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Cidade e Histórias PDF
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pudessem ser poluídos pela lógica da esfera do- As cidades: história, razão,
méstica considerada própria do gênero feminino.
De outro lado, a transformação da relação subje- ruínas e utopias
tiva dessas figuras femininas com o seu corpo, ao
se aventurarem em paragens selvagens, conviven- Bárbara FREITAG. Cidade dos homens. Rio de Ja-
do com tribos primitivas, sujeitas a todo tipo de neiro, Tempo Brasileiro, 2002 (Biblioteca Colégio
intempérie nos confins do Brasil: tarefa conside- do Brasil, vol. 3). 254 páginas.
rada impensável mesmo para parte significativa
do universo masculino urbano. Heitor Frúgoli Jr.
logia – com base em clássicos como Simmel, Tön- dadeiro espaço cultural próprio – leia-se aqui “pro-
nies e Weber – e a antropologia – assentada aqui dução cultural” –, resultante da maturação de pro-
em Lévi-Strauss, tendo como uma das referências cessos históricos que envolvem um amálgama en-
centrais suas reflexões sobre espaços urbanos bra- tre culturas, línguas e etnias, configurando nesse
sileiros em Tristes trópicos (1955). A polaridade en- sentido uma cidade ainda “sem história”, ao contrá-
tre “cidade historicamente formada” – encarnada a rio, segundo o autor, de centros urbanos como Sal-
princípio por Berlim – e “cidade racionalmente vador, Rio de Janeiro e, estranhamente, até Brasí-
planejada” – consubstanciada inicialmente em Bra- lia... (pp. 127-133). Em sua análise, Barbara Freitag
sília – vai sendo relativizada e desconstruída ao entende que essa visão sobre São Paulo seria tam-
longo do artigo, uma vez que vários fenômenos bém fruto de uma decepção, tal qual a de um pai
evidenciam a significativa “presença concomitante severo que espera muito mais do próprio filho –
de história e razão nos dois espaços urbanos, em apesar das façanhas da Semana de 22 e dos concre-
proporções que variam de época para época” (p. tistas (pp. 132-133). Além disso, pondera a autora
26, grifos da autora). Na conclusão, entretanto, a que realizações artísticas paulistanas mais recentes
autora recorre a reflexões fundadas em Interpreta- – como, por exemplo, as últimas bienais de Arte
ção dos sonhos, de Freud (1900), abrindo por de- Moderna, o projeto “Arte e Cidade” e a presença da
mais, a meu ver, o leque interdisciplinar, pois a in- literatura brasileira nas últimas Feiras de Livro (na-
clusão, nessa altura, da psicanálise freudiana e do cionais e internacionais) – indicariam um pleno uso
conceito de inconsciente mereceria certas media- de “novos códigos” vislumbrados por Flusser. De
ções com as demais correntes tratadas, a começar todo modo, os padrões de medida europeus – prin-
pelo modo como tal conceito foi relido pelo estru- cipalmente Praga, cidade “histórica” que na época
turalismo de Lévi-Strauss. de Kafka reuniria, para o autor, os atributos de uma
No ensaio “A cidade brasileira como espaço “verdadeira” cidade – teriam em parte turvado, se-
cultural” (1999), Barbara Freitag explora várias rela- gundo Freitag, a capacidade de o filósofo com-
ções entre cidade e cultura com base na interpreta- preender as peculiaridades e as potencialidades da
ção dos escritos de Vilém Flusser [1920-1991], filó- produção cultural paulistana.
sofo que nasceu e morreu em Praga, e que morou Um dos projetos de intervenção do já men-
por 32 anos em São Paulo – onde se refugiara da cionado “Arte e Cidade” (coordenado por Nelson
perseguição nazista –, numa espécie de condição Brissac Peixoto), o “Brasmitte” – o qual confronta
de outsider entre a intelectualidade paulistana. Em as realidades das áreas operárias do Brás (São
sua obra de dez volumes publicada em alemão – Paulo) e da Mitte (Centro Antigo de Berlim, mais
Flusser Schriften [1992-1998], produzida após seu precisamente o bairro Prenzlauer Berg) –, é, por
retorno à Europa e cada vez mais conhecida em cír- sinal, um dos temas de reflexão do artigo “Memó-
culos intelectuais europeus –, há um artigo sobre rias e ruínas urbanas”, escrito pouco depois da
São Paulo no qual o autor, com base numa teoria queda do Muro. Nessa ocasião, a autora, alemã
dos códigos – centrada na análise de inúmeras lin- ocidental, percorreu de bicicleta todo o trajeto ou-
guagens da palavra e da imagem, abarcando litera- trora controlado pelas patrulhas da Alemanha
tura, poesia, pintura, fotografia, cinema, TV, até as Oriental para impedir que fugitivos do leste con-
novas linguagens digitais –, defende o controverti- seguissem adentrar no lado capitalista da cidade.
