Considerações Sobre o Massacre de Corumbiara e Os Novos Conflitos Agrários em

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CÂMARA DOS DEPUTADOS

DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

TEXTO COM REDAÇÃO FINAL

COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS


EVENTO: Audiência Pública N°: 0770/02 DATA: 28/08/02
INÍCIO: 14h44min TÉRMINO: 17h21min DURAÇÃO: 02h35min
TEMPO DE GRAVAÇÃO: 02h36min PÁGINAS: 53 QUARTOS: 32
REVISÃO: Andréa Macedo, Cláudia Castro, Leine, Madalena, Maria Teresa, Odilon
SUPERVISÃO: Amanda, Ana Maria, Cláudia Luiza, Daniel, Luci
CONCATENAÇÃO: Amanda

DEPOENTE/CONVIDADO - QUALIFICAÇÃO
CLAUDEMIR GILBERTO RAMOS – Sobrevivente do massacre de Corumbiara.
AGOSTINHO FELICIANO NETO – Sobrevivente do massacre de Corumbiara.
JÂNIO BATISTA NASCIMENTO – Representante da Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia.
HELENA ANGÉLICA DE MESQUITA – Professora da Universidade Federal de Goiás, do campus
de Catalão.
RAUL RIBEIRO FONSECA FILHO – Advogado da Comissão Pastoral da Terra — CPT.
ERNANDE DA SILVA SEGISMUNDO – Advogado e representante da Comissão Pastoral da
Terra — CPT.
PATRÍCIA GALVÃO FERREIRA – Advogada do Centro pela Justiça e o Direito Internacional —
CEJIL.
JOEL MAURO MAGALHÃES – Representante do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária — INCRA.
GERCINO JOSÉ DA SILVA FILHO – Ouvidor Agrário Nacional.
MARIA ELIANE MENEZES DE FARIAS – Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão.
CELSO ARRUDA FRANÇA – Assessor da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da
Justiça.

SUMÁRIO: Considerações sobre o massacre de Corumbiara e os novos conflitos agrários em


Rondônia.

OBSERVAÇÕES
Há exibição de imagens.
Há orador não identificado.
CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL
Nome: Comissão de Direitos Humanos
Número: 0770/02 Data: 28/08/02

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) – Boa-tarde a todos.

Declaro abertos os trabalhos da presente reunião de audiência pública, que tem por

finalidade tratar do massacre de Corumbiara e dos novos conflitos agrários em

Rondônia.

Enquanto aguardamos a chegada dos demais convidados, será projetado um

vídeo. Encerrada a projeção, passaremos à composição da Mesa.

(Segue-se exibição de imagens.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) - Havíamos preparado

um texto para abrir a presente reunião de audiência pública, mas acho que o vídeo é

mais expressivo que qualquer palavra. Essa é a realidade com que temos de

conviver. Infelizmente, a omissão do Estado e o descaso com alguns setores da

população são muito grandes. Tão grandes que, passados sete anos, dois

trabalhadores e três policiais foram condenados, mas os mandantes continuam

impunes, e as vítimas não receberam qualquer auxílio ou indenização pela

arbitrariedade e pela violência cometida contra aquelas famílias.

Nosso objetivo hoje não é outro senão discutir como a Comissão de Direitos

Humanos e a sociedade podem contribuir para que a justiça seja feita e haja uma

investigação de fato que atinja os responsáveis pelo massacre e fazer pressão para

que o Estado brasileiro assuma a responsabilidade pela ocorrência desses fatos e

indenize as famílias. Não queremos, nesta audiência pública, discutir tendências

partidárias, divisões entre movimentos sociais. Pretendemos única e exclusivamente

contribuir para que fatos como esse não se repitam jamais em nosso País.

Convido para tomar assento à mesa o Desembargador Gercino José da Silva

Filho, Ouvidor Agrário Nacional; a Sra. Helena Angélica, professora da Universidade

de São Paulo; o Sr. Raul Ribeiro Fonseca Filho, advogado da Comissão Pastoral da

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Terra; a Sra. Patrícia Ferreira, representante do Centro pela Justiça e o Direito

Internacional — CEJIL; o Sr. Ernande da Silva Segismundo, representante da

Comissão Pastoral da Terra; os Srs. Claudemir Gilberto Ramos e Agostinho

Feliciano Neto, sobreviventes do massacre de Corumbiara; e o Sr. Jânio Batista

Nascimento, representante da Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia, que fará

um breve relato dos novos conflitos agrários em seu Estado.

