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A CONSTRUÇÃO DA FÉ NO DEUS ÚNICO:

O desenvolvimento do monoteísmo e a fixação do javismo em Israel a partir das


influências da mitologia Cananéia no estabelecimento da monarquia do VII século a.C.

Jovanir Lage

Resumo

O modo como Israel encarou suas crises e relembrou seu passado moldou
profundamente o monoteísmo bíblico e a memória de Deus na Bíblia. Em reação às
mudanças trazidas do exterior para Judá, os líderes do século VII, em Jerusalém,
governados por Josias, reforçaram o desenvolvimento do monoteísmo e rejeitaram
qualquer forma estrangeira de culto.

A exigência de exclusividade, descrita pelo primeiro mandamento, compõe o núcleo da


religião Javista e esta, passa a ocupar lugar central no culto em Israel.

O presente trabalho tem como objetivo pesquisar o processo de formação e


desenvolvimento do monoteísmo em Israel, a partir de suas práticas politeístas. A
reformulação deste politeísmo proporcionou a fixação do culto a Javé como Deus único,
de forma gradativa, na terra de Canaã, assumindo com o tempo matizes mais histórica.

Introdução

A importância dos achados em Ugarit

As influências da religião Cananéia na cultura e religião de Israel, tornam-se objeto de


estudo cada vez mais freqüente. Este não é um assunto novo, mas, relativamente recente
e explorado por pesquisadores, que desde os achados de Ras-Schamra na região de
Ugarit em 1928 1 , propõem a redescoberta da religião Cananéia, e assim, sua
importância para o estudo do Antigo Testamento. Após a descoberta e estudo do
material encontrado em Ugarit, a religião Cananéia passou a ser observada com outras
perspectivas, pois até algumas décadas atrás, ela era considerada um enigma com
poucas referências realmente confiáveis.

Até então, para entender a história do monoteísmo, muitas das discussões, giravam em
torno do contraste dos textos bíblicos com os textos do antigo Oriente Próximo.
Assumia-se que Israel era essencialmente monoteísta e quando cedia às práticas
politeístas, era porque tinha sido tentado pelos costumes de seus vizinhos.

Nestas pesquisas, ninguém perguntava se nas religiões do antigo Oriente Próximo ou


mesmo no antigo Israel, o politeísmo teria feito mais sentido do que o monoteísmo,

1
cf. FOHRER, Georg. 2006. p54, BROWN, Raymond E. 1986. p 20 e VAUX, R. De,
2003. p 477.
porque sempre se pressupunha que o politeísmo era uma forma inferior da cultura destes
povos.

A descoberta de Ugarit trás um novo olhar para os antecedentes culturais da perspectiva


politeísta. Podemos ver que as articulações do monoteísmo em Israel, se apresentaram
como formulações reformadas do politeísmo israelita, sendo ele próprio, uma versão
dos vários politeísmos existentes durante o período do Bronze recente e da Idade do
Ferro. (1550 – 1000 a.C.)

Inserido neste contexto está a possibilidade da adaptação e construção de uma divindade


em Israel que se reformula a partir das experiências do povo, até se consolidar como
Deus único. O monoteísmo se desenvolveu com maior força no período da monarquia
em Israel, ou pelo menos em segmentos de sua população e posteriormente se tornou
normativo para os autores dos textos bíblicos.

As muitas religiões e seus elementos comuns

Muitos caminhos se abriram nesta nova abordagem, e uma delas foi a localização de
elementos comuns às muitas outras religiões semitas da Síria e da Palestina. Estas
religiões tinham em comum, as características e personalidade das divindades:

 deuses antropomórficos (em forma de homem);


 divindades astrais como Sol, Lua e Vênus, adorados como deuses principais;
completa dependência dos deuses por parte dos homens;
 pecaminosidade humana e divina misericórdia;
 idéia de justiça divina e a suposição da existência de ’el, como o deus chefe do
panteão cananeu.

Ugarit era uma cidade-estado portuária localizada na costa norte da Síria, floresceu no
final do segundo milênio e foi destruída em 1200 a.C. Os achados em Ugarit dão uma
visão aproximada das questões políticas, sociais, econômicas, religiosas e artísticas, a
partir de descobertas de documentos da vida popular como monumentos arqueológicos
de representação cúltica, representação de divindades esculpidos em pedra, metal e
marfim, templos, locais de sepultamentos e de sacrifícios.

Foram encontradas nas escavações em Ugarit os primeiros vestígios da literatura


religiosa cananéia em forma de epopéias poéticas com assuntos míticos e grande
material compondo sagas e lendas. No entanto, não se pode chegar a uma conclusão de
uniformidade religiosa cananéia com base em todos estes achados, visto que uma
cidade-estado portuária dos séculos XIV a XIII a.C. não se constituía uniformemente de
uma única base populacional.

