões, heresias, invejas, homicídios, bebedices, glutonarias, e
coisas semelhantes a estas, acerca das quais vos declaro, como já antes vos
disse, que os que cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus. (Gal
5:19-21)

Eu conheci o pai de minha mãe já adulto, ele foi um daqueles que na década dos
60 havia fugido da guerra com a família para a então República do Zaire, actual
RDC. Daquilo que eu sabia dele antes mesmo de o conhecer, destacam três coisas,
a primeira é que ele era um excelente bate-chapa, a segunda é que era um mestre de
jogo de damas e a terceira é que era um alcóolatra.
Depois de nos conhecermos, não chegamos de conversar como eu gostaria,
infelizmente o avó se manifestava muito reservado e a única lembrança que eu
tenho em que ele buscou conversar comigo foi num destes dias que ele veio para
casa, totalmente embriagado, e chamou-me e começou a me “abençoar” cuspindo
em suas mãos e me esfregando, enquanto proferia bênçãos ao modo tradicional
que ele conhecia. Eu não levava aquele acto a sério, e só me mantinha calmo para
ver se ele acalmava. Sem esquecer que na altura eu não era convertido.
Estas são as lembranças que eu tenho do meu avó. A minha mãe e meus tios e
tias deverão ter lembranças mais nobres do que as minhas, mas obviamente que
suas memórias carregam consigo as manchas de uma infância desprovida da
presença de um verdadeiro pai, e das lutas e situações adversas associadas a esta
ausência. Ninguém como filho ou filha enaltece ou eleva a alta estima um pai que
várias vezes teve de ser carregado â cama, com as calças todas borradas de urina, por
embriagues.
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Quando olho para esta minha família, noto o efeito deixado no carácter de seus
membros, sendo a disfunção familiar um emblema visível. A maioria é muito
nervosa, o rancor, a ira, as palavras de brutalidade, a desconfiança e o
distanciamento emocional de certa forma são marcas históricas que comecei a
perceber provavelmente desde que eu fui ganhando consciência de mim mesmo. É
verdade que muitos factores podem ser apontados para isso, mas acredito que não
precisamos ser psicólogos para perceber que boa parte disto é reflexo de problemas
no lar e da forma como crescemos.

Facções

Para nós africanos, com uma visão de família alargada uma situação como a
descrita no ponto anterior, sobre a disfunção familiar em minha família, vão quase
que inevitavelmente despoletar em divisões entre os familiares. O ofendido vai se
afastar. O ofensor que nunca se arrependeu vai continuar com o nariz empenado, e
ombros exaltados se achando justificado pela brutalidade. E depois de um tempo,
as filhas da tia fulana não terão comunhão com as filhas da tia sicrana, e qualquer
socialização tenderá a ser manchada de desconfiança, sendo que no mínimo
descuido surgirá a brutalidade, que por sua vez será respondida com brutalidade
(até porque o rancor e a ira nos corações nunca foram lavados dos corações).

Divisão de Israel

De todas as manchas ao nome de Davi, talvez o mais triste foi o final de Salomão,
que tendo começado com um coração fiel diante de Deus, se deixou perverter pelo
prazer das mulheres que amou, nós lemos a seguinte descrição:
E o rei Salomão amou muitas mulheres estrangeiras, além da filha de Faraó:
moabitas, amonitas, edomitas, sidônias e hetéias, das nações de que o
SENHOR tinha falado aos filhos de Israel: Não chegareis a elas, e elas não
chegarão a vós; de outra maneira perverterão o vosso coração para seguirdes
os seus deuses. A estas se uniu Salomão com amor. E tinha setecentas
O CAMINHO DO BASTARDO

mulheres, princesas, e trezentas concubinas; e suas mulheres lhe perverteram


o coração. Porque sucedeu que, no tempo da velhice de Salomão, suas
mulheres lhe perverteram o coração para seguir outros deuses; e o seu coração
não era perfeito para com o SENHOR seu Deus, como o coração de Davi, seu
pai, porque Salomão seguiu a Astarote, deusa dos sidônios, e Milcom, a
abominação dos amonitas. Assim fez Salomão o que parecia mal aos olhos do
SENHOR; e não perseverou em seguir ao SENHOR, como Davi, seu pai. Então
edificou Salomão um alto a Quemós, a abominação dos moabitas, sobre o
monte que está diante de Jerusalém, e a Moloque, a abominação dos filhos de
Amom. E assim fez para com todas as suas mulheres estrangeiras; as quais
queimavam incenso e sacrificavam a seus deuses. (I Reis 11:1-8)

Por tamanha transgressão por parte de Salomão Deus indignado lhe diz “…
certamente rasgarei de ti este reino, e o darei a teu servo ” (I Reis 11:11). O que vai
acontecer na Casa de Davi vai mudar para sempre a história da casa de Israel. Deus
vai permitir que outros homens se levantem contra o reino de Salomão, desde
estrangeiros como Hadade (25), como seus próprios servos como Jeroboão (26).
Este último se tornará o rei de 10 das 11 tribos de Israel:
Sucedeu, pois, naquele tempo que, saindo Jeroboão de Jerusalém, o profeta
Aías, o silonita, o encontrou no caminho, e ele estava vestido com uma roupa
nova, e os dois estavam sós no campo. E Aías pegou na roupa nova que tinha
sobre si, e a rasgou em doze pedaços. E disse a Jeroboão: Toma para ti os dez
pedaços, porque assim diz o SENHOR Deus de Israel: Eis que rasgarei o reino
da mão de Salomão, e a ti darei as dez tribos. Porém não tomarei nada deste
reino da sua mão; mas por príncipe o ponho por todos os dias da sua vida, por
amor de Davi, meu servo, a quem escolhi, o qual guardou os meus
mandamentos e os meus estatutos. Mas da mão de seu filho tomarei o reino, e
darei a ti, as dez tribos dele. (I Reis 11:29-31, 34-35)

Salomão não somente desprezou a Deus abraçando toda sorte de idolatria, mas
igualmente seu coração se corrompeu contra o povo, tendo se tornado um jugo
pesado aos seus corações (I Reis 12:4). Significa que o coração de Salomão havia
perdido a compaixão pelo povo que Deus lhe havia levantado e capacitado para
reinar, com sabedoria. Os ídolos não sentem, Salomão havia se tornado igualzinho
aos ídolos que abraçara (Salmos 115:4-8). Na verdade, ao abraçar a idolatria
Salomão havia rejeitado a sabedoria e abraçado a tolice (Isaías 44:9-20).
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

O sucessor de Salomão, seu filho Roboão era tolo, ao invés de consultar com os
sábios que consultaram com o seu pai, preferiu ouvir o conselho de seus amigos (I
Reis 12:8), tal como foi o caso de Amnom. Os filhos mimados são quase sempre
tolos. Assim se levantou a divisão no seio de Israel (19), quando o povo rejeitou o
maltrato de Roboão, que para todos os efeitos, queria impor um jugo ainda mais
pesado que aquele imposto pelo seu pai (14). Um rei ou presidente arrogante é
como um certificado de desgraça para o seu povo, por isso com a excepção da tribo
de Judá, as outras 10 tribos fizeram de Jeroboão o seu rei.
Esta é a forma que Israel acaba dividida entre o Reino do Sul e o Reino do Norte,
daí resultam pelejas e facções, que não passam de obras da carne (Gal 5:20). A
carnalidade é sempre a fonte de divisões. É interessante, os homens se negam a
seguir o caminho da humildade que Cristo ensina, mas não suportam a arrogância
e o orgulho dos outros. Rejeitamos o orgulho, mas protegemos o nosso orgulho,
rejeitamos a violência contra nós, mas buscamos racionalizar a nossa brutalidade
contra os outros. E enquanto não alinharmos a nossa vida e a do nosso lar as
palavras de Deus, facções e pelejas surgirão.
Os irmãos de José acabaram por odiá-lo em parte devido a forma aberta com que
Israel lhe favorecia. Este favorecimento era injusto aos olhos dos outros irmãos, foi
nesta brecha que a Serpente envenenou o coração dos outros filhos de Jacó. Ao
favorecer José automaticamente surgiram duas facções, a do “favorito do pai” e a
dos “menos favoritos do pai”. Israel não imaginava que abertamente amando mais a
José, dando tratamento especial a um e não aos outros, estava a contribuir para um
sentimento tão maligno quanto o homicídio no coração dos outros irmãos.
Se de um lado divisões surgem em famílias quando os pais tratam com
parcialidade os seus filhos, ou aqueles que vivem em suas casas, doutro lado, a
inveja também surge irrespectível da presença ou não de “favoritos”. A própria
disciplina, inteligência ou sucesso de um irmão pode acabar suscitando inveja nos
menos afortunados, e este sentimento se transformar em toda sorte de mal,
inclusive o homicídio. O caso de Caim é um bom exemplo disto, a justiça de Abel
O CAMINHO DO BASTARDO

incomodou profundamente o coração de seu irmão (I Jo 3:12), que o pecado entrou


e consumou o seu intento (Gen 4:7).

Marcelo & Josemar

Em 2011, no dia 09 de Abril, foi noticiado na página olhardireito.com.br a morte


de Marcos da Silva, com vários tiros. O autor do crime chamava-se Josemar Junior
da Silva, irmão menor da vítima. Na delegacia o homicida confessou que havia
premeditado o crime porque tinha ciumes de seu irmão, pois ambos eram DJ’s, mas
Marcelo fazia mais festas do que Josemar.
Para a realização do plano do assassinato, Josemar ligou para o seu irmão mais
velho se passando de um estranho e afirmando que a casa deste estava a ser
destruído, assim, Marcelo corre para a sua casa e é recebido com vários tiros,
efectuados pelo seu próprio irmão. A ocorrência chocou profundamente a
sociedade brasileira e todos os que tiveram contacto com o relato.
Aqui vemos um padrão semelhante ao caso de Caim, a inveja surge no coração,
depois o plano e a simulação e finalmente a consumação do homicídio. Tudo
realmente começa no coração, a fagulha da inveja e do ciume pode incendiar o
coração todo de ódio, e assim a brutalidade e toda sorte de mal se torna uma
consequência natural.

A Espada de Jesus

Há ainda uma outra causa pelo surgimento de facções, esta é nada mais e nada
menos do que a própria fé em Jesus. Quando juramos lealdade à Cristo somos
compelidos pelo Espírito Santo a modelar a nossa vida segundo os princípios
divinos. A direcção dos nossos passos passa a ser segundo o caminho estreito (Mat
7:14), que é contrário aos modos do mundo (I Cor 6:9:11). A mentalidade mundana
por vezes caracteriza ou domina o nosso lar, e a diferença de princípios pode acabar
propiciando clivagens. Nos lemos que:
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

"Não pensem que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois
vim para fazer que ‘o homem fique contra seu pai, a filha contra sua mãe, a
nora contra sua sogra; os inimigos do homem serão os da sua própria família’.
"Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem
ama seu filho ou sua filha mais do que a mim não é digno de mim; e quem não
toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim. Quem acha a sua vida a
perderá, e quem perde a sua vida por minha causa a encontrará. (Mat 10:34-
39)

Por causa de Cristo “irmão entregará o seu irmão â morte, e o pai o seu filho; os
filhos hão-de erguer-se contra os pais e hão de causar-lhes a morte” (21-22). O
discípulo deve assumir de que faz parte do lado de Cristo e do Reino de Deus,
contando que Cristo negará aqueles que lhe negarem publicamente diante dos
homens (32-33). Estas palavras podem parecer muito distantes no nosso contexto
angolano, mas os nossos irmãos em vários países islâmicos e comunistas sabem
afundo o seu sentido.
Um entre milhares de casos que nos mostram a forma como a fé separa as
pessoas é o de Meriam Ibrahim, uma cristã sudanesa, mãe de 27 anos de duas
crianças (uma das quais nascidas na prisão) que em 2014 foi condenada à forca por
se recusar a renunciar à sua fé. A história de Meriam chocou o mundo todo, e várias
organizações internacionais pressionaram o governo do Sudão que depois de um
tempo acabou por absolver a mesma.
Em Maio de 2014, seu próprio irmão contactou as autoridades sudanesas e
acusou a sua irmão de apostasia e adultério devido ao facto da mesma ter casada um
cristão. Ela foi considerada culpada do crime de apostasia de acordo com a lei
Sharia do Sudão, bem como deveria ser açoitada por ser casada com um homem
não muçulmano, tudo isso numa altura que ela estava concebida e dias de dar a luz
a sua filha Maya. Uma das exigências antes da condenação à morte de Meriam foi
que no prazo de três dias ela deveria renunciar a sua fé em Cristo, pelo que sem
tosquenejar ela respondeu “não”.
O CAMINHO DO BASTARDO

Enquanto estava na prisão, Meriam foi acorrentada com correntes pesadas nos
tornozelos (como habitual para todos os prisioneiros no corredor da morte). As
mesmas correntes permaneceram nela mesmo durante o trabalho de parto, no dia
27 de Maio, tendo dado à luz sua filha, Maya. Finalmente no dia 23 de junho, o
tribunal de apelação considerou Meriam de inocente de todas as acusações contra
Meriam. Ela, os filhos e seu esposo Daniel Wani acabaram emigrando para a
Europa.
Casos deste tipo acontecem desde Caim e Abel, sendo a religião de Caim falsa e
rejeitada e a de Abel justa e aceitável. Os que levaram Cristo a Pilatos foram os seus
irmãos hebreus, e os que apedrejaram Estêvão (Atos 7) foram igualmente seus
próprios irmãos, filhos de Abraão. Por causa da fé muitos são apedrejados, seja com
pedras, seja com palavras ofensivas, calúnia e outros actos de violência que
caracterizam o relacionamento entre as diferentes facções. Abraçar os caminhos de
Deus podem gerar conflitos:
Para que, no tempo que vos resta na carne, não vivais mais segundo as
concupiscências dos homens, mas segundo a vontade de Deus. Porque é
bastante que no tempo passado da vida fizéssemos a vontade dos gentios,
andando em dissoluções, concupiscências, borrachices, glutonarias, bebedices
e abomináveis idolatrias; e acham estranho não correrdes com eles no mesmo
desenfreamento de dissolução, blasfemando de vós. (I Ped 4:2-4)

Pedro em sua exortação se refere a mudança de comportamento e


entendimento dos discípulos após abraçarem o evangelho. Ele caracteriza o modo
de vida anterior como sendo carnal e segundo os desejos dos homens, e o modo de
vida do convertido como sendo segundo a vontade de Deus, e por haver esta
distinção os discípulos são considerados “estranhos” por aqueles que
anteriormente lhes eram familiares e esta estranheza acaba produzindo uma
reacção negativa, a de serem blasfemados. Meriam foi tratada de adúltera pelo
irmão, e pela sociedade sudanesa muçulmana, e condenada a enforcamento,
imagine o ódio envolvido.
Falar de facções sem falar sobre as diferentes denominações no seio cristão pode
parecer uma hipocrisia. Entretanto, precisamos admitir que muitas denominações
só surgiram e continuam a surgir devido aos pontos que explicamos que abordamos
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

na disfunção familiar causada pela mentalidade ou espírito bastardo. Desde as


primeiras comunidades cristãs podemos notar as sementes de conflitos:
“Ora, naqueles dias, crescendo o número dos discípulos, houve uma murmuração
dos gregos contra os hebreus, porque as suas viúvas eram desprezadas no
ministério cotidiano.” (Act 6:1)
Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que digais
todos uma mesma coisa, e que não haja entre vós dissensões; antes sejais
unidos em um mesmo pensamento e em um mesmo parecer. Porque a
respeito de vós, irmãos meus, me foi comunicado pelos da família de Cloé que
há contendas entre vós. Quero dizer com isto, que cada um de vós diz: Eu sou
de Paulo, e eu de Apolo, e eu de Cefas, e eu de Cristo. Está Cristo dividido? foi
Paulo crucificado por vós? ou fostes vós batizados em nome de Paulo? (I Cor
1:13)

No caso de Actos vemos que a parcialidade por parte daqueles que


administravam os negócios da igreja incidia na diferença étnica. Aqui nos
lembramos não somente da preferência de José por parte de Israel em relação ao
seus irmãos e suas consequências, mas também da realidade vivida em não poucas
igrejas africanas, onde os membros por vezes acabam se isolando em grupos étnicos
e linguísticos distintos, e o tratamento dos diferentes grupos é diferenciado,
criando ciumes e reclamações de injustiça e parcialidade.
Já no caso da igreja em Coríntio as facções surgem mais por preferências
pessoais, onde alguns nutriam sentimentos mais fortes com um certo pregador, e se
identificavam com o ministério de um e não de outro (I Cor 1:12). É uma tendência
natural dos homens sentirem-se mais ligados a um certo servo de Deus e não tanto
de um outro, mas é carnalidade quando estes sentimentos se sobrepõe a identidade
que todo discípulo encontra em Jesus Cristo.
Por mais que um certo pregador tenha sido a pessoa que Deus usou para nos
introduzir ao evangelho, ou ainda que seja um eloquente expositor das Escrituras,
um servo dedicado de Cristo, a nossa lealdade deve ser primeira e
fundamentalmente depositada em Cristo. Nosso dever é honrar os presbíteros e
O CAMINHO DO BASTARDO

diáconos (I Tim 5:17), mas nunca esquecer que temos apenas um mediador e
Senhor, em quem encontramos vida e justificação (I Tim 2:5/Heb 12:24). Somos
todos partes do corpo, membros um do outro (I Cor 12:19-21), tendo uma só
cabeça que é Cristo (Col 1:18/Ef 4:15), irmãos e irmãs, do mesmo Pai.
Outro ponto relevante, é que apesar de existirem várias denominações, se o
Espírito é o mesmo, haverá unidade entre os discípulos, visto que a facção é
determinada no coração, pois é do coração que procede o mal e não das placas
denominacionais (Mat 15:19-20). A nossa intimidade deve advir do amor que
caracteriza a verdadeira fé.

Falta de intimidade e Apatia

Onde não há boa comunicação não há intimidade, e onde não há intimidade


reina a apatia. Não há maior intimidade do que o amor, e não há maior empatia do
que o amor. Quando nós lemos no NT que “amarás o teu próximo como a ti
mesmo” (Mar 12:30-31/Tiago 2:8/Gal 5:14 e Rom 13:9) precisamos nos lembrar
que trata-se da citação de Levíticos 19:18:
Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o
teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o SENHOR.

Entretanto, os versos anteriores ao verso 18 vão ajudar-nos a entender o que


significa amar o próximo como a ti mesmo. Nos versos 9 e 10 a mensagem é de
compaixão para com os pobres, no verso 11 é sobre não enganar o próximo, no
verso 12 é sobre não jurar falsamente (em nome de Deus), no verso 13 é sobre ser
justo quanto e diligente em pagar as dívidas, no verso 14 é sobre tratar com
dignidade os deficientes, no verso 15 é sobre julgar com equidade os assuntos, no
verso 16 é sobre ser pacificador e não promotor de escândalo na sociedade, e no
verso 17 é sobre ser verdadeiro e não hipócrita.
Estes pontos encerram de modo geral o que significa “amar o próximo”. Quando
um certo doutor da Lei pergunta ao Senhor “quem é o meu próximo?”, podemos
notar que o problema não era compreender o que significa “amar”, pois os versos 9
até 17 criam um quadro suficiente para se captar a mensagem. Agora, aceitar que tal
amor inclui o estranho ou incircunciso era difícil de mais para aqueles que se
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

julgavam especiais pelas alianças e circuncisão. Entretanto Jesus vai responder de


um modo arrasador:
E, respondendo Jesus, disse: Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e
caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, e espancando-o, se
retiraram, deixando-o meio morto. E, ocasionalmente descia pelo mesmo
caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. E de igual modo
também um levita, chegando àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo. Mas
um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de
íntima compaixão; e, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite
e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem, e
cuidou dele; e, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao
hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to
pagarei quando voltar. Qual, pois, destes três te parece que foi o próximo
daquele que caiu nas mãos dos salteadores? E ele disse: O que usou de
misericórdia para com ele. Disse, pois, Jesus: Vai, e faze da mesma maneira.
(Luc 10:30-37)

Ao apresentar as figuras do sacerdote e do levita num papel negativo, isto é,


como pessoas insensíveis e sem amor, Jesus golpeia a visão geral dos judeus
relativamente as pessoas que Deus tem em alta estima. Para o doutor da Lei e os
judeus da era, os sacerdotes, levitas e Fariseus, eram membros de uma classe
especial, aprovada por Deus e com legitimidade para julgar os judeus. Cristo com
esta parábola defende que até um samaritano (considerados endemoninhados)
chega a ser mais justo do que aqueles que, embora exaltados aos olhos do povo,
seus actos não traduzam amor à um necessitado e desconhecido.
Se um samaritano tem compaixão por um homem de Jerusalém, mesmo sabendo
que os judeus os consideravam de gentios, idolatras e inimigos, se torna o mais
evidente o quão puro é este amor por ele manifestado. Um amor que nos mostra o
carácter de Deus, que nos estende a misericórdia dele à cada manha ao fazer raiar o
sol tanto para os santos como os profanos, tanto para os fiéis como para os ateus (),
esperando que os homens venham a ser arrepender e ser salvos (I Ped 3:9).
O CAMINHO DO BASTARDO

Agora, aquele que é capaz de estender a mão ao seu inimigos naturalmente que
amará muito mais os que lhe são mais próximos, por isso Jesus nos diz que
“ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos ”
(João 15:13). A Parábola do Bom Samaritano nos ensina que a humanidade é uma
família, não somente por descendermos de Adão e Eva (Actos 17) mas por sermos
da mesma espécie, com as mesmas limitações e necessidades. Nós lemos que:
“E aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria
habitação, reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande
dia.” (Jud 1:6)
O autor da citação se refere a segunda queda da humanidade, ou seja ao texto de
Gen 6 e ao livro de apócrifo de Enoque para dizer que os anjos fazem parte de um
principado, que representa uma habitação própria que ao se misturarem com as
mulheres humanas acabaram saindo do principado e habitação a eles designado.
Sendo consequente pensarmos que a espécie humana de igual modo possui um
principado e uma mesma habitação, somos partes de uma mesma família e espécie.
Este facto deve representar um factor de unidade, uma comunidade de empatia e
compaixão. Lemos que:
Visto que temos um grande sumo sacerdote, Jesus, Filho de Deus, que
penetrou nos céus, retenhamos firmemente a nossa confissão. Porque não
temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas;
porém, um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado. Cheguemos,
pois, com confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar
misericórdia e achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno.
(Heb 4:14-16)

A humanidade de Jesus Cristo é uma verdade digna de profunda meditação, pois


além de manifestar o amor de Deus para com os homens, traduz a dimensão pelo
qual a vontade divina trilhou para alcançar o nosso principado e a nossa habitação.
O Logos se fez membro do nosso principado e membro da nossa habitação, ele
verdadeiramente se fez homem (I João 4:3). É em sua humanidade que entendemos
a extensão da sua compaixão e a dignidade da sua mediação entre Deus e a
humanidade. Quem está assentado a destra de Deus nos céus é o homem Jesus o
Cristo (Heb 1:3/12:2/Fil 2:5-11).
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Fomos criados para sermos uma família, para compartilharmos a intimidade da


nossa dignidade e da compaixão um para com o outro. É aqui onde devemos
entender o “amarás ao teu próximo como a ti mesmo”. Na família espiritual Jesus
vai nos puxar a almejar algo ainda superior, quando nos diz “ um novo
mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que
também vós uns aos outros vos ameis. Nisto todos conhecerão que sois meus
discípulos, se vos amardes uns aos outros ” (João 13:34-35). Ele nos amou ao ponto
de sacrificar sua vida por nós, isto é amar ao próximo mais do que amamos a nós
mesmo.
A falta de intimidade é o que vemos quando Caim responde “ sou eu guardador
do meu irmão?”. Guardar o irmão é parte inseparável do amar ao próximo, tal como
plasmado em Levíticos 19. A falta de intimidade é o que aconteceu no coração de
Adão, quando ele respondeu “a mulher que você me deu”. Se tornar um é o
propósito do casamento (Gen 2:24), e ninguém em sã consciência aborrece o seu
próprio corpo (Efe 5:29). É importante notarmos que a falta de intimidade tanto de
Adão como de Caim em relação ao próximo é na verdade o efeito da falta de
intimidade com Deus. Deus não pode ser amado pelo coração que não consegue
amar o próximo:
“Se alguém diz: Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não
ama a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu? E dele
temos este mandamento: que quem ama a Deus, ame também a seu irmão.” (I João
4:20-21)

Er e Onã

Se temos Jesus Cristo como o exemplo perfeito de amor ao próximo, igualmente


temos no dia à dia milhares de exemplos do exacto contrário, pessoas orgulhosas,
insensíveis, frias, desde os criminosos brutais aos políticos corruptos e psicopatas.
Há sempre exemplos de comportamentos hediondos e animalescos em todos os
cantos do mundo, alguns piores do que noutros. As Escrituras nos mostram casos
O CAMINHO DO BASTARDO

de pessoas maldosas, que em alguns casos o próprio Deus teve de as matar, Er e


Onã são dois destes exemplos:
Er, porém, o primogênito de Judá, era mau aos olhos do SENHOR, por isso o
SENHOR o matou. Então disse Judá a Onã: Toma a mulher do teu irmão, e
casa-te com ela, e suscita descendência a teu irmão. Onã, porém, soube que
esta descendência não havia de ser para ele; e aconteceu que, quando possuía
a mulher de seu irmão, derramava o sémen na terra, para não dar
descendência a seu irmão. E o que fazia era mau aos olhos do SENHOR, pelo
que também o matou. (Gen 38: 7-10)

Existem algumas instâncias de relatos bíblicos que nos deixam perplexos, textos
que não apresentam pistas para nos conferir bases suficientes para entendermos as
circunstâncias de certas ocorrências. O que foi que Er fez para que o próprio Deus
decidisse lhe matar? Será que não fez nada, mas Deus ao sondar o seu coração viu
uma depravação tal que preferiu elimina-lo para o bem de Israel? Responder estas
questões é tarefa controversa porque o autor de Génesis simplesmente omitiu os
dados que nos iluminariam.
O caso de Er é de certa forma o reverso do relato de Enoque, que “andou com
Deus” (hebraísmo para caracterizar um justo) e foi tomado por Deus. Se Enoque
agradou o coração de Deus e Deus o tomou para si, Er, ao contrário, não andou
com Deus, desagradou o coração de Deus ao ponto de Deus o matar, em outras
palavras Er foi tomado por Deus, não para vida, mas para morte. Igualmente sobre
Enoque só sabemos que “andou com Deus”, como andou com Deus continua um
mistério para nós.
Sabemos porém que Judá depois de ter se afastado (facção) de seus irmãos
casou-se com uma mulher cananeia (Gen 38:1-2), algo que seus pai havia proibido
(Gen 28:1). O interessante é que Genesis 38 explica como dos três filhos que Judá
teve com a cananeia, nenhum deles acabou por dar descendência a Tamar, sendo
que o próprio Judá acabou se envolvendo com Tamar (quando esta se disfarçou de
prostituta), e ela concebeu a Peres, donde a linhagem de Jesus Cristo é chamada
(Mat 1:3/Luc 3:33).
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Já no caso do irmão de Er, Onan podemos mais livremente comentar sobre o seu
carácter, segundo o relato de sua transgressão nos versos 9 à 10 de Génesis 38:
Onã, porém, soube que esta descendência não havia de ser para ele; e
aconteceu que, quando possuía a mulher de seu irmão, derramava o sémen na
terra, para não dar descendência a seu irmão. E o que fazia era mau aos olhos
do SENHOR, pelo que também o matou.

Segundo a cultura semítica da era cabia ao irmão mais novo remir a viúva de seu
irmão (Deut 25:5-6), e o primogénito que com esta teria seria descendência para o
seu falecido irmão. Onan, porém, não viu lucro algum para o seu lado, dar
descendência ao seu irmão no mínimo significava que a herança de primogénito
seria canalizado ao filho do falecido e não aos seus filhos (Deut 21:17). Seu coração
ambicioso e orgulhoso não deixam espaço para qualquer compaixão para com o seu
irmão.
Quem sabe a maldade de Er tivesse deixado em Onan uma mágoa e este por
vingança não mediu esforços, ao ponto de trair as expectativas de seu pai Judá, e
ainda pior as de Tamar, visto que esta ao envolver-se com Onan, estava claro não
somente a intenção dela ser remida e deixar a sua viúves, mas também a expectativa
de dar descendência à Er. Uma mulher viúva era uma mulher desgraçada,
sobretudo se não tivesse filhos no contexto da época. A importância de ter filhos
para os semitas não é muito diferente do modo africano, quando Onan derrama o
sémen na terra nem podemos imaginar a ofensa, o abuso, a falta de consideração
que o acto carregava. Sem filhos continuaria uma mulher desgraçada.
O que vemos em Onan é o contrário de Jesus. Onan não é um exemplo de
humildade e generosidade mas de orgulho e individualismo, ele não é sensível, mas
sim bruto e arrogante, e também não é um exemplo de uma pessoa misericordiosa,
mas sim de um ser vingativo e ganancioso. Este não era íntimo nem com o seu pai
Judá, nem ainda com o seu falecido irmão Er. Para Onan Tamar representava
somente um instrumento para gozo sexual, ele não sabia que de Tamar devia nascer
O CAMINHO DO BASTARDO

a descendência de Abraão, que é Jesus. Seu acto consequentemente acabou sendo


uma ofensa à Jesus.
Quando um irmão mata seu próprio irmão por inveja, sabemos que o invejoso
não o o amava, mas sim que o odiava. E o mesmo se pode dizer em relação ao irmão
que viola sua própria irmã, o sentimento que explica tais comportamentos não
advém do amor, mas da perversão. Nós somos chamados ao amor, e o amor é
íntimo:
E por ele credes em Deus, que o ressuscitou dentre os mortos, e lhe deu glória,
para que a vossa fé e esperança estivessem em Deus; purificando as vossas
almas pelo Espírito na obediência à verdade, para o amor fraternal, não
fingido; amai-vos ardentemente uns aos outros com um coração puro. (I Ped
1:21-22)

Perfecionismo

Quando nós paramos para racionalizar sobre a relevância de termos semáforos


para ordenar o tráfego rodoviário facilmente chegamos a conclusão que o seu papel
cinge-se em evitar acidentes, na medida que os seus sinais comunicam aos
condutores das respectivas faixas quando devem prosseguir, afrouxar e quando
devem parar. Se alguém fazer as leituras de modo errado a vida de muita gente
pode entrar em perigo. Aqui vemos como as regras rodoviárias servem o fim de
preservar a segurança dos motoristas nas nossas sociedades modernas.
Lembra-me das vezes que no bairro do Camama I, em Luanda, antes do ano
2016, (período em que não havia asfalto naquela parcela rodoviária) quando à
entrada da igreja Bom Deus surgia um terrível engarrafamento, sobretudo em
épocas de chuvas. Todos queriam passar primeiro, e ninguém pensava no próximo,
o resultado era uma confusão que na ausência de polícias levava horas para o
transito fluir. A falta de bom senso e o alto nível de egoísmo praticamente
atrasavam (atrasam) a vida de muita gente. Em boa parte a qualidade de vida de
muitos é reduzida só por falta de respeito ao próximo.
Na mesma ocasião um amigo meu que chegou de viver durante alguns anos na
Zambia contou-me de uma realidade contrária a situação descrita acima, segundo à
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

sua experiência, os zambianos têm como cultura dar prioridade um ao outro por
ordem de chegada, quando por alguma situação os semáforos não estiverem a
funcionar. Com este comportamento a ausência de agentes de trânsito e a não
funcionalidade do semáforo não chega a constituir um grande problema, como
aquele que em Angola é comum acontecer.
Aqui vemos que tanto a necessidade do semáforo como a de um agente
regulador de trânsito é de certa forma proporcional a maturidade dos motoristas.
O Ap. Paulo nos diz que:
Sabemos, porém, que a lei é boa, se alguém dela usa legitimamente; sabendo
isto, que a lei não é feita para o justo, mas para os injustos e obstinados, para
os ímpios e pecadores, para os profanos e irreligiosos, para os parricidas e
matricidas, para os homicidas, para os devassos, para os sodomitas, para os
roubadores de homens, para os mentirosos, para os perjuros, e para o que for
contrário à sã doutrina. (I Tim 8:10)

Assim como os motoristas angolanos necessitavam de um agente trânsito para


regular o tráfego no Camama I, a Lei (Torá) foi instituída no VT para conferir aos
hebreus um relacionamento urbano, onde os injustos seriam compelidos a ter um
comportamento mais ou menos moralmente organizado, reduzindo assim o abuso
para com Deus e ao próximo. É nesta senda que o mesmo Ap. Paulo nos diz que:
A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos
outros; porque quem ama aos outros cumpriu a lei. Com efeito: Não
adulterarás, não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não
cobiçarás; e se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume:
Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo. De
sorte que o cumprimento da lei é o amor. (Rom 13:8-10)

Assim como o propósito dos semáforos e dos polícias é garantir a segurança dos
automobilistas e a fluidez do trânsito, o fundamento da Lei é o amor. Entretanto,
assim como a maturidade dos zambianos exclui a necessidade dos agentes
reguladores de transito e dos semáforos de igual modo o que Deus buscava nos
hebreus era a maturidade ou seja a perfeição. A palavra grega τέλειος (strong
O CAMINHO DO BASTARDO

5046) transliterada teleios tem como principal sentido “trazer ao fim” ou seja
quando algo atinge o seu fim estamos diante da perfeição ou maturidade. Por isso,
sendo o amor o fim da Lei Jesus Cristo nos ensina que:
Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu,
porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei
bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para
que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus; porque faz que o seu sol se
levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos. Pois, se
amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos
também o mesmo? E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de
mais? Não fazem os publicanos também assim? Sede vós pois perfeitos, como
é perfeito o vosso Pai que está nos céus. (Mat 5:43-47)

Se o amor é a perfeição, a maturidade é o fim da Lei. O perfecionismo será a


busca de uma justiça que transcende o amor. Quando estamos diante de exigências
e expectativas que não tem o amor como fim, estamos diante do perfecionismo. O
fim do perfecionista é egoísta, é carnal, é infantil. Jesus nos mostra isso em relação
as tradições que foram criadas pelos anciãos judeus:
E ensinava no sábado, numa das sinagogas. E eis que estava ali uma
mulher que tinha um espírito de enfermidade, havia já dezoito anos;
e andava curvada, e não podia de modo algum endireitar-se. E,
vendo-a Jesus, chamou-a a si, e disse-lhe: Mulher, estás livre da tua
enfermidade. E pós as mãos sobre ela, e logo se endireitou, e
glorificava a Deus. E, tomando a palavra o príncipe da sinagoga,
indignado porque Jesus curava no sábado, disse à multidão: Seis dias
há em que é mister trabalhar; nestes, pois, vinde para serdes curados,
e não no dia de sábado. Respondeu-lhe, porém, o Senhor, e disse:
Hipócrita, no sábado não desprende da manjedoura cada um de vós
o seu boi, ou jumento, e não o leva a beber? E não convinha soltar
desta prisão, no dia de sábado, esta filha de Abraão, a qual há
dezoito anos Satanás tinha presa? (Luc 13:10-16)
O que o príncipe da sinagoga queria é que o fim do semáforo fosse a Lei e não a
segurança dos automobilistas. Para ele mesmo numa situação de vida ou morte a
ambulância tinha de parar e esperar o sinal verde para poder levar o paciente ao
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

hospital. Os líderes judaicos ao se prenderem em detalhes e instrumentos


manifestavam a sua ignorância do fim da Lei:
Mas ele disse-lhes: Nunca lestes o que fez Davi, quando estava em necessidade
e teve fome, ele e os que com ele estavam? Como entrou na casa de Deus, no
tempo de Abiatar, sumo sacerdote, e comeu os pães da proposição, dos quais
não era lícito comer senão aos sacerdotes, dando também aos que com ele
estavam? E disse-lhes: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem
por causa do sábado. Assim o Filho do homem até do sábado é Senhor. (Mar
2:25-28)

O Senhor ao dizer que “O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem
por causa do sábado” está apontar para o fim da Lei que é o amor. Toda a tentativa
dos hebreus em se considerar pessoas justas por cumprir escrupulosamente com os
ditames da Lei, quando ignoravam o fim da Lei só constituía um acto de
ignorância, visto que falhavam no alvo de Deus que continua sendo o amor.
É o egoísmo que faz com que um pai exija tanto de seu filho ao ponto de tal
exigência transcender o prisma do amor. Por vezes os filhos ao perceberem que
tudo que fazem nunca chega para satisfazer os seus parentes acabam por
desenvolver um complexo de inferioridade e alguns vão ao extremo de suicidar-se.
É que quando o amor não é a base do relacionamento familiar, o foco em alta
performance (de alguma sorte) acaba sendo um substituto à intimidade. Os filhos
percebem que existem para alegrar os seus pais, e os pais pensam que os filhos
existem para cumprir com os seus caprichos, quando a família foi instituída para o
exercício do amor, que é a verdadeira perfeição.
O perfecionismo busca a aceitação dos homens e não de Deus. Deus não precisa
ser impressionado com as coisas que fazemos, ele conhece o coração que nos faz
fazer as coisas. Deus conhece as limitações que circundam a nossa vida, e o
perfecionista não suporta a ideia de ter limitações, faz de tudo para manter
escondido os seus medos, os seus erros, as suas falhas, e acaba se constituindo o
maior hipócrita:
O CAMINHO DO BASTARDO

Ai de vós, escribas e Fariseus, hipócritas! pois que dizimais a hortelã, o endro e


o cominho, e desprezais o mais importante da lei, o juízo, a misericórdia e a fé;
deveis, porém, fazer estas coisas, e não omitir aquelas. Condutores cegos! que
coais um mosquito e engolis um camelo. Ai de vós, escribas e Fariseus,
hipócritas! pois que limpais o exterior do copo e do prato, mas o interior está
cheio de rapina e de iniquidade. Fariseu cego! limpa primeiro o interior do
copo e do prato, para que também o exterior fique limpo. Ai de vós, escribas e
Fariseus, hipócritas! pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por
fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de
mortos e de toda a imundícia. (Mat 23:23-27)

Qualquer um que tenha lido os quatro livros do evangelho facilmente lembrará


o modo como Jesus e o líderes judaicos são apresentados em confrontos e
antagonismo, quase que sistemático. O capítulo 23 de Mateus parece captar tudo
aquilo que Jesus tinha contra os seus principais emuladores. Podemos resumir que
os escribas e Fariseus que recaiam na crítica do Senhor eram detalhistas,
preocupados em conformar as suas vidas com tudo aquilo que entendiam estar
escrito na Torá (legalistas), para serem vistos pela sociedade e considerados justos e
dignos de honra (verso 5).
A orientação do comportamento do perfecionista é no exterior, portanto,
centrada na opinião dos homens (antropocêntrica). Há na devoção perfecionista a
sede de receber honra dos homens (João 5:44), escalar uma posição social de
prestígio e se distanciar do restante dos seres humanos, que para todos os efeitos
são “inferiores” diante da performance inigualável do perfecionista. Naturalmente
que para o perfecionista acoplar ao seu juízo de valor uma pincela de objectividade
se vê forçado a examinar a vida dos outros de um modo excepcionalmente crítico. É
exatamente isto que Jesus quis nos mostrar quando lemos:
E disse também esta parábola a uns que confiavam em si mesmos, crendo que
eram justos, e desprezavam os outros: dois homens subiram ao templo, para
orar; um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, estando em pé, orava consigo
desta maneira: O Deus, graças te dou porque não sou como os demais
homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano.
Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo quanto possuo. O
publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os
olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: O Deus, tem misericórdia de mim,
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele;
porque qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si
mesmo se humilha será exaltado. (Luc 18:9-14)

É evidente que até no mundo secular o comportamento exemplar e justo de


alguns é louvado publicamente. Por isso ouvimos falar do Prémio Nobel da Paz e de
outras condecorações atribuídas à pessoas que tenham manifestado alguma atitude
heroica ou desenvolvido alguma actividade que tenha contribuído positivamente
para o “bem” da sociedade no geral. Porém, a perspectiva do Reino é
significativamente diferente; ela nos ensina que o primeiro a julgar a nossa
reputação deve ser o justo dos justos, que é o Pai Celestial:
Guardai-vos de fazer a vossa esmola diante dos homens, para serdes vistos por
eles; aliás, não tereis galardão junto de vosso Pai, que está nos céus. Quando,
pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os
hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em
verdade vos digo que já receberam o seu galardão. Mas, quando tu deres
esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita; para que a tua
esmola seja dada em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, ele mesmo te
recompensará publicamente. (Mat 6:1-4)

É consabido que o povo do Médio-Oriente do primeiro século tinha a sua vida


pautada pela busca de honra e consequentemente pela aversão a vergonha ou
desonra1. Jesus Cristo aparece e não rejeita o foco em adquirir honra, mas como
sempre, nos mostra o modo certo, que é priorizar a honra atribuída por Deus, a sua
aceitação e justificação. A fora como os perfecionistas buscam a perfeição tem um
elemento que destrói toda essa empreitada, relevar o julgamento da sociedade
acima do juízo de Deus é estragar o perfume:
Assim como as moscas mortas fazem exalar mau cheiro e inutilizar o unguento
do perfumador, assim é, para o famoso em sabedoria e em honra, um pouco
de estultícia. (Ecle 10:1)

1
Ver David deSilva no seu livro A Esperança da Glória, publicada pelas Paulinas.
O CAMINHO DO BASTARDO

Este mau cheiro Jesus reconhecia nos perfecionistas dentre os judeus,


comparável a podridão de cadáveres humanos (Mat 23:27). Aos olhos dos carnais
(antropocêntricos) a sua dedicação legalista representa “cheiro de vida”, mas aos
olhos de Cristo e de todos que buscam a glória de Deus representa “cheiro de
morte”(comparar com II Cor 2:15-17). A nossa vida deve ser um perfume agradável
à Deus (Ef 5:2/Fil 4:18 e Rom 12:1-2).
No verso 23 de Mateus 23 Jesus mostra as coisas que determinam o juízo de
Deus sobre nós, e ele resume nomeando; o juízo (ser justo), a misericórdia (ser
compassivo) e a fé (ser fiel). Estas coisas representam a maturidade ou perfeição, e
são diferentes daquilo que dependem da avaliação dos homens, elas partem do
interior do coração. A Lei ou os mandamentos não foram feitos para a Lei, mas para
o bem dos homens, isso é para promoção da justiça, da compaixão entre os homens
e da fidelidade. É isto que o Espírito Santo vem produzir no discípulo de Jesus
(Rom 8).
Jesus expõe a hipocrisia e tolice dos escribas e Fariseus quando aponta que estes
haviam se tornado especialistas em coisas insignificantes. Se alguém que se preza
em conhecer à Deus dedicar a sua vida zelosamente em coisas que são, para todos
os efeitos, secundárias aos olhos de Deus, fica evidente que está enganado ou que
engana os que acreditam nele. A posição de Cristo é que os perfecionistas são
hipócritas, eles quando ignoram a opinião de Deus falham o alvo da justiça, porque
o verdadeiro juiz e a fonte da verdade é Deus.
Como não será de horrenda hipocrisia aquele que “coa um mosquito mas engole
um camelo”? Imagina ignorar um camelo, mas prestar atenção à um mosquito, isso
só é possível quando o que se passa connosco é o que os ingleses chamam de
“willful ignorance”, isso é fingimento. Os perfecionistas prestam muita atenção aos
detalhes exteriores porque são interiormente uma terrível imperfeição, assim como
corpos apodrecidos dentro dos caixões. Por não suportarem a imperfeição, ao invés
de buscarem tratamento em Jesus (Mat 11:29), o orgulho lhes leva a confecionar a
própria justiça ou perfeição, sendo zelosos em detalhes espúrios e coisas que
impressionam aqueles que julgam segundo à carne.
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

A Mãe Perfecionista

Em uma página2 online uma mulher cristã confessou que foi perfecionista
durante uma parte de sua vida enquanto mãe. A primeira coisa que ela apontou é
que “queria ser uma mãe perfeita e alcançar a família perfeita que os outros
invejavam”. Como abordamos nos pontos anteriores, o próprio Cristo nos diz
ordena “sedes perfeitos” (Mat 5:48), mas esta perfeição não é o que esta mãe
buscava, ela queria a perfeição segundo o padrão dos homens. Sua definição de
perfeição era aquela que o mundo tem, e não aquela que Jesus nos aponta que é
“amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem”.
Ela estava presa no caminho dos escribas e Fariseus de Mateus 23, a sua visão de
perfeição era para “causar inveja nos outros” e não para honrar â Deus. Desta feita,
ela acabou por “coar um mosquito e engolir um camelo” trocando as prioridades,
quando secundarizou o juízo (ser justo), a misericórdia (ser compassivo) e a fé (ser
fiel). Estas coisas contrastavam com o foco e as prioridades dela:
Perfeccionismo era minha desculpa para padrões excessivamente elevados
para mim mesmo, para nunca estar satisfeita com (minhas) realizações e para
meu desejo insaciável de aprovação. Eu me convenci de que tudo o que eu
fiz ... tinha que ser melhor do que ninguém.

Quem deu o padrão de justiça no Jardim do Éden foi Deus, e quando alguém
cria seus próprios padrões, fora de Deus, o resultado só pode ser desastroso. Deus é
o juiz que todos nós teremos de lidar no final da nossa caminhada nesta vida
(Hebreus 9:27), e com este facto em mente, todos nossos alvos devem ser
conformados com o padrão divino. Não é de nos assustar que a mãe perfecionista
não conseguiu se satisfazer, e acabou se tornando preza ao desejo insaciável de
receber a aprovação dos outros. Se a sua visão de perfeição é antropocêntrica, e só
Deus é a fonte da perfeição, qualquer tentativa de se ser perfeito, fora de Deus terá
um resultado imperfeito.

2
https://gracefullylivinglifeloved.com/confession-of-a-perfectionist-mom/
O CAMINHO DO BASTARDO

Ela quis ser “melhor do que ninguém”. Esta afirmação é uma perfeita antítese à
humildade. As coisas pioram quando o Juiz tanto dos vivos como dos mortos (II
Tim 4:1) não pode de jeito nenhum considerar “perfeita” uma pessoa orgulhosa, na
verdade Deus resiste e abomina os orgulhosos (Tiago 4:6/Isaías 2:12/Prov 6:16-17).
E aqui entra outro espectro, como pode uma pessoa perfecionista ser feliz? É
Simplesmente impossível, visto que para atingir a satisfação ela tem de satisfazer o
que em seus próprios termos é superior a sua natureza. Ela explicou que:
A aprovação de outras pessoas era desesperadamente necessária para que eu
me sentisse merecedora. Esse desejo me levou à obsessão para alcançar níveis
extremos de realização. Embora por fora eu parecesse ter tudo sob controle,
por dentro eu estava a desmoronar e aflita de ansiedade.

Como mãe ela fazia de tudo para controlar minuciosamente tudo em torno dos
filhos e do lar, afim de garantir que o seu lar fosse “invejado” por todos. Matriculou
os filhos em tudo que era curso, na ânsia de formar neles indivíduos integralmente
impecáveis. No final ela admitiu que “Embora eu nunca tenha sentido que fosse o
suficiente. Ser uma mãe perfeccionista e criar uma família "perfeita" era totalmente
exaustiva”. Aqui me lembra as palavras “…não por força nem por violência, mas sim
pelo meu Espírito, diz o SENHOR dos Exércitos” (Zac 4:6). Verdadeiramente o que
se faz na carne fere a carne, daí a exaustão interior:
Havia noites em que eu ficava acordada até tarde limpando e organizando a
casa. (Deus me livre que alguém aparecesse e encontrasse a minha casa em um
estado de desastre ... o que eles pensariam?) Eu acordava todas as manhãs me
sentindo exausta, mas com vontade de fazer mais ... ser mais.