Quero esclarecer a dinâmica da audiência pública. Concederei o tempo de

dez minutos a cada expositor. Serei um tanto quanto rígido com todos, porque é

grande o número participantes. Após as exposições, será concedida a palavra aos

Deputados presentes, respeitada a lista de inscrição.

Esta reunião está sendo gravada, para posterior transcrição. Por isso, solicito

a todos que se identifiquem ao microfone.

Anuncio a presença das seguintes autoridades: Sr. José Mauro Magalhães,

do INCRA de Rondônia; Sr. Antônio Rodrigues, também do INCRA de Rondônia; Sr.

Edélcio Vigna, do INESC; Sr. Francisco José Nascimento, do INCRA de Rondônia;

Dra. Maria Eliane de Farias, Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão; Sra.

Denise Alves, do MST; Sr. Elmano de Freitas, do MST; Sr. Roberto Lemos dos

Santos Filho, juiz federal da Associação dos Magistrados do Brasil; Sr. Gerson Lima,

da Liga Operária de Minas Gerais; Sr. Jairo Batista, da Liga Operária de Rondônia;

Sra. Marianne Carre, da Embaixada da França; Sr. Celso Arruda França, da

Secretaria dos Direitos Humanos; Sr. Guilherme de Almeida, da Secretaria dos

Direitos Humanos do Ministério da Justiça; Sra. Ciléa Santos Lima e Sra. Erilda

Balduíno, ambas da OAB; Sra. Maria Madalena, da OAB e do CONIC; e Sra. Nilda

Turra, que coordena o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas

do Ministério da Justiça.

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Concedo a palavra ao Sr. Claudemir Gilberto Ramos, um dos sobreviventes

do massacre de Corumbiara. S.Sa. dispõe de dez minutos.

O SR. CLAUDEMIR GILBERTO RAMOS – Boa-tarde. Sou Claudemir,

sobrevivente do massacre de Corumbiara, lembrado por poucos e esquecido por

muitos, infelizmente. Fui condenado a oito anos e meio de prisão. Meus advogados

recorreram, e estamos aguardando decisão da Justiça. Mas a de Rondônia decidiu:

mantenha-se a condenação.

Eu gostaria de agradecer a todos, principalmente aos Deputados João Paulo

e Orlando Fantazzini, por terem marcado esta audiência.

Quero dizer, quanto ao que ocorreu em Corumbiara, que seria uma injustiça

isso ser esquecido. Pessoas foram obrigadas a comer miolos de outras, torturadas

por policiais e jagunços fardados, utilizando o uniforme da Polícia Militar. Fui uma

dessas pessoas. Obrigaram-me a comer sangue com terra. Fui torturado e hoje

estou condenado, não sei por quê. Crime não cometi.

Talvez, neste País, lutar por dignidade, pela reforma agrária, pela terra, pelos

direitos dos trabalhadores seja crime. É impossível aceitar uma situação dessa.

Acredito que esta audiência vai ser muito importante. Pedimos às autoridades

competentes que olhem não só para Rondônia, mas também para outros Estados do

Norte e do Nordeste onde a justiça não é feita.

Estou aqui hoje para reivindicar justiça no caso de Corumbiara. Quem

comandou o massacre continua livre. Além de dois sem-terra, eu e o companheiro

Cícero, apenas dois soldados foram condenados. Acho que por preconceito, porque

negros, de baixa renda, pobres. Deveriam ser condenados aqueles que

comandaram o massacre: o fazendeiro Antenorzinho Duarte e o próprio Waldir

Raupp, Governador na época. Que seja feita justiça.

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Quanto às vítimas, que o Governo cumpra o que prometeu e lhes pague a

indenização.

Para mim, o massacre até hoje não parou. Continuamos massacrados.

Obrigado.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) – Agradeço ao

Claudemir.

