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Piratas da América Central

Bartolomeu Português, Um Pirata Legislador

Mestrado em História Moderna e dos Descobrimentos

4º Ano – 1º Semestre

Seminário: O Império Português: Centros e Periferias (Séculos XV-XVIII)

Docente: Alexandra Pelúcia

Discente: André Ingrês, nº 48141

Janeiro de 2019

1
Índice

Introdução.................................................................................................. 3
Pirataria: conceito e história ...................................................................... 4
Conjuntura política, social e militar em que se desenvolveu a pirataria no
século XVII .................................................................................................. 7
Os conhecidos feitos e aventuras de Bartolomeu Português ................... 11
Código da Pirataria: Um ensaio da democracia ........................................ 16
Conclusão ................................................................................................. 22
Bibliografia ............................................................................................... 24
Anexos ..................................................................................................... 25

2
Introdução
No âmbito da unidade curricular de O Império Português: Centros e Periferias
(Séculos XV-XVIII), lecionada pela professora Alexandra Pelúcia, foi-nos solicitada a
realização de um Trabalho de Investigação sobre um tema à nossa escolha dentro do
âmbito curricular do Seminário. Devido ao meu grande interesse pelo tema da
Pirataria nas periferias coloniais das potências Europeias da Época Moderna achei por
bem fazer um estudo sobre um pirata Português. Tendo a América Central sido o meu
espaço de eleição, Bartolomeu Português, criador do primeiro código Pirata, um pirata
muitas vezes esquecido pela historiografia em geral, surge como protagonista deste
trabalho.

Embora pese a evidente falta de documentação para a realização deste


trabalho, que será referida mais à frente, na minha opinião a desvalorização dos seus
feitos não deve ser por esse motivo justificada. Sendo o autor do primeiro Código
Pirata, Bartolomeu surge como um homem “legislador” à frente do seu tempo,
revelando-se como pioneiro na compilação de regras e leis da tripulação.

Actualmente, e dada a inexistência de provas concretas acerca dos primórdios


da vida dos protagonistas da prática pirata, torna-se difícil formular conclusões gerais
sobre a sua origem. Exemplo paradigmático dessa dificuldade é o caso de Bartolomeu
Português, cujo estudo aprofundado é impossibilitado pela escassez de fontes relativas
aos primeiros anos da sua vida. Nessa impossibilidade, a origem de Bartolomeu não
será retratada neste trabalho, mas sim os seus feitos e trabalhos conhecidos.

Este trabalho está dividido em duas grandes partes: um contexto introdutório,


que apresenta o leitor à temática da pirataria, dissecando a sua história, e uma
contextualização política/militar da Europa, Península Ibérica e América Central. De
seguida, e de forma mais completa, é feita uma exposição objectiva dos feitos
conhecidos de Bartolomeu, baseado nas obras de Wolfram Zu Mondfeld e Alexandre
Olivier. Na impossibilidade de estabelecer qualquer tipo de contacto com o Código
Pirata de Bartolomeu Português, é por isso apresentada uma leitura analítica e crítica
do Código Pirata de Bartholomew Roberts, baseado naquele feito pelo português.

3
Pirataria: conceito e história
A pirataria consiste no assalto e pilhagem de navios por parte de um grupo de
indivíduos com embarcação própria que atuam por conta própria. Estas embarcações
piratas patrulhavam, assediavam e assaltavam outras embarcações em rotas
marítimas com grande tráfego comercial, sendo os navios mercantis os mais cobiçados
devido à possibilidade de carregarem um maior número de riquezas. Menos comum, a
prática da pirataria podia também estender-se a ataques e pilhagens de povoações
costeiras mais expostas. “Piracy is an offence against the universal law of society, a
pirate being according to Sir Edward Coke, hostis humani generis. As, therefore, he has
renounced all the benefits of society and government, and has reduced himself to the
savage state of nature, by declaring war against all mankind, all mankind must declare
war against him;…”1

Não se sabe ao certo o quão antiga é a prática da pirataria, contudo podemos


presumir que devido à natureza materialista e ambiciosa do ser humano, o surgimento
desta prática seja contemporânea à criação das primeiras embarcações feitas pelo
Homem. Foi Homero que na sua obra Odisseia mencionou pela primeira vez os
praticantes da pirataria como “Piratas” (do grego πειράω), sendo que já na Grécia
Antiga se praticava a pirataria e corso a embarcações comerciais fenícias e
provenientes do Médio Oriente. Por sua vez, no Império Romano a pirataria atingiu
níveis tão altos que foram promovidas campanhas navais para combater aquela que se
podia considerar uma “peste” que infetava o mar Mediterrâneo. “Assim, enquanto
Roma era ama e senhora do mundo, ia sofrendo insultos e afrontas, quase às portas da
cidade, às mãos destes poderosos malfeitores.”2 Também durante a Idade Média
foram muitos os povos que atormentaram os reinos europeus com a pirataria,
exemplo disso foi a pirataria muçulmana no Algarve português que se fazia sentir na
economia dessa região. Ainda que longa a história da prática da pirataria, foi na Época
Moderna, nas Índias Ocidentais, que se viveu o seu apogeu, conhecido como a Idade
de Ouro da Pirataria. “…primeiro, porque essa zona abunda com muitas pequenas ilhas
e ilhéus desabitados, com portos convenientes e seguros para a limpeza e reparação
1
ELLMS, Charles, The Pirates own book: Authentic Narratives of the Most Celebrated Sea Robbers, North
Chelmsford, Courier Corporation, 1993, p. 4
2
JOHNSON, Charles, História geral dos roubos e assassínios dos mais notáveis Piratas, Lisboa, Cavalo de
Ferro Editores, 2005, p. 15

4
das embarcações, e abundantes naquilo de que os piratas mais frequentemente
necessitam: provisões”3 (ver anexo 1). Durante estes anos surgiram as maiores e mais
conhecidas figuras piratas da história, tais como Bartholomew Roberts, Edward Teach
(mais conhecido como Barba Negra), Charles Vane e o nosso protagonista, Bartolomeu
Português.