A vida dela só foi piorando, os esforços, as metas irreais, o padrão carnal de


perfeição, em fim, as seguintes palavras resumem muito bem onde o perfecionismo
levou esta alma:
Dia após dia, eu me esforçaria para ser uma mãe perfeita. Dias se
transformaram em anos. Ano após ano, meu medo de não ser o suficiente foi
se aprofundando cada vez mais. Minha depressão e raiva aumentaram
exponencialmente. O ciclo de luta e dúvida quase que destruiu a minha
família e minha saúde. O perfeccionismo e a comparação roubaram-me a
alegria e a esperança. Isso me manteve escondida e com vergonha. Durante a
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

maior parte da minha vida, lutei com sentimentos de inadequação e vergonha.


Eu precisava desesperadamente que as pessoas me vissem como perfeita,
embora eu me sentisse menos do que perfeita por dentro.

Graças à Deus o final da história desta irmã foi feliz, na medida que ela chegou a
entender que “O perfeccionismo não a torna mais amável ... apenas exausta e
esgotada. Não é a sua capacidade de "desempenhar" ou acompanhar o que
determina o seu valor. Você tem valor porque é filha do Rei Jesus… o que a torna
uma princesa!”
Este testemunho não explora os efeitos negativos dos outros membros da
família da mãe perfecionista, mas vale a pena dizer que vários estudos mostram que
os efeitos podem envolver a (1) supressão das verdadeiras emoções por parte dos
filhos, por medo de magoar os parentes perfecionistas. Isto é claro que promove a
hipocrisia. Sempre que os filhos não conseguirem atingir o padrão, que é o mais
natural a acontecer, acabarão por produzir (2) o sentimento de vergonha e
inferioridade.
Pessoas que sofrem do complexo de inferioridade facilmente acabam por buscar
subterfúgios em coisas menos positivas, como drogas e outros vícios. Os próprios
filhos acabam sendo perfecionistas, não desenvolvem mecanismos psicológicos
para lidar com críticas e fracassos, que por sua vez pode representar maior
propensão ao suicídio. Como perfecionistas o labor infinito de querer buscar a
aprovação de outras pessoas levará ao stress e a exaustão, como vimos no caso da
mãe perfecionista, e esta forma de encarar a vida definitivamente que vai dificultar
no desenvolvimento de relacionamento interpessoal saudável, sobretudo na
dimensão conjugal.
Não há nenhum problema em buscar pela perfeição desde que isso seja de
acordo ao padrão divino, pautado em glorificar à Deus, focado no “camelo” e não
na “mosca”, isto é, buscando de coração o juízo (ser justo), a misericórdia (ser
compassivo) e a fé (ser fiel). Para tal devemos começar pela humildade e
reconhecimento de nossa total dependência à graça de Deus:
O CAMINHO DO BASTARDO

Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus; bem-


aventurados os que choram, porque eles serão consolados; bem-aventurados
os mansos, porque eles herdarão a terra; bem-aventurados os que têm fome e
sede de justiça, porque eles serão fartos; bem-aventurados os misericordiosos,
porque eles alcançarão misericórdia; bem-aventurados os limpos de coração,
porque eles verão a Deus; bem-aventurados os pacificadores, porque eles
serão chamados filhos de Deus. (Mat 5:3-9)

Aqui encontramos o Calcanhar de Aquiles dos perfecionistas; se a humildade é o


primeiro passo para nos aproximarmos de Deus que é o modelo perfeito da
perfeição, o orgulho é a característica do perfecionista. Tornando difícil a
reconciliação de um perfecionista com Deus, não é por calha que dentre os hebreus
os escribas e Fariseus terem sido os que Cristo mais severamente criticou, e
igualmente os que menos aderiram ao baptismo de João (Luc 7:30). Estes são a
“raça de víboras” (Mateus 23:33) ou simplesmente “filhos do Diabo” (João 8:44),
como Caim foi do maligno (I João 3:12).
Caim é talvez o primeiro exemplo de um perfecionista, era orgulhoso, e mais
atento na vida do seu irmão, do que em Deus. Ficou furioso quando notou que a
oferta do seu irmão era melhor do que o seu. Quando Deus lhe perguntou o que se
passava para ter um semblante irado, vemos que o mesmo não conseguiu exprimir
os seus verdadeiros sentimentos, tendo rejeitado o conselho de Deus e decidido
resolver as coisas do seu próprio jeito (Genesis 4:3-8). O perfecionista busca a
perfeição do seu próprio jeito, e por nunca se satisfazer vive frustrado, exausto e
irado (como era o caso da mãe perfecionista). E como vimos, o perfecionista é
legalista tal como Caim:
E disse o SENHOR a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não sei;
sou eu guardador do meu irmão? (Gen 4:9)

Quando Caim em sua arrogância responde à Deus que “sou guardador do meu
irmão” ele deixa escapar uma mente legalista. Para Caim era necessário que Deus
tivesse oficializado primeiro o seu papel de guardador de Abel, em outras palavras
“onde está escrito que eu devo guardar o meu irmão?”. Infelizmente, não poucos
ditos cristãos, têm como base de suas acções o argumento “onde está escrito na
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

bíblia?”. Procuram o silêncio das Escrituras para legitimarem comportamentos que


deviam ser condenados somente pela consciência.
Imaginemos se as Escrituras fossem um compêndio exaustivo de todas as coisas
proibidas e permitidas na vida humana, abarcando todas as esferas das actividades
humanas e do nosso comportamento, quantas páginas teria estes livro? Quem teria
tempo de vida para ler tal bíblia de capa à capa? Qual homem seria capaz de se
qualificar como escriba para escrever um único capítulo? Qual gráfica teria
suficiente papel para imprimir tamanha obra? Imaginemos o absurdo legalista aqui.
Ignoramos inclusive o facto de que os escritores dos livros canónicos eram todos
membros de uma sociedade de alto-contexto, culturas em que a comunicação entre
as pessoas presume que o outro está abalizado sobre vários assuntos próprios do
contexto, sendo assim desnecessário definir ou explicar várias coisas.
As palavras de Tiago facilmente se tornariam insuportáveis aos ouvidos de um
perfecionista, quando diz:
Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós. Alimpai as mãos, pecadores; e, vós de
duplo ânimo, purificai os corações. Senti as vossas misérias, e lamentai e
chorai; converta-se o vosso riso em pranto, e o vosso gozo em tristeza.
Humilhai-vos perante o Senhor, e ele vos exaltará. (Tiago 4:8-10)

O perfecionista acha humilhante humilhar-se, o perfecionista esconde a sua


miséria, como lamentaria, choraria, e converteria o seu riso (falso) em pranto, e seu
gozo (falso) em tristeza? Como se achegaria a Deus, se o seu foco é a opinião dos
homens? Mas como diz Jesus Cristo “ Para os homens é impossível, mas não para
Deus, porque para Deus todas as coisas são possíveis.” (Marcos 10:27)
O CAMINHO DO BASTARDO
2.

AS CINCO HERANÇAS

Quando o meu pai faleceu, depois de o levarmos ao sepulcro, reunimos em


família, as mães, os tios e tias, e os filhos e discutimos como as coisas seriam.
Falamos sobre as coisas que o nosso pai havia deixado, e como repartiríamos entre
nós as mesmas coisas. Sendo que a casa onde ele passou seus últimos dias devia ser
vendido e o dinheiro repartido igualmente. E foi exatamente assim que
subsequentemente tratamos as coisas.
Os órfãos são desgraçados no sentido em que entendemos que a morte de um
pai representa uma desgraça para os seus filhos. Entretanto, quando o falecido
deixa alguma coisa de seu trabalho, no caso, bens (materiais, intelectuais ou moral)
estas são heranças para os filhos e a viúva. Falar das heranças do bastardo é falar
daquelas coisas que todos aqueles que rejeitam o caminho de Deus acabaram
recebendo em Adão. Paulo nos diz que:
Porque, assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão
vivificados em Cristo. (I Cor 15:22)

A morte é o fim do caminho do bastardo, basta nos lembrarmos das palavras de


Deus endereçadas à Adão “E ordenou o SENHOR Deus ao homem, dizendo: De
toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do
bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente
morrerás”(Gen 2:16-17). Em virtude da transgressão de Adão a humanidade não
tem acesso a Árvore da Vida (Gen 3:22-24), daí a morte física que todos são
participantes (primeira morte). Se seguirmos o caminho da transgressão teremos
como fim a morte (segunda):
Portanto, da mesma forma como o pecado entrou no mundo por um homem,
e pelo pecado a morte, assim também a morte veio a todos os homens, porque
todos pecaram. (Rom 5:12 NVI)
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

De maneira que, irmãos, somos devedores, não à carne para viver segundo a
carne. Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo Espírito
mortificardes as obras do corpo, vivereis. (Rom 8:12-13)
“Mas, quanto aos tímidos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos
homicidas, e aos fornicadores, e aos feiticeiros, e aos idólatras e a todos os
mentirosos, a sua parte será no lago que arde com fogo e enxofre; o que é a
segunda morte.” (Apoc 21:8)

A mentalidade carnal é o que faz de alguém um bastardo. Quando seguimos o


exemplo da transgressão de Adão e do engano da Eva manifestamos a carnalidade
herdada destes. Podemos inferir esta verdade nas palavras de Paulo quando explica
que “... os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que
são segundo o Espírito para as coisas do Espírito. Porque a inclinação da carne é
morte; mas a inclinação do Espírito é vida e paz. Porquanto a inclinação da carne é
inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode
ser. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus .” (Rom 8:5-8)
No presente capítulo falaremos sobre cinco heranças ou inclinações da carne
(Adão) que caracterizam o bastardo.

HERANÇA I: A FORMA DE OUVIR


Quando observamos a forma como a Serpente se aproxima da mulher vemos que a
conversa que foi trocada não envolveu nenhuma desconfiança por parte da mulher,
ela de modo inocente e sem qualquer precaução se deixou seduzir pela astúcia do
inimigo da humanidade:
Ora, a serpente era mais astuta que todas as alimárias do campo que o
SENHOR Deus tinha feito. E esta disse à mulher: É assim que Deus disse: Não
comereis de toda a árvore do jardim? E disse a mulher à serpente: Do fruto das
árvores do jardim comeremos, mas do fruto da árvore que está no meio do
jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não
morrais. Então a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis. Porque
AS CINCO HERANÇAS

Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e
sereis como Deus, sabendo o bem e o mal. (Gen 3:1-5)

O escriba teve o cuidado de começar por chamar a nossa atenção a astúcia da


Serpente. Este pormenor visa introduzir o relato de como a mulher foi enganada. A
tentação é simplesmente parte da nossa vida, a questão não é sobre o ser ou não
tentado, mas sim sobre quando seremos tentados, e como lidaremos com a nossa
tentação:
Bem-aventurado o homem que suporta a tentação; porque, quando for
provado, receberá a coroa da vida, a qual o Senhor tem prometido aos que o
amam. Ninguém, sendo tentado, diga: De Deus sou tentado; porque Deus não
pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta. Mas cada um é tentado, quando
atraído e engodado pela sua própria concupiscência. Depois, havendo a
concupiscência concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado,
gera a morte. (Tiago 1:12-15)

Concupiscência é nada mais do que o desejo natural que é próprio de todo


homem. Desejar não é pecado, o pecado, segundo Tiago é o produto de um
processo que começa pelo desejo, e depois quando a pessoa toma a decisão de
realizar o desejo pecaminoso, temos o pecado concebido que gera a morte. A
Serpente sabe que naturalmente os homens desejam comer, desejam sexualmente
o sexo oposto atraente, sentem o desejo beber aquilo que é palatável em fim. Estes
são sentidos naturais que fazem parte da nossa natureza e servem para nossa
procriação, manutenção e segurança.
Um homem que não sente nenhum desejo diante de uma mulher formosa e
desnuda tem algum problema. Um homem que não sente o desejo de comer, corre
perigo, um homem que não discrimina os aromas facilmente comerá alguma coisa
podre. O problema não é a presença de um desejo natural em nós, o problema é
quando este desejo é direcionado a algo ilícito e ao contrário de nossa consciência
se subjugar ao desejo, nos rendemos a ele, e aceitamos realizar ou consumar a
concupiscência. É exatamente na consciência onde o papel da astúcia ou
manipulação entra, para a Serpente convencer a Eva a abraçar o erro.
As palavras da Serpente visam somente persuadir a mulher e influenciar a sua
consciência a ceder ao desejo de provar aquela fruta. Daí ele dizer “é assim que
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim?”. É como se a questão


induzisse a mulher a considerar que a proibição de comer o fruto de uma só árvore
fosse igual a ser proibida de comer de todas as árvores que existiam no jardim. Isto
é astucia, é linguagem de persuasão subtil.
A mulher subestima a astucia da Serpente, acha que o inimigo não sabia a
verdade de que somente de uma árvore estavam proibidos de comer, e ali ela tenta
explicar ao “inofensivo” e “ignorante” inimigo camuflado “do fruto das árvores do
jardim comeremos, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus:
Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais. Então a serpente disse
à mulher: Certamente não morrereis”. Até chegar a este ponto, a mulher estava
confortável diante da Serpente, chegando mesmo a ser enganada em pensar que o
ser que com ela falava era de certa forma néscia. Quando subestimamos o inimigo
seremos surpreendidos com a derrota.
E a quem perdoardes alguma coisa, também eu; porque, o que eu também
perdoei, se é que tenho perdoado, por amor de vós o fiz na presença de Cristo;
para que não sejamos vencidos por Satanás; porque não ignoramos os seus
ardis. (II Cor 2:10-11)

O projetar-se numa posição de néscio, ao mesmo tempo que lança uma ofensiva
sorrateira contra Deus, é uma estratégia que o Diabo continua a utilizar até aos dias
de hoje. Geralmente as coisas diabólicas surgem em forma de “civilização”,
“intelectualismo”, ou ainda para o “bem” e representam “desenvolvimento”.
Quanto a isto Paulo nos diz “e não é maravilha, porque o próprio Satanás se
transfigura em anjo de luz.” (II Cor 11:14)
Só depois de cairmos na isca do inimigo, não lhe reconhecendo como ofensivo e
maldoso, é que ele mais abertamente manifesta as suas cores, dizendo “c ertamente
não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os
vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal. ”Nesta etapa da conversa
as guardas estão no seu ponto mais baixo, visto que não se identificou o perigo, e ai
a sugestão de que Deus é um manipulador e, portanto, injusto se torna uma
AS CINCO HERANÇAS

proposição aceitável de se contemplar, sobretudo diante do desejo natural forte de


comer da árvore proibida. Dificilmente a apostasia acontece de forma brusca, é
paulatina, precisa de um processo de desarmamento da consciência que tem Deus
em alta estima.
A árvore proibida tinha em si a sua atracão especial, o próprio facto de existier o
mandamento que proibia comer do fruto daquela árvore fazia daquela árvore
especialmente sedutor. Imagine o que se passa na mente de Adão e Eva sempre que
passavam ao lado daquela árvore, no interior do Jardim, olhavam para aquelas
frutas sedutoras e viajavam naquele aroma “que sabor terá”, “ooh, que aroma tão
chamativo” eles pensavam. Isto é provavelmente o que Paulo busca transmitir
quando sobre a Lei diz:
Que diremos pois? É a lei pecado? De modo nenhum. Mas eu não conheci o
pecado senão pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência, se a lei não
dissesse: Não cobiçarás. Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento,
operou em mim toda a concupiscência; porquanto sem a lei estava morto o
pecado. E eu, nalgum tempo, vivia sem lei, mas, vindo o mandamento, reviveu
o pecado, e eu morri. E o mandamento que era para vida, achei eu que me era
para morte. Porque o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, me
enganou, e por ele me matou. (Rom 7:7-11)

Esta curiosidade, misturada com o desejo natural de querer saciar o desejo de


provar uma fruta chamativa aos olhos e com um aroma singular; “ aquela árvore era
boa para se comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento ”
(Gen 3:6), trabalhada com uma sedução psicológica que eliminou todo o senso de
perigo, fez com que a picada da Serpente tivesse todo o efeito letal de uma dose
perfeita de veneno. Mas, é preciso notarmos que o maior ingrediente no cocktail de
sedução da Serpente não foi a fruta, mas sim o desejo de ser igual ao Criador da
própria fruta; “se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o
mal” (Gen 3:5).
Para além dos nossos desejos naturais, o que determina a nossa rendição ou não
a tentação é a disposição da nossa consciência ou entendimento. E é na arena da
consciência onde o Diabo e seus colaboradores têm as suas armas mais poderosas
viradas, lançando um ataque sem tréguas através de todos os meios possíveis em
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

seu dispor; televisão, livros, internet, universidades, escolas, falsos profetas, autores
renomados etc. Não poucas vezes as ideologias mais diabólicas chegam até nós e,
aos nossos filhos, através de desenhos animados, programas de entretenimento ou
arte. Por isso lemos que:
Portanto, cingindo os lombos do vosso entendimento, sede sóbrios, e esperai
inteiramente na graça que se vos ofereceu na revelação de Jesus Cristo; como
filhos obedientes, não vos conformando com as concupiscências que antes
havia em vossa ignorância. (I Ped 1:13-14)

Cingir os lombos é uma expressão hebraica que se referia ao acto de levantar e


amarrar a túnica, de tal modo que se tornava mais fácil e confortável correr,
trabalhar ou lutar (I Reis 18:46/II Reis 9:1/Isaías 8:9). Quer isso nos dizer que a
mensagem de Pedro para com os irmãos é para tratarem do entendimento como se
as túnicas que são cingidas para trabalhar, correr ou lutar. Isto é uma forma de dizer
“estejam prontos para o labor do reino de Deus, e preparados para combater contra
todo o engano que vos tenta tirar do caminho estreito”. É isso que vemos nas
palavras de Paulo:
Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho
além do que já vos tenho anunciado, seja anátema. Assim, como já vo-lo
dissemos, agora de novo também vo-lo digo. Se alguém vos anunciar outro
evangelho além do que já recebestes, seja anátema. (Gal 1:8-9)

A metanarrativa nestes versos ligados a necessidade de “cingirmos os lombos” é


o relato de Génesis 3 de como a Serpente enganou a Eva que baixou a guarda, e
tratou o seu inimigo como se fosse um amigo e digno de confiança. Deixou-se
seduzir pela astúcia do seu interlocutor, que se passando de néscio conseguiu
corromper o entendimento da mulher em relação ao carácter de Deus e da sua
palavra. Sobre isto lemos:
Amados, não creiais a todo o espírito, mas provai se os espíritos são de Deus,
porque já muitos falsos profetas se têm levantado no mundo. Nisto
conhecereis o Espírito de Deus: Todo o espírito que confessa que Jesus Cristo
veio em carne é de Deus; e todo o espírito que não confessa que Jesus Cristo
AS CINCO HERANÇAS

veio em carne não é de Deus; mas este é o espírito do anticristo, do qual já


ouvistes que há de vir, e eis que já está no mundo. (I João 4:1-3)

Infelizmente apesar de várias admoestações bíblicas sobre a necessidade de


cingirmos os nossos lombos e cuidarmos de identificar com que espíritos nos
comunicamos neste mundo, a maioria daqueles que se identificam como cristãos
não levam isto à sério. Somos, na maioria das vezes, mais parecidos com a Eva do
que com Jesus Cristo; não sabemos identificar os ardis do inimigo, lhe achamos um
anjo de luz, néscio e cheio de boas intenções, quando na verdade carrega peçonha
letal em sua língua. Já Oséias dizia à Israel:
O meu povo foi destruído, porque lhe faltou o conhecimento; porque tu
rejeitaste o conhecimento, também eu te rejeitarei, para que não sejas
sacerdote diante de mim; e, visto que te esqueceste da lei do teu Deus,
também eu me esquecerei de teus filhos. (Oséias 4:6)

É relevante ver que o resultado de ignorar as admoestações divinas é sermos


deixados a nossa mercê. E sendo o inimigo mais forte do que nós (Salmos 8:4-5),
não nos resta nenhuma esperança de vitória, senão uma expectativa certa de
destruição. Foi isso que aconteceu com Adão e Eva, quando seguiram o caminho do
Bastardo. Em I João 4 o autor alerta sobre os falsos profetas que estavam a espalhar
a ideia de que Jesus Cristo não veio em carne e não morreu na cruz, e no terceiro
dia ressuscitou corporalmente. Esta verdade é fundamental para a nossa fé, tão
fundamental que sem ela os cristãos seriam os maiores miseráveis no mundo, disse
Paulo em I Coríntios 15. Assim também temos falsas doutrinas de toda sorte, e
precisamos provar os espíritos, ao contrário da Eva.
A sabedoria do VT nos alerta dizendo “sobre tudo o que se deve guardar, guarda
o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Prov 4:23). Agora, o termo
“coração” é um hebraísmo para dizer pensamentos, desejos ou o interior do nosso
ser, para dizer que de todas as coisas que devemos cuidar, a primeira é
relativamente ao nosso interior (tal como Jesus alerta aos escribas e Fariseus).
Lemos que:
...do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios,
prostituição, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias. São estas coisas que
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

contaminam o homem; mas comer sem lavar as mãos, isso não contamina o
homem. (Mat 15:19-20)

Devemos guardar os nossos pensamentos de qualquer sorte de corrupção. Isto


nos leva não só a rejeitar os desejos ilícitos que naturalmente tentam o nosso
coração, mas acima de tudo as sugestões astutas que o Diabo e seus agentes trarão
aos nossos ouvidos enquanto vivemos neste mundo. Devemos, no entanto, resistir
sempre o Diabo e o pecado (Tiago 4:7/Heb 12:4). É nesta senda que devemos
interpretar as palavras inspiradas de Paulo:
E não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela
renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa,
agradável, e perfeita vontade de Deus. (Rom 12:2)

Devemos resistir qualquer sedução astuta do inimigo em nos conformar a


mentalidade deste mundo, que jaz no maligno (I João 5:19). O mundo fará sempre
de tudo para nos conformar aos seus desígnios, ao ponto de buscar envergonhar-
nos por nos atermos ao caminho estreito, chamará nomes, perseguirá muitos, mas é
necessário que perseveremos na verdade até ao fim (Mat 10:22). O nosso ouvir é tão
crucial que o nosso Senhor não poucas vezes terminava os seus ensinos dizendo:
Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.

A Tentação de Jesus

Uma das coisas mais interessantes das Escrituras é forma que a maioria dos temas e
eventos tratados encontram uma harmonia incomum. Se no início do livro de
Génesis temos o relato do fracasso do primeiro homem, no inicio do evangelho
temos o relato da vitória do segundo homem (I Cor 15:45). Nós lemos que:
Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo
diabo. E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome; e,
chegando-se a ele o tentador, disse: Se tu és o Filho de Deus, manda que estas
pedras se tornem em pães. Ele, porém, respondendo, disse: Está escrito: Nem
só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.
AS CINCO HERANÇAS

Então o diabo o transportou à cidade santa, e colocou-o sobre o pináculo do


templo, e disse-lhe: Se tu és o Filho de Deus, lança-te de aqui abaixo; porque
está escrito: Que aos seus anjos dará ordens a teu respeito, E tomar-te-ão nas
mãos, Para que nunca tropeces em alguma pedra. Disse-lhe Jesus: Também
está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus. Novamente o transportou o
diabo a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a
glória deles. E disse-lhe: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares. Então
disse-lhe Jesus: Vai-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus
adorarás, e só a ele servirás. (Mat 4:1-10)

Antes de expandirmos no assunto da tentação de Jesus vamos nos recorrer a uma


discrição relevante feita por João, e a partir daí enquadrar o relato de Mateus 4. Nós
lemos:
Não ameis o mundo, nem o que no mundo há. Se alguém ama o mundo, o
amor do Pai não está nele. Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência
da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai, mas do
mundo. E o mundo passa, e a sua concupiscência; mas aquele que faz a
vontade de Deus permanece para sempre. (I João 2:15-17)

João distingue tudo aquilo que neste mundo não é de Deus em três principais
categorias; a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da
vida. Esta distinção é bem consistente com o que vimos na tentação de Eva e o que
veremos nesta secção na tentação de Jesus.
Tendo Jesus ficado quarenta dias sem comer nada, o seu corpo gemendo de
fome, que é natural, a mesma Serpente de Génesis 3 apareceu, desta vez,
igualmente ciente do desejo (concupiscência) da carne de saciar a sua necessidade,
o inimigo começa a sua conversa astuta, desta vez com o “ se tu és o Filho de Deus,
manda que estas pedras se tornem em pães ”. Vejamos como o inimigo desta vez
não se fez de néscio, isto provavelmente porque estava ciente que Jesus sabia com
quem estava a lidar ( v.10).
O uso subtil da condicionante “se” faz uma grande diferença no discurso do
inimigo, é o substituto para “é assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore
do jardim?” (Gen 3:1). Há aqui uma dúvida lançada quanto a veracidade das
palavras “este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”(Mat 3:17), que Deus
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

havia afirmado quando Jesus foi baptizado, isso é a mesma duvida lançada quanto a
palavra de Deus “de toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do
conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela
comeres, certamente morrerás.” (Gen 2:16-17)
Se Jesus fosse um perfeccionista e vivesse preocupado com a opinião dos
homens, poderia ter caído no pecado do orgulho, e buscado convencer o Diabo.
Visto de uma outra forma, o inimigo misturou o atiçar o orgulho com o desejo
natural de saciar a fome de 40 dias de jejum. E aqui vemos Jesus a fazer recurso das
Escrituras, quando responde “está escrito: Nem só de pão viverá o homem, mas de
toda a palavra que sai da boca de Deus”:
E te lembrarás de todo o caminho, pelo qual o SENHOR teu Deus te guiou no
deserto estes quarenta anos, para te humilhar, e te provar, para saber o que
estava no teu coração, se guardarias os seus mandamentos, ou não. E te
humilhou, e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu não
conheceste, nem teus pais o conheceram; para te dar a entender que o homem
não viverá só de pão, mas de tudo o que sai da boca do SENHOR viverá o
homem. Nunca se envelheceu a tua roupa sobre ti, nem se inchou o teu pé
nestes quarenta anos. (Deut 8:2-4)

Jesus fez um paralelo das limitações do seu corpo, com as limitações de Israel
durante os 40 anos no deserto. Do mesmo modo que Deus foi fiel para suprir todas
as necessidades do povo no deserto, Deus seria fiel para suprir a necessidade de
Jesus. Ao contrário do povo no deserto que não contava que Deus fosse capaz de
fazer chover mantimento dos céus, Jesus tinha certeza que sua vida não dependia
de seus próprios esforços ou do alimento natural. Ele, decidiu confiar em Deus, ao
contrário de murmurar (Num 14:2).
O Diabo se vendo contrariado, prosseguiu para uma outra tentação, desta vez ele
leva o Senhor ao pináculo do Templo e lhe diz “Se tu és o Filho de Deus, lança-te de
aqui abaixo; porque está escrito: Que aos seus anjos dará ordens a teu respeito, E
tomar-te-ão nas mãos, Para que nunca tropeces em alguma pedra ” (cit. Salmos
91:11-12). Aqui o inimigo percebe que o Senhor era muito centrado na palavra de
AS CINCO HERANÇAS

Deus, então decidi mostrar que ele também é um “teólogo”. Mas, notemos, que
não largou o “se”. O orgulho para o Diabo é o ponto mais fraco da raça humana, é,
na verdade, o que faz do próprio Diabo o Diabo. Todo ser orgulhoso é manipulável
pelo inimigo, por isso Jesus em outro lugar disse “ já não falarei muito convosco,
porque se aproxima o príncipe deste mundo, e nada tem em mim ” (João 14:30).
Jesus não baixou a guarda, e responde ao desafio como o verdadeiro Filho de
Deus dizendo “também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus”, citando de
novo as Escrituras, desta vez Deuteronómio 6:16. Aqui a tentação se enquadra no
campo da “soberba da vida”. E de novo, devemos notar que Jesus recorre as
Escrituras para responder a tentação do inimigo das nossas vidas.
Finalmente, o inimigo mesmo contrariado, faz a sua terceira tentativa para ver se
consegue manchar o testemunho de Jesus Cristo, e “ o transportou o diabo a um
monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles. E
disse-lhe: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares. ”Aqui o inimigo faz o seu
ataque no campo da “concupiscência dos olhos”. E o Senhor que sabia que todos os
reinos lhe seriam dados pelo seu Pai, assim como profetizado em Salmos 2 e
concretizado após sua ressurreição e ascensão (Mt 28:18) respondeu “v ai-te,
Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás ”.
Cada um de nós é tentado nestas três vertentes principais (a concupiscência da
carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida), e o dinheiro (Mamom), e o
poder ou seja a concupiscência dos olhos tem carregado muita gente ao caminho
do Bastardo. O mesmo Senhor que venceu todas as tentações (Heb 4:15) nos disse:
A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons,
todo o teu corpo terá luz; se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo
será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes serão
tais trevas! Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e
amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a
Deus e a Mamom. (Mat 6:22-24)

Por causa do dinheiro e os bens materiais, que dão prestigio e poder no mundo,
muitos entre os cristãos têm se tornado improdutivos para o reino. Todo o seu
tempo e esforço é virado a aquisição de bens materiais e de poder. Poucos buscam
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

primeiro o reino de Deus e sua justiça, mas fizeram do reino de Deus o resto que
será acrescentado (Mat 6:33). Sobre isso Paulo nos diz que “...o amor ao dinheiro é
a raiz de toda a espécie de males; e nessa cobiça alguns se desviaram da fé, e se
traspassaram a si mesmos com muitas dores”, e ainda exorta:
Portanto, se já ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas que são de cima,
onde Cristo está assentado à destra de Deus. Pensai nas coisas que são de
cima, e não nas que são da terra; porque já estais mortos, e a vossa vida está
escondida com Cristo em Deus. (Col 3:1-3)

Jesus Cristo ao contrário da Adão e Eva tinha os seus lombos cingidos e em


nenhum momento se deixou ser confundido pela astúcia da Serpente. Lidou com o
inimigo do jeito que todos nós devemos lidar com ele, se apegando as Escrituras e
aplicando a de modo correcto. Infelizmente, na maioria dos casos, os cristãos de
hoje são preguiçosos quanto a meditação bíblica, nos esquecemos que diante das
tentações o próprio Jesus recorreu as Escrituras. Ele mesmo nos ensina que:
...Errais, não conhecendo as Escrituras, nem o poder de Deus (Mat 22:29)

Um pormenor que Lucas captou no seu relato, que não encontramos no relato
feito em Mateus, é quando ele termina dizendo:
E, acabando o diabo toda a tentação, ausentou-se dele por algum tempo.
(Lucas 4:13)

Aqui a mensagem que Lucas busca nos transmitir é que o Diabo depois de tentar
ao Senhor retirou-se somente por algum tempo, querendo dizer que ele nunca
deixou Jesus de modo permanente. Se o Diabo tentou a Jesus durante toda a sua
vida, porque não nos tentaria do mesmo jeito? Nós também somos chamados a
seguir os trilhos do segundo Adão, por isso lemos que “ …quanto ao trato passado,
vos despojeis do velho homem, que se corrompe pelas concupiscências do engano;
e vos renoveis no espírito da vossa mente; e vos revistais do novo homem, que
segundo Deus é criado em verdadeira justiça e santidade.” (Efésios 4:23-24)
AS CINCO HERANÇAS

Não vos enganeis: as más conversações corrompem os bons costumes. Vigiai


justamente e não pequeis; porque alguns ainda não têm o conhecimento de
Deus; digo-o para vergonha vossa. (I Cor 15:33-34)

HERANÇA 2: A FORMA DE FALAR


Segundo vários estudos ouvir é a principal habilidade de comunicação utilizada
pelos homens, chegando a ser responsável por mais de 45% do modo pelo qual
obtemos informação. No caso de países africanos, com uma cultura oral ancestral,
bem como por um nível de literacia e alfabetização que ainda deixa muito a desejar,
provavelmente a percentagem seja bem superior. Boa parte do que se passa nas
escolas envolve um professor a falar e muitos alunos a ouvir, o que assistimos na TV
é geralmente dominada pelo som e pelas palavras. Sem esquecer da Rádio que é
totalmente virada à áudio.
Entretanto, para que haja alguém a ouvir necessariamente tem alguém ou algo a
produzir palavras inteligíveis, querendo dizer que não podemos falar do ouvir, sem
que tratemos igualmente do falar. Em teoria de comunicação é o que chamam de
emissor (quem fala) e receptor (quem ouve), no caso da comunicação oral. Assim,
quando lemos Génesis 3, podemos ver a Serpente num acto comunicativo com a
mulher, depois vemos a mulher com Adão, e finalmente Deus com os outros
agentes envolvidos na transgressão.
Se a ouvir sem cingir os nossos lombos é perigoso, e abriu a porta para a queda
da humanidade, a forma de falar igualmente revela muita coisa sobre o emissor. Do
mesmo jeito que identificamos a astúcia na comunicação da Serpente (O Bastardo),
podemos identificar um bastardo pelo modo que ele fala. A nossa mentalidade se
faz expressa naturalmente em nossas palavras. Ouvindo com calma alguém,
saberemos identificar e caracterizar quem este é alguém, seja pelo tom, seja pelo
conteúdo da sua fala.
Notemos por exemplo os discursos políticos, geralmente são confeccionados de
modos a divergir a crítica dos oponentes, quando feitos por aqueles que detém o
poder, e confecionados para convergir a crítica quando feitos pela oposição. Um
ouvinte abalizado a realidade de seu país, facilmente percebe quando os líderes que
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

governam buscam manipular a população à acreditar em inverdades, ou depositar


confiança naqueles que na verdade são sem carácter.
Nós africanos, temos experiência que sobra, de presidentes que falam muito e
bonito, mas realizam feio e pouco. Líderes que diante de um exame minucioso
daquilo que falam, se revelam manipuladores, arrogantes, insensíveis e brutos para
com a população que governam. Esta é a forma típica dos que seguem no caminho
do bastardo. Infelizmente, temos muitos que se dizem cristãos que manifestam a
herança do modo de falar proveniente de Adão e não de Jesus que eles professam
seguir. Estes últimos, evidentemente, são piores que todos os outros. Nós lemos
que:
E ouviram a voz do SENHOR Deus, que passeava no jardim pela
viração do dia; e esconderam-se Adão e sua mulher da presença do
SENHOR Deus, entre as árvores do jardim. E chamou o SENHOR
Deus a Adão, e disse-lhe: Onde estás? E ele disse: Ouvi a tua voz soar
no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me. E Deus disse:
Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore de que te
ordenei que não comesses? Então disse Adão: A mulher que me
deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi. (Gen 3:8-12)
A palavra hebraica traduzida “voz” é a mesma que é traduzida relâmpago e
alarido nas seguintes passagens:
E todo o povo viu os trovões e os relâmpagos, e o sonido da buzina, e
o monte fumegando; e o povo, vendo isso retirou-se e pôs-se de
longe. E disseram a Moisés: Fala tu conosco, e ouviremos: e não fale
Deus conosco, para que não morramos. (Exo 20:18-19)
E, ouvindo Josué a voz do povo que jubilava, disse a Moisés: Alarido
de guerra há no arraial. Porém ele respondeu: Não é alarido dos
vitoriosos, nem alarido dos vencidos, mas o alarido dos que cantam,
eu ouço. (Exo 32:17-18)
AS CINCO HERANÇAS

Se considerarmos a improbabilidade de que Deus estivesse a falar sozinho pelo


jardim, seremos compelidos a pensar nessa “voz” como sendo um som
característico da presença de Deus, algo mais em consonância com o som de
“relâmpago” ou de multidões de pessoas (Dan 10:5-6). Na verdade os seguintes
versos podem nos dar mais uma perspectiva quanto a “voz” da presença (glória) de
Deus:
Então me levou à porta, à porta que olha para o caminho do oriente. E eis que
a glória do Deus de Israel vinha do caminho do oriente; e a sua voz era como a
voz de muitas águas, e a terra resplandeceu por causa da sua glória. E o aspecto
da visão que tive era como o da visão que eu tivera quando vim destruir a
cidade; e eram as visões como as que tive junto ao rio Quebar; e caí sobre o
meu rosto. (Ezeq 43:1-3)
Eu fui arrebatado no Espírito no dia do Senhor, e ouvi detrás de mim uma
grande voz, como de trombeta, e os seus pés, semelhantes a latão reluzente,
como se tivessem sido refinados numa fornalha, e a sua voz como a voz de
muitas águas. E ele tinha na sua destra sete estrelas; e da sua boca saía uma
aguda espada de dois fios; e o seu rosto era como o sol, quando na sua força
resplandece. E eu, quando vi, caí a seus pés como morto; e ele pós sobre mim a
sua destra, dizendo-me: Não temas; Eu sou o primeiro e o último. (Apoc 1:10,
15-17)

Podemos concluir que a natureza do som emanado pela presença de Deus é


estrondoso, algo parecido a uma mistura de relâmpago, alarido de multidão, voz de
muitas águas e um som de trombeta. O que me parece importante captar em
Génesis 3 é que a humanidade (Adão) conhecia a “voz” da presença de Deus.
Temos de lembrar que essa era uma “voz” familiar tanto ao primeiro homem, como
a primeira mulher. É o som que ouviram primeiro quando foram feitos alma vivente
(Gen 2:7). Esta “voz” por mais poderosa e estrondosa que fosse, não produzia
terror à Adão antes da queda, tal como não aterrorizava a Moisés, como aterrorizava
os murmuradores e povo de dura servis (Exo 20:18-19).
Um povo que não cultiva intimidade com Deus não tem como reconhecer a voz
de Deus. O bastardo é estranho a voz do Pai Celestial, sua vida é pautada a voz da
Serpente. Assim como o som da presença de um leão é diferente do som de um
gato, cada espécie compartilha da mesma “voz”. O bastardo fala como o seu pai, e o
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

filho fala como o seu Pai. Por isso vemos que a “voz” do filho do homem (Dan
10:6/Apoc 1:10-17) é semelhante a voz de Deus (Ezeq 43:1-3). Jesus nos mostra
quando confrontava os judeus que não criam nele:
Bem sei que sois descendência de Abraão; contudo, procurais matar-me,
porque a minha palavra não entra em vós. Eu falo do que vi junto de meu Pai, e
vós fazeis o que também vistes junto de vosso pai.Por que não entendeis a
minha linguagem? Por não poderdes ouvir a minha palavra. Vós tendes por pai
ao diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o
princípio, e não se firmou na verdade, porque não há verdade nele. Quando
ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da
mentira. Mas, porque vos digo a verdade, não me credes. Quem dentre vós me
convence de pecado? E se vos digo a verdade, por que não credes? Quem é de
Deus escuta as palavras de Deus; por isso vós não as escutais, porque não sois
de Deus. (João 8:37-38, 43-47)

Jesus falava as palavras do seu Pai e não era percebido pelos bastardos, porque
estas falam a língua do pai deles que é o Diabo. O bastardo herda a forma de ouvir
que não lhe permite seguir o caminho de Deus, sua mente é rebelde e corrupta, dai
ele rejeitar as palavras verdadeiras e puras. O bastardo tem prazer em falar, ouvir,
aceitar e praticar a mentira, isto porque o seu pai é o pai da mentira. As suas
palavras não edificam, mas matam, e quando os bastardos ouvem a verdade a
reacção deles é rejeitar, ignorar (Lucas 6:22) ou fazer mal a quem fala a verdade
(Mat 7:6). Jesus nos mostra que cada um é semelhante ao seu verdadeiro pai. O que
falamos revela a nossa verdadeira paternidade:
Mas, quando vos entregarem, não vos dê cuidado como, ou o que haveis de
falar, porque naquela mesma hora vos será ministrado o que haveis de dizer.
Porque não sois vós quem falará, mas o Espírito de vosso Pai é que fala em vós.
(Mat 10:19-20)

Uma das coisas mais fascinantes da vida humana acontece exatamente quando
uma criança nasce, a mãe que durante nove meses cuidou do bebé em seu ventre
finalmente tem a oportunidade de matar a curiosidade de olhar e tocar o ser que
mexia dentro do seu próprio corpo. Ao receber a criancinha nas mãos, ainda com os
AS CINCO HERANÇAS

olhos fechados e a cheirar o líquido amniótico, começa um processo de exame das


características físicas da mesma, “tem os lábios do seu pai”, “tem os olhos de sua
mãe”, “tem o nariz diferente, nem bem do pai nem bem da mãe” e etc.
Assim tipicamente acontece, e nós africanos sabemos muito bem desta
realidade, a família do marido quando chega, especialmente a sogra e as tias,
recebem o recém-nascido em suas mãos, com sorrisos de alegria, mas com um olhar
examinador. Trazem a memória das características do pai e comparam com as
características do bebé, caso as duas divergirem profundamente, está semeado a
desconfiança de que tal não seja filho da sua família, e sim fruto provável de um
adultério. Esse é o teste de “DNA” feito sem aparelhos electrónicos.
Uns anos atrás um tio meu contou uma situação caricata, a esposa de um amigo
seu havia dado à luz, mas o amigo guardou o assunto por mais de quatro meses, até
que acabaram se encontrando e perguntado sobre a esposa e a gravidez teve que
informar que a mesma já tinha dado a luz, e assim segundo o costume, o meu tio
anunciou o dia que iriam passar para cumprimentar a esposa e conhecer o bebé.
Quando chegou o dia, lá o tio e a sua esposa chegaram a casa do amigo, e logo ao
receber o recém-nascido tiveram de se conter com o espanto, a criança era mestiça,
mas os pais são negros. A criança, segundo todos que já a viram, manifestamente é
filho ou de um branco, ou de um mestiço muito claro, declarou o meu tio.
Ora, alguém poderá dizer “sem o teste de DNA ninguém pode acusar a outra de
infidelidade”, que é uma verdade. Entretanto, uma coisa é o que é a verdade e outra
coisa é aquilo que é cultural. Na verdade, só apresentamos este exemplo para
apontar a forma como na cultura Bantu é importante que os filhos se identifiquem
com os seus pais, para evitar especulações ou dúvidas quanto a legitimidade do
filho e a fidelidade da esposa.
Voltemos ao nosso caso de estudo, em Génesis 3:8-12. Adão só se escondeu da
presença de Deus depois da transgressão. O medo de Deus é proporcional a nossa
culpa (Heb 12:18-29). Só quem está com a consciência pura (II Cor 1:12/I Tim 1:5/I
Ped 3:21/Heb 10:19-29) abraça a exortação que nos diz “Cheguemos, pois, com
confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e achar
graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno.” (Heb 4:16)
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

De forma semelhante ao afastamento de Adão, o que nos afasta da vida de


oração é o pecado. A concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a
soberba da vida, facilmente nos separam daquela rendição e dependência à Deus. A
soberba da vida, que é o amor ao mundo e, portanto, adultério aos olhos de Deus
(Tiago 4:4) tem levado muitos distantes da presença de Deus.
Quando Deus indaga a Adão sobre a sua transgressão, ele manifesta a forma de
falar de um bastardo; “ A mulher que me deste por companheira, ela me deu da
árvore, e comi”. Se a Serpente havia implicitamente acusado a Deus de ser
inconfiável, e dotado de más intenções, aqui Adão segue o exemplo acusando “a
mulher que me deste por companheira”. Como se Deus tivesse conspirado contra
Adão, ao lhe dar a mulher.
O Bastardo é acusador (Apoc 12:9-10), e os bastardos são acusadores. Tudo
fazem para se justificar, inclusive acusar o próprio Deus de injustiça, se fazendo
mais justos do que Deus. Adão não se humilhou e nem admitiu imediatamente o
seu pecado, ao contrário, se inocentou, acusando a Eva, como se a Eva o tivesse
obrigado a transgredir, e como se a sugestão da Eva tivesse eliminado de Adão a
capacidade de dizer não. Adão seguiu o caminho dos perfecionistas, medindo a sua
justiça com a régua da infidelidade ou fraqueza dos outros, no caso sua própria
esposa. Quando a atitude devia ser semelhante à de Davi:
Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as
minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias. Lava-me
completamente da minha iniquidade, e purifica-me do meu pecado. Porque
eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de
mim. Contra ti, contra ti somente pequei, e fiz o que é mal à tua vista, para
que sejas justificado quando falares, e puro quando julgares. (Sal 51:1-4)

O falar dos bastardos é pautado pela falta de humildade. Eles não se humilham,
eles resistem a palavra de Deus, inventam argumentos e se justificam ao invés de
admitir o pecado e clamar por divina clemência. Mas a verdade de Deus revela a
ignorância humana, todos os argumentos dos bastardos são como as fortalezas de
AS CINCO HERANÇAS

Níneve “serão como figueiras com figos temporãos; se os sacodem, caem na boca
do que os há de comer ” (Nau 3:12). Por isso Paulo nos diz:
Porque as armas da nossa milícia não são carnais, mas sim poderosas em Deus
para destruição das fortalezas; destruindo os conselhos, e toda a altivez que se
levanta contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo o
entendimento à obediência de Cristo. (II Cor 10:4-5)

Falar nos é tão natural que na maioria das vezes não levamos a sério o que
falamos, de tal modo que poucas vezes paramos para meditar primeiro no que
devemos ou não falar. Entretanto Tiago nos avisa que “... porque todos tropeçamos
em muitas coisas. Se alguém não tropeça em palavra, o tal é perfeito, e poderoso
para também refrear todo o corpo” (Tiago 3:2). E o Senhor nos alerta que:
Ou fazei a árvore boa, e o seu fruto bom, ou fazei a árvore má, e o seu fruto
mau; porque pelo fruto se conhece a árvore. Raça de víboras, como podeis vós
dizer boas coisas, sendo maus? Pois do que há em abundância no coração,
disso fala a boca. O homem bom tira boas coisas do bom tesouro do seu
coração, e o homem mau do mau tesouro tira coisas más. Mas eu vos digo que
de toda a palavra ociosa que os homens disserem hão de dar conta no dia do
juízo. Porque por tuas palavras serás justificado, e por tuas palavras serás
condenado. (Mat 12:33-37)

Da boca da raça de víboras encontramos o veneno (a mentira e o mal). Como o


mundo se enche de homens blasfemos. Como famílias tem sido destruídas por
causa de calúnias, ofensas, acusações. Como igrejas têm sido divididas por causa de
fofocas. Como milhares de milhares têm sido conduzidas ao inferno por causa de
falsos profetas. Como muitos tem apostatado da fé “...dando ouvidos a espíritos
enganadores, e a doutrinas de demónios; pela hipocrisia de homens que falam
mentiras, tendo cauterizada a sua própria consciência ” (I Tim 4:1-2).
Perseverai em oração, velando nela com ação de graças; orando também
juntamente por nós, para que Deus nos abra a porta da palavra, a fim de
falarmos do mistério de Cristo, pelo qual estou também preso; para que o
manifeste, como me convém falar. Andai com sabedoria para com os que estão
de fora, remindo o tempo. A vossa palavra seja sempre agradável, temperada
com sal, para que saibais como vos convém responder a cada um. (Col 4:2-6)
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

A forma de falar é um termómetro da condição do nosso coração (Mat 15:11), e é


também através dela que os homens serão julgados por Deus, como está escrito:
“...no dia do juízo, os homens haverão de dar conta de toda palavra inútil que
tiverem falado. Pois por suas palavras você será absolvido, e por suas palavras será
condenado"(Mat 12:36-37). Tiago ao resumir estes ensinos nos diz que:
Todos tropeçamos de muitas maneiras. Se alguém não tropeça no falar, tal
homem é perfeito, sendo também capaz de dominar todo o seu corpo.
Quando colocamos freios na boca dos cavalos para que eles nos obedeçam,
podemos controlar o animal todo. Tomem também como exemplo os navios;
embora sejam tão grandes e impelidos por fortes ventos, são dirigidos por um
leme muito pequeno, conforme a vontade do piloto. Semelhantemente, a
língua é um pequeno órgão do corpo, mas se vangloria de grandes coisas.
Vejam como um grande bosque é incendiado por uma simples fagulha. Assim
também, a língua é um fogo; é um mundo de iniquidade. Colocada entre os
membros do nosso corpo, contamina a pessoa por inteiro, incendeia todo o
curso de sua vida, sendo ela mesma incendiada pelo inferno. Toda espécie de
animais, aves, répteis e criaturas do mar doma-se e é domada pela espécie
humana; a língua, porém, ninguém consegue domar. É um mal incontrolável,
cheio de veneno mortífero. Com a língua bendizemos ao Senhor e Pai, e com
ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. Da mesma boca
procedem bênção e maldição. Meus irmãos, não pode ser assim! (Tiago 3:2-
10)

A forma como falamos é um dos temas mais repetidos nas escrituras, seja no VT
como no NT. Paulo citando Salmos 140:3, 10:10, 5:9 nos fala sobre: “A sua garganta
é um sepulcro aberto; com a língua tratam enganosamente; peçonha de áspides
está debaixo de seus lábios; cuja boca está cheia de maldição e amargura” (Rom
3:13-14). O povo de Israel é visto como murmuradores (Exo 15:24/Num
14:2/Salmos 106:25), são eles que proferiam palavras que ofendiam o coração de
Deus (Eze 18:2-3). O pai da mentira é o pai dos mentirosos (João 8:44), não é de
estranhar que quando o Dragão dá o seu poder a Besta, a primeira coisa que
acontece é capacitação para blasfemar:
AS CINCO HERANÇAS

À besta foi dada uma boca para falar palavras arrogantes e blasfemas, e lhe foi
autoridade para agir durante quarenta e dois meses. Ela abriu a boca para
blasfemar contra Deus e amaldiçoar o seu nome e o seu tabernáculo, os que
habitam no céu. (Apoc 13:5-6/NVI)

A serpente é temida não pela força de suas mãos, ou pela força de suas pernas,
pois não as tem, mas pelo veneno de sua boca. Quando a Serpente enganou a Eva
foi com a sua língua. Da boca do lobo não sai o som de cordeiros, cada espécie
produz aquilo que é próprio da sua família, os bastardos falam o que é próprio dos
filhos ilegítimos: “Acaso pode sair água doce e água amarga da mesma fonte? Meus
irmãos, pode uma figueira produzir azeitonas ou uma videira, figos? Da mesma
forma, uma fonte de água salgada não pode produzir água doce ” (Tiago
3:11-12/NVI).

