Você está na página 1de 3

LIMA, Henrique Espada. Carlo Ginzburg. IN: LOPES, Marcos Antônio; MUNHOZ, Sidnei J.

(orgs.) Historiadores do nosso tempo. São Paulo: Alameda, 2010.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela


Inquisição. São paulo: Companhia das Letras, 2006.

Carlo Nello Ginzburg nasceu em Turim, Itália, em Abril de 1939 e teve uma infância
marcada pela descendência judeia e a luta antifascista dos pais, Leone e Natalia (Levi), como
também as letras e a intelectualidade, tendo a criação e o trabalho em editora (Einaudi) sido marcas
de seus ascendentes diretos. Logo, seu contato com a agitação deste mundo foi fundamental na
construção de sua trajetória, aponta Lima: a literatura, o campo intelectual e político, a vida
acadêmica, o interesse pela antropologia, a interpretação filológica, o contato com a historiografia
influente do período (e até certo distanciamento) ou com Auerbach e o Mimesis. Trajetória que
demonstra certos acessos, contatos e ambientações que, apesar de não ser regra, é próximo daquilo
que também esteve presente em Marc Bloch e Edward Palmer Thompson, por exemplo.
Boa parte de seus estudos, ao menos iniciais, tinham contato com o aspecto místico, mágico
e profundo da feitiçaria, cosmogonia e o envolvimento com uma cultura popular/camponesa que
não deixava fontes escritas diretas. O enfoque nessa perspectiva, pautada na construção de sua
trajetória, condensa-se nos Andarilhos do Bem e n’o queijo e os vermes: a busca em responder a
gênese da visão de Menocchio, questão também posta em evidência pelas perguntas dos
inquisidores nas transcrições utilizadas como fonte por Ginzburg, levantam o trabalho investigativo,
pautado na leitura minuciosa/filológica, e demonstra seu método de entender não o conteúdo das
leituras, mas como tais leituras eram feitas e se formavam em uma nova estrutura, trabalho que
envolve pensar a psicologia e as relações entre os indivíduos e o mundo que o cercava, uma das
constituições do que se conveniou chamar de “micro-história” (e toda a complexidade da discussão
historiográfica sobre tal perspectiva mereceria levantamento, mas me sento incapaz de fazê-lo).
Um elemento interessante na leitura de Lima sobre Ginzburg também se pauta na tentativa
de colocar a evidência os apontamentos, para este autor, das nuances da “História”, “verdade”,
“invenção”, “literatura”, na qual aponta, quando fala dos “paradigmas indiciários”, que há a
estruturação de uma nova forma de se fazer história que, ao mesmo tempo, questiona as limitações
do racionalismo. A discussão é polêmica, envolve confrontos com Hayden White, posturas em
defesa de uma visão própria de ciência histórica, nas condições da narrativa no fazer histórico e que
pode ser aproximado de questões postas na antropologia (Malinowski apresenta discussão próxima
nos Argonautas do Pacífico Ocidental de 1922; Certeau, na história, também pondera sobre na
Escrita da História de 1975).
Dois destaques finais para concluir a apresentação de Lima (e evitar minhas abstrações): 1-
o apontamento de Ginzburg como um “especialista em diferenças” ou “alguém cujo trabalho parte
exatamente do fascínio respeitoso por aquilo que é diverso” e que o leva “a olhar cada singularidade
(…) como um ponto de partida para uma investigação histórica profunda” (p. 28); 2- a “tarefa” do
historiador ser não apenas “científica, mas política”. Talvez não seja uma questão normalmente
significativa para muitos dos que estudam história (ou até mesmo exista uma tentativa de escondê-
la), mas é vital (re)lembrar a tão trivial parcialidade das condições humanas de fazer ciência, que
jamais justifica a manipulação dos dados para encaixe em esquemas analíticos, mas demonstra o
interesse da ação daquele que o faz.
Já havia entrado em contato com os dois textos no ano de 2017. Naquele momento havia
esboçado um relatório que demonstrava um desconhecimento do autor (não que isso tenha mudado
muito daquele período para cá), das discussões da historiografia e até de algumas relações passíveis
de serem feitas. Entretanto, algumas continuidades tenho interesse de confirmar: a citação de Walter
Benjamin e, particularmente, a história dos vencidos como uma referência para o olhar da história,
tese presente na obra (escolhida volume 1) Sobre o conceito da História, que acredito ser profunda
e importante para pensar a ciência (e o modo de escrever o prefácio à versão italiana pode estar
ligada à estrutura das teses, bem como a tentativa de buscar uma visão dos “de baixo”, ou da
seletividade da história/narração). A citação de Ginzburg trata-se mais especificamente da
recuperação de tudo como história (ou na discussão sobre o que se define ou não como história),
mas a perspectiva dos vencidos não deixa de fazer parte das indagações do autor ao buscar estudar,
justamente, uma classe subalterna; a facilidade de Ginzburg de escrever de uma forma leve,
romanceada. Obviamente que o contato que tive/tenho é a partir de uma tradução, na
impossibilidade de ler em italiano, mas acredito que certas características (como a estrutura textual)
são mantidas; acho pertinente a perspectiva de leitura que o autor faz. Claro que trilha um caminho
perigoso, em que muitas hipóteses e probabilidades se ressaltam mais que a História em si. Todavia,
como o trabalho do historiador perpassa a leitura (que seria para Paulo Freire, por exemplo, o
contato com o mundo e a forma de entendê-lo), seria mais que útil aprofundá-la ao máximo,
encontrando, na medida do possível, todas as nuances/possibilidades que uma oração contém