Podemos apontar três principais causas para a insubordinação de uma


tripulação ou conjunto de navios relativamente à hierarquia a que se encontravam
subjugados, e o início da prática pirata. Em primeiro lugar, observamos claramente um
desejo em obter riqueza através do ataque e saque de outros navios. Em segundo,
constatamos um óbvio descontentamento do comandante e/ou das tripulações para
com a situação de submissão relativamente ao poder central a que estavam adstritos.
Por último, encontramos as razões pessoais como causa para estes levantamentos,
sendo exemplo disso o simples desejo de experimentar o saber da aventura. “Entre
elas contar-se-iam as dificuldades em arrecadar fortuna legal ao serviço da Coroa, a
necessidade de escapar ao braço da justiça devido à prática de algum delito, ou o mero
impulso pessoal e o concomitante desejo de experimentar o sabor da aventura…” 4. Em
quase todos os casos concluímos que estas três razões se complementam, porém não
é descabido afirmar que apenas uma delas podia ser suficiente para a insurreição
destes grupos. “…o levantamento era consumado em termos colectivos, sendo a
liderança do grupo entregue à personagem socialmente mais relevante, sobre quem
costumava recair a maior responsabilidade na decisão da fuda e de reunir os meios
necessários ao sucesso da mesma.”5

Após a sua insurreição, estes novos piratas tinham que adoptar uma nova
bandeira para marcar a rutura com o poder central que antes representavam. Muitas
são as possíveis origens e variações da tão conhecida bandeira pirata e do seu nome:
“Jolly Roger”. É de consenso geral dos historiadores que o símbolo da caveira
juntamente com os ossos cruzados já era usado por muitas culturas, representando o
perigo de morte, porém são diversas as teorias sobre a sua origem na Europa. Uma das

3
JOHNSON, Charles, op. cit., p. 18
4
PELÚCIA, Alexandra, Corsários e Piratas Portugueses, Aventureiros nos Mares da Ásia, Lisboa, A Esfera
dos Livros, 2010, p. 113
5
Idem, p. 100

5
hipóteses defende que os Templários adoptaram uma bandeira com duas tíbias
cruzadas sobre um fundo avermelhado após terem sido excomungados e
marginalizados pelo Papa Clemente V. Outra é a de que esta bandeira era usada pelos
piratas orientais que se autointitulavam por “Ali Raja”, Reis do mar, e que
eventualmente foi adoptada pelos piratas ocidentais. A terceira afirma que a bandeira
pirata terá resultado de uma transformação da insígnia da ilha de Córsega
protagonizada pelos piratas berberes que actuavam no Mediterrâneo ocidental.

Quanto ao nome, observamos a possibilidade de derivar de uma variação


linguística do francês “Jolie Rouge” (vermelho bonito), pois é sabido que os piratas
também usavam uma bandeira vermelha como forma de demonstrar a impiedade
para com os inimigos, ou do “Rogue” com significado de arrogante e vagabundo.
Suspeita-se também que a adopção do termo “Jolly Roger” pelos corsários e piratas
representa uma menção honrosa àquela que foi a única baixa naval da Royal Navy na
batalha contra a Invencível Armada de Filipe II de Espanha. Outra teoria diz-nos que
esta bandeira era tida como “Old Roger” como referência ao demónio/diabo.
Relativamente à sua forma, também muitas são as suas variações e feitios, sendo a
versão mais conhecida a anteriormente referida - de uma caveira humana por cima de
dois ossos cruzados (ver anexo 2). Cada companhia pirata adotava uma versão própria
desta bandeira e por isso muitas são as versões que nos são hoje conhecidas. (ver
anexo 3 e 4)

6
Conjuntura política, social e militar em que se desenvolveu a pirataria no século XVII
O início da idade Moderna na Europa foi marcado a nível político pela tentativa
de centralização do poder dos monarcas que nos séculos precedentes leva à formação
das célebres monarquias absolutas. É possível caracterizar esta monarquia absoluta
como uma aproximação das esferas de governação e de todas as suas representações
exteriores com o Estado, possibilitando assim uma total independência com forças
exteriores de ordem imperial, provincial ou territorial. Desta forma o Estado apenas
necessitava de si próprio para governar sem qualquer constrangimento. Todavia, hoje
acredita-se que este Estado não exercia esse poder absoluto sobre os domínios sociais
e privados da sua população. Ao contrário dos Estados totalitários que nos são hoje
conhecidos, a administração absolutista não interferiu de forma implacável nas esferas
familiares e/ou particulares, e tampouco usou a força e modalidades de acção para
controlar opiniões6. Posto isto, era este contexto político e social aliado à distância da
América Central em relação aos grandes centros políticos europeus que abria espaço à
prática da pirataria para os mais aventureiros. O carácter periférico deste espaço
geográfico dificultava o policiamento por parte dos Estados Europeus pois
representava uma enorme despesa para os seus cofres. Desde o século XV que
também em Portugal se sentia uma clara tentativa de centralização de poder por parte
dos monarcas da dinastia de Avis, mas foi apenas no século XVIII que vimos o seu
apogeu com D. João V e D. José I. Foi neste impulso centralizador dos estados
europeus que a pirataria se desenvolveu na América Central, e é neste ambiente
político que Bartolomeu Português opera com a sua companhia.