Tal mãe, tal filha

Uma vez enquanto eu estava a fazer alguma coisa em casa, ouvi a filha mais velha da
minha vizinha a proferir palavras muito perversas para uma criança de menos de 7
anos. Na verdade, palavras grosseiras nunca são justificáveis na boca de quem quer
que seja, é, de todo, muito chocante quando na boca de um ser tão petiz ouvirmos
tamanha brutalidade. A nossa visão de uma criança é inseparável da inocência e da
pureza. Entretanto, desde muito cedo e facilmente se pode corromper uma virgem
alma.
Pensei comigo mesmo “onde está a mãe delas para repreender a sua filha”.
Passados uns poucos dias, ouvimos as crianças a chorar, sendo repreendidas por
alguma coisa que terão cometido, mas o que chamou a nossa atenção foram as
palavras usadas na repreensão. Ficou mais do que evidente que os palavrões que a
menina usara tivessem sido aprendidas com a própria mãe. Tal mãe, tal filha.
Os nossos apartamentos eram juntinhos, e mesmo não querendo, qualquer
gritaria de um lado chega a ser ouvido no outro. Foi assim que era fácil notar a
vizinha voltando embriagada em casa, e com hematomas nos olhos. A brutalidade
de seu namorado também se tornou evidente assim.
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Sem Deus este comportamento é justificável. Infelizmente devia ser regra que os
que se identificam como sendo cristãos fossem na maioria diferentes, entretanto,
não poucos casos sugerem que a realidade é bem diferente. Só podemos descansar
na certeza de que há uma grande diferença entre se considerar um cristão, e Jesus
te considerar um cristão. É de se esperar que a comunicação de um cristão se
conforme a comunicação de Jesus Cristo e dos santos. Por isso lemos que:
“Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas só a que for boa para
promover a edificação, para que dê graça aos que a ouvem.” (Efe 4:29)
Mas agora, despojai-vos também de tudo: da ira, da cólera, da malícia, da
maledicência, das palavras torpes da vossa boca. Não mintais uns aos outros,
pois que já vos despistes do velho homem com os seus feitos, e vos vestistes do
novo, que se renova para o conhecimento, segundo a imagem daquele que o
criou. (Col 3:8-10)

Assim como falamos no primeiro capítulo, o caminho dos bastardos começa no


lar e busca contaminar ao máximo. Quando os pais não consideram escândalo
pronunciar torpeza de onde aprenderão os filhos a vergonha ou pudor em
proferirem ofensas? Assim nos alerta a sabedoria:
Educa a criança no caminho em que deve andar; e até quando envelhecer não
se desviará dele. (Pro 22:6)
O que semear a perversidade segará males; e com a vara da sua própria
indignação será extinto. (Pro 22:8)

Do mesmo jeito que se espera que uma criança bem educada não se desviará do
caminho certo até a sua velhice, se espera que uma criança mal educada cresça
perversa até a velhice. Na verdade quanto mais velha o perverso se torna, mais
perverso fica. Esta realidade nos circunda, e deve nos estremecer o coração e nos
levar a proclamar o evangelho com muita oração aos nossos vizinhos. É isso que
significa ser sal e luz do mundo (Mat 5:13).
Infelizmente controlar a língua é mesmo muito difícil, porque ela reflecte o
estado do nosso coração. Não poucas vezes na minha vida me vi indignado comigo
AS CINCO HERANÇAS

mesmo, não me lembro de ter proferido uma palavra torpe contra a minha esposa,
mas eu seria mentiroso se dissesse que poucas vezes me arrependi pelo tom ou a
escolha de palavras com que respondi a minha esposa. Tenho a certeza que Deus
tem ouvido o meu clamor e é notório uma crescente mudança no modo de falar. A
obra do Espírito Santo em nós é tal que até coisas que aos olhos de todos não
representa agressão chegamos a ter a convicção no espírito que erramos e que
devemos fazer diferente para a glória do Pai que amamos e servimos. Tiago nos diz
que:
A língua também é um fogo; como mundo de iniquidade, a língua está posta
entre os nossos membros, e contamina todo o corpo, e inflama o curso da
natureza, e é inflamada pelo inferno. Porque toda a natureza, tanto de bestas
feras como de aves, tanto de répteis como de animais do mar, se amansa e foi
domada pela natureza humana; mas nenhum homem pode domar a língua. É
um mal que não se pode refrear; está cheia de peçonha mortal. (Tiago 3:6-8)

Uma da convicções que faz muito tempo eu tenho em meu coração é que a boca
de um pregador da palavra deve ser espiritualmente limpa. É para mim
inconcebível que Deus encherá os lábios de uma pessoa profana com verdadeiras
palavras de edificação, sabedoria e exortação inspiradas do seu Espírito. Isso seria
algo parecido a dar o que é santo aos cães, e a lançar pérolas aos porcos (Mat 7:6).
Quando Tiago diz “ é um mal que não se pode refrear” não devemos pensar que
está a nos ensinar que não há vitória sobre o mau uso da língua, na verdade ele nos
exorta no sentido inverso, quando prossegue e diz:
De uma mesma boca procede bênção e maldição. Meus irmãos, não convém
que isto se faça assim. Porventura deita alguma fonte de um mesmo manancial
água doce e água amargosa? Meus irmãos, pode também a figueira produzir
azeitonas, ou a videira figos? Assim tampouco pode uma fonte dar água
salgada e doce. (Tiago 3:10-12)

Da boca da raça de víboras sairá sempre “peçonha mortal”, é próprio da


descendência da Serpente, é característico dos bastardos. Para quem já assistiu
aqueles filmes chineses de Kung-fu chegamos de ouvir sobre o Golpe do Macaco, o
Golpe do Tigre, o Golpe da Serpente ou o Golpe do Dragão, mas na vida real não
há um golpe como o golpe da língua, basta um coração orgulhoso, desatento ou
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

perverso para disferir o maior golpe de todos. Este golpe embora o mais letal de
todos, é o que dispensa qualquer noção de arte marcial. A sabedoria judaica nos diz
o seguinte:
A língua intrometida inquieta muitos, fazendo os fugir de nação em nação; ela
destrói cidades fortes e devasta as casas dos poderosos. A língua intrometida
faz com que mulheres excelentes sejam repudiadas, privando as do fruto de
seus trabalhos. Quem dá atenção a ela não encontra mais descanso nem
tranquilidade em casa. A chicotada deixa marca, mas o golpe da língua quebra
os ossos. Muitos já caíram pelo fio da espada, mas não foram tantos como as
vítimas da língua. Feliz de quem se protege dela e não se expõe ao seu furor.
Feliz quem não arrastou o jugo dela, nem foi enredado em suas cadeias. De
fato, o jugo dela é de ferro, e suas cadeias são de bronze. A morte que ela
provoca é terrível, e é preferível estar no túmulo. Ela, porém, não tem poder
sobre os homens fiéis, que não se queimarão em sua chama. Os que
abandonam o Senhor, nela cairão, e ela os consumirá sem se apagar; ela se
lançará contra eles como leão, e como pantera os despedaçará.Atenção!
Proteja a sua propriedade com uma cerca de espinhos e guarde bem o seu
ouro e prata.Pese na balança as palavras que você diz, e feche a boca com porta
de ferrolho.Cuidado para não tropeçar com a língua, para não cair diante de
quem espreita você. (Sir 28:14-26)

O mal no coração é fonte do mal nos lábios. Aqui vemos do jeito mais claro as
palavras do Senhor que nos diz que devemos limpar o interior e o resto ficará limpo
(Mat 7:21, 23:26). Das coisas que Deus odeia Provérbios lista 6, sendo duas ligadas
a língua e a sétima (que sua alma abomina) também é ligada a língua:
Estas seis coisas o SENHOR odeia, e a sétima a sua alma abomina: olhos
altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, o coração que
maquina pensamentos perversos, pés que se apressam a correr para o mal, a
testemunha falsa que profere mentiras, e o que semeia contendas entre
irmãos. (Pro 6:16-19)

Mostrando que 50 % das coisas que ofendem o coração de Deus estão ligados a a
nossa forma de falar. Se queremos levar a nossa vida no caminho de Deus devemos
purificar a nossa língua. Não podemos nos esquecer que a nossa ira não manifesta a
AS CINCO HERANÇAS

justiça de Deus (Tiago 1:20). Como as nossas orações serão ouvidas se nos falarmos
mal um ao outro, e não termos o nosso coração purificado de misericórdia e perdão
(I Tim 2:8)? Somos chamados a nos livrar de toda forma de comunicação torpe e a
nos revestir de bondade, mansidão, misericórdia e perdão:
Toda a amargura, e ira, e cólera, e gritaria, e blasfémia e toda a
malícia sejam tiradas dentre vós, antes sede uns para com os outros
benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como
também Deus vos perdoou em Cristo. (Efe 4:31-32)

HERANÇA 3: A FORMA DE AGIR


Quando a Serpente se comunicou com a mulher o objectivo era faze-la agir em
conformidade com a sua mentalidade. A forma como os seres humanos passaram a
agir depois da primeira queda é consistente com as duas formas pela qual Adão e
Eva seguiram o caminho do erro, nomeadamente pelo engano (Eva) e por
deliberação própria (Adão).
A palavra de Deus é subalternizada na vida de quem segue o caminho do
Bastardo. O que Deus recomenda é trocada por aquilo que nosso coração deseja.
Agimos movido mais pelo pelo orgulho do que por amor à Deus. A concupiscência
da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, continuam a conduzir os
nossos passos. A humanidade rejeitou a liderança de Deus, e decidiu “ser igual a
Deus, conhecendo o bem e o mal”.
Quando Deus criou Adão e lhe colocou no Jardim, Deus conferiu à Adão a tarefa
de lavrar e guardar o mesmo espaço divino, devemos nos lembrar que o papel de
cada um estava definido, Deus era o dono do espaço divino, e Adão e Eva
representantes de Deus, comissários do Pai Celestial. Deus ordenou exatamente
aquilo que era da responsabilidade de Adão e Eva fazer, e aquilo que lhes era
proibido fazer:
E tomou o SENHOR Deus o homem, e o pós no jardim do Éden para o lavrar e
o guardar. E ordenou o SENHOR Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore
do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente
morrerás. (Gen 2:15-17)

Quando lemos que o papel de Adão (humanidade/Gen 5:2) era de lavrar


(abad/Strong H5647) e guardar (shamar/Strong H8104) o espaço divino, devemos
aqui notar que estas são funções sacerdotais (Num 3:6-8, 4:28, 8:25-26, 18:1-7).
Estas duas funções revelam o ministério dado por Deus à Adão, fazendo de Adão
ministro (da Eva co-ministra) de Deus no Eden (Templo). Podemos conferir as
mesmas funções quando se institui o sacerdócio Levítico:
E falou o SENHOR a Moisés, dizendo: Faze chegar a tribo de Levi, e põe-na
diante de Arão, o sacerdote, para que o sirvam, e tenham cuidado ( shamar) da
sua guarda, e da guarda de toda a congregação, diante da tenda da
congregação, para administrar (abad) o ministério do tabernáculo. E tenham
cuidado (shamar) de todos os utensílios da tenda da congregação, e da guarda
(abad) dos filhos de Israel, para administrar o ministério do tabernáculo.
(Num 3:5-8)
Mas tu e teus filhos contigo cumprireis (shamar) o vosso sacerdócio no tocante
a tudo o que é do altar, e a tudo o que está dentro do véu, nisso servireis
(abad); eu vos tenho dado o vosso sacerdócio em dádiva ministerial e o
estranho que se chegar morrerá. (Num 18:7)

Antes de ser coroado como sacerdote, Adão foi coroado como rei. Isso podemos
entender quando lemos as seguintes palavras de Deus:
E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa
semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre
o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. E
criou Deus o homem à sua imagem: à imagem de Deus o criou; homem e
mulher os criou. (Gen 1:26-27)

A palavra chave aqui é domine. Deus dá domínio ao homem sobre os negócios


da terra. Assim como Deus reina sobre os seres celestiais (Salmos82:1, 89:6) e sobre
o homem (Daniel 4:17/Salmos 47:8), Deus delega o domínio da terra ao homem.
Isto é o que entendemos por Deus criar o homem segundo a sua imagem e
AS CINCO HERANÇAS

semelhança. E aqui vemos também um dos sentidos de se ser filho de Deus (Gen
5:3). Juntando o reinar da humanidade com o seu ministério sacerdotal, nós temos
as palavras seguintes:
E, chegando-vos para ele, pedra viva, reprovada, na verdade, pelos homens,
mas para com Deus eleita e preciosa, vós também, como pedras vivas, sois
edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios
espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo. Por isso também na Escritura se
contém: eis que ponho em Sião a pedra principal da esquina, eleita e preciosa;
e quem nela crer não será confundido. E assim para vós, os que credes, é
preciosa, mas, para os rebeldes, a pedra que os edificadores reprovaram, Essa
foi a principal da esquina, e uma pedra de tropeço e rocha de escândalo, mas
vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido,
para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua
maravilhosa luz; vós, que em outro tempo não éreis povo, mas agora sois povo
de Deus; que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes
misericórdia. (I Ped 2:4-10)

Apóstolo Pedro captando a imagem do espaço sagrado ou Templo (que é a


imagem do Jardim do Éden) nos apresenta a identidade do cristão verdadeiro como
sendo de sacerdotes separados para oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a
Deus, isto em Jesus Cristo (João 15:/ Efes 1:3/Rom 5:17). Entretanto, este
sacerdócio dos discípulos de Cristo é um sacerdócio real (pertencente ao reinado),
uma nação sacerdotal, com a missão de anunciar as virtudes de Deus. É esta nação
sacerdotal real que espelha o reino de Deus () ou reino dos céus () anunciado pelos
profetas do VT (), por João Baptista (), Jesus Cristo () e seus discípulos ().
Quando o NT nos fala sobre “filhos de Deus” devemos entender que isto envolve
tanto o “domínio” como o “sacerdócio santo”. O homem perfeito aos olhos de
Deus é aquele que não somente exerce o domínio que lhe foi dado por Deus, mas
também exerce fielmente a sua função sacerdotal diante do mesmo Deus que lhe
ungiu com autoridade. Os seguintes textos trazem no seu fundo esta realidade:
Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com
todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo; como também
nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e
irrepreensíveis diante dele em amor; e nos predestinou para filhos de adoção
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade. (Efes
1:3-5)
Ao que vencer lhe concederei que se assente comigo no meu trono; assim
como eu venci, e me assentei com meu Pai no seu trono. (Apoc 3:21)
Palavra fiel é esta: que, se morrermos com ele, também com ele viveremos; se
sofrermos, também com ele reinaremos; se o negarmos, também ele nos
negará; se formos infiéis, ele permanece fiel; não pode negar-se a si mesmo. (II
Tess 2:11-13)

Este reino sacerdotal é centrado em Cristo, sendo ele mesmo o sumo-sacerdote.


Na verdade Arão como o sumo sacerdote na Casa de Levi era somente uma sombra
do verdadeiro sumo-sacerdote que é Jesus Cristo (Heb 10:1). Se temos um sumo-
sacerdote é porque temos vários sacerdotes. Os filhos de Deus são dotados de
autoridade ou domínio e são os sacerdotes juntos de Cristo:
E cantavam um novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro, e de abrir os
seus selos; porque foste morto, e com o teu sangue compraste para Deus
homens de toda a tribo, e língua, e povo, e nação; e para o nosso Deus os
fizeste reis e sacerdotes; e eles reinarão sobre a terra. (Apoc 5:9-10)

Entidade Domínio Sacerdócio

Jesus Cristo Salmos 2/Apoc 5:12/Mat Heb 3:1, 5:10, 8:6/João 14:6
28:18-20/Fil 2:4-10/Daniel
7:13-14

Igreja (filhos de Deus) I Cor 6:3/II Tim 2:12/Act Apoc 1:6, 20:6/Rom
1:8/Luc 10:19/João 17:22 12:1/Heb 13:15

Tabela I: Sobre Domínio e Sacerdócio.

No VT a autoridade de um rei era autenticada pela unção com óleo (azeite), e


assim o rei era chamado “o ungido” (Salmos 2:2, 18:50/I Sam 2:10, I Cron 14:8).
Para além do rei, e do altar, as pessoas que são ungidas (ou consagrados) são os
sacerdotes (Lev 4:3-5, 6.20, 8:1-36, 18:32, 10-11). Não é de espantar que Jesus é o
AS CINCO HERANÇAS

verdadeiro ungido (Cristo/Messias) de Deus (Rom 10:7/Efe 2:5/Mat 1:1), na medida


que o seu reino é eterno (II Ped 1:11/Lucas 1:33/Daniel 7:13-14). Basta pensarmos
em João 17:22 e Mateus 28:18-20 para percebermos que a autoridade ou domínio
que recebemos vem de Jesus e pertence à Jesus. Somos reflexos de Jesus, nele
somos sacerdotes e reino (reis) tal como ele é o Sumo-sacerdote e o Rei:
Porque todo o sumo sacerdote, tomado dentre os homens, é constituído a
favor dos homens nas coisas concernentes a Deus, para que ofereça dons e
sacrifícios pelos pecados; e ninguém toma para si esta honra, senão o que é
chamado por Deus, como Arão. Assim também Cristo não se glorificou a si
mesmo, para se fazer sumo sacerdote, mas aquele que lhe disse: Tu és meu
Filho, Hoje te gerei. Como também diz, noutro lugar: Tu és sacerdote
eternamente, Segundo a ordem de Melquisedeque. (Hebreus 5:1)

Estes versículos são um bom exemplo dos principais pontos que estamos a
tentar explicar, primeiro, vemos que Jesus foi chamado por Deus (ungido), e o
termo filho de Deus é também um título para rei. Logo temos o domínio e o
sacerdócio juntos. E no verso 6, lemos “ segungo a ordem de Melquisedeque”, e que
ordem vemos em Melquisedeque, se não o facto de o mesmo ter sido rei e
sacerdote simultaneamente (Gen 14:18/Heb 7:1)? Seque que todos os verdadeiros
filhos de Deus são da ordem de Cristo, tendo domínio e sendo sacerdotes. Este é o
homem perfeito aos olhos de Deus:
E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para
evangelistas, e outros para pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento
dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo; até
que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a
homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo, para que não
sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de
doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia enganam
fraudulosamente. Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo
naquele que é a cabeça, Cristo, do qual todo o corpo, bem ajustado, e ligado
pelo auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação de cada parte, faz o
aumento do corpo, para sua edificação em amor. (Efésios 4:11-16)

Ter domínio e ser sacerdote de Deus é aquilo que o NT chama de “sacerdócio


real” (I Ped 2:9) ou ainda “vocação celestial” (Heb 3:1) e é isto que significa ser
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

“irmão de Jesus” (Heb 2:11, 17). Aqui encontramos a verdadeira identidade de um


filho de Deus. Quando rejeitamos o sacerdócio pelo qual fomos criados para
exercer, seguimos o caminho do bastardo. Jesus Cristo cumpriu perfeitamente com
o propósito pelo qual o primeiro Adão transgrediu. O nosso Sumo-sacerdote é
também o nosso rei:
Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha nas nuvens do
céu um como o filho do homem; e dirigiu-se ao ancião de dias, e o fizeram
chegar até ele. E foi-lhe dado o domínio, e a honra, e o reino, para que todos
os povos, nações e línguas o servissem; o seu domínio é um domínio eterno,
que não passará, e o seu reino tal, que não será destruído. (Dan 7:13-14)

As palavras da citação anterior traduzem o mesmo espírito com “É-me dado


todo o poder no céu e na terra” (Mat 28:18). Este binómio (domínio & sacerdócio)
não se perdeu na visão de Deus para com o homem, por isso desde o VT ao NT
vemos Deus engajado num processo de redenção da humanidade. No VT podemos
ver Deus repetindo as palavras que instituem o homem como um reino sacerdotal:
Sai da arca, tu com tua mulher, e teus filhos e as mulheres de teus filhos. Todo
o animal que está contigo, de toda a carne, de ave, e de gado, e de todo o réptil
que se arrasta sobre a terra, traze fora contigo; e povoem abundantemente a
terra e frutifiquem, e se multipliquem sobre a terra. Então saiu Noé, e seus
filhos, e sua mulher, e as mulheres de seus filhos com ele. E edificou Noé um
altar ao SENHOR; e tomou de todo o animal limpo e de toda a ave limpa, e
ofereceu holocausto sobre o altar. (Gen 8:16-18, 20)
E abençoou Deus a Noé e a seus filhos, e disse-lhes: Frutificai e multiplicai-vos
e enchei a terra. E o temor de vós e o pavor de vós virão sobre todo o animal da
terra, e sobre toda a ave dos céus; tudo o que se move sobre a terra, e todos os
peixes do mar, nas vossas mãos são entregues. (Gen 9:1-2)

Depois de algumas gerações temos Deus fazendo uma aliança com Abraão,
dizendo as seguintes palavras:
Quanto a mim, eis a minha aliança contigo: serás o pai de muitas nações; e não
se chamará mais o teu nome Abrão, mas Abraão será o teu nome; porque por
pai de muitas nações te tenho posto; e te farei frutificar grandissimamente, e
AS CINCO HERANÇAS

de ti farei nações, e reis sairão de ti; e estabelecerei a minha aliança entre mim
e ti e a tua descendência depois de ti em suas gerações, por aliança perpétua,
para te ser a ti por Deus, e à tua descendência depois de ti. E te darei a ti e à
tua descendência depois de ti, a terra de tuas peregrinações, toda a terra de
Canaã em perpétua possessão e ser-lhes-ei o seu Deus. Disse mais Deus a
Abraão: Tu, porém, guardarás a minha aliança, tu, e a tua descendência depois
de ti, nas suas gerações. Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e
vós, e a tua descendência depois de ti: Que todo o homem entre vós será
circuncidado. E o homem incircunciso, cuja carne do prepúcio não estiver
circuncidada, aquela alma será extirpada do seu povo; quebrou a minha
aliança. (Gen 17:4-10, 14)

De novo vemos a linguagem de domínio (pai de nações, de ti farei nações, reis


sairão de ti) e igualmente a linguagem sacerdotal (guardarás a minha aliança, ser-
lhes-ei o seu Deus, minha aliança contigo). Entretanto, toda essa linguagem
sacerdotal e de domínio começa em Adão:
E plantou o SENHOR Deus um jardim no Éden, do lado oriental; e pós ali o
homem que tinha formado. E o SENHOR Deus fez brotar da terra toda a
árvore agradável à vista, e boa para comida; e a árvore da vida no meio do
jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal. E saía um rio do Éden
para regar o jardim; e dali se dividia e se tornava em quatro braços. O nome do
primeiro é Pisom; este é o que rodeia toda a terra de Havilá, onde há ouro. E o
ouro dessa terra é bom; ali há o bdélio, e a pedra sardônica. E o nome do
segundo rio é Giom; este é o que rodeia toda a terra de Cuxe. E o nome do
terceiro rio é Tigre; este é o que vai para o lado oriental da Assíria; e o quarto
rio é o Eufrates. E tomou o SENHOR Deus o homem, e o pós no jardim do
Éden para o lavrar e o guardar. E ordenou o SENHOR Deus ao homem,
dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do
conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela
comeres, certamente morrerás. (Gen 2:8-17)

Primeiro vemos que foi Deus quem pós o homem ali (jardim do Eden) tal como
foi Deus quem separou Noé (Gen 6:8, 13-18) e Abraão (Gen 12:1-3). E em segundo
lugar vemos a prosperidade (Gen 9:1, 12:3). Depois vemos um rio que saia do Eden,
que nos trás a mesma imagem do verso seguinte:
E mostrou-me o rio puro da água da vida, claro como cristal, que procedia do
trono de Deus e do Cordeiro. No meio da sua praça, e de um e de outro lado
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

do rio, estava a árvore da vida, que produz doze frutos, dando seu fruto de mês
em mês; e as folhas da árvore são para a saúde das nações. E ali nunca mais
haverá maldição contra alguém; e nela estará o trono de Deus e do Cordeiro, e
os seus servos o servirão. (Apoc 22:8-1-3)

Sugerindo de modo bem simbólico que o meio do jardim era uma representação
do trono de Deus, tal como no Templo de Jerusalém encontramos o propiciatório,
que simboliza o trono de Deus (Exod 25:17/II Samuel 6:2/Isaías 37:13). Esta
imagem é uma ilustração do que vemos em Isaías 6:1-2/Ezequiel 11:22/Apoc 19:4. A
seguir vemos além do ouro, as pedras preciosas bdélio, sardônica, que nos remetem
ao tema da vestimenta do sumo-sacerdote (ver também Ezequiel 28:1-10), que
continha ouro e 12 pedras preciosas:
E porás as duas pedras nas ombreiras do éfode, por pedras de memória para os
filhos de Israel; e Arão levará os seus nomes sobre ambos os seus ombros, para
memória diante do SENHOR. Farás também engastes de ouro, e duas
cadeiazinhas de ouro puro; de igual medida, de obra de fieira as farás; e as
cadeiazinhas de fieira porás nos engastes. Farás também o peitoral do juízo de
obra esmerada, conforme à obra do éfode o farás; de ouro, de azul, e de
púrpura, e de carmesim, e de linho fino torcido o farás. Quadrado e duplo,
será de um palmo o seu comprimento, e de um palmo a sua largura. E o
encherás de pedras de engaste, com quatro ordens de pedras; a ordem de um
sárdio, de um topázio, e de um carbúnculo; esta será a primeira ordem; e a
segunda ordem será de uma esmeralda, de uma safira, e de um diamante; e a
terceira ordem será de um jacinto, de uma ágata, e de uma ametista; e a quarta
ordem será de um berilo, e de um ónix, e de um jaspe; engastadas em ouro
serão nos seus engastes. E serão aquelas pedras segundo os nomes dos filhos
de Israel, doze segundo os seus nomes; serão esculpidas como selos, cada uma
com o seu nome, para as doze tribos. (Exo 28:12-20)

Não podemos saltar a conexão do número 12 com as 12 tribos de Israel. Isto deve
nos remeter a olharmos para Israel como um povo ou reino sacerdotal, tal como as
palavras de Deus no Monte Sinai atestam ao lhes dizer “agora, pois, se
diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes o meu concerto, então, sereis a
minha propriedade peculiar dentre todos os povos; porque toda a terra é minha. E
AS CINCO HERANÇAS

vós me sereis reino sacerdotal e povo santo” (Exo 19:5-6). Não é de espantar que
Israel é chamado de “primeiro filho” por Deus (Exo 4:22). Então podemos ver que
estas pedras representam a glória completa de Israel (domínio e sacerdócio). É por
isso que a linguagem simbólica da nova Jerusalém (Apoc 21:2), capital de Israel,
também nos apresenta as 12 pedras preciosas e o ouro puro:
E a cidade estava situada em quadrado; e o seu comprimento era tanto como a
sua largura. E mediu a cidade com a cana até doze mil estádios; e o seu
comprimento, largura e altura eram iguais. E mediu o seu muro, de cento e
quarenta e quatro côvados, conforme a medida de homem, que é a de um
anjo. E a construção do seu muro era de jaspe, e a cidade de ouro puro,
semelhante a vidro puro. E os fundamentos do muro da cidade estavam
adornados de toda a pedra preciosa. O primeiro fundamento era jaspe; o
segundo, safira; o terceiro, calcedônia; o quarto, esmeralda; o quinto,
sardônica; o sexto, sárdio; o sétimo, crisólito; o oitavo, berilo; o nono, topázio;
o décimo, crisópraso; o undécimo, jacinto; o duodécimo, ametista. E as doze
portas eram doze pérolas; cada uma das portas era uma pérola; e a praça da
cidade de ouro puro, como vidro transparente. E nela não vi templo, porque o
seu templo é o Senhor Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro. E a cidade não
necessita de sol nem de lua, para que nela resplandeçam, porque a glória de
Deus a tem iluminado, e o Cordeiro é a sua lâmpada. E as nações dos salvos
andarão à sua luz; e os reis da terra trarão para ela a sua glória e honra. (Apoc
21:16-24)

Um outro ponto, dentre vários, que se revela curioso e de relevante realce na


medida que buscamos traçar a linguagem de Deus de domínio e sacerdócio é o
facto, de que, a semelhança de Adão que lhe foi proibido tomar o fruto da Árvore
do Conhecimento do Bem e do Mal, Abraão foi lhe dado a “guardar” a aliança com
Deus, através da circuncisão. Do mesmo jeito que o resultado de não “lavrar e
guardar” o jardim se manifestaria na desobediência, resultando em morte, sem
circuncisão os da casa de Abraão seriam mortos por profanar a aliança (Gen 17:14).
O jardim do Éden representava aliança com Deus.
A linguagem de aliança que vimos no paragrafo anterior é igualmente codificado
nas palavras de Jesus, quando diz aos seus discípulos:
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Estai em mim, e eu em vós; como a vara de si mesma não pode dar


fruto, se não estiver na videira, assim também vós, se não estiverdes
em mim. Eu sou a videira, vós as varas; quem está em mim, e eu nele,
esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer. Se alguém
não estiver em mim, será lançado fora, como a vara, e secará; e os
colhem e lançam no fogo, e ardem. Se vós estiverdes em mim, e as
minhas palavras estiverem em vós, pedireis tudo o que quiserdes, e
vos será feito. (João 15:4-7)
Se me amardes, guardareis os meus mandamentos. E eu rogarei ao
Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para
sempre, o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber,
porque não o vê, nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita
convosco e estará em vós. Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós.
Ainda um pouco, e o mundo não me verá mais, mas vós me vereis;
porque eu vivo, e vós vivereis. Naquele dia, conhecereis que estou
em meu Pai, e vós, em mim, e eu, em vós. Aquele que tem os meus
mandamentos e os guarda, este é o que me ama; e aquele que me
ama será amado de meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele.
(João 14:15-21)
Do mesmo jeito que foi Deus quem chamou a humanidade por Adão (Gen 5:2),
foi Deus quem deu nome de Abraão a Abrão. Um novo nome é uma nova
identidade, que é uma imagem do nascer-de-novo, na medida que Abraão firma a
aliança com Deus, ele assume uma nova identidade, é uma nova criação; um “filho
de Deus”, ou seja, é aceito como sacerdote do Deus vivo e revestido de domínio.
Infelizmente, quando olhamos com tacto o caso de Cain e Abel, notamos que ao
invés de Cain aceitar exercer domínio sobre o pecado, preferiu dominar seu
semelhante, assim é todo bastardo; ávido em dominar o próximo.
Para além de Adão, Noé e Abraão, não devia ser difícil notarmos que quando
Abel e Cain oferecem ofertas ao Senhor, estão igualmente a exercitar uma
actividade sacerdotal (Gen 4:1-5). Deus nunca desistiu do seu plano de nos ter
AS CINCO HERANÇAS

como seu reino sacerdotal. Diante dos pontos abordados nesta secção, creio que os
seguintes versos também trarão a nossa mente a imagem do domínio e do
sacerdócio:
Nisto é glorificado meu Pai, que deis muito fruto; e assim sereis meus
discípulos. Não me escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós, e vos
nomeei, para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça; a fim de que
tudo quanto em meu nome pedirdes ao Pai ele vo-lo conceda. (João 15:8-16)

Entretanto, esta incursão que fizemos em torno do papel sacerdotal e de


domínio que resumem a verdadeira identidade de um filho de Deus (rei/ungido)
tem como objectivo mostrar que quando Adão transgrediu, a sua acção consistiu na
rejeição do sacerdócio, visto que ao quebrar a aliança Adão abraçou a morte. Os
homens reinam no mundo sobre as aves, sobre as feras da terra e sobre os seres
marítimos, mas isto não faz dos homens perfeitos (ver perfeccionismo no Cap I)
filhos de Deus. É necessário que haja domínio e sacerdócio.
A rejeição do sacerdócio santo representa a forma de agir herdada de Adão. Os
bastardos não são ungidos de Deus, não são sacerdotes de Deus. Eles podem se
multiplicar, eles podem reinar na terra, mas estes não são filhos de Deus, pois
rejeitaram o sacerdócio, seguiram o caminho da transgressão, e não aceitam
submeter todos os seus caminhos aos critérios divinos. Na verdade, os bastardos
podem dominar sobre as aves do ar, mas não dominam sobre o príncipe das
potestades do ar (Efe 2:2), podem dominar sobre os animais, mas não dominam
sobre os seus desejos animais (II Ped 2:12), podem dominar o mar, mas não têm
vitória sobre a morte (Apoc 20:13-15). São por natureza filhos da desobediência e
filhos da ira (Efe 2:2-3).
O filho de Deus é também um santo juiz (I Cor 6:1-5), e como podemos ser
juízes de Deus sendo nós mesmo profanos e injustos (Mat 5:20)? O domínio e o
sacerdócio conferem ao filho de Deus uma autoridade singular, tal autoridade que
é reconhecida até pelos poderes espirituais. O seguinte exemplo nos dá uma olhada
ao domínio sacerdotal dos filhos de Deus:
E Deus pelas mãos de Paulo fazia maravilhas extraordinárias. De sorte que até
os lenços e aventais se levavam do seu corpo aos enfermos, e as enfermidades
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

fugiam deles, e os espíritos malignos saíam. E alguns dos exorcistas judeus


ambulantes tentavam invocar o nome do Senhor Jesus sobre os que tinham
espíritos malignos, dizendo: Esconjuro-vos por Jesus a quem Paulo prega. E os
que faziam isto eram sete filhos de Ceva, judeu, principal dos sacerdotes.
Respondendo, porém, o espírito maligno, disse: Conheço a Jesus, e bem sei
quem é Paulo; mas vós quem sois? E, saltando neles o homem que tinha o
espírito maligno, e assenhoreando-se de todos, pôde mais do que eles; de tal
maneira que, nus e feridos, fugiram daquela casa. (Actos 19:11-6)

Os filhos de Ceva não faziam parte dos filhos de Deus. Eles eram bastardos que
tentaram exercer um domínio sacerdotal que é exclusivo aos filhos. Os filhos de
Deus têm uma “unção”, uma autoridade divinamente conferida por Deus, tal que
os espíritos malignos reconhecem, daí responderem: “ Conheço a Jesus, e bem sei
quem é Paulo; mas vós quem sois?” Assim como um polícia tem uma farda própria e
é assim revestido de autoridade para exercer sua função, de modo semelhante o
filho de Deus é revestido de autoridade ou domínio sacerdotal reconhecido pelos
seres espirituais.
A forma de agir dos homens deve ser aquele que exprime a identidade de filho
de Deus, isto é, um viver revestido de domínio sacerdotal divino. Entretanto, isto só
é possível “em Cristo”. Paulo nos explica quando entramos em Cristo ao dizer: “Em
quem também vós estais, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da
vossa salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo da
promessa. O qual é o penhor da nossa herança, para redenção da possessão
adquirida, para louvor da sua glória ” (Ef 1:13-14). É como se Jesus representasse a
volta ao jardim do Éden, conferindo o domínio sacerdotal à Adão. João resume com
as seguintes palavras:
Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o
receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que crêem no
seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da
vontade do homem, mas de Deus. (João 1:11-13)

Os filhos de Ceva captam muito bem as aspirações dos homens, sobretudo de


muitos que se dizem cristãos; desejam dominar em nome de Jesus, mas Jesus não
AS CINCO HERANÇAS

domina na forma deles de agir e de viver. Os homens, tal como Israel, na maioria
não recebe a Cristo, e assim seguem rejeitando o sacerdócio do qual são
convidados a abraçar. Mas alguns preferem seguir o caminho de Abel, o caminho
estreito, o caminho da cruz, se negam a seguir o mau exemplo de Israel.

Israel como Adão

Um dos exemplos mais claros da rejeição do sacerdócio, por parte da humanidade é


o caso de Israel. Na medida que estudarmos com atenção o chamado de Israel, seu
percurso até a destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 DC pelos Romanos,
sob comando do futuro Imperador Titus, vemos o desenrolar de um processo de
renúncia ao sacerdócio santo pela nação de Israel. Nós lemos o compromisso
condicional que Deus havia apresentado a nação de Israel no Monte Sinai:
E subiu Moisés a Deus, e o SENHOR o chamou do monte, dizendo: Assim
falarás à casa de Jacó, e anunciarás aos filhos de Israel: Vós tendes visto o que
fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de águias, e vos trouxe a mim; agora,
pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança,
então sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos, porque toda
a terra é minha. E vós me sereis um reino sacerdotal e o povo santo. Estas são
as palavras que falarás aos filhos de Israel. E veio Moisés, e chamou os anciãos
do povo, e expôs diante deles todas estas palavras, que o SENHOR lhe tinha
ordenado. Então todo o povo respondeu a uma voz, e disse: Tudo o que o
SENHOR tem falado, faremos. E relatou Moisés ao SENHOR as palavras do
povo. E disse o SENHOR a Moisés: Eis que eu virei a ti numa nuvem espessa,
para que o povo ouça, falando eu contigo, e para que também te creiam
eternamente. Porque Moisés tinha anunciado as palavras do seu povo ao
SENHOR. Disse também o SENHOR a Moisés: Vai ao povo, e santifica-os hoje
e amanhã, e lavem eles as suas roupas. (Exo 19:3-10)

Assim como depois de Deus meter Adão no espaço divino (jardim) lhe
apresentou a condição de guardar o mesmo espaço (aliança), isto é, não comer da
Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, ou ainda, depois de Deus ter firmado a
aliança com Abraão lhe apresentou a condição da circuncisão, do mesmo modo
Deus diz a Israel “se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha
aliança, então sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos ”. O povo
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

comprometeu-se ao responder: “Tudo o que o SENHOR tem falado, faremos” ou


ainda: “Tudo o que o SENHOR tem falado faremos, e obedeceremos” (Ex 24:7).
Contudo, uma coisa é falar outra coisa é fazer. As várias traições da nação de
Israel vão culminar em cativeiros ( II Reis 15:29, 17:5-6/Jer 52:28-30), que é uma
imagem da expulsão do espaço divino. Israel foi retirado do Egipto, onde viviam em
escravidão, isso é semelhante ao estado de pó da terra; quando atravessam o mar
vermelho (Exo 14) é como se receber o fôlego de vida pelo assopro de Deus (Gn
2:7); e quando são introduzidos a terra prometida de Canaã isso é simbólico de ser
posto no jardim do Éden (Gen 2:8). A aliança no Monte Sinai é, como resultado, a
sombra de Génesis 2:15-17 onde Deus manda Adão “lavrar e guardar” e isto envolve
a condição: “Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás;
porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás. ”
Quando encontramos as palavras: “e santifica-os hoje e amanhã, e lavem eles as
suas roupas” devemos interpretar-las sob o pano de fundo da “unção”. Quando
Jesus se transfigura as suas vestes se tornaram brancas como a luz (Mat 17:2), aos
vencedores da igreja de Sardes Jesus lhes prometeu vestes brancas (Apoc 3:5). A
pureza do santo Deus com quem Israel fez aliança exigia pureza e santidade por
parte daqueles que entraram em aliança com ele. Nesta senda, o reino de
sacerdotes deve refletir o carácter do Deus que este serve; os filhos de Deus são da
casa de Deus e esta casa é santa!
Assim como Adão foi criado por Deus, Deus igualmente criou Israel (Isaías 43:1,
7, 21, 45:11), e como vimos nos parágrafos anteriores o objectivo da formação de
Israel coincide com o da criação de Adão; ser um reino sacerdotal. Pena que do
mesmo jeito que Adão não guardou a aliança, Israel de igual modo seguiu o
caminho do Bastardo:
Isto é, todas as nações dirão: Por que fez o SENHOR assim com esta terra?
Qual foi a causa do furor desta tão grande ira? Então, se dirá: Porque deixaram
o concerto do SENHOR, o Deus de seus pais, que com eles tinha feito, quando
os tirou do Egito, e foram-se, e serviram a outros deuses, e se inclinaram
diante deles; deuses que os não conheceram, e nenhum dos quais ele lhes
AS CINCO HERANÇAS

tinha dado. Pelo que a ira do SENHOR se acendeu contra esta terra, para
trazer sobre ela toda maldição que está escrita neste livro. E o SENHOR os
tirou da sua terra com ira, e com indignação, e com grande furor e os lançou
em outra terra, como neste dia se vê. (Deu 29:24-28)

Depois do cativeiro da Assíria de 734 A.C (II Reis 15:29), de 722 A.C (II Reis
17:5-6) e do cativeiro da Babilónia de 586 A.C (Jer 52:28-30) para além da idolatria,
Israel continuou a seguir o caminho da infidelidade, quebrando assim a aliança.
Nós lemos as seguintes palavras de aviso:
Não temos nós todos um mesmo Pai? Não nos criou um mesmo Deus? Por que
seremos desleais uns para com os outros, profanando o concerto de nossos
pais? Judá foi desleal, e abominação se cometeu em Israel e em Jerusalém;
porque Judá profanou a santidade do SENHOR, a qual ele ama, e se casou
com a filha de deus estranho. (Malaquias 2:10-11)

A deslealdade de Israel é um tema visitado pelas escrituras desde Êxodo a


Malaquias, entretanto, dois dentre os 12 profetas menores, captam muito bem a
natureza da transgressão de Israel. Se olharmos para as injunções proféticas de
Oséias, profeta este que vivia no reino do norte, durante o reinado de Jeroboão até
o cativeiro de 722 A.C, veremos uma ênfase a infidelidade de Israel, que é
comparada a uma prostituta devido a idolatria:
O princípio da palavra do SENHOR por Oséias; disse, pois, o SENHOR a
Oséias: Vai, toma uma mulher de prostituições e filhos de prostituição; porque
a terra se prostituiu, desviando-se do SENHOR. (Oséias 1:2)

No capítulo quarto vemos Deus citando a natureza imoral do povo, lhes falta a
pureza ou justiça sacerdotal, dai lermos que “...porque não há verdade, nem
benignidade, nem conhecimento de Deus na terra. Só prevalecem o perjurar, e o
mentir, e o matar, e o furtar, e o adulterar, e há homicídios sobre homicídios”
(Oséias 4:1-2). Pecados que ferem os mandamentos que Deus havia mandado Israel
guardar (Exo 20:1-17/Lev 19:9-18).
Já Amós, profeta este que vivia em Judá, durante o reinado de Jeroboão II e
Uzias, entre 760-750 A.C, diferente de Oséias foca principalmente na deslealdade
moral de Israel, começando por anunciar o juízo de Deus contra várias nações
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

(Amos 1, 2:1-3), e contra Judá (2:4-5) e Israel que é apresentado como o maior
transgressor (3:1-2), e hipócrita:
Ouvi esta palavra, vós, vacas de Basã, que estais no monte de Samaria, que
oprimis os pobres, que quebrantais os necessitados, que dizeis a seus
senhores: Dai cá, e bebamos. (Amos 4:1)
Assim diz o SENHOR: Por três transgressões de Israel e por quatro, não
retirarei o castigo, porque vendem o justo por dinheiro e o necessitado por
um par de sapatos. Suspirando pelo pó da terra sobre a cabeça dos pobres, eles
pervertem o caminho dos mansos; e um homem e seu pai entram à mesma
moça, para profanarem o meu santo nome. E se deitam junto a qualquer altar
sobre roupas empenhadas e na casa de seus deuses bebem o vinho dos que
tinham multado. (Amos 2:6-8)

Deus condena a idolatria e injustiça de Israel (5:4-7) que rejeitava a repreensão


dos santos e maltratava os pobres e necessitados , de tal forma que Deus lhes disse:
“Porque sei que são muitas as vossas transgressões e enormes os vossos pecados;
afligis o justo, tomais resgate e rejeitais os necessitados na porta” (10-12 ). Deus
exortou a Israel dizendo: “Buscai o bem e não o mal, para que vivais; e assim o
SENHOR, o Deus dos Exércitos, estará convosco…”
Infelizmente Israel negou-se a trilhar pelo caminho da justiça, da misericórdia e
da fidelidade (Mat 23:23/ Lev 19:9-18). A negação do sacerdócio santo resultou na
corrupção moral de Israel. Ao rejeitar o Deus que teve compaixão do povo que era
escravo e necessitado no Egipto, os israelitas rejeitam a compaixão e misericórdia
para com os necessitados. Ao rejeitarem o Deus justo e verdadeiro, os israelitas
acabaram abraçando a mentira e a injustiça. O carácter de um filho de Deus é
descrito como misericordioso, compassivo, puro, humilde, pacificador, sofredor,
caridoso e generoso (Lucas 6:20-38/Gálatas 5:), em outras palavras é ser perfeito
como Jesus (Lucas 6:39-40/) refletir o carácter de Jesus:
Porque para isto sois chamados, pois também Cristo padeceu por nós,
deixando-nos o exemplo, para que sigais as suas pisadas, o qual não cometeu
pecado, nem na sua boca se achou engano, o qual, quando o injuriavam, não
AS CINCO HERANÇAS

injuriava e, quando padecia, não ameaçava, mas entregava-se àquele que julga
justamente, levando ele mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o
madeiro, para que, mortos para os pecados, pudéssemos viver para a justiça; e
pelas suas feridas fostes sarados. Porque éreis como ovelhas desgarradas; mas,
agora, tendes voltado ao Pastor e Bispo da vossa alma. (I Pedro 2:21-25)