Concedo a palavra ao Sr. Agostinho Feliciano Neto, também sobrevivente do

massacre de Corumbiara.

O SR. AGOSTINHO FELICIANO NETO – Boa-tarde a todos.

Sou Agostinho Feliciano Neto, sobrevivente do massacre de Corumbiara e pai

do finado Odilon, assassinado na área. Vim em busca de recursos, de indenização,

de pensão para as famílias, porque todos foram torturados e não têm como fazer

tratamento. Lá, vai-se morrendo aos poucos no trabalho, porque, sendo baixa a

renda, não se tem como ir para a cidade grande fazer tratamento da saúde. E muitos

se alimentam mal. É o que tenho a dizer.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) – Obrigado, Sr.

Agostinho.

Passo a palavra ao Sr. Jânio Batista Nascimento, representante da Liga dos

Camponeses Pobres de Rondônia, que fará breve relato dos novos conflitos agrários

de Rondônia.

O SR. JÂNIO BATISTA NASCIMENTO – Boa-tarde, senhores. Meu nome é

Jânio, moro em Rondônia há 25 anos.

Peço aos representantes deste País que olhem para o povo daquele Estado,

que está sofrendo.

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Sobre a situação que estamos vivendo em Rondônia, a violência de policiais

continua, o massacre dos companheiros que estão procurando seu pedacinho de

terra para trabalhar continua. As poucas coisas que os pobres têm são roubadas

pelos policiais, que até incendeiam esses companheiros. Suas companheiras os

policiais as levam para algum lugar, onde delas abusam. Pistoleiros ainda hoje estão

violentando companheiros nossos. Às vezes não os matam na mesma hora, mas

judiam deles.

Por isso, peço aos representantes deste País que olhem por Rondônia e por

todos os demais Estados onde esse tipo de coisa acontece. Todos ficam calados e

ninguém sabe o que está acontecendo. Quem sabe faz vista grossa, não olha para

os companheiros que estão lutando, correndo atrás do seu pedacinho de terra para

sobreviver. A vida na cidade não está fácil para o pobre, ainda mais sem estudo. A

Liga Camponesa dos Pobres do Estado de Rondônia pede aos representantes deste

País que olhem para aquele povo.

Tenho mais coisas a dizer. Quatro companheiros estão marcados para

morrer: Pelé, João Domingos, o advogado Hermoges e mais um, cujo nome não sei,

mas é apelidado Serafim.

Ontem mesmo, recebemos ligação de Rondônia. Foram vistos pistoleiros

armados até os dentes, até com fuzil, saindo para Ariquemes, em direção ao

acampamento Lamarca, a fim de fazer outro massacre. Isto não aconteceu ainda

porque quando os pistoleiros são avistados os pobres saem do acampamento,

correm para o mato. Tudo o que lá houver é queimado, as barraquinhas... Temos

fotos desses acontecimentos, os senhores podem ver.

Estamos sofrendo com essa situação. Temos propostas para ver se

conseguimos melhorar a situação que estamos vivendo no Estado: desapropriação

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da Fazenda Santa Elina em Corumbiara, onde o povo foi massacrado; solução

imediata para indenização das vítimas dos massacres; desapropriação imediata das

terras devolutas do Estado de Rondônia; fim da escalada de morte, da perseguição

aos camponeses pobres; punição para os mandantes dos massacres ocorridos no

Estado — pedimos aos representantes deste País que tomem as devidas

providências. Sobre o assentamento do Município de Jorge Teixeira, pedimos aos

companheiros que olhem por aquele povo, que também está sofrendo represálias.

É só. Muito obrigado.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) – Agradeço ao Sr. Jânio

Batista Nascimento a manifestação.

Passo a palavra à Sra. Helena Angélica, professora da Universidade de São

Paulo.

A SRA. HELENA ANGÉLICA DE MESQUITA – Boa-tarde a todos. Agradeço

a oportunidade de estar nesta audiência para tentar trazer ao conhecimento dos

senhores o que foi o massacre de Corumbiara, mesmo sem tê-lo vivido como os Srs.

Claudemir e Agostinho Feliciano, que teve o filho assassinado.