A Europa via o fracasso da tentativa de paz a nível continental - o tratado de


paz de Vestefália, de 1648 - com os constantes conflitos e assédios entre as potências
europeias. A Inglaterra e a Escócia viviam dias difíceis com a proliferação de guerras
civis de carácter religioso. Em 1653, Cromwell derrubava o parlamento inglês e
instaurava um regime no qual era “Lord Protector” das diversas coroas da Grã-
Bretanha. Na América Central, a Inglaterra promovia uma política ofensiva em relação
às possessões espanholas. É neste contexto que a Jamaica é tomada pelos ingleses e,
devido à sua pouca influência exercida neste território, torna-se num importante

6
HESPANHA, António Manuel, Poder e instituições na Europa do Antigo Regime, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1984, pp.182-183

7
centro estratégico para os piratas devido à sua proximidade a colónias espanholas.
“That said, England and the bucanners developed a symbiotic relation. In 1657, the
English protectorate and Jamaica’s buccaneers entered a formal aliance to keep Spain
from recapturing the new English Possession.”. Em 1660 a Inglaterra via a sua
monarquia absoluta ser restaurada por Charles II e com isso o despertar de uma certa
fragilidade na autoridade central em relação às suas possessões territoriais na
América. Muitos eram os conflitos e grande era a tensão colonial entre
ingleses/franceses e espanhóis que se vivia no Novo Mundo. Contudo é importante
referir que muitas das vezes, grande parte dos conflitos na América Central entre
colonos, piratas e militares dos vários reinos europeus não se correlacionavam com os
conflitos a nível europeu.7

Num contexto Ibérico, o reino português permaneceu sob domínio espanhol de


1580 a 1640. Sob este mesmo domínio, em relação aos aspectos militares, “… a
espécie de neutralidade em que Portugal se manteve perante a Europa, desde os fins
do séc. XV, fez-nos perder o contacto de outras nações e impediu-nos de aprender delas
inovações da táctica…”8. Entre meados do século XVI até 1640, o aparelho militar
português encontrava-se “adormecido” e o sentimento e qualidade bélica da nossa
nobreza desvanecia com o passar dos anos.

Nos primeiros anos de subjugação, Portugal não sentiu grandes diferenças em


relação à sua armada pois esta era essencial para a manutenção dos negócios
portugueses e espanhóis nos territórios ultramarinos que agora estavam sob alçada da
monarquia dual. A cidade de Lisboa deparou-se, até, com o aumento da sua
importância devido à sua posição favorável no seio do império Espanhol e no contexto
político/geográfico europeu. A capital da agora província de Portugal, assistiu à
preparação da Invencível Armada no seu porto, uma força naval incrível que o mundo
nunca havia visto mas que teria um fim que a sua grandeza não antecipava. “O
contingente de Portugal na formação desta armada era muito considerável; nele
figuravam treze zavras e galeões, quatro galés, quatro galeaças, dez caravelas grandes

7
FERNÁNDEZ, Luis Martínez, Far beyond the Line: Corsairs, Privateers, Buccaneers, and Invading Settlers
in Cuba and the Caribbean (1529-1670), Florida, University of Central Florida, 2015, pp. 30-32
8
HESPANHA, António Manuel, op. cit., p. 371

8
e dez faluas.”9. A derrota perante a marinha inglesa, em 1558, trouxe graves
consequências para a União Ibérica, a hegemonia marítima espanhola caiu perante a
ascensão naval Inglesa. A enfraquecida armada espanhola via ainda mais dificultada o
seu policiamento no império ultramarino e assim os navios mercantis estavam mais
expostos aos ataques de inimigos e às ameaças piratas existentes na América Central.
Além deste claro enfraquecimento da armada portuguesa, Portugal sentiu também
posteriormente a diminuição da qualidade dos seus navios devido ao arrendamento da
fábrica e concerto das naus a privados por Filipe II. A qualidade das suas madeiras e o
modo de construção e reparação destas embarcações levou a um aumento dos
naufrágios nas armadas enviadas para a Índia. “Em 1600, indo para o oriente catorze
naus, galeões e navios, perderam-se quási todos no regresso. Em 1591 e 1592, partindo
da Índia vinte e duas embarcações, chegaram ao Tejo só duas, que, por serem velhas,
não traziam carga.”10

“Portanto nos sessenta anos que durou a dominação espanhola, foram


mandadas para o oriente 312 embarcações, das quais se perderam 87, no valor de
mais de setenta e cinco milhões de cruzados.”11. Esta lamentável decadência da
Marinha Portuguesa desde o domínio Filipino, apenas foi revertida no reinado de D.
Maria com o esforço de restaurar o poderio da marinha de guerra nacional, levado a
cabo por Martinho de Melo e Castro enquanto ministro da coroa.

Em 1640, devido a vários factores, Portugal forçou o fim da união dinástica


entre as duas coroas Ibéricas. Para os portugueses o único resultado que interessava
era o da vitória sobre os espanhóis, pois apenas esse significava a obtenção de
independência. Esta insubmissão do povo lusitano face ao domínio espanhol, e o início
da Guerra da Restauração representaria a reviravolta no que à reanimação dos
aparelhos militares portugueses diz respeito. Deste modo a rivalidade ibérica que aqui
se refere poderá ter tido implicações futuras na ação de Bartolomeu Português, já que
como Alexandre Olivier diz: “Este pirata fez a vida negra aos espanhóis, mas tirou
pouco proveito dos seus roubos, indo morrer na mais extrema miséria”.

9
Idem, p. 387
10
HESPANHA, António Manuel, op. cit., p. 391
11
Idem, p. 389

9
É nesta conjuntura política, social e militar/naval que nasce Bartolomeu
Português. Não se sabe a data do seu nascimento, contudo é possível inferir
logicamente que, tendo falecido em 1669, o seu nascimento se inclua num espaço
temporal de domínio filipino ou durante os primeiros anos da Guerra da Restauração.
Ainda que a ausência de fontes sobre a sua origem determine algumas incertezas de
carácter pessoal e individual, é sabido que é esta a conjuntura nacional e internacional
que marca o seu crescimento e a entrada no mundo ilegal da pirataria.

