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David Foster Wallace | Revista Piauí, Edição 25, Outubro 2008

D ois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho,

nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:

– Bom dia, meninos. Como está a água?

Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e
pergunta:

– Água? Que diabo é isso?

Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e
sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O
ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital
costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa forma, a frase soa como
uma platitude – mas é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta,
lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.

Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente
equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções
automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro
absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje.
Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente
repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração
padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.

Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um
ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser
experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no
seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar
um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato,
urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre
compaixão, desprendimento ou outras “virtudes”. Essa não é uma questão de virtude –
trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos
meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal
que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.

Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em


adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é
capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica – pelo menos no meu caso – é que
ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos
abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na
minha frente.
Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento,
em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só
vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de “ensinar
os alunos como pensar” é, na verdade, uma simplificação de uma idéia bem mais
profunda e séria. “Aprender a pensar” significa aprender como exercer algum controle
sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher
como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de
escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.

Lembrem o velho clichê: “A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível.”


Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa
uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com
armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a
maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que
a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e
patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como
percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto,
inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão – a de sermos singularmente,
completamente, imperialmente sós.

Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então.
O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado
real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre
os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio,
rotina e frustração mesquinha.

V ou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você

acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez
horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa,
comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama,
porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida
na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa
entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.

Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente


iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de
matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar
e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para
encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas
entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos
de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas
desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que
ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim,
com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes
funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode
descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.

De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que
o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um “boa noite, volte
sempre” numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito
está lento, pesado etc. e tal.

É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão


fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no
supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre
como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque
minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim,
a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as
outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a
maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa,
quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.

Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas


essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas,
queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me
aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos
automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e
agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar
uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos
nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e
provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e
repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.

Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós
somos assim – só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer
precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.

Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a
possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e
frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm
vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.

F azer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem

como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas,
na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir
olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de
berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez
ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está
morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento
de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade
burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de
documentação.

Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que
vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem
toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não
sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm
outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação “inferno do
consumidor” não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força
que acendeu as estrelas.

Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é


que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que
não tem.

Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como “não
venerar”. Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o
motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar – seja
Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos – é que
todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos
bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que
venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio – e
quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes
antes de ser efetivamente enterrado.

No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês,
epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e
precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o
intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na
iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas – e sim em


serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se
acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em
relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está
fazendo uma escolha.

O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque

o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo
medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura
consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade
pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados
individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.
Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a
liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a
sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência,
disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no
cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a
liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa
infinita.

Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um
sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem
questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz
respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem
querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência – consciência de que o
real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor – daquilo que devemos
lembrar, repetindo sempre: “Isto é água, isto é água.”

É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois


do outro.

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