Quero fazer uma pequena correção. Sou professora da Universidade Federal

de Goiás, do campus de Catalão, e fiz doutorado na USP. Por isso o equívoco.

Minha tese de doutorado foi feita com o maior rigor científico possível que

trabalho dessa natureza exige, mas em momento algum eu quis fazer um trabalho

neutro ou me comportar como cientista neutra. Pelo contrário, estou envolvida

profundamente com toda a tragédia e especialmente com as vítimas.

A história oficial do nosso País tem sido pródiga no sentido de registrar

episódios e construir heróis ou vítimas conforme interesse de quem registra ou

manipula as informações e, assim, acaba ficando registrada uma história sem

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contexto, sem povo. O caso de Corumbiara não foge à regra, e a história oficial,

certamente, está nos autos ou em relatórios feitos por várias instituições. Mas os

camponeses, os desterrados, os excluídos, ou seja, os sujeitos e as vítimas daquela

história ficaram de lado, foram sistematicamente abandonados pela história do

Brasil.

Foi tentando reescrever a história que me debrucei sobre o caso de

Corumbiara desde fevereiro de 1996 — não estou aqui impunemente. Fiz mestrado

em Modernização na Agricultura. Quando já estava bem adiantada no meu

doutorado, ou seja, quando estava vendo o lado rico da questão agrária no Brasil,

senti-me incomodada, porque tenho ascendência camponesa. Saí da roça, mas a

roça não saiu de mim. Essa situação incomodava-me.

Um belo dia, fui convidada a dar curso de formação política em Vilhena —

moro em Catalão, Goiás — para os filiados ao Partido dos Trabalhadores e seus

simpatizantes, e me abalei até lá. Era fevereiro de 1996. Havia cerca de cem

pessoas no curso, entre elas alguns sobreviventes do massacre de Corumbiara.

Conversando com aquelas pessoas descobri que nada sabia sobre tal história vivida

por trabalhadores brasileiros. Essa situação deixou-me extremamente incomodada.

Aquelas pessoas perguntaram-me: “Professora, como podemos publicar o fato, jogar

nele luzes, tirar tudo o que está tampando, encobrindo, escondendo a questão de

Corumbiara?” Eu mesma não sabia a dimensão daquela tragédia.

Então, propus-me a mudar o eixo da minha pesquisa, mudar metodologias,

fazer uma mudança de praticamente 180 graus. Estava trabalhando na UNESP de

Rio Claro. Mudei para a USP, sob orientação do Prof. Ariovaldo Umbelino de

Oliveira, que é hoje uma das maiores autoridades na questão do campo brasileiro.

Daí em diante, foram três anos de pesquisa. A metodologia principal foi trabalhar

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com a fonte oficial, o processo-crime intitulado Caso de Corumbiara, que hoje tem

30 volumes, cerca de 10 mil folhas, e procurar nesse processo as contradições, que

não foram poucas, ouvir os camponeses que estiveram em Corumbiara, inclusive o

comandante, os advogados, até mesmo o que acompanhou o caso, Dr. Ernande

Segismundo, e fazer um contraponto entre o que está na história do processo oficial

e o que está na história não oficial, a versão dos trabalhadores.

As contradições do próprio processo são aberrantes, muito claras, muito

evidentes. E as contradições entre o que está no processo e a fala dos camponeses

aumentam ainda mais as dúvidas sobre como as coisas são construídas neste País.

O conflito da Santa Elina tem a mesma gênese histórica de muitos outros que

ocorreram em períodos diferentes, em lugares diferentes, sob conjunturas diversas,

mas o que eu pretendia, ao eleger esse caso para pesquisa, era buscar uma análise

histórico-geográfica no exercício da multidisciplinaridade e interdisciplinaridade, tão

necessárias a que eu, como geógrafa, pudesse contribuir com uma produção

científica e ao mesmo tempo social e política para a história do Brasil. Não pretendia

estudar o conflito por ele mesmo, nem como algo restrito a um lugar ou a um

momento, mas sobretudo buscar entender todo o processo de luta pela terra no

Brasil, considerando o modelo desenvolvimentista adotado, que é ao mesmo tempo

concentrador e excludente. Rondônia, área de ocupação capitalista recente, é a

expressão clara de como mudar a correlação de forças no próximo processo de

produção e apropriação do espaço no Brasil.