10
Os conhecidos feitos e aventuras de Bartolomeu Português
Bartolomeu Português, tal como o seu “apelido” nos indica, nasceu em Portugal
e, tal como pouco se sabe sobre a sua a origem social e as suas motivações, também
são poucas as referências em que podemos basear o estudo do percurso da sua vida.
(Ver anexo 5). Por essa mesma razão, há também pouca informação sobre as suas
aventuras como pirata nos mares da América central e, por isso, este capítulo apenas
procura fazer uma compilação dos seus feitos conhecidos, aqueles que nos chegaram
até hoje. A ausência de documentos portugueses que retratam a prática da pirataria
portuguesa é também deveras notável. A intensificação e propagação de uma visão
idealista da expansão portuguesa não permitiu o registo ou preservação de
documentos relativos às práticas de corso e pirataria por parte de muitas figuras
portuguesas heroificadas como Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral.12 Neste caso, a
inexistência destas fontes portuguesas também se aplica ao protagonista deste
trabalho: Bartolomeu Português.

“Nunca se conheceu ninguém tão constantemente perseguido pelo azar, como


Bartholomeu de Português (o Português)”13. Entre poucos momentos de sorte e muitos
de azar, assim se pode caracterizar a vida de Bartolomeu que, por motivos de
desconhecimento do seu apelido, foi-lhe atribuído o nome “Português” por ser umas
das escassas informações existentes sobre ele. “As andanças antilhanas deste
assaltante de barcos quadram plenamente com a representação habitual do pirata:
audácia, determinação, carácter violento, enfim, uma singular capacidade para
superar as dificuldades que se apresentavam a um foragido no decurso das suas
aventuras.”14. Em História de los Aventureros-Filibusteros y Bucaneros de América de
Alexandre Olivier e O grande livro dos Piratas de Wolfram Zu Mondfeld encontramos
relatos de uma das muitas aventuras do nosso protagonista e serão nesses mesmo
relatos que se baseará a narração dos próximos parágrafos. “El tuvo después muchas
otras que podrían passar por otras tantas novelas si yo las relatase.”15.

12
PELÚCIA, Alexandra, op. cit., p. 16
13
MONDFELD, Wolfram Zu, O Grande Livro dos Piratas, Lisboa, Círculo de Leitores, 1979, p. 189
14
GUERREIRO, Luís R., O Grande Livro da Pirataria e do Corso, Lisboa, Temas e Debates, 1997, p. 248
15
OEXMELIN, Alexandre Olivier, Historia de los Aventureros-Filibusteros y Bucaneros de América,
República Dominicana, Editora Montalvo, 1953, p. 79

11
Em 1662, na ilha da Jamaica, uma ilha controlada pelos piratas, Bartolomeu
Português preparou uma pequena embarcação composta por 30 homens e 4 pequenas
peças de canhão, cada um destes canhões disparavam projéteis com o peso de 3
libras. Estando na liderança, a sua embarcação partiu dessa mesma ilha em direção ao
sudoeste da ilha de Cuba, Cabo Corrientes, uma zona de grande tráfego de navios
espanhóis provenientes das cidades de Caracas ou de Cartagena. Navegando por estas
águas não demorou muito a que a sua embarcação avistasse um navio comerciante
espanhol e, após uma breve discussão com a sua tripulação, decidiu perseguir e
abordar o navio. Nessa discussão foram debatidos tópicos como o aparente poderio
militar do navio comerciante e os perigos que daí poderiam advir, contudo a sua
tripulação mostrou-se disposta a correr riscos para meter mão na sua carga.16

O navio espanhol era tripulado por um total de setenta marinheiros, e tal como
era normal nesta zona, estava equipado com um número considerável de canhões.
“Cuando los buques españoles vienen a ese lugar, están sempre preparados, como lo
están los buques que vienen de Europa, que pasan por ele Cabo de San Vicente, a causa
de los turcos que cruzan por allí ordinariamente.”17

Com efeito, sem sofrer danos consideráveis a embarcação de Bartolomeu


Português sofreu uma primeira descarga de tiros de canhão do navio espanhol. Sem
resposta por parte do português, os dois navios posicionaram-se lado a lado prontos
para o combate corpo a corpo. Apesar das repetidas tentativas por parte dos piratas
sob o comando de Bartolomeu de assaltar o navio espanhol, os tripulantes leais à
coroa espanhola iam resistindo. Rapidamente o navio comandado habilidosamente
pelo português posicionou-se atrás do navio comerciante e, durante quase uma meia
dúzia de horas, foram disparados os canhões sobre a embarcação mercantil. Depois de
provocar um grande número de baixas e um grande desgaste moral nos espanhóis, os
companheiros de Bartolomeu voltaram a assediar e a assaltar o navio, tendo sido
desta feita bem-sucedidos. Para a Companhia do pirata Português o resultado do
combate foi um conjunto total de dez mortos e quatro feridos, enquanto que dos
setenta homens que tripulavam o navio espanhol, trinta deles morreram e quarenta

16
OEXMELIN, Alexandre Olivier, op. cit., p. 76
17
Ibidem

12
foram capturados. Destes quarenta tripulantes capturados, a maior parte eram
feridos. Os mortos foram atirados ao mar, os capturados foram obrigados a repararem
o navio dos estragos provocados em combate e fizeram a contagem do saque obtido
pelos piratas, tudo isto a comando do português. O saque obtido foi de “…75.000
escudos y 120.libras de cacao, que podían muy bien valer 50.000 escudos” 18

Após a reparação do navio, Bartolomeu Português e a sua tripulação iniciaram


viagem em direção à ilha da Jamaica, contudo devido às mudanças de ventos foram
obrigados a desviar a sua rota e a atracar o navio no Cabo de San António, na ilha de
Cuba. Quando foi possível voltaram a lançar-se ao mar em direção ao destino inicial e
passado algum tempo, durante a sua viagem, foram avistados por 3 navios espanhóis.
Estes navios, embora também destinados ao comércio, estavam preparados e
equipados para a guerra. Prontamente, o navio comandado pelo português pôs-se em
fuga, todavia, devido ao excesso de peso que carregava em saque, acabou por ser
capturado e os seus tripulantes renderam-se.