do argumento de que tal metrópole poderia ser Com base em todas as memórias reavivadas por
considerada, no máximo, um “conglomerado urba- essa experiência, a autora tece reflexões sobre o
no” ou um “assentamento”, mas não uma “verda- tema das ruínas – tanto as da Segunda Guerra,
deira cidade, termo que implicaria uma vida urba- como as do próprio Muro de Berlim após sua que-
na ‘civilizada’” (p. 127, grifo da autora). Isso da –, captando seus profundos significados simbó-
porque, apesar do forte crescimento econômico e licos no contexto berlinense e alemão. Essa seria
de um decorrente domínio político, seus habitantes uma das razões, entre outras, pelas quais Barbara
seriam incapazes, segundo Flusser, de criar um ver- Freitag vê com reservas a possibilidade de aproxi-
RESENHAS 171
mação da realidade dos dois bairros sugerida pelo plo de facetas desse fenômeno em relação à cida-
“Arte e Cidade”, já que, embora com certas simila- de – como cenário da violência, como sede do
ridades – paisagens urbanas extremamente segre- poder, como matriz da violência ou que sofre
gadas e deterioradas –, teriam passado por proces- uma violência (p. 195). Abrindo demais o leque
sos históricos muito distintos, sobretudo porque o de problemas e indagações, a autora acaba por
abandono da Mitte estaria entrelaçado às especifi- abranger fenômenos muito distintos, como brigas
cidades da história urbana da construção e da ma- de gangues, práticas criminosas, aparatos repres-
nutenção do Muro de Berlim. sivos e até os atentados de 11 de setembro.
Abordagens dotadas de grande erudição per- Quero encerrar, entretanto, comentando
mitem à autora enfocar certos temas urbanos sob dois ensaios da coletânea sobre Lisboa, que con-
uma nova perspectiva, como é o caso do Estatuto tém um conjunto de contribuições significativas
da Cidade – lei sancionada pelo governo federal para vários tipos de estudos. O primeiro deles,
em 2001, que estabelece diretrizes gerais da polí- “Lisboa e Eça de Queiroz” (1997), traz elementos
tica urbana, com especial atenção ao direito à ter- para uma reflexão sobre as relações tensas e in-
ra, à moradia, ao saneamento, aos serviços públi- trincadas entre tradição e modernidade urbana
cos, ao trabalho e ao lazer. Nesse caso, procura-se naquele contexto, sobretudo após o trágico terre-
compreender os conteúdos da lei, de teor alta- moto de 1755, que além dos milhares de mortos,
mente progressista, à luz de sua dimensão utópi- causou a destruição completa de seu centro his-
ca, o que leva a autora a analisar os significados tórico. Esse evento levou à posterior adoção de
históricos assumidos pelas “utopias urbanas” (títu- um conjunto de reconstruções coordenadas pelo
lo do ensaio [2002]), como o famoso tratado de poderoso Marquês de Pombal. Houve todo um
Thomas Morus, os falanstérios de Charles Fourier reordenamento do traçado das ruas e a constru-
ou “La ville radieuse”, de Le Corbusier. Por meio ção de novos edifícios que, no conjunto, levaram
desses casos, Barbara Freitag mostra que, embora à reinvenção da área central de Lisboa, com cer-
o destino da maioria das utopias seja sua decom- tos impactos na vida pública, além de influências
posição e fragmentação, partes constitutivas das posteriores até em padrões de arruamentos e edi-
mesmas vêm a ser parcialmente realizadas, além ficações de algumas cidades brasileiras. Retoman-
de representarem, de toda forma, princípios nor- do a clássica distinção estabelecida por Sérgio
teadores das ações sociais (pp. 188-189). Buarque de Holanda entre os “semeadores” e os
Nem todos os ensaios, entretanto, chegam a “ladrilheiros” em Raízes do Brasil (1936), cujas
bons resultados, talvez porque se tente abranger, metáforas aludiriam a dois tipos distintos de ur-
sem o fôlego necessário, um conjunto muito am- banização presentes nas cidades coloniais latino-
plo de questões. Um exemplo disso é o artigo americanas, a reconstrução de Lisboa teria leva-
“Sociedade informacional e convivialidade urba- do, segundo Barbara Freitag, a um novo padrão
na” (2002), muito baseado nas formulações das sincrético que superaria, do ponto vista dialético,
obras mais recentes de Manuel Castells – o qual essa tipologia, sem entretanto invalidá-la (p. 67).
analisa um conjunto de mudanças territoriais, Parte desse padrão revelar-se-ia quando então a
identitárias e societárias acarretadas a princípio autora busca “acompanhar os personagens quei-
pelas novas tecnologias informacionais, que mar- rozianos [de variadas origens e orientações] em
cariam o processo de globalização –, sem maiores suas ‘flâneries’ por Lisboa, partilhar os seus dra-
críticas ou questionamentos. Muitos desses temas mas e suas emoções e visualizar a cidade [déca-
carecem, na minha opinião, de fundamentos so- das após as reformas pombalinas] a partir de suas
ciológicos ou antropológicos mais consistentes, e experiências e percepções” (p. 69), principal-
alguns deveriam passar pelo crivo de extensas mente aquelas narradas nos livros O primo Basí-
pesquisas. Outro ensaio que me pareceu um tan- lio (1878) e Os Maias (1888), que compõem um
to genérico é “Cidade e violência” (2002), justa- quadro romântico, irônico e sarcástico da Lisboa
mente por tentar abarcar um conjunto muito am- do final do século XIX.
172 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 55