Passo a citar algumas contradições — talvez meu texto fique um pouco

fragmentado, porque haviam me dito que o tempo seria um pouco maior.

O processo-crime intitulado Caso de Corumbiara tem 30 volumes, cerca de 10

mil folhas. As declarações das testemunhas são contraditórias.

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Sobre os motivos que levaram os sem-terra a agir daquela forma, o processo

oficial fala em ambição, resistência, desobediência às autoridades, que os policiais

foram vítimas de uma emboscada e agiram em defesa do direito à propriedade.

Durante todo o processo, sempre que possível, utilizei as informações obtidas

pelas próprias situações estudadas na forma de entrevistas, visitas e observações

locais.

Quero lembrar que visitei todos os assentamentos onde estão vivendo hoje

vítimas de Corumbiara. Estive na cidade de Colorado do Oeste, Corumbiara,

Vilhena, Teobroma. Onde havia uma vítima de Corumbiara eu tentava chegar.

Essa foi também uma tentativa de fazer a leitura do conflito de Corumbiara a

partir da ótica dos próprios personagens envolvidos no processo, como os sem-

terra, os policiais, autoridades, sindicalistas, habitantes das cidades vizinhas,

proprietários e demais pessoas envolvidas, especialmente conhecer e ouvir os

camponeses que estiveram na Fazenda Santa Elina e que sobreviveram ao

massacre. Na verdade, a ocupação da Fazenda Santa Elina, que se deu no dia 14

de julho, era apenas mais um conflito por terra entre mais de 300 que aconteceram

naquele ano.

O trabalho de campo permitiu o conhecimento de uma realidade que fora

soterrada no processo de investigação dos fatos e depois escamoteada durante o

júri. O trabalho de campo permitiu dar sentido aos dados, aos números e às

informações oficiais, pois mesmo que o conhecimento das fontes primárias não

tenha desmentido as informações oficiais, possibilitou-me entender as causas das

ações registradas nos autos ou nos relatórios e até mesmo na imprensa.

Mas o que pude comprovar largamente foram as contradições e mesmo

informações forjadas para garantir resultados que interessavam a grupos

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dominantes. Um exemplo, dentre muitos outros, é o que se refere à questão do

número de feridos hospitalizados, que seria 61, 10 soldados e 51 civis. Esses os

dados oficiais que estão nos autos. Mas, naquele momento, o que era considerado

ferido para aquelas autoridades? Comprovei que camponês que estava de braços

quebrados, nariz quebrado, mão esmagada, costelas quebradas, extensos

hematomas, escoriações não era considerado ferido. E quanto aos policiais, ocorria

exatamente o contrário, qualquer arranhão era considerado como ferido.

Não foi intenção fazer uma investigação policial, ou seja, restringir somente a

fatos, digamos assim.

Foi necessário definir as metas que desejava advir com o trabalho dessa

natureza. Entre elas o de fornecer subsídio para compreender, demonstrar como os

diversos segmentos sociais de Poder constituído agem e reagem diante das

reivindicações dos camponeses.

E por último, mas não menos importante, a criação de um novo conhecimento

calcado em depoimentos, testemunhos dos sujeitos históricos envolvidos

diretamente no massacre, pois havia escassez de informações acerca do tema e

mesmo quando elas existiam eram filtradas, higienizadas e a realidade era sempre

mascarada.

Então, no meu trabalho, tentei exatamente desmascarar, soprar as cinzas que

estavam sobre o Caso Corumbiara.

No decorrer do debate talvez possamos pontuar mais algumas coisas.

Falarei mais sobre algumas contradições. A Diocese de Guajará-Mirim,

Rondônia, onde se localiza a Paróquia de Corumbiara, fez várias denúncias e

publicou, inclusive, uma carta. O Bispo de Guajará-Mirim, D. Geraldo Verdier, visitou

o local do massacre, recolheu fragmentos de ossos das fogueiras do acampamento,

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que foram encaminhados à UNICAMP, e esta concluiu que eram ossos de animais.