Assim a religião cananéia revela pontos de contato com muitas outras formas religiosas
do Antigo Oriente Médio sendo em muitos setores influenciada, mas também marcando
sua presença e influência em outras culturas que manteve contato. Israel é um claro
exemplo.
A religião ugarítica estava centrada no deus-chefe, El, o "pai da humanidade", "criador
da criação". A corte ou os súditos de El eram chamados de Elohim, (heb. = deuses). Os
mais importantes entre os principais deuses eram Baal , o rei dos Céus, Asherá, a
consorte de el, Yam (ou "Mar", o deus do caos primordial, das tempestades e da
destruição em massa) e Mot ("morte"). Outros deuses venerados em Ugarit eram Dagon
("grão"), o artesão Kothar-wa-Khasis ("hábil e esperto"), Shahar ("amanhecer")
e Shalim ("anoitecer").

Assimilação das características de algumas divindades para Javé

A religião de Ugarit e a religião da antiga Israel não eram a mesma, mas existiam
algumas notáveis coincidências. Por exemplo, o nome da suprema autoridade divina em
Ugarit El, era também, um dos nomes do Deus de Israel (Gênesis 33:20). El era descrito
como um deus de idade avançada, com cabelos brancos, sentado em um trono. No
entanto, em Ugarit, El era o soberano, mas outro deus administrava as coisas na terra
por El como seu vizir. O nome deste deus era Baal, um nome muito familiar para
qualquer um que tenha lido o Antigo Testamento. Em Ugarit Baal era conhecido por
diversos títulos: "rei dos deuses", "o altíssimo", "príncipe Baal" (baal zbl), e "o
cavaleiro das nuvens".

A posição de Baal como "rei dos deuses" em Ugarit, o vizinho do norte de Israel, ajuda
a explicar o "problema de Baal" no Antigo Testamento. A religião de Jeroboão no reino
do norte absorveu o culto de Baal, e em pouco tempo parecia não haver diferença entre
os dois cultos ou, se ela existia, era tão ínfima que venerar um ou o outro era apenas
uma questão teológica; foi com este tipo de problema que profetas como Elias tiveram
que lidar. O povo não tinha nenhum tipo de restrição ou algum livro sagrado, como a
Bíblia, que proibia o culto a outras divindades, apenas os profetas e suas palavras.
Quando não havia um profeta por perto para esclarecer o assunto, era mais fácil seguir o
que os vizinhos estavam fazendo - especialmente se o seu rei não se importava, ou até
mesmo preferisse isto.

É importante observar, que dentre as várias categorias de divindades, havia uma


estrutura que correspondia de certa forma, aos reinos espaciais do universo, no modo
como este era compreendido. Por um lado havia deidades antropomórficas benéficas e
por outro, criaturas monstruosas em constante ameaça à vida e à ordem do mundo.

O mapeamento do espaço divino, geralmente correspondia à divisão feita entre deidades


e criaturas monstruosas ou demoníacas, consideradas inimigos cósmicos. Enquanto as
deidades possuíam montanhas sagradas e espaços de culto, os inimigos cósmicos
habitavam o submundo. A topografia divina é organizada também de acordo com os
reinos governados pelos deuses Baal (céu), Yamm (mar) e Mot (submundo).

A montanha é, portanto, o ponto de comunicação entre a ordem divina e humana, era o


ponto central do cosmos, lugar onde os deuses festejam. Textos bíblicos posteriores
também fazem a referência ao monte sagrado, e Javé é o deus que surge em diálogo
com Moisés no alto de um monte.
Na representação do panteão, surgem expressões complexas da dimensão da violência
divina em relação aos seus inimigos cósmicos e também com a comunidade. Um texto
poético de Ugarit representa a luta cósmica entre Baal e o Leviatã (monstro marinho):
“você matou litan, a serpente voadora, aniquilou a Serpente sinuosa, uma potestade
com sete cabeças” (CAT 1.5 I 1-32).

A partir da discussão dos inimigos cósmicos de Ugarit, podemos notar três


características básicas partilhadas com o material bíblico:

1. O antigo Israel herdou os nomes cósmicos da cultura Ugarítica. Os mesmos


inimigos de Baal em Ugarit são Inimigos de Javé na Bíblia: o Mar (yam), o
Leviatã e Mot (morte).
2. Na tradição Israelita, Javé é um deus guerreiro semelhante à Baal, com títulos de
Rei dos deuses, príncipe da paz, o altíssimo e aquele que cavalga nas nuvens. O
Salmo 74.12-17 apresenta estes mesmos inimigos sendo derrotados por Javé.
Parece que Javé assimilou as características de Baal numa crescente
convergência de papéis divinos.
3. Na visão ugarítica o deus El consegue domesticar os monstros divinos. Nos
textos bíblicos surgem também associando os poderes de El com Javé, que
brinca com o Leviatã que é capturado do mar pelo “anzol” (Jó. 38.1-11)

O Deus Javé se distingue de outros deuses já por seu nome, composto por uma forma
verbal que denota ação, presença efetiva, dinamismo e eficácia. Javé foi adotado como o
único para Israel, como único que poderia atender às solicitudes do povo, mas em
contrapartida exige exclusividade. Isso não quer dizer que a fé em Javé era monoteísta,
pois, inicialmente, a existência de outros deuses não é negada em Israel.