Aproximadamente 450 anos A.C lemos na carta de Malaquias a indignação de


Deus face a deslealdade de Israel (1:1-2, 3:6-15), dos sacerdotes (1:6-8, 2:1-3),
deslealdade de Judá (10-16). Deus anuncia o juízo contra Israel (3:1-3, 4:1-6). O
juízo contra Israel é um tema que o Senhor vai continuar em seu ministério, na
medida que o povo não se arrependeu (com excepção do remanescente):
Então, começou ele a lançar em rosto às cidades onde se operou a maior parte
dos seus prodígios o não se haverem arrependido, dizendo: Ai de ti, Corazim!
Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em Sidom fossem feitos os prodígios
que em vós se fizeram, há muito que se teriam arrependido com pano de saco
grosseiro e com cinza. Por isso, eu vos digo que haverá menos rigor para Tiro e
Sidom, no Dia do Juízo, do que para vós. E tu, Cafarnaum, que te ergues até
aos céus, serás abatida até aos infernos; porque, se em Sodoma tivessem sido
feitos os prodígios que em ti se operaram, teria ela permanecido até hoje.
Porém eu vos digo que haverá menos rigor para os de Sodoma, no Dia do
Juízo, do que para ti. (Mat 11:20-24)

Jesus sabia que este era o povo do qual Isaías profetizou, que tendo olhos não
veriam e tendo ouvidos não escutariam (Marcos 8:18/João 12:38-41):
Engorda o coração deste povo, e endurece-lhe os ouvidos, e fecha-lhe os
olhos; não venha ele a ver com os seus olhos, e a ouvir com os seus ouvidos, e a
entender com o seu coração, e a converter-se, e a ser sarado. Então, disse eu:
até quando, Senhor? E respondeu: Até que se assolem as cidades, e fiquem
sem habitantes, e nas casas não fique morador, e a terra seja assolada de todo.
E o SENHOR afaste dela os homens, e, no meio da terra, seja grande o
desamparo. Mas, se ainda a décima parte dela ficar, tornará a ser pastada;
como o carvalho e como a azinheira, que, depois de se desfolharem, ainda
ficam firmes, assim a santa semente será a firmeza dela. (Isaías 6:10-13)

A expulsão do povo de Israel da terra prometida é semelhante a expulsão de


Adão do Jardim do Éden. Por se revelarem desleais a Deus e traidores do concerto,
o Senhor não somente citou as palavras proféticas de Isaías, mas também falou
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

abertamente o seguinte: “Portanto, eu vos digo que o Reino de Deus vos será tirado
e será dado a uma nação que dê os seus frutos ” (Mat 21:43). Esta nação que não
produziu os frutos que Deus esperava é Israel, e sua desolação e expulsão é
simbolizado na maldição da figueira (18-20):
Agora, cantarei ao meu amado o cântico do meu querido a respeito da sua
vinha. O meu amado tem uma vinha em um outeiro fértil. E a cercou, e a
limpou das pedras, e a plantou de excelentes vides; e edificou no meio dela
uma torre e também construiu nela um lagar; e esperava que desse uvas boas,
mas deu uvas bravas.Agora, pois, ó moradores de Jerusalém e homens de Judá,
julgai, vos peço, entre mim e a minha vinha. Que mais se podia fazer à minha
vinha, que eu lhe não tenha feito? E como, esperando eu que desse uvas boas,
veio a produzir uvas bravas? Agora, pois, vos farei saber o que eu hei de fazer à
minha vinha: tirarei a sua sebe, para que sirva de pasto; derribarei a sua
parede, para que seja pisada; e a tornarei em deserto; não será podada, nem
cavada; mas crescerão nela sarças e espinheiros; e às nuvens darei ordem que
não derramem chuva sobre ela. Porque a vinha do SENHOR dos Exércitos é a
casa de Israel, e os homens de Judá são a planta das suas delícias; e esperou
que exercessem juízo, e eis aqui opressão; justiça, e eis aqui clamor. (Isaías 5:1-
7)

O canto de Isaías é uma alegoria a infidelidade de Israel, e as palavras:“ seja


pisada”, “a tornarei em deserto”, “não será podada, nem cavada”; “crescerão nela
sarças e espinheiros” e “ às nuvens darei ordem que não derramem chuva sobre ela
” são hebraísmos para dizer que vem o juízo de Deus contra Israel. Dentre outras
instâncias em que Jesus ecoa o mesmo sentimento contra Israel, a seguinte é uma
das mais devastadoras:
E, saindo ele do templo, disse-lhe um dos seus discípulos: Mestre, olha que
pedras e que edifícios! E, respondendo Jesus, disse-lhe: Vês estes grandes
edifícios? Não ficará pedra sobre pedra que não seja derribada. (Marcos 13:1-
2)

Entre 66 DC à 70 DC as forças armadas Romanas sob o mando de Titus (futuro


imperador de Roma) cercaram e invadiram a Israel, tendo demolido o Templo de
AS CINCO HERANÇAS

Jerusalém. Este evento foi depois sucedido por uma rebelião dos judeus em 132-
136 D.C que os romanos brutalmente desmantelaram e proibiram a presença de
judeus na Palestina. Exilados, sem o Templo de Jerusalém, os israelitas foram
expulsos do jardim do Éden. Tudo isso aconteceu porque Israel não guardou a
aliança, o seu papel de reino sacerdotal.
Entretanto, se Israel rejeitou o sacerdócio real, todos os povos hoje são
chamados a se juntar a este sacerdócio santo (Romanos 11:25-32). Este sacerdócio
real é abraçado pelos filhos e rejeitado pelos bastardos. Qual é a tua condição, será
que tens exercido o teu papel sacerdotal (Rom 12:1-2)? Lembremos desta promessa
e corramos a garantir um lugar na mesa do Reino de Deus:
Ali, haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão, e Isaque, e Jacó, e
todos os profetas no Reino de Deus e vós, lançados fora. E virão do Oriente, e
do Ocidente, e do Norte, e do Sul e assentar-se-ão à mesa no Reino de Deus. E
eis que derradeiros há que serão os primeiros; e primeiros há que serão os
derradeiros. (Lucas 13:28-30)

O desejo de Deus é ver a humanidade no jardim, assumindo o papel original


sacerdotal, é isto que Pedro diz ao citar Joel (Joel 2:28-32): “ Mas isto é o que foi
dito pelo profeta Joel: E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito
derramarei sobre toda a carne; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os
vossos jovens terão visões, e os vossos velhos sonharão sonhos; e também do meu
Espírito derramarei sobre os meus servos e minhas servas, naqueles dias, e
profetizarão; e farei aparecer prodígios em cima no céu e sinais em baixo na terra:
sangue, fogo e vapor de fumaça”. (Actos 2:16-19)
O termo “servos de Deus” é sinónimo de sacerdotes de Deus, e o profeta no VT
era a autoridade de Deus no meio do povo, um verdadeiro embaixador divino na
terra. E assim vimos que a vontade do Pai é ver todos nós, pequenos e grandes
cheios do Espírito Santo que nos capacita e nos torna testemunhas fieis de Jesus
Cristo neste mundo (Actos 1:8/Lucas 6:22-23). Isto significa que o sacerdote santo
é aquele que como marido serve a Deus, como esposa serve a Deus, como filho ou
filha serve a Deus. A implicação desta verdade é que em cada lar cristão devíamos
ver, de modo claro, cada um dos membros assumindo uma vida de sacerdócio
santo, onde as atitudes se conformam com o carácter do Espírito Santo e as
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

palavras transmitem o coração divino (profetizar). Infelizmente, são poucos entre


aqueles chamados “cristãos” que vivem uma vida que testemunha a vida, cruz e a
ressurreição de Jesus o Ungido. Paulo viveu essa vida sacerdotal plena, por isso
chegou a afirmar:
Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e
a vida que agora vivo na carne vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou e
se entregou a si mesmo por mim. (Gálatas 2:20)

O filho de Deus deve refletir o carácter de Deus, o servo de Cristo deve exprimir
as virtudes de Cristo, por isso é que o verdadeiro cristão é somente aquele que tem
dentro de si o Espírito de Cristo (Romanos 8:9). Quer isso dizer que a nossa forma
de agir reflete de casa pertencemos, se a casa de Deus ou a casa do Diabo, se somos
servos de Jesus ou raça de víboras:“ Porque não há boa árvore que dê mau fruto,
nem má árvore que dê bom fruto. Porque cada árvore se conhece pelo seu próprio
fruto; pois não se colhem figos dos espinheiros, nem se vindimam uvas dos
abrolhos ” (Lucas 6: 43-44). O Mestre resume isso muito bem quando diz:
E por que me chamais Senhor, Senhor, e não fazeis o que eu digo? Qualquer
que vem a mim, e ouve as minhas palavras, e as observa, eu vos mostrarei a
quem é semelhante. É semelhante ao homem que edificou uma casa, e cavou,
e abriu bem fundo, e pôs os alicerces sobre rocha; e, vindo a enchente, bateu
com ímpeto a corrente naquela casa e não a pôde abalar, porque estava
fundada sobre rocha. Mas o que ouve e não pratica é semelhante ao homem
que edificou uma casa sobre terra, sem alicerces, na qual bateu com ímpeto a
corrente, e logo caiu; e foi grande a ruína daquela casa. (46-49)

Quando a Eva e Adão não praticaram aquilo que receberam da parte de Deus é a
prova que eles haviam edificado sobre terra, sem alicerces, e no dia da tentação, ao
contrário de Jesus, caíram e foi grande a ruína deles, ao ponto de nos afastar da
árvore da vida e assim nos condenar a morte e a toda espécie de fragilidades. Deste
mesmo jeito, quando os nossos lares, e vidas particulares não estão centradas em
Jesus estamos suscetíveis a toda sorte de quedas e escândalos. Nosso modo de agir
deve ser aquele fundamentado em Jesus Cristo, nossos lares devem ser verdadeiras
AS CINCO HERANÇAS

oficinas da piedade cristã, onde o evangelho é realmente a identidade dos seus


membros, e a presença de Deus é cultivada em amor, oração, obediência, louvor,
gratidão e estudo perene da escrituras. Esta é a adoração que os sacerdotes devem
apresentar ao Deus verdadeiro, ao contrário da má adoração que caracteriza os
bastardos.

HERANÇA 4: A FORMA DE ADORAR


É muito interessante vermos as consequências do pecado no lar de Adão, depois da
inglória no jardim do Éden, isso é, a queda do homem no jardim da inocência
relatada em Genesis 3, logo a seguir encontramos uma dos relatos mais chocantes
na bíblia, a mais pura manifestação de rebelião contra Deus: um homem que mata
seu próprio irmão. Como relatado no ponto anterior, quando os homens rejeitam o
sacerdócio santo acabam por se corromper moralmente também. A misericórdia, a
justiça, a compaixão e a solidariedade são frutos da comunhão com Deus, e todo
aquele que rejeita adorar o Deus justo, misericordioso, compassivo e fiel, se torna
automaticamente infiel, injusto, bruto e irado. Isto é a herança da falsa adoração.
Lemos que:
E conheceu A dão a Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz a Caim, e
disse: Alcancei do SENHOR um homem. E deu à luz mais a seu irmão Abel; e
Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra. E aconteceu ao cabo
de dias que Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao SENHOR. E Abel
também trouxe dos primogénitos das suas ovelhas, e da sua gordura; e atentou
o SENHOR para Abel e para a sua oferta. Mas para Caim e para a sua oferta
não atentou. E irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante. E o
SENHOR disse a Caim: E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que,
estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou.
E disse o SENHOR a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não sei;
sou eu guardador do meu irmão? E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue
do teu irmão clama a mim desde a terra. E agora maldito és tu desde a terra,
que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do teu irmão. (Gen 4:1-
10)

O relato do assassinato de Abel é para sempre aquele que está revestido de


sentimentos de máxima repulsa por nossa parte. Isso acontece porque todos nós
nascemos com a convicção que os membros de uma mesma casa devem ser
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

piedosos uns com os outros. Até os pagãos repudiam a ideia de serem traídos pelos
seus próprios irmãos. Se considerarmos o facto de que os semitas se inseriam numa
cultura onde o parentesco era a principal instituição social e marco identitário de
cada pessoa, poderemos ter uma ideia do significado de um irmão maior assassinar
seu próprio irmão menor, de Silva3 cita Plutarco que diz:
Não é de pouca importância resistir ao espírito de contencioso e ciúme entre
os irmãos quando ele se insinua sobre questões triviais, praticando a arte de
fazer concessões mútuas, de aprender a ser derrotado e de ter prazer em
ceder. irmãos, em vez de ganhar vitórias sobre eles. Pois os homens da
antiguidade deram o nome de 'vitória Cadmiana' a nada menos que a dos
irmãos em Tebas, como sendo a mais vergonhosa e a pior das vitórias.

O que Cain fez robou-lhe de qualquer mérito de honra aos olhos dos semitas, na
verdade aos olhos da humanidade. Ele cometeu um acto horrendo e digno de
repúdio universal, o nome Cain tornou-se sinónimo de vergonha e maldade, assim
como o nome de Judas se tornou sinónimo de traidor. Na verdade o caminho de
Judas e o caminho de Cain são semelhantes; o caminho da falsa adoração, da
hipocrisia e da rebelião, é sobre este mal que nos alertam: “ Porque esta é a
mensagem que ouvistes desde o princípio: que nos amemos uns aos outros. Não
como Caim, que era do maligno e matou a seu irmão. E por que causa o matou?
Porque as suas obras eram más, e as de seu irmão, justas ” (I João 3:11-12).
Como vimos no capítulo anterior, a queda de Adão foi na verdade uma
transgressão sacerdotal. Vimos também que o acto de levar ofertas ao Senhor é uma
actividade sacerdotal, querendo com isso dizer que tanto Cain como Abel tinham
um ministério sacerdotal, embora não dentro do jardim do Eden. É de notar que
Cain ouvia e falava com Deus, enquanto estava na região frontal do jardim, sendo
que o texto sugere que esta realidade acaba mudando depois da sua expulsão (Gen
4:14-16).

3
David A. deSilva, D. A. 2000. Honor, Patronage, Kinship & Purity: Unlocking New Testament Culture. Illinois:
InterVarsity Press, p. 143.
AS CINCO HERANÇAS

Se nos lembrarmos dos três princípios do pecado (cap I) e aplicarmos ao caso de


Cain veremos que o pecado realmente segue o mesmo padrão, começa pelos mais
frágeis (Cain falhou do dever de dominar sobre o pecado), busca contaminar ao
máximo (da mãe para o pai e depois para Cain o filho) e seu foco principal é o lar (o
homicídio foi cometido contra o parente mais próximo). O lar é claramente o
centro do sacerdócio, uma imagem perene do jardim do Eden, onde os membros
deviam ter a consciência e o compromisso sacerdotal, de ministrar a Deus,
sobretudo no relacionamento com o próximo; desde os pais até aos filhos e vice-
versa (I João 4:12-21/Col 3:20-21/Exo 20:12). A aceitável adoração de Deus parte do
amor ao próximo (Gen 4:9/Rom 13:9/Gal 5:6/Lucas 10:17/Tiago 2:8).
É assim que não deve nos surpreender que a consequência da rebelião de Cain
vai igualmente resultar numa expulsão, se pela primeira queda Adão foi expulso do
jardim, impossibilitado de voltar para dentro do jardim, com o derramamento de
sangue Cain foi expulso para mais longe ainda do jardim, para a terra do Node, no
lado oriental do Eden (Gen 4:16). Querendo nos mostrar que a transgressão
sacerdotal nos faz inelegíveis a coabitar com Deus; no espaço santo é preciso ser
santo para ter acesso, caso contrário é espada divina; morte certa (Gen 3:24/Isaías
6). Por isso lemos que:
Esforcem-se para viver em paz com todos e para serem santos; sem santidade
ninguém verá o Senhor. (Hebreus 12:14 NVI)

É digno de reflexão a imagem do Templo, onde o lugar santo dos santos era
restrito ao sumo sacerdote, e isto uma vez por ano ( ), e o lugar santo aos sacerdotes
(1 Kings 8:8-10/2 Cron 3:5 ), sendo que os sacrifícios eram imolados no altar
situado na corte dos sacerdotes (II Cron 15:8) diante do portico do Senhor (I Reis
6:3/ II Cron. 3:4; 9:7). Sendo que é como se deste último lugar donde Cain terá
sido expulso.
Entendemos então que a raiz do problema entre Cain e seu irmão menor Abel
terá sido o ciume sacerdotal. O ministério de Abel terá sido agradável aos olhos de
Deus, mas o ministério de Cain terá sido defeituoso, rejeitável aos olhos de Deus.
Porque será que Deus não atentou na oferta de Caim? A resposta se encontra na
frase: “Se bem fizeres, não é certo que serás aceito?”. Com isto percebemos que
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Caim não fez bem. Seu procedimento foi mau aos olhos de Deus. Havia um mal na
sua religião, o seu modo de adoração foi e ainda é reprovado aos olhos de Deus.
Nota que, no parágrafo anterior, para além de localizarmos a adoração rejeitada
de Cain no passado, também consideramos que se trata de um problema presente.
A adoração de Cain é aquela que não alegra o coração de Deus, e representa um
sacerdócio rejeitado, impuro, de mau cheiro ao invés de cheiro agradável, como se
espera de sacerdotes santos: “...que apresenteis o vosso corpo em sacrifício vivo,
santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (Rom 12:1).
Existem diferentes teorias relativamente a causa da rejeição da oferta de Cain.
Uma das mais famosas explica que o sacrifício de Abel é uma imagem do Cordeiro
de Deus (João 1:29) e que o sacrifício de Cain não tinha sangue (Heb 9:22), e que
sendo produtos da terra que havia sido amaldiçoada (Gen 3:17) não era um
sacrifício aceitável para o perdão dos pecados. Esta visão, que uma vez entreti, tem
alguns problemas, assume algumas coisas não presentes no texto, como por
exemplo a ideia de que se tratava de sacrifício pelos pecados ou ainda que Deus não
aceitava ofertas de produtos da terra.
O texto nos diz que se tratava de uma “oferta” e o termo original hebraico (
‫מנחה‬/Strong 4503) é mais usado para se referir a ofertas voluntárias, tributos ou
oferta de manjares. Em Levítico, no capítulo segundo, nós vemos cereais sendo
inclusos na oferta de manjares, e também vimos em Êxodo 29:41 que cordeiros
podiam ser apresentados com oferta de manjares. Estes dois exemplos já mostram
que (baseando-se na Torá) não havia problema no tipo de oferta oferecidos pelos
irmãos Cain e Abel. Para todos os efeitos a oferta poderá ter sido primícias (Deu
26:2).
O problema da oferta de Cain não parece estar associado ao tipo da oferta, mas
sim a forma ou espírito em que se ofereceu. O autor de Hebreus por exemplo nos
diz que: “Pela fé, Abel ofereceu a Deus mais excelente sacrifício do que Caim; pelo
qual obteve testemunho de ser justo, tendo a aprovação de Deus quanto às suas
AS CINCO HERANÇAS

ofertas. Por meio dela, também mesmo depois de morto, ainda fala ” (Heb 11:4).
Aqui vemos que a oferta de Abel tinha fé.
Uma outra forma de vermos a oferta de fé de Abel é voltarmos a prestar uma
atenção especial nas palavras: “ E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe do
fruto da terra uma oferta ao SENHOR. E Abel também trouxe dos primogénitos das
suas ovelhas, e da sua gordura... ”. A oferta de Caim carece de descritivo, já o de Abel
contem “primogénitos” e ainda “da sua gordura”. É como se Cain tivesse tirado
uma oferta da sua colheita, sem no entanto escolher nem as primeiras frutas, e nem
as melhores das primeiras frutas. O texto sugere que faltou zelo, capricho, doação
ou auto-sacrifício. Nós lemos posteriormente que: “Todo o melhor do azeite, do
mosto e dos cereais, as suas primícias que derem ao SENHOR, dei-as a ti. Os
primeiros frutos de tudo que houver na terra, que trouxerem ao SENHOR, serão
teus; todo o que estiver limpo na tua casa os comerá ” (Num 18:12-13).
As ofertas de manjares que a casa de Israel, tinha de apresentar aos sacerdotes
(segundo a Lei) era os primeiros frutos e dos melhores. Na verdade quando o
sistema de ofertas é instituído, muito depois de Cain e Abel, fica, como se
codificado, a verdade que estas ofertas não podiam ser sem critérios. No capítulo
segundo de Levítico, vemos Deus enfatizando que estas ofertas tinham de ter “sal
da aliança” , “azeite” e “sem fermento”. No Novo Testamento estes ingredientes
ganham uma interpretação simbólica, o sal por exemplo pode ser entendido como
total devoção à Deus ou santidade (Lucas 13:25-35/Mat 5:13/Col 4:6), o azeite
como zelo, diligência ou pureza e justiça (Mat 25:24/Heb 1:9), e o fermento pode
simbolizar o engano, a desonestidade, a jactância ou a hipocrisia (Mat 16:12/Lucas
12:1/I Cor 5:6-8).
Se olharmos para a oferta de Cain a partir destes símbolos, diríamos que a falta
de zelo ou devoção honesta é equiparada a uma oferta de manjares sem o azeite,
sem o sal da aliança e com fermento. A falta de diligência nos remete também a não
priorização de Deus, isso é uma não observação do princípio das primícias; Deus
deve receber a primazia e o melhor da nossa vida. A adoração ou a religião que
Deus aceita é aquela que tem Deus como a prioridade: “...buscai, pois, em primeiro
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.” (Mat
6:33). Paulo nos recomendo a mesma ideia ao dizer:
Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as coisas lá do
alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus. Pensai nas coisas lá do alto,
não nas que são aqui da terra; porque morrestes, e a vossa vida está oculta
juntamente com Cristo, em Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, se
manifestar, então, vós também sereis manifestados com ele, em glória. (Col
3:1-4)

Ao nos dizer “porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com
Cristo” (guardada), Paulo nos está a levar a contemplar a crucificação de Cristo
como o exemplo da oferta perfeita. Na verdade este pensamento será ecoado em
várias partes do NT, o autor de Hebreus nos diz por exemplo que:
...porque é impossível que o sangue dos touros e dos bodes tire pecados. Pelo
que, entrando no mundo, diz: Sacrifício e oferta não quiseste, mas corpo me
preparaste; holocaustos e oblações pelo pecado não te agradaram. Então,
disse: Eis aqui venho (no princípio do livro está escrito de mim), para fazer, ó
Deus, a tua vontade. Como acima diz: Sacrifício, e oferta, e holocaustos, e
oblações pelo pecado não quiseste, nem te agradaram (os quais se oferecem
segundo a lei). Então, disse: Eis aqui venho, para fazer, ó Deus, a tua vontade.
Tira o primeiro, para estabelecer o segundo. Na qual vontade temos sido
santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez. (Heb 10:4-
10)

Nós somos a maior e a melhor oferta que podemos apresentar à Deus. É neste
entendimento que Paulo exorta aos irmãos em Roma que “ ... que apresenteis os
vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto
racional ” (Rom 12:1). Doar a nossa vida a favor dos irmãos é o bem maior e o exato
contrário do crime de Cain, este é o amor que Jesus provou por nós (I João 3:16). A
igreja de Macedónia foi digna de louvor dentre as igrejas por manifestar este amor,
quando preparam uma oferta de apoio a igreja de Jerusalém:
Também, irmãos, vos fazemos conhecer a graça de Deus dada às igrejas da
Macedônia; como, em muita prova de tribulação, houve abundância do seu
AS CINCO HERANÇAS

gozo, e como a sua profunda pobreza superabundou em riquezas da sua


generosidade. Porque, segundo o seu poder (o que eu mesmo testifico) e
ainda acima do seu poder, deram voluntariamente, pedindo-nos com muitos
rogos a graça e a comunicação deste serviço, que se fazia para com os santos. E
não somente fizeram como nós esperávamos, mas também a si mesmos se
deram primeiramente ao Senhor e depois a nós, pela vontade de Deus. (II Cor
8:1-5)

Notemos a frase: “E não somente fizeram como nós esperávamos, mas também a
si mesmos se deram primeiramente ao Senhor e depois a nós, pela vontade de
Deus”. Aqui temos o princípio das primícias, o amor dos irmãos de Macedónia é
suportado pelo seu amor a Jesus, e é por esta razão que este amor é igual ao amor
de Jesus (v 9). Amar a Deus é evidenciado na priorização de Deus, e a negligência
no oficio sacerdotal é sinal de desonra a Deus. É o orgulho de Cain que estava
assentado no trono de seu coração ao invés de Deus, por isso mesmo depois de ser
exortado a reconsiderar os seus caminhos ele não atentou as palavras de Deus:
E o SENHOR disse a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu
semblante? Se bem fizeres, não haverá aceitação para ti? E, se não fizeres bem,
o pecado jaz à porta, e para ti será o seu desejo, e sobre ele dominarás. (Gen
4:6-7)

Estas palavras deviam servir para nos lembrar que podemos fazer diferente, que
hoje podemos rejeitar o caminho do Bastardo, que a nossa adoração será aceite
quando nos humilharmos, e nos doarmos a Deus com todo o coração, com toda
alma e com todas nossas forças (Marcos 12:30-31). É esta a diferença entre a oferta
de Abel e a oferta de Cain. E tal como vimos no ponto anterior (a forma de agir), a
rejeição do sacerdócio santo gera a injustiça, e toda sorte de obras más.
Poucas coisas existem na vida humana que tão facilmente nos afastam de Deus
como o orgulho. O ciume de Cain é somente o reflexo do orgulho no seu coração, e
devia ser um fator de terror e preocupação quando aquele que se diz cristão nota o
mais pequeno vestígio sequer de ciume ou orgulho, até porque os orgulhosos não
herdarão o reino dos céus (Gal 5:19-21). Deus tem todo o dever de abominar e
resistir os orgulhosos (Prov 6:16-17/16:5/I Ped 5:5), pois esta é característica mais
notável do próprio Diabo e de todos assassinos, como Cain.
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Todos orgulhosos estão na mesma condenação de Herodes, e qualquer


momento serão trespassados pelo anjo do Senhor e comidos por bichos (Actos
12:21-23). Estes bichos podem não ser vermes, mas a desgraça é preparada para
todo aquele que nos afazeres da vida e nas entranhas de sua alma dá glória a si
mesmo e não ao Senhor. Aqueles que não detém a Deus em primazia nos seus
negócios, e deixam que o orgulho fala mais alto que a palavra de Deus. Não têm a
minima vergonha ou o temor de não se submeterem a exortação divina por causa
do orgulho.
No casamento, o palco principal do ministério sacerdotal, é provavelmente o
lugar onde o orgulho é mais facilmente notável, e também o mais danoso possível.
Tem presbíteros e pastores que no púlpito são santos e humildes, com a esposa e
em casa soberbos e arrogantes. No domingo milhões carregam a bíblia nas mãos e
se identificam como cristãos, mas em casa, com seus cônjuges se identificam com o
orgulho; fazem conscientemente aquilo que Deus abomina, a opinião de Deus é
delegada ao segundo plano, como no sacerdócio de Cain. Quando estão errados e
são confrontados com os princípios bíblicos ao invés de se humilharem e “fazerem
bem”, o orgulho lhes faz inventar desculpas e continuar no erro.
Temos ainda aqueles, que como Cain, não dão a devida primazia a glória de
Deus. Estes têm como a primeira ambição os desígnios de seus próprios desejos
carnais, o diploma ou certificado é a prioridade em sua vida e não o reino de Deus.
A busca de fama, dinheiro ou reconhecimento dos homens é o primeiro foco de
suas vidas. Tem até aqueles que o serviço ou ofício na igreja é de maior prioridade
do que a adoração do próprio Deus da Igreja. Lembro-me de alguém que caiu em
adultério, e quando confrontado e aconselhado a largar a posição que ocupava na
sua igreja, respondeu “você sabe que a igreja é a minha vida”, como se Deus não
fosse anterior a/e superior na Igreja.
Quando nos assuntos da vida buscamos nos apegar as opiniões dos homens em
primeiro lugar e não a opinião de Jesus também quebramos o princípio das
primícias. Deus deve ser o nosso Alfa e Omega, não devemos abraçar os princípios
AS CINCO HERANÇAS

da nossa era que ofendem o carácter de Cristo e os seus mandamentos (João 15:10/I
João 3:22/5:2-3). Como a ignorância destas verdades têm descaracterizado as
igrejas modernas, quantos escândalos, quantos relatos vergonhosos, qual apostasia
e liberalismo? Tudo porque os homens, por orgulho, delegam a palavra de Deus ao
segundo ou terceiro plano:
Não ameis o mundo, nem o que no mundo há. Se alguém ama o mundo, o
amor do Pai não está nele. Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência
da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai, mas do
mundo. E o mundo passa, e a sua concupiscência; mas aquele que faz a
vontade de Deus permanece para sempre. (I João 2:15-17)

Talvez o fogo do orgulho de Cain fosse o facto de ser primogénito. O primeiro


filho carregava consigo um senso de valor e de honra só pelo facto de ter sido o
primeiro a sair do seu pai (Gen 43:33/Deut 21:15-17/ II Cron 21:1-3). Cain
provavelmente esperava um tratamento especial por ser o primogénito, e ao ver o
seu irmão menor sendo louvado e ele sendo reprovado poderá ter piorado os
sentimentos dentro de seu coração. O orgulho coopera muito bem com o nosso
senso de valor ou estatuto. Na medida que nos apegamos a um senso de valor
humano teremos dificuldades em nos humilharmos, é isso que aconteceu com os
hebreus quando Jesus diz: “Como podeis vós crer, recebendo honra uns dos outros
e não buscando a honra que vem só de Deus?” (João 5:44).
Quantos homens consideram a ofensa de uma mulher como sendo superior a de
um outro homem? Quantos esposos têm dificuldades em se humilhar, em perdoar,
em dizer “eu errei, a culpa é minha, peço desculpas”? Digo isto, não por considerar
que os homens sejam os únicos orgulhosos, mas porque a tradição cultural em
África reconhece no homem o papel de cabeça no lar (Ef 5:23/I Cor 11:8-12) e isto
facilmente é manipulado pelo orgulho e acaba sendo um factor que dificulta a
humildade e o arrependimento. Devíamos é ter a mentalidade de Jesus que não se
apegou a nenhum estatuto, ainda que tinha:
De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo
Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus,
mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se
semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz. Por isso, também Deus
o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome; para
que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na
terra, e debaixo da terra, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai. (Fil 2:5-11)

A bíblia na verdade se enche de relatos que buscam captar este contraste entre a
aceitação de Deus e a aceitação dos homens. Nós vemos o caso da aceitação de
Isaac e rejeição de Ismael, de Jacó e a rejeição de Esaú (Gen 21:10-14), de Efraim e
da rejeição de Manassés (Gen 48:14), de José no meio de seus irmãos (Gen 37:5-10)
ou ainda de Davi em relação aos seus manos (I Sam 16:10-13). A mensagem é clara,
o critério de aceitação não é segundo a carne, mas sim pelo Espírito.
Nossa visão deve ser seguir o caminho do Espírito de Cristo, que é o do
esvaziamento, e da mortificação. Aquele que é esvaziado ou pobre de espírito,
morto para o louvor ou glória dos homens não buscará senão a aceitação ou o
louvor de Deus (Gál 1:10). Não seguirá o caminho dos perfeccionistas, julgará a si
mesmo primeiro (Mat 7:3-4), e somente este será exaltado por Deus, e será aceito e
estabelecido como sacerdote santo, fora disso será rejeitado como o sumo-
sacerdote Eli.

Eli e seus filhos

Um exemplo que também capta bem a mensagem do perigo de negligência


ministerial é a historia de Eli e de seus filhos. Não foi somente Adão que foi
rejeitado do jardim do Éden, ou Cain que foi expulso para Node, Eli também foi
expulso do Templo ou espaço divino, por seguir o caminho da negligência
ministerial de Cain. Todos estes nomes eram sacerdotes de Deus, mas
negligenciaram ou seja não “guardaram” o sacerdócio. Nós lemos que:
Eram, porém, os filhos de Eli filhos de Belial e não conheciam o SENHOR;
porquanto o costume daqueles sacerdotes com o povo era que, oferecendo
alguém algum sacrifício, vinha o moço do sacerdote, estando-se cozendo a
carne, com um garfo de três dentes em sua mão; e dava com ele, na caldeira,
AS CINCO HERANÇAS

ou na panela, ou no caldeirão, ou na marmita; e tudo quanto o garfo tirava o


sacerdote tomava para si; assim faziam a todo o Israel que ia ali a Siló.
Também, antes de queimarem a gordura, vinha o moço do sacerdote e dizia ao
homem que sacrificava: Dá essa carne para assar ao sacerdote, porque não
tomará de ti carne cozida, senão crua. E, dizendo-lhe o homem: Queimem
primeiro a gordura de hoje, e depois toma para ti quanto desejar a tua alma,
então, ele lhe dizia: Não, agora a hás de dar; e, se não, por força a tomarei. Era,
pois, muito grande o pecado desses jovens perante o SENHOR, porquanto os
homens desprezavam a oferta do SENHOR. (I Sam 2:12-17)

O termo “filhos de Belial” é sinónimo de filhos do Diabo ou bastardos. É


também importante vermos que o termo hebraico traduzido oferta é o mesmo de
Génesis 4, estabelecendo assim uma relação temática digna de consideração. A
oferta estava a ser profanada pelos sacerdotes, filhos de Eli. Nós vemos o sumo-
sacerdote a repreender os seus filhos (v 22-25), mas vale a pena notar que ele ouviu
isso da parte do povo (a forma de ouvir), quando a rebelião de seus filhos acontecia
bem ao seu nariz (a forma de ver), na Tenda da Congregação, no espaço divino,
espaço que Eli devia guardar.
O sumo-sacerdote não tomou nenhuma medida drástica e necessária para evitar
que os seus filhos ousassem continuar na profanação do sacerdócio santo e na
consequente corrupção do povo (Tiago 3:). Eli tinha problemas quanto ao zelo
sacerdotal e a diligência necessária para garantir que os negócios de Deus
estivessem a ser tratadas com a máxima dignidade e com os devidos cuidados para
honra de Deus. Ao falhar, pelo mimo e falta de severidade ante aos seus filhos, Deus
envia um profeta que vai proferir o seguinte oráculo (v 29-34):
Por que dais coices contra o sacrifício e contra a minha oferta de manjares,
que ordenei na minha morada, e honras a teus filhos mais do que a mim, para
vos engordardes do principal de todas as ofertas do meu povo de Israel?
Portanto, diz o SENHOR, Deus de Israel: Na verdade, tinha dito eu que a tua
casa e a casa de teu pai andariam diante de mim perpetuamente; porém,
agora, diz o SENHOR: Longe de mim tal coisa, porque aos que me honram
honrarei, porém os que me desprezam serão envilecidos. Eis que vêm dias em
que cortarei o teu braço e o braço da casa de teu pai, para que não haja mais
velho algum em tua casa. E verás o aperto da morada de Deus, em lugar de
todo o bem que houvera de fazer a Israel; nem haverá por todos os dias velho
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

algum em tua casa. O homem, porém, que eu te não desarraigar do meu altar
será para te consumir os olhos e para te entristecer a alma; e toda a multidão
da tua casa morrerá quando chegar à idade varonil. E isto te será por sinal, a
saber, o que sobrevirá a teus dois filhos, a Hofni e a Finéias: que ambos
morrerão no mesmo dia.

A reacção de Eli é deveras uma de pouca preocupação diante das palavras de


Deus. Quando Samuel volta a lhe falar da parte de Deus, sobre juízo ele
simplesmente se limitou a responder: “... faça o que bem parecer aos seus olhos ” (I
Sam 3:16). Esta indiferença nem já em Cain foi identificada, visto que o relato de
Génesis nos apresenta um pormenor muito relevante, nas seguintes palavras:
Então disse Caim ao SENHOR: É maior a minha maldade que a que possa ser
perdoada. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face me esconderei;
e serei fugitivo e vagabundo na terra, e será que todo aquele que me achar, me
matará. O SENHOR, porém, disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim,
sete vezes será castigado. E pós o SENHOR um sinal em Caim, para que o não
ferisse qualquer que o achasse. (4:13-15)

Não é de admirar que Eli e sua casa toda não foram poupados, tudo quanto Deus
havia alertado sucedeu (I Sam 4:10-18). Se no arrependimento de Cain Deus teve
misericórdia, quem sabe ter sido isto o que faltou em Eli. Ao sacerdócio deste
sumo-sacerdote e sua casa faltou o temor e o tremor do Senhor, faltou sal, azeite e
havia muito fermento. Eli honrava a seus filhos mais do que a Deus, e seus filhos
honravam os seus desejos carnais mais do que a Deus, quando Deus devia ser a
prioridade de suas vidas.
Quando Deus falava com Samuel Eli não ouvia (I Sam 3), porque Eli havia
negligenciado o sacerdócio santo, quando a mãe de Samuel pranteava diante de
Deus Eli ouviu mal, e achou que Ana estivesse embriagada (I Sam 1:10-14), o que
sugere que havia um problema na forma de ouvir de Eli. A forma indiferente que
Eli tratou as palavras dos profetas que o alertaram da parte do Senhor também
solidificam a ideia de que seu problema de visão não era somente físico mas
AS CINCO HERANÇAS

também espiritual (I Sam 4:15). A complacência e falta de severidade lhe haviam


cegado o discernimento (I Sam 3:13).
Infelizmente os sacerdotes de Israel não aprenderam com o caso de Eli, 450
anos antes de Cristo nós lemos as palavras de Malaquias a acusar os sacerdotes de
profanarem as ofertas do Senhor no Templo de Jerusalém, dizendo:
"O filho honra seu pai, e o servo o seu senhor. Se eu sou pai, onde está a honra
que me é devida? Se eu sou senhor, onde está o temor que me devem? ",
pergunta o Senhor dos Exércitos a vocês, sacerdotes. "São vocês que
desprezam o meu nome! " "Mas vocês perguntam: ‘De que maneira temos
desprezado o teu nome? ’ "Trazendo comida impura ao meu altar! "E mesmo
assim ainda perguntam: ‘De que maneira te desonramos? ’ "Ao dizerem que a
mesa do Senhor é desprezível. "Na hora de trazerem animais cegos para
sacrificar, vocês não vêem mal algum. Na hora de trazerem animais aleijados e
doentes como oferta, também não vêem mal algum. Tentem oferecê-los de
presente ao governador! Será que ele se agradará de vocês? Será que os
atenderá? ", pergunta o Senhor dos Exércitos. (Mal 1:6-8)

A forma de adorar a Deus acabou sendo de negligência, e isto porque a forma de


ver dos sacerdotes havia sido corrompida, não conseguiam enxergar o mal nos seus
actos, e seguiram profanando as ofertas de alimentos que levavam ao altar. É assim
que Deus vai igualmente proferir palavras duras de alerta ao juízo vindouro (Mal
2:1-9). A adoração aceitável envolve viver em lealdade e justiça (v 10-17). Quando
João Batista e Jesus chegam, 450 anos depois de Malaquias, a condição dos líderes e
sacerdotes hebreus não havia melhorado (João 12:10/Luc 10:30-37), foram estes
que conspiraram e entregaram o Senhor nas mãos de Pilatos afim de ser crucificado
(Mat 26:1-4/João 19:6). O resultado da falsa adoração foi o Templo de Jerusalém
ser destruído pelos Romanos e os hebreus serem expulsos da terra santa no ano 70
DC, tal como Jesus havia profetizado (Lucas 21:20-22/Marcos 13:2).

HERANÇA 5: A FORMA DE VER


Como apontado anteriormente, a falsa adoração ou infidelidade de Israel e de seus
sacerdotes era algo que não preocupava os hebreus, salvo uma minoria ou
remanescente (Isaías 10:20/Sofonias 3:13/I Reis 19:18). Esta falta de preocupação
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

quanto a guarda do sacerdócio mostra que Israel tinha um problema na sua visão
sacerdotal, problema este que nos vai remeter a Adão:
E ouviram a voz do SENHOR Deus, que passeava no jardim pela viração do
dia; e escondeu-se Adão e sua mulher da presença do SENHOR Deus, entre as
árvores do jardim. E chamou o SENHOR Deus a Adão e disse-lhe: Onde estás?
E ele disse: Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-
me. E Deus disse: Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore de
que te ordenei que não comesses? Então, disse Adão: A mulher que me deste
por companheira, ela me deu da árvore, e comi. (Gen 3:8-12)

No dia à dia somos submetidos a uma variedade de experiências, tanto boas


como negativas, de tal modo que ver o mal é praticamente a regra da vivência
humana. Temos assistido toda sorte de agressões e brutalidades, dentro e fora das
nossas casas, pessoas sendo roubadas, degoladas, subjugadas etc, pelas mais
diversas razões, desde a religião, ao mais puro narcisismo. Entretanto, ver o mal não
é igual a ver mal. Ver mal é ter mal no ver; é interpretar mal as coisas.
Quando comecei a ter problemas de miopia, a primeira dificuldade que eu
identifiquei foi em ler bem as palavras que o professor escrevia no quadro. Percebi
que os meus colegas que sentavam muito além de mim conseguiam ler sem
nenhum problema, já eu era o exato contrário. Na medida que eu me esforçava para
decifrar o conteúdo no quadro, aumentava a minha frequência de dores de cabeça.
Quando fui ao oftalmologista e passei pelo diagnóstico foi então determinado que
a minha visão não estava bem.
Os meus óculos ou a falta deles afetam a minha forma de enxergar as coisas
materiais, mas não as coisas morais. Contudo, a minha cultura, o meu
conhecimento e a minha experiência e expectativas podem e afetam a minha forma
de julgar as coisas, são como se os óculos interiores pelo qual dou sentido a vida.
Todos nós temos estes óculos internos, e por vezes por eles somos induzidos a ver
mal. Acabamos não vendo o mal onde o mal se encontra, e assim acabamos vendo
mal. Somos sobretudo rápidos em ver o mal nos outros, e bons em filtrar o nosso
mal, e este é o maior mal na nossa forma de ver; o egotismo!
AS CINCO HERANÇAS

Adão era uma unidade; macho e fêmea (Gn 1:17, 2:24, 5:2), como unidade:
“...ambos estavam nus, o homem e a sua mulher; e não se envergonhavam” (2:25).
Só foi pecar para que a forma de ver de ambos mudasse: “ Então, foram abertos os
olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e
fizeram para si aventais” (3:7). Adão ganhou a consciência da sua culpa, pois havia
transgredido contra o mandamento de Deus; ao invés de guardar o jardim,
sucumbiu ao egoísmo, decidiu fazer as coisas segundo o caminho dos bastardos.
Se há algo bem claro na queda de Adão é o resultado imediato da transgressão, a
forma de ver as coisas mudaram. Como diz o sábio: “Há caminho que ao homem
parece direito, mas o fim dele são os caminhos da morte. Até no riso terá dor o
coração, e o fim da alegria é tristeza. Dos seus caminhos se fartará o infiel de
coração, mas o homem bom se fartará de si mesmo ” (Pro 14:12-14). Tão logo Adão
foi expulso a alegria do jardim se perdeu, o medo da morte e as dificuldades
naturais para sobrevivência se tornaram os ossos da sua existência (Gen 3:17-19).
Rapidamente vemos a forma egotista em acção, para além da vergonha, Adão
não teve vergonha de responder a Deus: “A mulher que me deste por companheira,
ela me deu da árvore, e comi”. Ao ver de Adão antes mesmo de se olhar para ele
como culpado, pelo menos duas outras pessoas tinham de assumir suas culpas;
Deus e a Eva. Notemos que Adão nem disse “a serpente enganou a mulher, e a
mulher me deu da árvore, e comi”. Essa resposta espelha o ver egotista, onde a
culpa própria é relegada ao outro.
Vemos a mesma forma de ver em Cain quando ele responde: “ ...sou eu
guardador do meu irmão?”, aqui temos o legalismo de Caim, tanto Adão como o
seu primogénito se haviam inflamado de si próprios, ao ponto de se achar mais
justos do que o próprio Deus (perfecionismo). A auto-justificação dos dois fedia a
egotismo. A auto-justificação humana é ainda uma podridão egotista. A humildade
e a rendição diante de Deus é o caminho mais difícil para quem se encheu de si
próprio.
O olhar egotista é aquele que não tem a consideração o próximo, mas está virado
a si mesmo. Talvez um bom retrato deste olhar pode ser captado nas palavras de
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Nietzsche4: “Deus está morto”. Para o egotista a vida está em si próprio, a justiça
também, a razão e o sentido das coisas reside em seu olhar, e um ser divino e
superior chamado “Deus” se não for uma mera emanação do próprio homem não
faz sequer sentido existencial. Por isso um Deus fora do próprio homem tem de ser
morto; seus princípios sobre o bem e o mal devem ser ultrapassados, assim teremos
o super-homem.
Acredito que não seria difícil entender que o primeiro “próximo” de Adão foi
Deus, pois este é o seu criador, aquele que Adão primeiro conheceu, seu legitimo
pai (Luc 3:38). Este facto é ainda provado quando a vergonha que Adão sentiu foi
não somente entre o macho e a fêmea, mas fundamentalmente de Deus, o que
levou Adão e a sua mulher a esconder-se entre as árvores do jardim (Gen 3:8). O
humanismo é a tradução do lema “Deus está morto”, onde o critério do bem e do
mal é determinado por Adão e não por Deus. Este olhar, entretanto, não deixa de
ter consequências, porque os homens agem segundo aquilo que acreditam:
Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para
apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde
se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis?
Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para a frente, em todas as
direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’ ? Não vagamos como que
através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se
tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender
lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus?
Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem!
Deus está morto! Deus continua morto! E nós os matamos! Como nos
consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e sagrado que o
mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos
limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos
expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não
é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses,
para ao menos parecer dignos dele?