E as amostras enviadas pelo Bispo à Faculté de Médecine Paris-Ouest confirmaram

serem ossos humanos. Mas as autoridades ignoraram os resultados de Paris e

consideraram somente os exames da equipe de Badan Palhares.

O bispo recolheu no dia seguinte, em três fogueiras, fragmentos de ossos,

colocou em três embalagens diferentes e entregou ao delegado que estava

presidindo o inquérito, e este, então, mandou as amostras para a UNICAMP. A

equipe de Badan Palhares concluiu que eram ossos de suínos. Das amostras

mandadas para Paris pelo bispo, seguramente, duas eram de ossos humanos e uma

era inconclusiva. Conseguimos a cópia dos laudos com o próprio bispo e sua

indignação não foi o fato de somente considerarem o resultado da equipe de Badan

Palhares, mas de não exigirem que comprovasse o que tinha feito, e exigissem de

S.Exa. uma contraprova. Então, ignoraram e deixaram de lado essa importante

afirmação.

Quanto ao caso da menina Vanessa, ela não tinha 7 anos, mas 6 anos, e nos

autos os dados de sua morte são extremamente contraditórios, pois ou existe uma

outra menina ou o soldado que fez o depoimento estava em perjúrio.

Uma vítima que não foi identificada, mas tratada como H05, foi durante todo o

júri chamada de sem-terra; porém, seu corpo não foi encontrado junto aos dois

sem-terra que foram executados em uma figueira. Ele foi encontrado a mais de dois

metros de distância. Os dois sem-terra tiveram seus corpos, seus crânios

esfacelados e o H05 estava com o rosto intacto; tinha apenas uma perfuração no

olho; portanto, as autoridades não o identificaram porque não quiseram.

Quem começou o ataque? Durante todo o júri e o processo fala-se que os

camponeses emboscaram os policiais. Ora, os camponeses estavam em seus

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acampamentos, de madrugada; ali era seu lar, mesmo precário, desgraçadamente

precário, era seu lar. Eles foram atacados de madrugada. O depoimento dos

próprios policiais comprova que quem começou o tiroteio foram os policiais.

Depoimento do Major Pachá diz que eles lançaram as primeiras três bombas de gás

sobre o acampamento. “Depois disso, ouvíamos os tiros.” Os policiais foram mortos

em fogo cruzado. Os dois sem-terra que foram condenados foram acusados da

morte dos dois policias. Durante a apuração dos fatos, o juiz de Colorado do Oeste

mandou a júri popular os policiais pela morte de três, segundo ele, sem-terra, mas

provavelmente um não se sabe se era sem terra ou não, e o Major Ventura, pela

morte do Sérgio, um posseiro que já estava preso no campo de futebol, foi retirado

e, depois de quinze dias, seu corpo foi encontrado boiando no rio, com sinais

evidentes de tortura. O juiz entendeu que só poderia mandar a júri e imputar pelos

três camponeses mortos na figueira; e que os outros seis camponeses, inclusive a

pequena Vanessa, não poderia imputar a ninguém a responsabilidade, porque as

mortes foram sob fogo cruzado. Só que os próprios autos mostram que os policiais

também morreram sob fogo cruzado.

Senhoras e senhores, ainda teríamos bastante coisa para falar. Afinal de

contas, é uma tese com cerca de trezentas e poucas páginas, em três anos de

pesquisa.

Agradeço muito esta oportunidade.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) – Agradecemos à Profa.

Helena Angélica a participação. Desde já, apresentamos nossas desculpas pela

exiguidade do tempo. Sem dúvida alguma, o trabalho desenvolvido pela senhora

tem maior repercussão fora do que propriamente neste debate. A contribuição que a

senhora já deu no Caso Corumbiara é grandiosa e, por certo, será o alicerce para

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outras ações que vamos realizar. Vamos lutar para que as pessoas não fiquem

impunes e essa injustiça contra os trabalhadores brasileiros também não prevaleça.

