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ética
teza de que os maiores males que conhecemos não se filhos os instrumentos para que naveguem, com segu-
devem àquele que tem de confrontar-se consigo mes- rança e destreza, pelas dificuldades do mundo real. E
mo de novo, e cuja maldição é não poder esquecer. Os acredito que a ética e a honestidade são valores axio-
maiores malfeitores são aqueles que não se lembram máticos, inquestionáveis. Eis aí o dilema: será que o
porque nunca pensaram na questão”. E, para aqueles melhor que poderia fazer para preparar meus filhos
que cometem o mal em uma escala menor e o confron- para viver no Brasil seria não aprisioná-los na cela da
tam, Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo consciência, do diálogo consigo mesmos, da preocu-
por si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar pação com a integridade? Tenho certeza de que nunca
a si próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua expli- chegaria a ponto de incentivá-los a serem escroques,
cação era que o homem pode mentir para si mesmo”. mas poderia, como pai, simplesmente ser mais omisso
Todo corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma quanto a essas questões. Tolerar algumas mentiras, não
lógica para os seus atos, algo que justifique o porquê de me importar com atrasos, não insistir para que não co-
uma determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, lem na escola, não instruir para que devolvam o troco
mas não a ele(a), ou pelo menos não naquele momento recebido a mais...
em que está cometendo o seu delito. Tenho pensado bas- "OS MAIORES MALES NÃO SE
Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das tante sobre isso ultima- DEVEM ÀQUELE QUE TEM DE
pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo tran- mente. Simplesmente o CONFRONTAR-SE CONSIGO
quilo”. Os escroques também! Se eles tivessem dramas fato de pensar a respeito, MESMO. OS MAIORES
de consciência, se travassem um diálogo verdadeiro e de viver em um país em MALFEITORES SÃO AQUELES
consigo e seu travesseiro, ou não teriam optado por sua que existe um dilema en- QUE NÃO SE LEMBRAM
“carreira” ou já teriam se suicidado. Esse diálogo consi- tre o ensino da ética e o PORQUE NUNCA PENSARAM
go mesmo é fruto do que Freud chamou de superego: bom exercício da paterni- NA QUESTÃO."
seguimos um comportamento moral porque ele nos foi dade, já é causa para tris-
HANNAH ARENDT
inculcado por nossos pais, e renegá-lo seria correr o ris- teza. Em última análise,
co da perda do amor paterno. decidi dar a meus filhos a
Na minha visão, só existem, assim, dois cenários em mesma educação que recebi de meu pai. Não porque
que é objetivamente melhor ser ético do que não. O pri- ache que eles serão mais felizes assim ― pelo contrário
meiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita que ―, nem porque acredite que, no fim, o bem compen-
os pecados deste mundo serão punidos no próximo. sa. Mas sim porque, em primeiro lugar, não conseguiria
Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma conviver comigo mesmo, e com a memória de meu pai,
sociedade ética em que os desvios de comportamento se criasse meus filhos para serem pessoas do tipo que
são punidos pela coletividade, quer na forma de san- ele me ensinou a desprezar. E, segundo, tentando um
ções penais, quer na forma do ostracismo social. O que esboço de resposta mais lógica, porque sociedades e
não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse culturas mudam. Muitos dos países hoje desenvolvidos
ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é um e honestos eram antros de corrupção e sordidez 100
país sério. anos atrás. Um dia o Brasil há de seguir o mesmo cami-
Assim é que, criando filhos brasileiros morando no nho, e aí a retidão que espero inculcar em meus filhos (e
Brasil, estou às voltas com um deprimente dilema. Acre- meus filhos em seus filhos) há de ser uma vantagem, e
dito que o papel de um pai é preparar o seu filho para não um fardo. Oxalá.
a vida. Essa é a nossa responsabilidade: dar a nossos Gustavo Ioschpe (RS).
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