4
Nietzsche, F. W. A.2008. Gaia Ciência (2.ed). São Paulo: Escala, p. 149-151.
AS CINCO HERANÇAS

Estas palavras do existencialista niilista Nietzsche foram escritas em 1884 e


captam de um modo profético a era actual, onde a humanidade pós-moderna gira
em torno do “nada”, a razão, a ciência, a tecnologia ao invés de enriquecerem a vida
de significado, parece que a esvaziaram ainda mais. Nossa época despiu-se de Deus
e da razão, e se revestiu de “nada”, o homens actual parece pós-razão e pós-fé.
Assim como surgiram os “fast food” como emblemas da correria de vida do
primeiro mundo, tudo na vida do homem actual tende a ser “fast”, muito diferente
da refeição completa, a alma dos homens corre sem descanso para um vazio eterno.
É uma escuridão interna como a terra desatada do sol, é uma falta de direcção
como um cair de todos os lados. Perdemos o senso do certo e do errado, a distinção
entre a verdade e a mentira, o em cima do embaixo, e tudo parece uma viagem
infinita com destino ao nada. Mas como esperaríamos criar vida separados do
Criador? Ou ainda como seguiríamos na direcção certa longe do Caminho? É esta
desorientação que nos caracteriza, que produz sociedades caracterizadas pelo alto
nível de “stress”, um povo cercado de contradições, sem chão para marcar passos,
sem estrelas, sem luz para saber onde está, pois a muito deixou de saber quem
realmente é. Seu ver a si mesmo e ao próximo tem mal.
Como dizia o pastor, Guilherme Burjack parafraseado: “Vivemos numa
sociedade mercantilista, e a juventude ao invés de viver hoje, vive no amanhã”.
Tudo gira em torno do “lucro”, do acumulo de riquezas, as angustias existenciais
encontram esconderijos na velocidade da corrida atrás do sucesso profissional, dos
diplomas e certificados, dos cursos técnicos que nos dão acesso a mais lucro. A vida
do homem pós-moderno parece a de um cão tentando morder a sua própria cauda;
girando atrás da comichão do consumismo e do mercantilismo. A vida,
infelizmente, parece delegada a um amanhã utópico, onde estaremos
profissionalmente e materialmente seguros para comprar e consumir mais dos
“bens” novos que as grandes firmas internacionais produzirão. Um amanhã que
não existe.
É deveras muito interessante notar que o homem pode correr tanto atrás do
“nada” ao ponto de nunca parar para perceber que esta cansado ou ainda para
inquirir sobre a natureza real daquilo que busca. Isto tudo acontece porque
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

perdemos a visão sacerdotal da nossa existência. Queremos nos tornar os árbitros


da vida e da realidade das coisas a nossa volta. Para esta nossa condição de igual
modo servem as palavras de Jesus: “ Vinde a mim, todos os que estais cansados e
oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que
sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para a vossa alma.
Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve” (Mat 11:28-30).
Como Adão virá a Jesus quando em seu ver Deus é um manipulador e desonesto
ser, que lhe deu uma mulher que lhe induziu a comer da árvore? Quando vai Adão
buscar o perdão divino, quando não vê a sua própria deslealdade sacerdotal e
transgressão voluntária? Ou ainda, como Adão se voltará para Jesus enquanto ver as
coisas de modo egotista? Conseguir enxergar a condição própria pode ser o feito
mais desafiador, sobretudo quando a pessoa precisa aceitar que é oprimido. O
oprimido é o fraco, o necessitado, e o egotista é o seu próprio deus e todo poderoso
do seu universo.
Paulo vai nos dar uma luz quanto a identidade do opressor, quando diz aos
irmãos de Éfeso que “E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados, em
que, noutro tempo, andastes, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe
das potestades do ar, do espírito que, agora, opera nos filhos da desobediência;
entre os quais todos nós também, antes, andávamos nos desejos da nossa carne,
fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira,
como os outros também” (Ef 2:1-3). O caminhar segundo o curso deste mundo é
estar sob domínio do príncipe das potestades do ar, que é o espírito que opera nos
bastardos; os filhos da desobediência (Heb 12:8).
Aqueles que olham para o pecado como se nada fosse aos olhos de Deus, são os
amigos do mundo e inimigos de Deus (Tiago 4:4). O domínio do filho de Deus
envolve os desejos da sua própria carne. O pecado e o príncipe das potestades do ar
concordam, dai lermos que: “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal,
para lhe obedecerdes em suas concupiscências; nem tampouco apresenteis os
vossos membros ao pecado por instrumentos de iniquidade; mas apresentai-vos a
AS CINCO HERANÇAS

Deus, como vivos dentre mortos, e os vossos membros a Deus, como instrumentos
de justiça. Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da
lei, mas debaixo da graça” (Rom 6:12-14).
Adão não viu o seu mal, não percebeu que havia sucumbido ao domínio do
pecado, quando seguiu o atalho da auto-justiça e considerou que a opinião de Deus
estava morta; “Deus está morto”. O Salmista em duas ocasiões associa o coração
daqueles que dizem “não há Deus” a tolice, a confusão, a imundície e a iniquidade
(Salmos 14, e 53), o que é consequente, considerando que o temor do Senhor é o
princípio da sabedoria (Prov 1:7/Salmos 111:10). Como temeremos alguém que
para todos os efeitos rejeitamos a sua autoridade; alguém que “nós matamos”?
A nossa forma de ver ou é aquela que busca harmonia com Deus, ou aquela que
rejeita o domínio de Deus. Nós criamos os nossos espaços sagrados, nós decidimos
o que lavrar e o que guardar. Assim o mundo demonstradamente se tornou o palco
das nossas taras, da comédia que apresenta a tolice humana girando atrás de sua
própria cauda que nunca parece alcançar. Esta corrida egotista tem sido a força por
trás do sangue nas mãos de Stalin, de Mao, de Lenin, dos bichos que devoram os
mais fracos e indefesos da sociedade; desta quota parte os africanos conheceram os
seus piores desde suas independências.
Entretanto, podemos ser seduzidos a olhar para os outros, os de lá fora, mas o
cancro visual está cá dentro, em nossos corações, e se evidencia em nossas casas, em
nossas igrejas, em nossos bairros e sociedades. Os nossos lares “mataram Deus”
quando os princípios que norteiam o nosso viver familiar são contrários aos
divinos. As nossas igrejas “mataram Deus” quando o que se prega é uma adaptação
do mercantilismo com versículos bíblicos descontextualizados, quando o sentido
da vida que professamos não se restringe no conhecimento e amor de Deus. Nós
“matamos Deus” quando os que se dizem cristãos com os lábios: “ Confessam que
conhecem a Deus, mas negam-no com as obras, sendo abomináveis, e
desobedientes, e reprovados para toda boa obra.” (Titus 1:16)
Adão consegue perceber que está nu mas sua inteligência só lhe permitem coser
para si aventais de folhas de figueira (Gen 3:7), isso é o revestir de auto-justiça,
vestes que não cobrem a vergonha de uma consciência contaminada. É aqui onde
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

ouvimos: “quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar?
Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? ”. Permita-me
lembrar de uma historia que eu li muitos anos atrás, sobre a esposa de alguém que
foi violada em sua casa, que o seu marido voltando para casa, com aquele mau
pressentimento de que algo não estivesse bem, corre para o quarto e ouvindo o som
da água escorrendo no banheiro corre para lá e encontra a sua amada esposa
chorando, levando a si mesma com uma pedra ao ponto de não notar que rasgava a
pele de tanto esfregar e a água escorria com sangue vivo.
É verdade que o esposo depois entendeu que sua esposa estava a tentar limpar
da sua alma a mancha do estupro que havia entrado nela. Não é fácil suportar uma
situação em que o seu próprio corpo, espaço primário da sua identidade, é
dominado e abusado por um estranho, do jeito mais íntimo possível, quão
profunda ferida é esta que cicatriza o nosso próprio espírito. Adão, ao contrário
desta mulher, havia aberto a porta para o estranho, ciente de um aviso prévio que
aquela porta devia ser guardada do impostor.
Entretanto, o que Adão não sabia é que mais do que o sabor gostoso do fruto do
conhecimento do bem e do mal havia o senso de violação; a vergonha. Hoje, a
vergonha é um termómetro para medir a nossa sanidade moral em sociedade.
Graças a Deus pela bênção da vergonha. Os únicos seres sem vergonha seriam Deus
e o Diabo, Deus por ser totalmente puro e sem experiência com o sentimento de
culpa ou falha, já o Diabo por se ter corrompido tanto, ao ponto de fazer do mal a
sua virtude. Os psicopatas ou malucos é que nos mostram o que acontece quando
perdemos a vergonha.
A vergonha nos ajuda a podar as partes mais agudas da nossa perversão. Não
obstante, vivendo em pureza e obediência não teremos de que nos envergonhar (II
Tim 2:15/I João 4:18). Os homens assim conhecem a sua “nudez” e continuam a
fugir de Deus, criando seus argumentos e filosofias humanas, como se os aventais
cozidos de folhas de figueiras. Em quase todos os países encontramos uma
Legislação e um Ministério da Justiça, mas os nossos governos são seculares, ou
AS CINCO HERANÇAS

seja, destituidos do verdadeiro Legislador e Juiz que é Deus (Gen 18:25/Tiago


4:12).
A nossa forma de ver tende a carnalidade, que é nada mais do que uma
inclinação a satisfação dos desejos naturais. Paulo chamou isso de “compreensão
carnal” ou “sabedoria carnal”, um entendimento em oposição ao espiritual, onde a
vontade de Deus não é primário na condução da nossa volição, antes o pecado, o
orgulho, a hipocrisia e a ignorância humana (Rom 7:14/II Cor 1:12/Col 2:18). Já a
forma de ver do sacerdócio santo (ao contrário do olhar de Esaú) é aquela que diz:
“…minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra”
(João 4:34), ou ainda: “E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos
pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa,
agradável e perfeita vontade de Deus.” (Rom 12:2)

Lentilhas ou primogenitura?

A carnalidade é a marca ou o trilho dos bastardos, já a santidade a direcção dos


filhos de Deus. Nós podemos comprovar isso olhando para as Escrituras e para a
vida daqueles que se dizem discípulos de Cristo, é fácil notar os espirituais dos
carnais, só precisamos atentar para a forma como vivem e os caminhos que
escolhem. As ambições que queimam em nossos corações definem de modo
especial a nossa identidade espiritual, se bastardos ou filhos, se carnais ou
espirituais. Nós lemos que:
E Jacó cozera um guisado; e veio Esaú do campo e estava ele cansado. E disse
Esaú a Jacó: Deixa-me, peço-te, comer desse guisado vermelho, porque estou
cansado. Por isso, se chamou o seu nome Edom. Então, disse Jacó: Vende-me,
hoje, a tua primogenitura. E disse Esaú: Eis que estou a ponto de morrer, e
para que me servirá logo a primogenitura? Então, disse Jacó: Jura-me hoje. E
jurou-lhe e vendeu a sua primogenitura a Jacó. E Jacó deu pão a Esaú e o
guisado das lentilhas; e ele comeu, e bebeu, e levantou-se, e foi-se. Assim,
desprezou Esaú a sua primogenitura. (Gen 25:29-34)

Esaú trocou o seu estatuto de primogénito por um guisado de lentilhas. Ser


primogénito para a cultura dos autores das escrituras tem um significado muito
especial, pois reflecte um estatuto de honra e autoridade. O primogénito é aquele
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

que se assenta a direita de seu pai (Salm 110:1/Gen 43:33/Marc 12:36, 14:62), a sua
porção da herança é redobrada, pesa sobre o seu ombro o dever de ser o exemplo
moral e de sabedoria para os seus irmãos, visto ser ele reflexo da autoridade de seu
pai (Deut 21:17).
Na verdade a pessoa podia perder o direito a primogenitura através de um acto
de profunda desonra ao seu pai. Cain ao assassinar o seu irmão perdeu o estatuto
de primogénito, e não é contado na genealogia de Adão (Gen 5/Lucas 3:23-38),
Rúben ao dormir com a concubina de seu pai Jacó (conhecer a nudez de seu pai)
perde o direito de primogenitura para os filhos de José (Génesis 35:22/I Crónicas
5:1). Trocar a primogenitura por um prato de comida é deveras uma atitude de
desleixo extremo, e só cabe na mente de uma pessoa dominado pelo seu estômago
(Rom 16:18). Quem assim procede não tem ambições que transcendem a dimensão
da sua carne.
Desta feita, vemos que o olhar de Esaú era dominado pelo seu estômago, como
Paulo diz: “O fim deles é a perdição, o deus deles é o ventre, e a glória deles é para
confusão deles mesmos, que só pensam nas coisas terrenas” (Filipenses 3:19). O
olhar espiritual é aquele que busca primeiro o reino de Deus e então responde:
“...Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”
(Mat 4:4). Se Adão preferiu sucumbir ao aroma e a doçura do fruto da árvore, se
Esaú preferiu vender a sua primogenitura por causa de uma feijoada, Jesus Cristo
preferiu fazer da vontade de Deus o seu prato preferencial:
E, entretanto, os seus discípulos lhe rogaram, dizendo: Rabi, come. Porém ele
lhes disse: Uma comida tenho para comer, que vós não conheceis. Então, os
discípulos diziam uns aos outros: Trouxe-lhe, porventura, alguém de comer?
Jesus disse-lhes: A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e
realizar a sua obra. (João 4:31-34)

Esaú não conseguia ver o significado espiritual da primogenitura, sua visão


míope e seu coração virado ao estômago (materialismo) cegaram-lhe o
entendimento (Efésios 4:18). Ele desprezou o concerto que Deus havia feito com
Abraão (Gen 17) e Isaque (Génesis 26:2-5) seus pais. Esaú tinha esquecido de olhar
AS CINCO HERANÇAS

para o seu próprio órgão masculino e se perguntar: “porque é que eu fui


circuncidado?”. Se tivesse tido um coração diferente, ainda hoje os judeus diriam
“Deus de Abraão, Isaque e Esaú” ao invés de “Deus de Abraão, Isaque e Jacó” (Exo
3:16).
A primogenitura apontava para Jesus, por isso o NT nos explica que : “ Sabemos
que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram
chamados de acordo com o seu propósito. Pois aqueles que de antemão conheceu,
também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que
ele seja o primogénito entre muitos irmãos ” (Romanos 8:28-29). Jesus Cristo é: “... a
cabeça do corpo da igreja; é o princípio e o primogénito dentre os mortos, para que
em tudo tenha a preeminência ”(Colossenses 2:18). Na nova criação (Efésios 2:10/II
Cor 5:17), dentre os santos que já existiram e existirão, Jesus Cristo é o
primogénito, ele preferiu a cruz do que o mundo, para ele tudo que a carne tinha a
oferecer era igual a uma fruta ou um guisado de lentilhas; insignificante em relação
a glória de Deus.
Com a troca da primogenitura Esaú, em figura, rejeitou ao Senhor Jesus Cristo, se
tornando assim num emblema da carnalidade, é nesta compreensão que o autor de
Hebreus depois de nos falar dos bastardos (12:8), nos vai apontar Esaú oito versos
depois:
Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor,
tendo cuidado de que ninguém se prive da graça de Deus, e de que nenhuma
raiz de amargura, brotando, vos perturbe, e por ela muitos se contaminem. E
ninguém seja fornicador ou profano, como Esaú, que, por um manjar, vendeu
o seu direito de primogenitura. Porque bem sabeis que, querendo ele ainda
depois herdar a bênção, foi rejeitado, porque não achou lugar de
arrependimento, ainda que, com lágrimas, o buscou. (Hebreus 12:14-17)

Os discípulos de Cristo são exortados a não seguir o caminho da carne, que é


comparada a trocar a primogenitura por uma feijoada. A fornicação que é deliciosa
para carne não é mais valiosa que as promessas ou herança de Deus aos seus
primogénitos, aos santos lhes é dito: “ Mas chegastes ao monte Sião, e à cidade do
Deus vivo, à Jerusalém celestial, e aos muitos milhares de anjos, à universal
assembleia e igreja dos primogénitos, que estão inscritos nos céus, e a Deus, o Juiz
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados; e a Jesus, o Mediador de uma


nova aliança, e ao sangue da aspersão, que fala melhor do que o de Abel. Vede que
não rejeiteis ao que fala; porque, se não escaparam aqueles que rejeitaram o que na
terra os advertia, muito menos nós, se nos desviarmos daquele que é dos céus ”.
(Hebreus 12:22-25)
Jesus é o percurso e o exemplo que os filhos devem seguir, isto é resistir ao
pecado até a nossa crucificação, até ao sangue (v 4). Pela primogenitura vale a pena
perder a nossa própria vida, como vimos em Jesus Cristo, quão carnal é trocar o
dom da vida por uma feijoada, por um adultério, fornicação em fim. Mas essa forma
carnal de ver as coisas não é sem precedentes, permita me fazer mais algumas
observações ousadas quanto a isto, desta vez na própria casa onde cresceu Esaú.
Alguém uma vez disse algo como “é preciso ter muito cuidado ao apontarmos o
dedo as falhas do nosso pai, é que na maioria das vezes somos muito mais parecidos
com eles do que imaginamos”. E como vimos Israel é muito mais parecido com
Adão do que imaginávamos, um olhar cuidadoso nas escrituras nos mostrará que a
ideia de que os filhos seguem os caminhos de seus pais é praticamente
concordante, desde o VT ao NT, vejamos dois exemplos:
...Israelitas, não lutem contra o Senhor, o Deus dos seus antepassados, pois
vocês não terão êxito! (II Crónicas 13:12)
Então lhe perguntaram: "Onde está o seu pai? " Respondeu Jesus: "Vocês não
conhecem nem a mim nem a meu Pai. Se me conhecessem, também
conheceriam a meu Pai". (João 8:19)

No primeiro exemplo basta nos lembrarmos de Jacó que lutou com Deus até a
madrugada, num lugar que passou a chamar de Peniel (Gen 32:24-30), Abadias
quando repreende os Israelitas dizendo “não lutem” evoca para nós uma
característica do próprio Jacó, e isso é antes de o mesmo ter o seu nome mudado
para Israel. Podemos imaginar a vida de trapaceiro que tinha Jacó e como foi
preciso passar por várias situações até ele se render completamente. Deus teve de
deslocar a coxa de Jacó para dominar-lhe. Esta insubmissão e resistência a Deus é
AS CINCO HERANÇAS

vista em toda história de Israel, sendo que Deus lhes caracteriza como sendo “de
dura cerviz” (Exo 32:9) e Estêvão acrescenta que sempre foram um povo que
“resiste o Espírito Santo” como os seus pais (Actos 7:21).
Já no segundo caso, vemos Jesus discutindo com os fariseus que se lhe opuseram,
sendo que o Senhor explica que devido a unidade de princípios e carácter,
conhecer a Deus implica conhecer a Jesus. Isto na verdade é ampliado quando Jesus
chama os mesmos fariseus de “filhos do Diabo” visto os mesmos exibirem as
características do Diabo, no caso serem assassinos e mentirosos (João 8:44). A
paternidade para os hebreus representava o selo da honra de alguém, era, de um
modo geral, acreditado que os filhos seguiam o exemplo dos seus pais:
Considerem o exemplo de Abraão: "Ele creu em Deus, e isso lhe foi creditado
como justiça". Estejam certos, portanto, de que os que são da fé, estes é que
são filhos de Abraão. Prevendo a Escritura que Deus justificaria pela fé os
gentios, anunciou primeiro as boas novas a Abraão: "Por meio de você todas as
nações serão abençoadas". Assim, os que são da fé são abençoados juntamente
com Abraão, homem de fé. (Gal 3:6-9)

Isaque, no entanto, era o pai de Esaú, e talvez o seu filho tivesse alguns traços
parecidos com o seu pai. O escritor de Génesis de modo muito próprio vai
deixando algumas pistas sobre os personagens que descreve, cabendo a nós analisar
os dados que nos podem ajudar a ver melhor algumas facetas destes relatos afim de
tirarmos boas lições. É aqui talvez o melhor ponto para lembrar aquilo que os
professores de teologia bíblica enfatizam: “ a bíblia foi escrita para nós, mas não a
nós”, daí a necessidade de prestarmos atenção a particularidades culturais, e de
géneros textuais na nossa meditação das escrituras. Isaac é apresentado como um
homem de oração, pelo menos antes da sua velhice:
Ora, Isaque vinha do caminho do poço de Laai-Roi, porque habitava na terra
do Sul. E Isaque saíra a orar no campo, sobre a tarde; e levantou os olhos, e
olhou e eis que os camelos vinham. Rebeca também levantou os olhos, e viu a
Isaque, e lançou-se do camelo. (Gen 24:62-64)
Isaque orou ao Senhor em favor de sua mulher, porque era estéril. O SENHOR
respondeu à sua oração, e Rebeca, sua mulher, engravidou. (v 25:21)
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Provavelmente Isaque estava a interceder para que o servo de seu pai Abraão
tivesse sucesso em identificar uma mulher piedosa para si (Gen 24:1-61), e “olhou e
eis que” Rebecca estava a sua frente, a resposta das suas preces diante de Deus.
Porém, passado um tempo Isaac percebeu que a sua esposa não engravidava, e de
novo dobrando os seus joelhos clamou a Deus e “olho e eis que” sua esposa estava
grávida de gémeos (Gen 25:21-22). É interessante notarmos que na media que
Isaque busca a Deus em oração, Deus lhe faz “ver” a solução e o sucesso.
Já no verso a seguir, quando Rebeca notou a guerra no interior do seu ventre,
buscou igualmente o Senhor que lhe fez “ver” que: “ Duas nações estão em seu
ventre, já desde as suas entranhas dois povos se separarão; um deles será mais forte
que o outro, mas o mais velho servirá ao mais novo ”. Esta revelação Deus deu a
mulher de Isaque, e tudo indica que Isaque não teve esta compreensão. Lemos que:
Os meninos cresceram. Esaú tornou-se caçador habilidoso e vivia percorrendo
os campos, ao passo que Jacó cuidava do rebanho e vivia nas tendas. Isaque
preferia Esaú, porque gostava de comer de suas caças; Rebeca preferia Jacó. (v
25-27/NVI)

Não sei se o leitor me entenderá se eu disser (com base a citação anterior) que
Isaque via os filhos com os óculos do seu estômago, mas a sua esposa Rebeca
concordava com a revelação divina. Havia um fraco por comida que Esaú herdou de
seu próprio pai, é como o caso da transgressão voluntária de Adão que acaba
refletida na transgressão voluntária de Cain, quando este vai mais longe e mata o
seu próprio irmão. É como se Cain tivesse trocado a sua primogenitura por causa
do seu orgulho (deve ser tão gostoso quanto o guisado de lentilhas).
O texto deixa claro que Isaque tinha uma fraqueza por comida, quando lemos
ainda as palavras que ele fala ao seu filho: “ Tendo Isaque envelhecido, seus olhos
ficaram tão fracos que ele já não podia enxergar. Certo dia chamou Esaú, seu filho
mais velho, e lhe disse: "Meu filho! " Ele respondeu: "Estou aqui". Disse-lhe Isaque:
"Já estou velho e não sei o dia da minha morte. Pegue agora suas armas, o arco e a
aljava, e vá ao campo caçar alguma coisa para mim. Prepare-me aquela comida
AS CINCO HERANÇAS

saborosa que tanto aprecio e traga-me, para que eu a coma e o abençoe antes de
morrer"” (Gen 27:1-4). A mesma ênfase na comida pode ser vista nas palavras de
Rebeca ao seu filho Jacó, quando concertam em trapacear Isaque: “ Vá ao rebanho e
traga-me dois cabritos escolhidos, para que eu prepare uma comida saborosa para
seu pai, como ele aprecia. Leve-a então a seu pai, para que ele a coma e o abençoe
antes de morrer".”(v 9-10/NVI)
Quando Jacó se aproxima de seu pai e se faz passar de Isaque a sua voz foi
claramente notada como não sendo a voz de seu mano, mais provavelmente o
cheiro saboroso da comida, terá sido suficientemente tentadora para Isaque ao
ponto dele baixar todas as suas guardas, nós lemos que: “ Jacó aproximou-se do seu
pai Isaque, que o apalpou e disse: "A voz é de Jacó, mas os braços são de Esaú". Não
o reconheceu, pois seus braços estavam peludos como os de Esaú, seu irmão; e o
abençoou. Isaque perguntou-lhe outra vez: "Você é mesmo meu filho Esaú? " E ele
respondeu: "Sou". Então lhe disse: "Meu filho, traga-me da sua caça para que eu
coma e o abençoe". Jacó a trouxe, e o pai comeu; também trouxe vinho, e ele bebeu.
Então seu pai Isaque lhe disse: "Venha cá, meu filho, dê-me um beijo". Ele se
aproximou e o beijou. Quando sentiu o cheiro de suas roupas, Isaque o abençoou,
dizendo: "Ah, o cheiro de meu filho é como o cheiro de um campo que o Senhor
abençoou” (Gen 27:22-27/NVI).
A comida e o vinho são símbolos dos desejos da carne, sempre que somos
dominados por estes desejos de certa forma falhamos o alvo aos olhos de Deus. É a
comida a tentação de Génesis 3, é por causa do vinho que Cão viu a nudez de Noé
(Gen 9:20-21), e as duas filhas de Ló igualmente viram a nudez de seu pai (Gen
19:30-38). A comida e o vinho facilmente nos emocionam e reduzem a nossa
capacidade de “guarda”.
Isaac e seu filho Esaú tinham em comum um fraco por comida, embora,
argumentavelmente, poderá se dizer que o caso de seu filho foi mais grave. Talvez
Isaac tivesse evitado toda essa trama se tivesse considerado o negócio da bênção e
da primogenitura como digno de oração. Assim como ia orar no campo, quando
mais jovem, e do mesmo jeito que buscou a fertilidade de sua mulher aos pés de
Deus, quem sabe consultando ao Senhor tivesse uma orientação divina. Deus ao
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

menos teria lhe revelado que seu querido Esaú havia desprezado e vendido a
primogenitura, por um prato de feijoada.
É preciso vermos nesta história a exortação a buscarmos sempre depender de
Deus, não adianta confiarmos o nosso nariz ou as palmas das nossas mãos. Deus vai
para além dos nossos sentidos, e a vida de oração não deve sofrer a velhice do nosso
corpo. Devemos “guardar” o quarto de intimidade (Mateus 6:6), e orar sem cessar (I
Tess 5:17), sem cansar (Lucas 18:7). Verdadeiramente, ao olharmos para Jesus
veremos aquele servo dependente que: “ Durante os seus dias de vida na terra, Jesus
ofereceu orações e súplicas, em alta voz e com lágrimas, àquele que o podia salvar
da morte, sendo ouvido por causa da sua reverente submissão ” (Hebreus 5:7). Nós
podemos encontrar o seguinte testemunho:
Num daqueles dias, Jesus saiu para o monte a fim de orar, e passou a noite
orando a Deus. Ao amanhecer, chamou seus discípulos e escolheu doze deles,
a quem também designou como apóstolos: Simão, a quem deu o nome de
Pedro; seu irmão André; Tiago; João; Filipe; Bartolomeu; Mateus; Tomé;
Tiago, filho de Alfeu; Simão, chamado zelote; Judas, filho de Tiago; e Judas
Iscariotes, que veio a ser o traidor. (Luc 6:12-16/NVI)

Jesus Cristo antes de escolher e separar os primeiros dentre os discípulos passou


a noite em oração. Em João 17 antes da sua crucificação, voltamos a ver Jesus
orando e abençoando os onze apóstolos de modo particular, tendo a revelação de
que um dos doze trocaria o apostolado divino por trinta moedas de prata (valor do
prato de guisado de lentilhas que Judas comeu) (Mat 26:14-16, 27:3-10). A verdade
é que no NT a unção ou separação de um discípulo é precedido por oração, temos
como exemplos; Matias (Actos 1:18), Paulo e Barnabé (Actos 13:1-3).
Esaú definitivamente tinha problemas na forma de ver, dai ter escolhidos as
mulheres erradas, que só trouxeram amargura aos seus pais (Gen 26:34-35). Já ao
contrário de Isaque, Jacó não se deixa levar pela visão de seu filho José, quando
adota os seus dois filhos (Gen 48:5), mas abençoa Efrain (o menor), ao invés de
Manassés, e assim dá a primogenitura da sua posteridade ao menor, no lugar de
Rúben (v 13-16). Aconteceu o seguinte no acto da bênção:
AS CINCO HERANÇAS

Quando José viu seu pai colocar a mão direita sobre a cabeça de Efraim, não
gostou; por isso pegou a mão do pai, a fim de mudá-la da cabeça de Efraim
para a de Manassés, e lhe disse: "Não, meu pai, este aqui é o mais velho; ponha
a mão direita sobre a cabeça dele". Mas seu pai recusou-se e respondeu: "Eu
sei, meu filho, eu sei. Ele também se tornará um povo, também será grande.
Apesar disso, seu irmão mais novo será maior do que ele, e seus descendentes
se tornarão muitos povos". Assim, Jacó os abençoou naquele dia, dizendo: "O
povo de Israel usará os seus nomes para abençoar uns aos outros: Que Deus
faça a você como fez a Efraim e a Manassés! " E colocou Efraim à frente de
Manassés. (Gen 48:17-20/NVI)

José viu de outra forma, mas Jacó não foi guiado por nenhum critério carnal,
mesmo tendo os seus olhos naturais enfraquecidos (v 10), a sua visão espiritual
continuava robusta. Em suma, as escrituras nos oferecem outros exemplos de
pessoas cuja a forma de ver era diferente da forma de ver de Deus, Jonas em relação
ao povo de Níneve, os filhos de Jacó em relação ao menor José (Gen 37:5), o servo
de Eliseu (II Reis 6:16-17).
O julgamento de um filho de Deus deve ser segundo o Espírito de Deus, por isso
é que de Jesus Cristo se profetizou: “ Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas
raízes, um renovo. Repousará sobre ele o Espírito do SENHOR, o Espírito de
sabedoria e de entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de
conhecimento e de temor do SENHOR. Deleitar-se-á no temor do SENHOR; não
julgará segundo a vista dos seus olhos, nem repreenderá segundo o ouvir dos seus
ouvidos” (Isaías 11:1-3).
Talvez seja agora o momento de refletirmos sobre a nossa paternidade, se os filhos
do Diabo são aqueles que vivem segundo os princípios do Diabo, quem serão os
filhos de Deus? Será que a nossa vida concorda com a visão divina?
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS
3.

A GRAÇA PARA O BASTARDO

O poder das palavras nunca pode ser sobrestimado, sobretudo as palavras


revestidas de veneno. As ofensas de alguém que amamos são golpes
desferidos no âmago da nossa alma, e podem envenenar a paz, a amizade e o
relacionamento de forma irreversível. Guardar no coração as feridas é uma opção,
esta opção trás consigo a miséria de conviver com o pus do rancor, que como a
deusa da morte (dos filmes) suga a vida e a cor de tudo que toca. As mãos desta
deusa, por mais suave e sedutora que pareçam, ao acariciarem uma rosa murcham-
na em poucos segundos, sua cor desvanece dando lugar a uma negritude
moribunda, enrugada e no lugar do encanto do seu perfume que atraía abelhas
rebenta uma podridão peculiar e, os vermes irrompem havidos de devorarem a
sequidão das pétalas desgraçadas.
Uma outra opção e a melhor, é seguir o caminho do perdão. Nelson tinha que
escolher qual das opções abraçar, se pagaria insultos e ofensas com a mesma moeda
ou com a moeda do perdão. Se deixava a comiseração substituir o trono do perdão
e do amor, ou se deixava Deus usar da oportunidade para quebrar o orgulho e a
auto-justiça próprios da carne. Foi em meio a estas duas opções que o filho da dona
Cremilda se viu dobrar os seus joelhos, olhos mergulhados em lágrimas e coração
suplicando por graça divina. Onde vai o coração de um filho de Deus se não bater as
portas do seu Pai, e como um dependente esperar o bálsamo e o medicamento
capaz de guardar o seu coração de qualquer tipo de envenenamento?
Outra dura verdade é que, apesar da natureza das palavras (que ora podem ser
brutais, ora suaves), aquilo que se diz deve ser levado em consideração pelo mérito
da verdade e não vomitado pelo simples dissabor emocional que as mesmas podem
causar. A verdade é mais dura que o diamante, e ela não se adaptará nunca aos
nossos sentimentos, na verdade é o contrário que deve acontecer (quando
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

possível). Nelson é um filho ilegítimo, para todos os efeitos naturais e, por tanto,
um bastardo. Sua mãe, embora de modo frio, tornou esta verdade explícita e o
chamou a um choque de realidade. Naturalmente, Nelson tinha consciência de que
não era fruto de um matrimónio, e sim de um affair, mas este tipo de verdade não é
daquele que a pessoa fala abertamente, tudo se faz para que fique no mundo das
verdades silenciosas, do implícito.
Nossa origem natural joga um papel incontornável na formação e caracterização
da nossa identidade, seja ela individual como social. Não é por acaso que temos os
nomes dos nossos pais em nossos bilhetes de identidade. Na verdade, mesmo que
os nomes dos nossos pais não constassem dos nossos bilhetes a nossa percepção de
nós mesmo e do mundo continuaria, até certo ponto, influenciada pelos factos
concernentes a nossa origem. Nelson foi desafiado a olhar profundamente para sua
própria identidade. Encarar o seu estado de bastardo de forma aberta abriu a porta
para ele encontrar a sua legítima filiação em Deus.
Ser filho de Deus é um assunto de identidade, suas implicações são profundas,
na medida que embora muitos a nível natural não sejam bastardos, o mesmo não se
possa afirmar ao nível espiritual. Doutro lado, os bastardos naturais podem ser
filhos legítimos de Deus. Em poucas palavras, em Deus a diferença natural entre os
filhos legítimos e os ilegítimos desaparece, e a única legitimidade que passa a
contar é em relação a filiação divina, que é pela fé:
Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, para que a promessa pela fé
em Jesus Cristo fosse dada aos crentes. Mas, antes que a fé viesse, estávamos
guardados debaixo da lei e encerrados para aquela fé que se havia de
manifestar. De maneira que a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo,
para que, pela fé, fôssemos justificados. Mas, depois que a fé veio, já não
estamos debaixo de aio. Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo
Jesus; porque todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de
Cristo. Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho
nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus. E, se sois de Cristo,
então, sois descendência de Abraão e herdeiros conforme a promessa.(Gal
3:22-29)
A GRAÇA PARA O BASTARDO

Em Jesus somos feitos filhos legítimos de Deus, chamados para sermos pobres
de espírito (Mat 5:3) e não miseráveis (I Cor 5:19). Só rejeitando a fé, tirando os
nossos olhos da esperança da ressurreição (Rom 5:1-5) é que escolhemos a miséria.
O rancor é a miséria. O que o discípulo deve guardar em seu interior é a paz que
transcende todo entendimento (Efésios 4:7), a paz que o mundo não produz (João
14:27). O perdão é a forma como nos reconciliamos com Deus e a mesma que deve
nos reconciliar com o próximo, como vimos em Estêvão que mesmo sendo
apedrejado orou a favor dos que tiraram a sua vida dizendo: “ Senhor, não lhes
imputes este pecado” (Actos 7:60), seguindo o exemplo de nosso Senhor que na
cruz orou: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem ” (Luc 23:34). Só um
bastardo segue o caminho de Cain, guardando rancor e acaba sujando as suas mãos
com o sangue do próximo.
Foi na ministração do Espírito Santo e através da meditação das escrituras que
Nelson percebeu que precisa render-se mais ao Senhor e, que precisava se
submeter ao processo de disciplina divina que todo o filho de Deus é submetido,
para ser aperfeiçoado (Heb 5:8, 12:5-8). É diante de insultos e ofensas profundas
que nós descobrimos até onde vai o nosso orgulho e a nossa auto-justiça. Se até
Jesus Cristo foi despido e torturado até a morte e mesmo assim não amaldiçoou,
quem somos nós para acharmos que não devemos passar por um caminho
semelhante?
Foi quando Nelson percebeu esta verdade e se arrependeu de pensar diferente
que a cura e a graça de Deus inundou o seu coração, qual diluvio de luzes ao por do
sol, depois de uma noite longa, onde a escuridão era tão espessa quanto a tristeza e
a decepção. Ser decepcionado pelos familiares é parte da disciplina divina, Jesus foi
rejeitado pelos seus próprio irmãos (João 1:11/João 7:3-5), e Nelson também
precisava aprender as palavras que nos exortam dizendo: “ Se alguém vem a mim e
ama o seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos e irmãs, e até sua
própria vida mais do que a mim, não pode ser meu discípulo. E aquele que não
carrega sua cruz e não me segue não pode ser meu discípulo.” (Luc 14:26-27/NVI)
Nos dois capítulos anteriores buscamos apresentar, sobretudo, a natureza ou as
características da vida do bastardo. É nosso objectivo neste capítulo propormos a
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

visão divina como a única solução para o problema do bastardo. Aqui nos
debruçaremos em apresentar a forma como Jesus faz de bastardos filhos de Deus.
Entretanto, antes de mordermos o osso desta secção do livro se faz relevante
abordar sobre um detalhe que não pode passar despercebido se quisermos ter uma
compreensão mais robusta deste capítulo e, na verdade, do livro em sua íntegra.

A RECONCILIAÇÃO É CENTRADA EM DEUS


No dia 24 de Setembro nasceu a nossa filha Akemi, e tem sido uma viagem, um
desafio, uma escola e não sei mais como descrever este processo de tentar falar com
quem não fala ainda, tentar descobrir o que se passa na mente de uma bebé quando
ela chora sem a mínima pista da razão. A minha esposa é que parece ter uma lista de
possíveis razões pelos choros da menina, em alguns casos ela realmente acerta, mas
em outros eu fico convicto que fica na esfera das especulações maternais.

Tem momentos que ela chora e só cala depois de ser posta a mamar, e tão logo
termina começam as cólicas que infelizmente são tão dolorosas que a menina por
vezes grita. Entretanto, tem outros momentos em que a bebé não quer ficar no colo
e começa a chorar, a pessoa depois de levantar com ela e começar a passear pela
casa ela imediatamente para de chorar e começa a manifestar um semblante de
satisfação. Mas, depois de um tempo a pessoa se cansa de andar para frente e para
trás com a menina, e dá a necessidade de voltar a sentar, e não tarda que os choros
voltam. Além dos choros por não querer estar parada no colo, ela também chora,
por vezes, porque quer estar posicionada de um jeito diferente, de barriga para
baixo nas mãos, nos ombros, sentada ao peito virada para frente etc. Assim os
caprichos da nossa filha aumenta e nos surpreende a cada semana que surge.

Estes choros e gritos são totalmente normais para uma criatura tão inocente
quanto uma filha recém nascida, mas convenhamos que por vezes como pais temos
outras preocupações a atender, ou simplesmente a necessidade de descansar e
torna-se um dilema buscar formas de acalmar a menina. Ela é linda, mas nos
momentos em que precisamos dela calma parece que fica mais linda ainda quando
ela pega um bom sono. A inocência ou a infantilidade de uma criança transpira a
ideia de que ela imagina que o mundo gira em torno dela. Para a bebé o centro do
A GRAÇA PARA O BASTARDO

universo é ela; os pais não têm nada mais a atender do que os desejos dela. De
modo semelhante podemos interpretar o evangelho e, assim temos interpretado na
maioria das vezes; pensamos que tudo gira em torno de nós, que Deus tem como
prioridade a salvação dos homens, e no caso extremo a salvação de uns poucos que
ele escolheu a dedo.
Quando falamos de Jesus geralmente nos restringimos a falar que: “Jesus se
entregou na cruz para nos salvar”, que: “somos salvos pela graça” ou ainda “creia
em Jesus para ser salvo”. Estas são verdades que não temos como negar, mas não
representam toda a verdade. Há um foco antropocêntrico, “nos salvar” “somos
salvos” “creia para ser salvo” como se o centro do universo fossemos o homem,
quando na verdade é Deus. NT Wright resume esta verdade quando nos diz: “Deus
está a nos salvar do naufrágio do mundo, não para que possamos relaxar em sua
companhia, mas para que possamos ser parte do seu plano para refazer o mundo.
Nós estamos em orbita a volta de Deus e seus propósitos, não o contrário” 5.
Com as palavras do paragrafo precedente queremos dizer que a visão mais
acertada da solução que Deus trás para a condição do bastardo transcende o
bastardo. Ao invés de olharmos para cada proposta divina como tendo o objectivo
único de nos dar felicidade e garantir a nossa salvação, devemos, ao contrário,
perceber que Deus nos quer restaurar e nos enquadrar em seu projeto de criar um
universo segundo a sua boa e perfeita vontade (Rom 12:2). Isso significa que a
restauração de Deus tem um fim superior ao homem, não obstante envolvendo o
homem. Assim devemos olhar para tudo que Deus está disposto a fazer através de
Jesus em cada um de nós; somos salvos não somente para conhecer a Deus, mas
também para ministrar para Deus, na medida que refletirmos a imagem de Deus no
mundo; o filho é o reflexo de seu pai (João 8:44, 12:45).
Desta feita, os filhos de Deus têm uma essência missionária, saíram do pó e
ganharam forma e vida para dominar, lavrar e guardar (ministrar) o mundo. É nesta
senda que Jesus diz: “Vós sois o sal da terra; e, se o sal for insípido, com que se há de
salgar? Para nada mais presta, senão para se lançar fora e ser pisado pelos homens.
Vós sois a luz do mundo; não se pode esconder uma cidade edificada sobre um

5
Wright, N.T.2009.Justification: God´s Plan and Paul’s Vision.Illinois:IVP Academic, p.24.
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

monte; nem se acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas, no velador, e


dá luz a todos que estão na casa ” (Mat 5:13-15). E nas palavras de Paulo
encontramos o mesmo eco, na medida que é enfatizada o propósito de todos
alcançarem a unidade da fé, a maturidade (perfeição) e a plenitude de Cristo:
Por isso é que foi dito: "Quando ele subiu em triunfo às alturas, levou cativo
muitos prisioneiros, e deu dons aos homens". ( Que significa "ele subiu", senão
que também descera às profundezas da terra? Aquele que desceu é o mesmo
que subiu acima de todos os céus, a fim de encher todas as coisas. ) E ele
designou alguns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas,
e outros para pastores e mestres, com o fim de preparar os santos para a obra
do ministério, para que o corpo de Cristo seja edificado, até que todos
alcancemos a unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, e
cheguemos à maturidade, atingindo a medida da plenitude de Cristo. (Efe
4:8-13)

Esta visão divina é também descrita, ainda no mesmo livro, quando Paula
converge tudo em Jesus Cristo e nos diz que: “Em quem temos a redenção pelo seu
sangue, a remissão das ofensas, segundo as riquezas da sua graça, que Ele tornou
abundante para connosco em toda a sabedoria e prudência, descobrindo-nos o
mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito, que propusera em si mesmo,
de tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos
tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra” (1:7-10), no verso
12 ele acrescenta: “com o fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os que
primeiro esperamos em Cristo”. Assim como a honra dos filhos procede do pai
(Sira 3:10-12), a glória de Deus se reflete em seus filhos. Esta visão gloriosa é aquilo
que Pedro vai nos resumir como participar da natureza divina: “Visto como o seu
divino poder nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade, pelo conhecimento
daquele que nos chamou por sua glória e virtude, pelas quais ele nos tem dado
grandíssimas e preciosas promessas, para que por elas fiqueis participantes da
natureza divina, havendo escapado da corrupção, que, pela concupiscência, há no
mundo” (II Ped 1:3-4).
A GRAÇA PARA O BASTARDO

Não é coincidência que a restauração divina envolve não somente as coisas que
estão na terra, mas mas também as que estão nos céus. É assim que nos lemos que:
“...a ardente expectação da criatura espera a manifestação dos filhos de Deus.
Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que
a sujeitou, na esperança de que também a mesma criatura será libertada da servidão
da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que
toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora. E não só ela,
mas nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós
mesmos, esperando a adoção, a saber, a redenção do nosso corpo” (Rom 8:20-23).
Deus quer recriar o mundo em Cristo, e isto passará pela dissipação da sujeição da
vaidade, a eliminação da morte e a liberdade da glória dos filhos de Deus; “...para
que, agora, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos
principados e potestades nos céus, segundo o eterno propósito que fez em Cristo
Jesus, nosso Senhor” (Efe 3:10-11).
Quando vemos Adão no Jardim não podemos deixar de perceber o seu papel
ministerial, ele foi criado e posto lá pela graça de Deus, e para refletir a imagem do
seu criador. O foco de Génesis 2 é mostrar Deus como Senhor e Pai de Adão, e
consequentemente Adão como filho e servo de Deus. A felicidade de Adão é
apresentada como contingencial a sua dependência a Deus, de tal forma que se
torna óbvio que Deus é o centro de todo relato de Génesis (e da bíblia) e é ele o
ofendido no drama da existência humana, manchada pela transgressão e rebelião
de Adão. Assim, qualquer imagem acertada do homem restaurado tem de ter como
princípio Deus como centro, e seu plano original e seus propósitos acima da visão e
aspiração humana. Paulo vê isso condensado em Jesus Cristo:
O qual é imagem do Deus invisível, o primogénito de toda a criação; porque
nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e
invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam
potestades; tudo foi criado por ele e para ele. E ele é antes de todas as coisas, e
todas as coisas subsistem por ele. E ele é a cabeça do corpo da igreja; é o
princípio e o primogénito dentre os mortos, para que em tudo tenha a
preeminência, porque foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele
habitasse e que, havendo por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra
como as que estão nos céus. (Col 1:15-20)

Querendo nos dizer que a restauração do bastardo não é para o bastardo mas
para Cristo e Cristo para Deus (I Cor 3:21-23). Um dos ateus mais famosos foi o
Inglês Christopher Hitchens, em muitas das suas comunicações ele começava por
perguntar: “Nomeie para mim qualquer coisa que um cristão pode fazer e um ateu
não pode fazer?” E recentemente um pastor americano 6 decidiu responder,
dizendo que nenhum ateu pode amar a Deus, e isto é a maior realização de um ser
humano; poder amar ao seu criador. Isto é sem dúvidas um assunto digno de muita
reflexão, por quanto Jesus citando o VT nos diz que “…O primeiro de todos os
mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás,
pois, ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o
teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento. E o
segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há
outro mandamento maior do que estes ” (Mar 12:19-31). Deus deve ter a
proeminência em tudo, pois ele é o criador de tudo.
Como um bebé não conhece inicialmente as responsabilidades dos seus pais, e
se comporta como se fosse o sol, no qual os planetas se movem em suas órbitas,
assim também é a visão inicial de muitos de nós. Precisamos prosseguir e crescer no
conhecimento de Deus (Heb 6:1/Hos 6:3), assim como ao passar do tempo
deixamos de ser crianças e entendemos que, afinal de contas além de nós os nossos
pais tinham outros filhos e negócios para atender. Na verdade tão logo
amadurecemos nós mesmo abraçamos responsabilidades, e aqueles que entre nós
se negaram a abraçar as responsabilidades de adultos acabam sendo os marginais
da sociedade, ou simplesmente os egoístas que aborrecem e assumem o encargo de
serem os carrascos dos outros. A vida é muito maior do que o homem, é a graça de
Deus que ao abraçarmos trás consigo uma responsabilidade cósmica; é o reino do
sacerdócio santo.