Bartolomeu Português fora capturado e levado para a cidade de San Francisco


de Campeche pelas autoridades espanholas e graças à sua capacidade de falar
espanhol conseguiu obter um tratamento especial pelo capitão do navio em que
estava a ser transportado. O Pirata português era intensamente procurado pelas
autoridades e quando chegou à dita cidade teve problemas com as justiças locais.
Embora tenhamos a sensação de que Bartolomeu criou uma espécie de amizade com o
capitão do navio em que foi transportado, este foi obrigado a entregar o fora de lei ao
governador da cidade. As autoridades da cidade, receando que o português pudesse
fugir, ordenaram que este fosse preso num navio e atado pelos seus pés e mãos com
uma corda.

Numa das noites, após ter descoberto que tinha sido sentenciado à forca pelo
governador da cidade, e conduzido pelo sentimento de desespero em relação à sua
sentença, Bartolomeu conseguiu finalmente soltar-se das suas amarras e fugir do
navio. Matou o sentinela que o guardava e prendeu um conjunto de vasos ao seu
corpo de modo a que pudesse flutuar na água e assim nadar até à costa. Ao chegar a

18
OEXMELIN, Alexandre Olivier, op. cit., p. 77

13
terra, rapidamente se escondeu na floresta e durante três dias e três noites subiu um
rio com uma grande densidade de arbustos para que se pudesse esconder. Durante
todo este tempo o português manteve-se dentro de água para que os cães que
auxiliavam as buscas espanholas não o pudessem cheirar. Começou por planear a sua
deslocação até ao Golfo Triste, lugar onde os piratas se reuniam frequentemente, e
durante esta jornada de doze dias foram imensos os perigos que Bartolomeu teve de
ultrapassar. Apenas alimentando-se de caracóis que ia encontrando ao longo da costa,
o português teve de fazer travessias de rios com crocodilos, de águas salgadas com
tubarões e durante meia dúzia de léguas foi obrigado a deslocar-se em cima de
Mangue19.

No décimo segundo dia de jornada o pirata português chegou finalmente ao


seu destino e reencontrou-se com antigos piratas de nacionalidade francesa e inglesa
seus conhecidos. Durante este reencontro, e após a exposição da situação em que se
encontrava, tentou persuadi-los a darem-lhe um navio para que pudesse voltar ao
ativo, contudo apenas lhe foi possível obter um pequeno bote. Ainda que apenas
possuísse uma pequena embarcação, Bartolomeu levou consigo doze homens que de
noite navegaram ao longo da costa à procura de um novo navio para assaltar. “… todo
lo largo de la costa, por temor que fueran descubiertos, aunque no había mucho
peligro, porque los botes eran muy numerosos com motivo de la pesca y ya estaban
acostumbrados a verlos…”20. Devido ao número reduzido de homens com que a sua
empresa contava, o pirata português esboçou um rigoroso e cuidadoso plano e todos
os seus tripulantes concordaram. Nessa mesma noite viram a sorte a bater-lhes à porta
quando avistaram um navio mercantil que navegava perto da sua posição, e com um
plano ardiloso conseguiram mesmo capturá-lo. Bartolomeu Português conseguiu
enganar o sentinela do navio mercantil ao afirmar que eles próprios pertenciam a um
dos seus botes enviados à costa para comercializar mercadorias, e desejavam apenas
regressar ao navio e descarregar tudo o que traziam. Assim sendo, três ou quatro dos
subordinados de Bartolomeu conseguiram subir ao navio e matar todos os que o
tripulavam. Possuindo agora uma maior embarcação, lançaram-se de novo ao mar

19
Ecossistema costeiro característico da transição entre os ambientes terrestres e marinhos de regiões
tropicas e subtropicais.
20
OEXMELIN, Alexandre Olivier, op. cit., p. 79

14
“…regressou a Campeche, assaltando pela segunda vez o seu antigo barco-presa, ainda
surto no porto.”21 e após capturarem-no navegaram de volta ao Golfo Triste para se
reencontrarem com os antigos companheiros. Já a caminho da Jamaica, na costa
meridional de Cuba, e com o intuito de armar o seu navio com algumas peças de
canhão, o navio do português foi apanhado numa tempestade que os levou para uma
área de recifes e devido à força da natureza acabou por naufragar. Para a empresa de
Bartolomeu Português foi um desastre, houve um grande prejuízo material pois
perdeu-se uma grande quantidade de cacau, a que se juntou um desgaste moral
enorme. Os tripulantes do navio e Bartolomeu foram capazes de fugir da tempestade
através de um bote e de chegar à Jamaica sãos e salvos, contudo isto marcou o fim
desta empresa, e partir daí cada um seguiu o seu rumo e procurou fazer a sua
fortuna.22 O pirata, já sem meios para continuar a sua aventura, acabou por adoecer e
dedicar-se à mendicidade nesta ilha, acabando assim a viver na “…miséria como é
normal ao português de excepção."23.

21
MONDFELD, Wolfram Zu, op. cit., p. 190
22
OEXMELIN, Alexandre Olivier, op. cit., p. 79
23
BIDARRA, Pedro, “O Partido Bartolomeu Português”, in Diário de Notícias, consultado a 13/11/1018
em https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/pedro-bidarra/interior/o-partido-bartolomeu-portugues-
4763667.html

15
Código da Pirataria: Um ensaio da democracia
A origem desta sociedade pirata, também conhecida por Boucanniers
(Bucanneers em inglês), na América Central remonta à instalação de colonos franceses
na ilha do Haiti, na altura controlada pelos espanhóis. Estes colonos, além de serem
caçadores exímios, ficaram conhecidos como Boucanniers devido ao domínio da
técnica de defumação de carne “Boucan”. A sua expulsão e marginalização pelas
autoridades espanholas desta ilha fez com que estes fossem obrigados a procurar
outros modos de subsistência. Foi através do ataque a outros navios e a saques de
colónias espanholas que estes piratas encontraram a sua forma de sobrevivência,
tendo como base de operações a ilha da Jamaica e de Tortuga.24 (Ver anexo 6)

“Entre os ‘Boucaniers´ e os flibusteiros não havia diferenças de classe. O capitão


escolhido tinha exclusivamente poder de comando em combate, podendo ser deposto
em qualquer altura. Não havia também direitos especiais para ele.” 25. Wolfram Zu
Mondfeld, em O Grande Livro dos Piratas, conta-nos muitas das situações do
quotidiano que o capitão partilhava sem qualquer tipo de diferenciação com o resto da
tripulação. Verificamos, por exemplo, que o capitão dormia nas mesmas condições e
que comia até o mesmo tipo de alimentos, junto da sua tripulação. Nestas
embarcações todos eram iguais e tudo era de todos, algo inovador e nunca antes visto
na sociedade europeia do século XVII. Esta organização era de tal forma inovadora que
apenas verificamos a difusão de alguns destes princípios no final do século XVIII com o
desencadear da Revolução Francesa.