Após a divisão fundamental entre as deidades benéficas e os inimigos cósmicos, a


próxima grande divisão na estrutura de divindades ocorre através de uma estrutura
hierárquica, assemelhando-se ao modelo patriarcal. O panteão é uma grande família,
onde os vários filhos competem entre si. Os textos ugaríticos apresentam uma estrutura
de quatro níveis do panteão:

1. El e sua esposa asherá


2. Os filhos divinos: Baal, Shahar ("amanhecer") e Shalim ("anoitecer").
3. artesão Kothar-wa-Khasis ("hábil e esperto"),
4. Trabalhadores divinos: mensageiros ( anjos), porteiros, servos

Como patriarca da família divina, El governa e preside o panteão e este modelo divino é
também conhecido como assembléia de El ou concílio dos deuses. A literatura bíblica
também apresenta uma estrutura semelhante de assembléia divina e pode ser
representado da seguinte forma:

1. El e asherá
2. Baal, astarte, Shalim, Reshep e Deber. Javé é o estrangeiro de Edom / Sinai

2
CAT – The Cuneiform Alphabetic Texts from Ugarit.
3. Mensageiros (anjos)
4. Servos

O nome El, na palavra Israel já sugere que este deus e não Javé, era o cabeça do
panteão, o salmo 82 deixa bem evidente este modelo de panteão “El preside a
assembléia divina, no meio dos elohim, ele é o juiz”. Javé aparece inicialmente
como um estrangeiro, um deus guerreiro, um elohim na assembléia de El.

O fato de Javé ser um deus guerreiro, com o passar do tempo, pelo fato de ser mais
lembrado do que El, começa a ocupar lugar de destaque no panteão. Torna-se ainda
mais comum em Javé, a transposição das funções dos outros deuses. Na primeira
metade da monarquia, as mudanças começam a ficar mais acentuadas, Javé e El
começam a ser identificados em muitas partes do antigo Israel, até que Javé assume
a posição daquele que preside o panteão. (1Reis 22.19)

Javé começa a ganhar prestígio entre os profetas e com o evento das invasões dos
povos dos impérios mesopotâmicos, torna-se cada vez mais necessária a presença
de um deus único que garantiria a coesão do povo.

A noção de família divina entra em colapso com as muitas guerras e invasões, surge
então uma visão de mundo monoteísta com base nos modelos de monarquia. O
povo então se vê sob os cuidados de um deus único que governa soberanamente os
impérios de todo o mundo.

A força do monoteísmo e a validação pelo poder

O monoteísmo foi, portanto, uma interpretação da realidade a luz dos


acontecimentos desenvolvidos do oitavo ao sexto século. Uma nova visão de deus
surge como resposta revolucionária que forjou uma nova visão de mundo, fora dos
padrões tradicionais.

Finalmente, o monoteísmo surge então como uma lente interpretativa onde noções
religiosas antigas são refratadas e reinterpretadas, proporcionando um sistema de
interpretação da realidade que continua em pleno desenvolvimento. Num perfeito e
rematado contraste com outros incontáveis santuários do Antigo Oriente Próximo,
com suas disposições ecumênicas de conduzir as relações internacionais por meio
da adoração dos deuses e dos símbolos dos aliados, o Templo de Jerusalém
permaneceu solitário.

Contrariamente ao estilo vigente, o rei Josias e seus líderes religiosos declaram que
a adoração aos ídolos estrangeiros eram a causa das desgraças que ocorriam em
Judá e iniciam uma enérgica campanha de purificação em todo o território do reino.

Dali em diante, o Templo de Jerusalém passou a ser reconhecido como único lugar
legítimo de adoração, visto que todos os santuários rurais também foram destruídos
e declarados fontes do mal. O monoteísmo nasce desta inovação.
O arqueólogo Israel Finkelstein3 observa que o monoteísmo surge ao mesmo tempo
em que as ambições políticas dos líderes de Judá cresceram, pois almejavam fazer
do templo de Jerusalém, o centro de um sonhado amplo reino pan-israelita.

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3
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