6
Mike Winger, pastor da Igreja Hosanna Christian Fellowship em Bellflower, California-EUA.
A GRAÇA PARA O BASTARDO

Como os rios, que por maiores que sejam, acabam desembocando no mar, é com
esta bagagem de pensamentos que os apóstolos vão concluir e dizer: “ Quando eu
era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino,
mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque,
agora, vemos por espelho em enigma; mas, então, veremos face a face; agora,
conheço em parte, mas, então, conhecerei como também sou conhecido. ” (I Cor
13.11-12) e ainda: “Vede quão grande caridade nos tem concedido o Pai: que
fôssemos chamados filhos de Deus. Por isso, o mundo não nos conhece, porque
não conhece a ele. Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifesto o
que havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos
semelhantes a ele; porque assim como é o veremos.” (I João 3:1-2)
Sair da condição de bastardo para filho de Deus trás consigo responsabilidades
sacerdotais, não somente futuras, mas presentes. Se de um lado reinaremos com
Jesus (II Timóteo 2:12) doutro lado o reino em Cristo é presente (Efésios 1:3), se de
um lado brilharemos no reino do nosso Pai (Mateus 13:43), noutro somos
chamados a brilhar no presente século (Fil 2:15/Mat 5:16). A imagem do jardim do
Eden como o espaço divino, de comunhão com Deus e com os membros da sua
corte celestial (Daniel 4:17/Salmos 89:5-7) é restaurada e ultrapassada por uma
nova realidade; se o jardim do Eden era irrigada por quatro rios, agora do novo
homem fluem rios de água viva (Efésios 2:15, 4:24/II Cor 5:17/Colossenses 3:10)
(que é uma imagem do Espírito Santo (João 7:37-39).
As palavras de Jesus acima citadas são uma interpretação que Jesus faz de
Ezequiel 47:1-12, que é uma visão de Ezequiel relativa a águas saindo do templo, e
isto em uma primeira instância pode parecer muito estranha, mas o NT nos trás
uma reinterpretação do espaço divino ou templo. O espaço divino agora são os
filhos de Deus, tanto coletivamente (Efésios 2:19-22/I Pedro 2:5/II Coríntios 6:16)
como individualmente (I Cor 3:16, 6:19). Mas, ao considerarmos todas estas
promessas voltamos a realidade que nos preocupa, isto é, o sacerdócio santo é
restrito aos filhos de Deus e não aos bastardos. Se os bastardos são aqueles que
vivem segundo a disciplina ou exemplo contrário ao divino, os filhos são aqueles
que vivem segundo os desígnios divinos:
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

E já vos esquecestes da exortação que argumenta convosco como filhos: Filho


meu, não desprezes a correção do Senhor e não desmaies quando, por ele,
fores repreendido; porque o Senhor corrige o que ama e açoita a qualquer que
recebe por filho. Se suportais a correção, Deus vos trata como filhos; porque
que filho há a quem o pai não corrija? Mas, se estais sem disciplina, da qual
todos são feitos participantes, sois, então, bastardos e não filhos. (Heb 12:5-8)

É neste ponto onde a bondade de Deus se revela para nós constrangedor, visto
que no seu amor (I João 4:19/II Cor 5:14) e eterno propósito decidiu nos
reconciliar consigo mesmo através do seu filho, de quem se diz: “Porque, na
verdade, ele não tomou os anjos, mas tomou a descendência de Abraão. Pelo que
convinha que, em tudo, fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel
sumo sacerdote naquilo que é de Deus, para expiar os pecados do povo. Porque,
naquilo que ele mesmo, sendo tentado, padeceu, pode socorrer aos que são
tentados.” (Heb 2:17-18) A boa-nova é que os bastardos podem agora não somente
voltar voltar para o Eden, mas serem feitos o próprio espaço divino, ou seja, podem
ser feitos filhos de Deus (João 1:12). Isso não é por causa dos planetas (Efe 2:8), mas
por causa do verdadeiro sol; o Pai das luzes (Tiago 1:17). Há possibilidade de
reconciliação:
Mas Deus prova o seu amor para connosco em que Cristo morreu por nós,
sendo nós ainda pecadores. Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo
seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque, se nós, sendo inimigos,
fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, estando já
reconciliados, seremos salvos pela sua vida. E não somente isto, mas também
nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora
alcançamos a reconciliação. (Rom 5:8-11)

É o amor de Deus a causa da reconciliação, e este amor se manifesta em Jesus


Cristo, que abertamente confessou que veio para salvar os bastardos quando nos
diz: “...Não necessitam de médico os que estão sãos, mas sim os que estão
enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas sim os pecadores, ao arrependimento.”
(Luc 5:31-32) Isso quer dizer que Jesus veio chamar Adão de volta para o jardim, e
não somente Adão mas o homicida Cain também. Entretanto, se a reconciliação é
A GRAÇA PARA O BASTARDO

teocêntrica, os seus critérios não podem ser antropocêntricos. É nesta senda que
buscaremos elaborar, na medida que Deus nos permitir, sobre a forma como em
Cristo Deus definiu os trames de reconciliação e a resultante filiação divina.
Ao falarmos de reconciliação é também fundamental, para além do facto de ser
teocêntrica, dizer que o lar é o seu foco. Porque seria o lar o foco da reconciliação
divina? Porque Deus considera os lares humanos a sua maior prioridade? Não,
porque Deus é o Pai dos espíritos (Heb 12:9) e todo pai deseja ter um lar
harmonioso; um lar divino é a imagem que deve surgir na medida que entendemos
a narrativa bíblica de Génesis até Apocalipse. A vontade do Pai é ter uma família
que junta tanto os homens da terra, como os seres celestiais dos céus, em perfeita
harmonia e paz; é assim que a vontade de Deus é feita tanto na terra como no céu
(Mat 6:10). É a partir deste cabouco bem fundo (Luc 6:48) onde se solidifica a
fundamentação da harmonia e da paz do lar humano. O homem em Cristo é aquele
através de quem Deus opera a edificação de uma família voltada para glória de
Deus.
Ora, quando se diz “uma família voltada para glória de Deus” é porque o
problema da humanidade pode ser resumida na imagem de um filho que decidiu
dar as costas ao seu pai em nome de suas taras e aspirações egoístas. As palavras de
Jeremias, sobre a rebelião de Israel captam bem essa imagem quando ecoam: “E
viraram para mim as costas e não o rosto; ainda que eu os ensinava, madrugando e
ensinando-os, eles não deram ouvidos para receberem o ensino” (Jer 32:33). Essa
condição de estar voltado as taras e aspirações egoístas vai explicar a situação
disfuncional familiar, não somente na família humana, mas primeiro e
essencialmente na família cósmica. Os céus e a terra estão em desacordo, a
rebelião, com um cancro enferma a criação; um universo perfeito não pode ser um
habitat natural para o pecado.
A verdade é que a humanidade não pode ser uma família coesa e harmoniosa
sem a inclusão do seu próprio Pai. É exatamente na desconsideração desta verdade
onde nascem os bastardos, é aqui onde o Dragão introduziu o desequilíbrio
cósmico quando induziu a humanidade ao pecado. Assim, vemos a queda em
Génesis 3, o pecado introduzido no lar, resultando na expulsão da humanidade do
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

espaço de comunhão divina; onde o céu e a terra estavam casados (jardim).


Depois do sucedido em Génesis 3, vemos o derramamento de sangue no capítulo a
seguir, onde um homem assassina covardemente o seu irmão.
Uma outra queda da humanidade e da terra (envolveu os animais) é vista em
Génesis 6 onde se introduz uma corrupção extraordinária, quando os “filhos de
Deus”7se envolveram e reproduziram com as filhas dos homens, tendo a
imaginação do povo se tornado má e a sua maldade se multiplicado ao ponto de
Deus ser forçado a enviar um dilúvio para pôr cobro a situação que se alastrava. E
em Génesis 11 vemos a humanidade inflamada de orgulho, decidida em fazer para
si um nome e confiantes em si próprios começam a erguer Babel, e Deus de novo
intervém e desfaz o projeto que eles tinham; eis a terceira queda. A missão de
Cristo é desfazer a queda da criação.
Desta feita, a solução definitiva para resolver o problema do pecado no mundo e
a restauração da humanidade e da criação, Deus decide concentrar em Jesus o
Cristo (Efe 1:9-10). A reconciliação com o filho rebelde que deu as costas ao seu
Criador em Génesis 3, 6 e 11, bem como a restauração da criação ao seu fim ou
propósito original ganha o seu corpo no corpo ressurrecto de Jesus. É Cristo a
substância do qual o VT era senão mera sombra (Heb 10:1), é ele o cumprimento de
todas as promessas da aliança que Deus havia feito, especialmente, a Abraão (Gen
12, 15, 17 e 22), tal como Paulo explica em Gálatas 3 e Romanos 4, o homem pela fé
em Jesus Cristo é justificado por Deus.
Sendo que o justo não necessita de justificação, então Jesus Cristo é o único
caminho pelo qual os injustos, errantes, ou simplesmente, bastardos podem voltar
a comunhão com o seu Criador. Assim, pela fé, Jesus converte bastardos em filhos.
Nós somos justificados em Jesus, fora dele, nós não somos o que Deus pretendeu
que fossemos, o sentido final de se ser humano é ser como Cristo (Efe 4:13); do
modo que as letras da palavra amor não definem o amor, para Deus o significado
verdadeiro de ser humano se restringe em Jesus.
7
Termo genérico para seres celestiais ou membros do exército dos céus (comparar com Jó 1:6, 2:1, 38:4-7/Dan
3:25/I Reis 22:19-23/Luc 2:13).
A GRAÇA PARA O BASTARDO

A distância entre o homem e Deus é o reflexo da nossa alienação; alienamo-nos


do nosso Criador, como consequência acabamos alienados de nós mesmos e dos
outros. O filho que deu as costas ao seu Pai, e se rebelou dos princípios do seu
verdadeiro lar, não encontrará nunca a verdadeira paz, pois, o pecado nunca
produzirá a paz ou o descanso para aqueles que abraçam o Diabo como pai. Há
uma parábola que se faz oportuna olharmos a seguir; que capta de forma sucinta a
situação da humanidade e o princípio da reconciliação com Deus.

O FILHO PERDIDO
Em uma ocasião uma multidão se aproximou de Jesus para o ouvir, na multidão se
encontravam publicanos e pecadores, e os fariseus e os escribas começaram a
murmurar, tal como os seus pais no deserto murmuraram contra Moisés (Num
14:2), desta vez dizendo: “ Este recebe pecadores, e come com eles ” (ver Luc 6:27-
32) pelo que o Mestre em resposta, em um estilo bem judaico lhes propôs uma
série de parábolas, a primeira deste capítulo é sobre a ovelha perdida (ver 4-7), a
segunda é sobre a moeda perdida (ver 8-10) e a outra é a famosa parábola do filho
pródigo, que ao meu ver seria mais corretamente denominado por parábola do
filho perdido, a semelhança das duas anteriores, que seguem o mesmo tema
relativo ao resgate de algo perdido. O foco desta parábola não é o esbanjar da
herança de um filho, mas a perdição ou alienação de um filho, que terá como um
dos seus efeitos o esbanjar da sua herança.

Nas parábolas da ovelha perdida Jesus nos diz que “ haverá alegria no céu por um
pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não
necessitam de arrependimento” (ver 7), e na parábola da moeda perdida ele diz que
“há alegria diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende ” (ver 10).
Duas importantes ilações podemos tirar aqui, a primeira é que o arrependimento
para Deus ou mudança de consciência dos pecadores é o que Jesus veio produzir (II
Cor 7:9-10). A segunda ilação é que este arrependimento afecta o céu e os anjos de
Deus, trazendo alegria a estes. Querendo nos dizer que enquanto os homens
caminham alienados de Deus os céus (os seres celestiais) não experimentam a
plenitude da felicidade que os mesmos foram criados para desfrutar. É assim tão
fina a linha que separa a terra do céu, e só em Jesus encontramos a reconciliação
cósmica.
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Em paralelo a estas duas imagens de reconciliação, a parábola do filho perdido


de alguma forma singular acaba por captar a nossa situação. Isto possivelmente se
deve ao fato de a imagem da humanidade como filho e não moeda ou ovelha ser a
mais harmonizada com a verdade, sobretudo quando temos Génesis de 1 a 11 em
consideração. Como abordado anteriormente, a humanidade virou as costas a Deus
seu legitimo pai, e esta realidade é bem ilustrada no filho perdido.
Primeiro vemos que o filho decidiu ser dono do seu próprio nariz; não queria ter
o jugo de Deus sobre a sua cerviz, queria ser o seu próprio Deus; queria ser como
Deus (Gen 3:5-6). É isto que transpira dos versos que explicam que: “ E disse: Um
certo homem tinha dois filhos; e o mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte
dos bens que me pertence. E ele repartiu por eles a fazenda ” (ver 11-12). E vemos
aqui o caracter bondoso deste pai, que aceita repartir os seus bens com um filho
rebelde; Deus deixa os homens seguirem os desígnios dos seus corações, pena que
não temos aprendido com o resultado da nossa rebelião.
O coração rebelde pertence ao néscio, pois o princípio da sabedoria é o temor a
Deus (Pro 9:10). Quem plantou o jardim e pós em seu interior as árvores do
conhecimento do bem e do mal, e a da vida é o Pai Celestial, virar as costas a ele, e
seguir o caminho da rebelião não pode significar algo inferior a abraçar a morte.
Por isso lemos que: “E, poucos dias depois, o filho mais novo, ajuntando tudo,
partiu para uma terra longínqua, e ali desperdiçou os seus bens, vivendo
dissolutamente. E, havendo ele gastado tudo, houve naquela terra uma grande
fome, e começou a padecer necessidades” (ver 13-14). Fora do Éden a morte reina
sobre os homens, e chega cedo ornamentada de dificuldades de sobrevivência (Gen
3:17-19): “Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua
alma? Ou que dará o homem em recompensa da sua alma?” (Mat 16:26).
A vida do homem fora da vontade de Deus é aquela onde o senhor passa a ser o
pecado (João 8:33), dai vermos que o filho perdido: “… foi, e chegou-se a um dos
cidadãos daquela terra, o qual o mandou para os seus campos, a apascentar porcos.
E desejava encher o seu estômago com as bolotas que os porcos comiam, e
A GRAÇA PARA O BASTARDO

ninguém lhe dava nada” (ver 15-16). Aqui vemos que o pecado desumaniza o
homem, destrói a sua identidade e lhe faz baixar em todos os sentidos até o
animalizar. Como a vida dos animais domésticos a nossa volta chega a ser mais feliz
que a nossa, como chegamos a se comportar com uma brutalidade selvática contra
o semelhante. A satisfação não se encontra naquilo que não dá vida, é Deus quem
sacia a nossa sede existencial, sua voz sussurra no coração dos homens:
O vós, todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro,
vinde, comprai, e comei; sim, vinde, comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho
e leite. Por que gastais o dinheiro naquilo que não é pão? E o produto do vosso
trabalho naquilo que não pode satisfazer? Ouvi-me atentamente, e comei o
que é bom, e a vossa alma se deleite com a gordura. Inclinai os vossos ouvidos,
e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá; porque convosco farei uma aliança
perpétua, dando-vos as firmes beneficências de Davi. (Isa 55:1-3)

O evangelho é a voz do Espírito de Deus persuadindo o homem a voltar para o


Éden, no lugar de comunhão com Deus. Quando mudamos a disposição do nosso
coração, rejeitando a rebelião e abraçando a submissão aos caminhos de Deus, aí
sim deixamos o caminho do suicídio e nos voltamos ao nosso legitimo pai: “ E,
tornando em si, disse: Quantos jornaleiros de meu pai têm abundância de pão, e eu
aqui pereço de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com meu pai, e dir-lhe-ei: Pai,
pequei contra o céu e perante ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; faze-me
como um dos teus jornaleiros” (ver 15-19).
Jesus compara a situação do pecador como a de quem morre de fome, tendo um
pai rico, e o arrependimento como o “tornar em si”; o despertar da consciência a
realidade da nossa verdadeira identidade. Deve o pecador se lembrar que é criatura
de Deus, que o seu criador é o criador do universo e dono de tudo, mas acima do
poder deste Pai, devemos olhar para o seu amor (I João 4:16-19); o seu caracter. Ele
é misericordioso (II Ped 3:9), ele trata bem os seus servos, não os serve comida de
porcos.
Quando o perdido entender que Deus é misericordioso e disponível para
perdoar, só assim buscará a reconciliação com o Pai, disponível em Jesus Cristo. Daí
lermos que: “E, levantando-se, foi para seu pai; e, quando ainda estava longe, viu-o
seu pai, e se moveu de íntima compaixão e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e o
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

beijou. E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e perante ti, e já não sou digno
de ser chamado teu filho. Mas o pai disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor
roupa; e vesti-lho, e ponde-lhe um anel na mão, e alparcas nos pés; e trazei o
bezerro cevado, e matai-o; e comamos, e alegremo-nos; porque este meu filho
estava morto, e reviveu, tinha-se perdido, e foi achado. E começaram a alegrar-se ”
(ver 20-24).
A prova da misericórdia e do impecável carácter de Deus é notável ao vermos
como este Pai (o céu) se alegra com o arrependimento de seu filho, e o recebe com
festa e grande alegria (os anjos). A verdade é que quem veste verdadeiramente o
filho é o Pai (Gen 3:21), longe de Deus todas as nossas tentativas humanas de
conceptualizar a nossa vida desembocam em morte, e sem nos revestirmos de
Cristo continuamos nus (Gal 3:27/Col 3:10). Verdadeiramente não merecemos ser
vestidos (Apoc 7:14, 16:15) e recebidos como filhos, mas o amor de Deus é a sua
resposta para connosco, ao ponto de pôr um anel em nossas mãos, sinal de
pertença a sua família e consequentemente de autoridade (Efe 2:8).
Fora da casa de seu pai o filho perdido estava igual a um morto (Efe 2:1-5);
alienados de Deus somos servos do pecado, e justamente condenados a morte, visto
que Deus é a fonte da vida (João 17:3). Entretanto, enquanto alguns filhos se
perdem indo atrás do pecado, existem aqueles bastardos perto do Pai, que ouvem
as palavras do Pai mas não as interiorizam, convivem com o carácter benevolente e
gracioso do Pai mas não reproduzem em si mesmos o mesmo carácter. Estes são os
que criticavam a Jesus dizendo: “Este recebe pecadores, e come com eles”.
Jesus descreve aqueles críticos que eram justos segundo os seus próprios olhos
(Luc 16:15), como o “filho mais velho”. Estes por vezes são os que se passam de
santos e perfeitos, mas bem no interior de seus corações não promovem a salvação
dos outros. Sobre estes Jesus diz: “Mas ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois
que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós entrais nem deixais entrar aos
que estão entrando” (Mat 23:13). A parábola continua e explica o mau carácter do
primogénito:
A GRAÇA PARA O BASTARDO

E o seu filho mais velho estava no campo; e quando veio, e chegou perto de
casa, ouviu a música e as danças. E, chamando um dos servos, perguntou-lhe
que era aquilo. E ele lhe disse: Veio teu irmão; e teu pai matou o bezerro
cevado, porque o recebeu são e salvo. Mas ele se indignou, e não queria entrar.
E saindo o pai, instava com ele. Mas, respondendo ele, disse ao pai: Eis que te
sirvo há tantos anos, sem nunca transgredir o teu mandamento, e nunca me
deste um cabrito para alegrar-me com os meus amigos; vindo, porém, este teu
filho, que desperdiçou os teus bens com as meretrizes, mataste-lhe o bezerro
cevado. E ele lhe disse: Filho, tu sempre estás comigo, e todas as minhas coisas
são tuas; mas era justo alegrarmo-nos e folgarmos, porque este teu irmão
estava morto, e reviveu; e tinha-se perdido, e achou-se. (Luc 15:25-32)

O primogénito não recebeu a boa-nova da ressurreição de seu irmão mais novo,


isto porque o carácter e a mentalidade do seu pai não haviam sido reproduzidos
nele. O filho verdadeiro não é senão aquele que reproduz em si a imagem de seu
pai. É por Jesus notar nos seus críticos o carácter do Diabo, que ele lhes chamou de
filhos do Diabo (João 8:44). O filho mais velho não era nada igual ao seu pai sua
vontade era má, assim como os fariseus e escribas que não se alegravam em ver
Jesus chamar os publicanos e pecadores ao arrependimento (Mar 2:17/Mat 9:12-
13).
A palavra chave nas três parábolas é arrependimento. Após a leitura dos dois
capítulos anteriores quais são as áreas da sua vida que mais se assemelham a de um
bastardo? O céu e os anjos esperam festejar com o seu arrependimento, pois se hoje
caíres em si e decidires te voltar ao teu Pai, ele se moverá de íntima compaixão, e
correndo se lançará ao teu pescoço e te beijará. Antes mesmo de terminares de
pedir perdão o Pai mandará aos seus servos trazer depressa a melhor roupa; e vestir-
te, e pôr-te um anel na mão.
Há um caminho para voltar a casa de teu Pai, e este caminho é somente Jesus
(João 14:6). Porque Jesus Cristo veio para desfazer as obras do Diabo (I João 3:8),
obras estas atestadas pelas quedas da humanidade. Só precisas te arrepender e
clamar por Jesus Cristo e serás salvo da desgraça, por isso lemos: “Mas que diz? A
palavra está junto de ti, na tua boca e no teu coração; esta é a palavra da fé, que
pregamos, a saber: Se com a tua boca confessares ao Senhor Jesus, e em teu coração
creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Visto que com o
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

coração se crê para a justiça, e com a boca se faz confissão para a salvação. Porque a
Escritura diz: Todo aquele que nele crer não será confundido. Porquanto não há
diferença entre judeu e grego; porque um mesmo é o Senhor de todos, rico para
com todos os que o invocam. Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor
será salvo”. (Rom 10:8-12)
A reconciliação é centrada em Jesus: “Porque Cristo, estando nós ainda fracos,
morreu a seu tempo pelos ímpios. Porque apenas alguém morrerá por um justo;
pois poderá ser que pelo bom alguém ouse morrer. Mas Deus prova o seu amor
para connosco, em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores. Logo
muito mais agora, tendo sido justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos
da ira. Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de
seu Filho, muito mais, tendo sido já reconciliados, seremos salvos pela sua vida. E
não somente isto, mas também nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus
Cristo, pelo qual agora alcançamos a reconciliação” (Rom 5:6-11). Jesus Cristo é o
don que Deus deu para tirar os bastardos da desgraça, reconciliar os pecadores com
Deus e assim restituir os alienados a verdadeira humanidade, isto é, a filhos de
Deus.
Só se reconciliando com Deus é que somos redimidos da velha mentalidade,
pois é o sangue de Jesus Cristo que purifica as nossas consciências (Heb 9:14). A
velha mentalidade é o corpo do pecado, o velho homem, o perdido, o bastardo.
Assim como o filho perdido estava morto para com o seu pai, quando ele se
arrepende e volta para casa ele morre para a rebelião. Isso significa que o
verdadeiro arrependimento para Deus é aquele que produz em nós uma nova vida.
A “melhor roupa” que o Pai veste o seu filho é uma consciência pura, mas, de novo,
só o arrependimento genuíno para o Pai representará uma verdadeira ressurreição:
Ou não sabeis que todos quantos fomos batizados em Jesus Cristo fomos
batizados na sua morte? De sorte que fomos sepultados com ele pelo batismo
na morte; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos, pela glória
do Pai, assim andemos nós também em novidade de vida. Porque, se fomos
plantados juntamente com ele na semelhança da sua morte, também o
A GRAÇA PARA O BASTARDO

seremos na da sua ressurreição; Sabendo isto, que o nosso homem velho foi
com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não
sirvamos mais ao pecado. Porque aquele que está morto está justificado do
pecado. Ora, se já morremos com Cristo, cremos que também com ele
viveremos; sabendo que, tendo sido Cristo ressuscitado dentre os mortos, já
não morre; a morte não mais tem domínio sobre ele. Pois, quanto a ter
morrido, de uma vez morreu para o pecado; mas, quanto a viver, vive para
Deus. Assim também vós considerai-vos como mortos para o pecado, mas
vivos para Deus em Cristo Jesus nosso Senhor. Não reine, portanto, o pecado
em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em suas concupiscências; nem
tampouco apresenteis os vossos membros ao pecado por instrumentos de
iniqüidade; mas apresentai-vos a Deus, como vivos dentre mortos, e os vossos
membros a Deus, como instrumentos de justiça. Porque o pecado não terá
domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça. (Rom
6:3-14)

Não seria suficiente repetir que quando falamos do “filho perdido” ou da


“glória do Pai” estamos a situar a nossa abordagem no domínio do lar. E o que
acontece na ressurreição do filho, que é nada mais do que o ser achado, quando
este ao invés de continuar dando as costas a Deus, se volta para o seu Pai,
consequentemente virando agora as costas a rebelião ou vida de bastardo. A
mudança de consciência de bastardo para filho é tão notável quanto a viração da
noite para o dia, da morte para a vida, sendo a luz e a vida a reprodução do carácter
do Pai em seus filhos. Esta reprodução é possível pela “semente de Deus” em nós (I
João 3:8-10), e esta semente vai ser chamado de “Cristo em nós” (Colossenses 1:27),
ou estar “em Cristo” (Romanos 8:1), “Espírito de Cristo”, “Espírito de Deus” ou
“Espírito Santo” (Romanos 8:9), é como se o DNA de Deus fosse o seu Espírito, que
tem o poder de produzir em nós o carácter de Jesus Cristo:
A noite é passada, e o dia é chegado. Rejeitemos, pois, as obras das trevas, e
vistamo-nos das armas da luz. Andemos honestamente, como de dia; não em
glutonarias, nem em bebedeiras, nem em desonestidades, nem em
dissoluções, nem em contendas e inveja. Mas revesti-vos do Senhor Jesus
Cristo, e não tenhais cuidado da carne em suas concupiscências. (Rom 13:12-
14)
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

O Espírito Santo é o “anel” e a “melhor roupa”, Ele nos dá as virtudes de Cristo


(João 16:13-15/Actos 1:8), só revestidos de Jesus Cristo é que nós temos o poder de
rejeitar as cinco heranças do pecado; é que trata-se da identidade que carregamos
dentro de nós, se somos filhos de Deus ou filhos do Diabo, se somos co-herdeiros
com Cristo ou bastardos, herdeiros da desgraça: “ De maneira que, irmãos, somos
devedores, não à carne para viver segundo a carne. Porque, se viverdes segundo a
carne, morrereis; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras do corpo, vivereis.
Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus.
Porque não recebestes o espírito de escravidão, para outra vez estardes em temor,
mas recebestes o Espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai. O
mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se nós
somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e co-herdeiros de
Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos
glorificados” (Romanos 8:12-17).
E este texto, melhor do que muitos, capta melhor a situação que estamos a
tentar desenvolver, na medida que apresenta os elementos fundamentais
encontrados na parábola do filho perdido. Por exemplo, é somente pelo Espírito de
Deus que nos somos filhos e Deus o nosso Pai (Rom 8:9). A presença deste Espírito
marca a nossa liberdade, não mais vivemos presos as obras da carne. Carne aqui
significa a mentalidade de bastardos, o espírito de rebelião. O VT apresenta muito
bem a mentalidade bastarda, quando Isaías se referindo a apostasia de Israel
escreveu:
Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, tu, ó terra; porque o SENHOR tem falado: Criei
filhos, e engrandeci-os; mas eles se rebelaram contra mim. O boi conhece o
seu possuidor, e o jumento a manjedoura do seu dono; mas Israel não tem
conhecimento, o meu povo não entende. Ai, nação pecadora, povo carregado
de iniquidade, descendência de malfeitores, filhos corruptores; deixaram ao
SENHOR, blasfemaram o Santo de Israel, voltaram para trás. Por que seríeis
ainda castigados, se mais vos rebelaríeis? Toda a cabeça está enferma e todo o
coração fraco. Desde a planta do pé até a cabeça não há nele coisa sã, senão
A GRAÇA PARA O BASTARDO

feridas, e inchaços, e chagas podres não espremidas, nem ligadas, nem


amolecidas com óleo. (Isa 1:2-6)

Aqui de novo vemos Deus falando para os “céus” (o mesmo que alegra com o
arrependimento de um pecador), e Deus fala como Pai. Voltando a sugerir que
estamos diante de uma situação de relevância cósmica, e que não é um negócio
restrito aos homens, mas de participação celestial. O Pai Celestial tem uma família
celestial para sarar, e o último tratamento que Deus encontrou chama-se Jesus
Cristo, o seu primogénito (Isa 53). Vale a pena notar que, a solução de Deus parte
do seu lar, para restaurar a sua família e toda a criação (Rom 8:20-22).
Do mesmo modo que a queda da humanidade começa no lar, no templo jardim
(Gen 3), a restauração da humanidade é engendrada por Deus a partir do lar. Por
isso, vemos o próprio Deus declarando a Serpente que: “..porei inimizade entre ti e
a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe
ferirás o calcanhar” (ver 15). Isso nos diz que tão logo o pai dos bastardos seduziu a
humanidade a dar as costas ao Pai Celestial, Deus declarou que terminaria
totalmente com esta rebelião, destruindo a cabeça (mentalidade) do Diabo. Mas é
ainda mais notável como Deus decide concretizar isso, através da semente da
mulher, ou seja, através do mesmo lar que a Serpente acabava de alienar de Deus.
Se os três princípios que nortearam o pai dos bastardos foram: atacar o mais
frágil, contaminar o máximo e, começar pelo lar (ver cap I), o Pai Celestial decide
desfazer o pecado exatamente nos três pontos focais onde os golpes do inimigo
foram desferidos contra a humanidade. Assim vemos que é a semente da mulher
que tem o poder para ferir a cabeça da Serpente. O lar da mulher é o instrumento
do plano da reconciliação e redenção. Esta semente é quem vai espalhar ao máximo
a luz ou a vida ao mundo:
Agora a minha alma está perturbada; e que direi eu? Pai, salva-me desta hora;
mas para isto vim a esta hora. Pai, glorifica o teu nome. Então veio uma voz do
céu que dizia: Já o tenho glorificado, e outra vez o glorificarei. Ora, a multidão
que ali estava, e que a ouvira, dizia que havia sido um trovão. Outros diziam:
Um anjo lhe falou. Respondeu Jesus, e disse: Não veio esta voz por amor de
mim, mas por amor de vós. Agora é o juízo deste mundo; agora será expulso o
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

príncipe deste mundo. E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a
mim. E dizia isto, significando de que morte havia de morrer. (João 12:27-33)

O LAR MISSIONÁRIO
Depois do anúncio da destruição da cabeça da Serpente (Gen 3), vemos Deus
desenvolvendo o seu plano de reconciliação e redenção da humanidade. Com a
queda de Cain (Gen 4) veio a perca da sua primogenitura ou deserdação, Deus
então escolhe a linhagem de Sete (Gen 5), donde descende Noé, este é separado
dentre todos que haviam se corrompido na terra (Gen 6), de tal forma que após o
dilúvio Deus faz uma aliança com o lar de Noé, e lhes abençoa (Gen 8:16-22, 9:9-
13), tal como abençoou os animais e a humanidade (Adão) em Génesis 1:20-30. Isto
tudo é a imagem de uma nova criação.

Entretanto, é importante não esquecermos que a imagem é diferente da própria


substância, que no caso é Cristo (Col 2:16-17). Daí vermos que após a multiplicação
dos descendentes de Noé, de novo assistimos a uma queda da humanidade, quando
os povos se unem e decidem fazer um nome para si mesmos, erguendo a Torre de
Babel, pelo que Deus teve de intervir, caso contrário, a anarquia e depravação
atingiriam proporções insuportáveis (Gen 11:1-9). E assim, da linhagem de Sem, o
primogénito de Noé, veio então Abrão (ver 10-26). E em Abrão Deus volta a fazer
uma aliança que anuncia, de novo, a visão da nova criação.
Abrão é separado para a concretização do plano de Deus de voltar a humanidade
ao seu ideal; a criação perfeita de Deus. Numa série de encontros com Deus
(Génesis 12, 15, 17 e 22) vemos Abrão recebendo uma promessa divina que implica
todas as nações e povos. No capítulo 22 de Génesis encontramos a história de
Abraão quando Deus o manda sacrificar o seu filho Isaac, depois de Abraão se
manifestar fiel a Deus; na medida que estava disposto a executar o sacrifício nos
lemos que:
Então, o Anjo do SENHOR bradou a Abraão pela segunda vez desde os céus e
disse: Por mim mesmo, jurei, diz o SENHOR, porquanto fizeste esta ação e
não me negaste o teu filho, o teu único, que deveras te abençoarei e
A GRAÇA PARA O BASTARDO

grandissimamente multiplicarei a tua semente como as estrelas dos céus e


como a areia que está na praia do mar; e a tua semente possuirá a porta dos
seus inimigos. E em tua semente serão benditas todas as nações da terra,
porquanto obedeceste à minha voz. (15-18)

Esta promessa de Abraão desenvolve na linhagem de Isaac, o filho da promessa


(Romamos 9:9), e Esaú (Edom) trocou o direito da herança desta promessa para
Jacó (Israel), por um prato de lentilhas. Aqui de novo vimos a casa ou família de
Israel incumbida com a missão de realizar a promessa de Deus a Abraão. Por isso
lemos o seguinte em relação a Israel:
E me disse: Tu és meu servo, e Israel, aquele por quem hei de ser glorificado.
Mas eu disse: Debalde tenho trabalhado, inútil e vãmente gastei as minhas
forças; todavia, o meu direito está perante o SENHOR, e o meu galardão,
perante o meu Deus. E, agora, diz o SENHOR, que me formou desde o ventre
para seu servo, que eu lhe torne a trazer Jacó; mas Israel não se deixou ajuntar;
contudo, aos olhos do SENHOR, serei glorificado, e o meu Deus será a minha
força. Disse mais: Pouco é que sejas o meu servo, para restaurares as tribos de
Jacó e tornares a trazer os guardados de Israel; também te dei para luz dos
gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da terra. (Isa 49:3-6)
E subiu Moisés a Deus, e o SENHOR o chamou do monte, dizendo: Assim
falarás à casa de Jacó e anunciarás aos filhos de Israel: Vós tendes visto o que
fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de águias, e vos trouxe a mim; agora,
pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes o meu concerto,
então, sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos; porque
toda a terra é minha. E vós me sereis reino sacerdotal e povo santo. Estas são
as palavras que falarás aos filhos de Israel. (Exo 19:3-6)

Esta família separada por Deus tinha assim um dever sacerdotal para com o
mundo; ser a salvação de Deus e a luz para todas as nações, mas para tal deviam ser
fiéis a Deus guardando o concerto. Mas, como mostramos no capítulo anterior
Israel quebrou o concerto, assim como Adão. O concerto quebrado, dentre outras
coisas, serviu para condenar a humanidade toda debaixo do pecado, para assim
levar a humanidade toda a graça de Deus em Jesus Cristo, que pela fé justifica todos
(Gal / Rom ). Se o povo que tinha a responsabilidade de ser santa e sacerdote, luz
para os gentios transgrediu contra Deus, a humanidade não tinha nenhuma saída
se não o favor divino. Graças a Deus a sua promessa para com Abraão não foi feita a
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

mercê do concerto (aliança) que Ele havia feito com Israel, mas foi uma promessa
unilateral a Abraão, como explica o Ap. Paulo nas seguintes linhas:
Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua posteridade. Não diz: E às
posteridades, como falando de muitas, mas como de uma só: E à tua
posteridade, que é Cristo. Mas digo isto: que tendo sido o testamento
anteriormente confirmado por Deus, a lei, que veio quatrocentos e trinta anos
depois, não o invalida, de forma a abolir a promessa. Porque, se a herança
provém da lei, já não provém da promessa; mas Deus, pela promessa, a deu
gratuitamente a Abraão. (Gal 3:16-18)

Jesus o Cristo vem a ser o primogénito fiel que Israel não foi, e nele encontramos
o cumprimento da promessa de Deus a Abraão. É Jesus que inaugura uma
posteridade da fé, sendo que pela fé em Jesus nos tornamos membros de uma nova
família chamada Igreja de Cristo, constituída pelos filhos de Abraão pela fé (). Esta
é a família dos justificados, daqueles que em Jesus (Efe ) são declarados justos
diante de Deus, povo peculiar, nação santa, sacerdotes do Deus vivo, que devem ser
o sal e a luz do mundo (Mat 5:13-16). É nesta nova família em Jesus que Deus
cumpre com a sua promessa a Abraão, neste pensamento Paulo nos diz:
Portanto, lembrai-vos de que vós, noutro tempo, éreis gentios na carne e
chamados incircuncisão pelos que, na carne, se chamam circuncisão feita pela
mão dos homens; que, naquele tempo, estáveis sem Cristo, separados da
comunidade de Israel e estranhos aos concertos da promessa, não tendo
esperança e sem Deus no mundo. Mas, agora, em Cristo Jesus, vós, que antes
estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto. Porque ele é a nossa
paz, o qual de ambos os povos fez um; e, derribando a parede de separação
que estava no meio, na sua carne, desfez a inimizade, isto é, a lei dos
mandamentos, que consistia em ordenanças, para criar em si mesmo dos dois
um novo homem, fazendo a paz, e, pela cruz, reconciliar ambos com Deus em
um corpo, matando com ela as inimizades. E, vindo, ele evangelizou a paz a
vós que estáveis longe e aos que estavam perto; porque, por ele, ambos temos
acesso ao Pai em um mesmo Espírito. Assim que já não sois estrangeiros, nem
forasteiros, mas concidadãos dos Santos e da família de Deus. (Efe 2:11-19)
A GRAÇA PARA O BASTARDO

Só em Jesus, pelo meio da fé, é que somos declarados justos por Deus, essa
justificação significa ser admitido dentre os filhos de Abraão, os filhos de Abraão
são os filhos de Deus (Gal 3:7, 26). Mas é aqui onde poderemos indagar, qual o
significado de ser filho de Abraão e filhos de Deus? Ora, trata-se da recuperação do
nosso papel sacerdotal, como imagens e semelhança de Deus. A Igreja é a Casa de
Deus, e os filhos de Deus têm de refletir o seu Pai. Por isso os justificados têm
participação da natureza divina de Deus (II Ped 1:4), a semente de Deus permanece
neles (I João 3:9), têm a mente de Cristo (I Cor 2:16) ou seja se revestiram de Cristo
(Gal 3:27). Tudo isto é realizado através do Espírito Santo que nos capacita a não
andar segundo a carne; segundo o velho homem, segundo Adão (Rom 8:1-17).
A heranças dos desgraçados morre em Cristo, na medida que nossa identidade é
consumada pela fé em Deus. De tal modo que a nossa forma de ouvir, de falar, de
agir, de adorar e ver são conformados a de Jesus Cristo, pelo Espírito Santo que
opera dentro de nós tanto o querer como o efetuar (Fil 2:13). A família da fé tem
como Pai Deus, e são as obras de Deus que identificam os filhos de Deus, tal como
os carnais são parte da família do Diabo e manifestam as obras do pai da mentira:
Vós fazeis as obras de vosso pai. Disseram-lhe, pois: Nós não somos nascidos
de prostituição; temos um Pai, que é Deus. Disse-lhes, pois, Jesus: Se Deus
fosse o vosso Pai, certamente, me amaríeis, pois que eu saí e vim de Deus; não
vim de mim mesmo, mas ele me enviou. Por que não entendeis a minha
linguagem? Por não poderdes ouvir a minha palavra. Vós tendes por pai ao
diabo e quereis satisfazer os desejos de vosso pai; ele foi homicida desde o
princípio e não se firmou na verdade, porque não há verdade nele; quando ele
profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da
mentira. Mas porque vos digo a verdade, não me credes. (Jon8:41-45)

Existe um sentido actual da justificação, na medida que o Espírito de Deus


habita nos discípulos de Cristo actualmente. Mas existe também um sentido futuro
(escatológico) em que no final do presente sistema Deus julgará a todos segundo
suas obras e declarará alguns de justos e outros de injustos, ovelhas de cabritos,
trigo do joio (Gál 5:5/Rom 8:24/Mat 25:31-41). É nesta família dos justos que Deus
pretende redimir toda a criação (Rom 8:19-21/Col 2). É este duplo sentido que por
vezes é chamado de “já, mas ainda não”.
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Entretanto, assim como a contaminação foi no lar de Adão, a solução de Deus


para o problema da humanidade é baseada na família que Ele forma em Cristo, no
lar de Abraão. Se a morte entrou da transgressão da primeira família lá em Génesis
3, a vida entra da descendência de Abraão, isso tudo em Cristo. Se a violência de
Cain levou ao derrame do sangue inocente do seu irmão, a compaixão de Jesus leva
a salvação dos pecadores (João 3:17-18). Se o cruzamento entre os filhos de Deus
(bên elohim) e as filhas dos homens (bath âdâm) produziu corrupção tal que Deus
teve de enviar um dilúvio (Gen 6), a encarnação de Jesus, sua morte e ressurreição
trouxe para o mundo todo a justificação por intermédio da fé. E ainda, se o
concerto das nações na terra de Sinar foi de edificar uma cidade e torre (coluna), se
fazerem um nome e não se espalharem pelo mundo, de tal modo que nada os
impediria de seguir os desígnios de seus corações (Gen 11), em Cristo Deus edifica
a sua própria casa e coluna (I Tim 3:15), glorifica o seu nome (João 17:1-6), e faz
com que todas línguas lhe exaltem (Actos 2:1-13) e todos os joelhos se dobrem
diante do seu Cristo, espalhando o evangelho pelo mundo (Fil 2:5-11/Act 1:8).
A solução de Deus para corrigir o mal na humanidade e na criação é o lar
missionário em Cristo, que também é chamado de Igreja. Onde todos os seus
membros assumem a sua identidade sacerdotal (I Ped 2:1-12) e exercem
dedicadamente o seu papel sacrificial (Rom 12:1-2) ao único Deus verdadeiro. De
lembrar que o início de todo o pecado na terra é a insubmissão ao único Deus
verdadeiro (Gen 3). A queda de Israel se deveu a idolatria, a infidelidade ao Deus de
Abraão, de Isaque e Jacó. Por essa razão é óbvio que não podemos falar de uma
salvação fora da restauração da adoração única ao único Deus verdadeiro (II Sam
7:22). Por isso Cristo exclamou:
Jesus falou essas coisas e, levantando os olhos ao céu, disse: Pai, é chegada a
hora; glorifica a teu Filho, para que também o teu Filho te glorifique a ti, assim
como lhe deste poder sobre toda carne, para que dê a vida eterna a todos
quantos lhe deste. E a vida eterna é esta: que conheçam a ti só por único Deus
verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviaste. Eu glorifiquei-te na terra, tendo
consumado a obra que me deste a fazer. (João 17:1-4)
A GRAÇA PARA O BASTARDO

Quando Adão deu ouvidos a Serpente ele se submeteu ao falso deus, rejeitou o
verdadeiro Deus. Quando lemos o VT conseguimos ver o povo de Israel sendo
chamado de “povo de dura cerviz” (Exo 31:27), “obstinado” (Exo 32:9), “desviados
do caminho” (Exo 32:8) ou ainda “vaca rebelde” (Hos 4:16), todos estes termos
mostram que Israel havia se tornado como o ídolo que eles haviam levantado no
deserto (Exo 32:1-4). O salmista provavelmente tinha isso em mente quando nos
avisa que os homens se tornam parecidos àquilo que eles adoram (Salmos 115:8).
O Ap.Paulo capta esta verdade de forma muito interessante em sua carta aos
Romanos, na medida que apresenta a idolatria como sendo a fonte de toda a
depravação da humanidade, começando exatamente pelo caso de Israel, podemos
ler que:
...porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe
deram graças; antes, em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração
insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos. E mudaram a
glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem
corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis. Pelo que também Deus
os entregou às concupiscências do seu coração, à imundícia, para desonrarem
o seu corpo entre si. (Rom 1:21-24)

Glorificar e dar graças a Deus são próprios do papel de um sacerdote, sobre isso
está escrito: “Aquele que oferece sacrifício de louvor me glorificará; e àquele que
bem ordena o seu caminho eu mostrarei a salvação de Deus” (Sal 50:23). Era este o
papel de Adão, e posteriormente o papel de Israel, mas estes como Adão
transgrediram, o mesmo Paulo que foi hebreu de hebreu e perfeito segundo o
judaísmo (Fil 3:4-7), depois de mostrar como a idolatria corrompeu até o povo
escolhido, segue e resume a acusação que sobre cai ao seu povo dizendo:
Eis que tu, que tens por sobrenome judeu, e repousas na lei, e te glorias em
Deus; e sabes a sua vontade, e aprovas as coisas excelentes, sendo instruído
por lei; e confias que és guia dos cegos, luz dos que estão em trevas, instruidor
dos néscios, mestre de crianças, que tens a forma da ciência e da verdade na
lei; tu, pois, que ensinas a outro, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas
que não se deve furtar, furtas? Tu, que dizes que não se deve adulterar,
adulteras? Tu, que abominas os ídolos, cometes sacrilégio? Tu, que te glorias
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei? Porque, como está escrito, o
nome de Deus é blasfemado entre os gentios por causa de vós. (Rom 2:17-24)

Portanto, o judeu só chegou a condição do capítulo segundo depois de passar


pela transgressão do capítulo primeiro. Do mesmo jeito podemos concluir que é a
falsa adoração que leva os homens a condição de desgraçados. Em outras palavras a
herança dos desgraçados é nada mais do que aquilo que não reflete o verdadeiro
Deus. É neste quesito que Jesus Cristo se manifesta, de novo, de particular e
insubstituível relevância, visto que: “nele habita corporalmente toda a plenitude da
divindade” (Colossenses 2:9). E este Cristo é a imagem de Deus (I Coríntios 4:4).
Se Nabucodonosor havia erguido uma imagem diante do qual todos sob seu
domínio deviam se prostrar (Dan), Deus glorificou a sua própria imagem, diante do
qual os fiéis devem se prostrar:
De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo
Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus.
Mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se
semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si
mesmo, sendo obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus
o exaltou soberanamente e lhe deu um nome que é sobre todo o nome, para
que ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus, e na terra,
e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para
glória de Deus Pai. (Fil 2:5-11)

Isto é pela simples razão de que somente em Jesus somos transformados, pelo
ministério do Espírito Santo, de glória em glória a imagem do Senhor (II Coríntios
3:18), o varão perfeito (Efésios 4:13). Porque “...sabemos que todas as coisas
contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são
chamados por seu decreto. Porque os que dantes conheceu, também os
predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o
primogênito entre muitos irmãos” (Romanos 8:28-29).
É este o caminho da perfeição, o caminho estreito (Mat 7:13-14). Quando pela fé
em Cristo nos submetemos ao Espírito Santo (Ef 1:13/ Rom 8:6-11) passamos a
A GRAÇA PARA O BASTARDO

viver em obediência a Deus (Rom 6:1-14,16:26). Os que vivem fora de Cristo são de
um modo geral idólatras, na medida que são guiados pelo príncipe das potestades
do ar, o espírito que opera nos filhos da desobediência (Ef 2:2). A idolatria aqui
apresentada como uma vida não submissa a Deus.
Jesus Cristo é a pessoa por quem Deus decidiu destruir todos os poderes que
usurparam o lugar do Deus verdadeiro no coração dos homens. Por isso nos foi
revelado nas escrituras que: “... estais perfeitos nele, que é a cabeça de todo
principado e potestade; no qual também estais circuncidados com a circuncisão
não feita por mão no despojo do corpo da carne: a circuncisão de Cristo.
Sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de
Deus, que o ressuscitou dos mortos. E, quando vós estáveis mortos nos pecados e
na incircuncisão da vossa carne, vos vivificou juntamente com ele, perdoando-vos
todas as ofensas, havendo riscado a cédula que era contra nós nas suas ordenanças,
a qual de alguma maneira nos era contrária, e a tirou do meio de nós, cravando-a na
cruz. E, despojando os principados e potestades, os expôs publicamente e deles
triunfou em si mesmo.” (Col 2:10-15) Estes principados, potestades e dominadores
são as forças que compõem a idolatria; a mentalidade da desobediência a Deus.
Como somos alertados:
No demais, irmãos meus, fortalecei-vos no Senhor e na força do seu poder.
Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para que possais estar firmes contra
as astutas ciladas do diabo; porque não temos que lutar contra carne e sangue,
mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das
trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares
celestiais. Portanto, tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir
no dia mau e, havendo feito tudo, ficar firmes. Estai, pois, firmes, tendo
cingidos os vossos lombos com a verdade, e vestida a couraça da justiça, e
calçados os pés na preparação do evangelho da paz; tomando sobretudo o
escudo da fé, com o qual podereis apagar todos os dardos inflamados do
maligno. Tomai também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a
palavra de Deus, orando em todo tempo com toda oração e súplica no Espírito
e vigiando nisso com toda perseverança e súplica por todos os santos. (Efe
6:10-18)
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Por isso é que nos evangelhos e nas epístolas vimos Jesus Cristo apresentado
como a autoridade de Deus sobre: a Serpente (Mat 4:1-11/Luc 10:18), os espíritos
(Mar 5:7/II Tes 1:7-9), sobre os homens (Mat 3:11, 26:64), sobre os anjos (Mat
13:49, 26:53/Fil 2:5-11/Heb 1:6) e sobre a natureza (Mar 4:39). A força do poder de
Cristo é o que desfaz todo o poder do mal, e nos leva a uma adoração centrada no
Deus verdadeiro. Daí os dois maiores mandamentos da Torá serem relativos a
adoração ao único Deus e assim contrários a idolatria:
Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR. Amarás, pois, o
SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o
teu poder. (Deu 6:4-5)