(Antoine Prost também fala dessa importância e discute alguns métodos em As palavras no Por
uma História Política de René Rémond).
No Prefácio é onde, mais aparentemente, Ginzburg apresenta uma discussão
historiográfica/teórico-metodológica mais ampla, geral, sobre os objetivos, perspectivas e olhares
sobre a pesquisa. Neste ponto interessou-me algumas questões conceituais: basicamente sobre a
teoria de Mikhail Bakhtin da circularidade na questão das relações entre as culturas popular e da
elite, na qual ele, citando outras historiografias como de Bollème, defende que seja a melhor forma
de se estudar essas questões; também, a meu ver, já demonstra as dificuldades da pesquisa no
formato que fez. Aqui sucedeu-me que ele faça ressalvas sobre as imperfeições do método enquanto
demonstra justamente a perspectiva de Benjamin sobre retomar tudo o que seja possível para a
história. É uma reflexão de apontar os problemas, mas legitimar/justificar a abordagem; e o ressalto
às especificidades do moleiro, como também em definir, no sentido de buscar entender a “cultura
popular” (termo “ambíguo” como ele mesmo diz), em como as entrelinhas/o micro pode ajudar a
recuperar uma história que dificilmente é capaz de ser restaurada por outras fontes que não as
produzidas através do olhar dominante (como a transcrição das falas de Menocchio).
No decorrer da leitura, algumas questões se põe em evidência: há um trato específico das
fontes que pode ser que sejam esclarecidas ao final (com as notas), mas que incomodam no sentido
de realmente criar uma linha muito tênue entre a história (ciência) e a ficção. Mesmo que se discuta
os contextos que foram dados os depoimentos, ainda assim eles aparecem como afirmações do
moleiro. Isto é, qual o sentido que um escrivão não possa ter dado ao decorrer do processo? Hoje,
por exemplo, algumas incoerências entre as afirmações de uma testemunha e um possível sentido
real sobre o afirmado não podem estar presentes no documento signatário, mesmo que passível de
confirmação posterior? As vezes as falas remontam a reações, formas de se falar, intuitos subjetivos
que me instigam a ver como as fontes as apresentavam (curiosidade que, pelo menos por enquanto,
sendo otimista, não será sanada). Ginzburg parece trilhar um caminho realmente perigoso, como ele
mesmo destaca, para reconstruir a história de Menocchio, aparentemente abstrato. Não que esteja
negligenciando as fontes do trabalho, até porque, como já afirmado, os subalternos têm pouca
documentação disponível para conhecermos as realidades que os envolvem, mas me parece que,
jogando com a cronologia, alguém que tivesse analisado as mesmas fontes no mesmo período
poderia ter chegado a resultados divergentes (não pretendo delongar, mas novamente aparecem
dúvidas quanto às noções de “verdade”, “invenção”, “possibilidades”, “ciência” e “literatura”, algo
que parece remeter às discussões sobre a história nas décadas de 1960/70). Outra instigação advinda
da leitura vem a conceber o funcionamento daquela sociedade ante as denúncias/processos
inquisitórios. Qual a relação que o poder teria nos aprisionamentos e testemunhos? Por quê, por
exemplo, alguém que era dado como “um grande herético” (na definição de um nobre) não se
sujeitava à Inquisição se recebesse aval de outros clérigos? Essa relação sujeitaria uma forma
particular de (in)justiça/dominação? Talvez as perguntas não estejam tão claras quanto quisesse e
possam ter respostas que já foram apontadas.
O desenrolar do texto vai aprofundando uma investigação quase policial sobre o moleiro. As
leituras dos processos (primeiro e segundo), as indagações, as afirmações, retóricas ou não, as
comparações com os livros lidos e os outros casos da Inquisição chegam ao resultado colocado por
Ginzburg no prefácio: a notoriedade da cultura popular em uma constituição material, próxima à
realidade que os envolvia, mas provida de uma construção muito anterior, pautada na transmissão
oral, nas ambientalidades (ou ofício) e no confronto com seu antagônico dominante, ou mais ainda,
em como a cultura popular tem mais originalidade nas altas culturas que o inverso, numa dinâmica
de troca complexa que o autor tenta (re)construir (apesar de particularmente achar um pouco
forçado). As inúmeras ressalvas, todavia, retomam o já afirmado anteriormente: as variedades
hipotéticas, as discrepâncias sociais, a constituição de uma relação de poder, a verificabilidade das
fontes, etc. Nada disso, entretanto, nega a profunda importância da obra e do método, que merecem
a já apontada ressalva que o próprio autor faz, tanto quanto a seus objetivos quanto à definição de
história e a retomada de Walter Benjamin.
Menocchio muito provavelmente jamais pensara que sua provável história (pois não deixa
de ser uma criatura) seria buscada/estudada e transformada em livro e que seria lido em boa parte
do mundo ocidental. Mesmo que com a atenção de Clemente VIII, papa da época, o moleiro talvez
jamais soubesse de tal interesse e pensasse em ser conhecido como hoje é. Mais que um “herói ou
mártir da palavra”, a história de Domenego Scandella seria o reflexo de um momento expressivo da
historiografia mundial, uma história que poderia, caso Ginzburg não a tivesse buscado, ainda estar
escondida sobre os documentos que se tem, assim como o é para a outra imensa maioria de pessoas
que existiram neste mundo. E voltemos a Benjamin e as teses, lacunas, a história, ao que ainda
insiste (como manutenção do poder) em ser reproduzido para aqueles que, mesmo em menor grau,
têm contato com a História (e qual nosso papel como cientistas?).

Você também pode gostar