Erradamente imaginamos estes piratas como pessoas selvagens, anarquistas e


sem qualquer tipo de disciplina. Embora desenvolvessem o seu “negócio” de forma
autónoma, sem responder perante qualquer coroa europeia, os piratas criavam uma
espécie de “estado independente” dentro da sua própria embarcação. “It should be
self-evident that a sailing vessel required a large degree of coordinated collaborative
labour in its management. Every day tasks such as trimming and balancing sails,
steering the ship and maintaining the ship’s fabric, as well as extraordinary tasks like
loading and unloading cargo and supplies, or manning cannon in battle, all required

24
MONDFELD, Wolfram Zu, op. cit., p. 184
25
Idem, p. 185

16
coordination and direction, and so it was inevitable that some kind of command
structure should exist to provide them.”26.

Nesta espécie de “estado independente”, a função de assegurar o eficaz


funcionamento do navio, de todos os tripulantes e as suas tarefas e a sua navegação
seria deixada para o Mestre e seus ajudantes. Por outro lado, o capitão, sem qualquer
trato especial, surgia como figura máxima de decisão e como garante da organização e
do funcionamento ordeiro do navio, podendo ser assistido por um ou mais tenentes.
As suas funções seriam, mais tarde, legitimadas pelo Código da Pirataria que enquanto
código legal regia as leis e princípios aos quais os piratas tinham de obedecer.

Assim, “…the articles were drawn up not to establish order, but because the
system of maintaining order which had already been in place was becoming, or
believed to be becoming, progressively less stable.”27. Desta forma, o Código da
Pirataria veio complementar e reforçar a cada vez mais questionada autoridade do
capitão. Variando de navio para navio, estas regras podiam ser escritas pelo capitão,
por um grupo de marinheiros ou até mesmo pela totalidade dos tripulantes. Após o
juramento feito por todos, este documento surgia como fonte de direito corporizando
as leis dos respetivos navios.

É ainda possível afirmar que a compilação e a execução deste conjunto de


regras eram influenciadas pela própria experiência de vida do capitão e dos piratas,
bem como da sociedade “legítima” em que estes se inseriam. Assim sendo, o que se
observava era uma “sociedade” pirata que através do seu código procurava responder
ou até corrigir problemas que estavam presentes na sua antiga comunidade: desde o
mau funcionamento de sistemas de hierarquia e autoridade ao controlo social e de
justiça.28

A criação do primeiro Código Pirata é da autoria de Bartolomeu Português. É


certo que estas leis e ideias já eram aplicadas nas embarcações piratas, mas este
código foi uma inovação para a época já que significou a materialização da aplicação

26
FOX, Edward Theophilus, Piratical Schemes and Contracts: Pirate Articles and their Society, 1660-1730,
Exeter, University of Exeter, 2013, p. 102
27
Idem, p. 54
28
Idem, p. 73

17
destas ideias socialmente revolucionárias que seriam apenas impostas no mundo
europeu mais de cem anos depois. Este Código surgiu como um contrato de aprovação
geral, os seus artigos, património e interesses dos despojos estavam regulamentados.
Todos os seus assinantes juravam solenemente o respeito deste código, e o seu
desrespeito era procedido de punição previamente estipulada.29

Não se sabe o ano em que Bartolomeu o redigiu, mas a sua criação é tão
importante para o bom funcionamento destes negócios que, com variações possíveis,
passou a ser parte integrante de todas as companhias piratas daí em diante.
Infelizmente, o Código do nosso pirata português não chegou aos dias de hoje: na
iminência de uma possível captura pela parte das autoridades europeias, os piratas
queimavam tudo o que pudesse servir de prova contra si, incluindo livros de regras
como este. Hoje, um dos códigos mais conhecidos é de Bartholomew Roberts, e
acreditamos que este será muito semelhante e baseado no primeiro código pirata.
Dito isto, podemos observar que são 11 as leis que constituem este documento:

1 - Todos os homens têm direito a voto sobre os assuntos do momento e igual


direito às provisões de comida e bebida apreendidas em qualquer altura. Estas podem
ser consumidas a seu bel-prazer, a não ser que um caso de escassez torne necessário,
para o bem de todos, o racionamento;

2 - Todos os homens serão justamente chamados, segundo um rol, a bordo dos


navios tomados, uma vez que (para além do seu justo quinhão) têm, nestas ocasiões,
direito, à vez, a tomar uma muda de roupa. Porém, quem defraudar a companhia no
valor de um dólar em loiça, joias ou dinheiro, será abandonado na costa como castigo;

3 - Pessoa alguma jogará aos dados ou às cartas por dinheiro;

4 - As luzes e velas serão apagadas às oito da noite. Quem, entre a tripulação,


tiver ainda inclinação para continuar a beber, deve fazê-lo no convés;

5 - As armas, pistolas e cutelos serão mantidos limpos e prontos para uso;

29
MONDFELD, Wolfram Zu, op. cit., p. 186

18
6 - Nenhum rapaz ou mulher será admitido entre a companhia. Qualquer
homem, descoberto no acto de seduzir algum elemento do sexo fraco e intentar levá-
la para o mar disfarçado, sofrerá pena de morte;

7 - Abandonar o navio ou os postos de combate a meio de uma batalha é


ofensa punível com a morte ou com o abandono em terra erma;