Aqui vemos o zelo ou ciume de Deus (Tiago 4:5) na medida que a idolatria faz
dos homens desgraçados. Os deuses (potestades, principados ou dominadores) não
podem nos salvar (Juízes 10:11-14), prova disso é que Adão morreu. A idolatria é o
poder que opera a desobediência ao Deus verdadeiro. Os ídolos mais fáceis de se
identificar são aqueles nos quais os homens se prostram em cerimonias religiosas,
entretanto, a idolatria vai muito além de imagens de escultura. E alguns dos
maiores ídolos continuam intactos nos altares do coração dos homens, trata-se da
cobiça, da avareza, do orgulho, e toda coisa que contamina o coração (Mat 15:17-
20).
Em suma, os pecados e as cinco heranças não representam a raiz do mal na
humanidade, mas somente o efeito, a raiz é a idolatria. Por isso o centro da
redenção tem primeiramente a ver com com a fidelidade (fé) a Deus do que com o
fugir os pecados. Isso porque é somente adorando a Deus em Jesus Cristo (Sua
imagem) que somos conformados a sua imagem e ao seu carácter. O problema da
humanidade é sacerdotal, sua solução é sacerdotal. Toda a herança dos desgraçados
é somente o efeito de um sacerdócio familiar caído; uma falsa adoração no lar.
Somos pois chamados a reverter o quadro da falsa adoração, nossa missão como
membros da família sacerdotal real (I Ped 2:9) é imitar (refletir a imagem) a Deus e
a andar em amor como o nosso Sumo Sacerdote; Jesus Cristo (Heb 3:1):
A GRAÇA PARA O BASTARDO

Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados; e andai em amor, como
também Cristo vos amou e se entregou a si mesmo por nós, em oferta e
sacrifício a Deus, em cheiro suave. Mas a prostituição e toda impureza ou
avareza nem ainda se nomeiem entre vós, como convém a santos; nem
torpezas, nem parvoíces, nem chocarrices, que não convêm; mas, antes, ações
de graças. Porque bem sabeis isto: que nenhum fornicador, ou impuro, ou
avarento, o qual é idólatra, tem herança no Reino de Cristo e de Deus.
Ninguém vos engane com palavras vãs; porque por essas coisas vem a ira de
Deus sobre os filhos da desobediência. (Efésios 5:1-6)

Abraçando a Missão

Como vimos no ponto anterior, o plano de Deus para redimir a criação e justificar o
homem é centrado em Jesus Cristo, a posteridade de Abraão. A família dos
justificados é a Igreja de Cristo, a comunidade de todos aqueles que crêem em
Jesus como o Senhor e o Salvador, o Messias que os profetas do VT esperavam, o
filho de Deus e a posteridade de Abraão (Gal 3:16), a semente da mulher que ferirá
a cabeça da serpente (Gen 3:15). A fé verdadeira envolve o compromisso que Jesus
Cristo resumiu com as seguintes palavras:
Ora, ia com ele uma grande multidão; e, voltando-se, disse-lhe: Se alguém vier
a mim e não aborrecer a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e
ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. E qualquer que
não levar a sua cruz e não vier após mim não pode ser meu discípulo. Pois qual
de vós, querendo edificar uma torre, não se assenta primeiro a fazer as contas
dos gastos, para ver se tem com que a acabar? Para que não aconteça que,
depois de haver posto os alicerces e não a podendo acabar, todos os que a
virem comecem a escarnecer dele, dizendo: Este homem começou a edificar e
não pôde acabar. Ou qual é o rei que, indo à guerra a pelejar contra outro rei,
não se assenta primeiro a tomar conselho sobre se com dez mil pode sair ao
encontro do que vem contra ele com vinte mil? De outra maneira, estando o
outro ainda longe, manda embaixadores e pede condições de paz. Assim, pois,
qualquer de vós que não renuncia a tudo quanto tem não pode ser meu
discípulo. (Luc 14:25-33)

Essas palavras são fundamentais e necessitam de uma reflexão profunda por


parte de todos os que se dizem cristãos, ou daqueles que ponderam em seguir a
Cristo. Hoje encontramos várias denominações espalhadas pelo país, a maioria da
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

população angolana se identifica como sendo cristã, mas decididamente e


infelizmente esta maioria não obedece o critério que Jesus Cristo estabelece para
se identificar os seus discípulos. A reconciliação com Deus é somente por Cristo
(João 14:16) e esta é a vontade de Deus (Col 1:19).
Talvez seja aqui o lugar para nos questionarmos se realmente nos rendemos a
Cristo ao ponto de delegarmos tudo da nossa vida ao segundo plano. Será que o
abraçamos de todo o coração e estamos dispostos a perder a nossa vida por ele
(João 12:25)? Pois a confissão pelo qual somos salvos é aquela que não é meramente
dos lábios (Rom 10:8-11). E este amor para com Cristo se expressará por uma vida
de obediência a Deus (I João 5:2), até porque o Espírito de Deus que pela
recebemos opera em nós uma vida focada a glória de Deus (Rom 8:1-17).
Somos tradicionalmente levados a olhar para a salvação de modo egoísta e
tacanho, algo como: “crê em Jesus e assim um dia irás viver no céu eternamente”.
Entretanto, essa visão escapa os pontos que até aqui fomos tentando explicar,
nomeadamente o facto de que Deus através da sua família em Jesus; chamada
Igreja, quer desfazer a idolatria, suas consequências e restaurar a humanidade
como reflexos da sua imagem e semelhança na terra. Em Cristo assumimos o nosso
papel sacerdotal real e passamos a ser os agentes de Deus para através de nós o
reino de Deus se estabelecer na terra, é isso que a própria criação anseia (Rom 8:18-
24). Isso é o nosso papel missionário.
Somente aqueles que abraçam o discipulado de Jesus estarão preparados para
suportar as várias aflições resultantes de uma vida espiritual e piedosa (II Tim 3:12).
Esta vida missionária é aquela que não mais nós vivemos, mas Cristo vive em nós
(Gal 2:20), na qual nos reconhecemos como mortos para o mundo e vivos para
Deus (Rom 6). Viver para Deus é o viver sacerdotal, é a vida missionária que
caracteriza a Igreja, instrumento pelo qual Deus é revelado a criação.
Assim como cada parte do nosso corpo tem uma função cada discípulo de Cristo
é dotado de dons para servir a Deus. Essa realidade é enfatizada no NT de várias
formas, trazendo a tona o papel sacerdotal dos filhos de Deus, aliás, um papel que
A GRAÇA PARA O BASTARDO

infelizmente as nossas tradições eclesiásticas e denominacionais tem provado


apagar com bastante eficácia. A maioria dos que se dizem cristãos hoje pensam que
o papel principal que são chamados a desempenhar é ir aos cultos nos dias
programados em suas instituições e executar as tarefas litúrgicas. Mas somos todos
sacerdotes dentro e fora das nossas congregações, e isto deposita em nossos
ombros uma responsabilidade muito nobre e pesada que transcende um horário
programático, ou conjunto de actividades possíveis num culto.
Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para
cumprir todas as coisas. E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para
profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores,
querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para
edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e ao
conhecimento do Filho de Deus, a varão perfeito, à medida da estatura
completa de Cristo, para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados
em roda por todo vento de doutrina, pelo engano dos homens que, com
astúcia, enganam fraudulosamente. Antes, seguindo a verdade em caridade,
cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, do qual todo o corpo, bem
ajustado e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação de
cada parte, faz o aumento do corpo, para sua edificação em amor. (Efe 4:10-
16)

Passagens como essa ao invés de nos inibir de abraçar a nossa missão sacerdotal
deviam nos impulsionar e nos motivar a servir a Deus. Muitos “eu não sou apóstolo,
profeta, evangelista, pastor ou doutor”, mas o texto não diz que sem ser uma destas
coisas podemos nos escusar de exercer o nosso papel sacerdotal. Na verdade quem
nos dá como ministros de Deus é Jesus Cristo e não os homens, e também existem
várias outras formas de contribuir para a unidade da fé e ao conhecimento do Filho
de Deus fora das paredes das nossas instituições religiosas, e bem além de sermos
“consagrados”. As seguintes palavras se aplicam a todos os discípulos de Cristo:
Eu sou a videira, vós, as varas; quem está em mim, e eu nele, este dá muito
fruto, porque sem mim nada podereis fazer. Se alguém não estiver em mim,
será lançado fora, como a vara, e secará; e os colhem e lançam no fogo, e
ardem. Se vós estiverdes em mim, e as minhas palavras estiverem em vós,
pedireis tudo o que quiserdes, e vos será feito. Nisto é glorificado meu Pai: que
deis muito fruto; e assim sereis meus discípulos. Como o Pai me amou,
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

também eu vos amei a vós; permanecei no meu amor. Se guardardes os meus


mandamentos, permanecereis no meu amor, do mesmo modo que eu tenho
guardado os mandamentos de meu Pai e permaneço no seu amor. Tenho-vos
dito isso para que a minha alegria permaneça em vós, e a vossa alegria seja
completa. O meu mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros, assim
como eu vos amei. (João 15:5-12)

Os frutos dos ramos não podem, de jeito nenhum, ser diferentes da árvore do
qual os ramos pertencem. Se Jesus é a videira e os seus discípulos os ramos, o muito
fruto a ser gerado será sempre a expressão da natureza de Jesus. Todos os discípulos
de Jesus, sejam os apóstolos, profetas, evangelistas, pastores ou doutores,
manifestarão a natureza de Jesus Cristo. Ora, alguém aqui poderá dizer, mas eu sou
um simples membro da Igreja e por n razões não me identifico com nenhum destes
ministérios. Mas é exatamente aqui onde reside a fricção, o que Jesus esclarece é
que todos aqueles que guardam os seus mandamentos e permanecem em seu amor
darão muito fruto, ele não disse que todo o profeta, apóstolo, evangelista, pastor ou
doutor dará muito fruto. O ponto aqui é que não se produz para ser, mas se é para
produzir. E isso nos leva a questão da identidade.

ASSUMINDO A NOVA IDENTIDADE


A imagem do corpo ou da videira nos passa, de um modo geral, a mensagem da
identidade. Falar de filiação é falar de identidade, assim como os filhos
compartilham uma afinidade genética estreita, as partes de um mesmo corpo
compartilham da mesma natureza. Todos os membros do corpo de Cristo
compartilham da natureza divina (II Pedro 1:4), natureza esta que converge num
objectivo: “seguindo a verdade em caridade, cresçamos em tudo naquele que é a
cabeça, Cristo, do qual todo o corpo, bem ajustado e ligado pelo auxílio de todas as
juntas, segundo a justa operação de cada parte, faz o aumento do corpo, para sua
edificação em amor” (Efésios 4:16).
O Espírito Santo distribui dons aos discípulos de Cristo para que a Igreja seja
edificada e aperfeiçoada em amor (I Cor 12). Se somos discípulos devemos nos
identificar como membros do corpo de Cristo, e como tal, dotados de dons que
A GRAÇA PARA O BASTARDO

devem ser postos ao serviço de Deus para edificação da Igreja. Jesus Cristo
prometeu aos seus discípulos que: “ ...recebereis a virtude do Espírito Santo, que há
de vir sobre vós; e ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a
Judeia e Samaria e até aos confins da terra ” (Actos 1:18). Esta virtude é não somente
o poder (dons ministeriais) mas também o carácter do Espírito Santo (Romanos
8:1-17). O corpo de Cristo, que é a Igreja, é identificada pela presença do Espírito
Santo (v 9/Efésios 1:13). Estar em Cristo é ser membro do seu corpo, sendo ele a
cabeça, os seus membros são aqueles que se submetem aos seus mandamentos.
Muito facilmente podemos nos enganar e achar que os dons do Espírito Santo
por si só definem a nossa identidade; se somos ou não discípulos de Cristo.
Esquecemos as palavras dele em Lucas 14:25-33, e também esquecemos que o
mesmo Senhor avisou que: “Muitos me dirão naquele Dia: Senhor, Senhor, não
profetizamos nós em teu nome? E, em teu nome, não expulsamos demónios? E, em
teu nome, não fizemos muitas maravilhas? E, então, lhes direi abertamente: Nunca
vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade ” (Mateus 7:22-23).
Como diz o Ap. Paulo: “Todavia, o fundamento de Deus fica firme, tendo este selo:
O Senhor conhece os que são seus, e qualquer que profere o nome de Cristo
aparte-se da iniquidade”. (II Tim 2:19).
E aqui surge a questão fundamental que devemos responder para nós mesmos,
“será que sou de Deus?”. A resposta deve ter em conta os pontos que fomos
levantando até este ponto desta secção; se nossa confissão de fé em Jesus não é
meramente de lábios, mas de coração, e se o Espírito Santo em nós testifica que
somos filhos de Deus (Rom 8:16). Será que por Jesus aborrecemos até a nossa
própria vida? Se a nossa resposta é sim, então vamos assumir a nossa identidade
como filhos de Deus e largar as coisas que têm o DNA da Serpente. Se,
infelizmente, a nossa resposta for não, então vamos nos arrepender agora e voltar
para Deus como o filho perdido voltou para o seu pai.
Em uma pregação o Ir. Zac Poonen disse algo que ficou em minha mente até
hoje, ele disse algo como: “quando Jesus recebeu a aprovação de Deus ele ainda não
tinha começado com o seu ministério”. Ou seja, quando Deus disse “Tu és meu
Filho amado; em ti me tenho comprazido” (Luc 3:22), ainda Jesus não tivera
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

manifestado algum dom especial, milagre ou sinal. Mas Deus conhecendo o seu
coração já lhe confessa publicamente a sua aprovação. Isto deve merecer a nossa
ponderação profunda.

Sacrificadores

Sim, não somos profetas, apóstolos, pastores, doutores, diáconos, bispos etc, mas o
que isso nos impede de sermos filhos de Deus, em quem Deus tem prazer?
Precisamos assumir a nossa identidade em Cristo, e deixar de viver uma vida
bipolar ou confusa. Ser filho de Deus é ser sacerdote de Deus, e uma vida sacerdotal
é uma vida devocional. Jesus Cristo viveu com um propósito somente; fazer a
vontade do Pai Celestial (João 4:34). Tudo que Jesus fez, tudo que ele suportou está
intrinsecamente ligada ao seu amor para com Deus. Por isso ofereceu o maior
sacrifício que se pode oferecer; ofereceu a sua própria vida na cruz (João 10:17-18).
E assim somos chamados a seguir o seu exemplo:
De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo
Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus.
Mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se
semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si
mesmo, sendo obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus
o exaltou soberanamente e lhe deu um nome que é sobre todo o nome, para
que ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus, e na terra,
e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para
glória de Deus Pai. (Fil 2:5-11)

Ao contrário de Adão que se deixou levar pelo inimigo no Éden, Jesus foi
obediente até a morte. Nós somos chamados a ter o mesmo sentimento, isto é, de
nos esvaziarmos de nós mesmo, e assumirmos o papel de servos (sacerdotes), nos
humilharmos, e nos rendermos a obediência a Deus até a nossa morte. É por isso
que o mesmo escritor de Filipenses nos vai dizer em outra epístola que: “ Que
diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que a graça seja mais abundante?
De modo nenhum! Nós que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda
nele? Ou não sabeis que todos quantos fomos batizados em Jesus Cristo fomos
A GRAÇA PARA O BASTARDO

batizados na sua morte? De sorte que fomos sepultados com ele pelo batismo na
morte; para que, como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, assim
andemos nós também em novidade de vida. Porque, se fomos plantados
juntamente com ele na semelhança da sua morte, também o seremos na da sua
ressurreição; sabendo isto: que o nosso velho homem foi com ele crucificado, para
que o corpo do pecado seja desfeito, a fim de que não sirvamos mais ao pecado.
Porque aquele que está morto está justificado do pecado”. (Rom 6:1-7)
Estes textos todos estão a trazer a imagem sacerdotal do sacrifício, se no Velho
Testamento vemos os sacerdotes sacrificando animais, no NT o princípio é que a
nossa vida é que deve ser oferecida a Deus, pois que: “ Todas as coisas me são
lícitas, mas nem todas as coisas convêm; todas as coisas me são lícitas, mas eu não
me deixarei dominar por nenhuma. Os manjares são para o ventre, e o ventre, para
os manjares; Deus, porém, aniquilará tanto um como os outros. Mas o corpo não é
para a prostituição, senão para o Senhor, e o Senhor para o corpo. Ora, Deus, que
também ressuscitou o Senhor, nos ressuscitará a nós pelo seu poder. Não sabeis vós
que os vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei, pois, os membros de Cristo
e fá-los-ei membros de uma meretriz? Não, por certo. Ou não sabeis que o que se
ajunta com a meretriz faz-se um corpo com ela? Porque serão, disse, dois numa só
carne. Mas o que se ajunta com o Senhor é um mesmo espírito. Fugi da
prostituição. Todo pecado que o homem comete é fora do corpo; mas o que se
prostitui peca contra o seu próprio corpo. Ou não sabeis que o nosso corpo é o
templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus, e que não sois
de vós mesmos? Porque fostes comprados por bom preço; glorificai, pois, a Deus no
vosso corpo e no vosso espírito, os quais pertencem a Deu s.” (I Cor 6:12-20)
Aqui voltamos a imagem do corpo, com outra cor talvez, isto é, a imagem do
casamento. O corpo de Cristo é o corpo da Aliança, é como se ele fosse o marido e a
Igreja a esposa (Efe 5:23/I Cor 11:3). Daí que o nosso corpo e o nosso espírito
(nossa vida) pertencem a Deus. Por isso é que somos chamados: “ ...pela compaixão
de Deus, que apresenteis o vosso corpo em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus,
que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este mundo, mas
transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis
qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus ” (Rom 12:1-2). É este sacrifício
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

vivo que os sacerdotes de Deus são chamados a apresentar com suas vidas. Uma
vida devocional total e exclusivamente rendida ao Pai Celestial.
Assim como Adão tinha sido posto no jardim do Eden com uma missão; cultivar
e guardar (Gen 2:15), a Igreja hoje é o espaço santo, o jardim espiritual que deve ser
aperfeiçoado e guardado, isto é através da operação dos dons do Espírito em cada
um dos filhos de Deus (Ef 4:11-16). Todos os discípulos de Cristo devem assumir o
papel missionário que o corpo de Cristo lhes confere. Devemos assumir uma
postura activa e não passiva, deixar de ser meros observadores e passar a ser
participantes. Deixar de ter uma vida cuja maior expressão espiritual se
circunscreve a participar dos cultos; sentar, cantar, aplaudir e responder amém.
Nós somos chamados a sacrificar nossas vidas, dedicar o nosso corpo vivo para
glória de Deus. Nenhum holocausto é passivo; é preciso degolar o corpo do
sacrifício e levar ao altar incendiado com o fogo da devoção. Somos chamados a
oferecer em sacrifício a nossa vida, na medida que nos separamos de todo negócio
que não tem como pano de fundo glorificar a Deus, por isso a voz da exortação nos
diz:
Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para
Deus, em Cristo Jesus. Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo
mortal, de maneira que obedeçais às suas paixões; nem ofereçais cada
um os membros do seu corpo ao pecado, como instrumentos de
iniquidade; mas oferecei-vos a Deus, como ressurrectos dentre os
mortos, e os vossos membros, a Deus, como instrumentos de justiça.
Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da
lei, e sim da graça. (Romanos 6:11-14)
Esta foi a visão da Igreja primitiva; que é uma honra concedida a poucos viver
uma vida sacrificial por Jesus Cristo, e carregar em seus corpos as marcas deste
sacrifício. Assumir a vida missionária e sacerdotal trás consigo perseguições,
críticas, privações, desonra e em muitos casos a própria morte. Foi em meio a
perseguição que a Igreja orou: “ Agora, Senhor, olha para as suas ameaças e concede
A GRAÇA PARA O BASTARDO

aos teus servos que anunciem com toda a intrepidez a tua palavra, enquanto
estendes a mão para fazer curas, sinais e prodígios por intermédio do nome do teu
santo Servo Jesus. Tendo eles orado, tremeu o lugar onde estavam reunidos; todos
ficaram cheios do Espírito Santo e, com intrepidez, anunciavam a palavra de Deus. ”
(Actos 4:29-31)
Porque razão a maioria de nós se omite quanto a vida missionária? Porque: “Ora,
todos quantos querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos” (II
Timóteo 3:12). E não é confortável viver uma vida marcada pela perseguição,
críticas e calunias, especialmente provenientes da nossa família, tal como falamos
no primeiro capítulo, sobre a espada de Jesus. Outra razão é porque simplesmente
somos mais das nossas denominações do que de Jesus Cristo, e expressamos isso
quando somos aqueles cristãos passivos, que buscam mais a glória dos homens do
que a glória de Deus (João 12:42-43). Cremos em Jesus mas nos omitimos,
delegamos a nossa fé ao domínio individual, pois não queremos ser tachados de
“controversos”, queremos ser vistos como “bonzinhos”. Se ensinam heresias nós
calamos, se devoram as ovelhas de Cristo e nós ao contrário de David que vai a luta
(I Samuel 17:34-35), deixamos acontecer sem nenhuma resistência radical.
Precisamos entender que ser discípulo de Jesus não é de acordo ao nosso
critério, não podemos continuar com a mentalidade de Nicodemus, em que, para
evitar a crítica e a perseguição a sua vida devocional foi delegada a escuridão da
noite (João 3:1-2). Nós também devemos viver a expressão da oração: “ Agora,
Senhor, olha para as suas ameaças e concede aos teus servos que anunciem com
toda a intrepidez a tua palavra, enquanto estendes a mão para fazer curas, sinais e
prodígios por intermédio do nome do teu santo Servo Jesus”. Falta nos essa
dimensão devocional, e consequentemente que nos faltará a mão do Senhor que
faz sinais, prodígios e curas.
A vida sacerdotal é aquela que busca primeiro o reino de Deus (João 3:33), não
aquela que busca primeiro as coisas passageiras deste mundo. Somos muito
dedicados ao dinheiro (que é idolatria), e pouco dedicados ao reino. Nosso tempo e
nossa vida mental é mais engajada em assuntos profissionais do que em assuntos
espirituais. Nossas ambições são mais nossas do que de Cristo. Mas os verdadeiros
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

discípulos aborrecem os seus pais, esposas, filhos e filhas, família e suas próprias
vidas para glória de Cristo.
Foi quando Adão ignorou o seu papel sacerdotal que o pecado entrou no
mundo. Foi quando Cain ofereceu uma oferta indigna a Deus que encontramos o
primeiro homicídio. É aqui onde está a raiz de todas as maldições; um sacerdócio
caído, uma falsa adoração. E consequentemente a restauração deste sacerdócio é o
coração da obra de Deus através de Jesus Cristo. É hora de assumirmos a nossa
identidade sacerdotal como discípulos de Jesus e filhos de Deus, é o momento de
olharmos não para o fruto da árvore do conhecimento, nem mesmo para árvore da
vida, mas para o Criador de ambas árvores, pois nossa identidade está
fundamentada em Jesus Cristo.
Deus quando tirou o povo de Israel do Egipto rapidamente foi lhes incutindo a
consciência de uma nova identidade. Lhes dá um novo calendário, marcado pela
constituição da Páscoa (Êxodo 12), lhes separa como sua porção exclusiva dentre os
povos (Êxodo 19), lhes proíbe de se envolverem com idolatria, lhes manda guardar
o sábado (Êxodo 20), lhes dá a circuncisão (Levítico 12:3/Exo 4:26) e ainda lhes
proíbe de comer certos alimentos (Levítico 11) e determina que não deviam
misturar estofos, animais de espécie diferentes, ou cultivar sementes diferentes no
mesmo campo (Levítico 19:19/Deu 22:11). Todos estes mandamentos podem ser
resumidos como marcadores de identidade.
Era fundamental o povo entender que a sua orientação temporal, espiritual e
moral passava a ter como princípio o único Deus verdadeiro. Se os outros povos ao
seu redor tinham outros deuses, Israel tinha o Deus verdadeiro; o Criador do
mundo visível e invisível (Jeremias 10:16/Hebreus 12:9). Quando Israel estava no
Egipto era escrava e trabalhava todos os dias, de acordo a ordem dos seus senhores,
mas agora YHWH os tinha liberto, e aos sábados deviam descansar, pois se
tornaram livres. Os outros povos tinham uma aliança com o Deus verdadeiro, Israel
tinha a marca da promessa que havia feito a Abraão. Como este povo liberto pelo
Deus verdadeiro, eles deviam entender o princípio da pureza e da santidade. Esta é
A GRAÇA PARA O BASTARDO

a imagem que Paulo apresenta no NT quando fala de jugo desigual e das más
companhias:
Não vos prendais a um jugo desigual com os infiéis; porque que sociedade tem
a justiça com a injustiça? E que comunhão tem a luz com as trevas? E que
concórdia há entre Cristo e Belial? Ou que parte tem o fiel com o infiel? E que
consenso tem o templo de Deus com os ídolos? Porque vós sois o templo do
Deus vivente, como Deus disse: Neles habitarei e entre eles andarei; e eu serei
o seu Deus, e eles serão o meu povo. Pelo que saí do meio deles, e apartai-vos,
diz o Senhor; e não toqueis nada imundo, e eu vos receberei; e eu serei para
vós Pai, e vós sereis para mim filhos e filhas, diz o Senhor Todo-poderoso. (II
Coríntios 6:14-18)

Quanto as companhias ouvimos que: “ Não vos enganeis: as más conversações


corrompem os bons costumes. Vigiai justamente e não pequeis; porque alguns
ainda não têm o conhecimento de Deus... ” (I Cor 15:33). Só sabendo quem somos,
saberemos como viver para a glória daquele para quem somos, através daquele em
quem somos. Nossa identidade é fundamental, pois os que tem a missão de cultivar
e guardar o jardim são os filhos e não os bastardos. Os filhos são os discípulos de
Cristo e não os discípulos dos homens; conduzidos por todo vento de doutrina,
inflamados de presunção e vãs filosofias. Sacerdotes activos e não nominais e
portanto passivos. Nós lemos que:
Mas, agora, despojai-vos também de tudo: da ira, da cólera, da malícia, da
maledicência, das palavras torpes da vossa boca. Não mintais uns aos outros,
pois que já vos despistes do velho homem com os seus feitos e vos vestistes do
novo, que se renova para o conhecimento, segundo a imagem daquele que o
criou; onde não há grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro,
cita, servo ou livre; mas Cristo é tudo em todos. Revesti-vos, pois, como eleitos
de Deus, santos e amados, de entranhas de misericórdia, de benignidade,
humildade, mansidão, longanimidade, suportando-vos uns aos outros e
perdoando-vos uns aos outros, se algum tiver queixa contra outro; assim como
Cristo vos perdoou, assim fazei vós também. (Colossenses 3:8-13)

Contando que o leitor se lembre da nossa abordagem da terceira herança (Cap


II), isto é a forma de agir, ficará claro a alusão sacerdotal dos termos: “despojai-vos,
despistes, revestistes, imagem daquele que o criou” em Colossenses 3. Nós vemos
que os sacerdotes são revestidos de túnicas e mitras de linho fino, bem como tiaras,
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

para glória e ornamento (Êxodo 28:29-41). Os levitas ao serem consagrados e


santificados para administrar o sacerdócio tinham de ser revestidos de vestes
especiais, se despojando das vestes comuns, assumindo uma nova identidade.
As vestes sacerdotais do VT eram uma imagem das virtudes ou o carácter que
Deus esperava dos seus ministros. As vestes comuns simbolizam a ira, a cólera, a
maledicência, os palavrões, a mentira e o comportamento característico do
bastardo, ou homem carnal (velho homem). Aqui vemos logo existir uma
incompatibilidade entre o sacerdócio real e as cinco heranças ou desgraça dos
bastardos. A graça ou unção de Deus deve revestir o nosso coração com as virtudes
do Espírito, isso é: “...caridade, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade,
fé, mansidão, temperança” (Gálatas 5:22).
As vestes representam a real identidade do nosso ser interior, por isso lemos
que: “Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas, que vêm até vós vestidos como
ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores ” (Mateus 7:15). Na verdade Deus
nunca se conformou com a aparência, pois ele mesmo sonda os corações (Jeremias
17:11). É nesta senda que o Ap. Paulo diz: “Todas as coisas são puras para os puros,
mas nada é puro para os contaminados e infiéis; antes, o seu entendimento e
consciência estão contaminados. Confessam que conhecem a Deus, mas negam-no
com as obras, sendo abomináveis, e desobedientes, e reprovados para toda boa
obra” (Tito 1:15-16).
O perfecionismo dos fariseus nunca chegou a impressionar a Jesus, pois ele sabia
e continua sabendo o que existe dentro de cada um de nós (João 2:24). A nossa
consciência e o nosso entendimento é tão visível a Deus quanto as vestes das
pessoas ao nosso lado são visíveis a nós, podendo nós discriminar entre a roupa
limpa de um homem nobre e a roupa suja de um maluco vasculhando lixo num
contentor. Quando Deus separou a nação de Israel para ser seu reino sacerdotal
(Êxodo 19:6) a expectativa era que Israel se revestisse condignamente, mas o que
aconteceu foi o contrário, lemos:
A GRAÇA PARA O BASTARDO

Eis que tu, que tens por sobrenome judeu, e repousas na lei, e te glorias em
Deus; e sabes a sua vontade, e aprovas as coisas excelentes, sendo instruído
por lei; e confias que és guia dos cegos, luz dos que estão em trevas, instruidor
dos néscios, mestre de crianças, que tens a forma da ciência e da verdade na
lei; tu, pois, que ensinas a outro, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas
que não se deve furtar, furtas? Tu, que dizes que não se deve adulterar,
adulteras? Tu, que abominas os ídolos, cometes sacrilégio? Tu, que te glorias
na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei? Porque, como está escrito, o
nome de Deus é blasfemado entre os gentios por causa de vós. (Rom 2:17-24)

Paulo cita Isaías 52 onde Deus anuncia a redenção de Israel do terceiro cativeiro,
e aqui devemos nos lembrar que Israel só acabava em cativeiro fruto de sua própria
infidelidade e transgressão. Atestando isso temos a afirmação de Deus: “...Eis que
por vossas maldades fostes vendidos, e por vossas prevaricações vossa mãe foi
repudiada” (Isaías 50:1). Deus esperava frutos dignos do seu nome, vestes de linho
no interior, mas na maioria dos casos colheu lobos, hipócritas e infidelidade. É por
essa desilusão divina que o profeta diz:
Quero cantar ao meu amado uma canção de amor a respeito da sua
vinha. O meu amado possuía uma vinha numa colina fértil. 2 Ele
preparou a terra, tirou as pedras, plantou excelentes vinhas e construiu
uma torre no meio dela. Também construiu um lagar, esperando que
desse uvas boas, mas deu uvas bravas. Agora, ó moradores de Jerusalém
e homens de Judá, peço-vos que julgueis entre mim e a minha vinha.
Que mais poderia se fazer à minha vinha, que eu não tenha feito? Por
que veio a produzir uvas bravas, quando eu esperava que desse uvas
boas? E eu vos contarei o que hei de fazer à minha vinha: Tirarei a sua
cerca para que sirva de pastagem; derrubarei a sua parede para que seja
pisada; Ps 80:12; 6 e farei dela um deserto. Não será podada nem
cavada; nela crescerão sarças e espinheiros; e darei ordem às nuvens
para que não derramem chuva sobre ela. Pois a vinha do SENHOR dos
Exércitos é a casa de Israel, e os homens de Judá são sua plantação
predileta. Ele esperou justiça, mas houve sangue derramado; retidão,
mas houve clamor por socorro. Isaías 5:1-7/ALM21)
Obviamente que o tema da vinha e dos frutos aqui relatados nos vão trazer o eco
das palavras do Mestre em João 15, e os avisos de julgamento não dormitaram, antes
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

os cativeiros de Israel confirmaram sua execução, sendo que a destruição do


Templo de Jerusalém pelos Romanos no ano 65-70 DC é o maior emblema desta
profecia. A imagem da vinha também aparece em Ezequiel 15:1-8 e aqui os frutos
são apresentados como as obras, e isto chama de novo a crítica dura que os fariseus
mereceram de Jesus Cristo:
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Porque dais o dízimo da hortelã, do
endro e do cominho, e omitis o que há de mais importante na Lei: a justiça, a
misericórdia e a fidelidade; devíeis fazer estas coisas, sem omitir aquelas.
Guias cegos! Coais um mosquito e engolis um camelo. Ai de vós, escribas e
fariseus, hipócritas! Porque limpais o exterior do copo e do prato, mas por
dentro estão cheios de roubo e cobiça. Fariseu cego! Limpa primeiro o
interior do copo, para que o exterior também fique limpo. Ai de vós, escribas e
fariseus, hipócritas! Porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por
fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossos e de toda imundícia.
Assim sois vós: por fora pareceis justos aos homens, mas por dentro estais
cheios de hipocrisia e maldade. (Mateus 23:23-28/ALM21)

Jesus resume os frutos que se esperava de Israel em três palavras, justiça (Levítico
19:15/Deuteronómio 10:18, 16:20), misericórdia (Mateus 9:13, 12:7) e fidelidade (I
Samuel 15:22/Oséias 6:6/Miquéias 6:8). Estas são as vestes que o povo de Israel
devia ter em seu coração, ao invés vestir linho exteriormente, cuidar da higiene e da
aparência do corpo quando no interior guardam as manchas da injustiça,
infidelidade e falta de amor. Isto é a pior hipocrisia; é como coar um mosquito,
mas engolir um camelo. Deus não quer que nos tornemos peritos em coisas
insignificantes.
As uvas amargas que Israel produziu foram a infidelidade, a injustiça e a falta de
misericórdia. Foram infiéis a Deus na medida que quebraram a aliança, indo atrás
de outros deuses, abraçaram práticas pagãs, maltrataram as viúvas, os órfãos e os
necessitados. O mau fruto de Israel, assim como é captada em Romanos 1:18-32, é o
que vai dar substância profética ao acto de Jesus em Mateus 21:18-19:

“E, de manhã, voltando para a cidade, teve fome; e, avistando uma figueira perto do
A GRAÇA PARA O BASTARDO

caminho, dirigiu-se a ela, e não achou nela senão folhas. E disse-lhe: Nunca mais
nasça fruto de ti! E a figueira secou imediatamente.”

Deus quer um reino sacerdotal, e isto significa que Deus quer filhos e não
bastardos. Os ramos que não produzem bons frutos devem ser cortados e lançados
ao fogo (João 15:6), e para produzir é preciso estar em Jesus; ele deve ser o centro da
nossa identidade; o autor e consumador da nossa fé (Hebreus 12:1-2). É por causa
das uvas amargas produzidas por Israel que Jesus disse:
Diz-lhes Jesus: Nunca lestes nas Escrituras: A pedra, que os edificadores
rejeitaram, Essa foi posta por cabeça do ângulo; Pelo Senhor foi feito isto, E é
maravilhoso aos nossos olhos? Portanto, eu vos digo que o reino de Deus vos
será tirado, e será dado a uma nação que dê os seus frutos. E, quem cair sobre
esta pedra, despedaçar-se-á; e aquele sobre quem ela cair ficará reduzido a pó.
E os príncipes dos sacerdotes e os fariseus, ouvindo estas palavras,
entenderam que falava deles. (Mat 21:42-45)

Tudo isto vai então nos levar as palavras do Ap. Paulo: “ ...pois que já vos
despistes do velho homem com os seus feitos e vos vestistes do novo, que se renova
para o conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou; onde não há grego
nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, servo ou livre; mas Cristo
é tudo em todos. Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de
entranhas de misericórdia, de benignidade, humildade, mansidão, longanimidade,
suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos uns aos outros, se algum tiver
queixa contra outro; assim como Cristo vos perdoou, assim fazei vós também .” (Col
3:9-13)
Em Cristo o sacerdócio que a nação de Israel não conseguiu cumprir foi
executado. Nele todas as nações são agora chamados a filiação divina, pela fé em
Jesus que ofereceu a si mesmo na cruz como o maior acto de fidelidade e amor
(João 10:18, 15:13-14/Filipenses 2:5-11). É este caminho-Jesus (João 14:6) que nos
convida: “…apresenteis o vosso corpo em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus,
que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este mundo, mas
transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis
qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Romanos 12:1-2).
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Entretanto, há a necessidade de se notar algo fundamental sobre a identidade


sacerdotal do NT, isso está codificado nas palavras: “ onde não há grego nem judeu,
circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, servo ou livre; mas Cristo é tudo em
todos”. Ou ainda quando lemos. “De maneira que a lei nos serviu de aio, para nos
conduzir a Cristo, para que, pela fé, fôssemos justificados. Mas, depois que a fé
veio, já não estamos debaixo de aio. Porque todos sois filhos de Deus pela fé em
Cristo Jesus; porque todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de
Cristo. Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem
fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus. E, se sois de Cristo, então, sois
descendência de Abraão e herdeiros conforme a promessa”.(Gálatas 3:25-29)
O corpo de Cristo não encontra sua identidade na carne. Isso porque: “ E os que
são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências ” (Gálatas
5:24). A carne aqui não é somente um símbolo dos desejos desenfreados humanos,
mas incorpora também todos os valores sociais, culturais ou étnicos que não têm
fundamento em Jesus Cristo. A circuncisão era um marcador étnico, do qual o
judeu se identificava e encontrava o seu orgulho como membro da comunidade de
Israel e descendentes de Abraão. Jesus vem trazer a circuncisão no coração
(Filipenses 3:3/Romanos 2:28-29). Nos primeiros séculos, no império Romano
existiam os escravos, os livres e dentre estes a nobreza era digna de maior honra. As
mulheres eram vistas como se uma espécie inferior da humanidade, os gregos eram
o emblema da civilização, e os bárbaros o exacto oposto dos gregos.
Passam mais de 2000 anos e é claro que muita coisa mudou no mundo, mas os
marcos que separam a humanidade continuam a existir, talvez com diferentes graus
de influência, mas ainda somos divididos pelo dinheiro que temos; se pobres ou
ricos. Somos divididos pela cor de nossa pele; se brancos, asiáticos ou pretos
(negros). Até hoje somos membros de diferentes tribos, de diferentes continentes,
alguns são analfabetos, outros são letrados, alguns conseguem ler o grego e o
hebraico e muitos nem por isso. Tudo isso tem sido usado pela carne para beliscar a
identidade do corpo de Cristo.
A GRAÇA PARA O BASTARDO

Nossa identidade é encontrada em Jesus Cristo, e não mais nas tradições e


convenções humanas. Quando abraçamos a Jesus Cristo e nos tornamos parte de
seu corpo, acontece aquilo que lemos em Génesis 2:22-24: “E da costela que o
SENHOR Deus tomou do homem formou uma mulher; e trouxe-a a Adão. E disse
Adão: Esta é agora osso dos meus ossos e carne da minha carne; esta será chamada
varoa, porquanto do varão foi tomada. Portanto, deixará o varão o seu pai e a sua
mãe e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne ”. Do corpo ressurrecto
de Jesus perfurado na cruz a Igreja foi formada, e quando nos juntamos a ele nos
tornamos um (I Coríntios 6:15).
O que a nova identidade em Cristo implica é radical. O sacrifício do nosso corpo
e vida implica largar mão dos critérios pelos quais o mundo opera e atribui valores
as coisas. Como sacerdotes reais e santos já não somos primeiramente pretos ou
brancos, ou amarelos, Kimbundos, Mukongos, Nhanekas, Umbundos e etc., pois
agora somos filhos do mesmo Pai e nossa identidade é fundamentalmente divina
(Hebreus 11:14-16). Não tratamos o fulano e o sicrano de forma diferente porque
um é rico e outro é pobre, um é letrado e o outro é analfabeto, um é homem e outra
é mulher (Tiago 2:1-9/Efe 6:9/Rom 2:11/Col 3:25). Somos todos um em Cristo.
Infelizmente não têm sido raro em nossa realidade angolana encontrarmos
exemplos do contrário da identidade da Igreja. Tem igrejas dos bakongos e tem
igrejas dos umbundos. Tem cadeiras especiais para os crentes de maior influência
social, tem crentes que não são achados nem tidos porque não são doutores,
mestres e em fim. Tem igrejas dos congoleses e igrejas dos angolanos, dos pretos e
dos brancos, da elite e dos pobres. Até na boca daqueles que se chamam discípulos
de Cristo, pastores e outros responsáveis ouvimos termos discriminatórios como
“langa” ou “xungu”. Mas que orgulho é este que ainda temos na carne? Se o Paulo
que que era judeu de judeu deixou de ver orgulho na sua carne, quem somos nós
para nos acharmos alguma coisa, por sermos angolanos ou congoleses, pretos ou
brancos?
O corpo de Cristo é o corpo da reconciliação de Deus, é através deste corpo que
Deus reconcilia os homens consigo mesmo, como havemos de ser o corpo de Cristo
se nossa identidade for fundamentada na carne? O nosso corpo e a nossa vida é
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

apresentada em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus exatamente quando não


deixamos a carne determinar a nossa identidade. Os nossos lábios são instrumentos
de reconciliação, pois temos o coração reconciliado com Deus, e a boca fala daquilo
que está cheio no coração (Luc 6:45). Aqui a nossa forma de falar é transformada.
Ap. Paulo entendia isso, por isso escreveu:
Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já
passaram; eis que tudo se fez novo. E tudo isso provém de Deus, que nos
reconciliou consigo mesmo por Jesus Cristo e nos deu o ministério da
reconciliação, isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo,
não lhes imputando os seus pecados, e pôs em nós a palavra da reconciliação.
De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como se Deus por nós
rogasse. Rogamos-vos, pois, da parte de Cristo que vos reconcilieis com Deus.
(II Cor 5:17-20)

Quando nos unimos com Cristo somos feitos novas criaturas, ganhamos nova
identidade, somos feitos embaixadores de Cristo, nosso corpo e nossa vida passam
a ser instrumentos pelo qual Deus reconcilia o mundo consigo mesmo. O
embaixador é o representante do rei ou presidente em terra alheia, o embaixador
não é da terra onde ele representa o seu rei ou presidente. O embaixador de Angola
nos EUA não é um americano, na verdade tanto o embaixador angolano, como a
embaixada angolana nos EUA são uma extensão do Estado Angolano. Se um
americano se refugiar na embaixada de Angola e pedir asilo, por alguma razão, o
mesmo estaria sob jurisdição angolana.
Deste jeito devíamos também olhar para nós, somos embaixadores de Cristo,
representamos o seu reino, e não o mundo no qual estamos a representar o nosso
Rei. O corpo de Cristo é a extensão de sua jurisdição, somos agora novas criaturas,
seus sacerdotes, incumbidos com a missão ou ministério da reconciliação, pela
palavra que Deus pós em nós, a palavra da reconciliação. Nosso corpo e nossa vida
deve exprimir a palavra de Deus e não da carne. A nossa língua é a língua do reino
de Deus, e essa língua não é português, não é lingala, não é francês, nem é kikongo,
A GRAÇA PARA O BASTARDO

chinês, umbundo ou algo idêntico, nossa língua é a reconciliação. É isto que Jesus
exprime ao dizer:
E, chegando-se Jesus, falou-lhes, dizendo: É-me dado todo o poder no céu e
na terra.Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em
nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as
coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias,
até a consumação dos séculos. Amém. (Mat 28:18-20)

Paulo abraçando o privilégio de ser uma nova criatura diz de modo incisivo:
Tomai cuidado com esses cães; cuidado com os maus obreiros; cuidado com a
falsa circuncisão! Porque nós é que somos a circuncisão, nós, os que servimos
a Deus em espírito, e nos orgulhamos em Cristo Jesus, e não confiamos na
carne. Se bem que eu poderia até mesmo confiar na carne. Se alguém pensa
que pode confiar na carne, muito mais eu; circuncidado no oitavo dia, da
descendência de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à
lei, fui fariseu; quanto ao zelo, persegui a igreja; quanto à justiça que há na lei,
eu era irrepreensível. Mas o que para mim era lucro, passei a considerar perda,
por amor de Cristo. Sim, de fato também considero todas as coisas como
perda, comparadas com a superioridade do conhecimento de Cristo Jesus,
meu Senhor, pelo qual perdi todas essas coisas. Eu as considero como esterco,
para que possa ganhar Cristo, e ser achado nele, não tendo por minha a justiça
que procede da lei, mas sim a que procede da fé em Cristo, a saber, a justiça
que vem de Deus pela fé, para conhecer Cristo, e o poder da sua ressurreição,
e a participação nos seus sofrimentos, identificando-me com ele na sua morte,
para ver se de algum modo consigo chegar à ressurreição dos mortos. (Fil 3:2-
11/ALM21)

Que abracemos a nova identidade de todo, e deixemos de nos orgulhar na carne,


mas sim em Cristo Jesus e só. Quando Paulo nos diz que comparado com a
superioridade do conhecimento de Cristo todas as coisas pelas quais ele podia ter
se orgulhado é nada mais do que cocó (esterco), devíamos (nós que nos chamamos
cristãos) parar e pensar um pouco. Talvez nos assustássemos ao começarmos a
notar as várias coisas pelas quais nos orgulhamos fora de Cristo, tal imagem seria
terrível demais para suportarmos; vermos o nosso orgulho nacionalista como cocó,
nossa gaba pelos certificados e diplomas como cocó, nosso orgulho pela cor da
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

nossa pele ou etnia como cocó, nossa capacidade financeira, eloquência, beleza
etc., tudo reduzido a cocó. Quem sabe fugíssemos totalmente em Cristo Jesus.
O sacrifício aceitável começa no esvaziamento próprio, por isso Cristo nos
manda “negar a si próprio”, isto é despir-se do velho homem, do apego as coisas
fora de Cristo. De novo o Ap. Paulo capta inspiradamente este pormenor ao dizer
nos: “Tende em vós o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus, que, existindo
em forma de Deus, não considerou o fato de ser igual a Deus algo a que devesse se
apegar, mas, pelo contrário, esvaziou a si mesmo, assumindo a forma de servo e
fazendo-se semelhante aos homens. Assim, na forma de homem, humilhou a si
mesmo, sendo obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso, Deus também o
exaltou com soberania e lhe deu o nome que está acima de qualquer outro nome;
para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus, na terra e
debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de
Deus Pai.” (Filipenses 2:5-11)
A reconciliação é centrada em Cristo, como abordamos no primeiro ponto deste
capítulo, e é Cristo através de seu corpo humilhado e obediente que opera a
reconciliação em nós; é através da sua cruz que nós somos capacitados a carregar a
nossa cruz, pois é pela sua ressurreição que somos nele feitos mais do que
vencedores (Romanos 8:37). Portanto, não seria diferente aqui, é pela humildade e
obediência de Cristo que nós somos chamados a sermos humildes e obedientes,
mortificando a carne e todas suas taras e cocós, e assim Deus Pai nos exaltará junto
com Cristo no dia da sua glória (I Coríntios 6:14). Esta mortificação é o sacrifício
que devemos apresentar a Deus.
Devemos entender que tudo fora de Cristo é passageiro, é sem valor, é cocó,
porque: “...Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e
Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes. E Deus
escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são para
aniquilar as que são; para que nenhuma carne se glorie perante ele. Mas vós sois
dele, em Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça, e
A GRAÇA PARA O BASTARDO

santificação, e redenção; para que, como está escrito: Aquele que se gloria, glorie-se
no Senhor” (I Coríntios 1:27-31). A verdadeira sabedoria e ciência não está nas
universidades, nos diplomas, nas tradições humanas e nem na Google, mas em
Cristo (Colossenses 2:3), o verdadeiro redentor da humanidade.
Essa nova identidade deverá afetar toda nossa vida, como estudantes, como
trabalhadores, como casados, como solteiros etc. Pois quem somos em Cristo
deverá ditar o que fazemos. Porquê que a fé cristã tem sido muitas vezes banalizada
no mundo? Uma razão é porque o mundo não discerne as coisas espirituais (I Cor
5:15), mas outra e grave razão é porque a maioria daqueles que se dizem cristãos
pensam e agem como o mundo. Quando as nossas vestes são iguais as vestes do
mundo, Cristo não pode ser discernido em nós, e somos identificados como sendo
do mundo, ao invés de embaixadores de Cristo, sacerdotes do ministério da
reconciliação.
Quantos casados que se identificam como cristãos nunca chegaram a sacrificar
as tradições bantu? Ao contrário o evangelho é tipicamente delegado ao segundo
plano, sacrificado em nome das tradições africanas que nós temos em Angola. Aqui
estamos diante de um sacerdócio caído. Nos domingos os mesmos vão a igreja, mas
quando se trata do relacionamento em casa, a forma de entender e tratar as coisas é
segundo a tradição das famílias, é segundo as palavras dos tios e não segundo a
palavra de Deus.
Lembra-me de presenciar uma conversa onde alguém reclamava da falta de
respeito de seus sobrinhos, e o pastor que fazia parte do diálogo respondeu algo
como: “eu não entendo vocês do Zaire, isso é inaceitável, nós do Uíge estes
sobrinhos provavelmente nem estariam mais vivos agora”. Ou ainda um outro caso,
onde havia um óbito na casa de uma família amiga, e como ameaçava chover, a
esposa de um dos familiares presentes chamou o sobrinho e pediu que o mesmo
fizesse tal e tal coisa que segundo a tradição iria adiar ou afugentar a chuva, sendo
que o sobrinho era um cristão com consciência sacerdotal o mesmo se negou. Mas
sua tia furiosa respondeu algo como: “não há nada de mal em praticar essas coisas
dos nossos avós, vocês agora são os únicos cristãos na família?”. De acrescentar que
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

esta mesma tia era a esposa de um diácono batista, e este estava presente e bem
caladinho.
Não gostaria de lançar dúvidas sobre a fé do pastor, até porque o mesmo tem um
bom testemunho, mas aqui vemos como a mentalidade carnal interfere na nossa
identidade sacerdotal. A resposta do pastor acusa uma dupla identidade ou pelo
menos os restículos de uma mentalidade tradicionalista, onde o “poder” para
disciplinar os sobrinhos mau comportados fica nos lábios dos tios e chefe fa
família. Provavelmente ao responder o pastor não terá percebido que saiu da
identidade cristã e se refugiou numa identidade carnal e até demoníaca.
A esposa do diácono é um bom exemplo de sincretismo religioso, sua resposta e
atitude mostra como no seu entender do evangelho não existe a necessidade de
sacrificar nada. Ela e seu marido abraçaram uma versão de evangelho onde
podemos ter orgulho na carne e orgulho em Jesus simultaneamente. Este
evangelho da tia não vê cocó onde devia aos olhos de Cristo há cocó. Imaginemos
se no nosso olhar natural identificássemos extratos de cocó num bolo de
casamento, ou num prato de calulu ou nfumbua, certamente que cuspiríamos o que
houvéssemos comido e informaríamos aos outros para parar de comer
imediatamente. Pena que nas nossas congregações nem sempre o cocó é
identificado e tratado como tal.
Para sacrificarmos a nossa visão carnal das coisas precisamos ver a glória de Deus
em Jesus, pois assim saberemos notar a escuridão de tudo que está fora de Deus. É
que: “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes,
em quem não há mudança, nem sombra de variação” (Tiago 1:17). A luz vem de
Deus, as trevas vem do mundo, visto que: “...tudo o que há no mundo, a
concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não é do
Pai, mas do mundo” (I João 2:16). Ap. Paulo só passou a enxergar bem depois de
perder as escamas dos seus olhos, após ser chocado pela glória de Jesus, a caminho
para Damascus (Actos 9:1-18).
A GRAÇA PARA O BASTARDO

O nosso apego as tradições e a todos nossos cocós do mundo é proporcional a


nossa falta de encontro com o Senhor ressurrecto. Temos uma revelação muito
distorcida sobre Jesus Cristo, daí não nos incomodarmos em juntar o seu nome
com cocó. Quando captarmos a visão da glória de Deus, pela fé, toda nossa
carnalidade será sacrificada para glória de Jesus. Assim, como Paulo passou a
enxergar a vida na perspectiva da eternidade (II Cor íntios 5:1/Tiago 3:13-18), e
entendeu que somente em Jesus estão guardados todos os tesouros da sabedoria e
da ciência. Não mais hesitaremos em sacrificar a opinião do mundo, a glória da
carne e das suas tradições, pois Deus terá sarado a nossa forma de ver.
Cain acabou se tornando um assassino porque havia cocó em seu sacrifício, mas
a sua forma de ver não lhe permitia perceber, suas escamas estavam intactas em
seus olhos e, mesmo diante da exortação de Deus Cain não abraçou o caminho da
humildade e obediência, não viu nada nas palavras: “ ...Por que te iraste? E por que
descaiu o teu semblante? Se bem fizeres, não haverá aceitação para ti? E, se não
fizeres bem, o pecado jaz à porta, e para ti será o seu desejo, e sobre ele dominarás”
(Gen 4:6-7). E vimos que falsos sacrificadores caem no pecado e se tornam
assassinos, culpados do sangue dos justos (Hebreus 10:26-30/Mateus 23:33-36).
Assim como a reconciliação não é centrada no homem, do mesmo jeito o
sacrifício. É Deus quem dita o que é aceitável e o que é rejeitável. Não era da
responsabilidade de Cain determinar o que apresentar ao Senhor, mas sim o
Senhor quem determinou o que lhe é ou não aceitável. Nossas tradições não ditam
o que Deus aceita, nossos filósofos e intelectuais não ditam o que Deus apoia, é
Deus quem determina. Infelizmente, a vida de muitos cristãos anda morta faz
tempo, tudo porque oferecemos a Deus coisas incenso estranho, como Nadabe e
Abiú (Levítico 10:1-10). Deus não aceitará um pouco de esterco naquilo que lhe é
oferecido.
Quando Jesus Cristo ensina os discípulos a orar, a primeira parte deste ensino
diz: “...Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome. Venha o teu
Reino. Seja feita a tua vontade, tanto na terra como no céu.” (Mat 6:9-10). Estas são
palavras que nos mostram a centralidade de Deus. É o nome de Deus que deve ser
“santificado” em nosso corpo e vida (Rom 12:1), isto nos remete a explicação que
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Moisés deu a Arão quando os seus filhos Nadabe e Abiú foram consumidos pelo
fogo do Senhor: “E disse Moisés a Arão: Isto é o que o SENHOR falou, dizendo:
Serei santificado naqueles que se cheguem a mim e serei glorificado diante de todo
o povo. Porém Arão calou-se ” (Lev 10:3). É preciso não nos contaminarmos com o
mundo, o mandamento é: “ E não vos conformeis com este mundo, mas
transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis
qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus ” (Rom 12:2). Em outras
palavras saibam afastar-se de todo e qualquer tipo de cocó.
Assim como uma mulher fiel devota o seu corpo e seu coração somente ao seu
esposo, assim também devemos apresentar a nossa vida a Jesus. O sacrifício
agradável a Deus é o nosso corpo vivo, com suas faculdades e todo seu vigor
dedicado a glória de Deus, limpo, sem contaminações de esterco algum, devoto a
Jesus Cristo, pois assim diz: “Pelo que, entrando no mundo, diz: Sacrifício e oferta
não quiseste, mas corpo me preparaste” (Heb 10:5). É o nosso corpo, a nossa vida
que devemos entregar em sacrifício santo, puro e agradável a Deus, como diz David:
Abre, Senhor, os meus lábios, e a minha boca entoará o teu louvor. Porque te
não comprazes em sacrifícios, senão eu os daria; tu não te deleitas em
holocaustos. Os sacrifícios para Deus são o espírito quebrantado; a um
coração quebrantado e contrito não desprezarás, ó Deus. (Salmos 51:15-17)

Adoradores

O papel do sacerdote não é somente oferecer sacrifícios, tal coisa seria espúria sem
que a divindade fosse adorado. No caso específico se trata de uma adoração
centrada ao Deus verdadeiro. O Pai Celestial nunca foi de aceitar sacrifícios de
sincretistas, ou seja, o sacrifício daqueles que se envolviam com outros deuses era
rejeitável aos olhos do Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Um bom exemplo disto
encontramos em II Reis, quando os Sírios levaram Israel ao cativeiro (16:5-6, 17:5-
6), e trouxeram o seu povo para habitar no Reino do Norte, que também é
conhecido por Samaria:
A GRAÇA PARA O BASTARDO

Então foi informado ao rei da Assíria: O povo que levaste para morar nas
cidades de Samaria não conhece a lei do deus da terra; por isso ele enviou
leões que o matam, porque não conhece a lei do deus da terra. Então o rei da
Assíria mandou dizer: Levai um dos sacerdotes que trouxestes de lá para que
vá morar ali e lhes ensine a lei do deus da terra. Veio um dos sacerdotes que
eles haviam levado de Samaria; ele morou em Betel e lhes ensinou como
deviam temer o SENHOR. Mas cada nação fazia o seu próprio deus e o punha
nos templos dos montes que os samaritanos haviam feito, cada nação nas
cidades que habitava. Os babilônios fizeram Sucote-Benote; os de Cuta
fizeram Nergal; os de Hamate fizeram Asima; os aveus fizeram Nibaz e
Tartaque; e os sefarvitas queimavam seus filhos em sacrifício a Adrameleque e
a Anameleque, deuses de Sefarvaim. Eles temiam o SENHOR e constituíram
sacerdotes dentre o povo para exercerem o sacerdócio nos templos dos altares
das colinas. Assim, temiam o SENHOR mas também cultuavam seus próprios
deuses, conforme o costume das nações de entre as quais haviam sido levados.
Eles fazem até hoje conforme os costumes antigos: não temem o SENHOR;
nem obedecem aos seus estatutos, às suas normas, tampouco à lei e ao
mandamento que o SENHOR ordenou aos filhos de Jacó, a quem deu o nome
de Israel, com os quais o SENHOR havia feito uma aliança e a quem havia
ordenado, dizendo: Não temereis outros deuses, nem os adorareis, nem lhes
prestareis culto, nem lhes oferecereis sacrifícios; mas temereis somente o
SENHOR, que vos tirou da terra do Egito com grande poder e com braço
forte, a ele adorareis e a ele oferecereis sacrifícios. (II Reis 17:24-36/ALM21)

É interessante lermos: “assim, temiam o Senhor mas também cultuavam seus


próprios deuses..”, e depois a conclusão: “Eles fazem até hoje conforme os
costumes antigos: não temem o SENHOR; nem obedecem aos seus estatutos, às
suas normas, tampouco à lei e ao mandamento que o SENHOR ordenou aos filhos
de Jacó”. No primeiro temer, se tratava do temor sincrético, da polilatria (adoração
de vários deuses), e era isso uma visão generalizada dos povos a volta de Israel, para
estes povos em cada território haviam deuses que mereciam ser venerados afim de
garantir boa sorte. Esta mentalidade é também vista entre os gregos e romanos
quando Paulo em Atenas vive o seguinte:
Enquanto Paulo esperava por eles em Atenas, sentia grande indignação, vendo
a cidade cheia de ídolos. Por essa razão, discutia na sinagoga com os judeus e
os gregos tementes a Deus, e todos os dias na praça com os que ali se
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

achavam...Então Paulo ficou de pé no meio do Areópago e disse: Homens


atenienses, em tudo vejo que sois excepcionalmente religiosos. Porque, ao
passar e observar os objetos do vosso culto, encontrei também um altar em
que estava escrito: AO DEUS DESCONHECIDO. É exatamente este que
honrais sem conhecer que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o
que nele há, Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos
de homens. Tampouco é servido por mãos humanas, como se necessitasse de
alguma coisa. Pois é ele mesmo quem dá a todos a vida, a respiração e todas as
coisas. De um só fez toda a raça humana para que habitasse sobre toda a
superfície da terra, determinando-lhes os tempos previamente estabelecidos e
os territórios da sua habitação, para que buscassem a Deus e, mesmo tateando,
pudessem encontrá-lo. Ele, de fato, não está longe de cada um de nós. (Actos
17:16-17, 22-27)

Aqui vemos a natura excepcional dos atenienses que por zelo religioso tinham
erguido um altar ao “Deus desconhecido”. Este é o temor das nações estrangeiras
que passaram a habitar em Samaria, mas aos olhos do Deus Verdadeiro: “... não
temem o SENHOR; nem obedecem aos seus estatutos, às suas normas, tampouco à
lei e ao mandamento que o SENHOR ordenou aos filhos de Jacó ”. O temor que
Deus aceita é o temor reverencial exclusivo, de um coração devoto e obediente (I
Sam 15:22). A adoração é somente aceitável para aqueles que conhecem a Deus, e
conhecer a Deus não é um acto nominal, mas sim relacional, como podemos ver
nos seguintes trechos:
E conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu, e teve a Caim, e disse:
Alcancei do SENHOR um varão. (Gen 4:1)
E conheceu Caim a sua mulher, e ela concebeu e teve a Enoque; e ele edificou
uma cidade e chamou o nome da cidade pelo nome de seu filho Enoque. (Gen
4:17)

Por isso Jesus diz que: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no
Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus. Muitos
me dirão naquele Dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? E, em
teu nome, não expulsamos demónios? E, em teu nome, não fizemos muitas
A GRAÇA PARA O BASTARDO

maravilhas? E, então, lhes direi abertamente: Nunca vos conheci; apartai-vos de


mim, vós que praticais a iniquidade” (Mat 7:21-23). A adoração casa com o
conhecer a Deus como marido e mulher. E aqui voltamos a imagem do corpo, das
varas da videira; dos frutos e da obediência (João 15:1-10/I Cor 6:16).
Não será, entretanto, de jeito algum mera coincidência que o Mestre falará sobre
a verdadeira adoração em Samaria, com uma mulher samaritana. Nós lemos em
João 4 como Jesus chega em Samaria e com a sua sede de reconciliar os homens
com Deus, pede água a uma mulher samaritana, pelo que esta chocada (visto que
havia uma amarga inimizade entre os samaritanos e os hebreus), indaga como Jesus
sendo hebreu ousava falar com uma mulher samaritana. Ser de Samaria significava
ser poluído, não conhecer a Deus, ou simplesmente ser idólatra ou sincretista; algo
como endemoninhado. Desta troca de comunicação, nós lemos o seguinte:
E a mulher lhe disse: Senhor, vejo que és profeta. Nossos pais adoraram neste
monte, e vós dizeis que Jerusalém é o lugar onde se deve adorar. Então Jesus
lhe disse: Mulher, crê em mim, a hora vem em que nem neste monte nem em
Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o
que conhecemos; porque a salvação vem dos judeus. Mas virá a hora, e de fato
já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai no Espírito e em
verdade; porque são esses os adoradores que o Pai procura. Deus é Espírito, e
é necessário que os que o adoram o adorem no Espírito e em verdade. (João
4:19-23)

O que talvez poderia passar por despercebido é que desde o cativeiro assírio (II
Reis 16 & 17) até a conversa entre Jesus e a mulher samaritana, no posso de Jacó há
um lapso de tempo de aproximadamente oito séculos. Em suma, os samaritanos
continuaram a adorar o “Deus desconhecido” até ao momento em que Jesus pisou
em sua terra. Que não reste dúvidas que o “Deus desconhecido” não é um
fenómeno restrito aos samaritanos ou atenienses, actualmente muitos daqueles
que se dizem cristãos invocam um “Cristo desconhecido”. Isto acontece porque:
“...não temem o SENHOR; nem obedecem aos seus estatutos, às suas normas,
tampouco ao mandamento que o SENHOR ordenou aos verdadeiros filhos de
Abraão”.
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

A discussão que a mulher levantou com Jesus era sobre a legitimidade da


adoração, se a verdadeira seria em Jerusalém ou no monte Gerizim. A resposta do
Mestre lembra a situação em que lhe trouxeram um paralítico afim de o curar, mas
a primeira resposta do Mestre foi: “Homem, os teus pecados te são perdoados”
(Lucas 5:20). Ora, quem imaginaria que o maior problema do paralítico não era a
sua paralisia, mas sim os seus pecados? Do mesmo jeito a resposta de Jesus vai para
o cerne da questão, salta a superficialidade da localidade geográfica, que
naturalmente era já um ponto antigo de contenda entre os judeus e os samaritanos,
e diz: “...nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai”.
Esta resposta ofenderia de igual modo o judeu devoto, apegado ao seu Templo
de Jerusalém. Jesus Cristo está a nos dizer que a adoração verdadeira não é
determinada por localidade geográfica, por tradição denominacional, ou por um
dia fixo da semana, ele disse: “ ...os verdadeiros adoradores adorarão o Pai no
Espírito e em verdade; porque são esses os adoradores que o Pai procura. Deus é
Espírito, e é necessário que os que o adoram o adorem no Espírito e em verdade ”.
No tempo de Cristo e muito antes do seu nascimento existiam adoradores; uns no
Templo de Jerusalém e outros no monte Gerisim, uns no sábado e outros nem por
isso, mas ele disse: “...o Pai procura”.
A adoração que o Pai aprova é tem lugar, mas não é geográfico, isto é em
pneuma (espírito), algumas traduções vão se inclinar a posição de que se trata do
Espírito de Deus, outros do espírito (alma) do homem. Acreditamos que a
implicação da resposta de Jesus não muda, isso porque: “ ...se Cristo está em vós, o
corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da
justiça” (Romanos 8:10) e Cristo estar em nós é nada mais do que o Espírito de
Cristo habitar em nós (Rom 8:9). A ideia central aqui é que: “O mesmo Espírito
testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus ” (Rom 8:16). Somente o
Espírito Santo habitando em nós, pela fé, habilita o nosso espírito a adorar
unicamente ao Pai Celestial em verdade, isso concorda com as palavras do Mestre
aos apóstolos:
A GRAÇA PARA O BASTARDO

Se me amardes, obedecereis aos meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e ele


vos dará outro Consolador, para que fique para sempre convosco, o Espírito
da verdade, o qual o mundo não pode receber, porque não o vê nem o
conhece; mas vós o conheceis, pois ele habita convosco e estará em vós. Não
vos deixarei órfãos; voltarei para vós (João 14:15-18/ALM21)

O Espírito estará “em vós” disse o Mestre, porque é dentro de nós, onde reside o
nosso espírito, o local onde conhecemos o Espírito de Deus. É no interior da nossa
alma onde a adoração ocorre, seja ela a verdadeira ou a falsa. A maior paixão ou
ambição da nossa alma revela a nossa verdadeira adoração. A adoração é a maior
devoção de amor que rendemos a alguém, daí Jesus dizer que: “Se alguém vier a
mim, e amar pai e mãe, mulher e filhos, irmãos e irmãs, e até a própria vida mais do
que a mim, não pode ser meu discípulo” (Lucas 14:26/ALM21). Aqui vemos que o
amor para com Deus determina a natureza da nossa adoração a Ele.
Um caso digno de alusão é o descrito em I Samuel 15 (ALM21), em que Deus
ordena Saul que eliminasse totalmente os amalequitas, e que não poupasse
ninguém e nada. Mas Saul seguiu o caminho dos bastardos, daí lermos:
“Entretanto, Saul e o povo pouparam Agague, como também o melhor das ovelhas,
dos bois e dos animais gordos, os cordeiros e tudo o que era bom; eles não os
quiseram destruir totalmente, mas destruíram por completo tudo o que era inútil e
desprezível” (v 9). Diante disto Deus diz: “ Arrependo-me de ter posto Saul como
rei, pois deixou de me seguir e não executou as minhas palavras. Então Samuel
ficou indignado e clamou ao SENHOR a noite toda” (v 10).
O que se segue no relato de Saul é um excelente exemplo do que significa não
adorar a Deus. Saul depois acusa o povo quando confessa:“ ...Pequei, pois transgredi
a ordem do SENHOR e as tuas palavras; porque temi o povo e dei ouvidos à sua
voz” (v 24). Daí a adoração verdadeira requerer um amor superior ao amor que
temos pelos nossos familiares e até por nossa própria vida, é isso que vemos em
Jesus ao se entregar à cruz. Se Jesus seguisse a opinião doa outros rejeitaria a cruz,
visto que ser pendurado no madeiro era a morte mais vergonhosa que havia. Saul
não teve coragem de responder: “ aparta-te de mim satanás” (Mat 16:23), baixou a
guarda.
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

No verso 15 Saul revela a cobiça do povo e do seu próprio coração, pois juntos
guardaram o “melhor” das ovelhas e dos bois. A avareza no coração não permite
que o homem adore a Deus de verdade; a cobiça é idolatria (Col 3:5). Saul ainda
afirmou que este “melhor” seria para oferecer ao Senhor. Imaginemos oferecer a
nossa própria desobediência como sacrifício morto, impuro e desagradável a Deus.
Esta era a forma de ver e de agir de Saul. Tão cego era Saul que mesmo sendo
confrontado pelo profeta Samuel ele ainda se defendeu dizendo: “ Pelo contrário,
eu obedeci ao SENHOR e cumpri a tarefa para a qual ele me enviou...” (v 20).
Samuel porém disse algo que faríamos o melhor se guardássemos no coração:
“Mas Samuel disse: Por acaso o SENHOR tem tanto prazer em holocaustos e
sacrifícios quanto em que se obedeça à sua voz? Obedecer é melhor que oferecer
sacrifícios, e o atender, melhor que a gordura de carneiros. Pois a rebelião é como o
pecado de adivinhação, e a obstinação, como a maldade da idolatria. Visto que
rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou como rei ” (v 22-23). Mas
Saul não estava a entender (a forma de ouvir) que Deus o havia rejeitado (v 26-29) e
sua preocupação por sua própria honra, lhe cegará ao ponto de não perceber que
havia desonrado a Deus, e assim ele pede a Samuel: “ ...volta comigo, para que eu
adore o SENHOR, teu Deus. Então Samuel voltou, foi com Saul, e este adorou o
SENHOR” (v 30-31).
A adoração de Saul não vinha de um coração totalmente devoto a Deus. Vinha de
um coração avarento, desobediente e mais preocupado com o seu próprio nome do
que com o nome de Deus. Esta adoração nunca será aceitável aos olhos de Deus. A
adoração aceitável é a rendição de um coração honesto e submisso, como foi a
reacção de Jó depois de receber a notícia da morte de seus filhos: “ Então, Jó se
levantou, e rasgou o seu manto, e rapou a sua cabeça, e se lançou em terra, e
adorou, e disse: Nu saí do ventre de minha mãe e nu tornarei para lá; o SENHOR o
deu e o SENHOR o tomou; bendito seja o nome do SENHOR” (Jó 1:20-21).
Na adoração só encontramos devoção pura, sem interesses extras, Deus é o
maior encanto de nosso coração, o que Deus é, conforme a sua revelação pelo seu
A GRAÇA PARA O BASTARDO

Espírito junto do nosso espírito nos leva o rosto ao chão, de tamanha reverência e
admiração por sua santidade, seu amor, e sua justiça nosso coração se prostra e o
adora. A adoração não é louvor, é acima do louvor, pelo simples facto de que a
sublimidade eterna do Criador não caber no vocabulário ou nas melodias melodia
de criaturas mortais como nós. É a revelação de Deus pelo seu Espírito que nos
conduz a adoração verdadeira.
Por isso o salmista nos diz: “Adorai o SENHOR na beleza da sua santidade;
tremei diante dele todos os habitantes da terra ” (Salmos 96/ALM21). Há a
contemplação do encanto de Deus, e isto é impossível sem a revelação de Deus; se
os nossos olhos estiverem focados na árvore do conhecimento do bem e do mal,
não anciaremos por lhe ver na viração do dia (Génesis 3:8). Sua majestade divina
nos mata de espanto (Apocalipse 1:17), é por isso que tratando se adoração
geralmente encontramos os termos: “inclinar o rosto” ou “prostrar se”:
E Arão falou todas as palavras que o SENHOR falara a Moisés e fez os sinais
perante os olhos do povo. E o povo creu; e ouviram que o SENHOR visitava
aos filhos de Israel e que via a sua aflição; e inclinaram-se e adoraram. (Êxodo
4:30-31)
E todos os filhos de Israel, vendo descer o fogo e a glória do SENHOR sobre a
casa, encurvaram-se com o rosto em terra sobre o pavimento, e adoraram, e
louvaram o SENHOR, porque é bom, porque a sua benignidade dura para
sempre. (II Crónicas 7:3)
E, quando os animais davam glória, e honra, e ações de graças ao que estava
assentado sobre o trono, ao que vive para todo o sempre, os vinte e quatro
anciãos prostravam-se diante do que estava assentado sobre o trono,
adoravam o que vive para todo o sempre e lançavam as suas coroas diante do
trono, dizendo: Digno és, Senhor, de receber glória, e honra, e poder, porque
tu criaste todas as coisas, e por tua vontade são e foram criadas.(Apocalipse
4:9-11)

A adoração de Esau é centrada nele próprio, é para ser honrado pelos homens,
não é de um espírito reverente e internamente consternado diante da grandeza e o
espanto da santidade de Deus. Esta falsa adoração é parecida a pretensa adoração
de Herodes, que depois de ouvir dos magos do Oriente que foram à Jerusalém para
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

adorar a Jesus, também se fez passar de um homem piedoso e com o desejo de


adorar o rei dos judeus:
Depois de Jesus ter nascido em Belém da Judeia, no tempo do rei Herodes,
vieram alguns magos do oriente a Jerusalém, perguntando: Onde está o rei dos
judeus recém-nascido? Vimos sua estrela no oriente e viemos adorá-lo. Ao
saber disso, o rei Herodes perturbou-se, e com ele toda a Jerusalém. Depois de
convocar todos os principais sacerdotes e os mestres do povo, perguntou-lhes
onde deveria nascer o Cristo. Eles responderam: Em Belém da Judeia; pois
assim está escrito pelo profeta: E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és
a menor entre as principais cidades de Judá; porque de ti sairá o guia que
conduzirá meu povo Israel. Então Herodes chamou secretamente os magos e
procurou saber deles com precisão quando a estrela havia aparecido. E,
enviando-os a Belém, disse-lhes: Ide e perguntai cuidadosamente sobre o
menino. Quando o achardes, avisai-me, para que eu também vá adorá-lo.
(Mateus 2:1-8/ALM21)

Os misteriosos magos não vieram do Oriente para cantar para Jesus ou para
pedir bênçãos a Jesus, eles disseram que: “viemos adorá-lo”. Mateus explicou o que
fizeram os magos com a seguinte descrição: “ Quando entraram na casa, viram o
menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o adoraram. Depois, abrindo seus
tesouros, ofereceram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra ” (v 11). Adoração é auto-
esvaziamento diante de um que reconhecemos superior glória e autoridade, é
render a nossa alma e dar o nosso melhor, como os vinte quatro anciãos que
prostrando adoravam ao Senhor, e lançavam suas coroas diante do trono do
Senhor. Suas coroas representavam toda a honra e glória que possuíam, na
adoração estas coroas se reduziam a nada diante de Deus.
A adoração de Herodes era apenas de falar, em seu coração havia ciume, e
homicídio, que são coisas que caminham juntas com falsa adoração, tal como vimos
em Cain. Depois dos magos terem adorado a Jesus e partido lemos que: “ ...um anjo
do Senhor apareceu a José em sonho e lhe disse: Levanta-te, toma o menino e a mãe
e foge para o Egito; permanece lá até que eu fale contigo; porque Herodes
A GRAÇA PARA O BASTARDO

procurará o menino para matá-lo” (Mat 2:13). Ao contrário de Herodes


encontramos uma cena digna de alusão:
E havia uma mulher pecadora na cidade. Quando soube que Jesus estava à
mesa na casa do fariseu, ela trouxe um vaso de alabastro com perfume; e,
pondo-se atrás dele e chorando aos seus pés, começou a molhar-lhe os pés
com as lágrimas e a enxugá-los com os cabelos; e beijava-lhe os pés e
derramava o perfume sobre eles. Mas, ao ver isso, o fariseu que o convidara
disse consigo mesmo: Se este homem fosse profeta, saberia quem o está
tocando e que espécie de mulher ela é, pois é uma pecadora. (Lucas 7:37-39)

Este é um dos encontros mais enigmáticos relatados na escrituras, Jesus é


convidado à casa de um fariseu, mas uma mulher pecadora veio e roubou o
protagonismo do anfitrião. Esta mulher naturalmente que ouvia a falar de Jesus,
ponderava a possibilidade de se encontrar com Jesus, e preparou o seu coração para
o mesmo encontro. Jesus é digno de adoração, mas o fariseu que convidou a Jesus
não tinha o Mestre a tal nível de estimação, aquela mulher que conhecia o pecado,
tinha a sensibilidade da santidade de Jesus. Posso ser a pior de todas as mulheres
no mundo, mas de todo o meu coração e todas minhas forças eu quero adorar este
homem divino, que perdoa pecados e transforma vidas, ele terá misericórdia de
mim e me limpará das minhas manchas internas que só Deus sabe.
Os nossos cães por vezes se aproximam de nós e começam a lamber e a beijar as
nossas mãos ou pés, isso nos leva ao termo grego traduzido adorar, proskuneo que
seu primeiro sentido é beijar as mãos de alguém como símbolo de reverência. Este
mesmo termo vai ser traduzido prostrar e profunda reverência. Na verdade Lucas
nos relata o que aconteceu quando Pedro foi ter com um centurião romano: “ E
aconteceu que, entrando Pedro, saiu Cornélio a recebê-lo e, prostrando-se a seus
pés, o adorou. Mas Pedro o levantou, dizendo: Levanta-te, que eu também sou
homem” (Actos 10:25-26). Pedro se nega a receber adoração de outro homem,
criado igualmente a imagem e semelhança de Deus, isso porque o acto de adoração
envolve a diferenciação entre o humano e o divino, é se reduzir a uma espécie
inferior diante daquilo que se adora.
Já no livro de Apocalipse João relata um incidente idêntico com o de Pedro com
Cornélio da seguinte forma: “E eu, João, sou aquele que vi e ouvi estas coisas. E,
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

havendo-as ouvido e visto, prostrei-me aos pés do anjo que mas mostrava para o
adorar. E disse-me: Olha, não faças tal, porque eu sou conservo teu e de teus
irmãos, os profetas, e dos que guardam as palavras deste livro. Adora a Deus ”
(Apocalipse 22:8-9). O anjo como Pedro reconheceu ser uma criatura e não o
Criador e, portanto, indigno de receber adoração.
A mulher pecadora, entretanto, pondo-se atrás de Jesus e chorando aos seus pés,
começou a molhar-lhe os pés com as lágrimas e a enxugá-los com os cabelos; e
beijava-lhe os pés e derramava o perfume sobre eles. E Jesus aceitou a sua adoração
dizendo: “...os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou; mas
aquele a quem pouco é perdoado pouco ama. E disse a ela: Os teus pecados te são
perdoados” (Lucas 7:47-48). Ah mais porque foi que Jesus aceitou a adoração da
pecadora mas a adoração de Saul não foi aceite? Porque a adoração de Saul tinha
cocó. Quando o filho pródigo voltou arrependido o seu pai correu e abraçando-o
beijou o seu pescoço. Ora, que cheiro teria alguém que cuidava dos porcos e comia
pior que os porcos? O pai não se importou, preocupou-se restaurar o filho
arrependido, mudando as suas vestes e pondo um anel em seus dedos (Lucas 15:11-
32).
A adoração é possível para os reconciliados em Jesus. A boa-nova é exatamente
isto, que se de todo o coração nos achegarmos a ele, ele é misericordioso para nos
aceitar. Em Jesus, como foi Israel (Exo 5:1), somos aceites e chamados fora do
Egipto (carnalidade) para adorar a Deus no deserto (este mundo). Adorar a Deus é
festejar o que ele é, em sua santidade, justiça, graça e glória. Esta adoração só é
aceitável em espírito e em verdade. Se tiver as manchas da carne, o fermento, o mel,
não será aceitável. Deus não quer a adoração de Saúl.
Louvar a Deus é exaltar os seus feitos (Deuteronómio 10:21/Ezra 3:11/Lucas
17:18/Efésios 1:6), uma manifestação de gratidão, mas adorar passa daquilo que ele
fez para aquilo que ele é. Tem muitos que louvam a Deus mas nunca adoraram a
Deus. Louvar é uma forma de sacrifício (Hebreus 13:15), é possível louvar a Deus
mas ainda assim adorar um outro deus. Pensar que entoar hinos gospel é igual a
A GRAÇA PARA O BASTARDO

adorar a Deus seria então um grande equívoco. Muitos dos nossos cantores gospel
são provavelmente os maiores adoradores de si próprios. Somos sacerdotes
separados para adorar a Deus, oferecer sacrifícios de louvor e interceder junto do
Pai Celestial, em nome de Jesus Cristo. É sobre a intercessão que damos a nossa
atenção a seguir.

Intercessores (Mediadores)

Falar que o discípulo é um intercessor é menos controverso do que dizer que os


discípulos são mediadores. Primeiro porque quando falamos de intercessão a
imagem que surge em nossa mente é aquela de alguém orando intensamente a
favor de alguém, já o termo mediador vem num embrulho de ideias coloridas pelas
controvérsias da era medieval, onde Lutero e seus semelhantes, por razões próprias
da era, se levantaram contra o sistema Católico Romano, dando nascimento a
aquilo que passou a ser chamado Reforma Protestante. Na altura a insistência
protestante de que a salvação é somente pela fé em Jesus ( sola fide) carregava em
seus ossos uma rejeição ou protesto contra a posição Romana de que fora dela
(Igreja Católica Romana) não havia salvação, em outras palavras os Reformadores
vinham no sistema Romano uma espécie de usurpação de um atributo restrito a
Jesus Cristo. Uma das passagens mais usadas pelos protestantes seria o seguinte:
Admoesto-te, pois, antes de tudo, que se façam deprecações, orações,
intercessões e ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os
que estão em eminência, para que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em
toda a piedade e honestidade. Porque isto é bom e agradável diante de Deus,
nosso Salvador, que quer que todos os homens se salvem e venham ao
conhecimento da verdade. Porque há um só Deus e um só mediador entre
Deus e os homens, Jesus Cristo, homem, o qual se deu a si mesmo em preço de
redenção por todos, para servir de testemunho a seu tempo. (I Timóteo 2:1-6)

A parte que diz: “Porque há um só Deus e um só mediador entre Deus e os


homens, Jesus Cristo, homem...”, pode ser interpretada de tal forma a ser
considerada uma total contradição ao título desta secção, mas como acontece com
várias outras passagens, precisamos entender a mensagem de modo não
epidérmico. A palavra mediador pode ser entendida como a pessoa ou entidade
que intervém entre duas partes, com o propósito de estabelecer a paz ou uma
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

aliança. A função do mediador é agir como o facilitador da comunicação ou árbitro,


e se visto neste prisma poderemos encontrar vários exemplos de pessoas agindo
como mediadores nas Escrituras.
Em Lucas 7:1-10 encontramos o relato do centurião que tinha um dos seus
servos gravemente enfermo, e se apercebendo da presença de Jesus em sua cidade
“enviou-lhe uns anciãos dos judeus, rogando-lhe que viesse curar o seu servo ”.
Estes anciãos judeus intercederam junto de Jesus Cristo à favor do centurião
dizendo: “É digno de que lhe concedas isso. Porque ama a nossa nação e ele mesmo
nos edificou a sinagoga.” E foi assim que Cristo se predispôs a ir à casa do
centurião, entretanto, o centurião enviou mais outros intercessores, no caso, seus
amigos, que vindo ao encontro de Jesus, quando este se aproximava a casa lhe
disseram: “Senhor, não te incomodes, porque não sou digno de que entres debaixo
do meu telhado; e, por isso, nem ainda me julguei digno de ir ter contigo; dize,
porém, uma palavra, e o meu criado sarará. Porque também eu sou homem sujeito à
autoridade, e tenho soldados sob o meu poder, e digo a este: vai; e ele vai; e a outro:
vem; e ele vem; e ao meu servo: faze isto; e ele o faz. ”
Nesta bela história de fé, que culmina com a cura do servo do centurião,
podemos ver os anciãos judeus e os amigos do centurião agindo como mediadores
e intercessores à favor do centurião. Eles estabeleceram a comunicação entre o
centurião e Jesus, e facilitaram o estabelecimento de um relacionamento de
beneficente e beneficiário. É através do relacionamento que o centurião tinha com
seus amigos (incluindo os anciãos judeus) que conseguiu se aproximar e beneficiar
da graça de Deus em Jesus Cristo.
Há, ainda, um pormenor que provavelmente tenha escapado a atenção do leitor,
nos versos 7 à 8 os amigos falam na pessoa do centurião, isto é, dizem “ ...não sou
digno/debaixo do meu telhado/nem ainda me julguei/sou homem sujeito à
autoridade/tenho soldados/digo a este... ” Em outras palavras, o mediador fala em
representação de uma das partes, suas palavras não são propriamente suas, mas sim
de quem ele representa. Para evidenciar de modo enfático esta verdade, podemos
A GRAÇA PARA O BASTARDO

ver as seguintes palavras relatando o mesmo acontecimento no livro de Mateus 8:5-


6:
“E, entrando Jesus em Cafarnaum, chegou junto dele um centurião, rogando-
lhe e dizendo: Senhor, o meu criado jaz em casa paralítico e violentamente
atormentado. E Jesus lhe disse: Eu irei e lhe darei saúde.” (Mateus 8:5-7)

Em Mateus o relato é apresentado como se o próprio centurião fosse ter com


Jesus. Verdadeiramente foram os enviados do centurião ter com Jesus. Jesus Cristo
após sua ressurreição diz: “...Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou,
também eu vos envio a vós. E, havendo dito isso, assoprou sobre eles e disse-lhes:
Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, lhes são
perdoados; e, àqueles a quem os retiverdes, lhes são retidos ”.(João 20:21-23). Cristo
comissionou a sua igreja a levar o evangelho por todo o mundo (Marcos
16:15-16/Mateus 28:18-20/Actos 1:6-8), esta comissão abrange não somente os
apóstolos mas todos aqueles que crêem em Jesus, tal como a oração de Senhor nos
mostra em João 17. Cristo está em sua Igreja, e Deus está em seu Cristo (verso 23).
Doutro lado, se espiritualmente estamos em Cristo e ele em nós,
simultaneamente estamos no mundo, como peregrinos, embaixadores do Reino de
Deus, com a missão de fazer vincar os interesses de Jesus. Esta realidade da Igreja,
de estar simultaneamente no céu e na terra, nos dá o privilegio e a tarefa de sermos
então mediadores e intercessores. Foi isso que levou Paulo a exortar: “ Admoesto-te,
pois, antes de tudo, que se façam deprecações, orações, intercessões e ações de
graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão em eminência, para
que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade.
Porque isto é bom e agradável diante de Deus, nosso Salvador, que quer que todos
os homens se salvem e venham ao conhecimento da verdade.” (I Timóteo 2:1-4)

Assim como Jesus Cristo curou o servo do centurião, beneficiando o


graciosamente, pela intercessão dos seus amigos, Deus quer curar a humanidade
das suas enfermidades (pecado e morte eterna). A diferença é que no caso do
centurião, um homem necessitado enviou mediadores, mas no caso divino, o
próprio Deus enviou o Mediador aos homens necessitados, e este por sua vez envia-
nos a nós. É este amor misterioso que João explica:
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Amados, amemo-nos uns aos outros, porque a caridade é de Deus; e qualquer


que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não
conhece a Deus, porque Deus é caridade. Nisto se manifestou a caridade de
Deus para conosco: que Deus enviou seu Filho unigênito ao mundo, para que
por ele vivamos. Nisto está a caridade: não em que nós tenhamos amado a
Deus, mas em que ele nos amou e enviou seu Filho para propiciação pelos
nossos pecados. Amados, se Deus assim nos amou, também nós devemos amar
uns aos outros. (I João 4:7-11)

A graça de Deus é isso; seu amor que estende as mãos para resgatar aquele que
foi atacado pelo maior criminoso que existe. Infelizmente, na maioria das vezes
continuamos a olhar para o nosso Redentor como muitos judeus olhavam para os
samaritanos. E é assim que na maioria das vezes seremos tratados pelo mundo,
sempre que assumirmos a nossa identidade missionária, como mediadores e
intercessores. Afinal de contas, nossa esperança de redenção e comunhão eterna é
asfaltada de aflições e tribulações momentâneas (II Cor 4:17-18). Em meio a tudo
isso, somos tão pobres quanto somos privados de sofrer para a glória de Deus, em
Jesus nosso Senhor. Se é excelso a sua glória e ressurreição, também o deve ser a sua
cruz, a sua coroa de espinhos e os pregos que perfuraram o seu corpo, a sua
vergonha:
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça,
porque deles é o Reino dos céus; bem-aventurados sois vós quando
vos injuriarem, e perseguirem, e, mentindo, disserem todo o mal
contra vós, por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque é grande o
vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram os profetas que
foram antes de vós. (Mateus 5:10-12)
Somos encorajados a seguir o exemplo dos mártires de Cristo, de trilhar às
veredas do calvário. De orar pela salvação dos perdidos, qual categoria fizemos
parte no passado, como disse o Ap. Paulo: “... todos nós também, antes, andávamos
nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e
éramos por natureza filhos da ira, como os outros também. Mas Deus, que é
riquíssimo em misericórdia, pelo seu muito amor com que nos amou, estando nós
A GRAÇA PARA O BASTARDO

ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça
sois salvos)” (Efésios 2:3-5) A evangelização e o discipulado de forma harmoniosa se
encaixam neste oficio divino.
Moisés foi o mediador do VT (Gálatas 3:19), e Deus havia manifestado seu
desejo de fazer de Israel um mediador para com os gentios (Isaías 19:24, 42:6).
Jesus Cristo veio a ser o mediador do NT, e nele todas as promessas e planos
divinos encontram substância. É Cristo em nós que nos outorga o ofício de
mediadores e intercessores, pois somos o seu próprio corpo. Quando Paulo era um
fariseu e perseguidor da Igreja, foi surpreendido no caminho à Damasco, de
maneira indelével, quando Jesus lhe derrubou de seu cavalo, e lhe cegou com a sua
glória, Lucas relatou que:
E Saulo, respirando ainda ameaças e mortes contra os discípulos do Senhor,
dirigiu-se ao sumo sacerdote e pediu-lhe cartas para Damasco, para as
sinagogas, a fim de que, se encontrasse alguns daquela seita, quer homens,
quer mulheres, os conduzisse presos a Jerusalém. E, indo no caminho,
aconteceu que, chegando perto de Damasco, subitamente o cercou um
resplendor de luz do céu. E, caindo em terra, ouviu uma voz que lhe dizia:
Saulo, Saulo, por que me persegues? E ele disse: Quem és, Senhor? E disse o
Senhor: Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Duro é para ti recalcitrar contra os
aguilhões. (Actos 9:1-5)

O Senhor não lhe respondeu: “você persegue a minha Igreja”. A resposta de


Jesus foi na primeira pessoa: “Saulo, Saulo, por que me persegues...Eu sou Jesus, a
quem tu persegues”. Saulo depois deste encontro seguiu o caminho contrário,
arrependeu-se; de maior perseguidor, se tornou o maior evangelista e
consequentemente o maior perseguido. É na boca deste, quem viu sua vida e
identidade radicalmente redefinida por Jesus Cristo, que ouvimos: “ Admoesto-te,
pois, antes de tudo, que se façam deprecações, orações, intercessões e acções de
graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão em eminência, para
que tenhamos uma vida quieta e sossegada, em toda a piedade e honestidade.
Porque isto é bom e agradável diante de Deus, nosso Salvador, que quer que todos
os homens se salvem e venham ao conhecimento da verdade.” (I Tim 2:1-4)
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

Oremos pois, levantando as nossas mãos santas (I Tim 2:8), em permanente


intercessão e súplicas e acções de graças por nossos familiares, amigos, povo de
nossas cidades, autoridades e pelo mundo, para que se concretize a boa vontade de
nosso Deus, que deseja a salvação de todos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo que vimos até aqui, importa resumir algumas implicações práticas.
No primeiro capítulo vimos que o pecado começou no lar de Adão, isto é, dentro
do jardim do Éden, e em seguida vimos como se propagou afetando os filhos, no
caso inicial, Caim. Acreditamos que isso deve nos fazer olhar para as nossas casas
como o principal local onde devemos cultivar uma postura sacerdotal e missionária.
É no lar onde devemos rejeitar as sugestões da serpente, e guardar os mandamentos
de Deus.

Isso chama a responsabilidade de cada um de nós, de acordo ao nosso contexto


particular, se pais ou se filhos. A palavra de Deus deve ser a nossa prioridade e o
suporte de toda nossa actividade. Como pais devemos criar uma cultura de
meditação e estudo bíblico, seja individual como colectivo. Como filhos devemos
buscar desenvolver uma vida de estudo bíblico, sistemático e autêntico. A realidade
angolana nos mostra que a leitura não é parte integral da cultura das nossas
famílias, daí a necessidade duplicada de cada lar cristão velar para o
desenvolvimento de uma cultura de leitura, que deve ter como foco as escrituras.
O cristão é membro de uma família espiritual caracterizada pela tradição da
meditação bíblica. O nosso Senhor ao resistir o Diabo respondia: “está escrito”
(Mat 4:1-11). Os apóstolos dedicavam-se as escrituras e a oração (Act 6:4), e Paulo
exortou a Timóteo dizendo:
Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste e de que foste inteirado,
sabendo de quem o tens aprendido. E que, desde a tua meninice, sabes as
sagradas letras, que podem fazer-te sábio para a salvação, pela fé que há em
Cristo Jesus. Toda Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar,
para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça, para que o homem de
A GRAÇA PARA O BASTARDO

Deus seja perfeito e perfeitamente instruído para toda boa obra. (II Tim 3:14-
17)

Infelizmente, a familiaridade com as verdades bíblicas, de um modo geral, tende


a ser superficial em nosso contexto. Nós não crescemos inteirados com as
escrituras, como foi o caso de Timóteo, e nossa tendência é replicar o modelo pelo
qual crescemos com os nossos filhos. Mas a exortação para evitarmos promover
uma cultura bastarda é, como pais, seguir o exemplo da mãe e da avô de Timóteo
que sabiam do papel fundamental da instrucção bíblica para a formação dos filhos
(I Timóteo 1:5), semeando em Timóteo a semente da fé, não fingida, desde bem
pequeno através do estudo bíblico.
É em casa onde devemos cultivar a fé genuína. O erro começa quando
negligenciamos as escrituras e não conhecemos o poder de Deus (Mateus 22:29)
disse Jesus Cristo. A nossa vida como discípulos nunca deve negligenciar estes dois
aspectos disciplinares fundamentais. Podemos simplificar estes dois aspectos em
estudo bíblico e oração. Essas são as asas da nossa vida espiritual, tendo uma delas
deficiente teremos uma vida espiritual defeituosa. E é a partir dos nossos defeitos
que o inimigo desenvolve o seu trabalho de fomentar desgraça e criar bastardos
espirituais.
Não podemos continuar a subestimar o valor da oração e do estudo bíblico em
casa, este é um tema digno de volumes de livros. Um dos autores que apresenta
uma profundidade de abordagem sobre oração é o E.M Bounds, seus livros
traduzidos em português podem ser facilmente obtidos via internet. Entretanto, o
fundamental é começarmos hoje com uma cultura de oração, e de estudo bíblico
em casa, o resto o próprio Espírito Santo vai acrescentar a nossa fé.

Oremos:

Deus e nosso Criador, reconheço que até aqui tenho vivido distante da tua
palavra e distante da minha identidade sacerdotal. Reconheço também que a
minha forma de ouvir, falar, agir, adorar e ver está longe do exemplo de Jesus
Cristo, o teu filho unigênito, que foi crucificado para nos salvar de toda desgraça
fruto do pecado, mas ressuscitou ao terceiro dia, e esta assentado a tua destra nos
céus.
A HERANÇA DOS DESGRAÇADOS

De todo o coração me arrependo de tudo de contrário a tua palavra que


acreditei e pratiquei, segundo a tua misericórdia e teu poder, e Jesus Cristo o
Senhor, restaura a minha vida como teu filho e me afasta dos caminhos dos
bastardos. Como teu filho eu venho me submeter a tua correcção e a tua disciplina,
endireita os meus caminhos e purifica o meu coração, encha-me Pai do teu Espírito
e me capacite como teu sacerdote, tudo pedimos em nome de Jesus Cristo o nosso
único e verdadeiro Salvador, Amém.

Você também pode gostar