8 - Não haverá combates e disputas a bordo; todas as contendas serão


resolvidas em terra, à pistola e espada, do seguinte modo: se as partes não chegarem a
acordo pacífico, o contramestre acompanhá-los-á a terra com a assistência que julgar
apropriada e colocará os contendores de costas voltadas, a um determinado número
de passos de distância. À sua ordem, os homens voltam-se e disparam de imediato
(caso contrário a arma é-lhes retirada das mãos). Se ambos falharem, a contenda será
disputada com cutelos, sendo declarado vitorioso aquele que primeiro derramar
sangue;

9 - Homem algum falará em desfazer esta forma de vida até que cada um tenha
adquirido 1000 libras. Se, na execução deste objetivo, algum homem perder um
membro ou estropiar-se ao serviço da companhia, receberá 800 dólares do espólio
comum, ou uma indemnização proporcional em caso de ferimento menor;

10 - O capitão e o contramestre receberão duas partes de um espólio; o


segundo contramestre, o piloto, uma parte e meia; e os restantes oficiais, uma parte e
um quarto;

11 - Os músicos terão descanso ao sábado, mas em nenhum dos restantes seis


dias e noites sem favor especial.30

Ao ler estas 11 leis apercebemo-nos rapidamente da complexidade do bom


funcionamento de uma embarcação deste tipo e da preponderância de um conjunto
de regras socialmente sensíveis quanto ao estabelecimento da igualdade entre todos
quanto ao poder de voto e à divisão das provisões. No que concerne aos saques
obtidos, os tripulantes teriam direito a um quinhão do espólio enquanto o capitão, o

30
Não tendo tido a possibilidade de trabalhar com a própria fonte, este Código de Bartholomew Roberts
sobreviveu através do livro História Geral dos Piratas, de Charles Johnson que serviu de base para a
enunciação das leis referidas.

19
contramestre e pessoas de outros ofícios importantes receberiam, respectivamente,
duas partes do espólio e uma parte e um quarto. Observamos também a importância
da honra e do compromisso entre os piratas para com esta empresa quando o código
afirma não serem aceites abandonos de postos em situações de combate, sendo
mesmo punível com morte, e que apenas um homem se poderá desfazer e “reformar”
do resto da tripulação quando tiver conseguido adquirir 1000 libras. Também é
valorizada a ordem e o bem-estar ao ser definido que problemas e disputas entre
membros da tripulação apenas serão resolvidos em terra, acompanhados pelo
contramestre. Também a proibição de jogos com dados e cartas envolvendo dinheiro
entram para esta equação, isto porque provavelmente estas actividades poderiam
acabar em discussão ou em conflito de interesses. As regras 4 e 5 estabelecem normas
para segurança do navio: obrigatoriedade em apagar todas as luzes às oito da noite,
que significava uma maior segurança para a embarcação pois aumentava a dificuldade
do seu avistamento perante outros navios; e o indispensável estado de prontidão de
todas as armas para combate. Na sexta lei observamos a não admissão de rapazes e
mulheres nestas tripulações. Para isso podemos apontar motivos de ordem
fisionómica, já que mulheres e rapazes podiam possuir uma força menor. Além disso, a
presença de alguém do sexo feminino num navio poderia causar distracções, má sorte
e futuros conflitos. Não esquecer que apesar de este documento ser em certos
aspectos uma inovação, os homens são produtos do seu tempo e isso pressupõe que
certas tradições e dogmas se mantenham: a inferiorização da mulher nos diversos
aspectos sociais. Mas como tudo no mundo existem excepções e como exemplo disso
temos várias mulheres piratas que se distinguiram e marcaram a Idade de Ouro da
Pirataria tais como Anne Bonny, Mary Read e Anne Dieu-Le-Veut. Por último, há uma
regra que estabelece os horários dos músicos a bordo do navio. Os músicos eram
importantes para animar o espírito dos marinheiros e tocar em rituais religiosos.
Normalmente, os piratas eram pessoas muito religiosas e dedicavam uma parte
significativa do seu tempo à realização de missas. “No início de cada viagem,
mandavam celebrar uma missa e todos os domingos, em pleno mar, o capitão ia
buscar a Bíblia ao cofre de bordo e lia um ou outro versículo…”31

31
MONDFELD, Wolfram Zu, op. Cit., p. 187

20
Encontramos neste documento um espírito quase que democrático que,
embora com algumas diferenças óbvias, promove a igualdade entre todos. As
liberdades pessoais e a igualdade promovida por estas regras funcionavam como um
factor fundamental de atração de marinheiros à prática da pirataria.

Poderá este Código ser comparado a um protótipo de Constituição? De um


ponto de vista mais ousado, não será descabido dizer que alguns dos seus princípios
podem ter inspirado formas de governo, códigos civis e Constituições num futuro
historicamente próximo. Já um século antes da Revolução Francesa, se promovia
nestas embarcações a igualdade de voto entre todos os seus tripulantes. Mesmo antes
da difusão das primeiras “luzes” do iluminismo pela Europa, os primórdios de uma
“segurança social” moderna era desenvolvida por estes homens “selvagens e
anarquistas”, como à data eram conhecidos: “As feridas foram classificadas do
seguinte modo: Para a perda de um dedo, 100 piastras; de uma orelha, 100;…”32.
Wolfram Zu Mondfeld vai historicamente mais à frente e afirma mesmo que Karl Marx
e os outros filósofos do socialismo e comunismo encontraram nestes piratas da
América Central as bases e exemplos de cumprimento das suas doutrinas.33. Se
colocarmos lado a lado os dois tipos de documentos, Código Pirata e Constituição, as
suas definições coincidem perfeitamente. Os dois surgem como conjuntos de normas
que regem um Estado, num caso um estado representante de um território geográfico
dotado de instituições políticas governamentais e no outro um adaptado aparelho
estatal em alto mar num navio, e que enumera e limita os poderes e funções das
diversas entidades políticas e dos seus intervenientes.

32
MONDFELD, Wolfram Zu, op. cit., pp. 186-187
33
Idem, p. 185

21
Conclusão
A Pirataria na América Central, conhecida como a Idade de Ouro da Pirataria,
surge como um acontecimento histórico importante no que toca à evolução de
poderes e influências das nações europeias neste território. A conjetura política e
militar/naval na Europa têm repercussões no desenvolvimento desta prática. Além do
combate com outras nações, os colonos e aparelhos militares/navais europeus vêm-se
na necessidade de combater este novo inimigo em crescimento, que muitas vezes é
difícil. Estes piratas chegam a ter tanta influência que, em situações de exceção,
chegam a ser alvo de tentativas de aliança por parte de poderes europeus. No século
XVII, a pirataria nas Caraíbas estava “na moda” e era praticada por muita gente,
contudo era um negócio que trazia muitos riscos.

A aventura de Bartolomeu Português reflete esse bem o risco que a prática da


pirataria representava para os seus intervenientes. Embora a possibilidade de obter
um grande número de riqueza num curto espaço de tempo, os piratas corriam o
grande perigo de serem capturados, mortos ou mesmo de naufragarem a qualquer
momento. Um negócio que apenas os mais corajosos e destemidos estariam aptos a
praticar. O nosso protagonista tentou chegar à riqueza e à fama que todos piratas
sonhavam e foi capturado, voltou a tentar e fracassou novamente, acabando por
morrer na miséria.

A falta documental ao longo da realização de trabalho é evidente e tem duas


principais consequências. Por um lado, dificulta a compilação de informação sobre
Bartolomeu Português e na sua consequente exposição. Por outro, abre espaço para a
especulação sobre alguns aspectos sobre o nosso protagonista. Por exemplo, sobre a
sua origem, podemos especular que Bartolomeu pertenceria a uma família
minimamente abastada com capital suficiente que lhe possibilitou o início da sua
carreira de pirata.

Além dos seus feitos, Bartolomeu surge como um pirata inovador quanto à
materialização das condutas e regras piratas, o tão famoso Código Pirata. Neste código
de regas verificamos alguns princípios que são à frente do seu tempo. Apesar de serem
aplicadas em casos específicos e situações a bordo de um navio, não deixam de

22
promover princípios democráticos, princípios que apenas seriam instaurados na
Europa um século depois com o desencadear da Revolução Francesa.

Quem diria que um filho do pequeno e tantas vezes esquecido território


português fizesse algo tão surpreendente para o mundo que o rodeava, algo que
inspiraria o futuro das nações. Não querendo dizer que se não tivesse sido o nosso
compatriota a escrever o primeiro Código da Pirataria que não o fizesse outro pirata,
mas como já estamos habituados, grandes coisas são feitas pelos pequenos grandes
portugueses.

23
Bibliografia Geral
 ELLMS, Charles, The Pirates own book: Authentic Narratives of the Most
Celebrated Sea Robbers, North Chelmsford, Courier Corporation, 1993
 GILBERT, John, Piratas e Corsários, Lisboa, Editorial Verbo, 1976
 GUERREIRO, Luís R., O Grande Livro da Pirataria e do Corso, Lisboa, Temas e
Debates, 1997
 HESPANHA, António Manuel, Poder e instituições na Europa do Antigo Regime,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984
 MONDFELD, Wolfram Zu, O Grande Livro dos Piratas, Lisboa, Circulo de
Leitores, 1979
 SALMORAL, Manuel Lucena, Piratas, Bucaneros, Filibusteros Y Corsarios en
AméricaI: Perros, mendigos y otros malditos del mar, Espanha, MAPFRE, 1994
 PELÚCIA, Alexandra, Corsários e Piratas Portugueses, Aventureiros nos Mares
da Ásia, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010

Estudos

 FERNÁNDEZ, Luis Martínez, Far beyond the Line: Corsairs, Privateers,


Buccaneers, and Invading Settlers in Cuba and the Caribbean (1529-1670),
Florida, University of Central Florida, 2015
 FOX, Edward Theophilus, Piratical Schemes and Contracts: Pirate Articles and
their Society, 1660-1730, Exeter, University of Exeter, 2013

Fontes Impressas

 JOHNSON, Charles, História geral dos roubos e assassínios dos mais notáveis
Piratas, Lisboa, Cavalo de Ferro Editores, 2005
 OEXMELIN, Alexandre Olivier, Historia de los Aventureros-Filibusteros y
Bucaneros de América, República Dominicana, Editora Montalvo, 1953

Webgrafia - Artigo de Jornal (Formato Digital)

 BIDARRA, Pedro, “O Partido Bartolomeu Português”, in Diário de Notícias,


consultado a 13/11/1018 em https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/pedro-
bidarra/interior/o-partido-bartolomeu-portugues-4763667.html

24
Anexos

25
Anexo 1 - Mapa de Joannes Janssonius de 1636 - Geografia e aspectos coloniais da América Central.
Disponível em: http://www.islandmapstore.com/product_details.php?pid=42&catid=4

Anexo 2 - Modelo de bandeira Pirata mais conhecida mundialmente. Disponível em:


https://www.thevintagenews.com/2016/11/27/skull-and-crossbones-the-history-of-the-jolly-roger-
flag/

26
Anexo 3 - Bandeira adaptada do navio de Henry Avery, de origem inglesa. Disponível em:
https://bistury.wordpress.com/tag/henry-avery/

Anexo 4 - Bandeira do navio pirata de Stede Bonnet, nascido em Bridgetown, Barbados. Disponível
em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jolly_Roger#/media/File:Pirate_Flag_of_Stede_Bonnet.svg

27
Anexo 5 - Imagem de Bartolomeu Português. "Trade Card" da Série (N19) "Pirates of the Spanish Main" de
1888 da empresa de cigarros Allen & Ginter. Disponível em:
https://www.metmuseum.org/art/collection/search/408899

Anexo 6 - Retrato de um "Boucanier" na posse de uma arma de fogo,


representando a sua perícia em tiro. Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/Buccaneer#/media/File:Pyle_pirate_handsome.jpg

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