Ficam nossos agradecimentos pela participação, colaboração, embora num tempo

tão exíguo. Sabemos que o trabalho da senhora poderia contribuir muito mais com

os nossos trabalhos hoje. Acredito que na hora do debate a senhora terá a

oportunidade de explanar muito mais.

Concedo a palavra ao Sr. Raul Ribeiro Fonseca Filho, um dos advogados que

acompanham o caso.

O SR. RAUL RIBEIRO FONSECA FILHO – Sr. Presidente, na pessoa de

quem cumprimento todos os presentes, em primeiro lugar, quero fazer apenas um

pequeno reparo. Não sou advogado da CPT. Na verdade, o advogado da CPT é o

Dr. Ernande da Silva Segismundo, aqui presente. Em segundo lugar, gostaria de

assinalar que juntamente comigo funcionaram na defesa dos trabalhadores sem-

terra os advogados Jorge Tavares, brilhante criminalista do Rio de Janeiro, e seu

sócio, Dr. Alexandre Lopes de Oliveira, sem a ajuda de quem não teria conseguido

levar adiante esse trabalho, já que minha especialidade não é Direito Criminal.

Devido à exigüidade do tempo, gostaria apenas de traçar um painel para que

tenham uma idéia do que foi mais ou menos esse processo. Não vou poder

aprofundar, acho que todos compreendem, mas gostaria de passar alguns dados, de

sorte que os senhores vejam o que foi essa montagem que a Profa. Angélica já

apresentou.

Vejam bem, participaram da operação de desocupação 194 policiais militares

e um sem-número de jagunços, alguns deles, segundo denúncias, membros da

própria Polícia Militar, uniformizados com fardamento da PM. Repito: 194 PMs e

mais um sem-número de jagunços infiltrados na tropa. Dos 194 policiais militares, 20

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policiais militares, entre oficiais e praças, foram denunciados pelo Ministério Público

e sofreram ação penal, enquanto quatro sem-terra foram denunciados pelo

Ministério Público Estadual. Dos 20 denunciados na Polícia Militar, 13 foram

pronunciados, ou seja, deveriam se submeter ao julgamento pelo Tribunal do Júri.

De 20, 13. Correto? Pois bem, dos quatro sem-terra, um se evadiu, um foi

impronunciado e dois foram submetidos ao julgamento pelo Tribunal do Júri. Vejam

bem o que aconteceu. Dos 13 PMs, sete, portanto, mais da metade, foram

absolvidos a pedido do Ministério Público, ou seja, aquele Ministério Público que

denunciou, que trabalhou pela pronúncia, no julgamento, pede a absolvição.

Confesso que não entendi essa lógica. Isso é gastar dinheiro público. Sete

foram absolvidos a pedido do MP. Um foi desclassificado de homicídio para lesão

corporal de natureza leve. Foi o caso de um cabo que deu um tiro de metralhadora

num sem-terra. Foi considerado acidental o disparo de uma metralhadora, depois de

uma discussão entre esse policial e o sem-terra. Acidentes acontecem, não é

verdade? Então, foi desclassificado para lesão corporal. Três PMs condenados pelo

júri, inclusive um deles era subcomandante da operação, na época, capitão; hoje,

major.

Vejam o que aconteceu no decorrer do julgamento. Na primeira sessão do

júri, três soldados foram submetidos. Um deles foi condenado a 18 anos de

reclusão, o outro, a 15 anos, e o terceiro, absolvido. Desses três, dois tiveram suas

armas positivadas, ou seja, os projéteis das armas desses policiais militares foram

encontrados no corpo de algumas das vítimas. Um foi condenado a 15 anos de

reclusão por homicídio; o segundo, sofreu uma condenação de 18 anos. Não houve

qualquer positivamento em relação à sua arma. O terceiro, que tinha positivado sua

arma como realmente a que contribuiu para a morte de um sem-terra, foi absolvido

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pelo Tribunal do Júri. O júri tem direito a ter seu entendimento. Tem advogado aqui,

que sabe disso, pois é profissional do Direito. Tendo o Ministério Público oferecido

denúncia, trabalhado pelo pronunciamento, quando nada, deveria ter recorrido em

relação a esse julgamento. Entendo que foi manifestamente contra a prova dos

autos. Não houve recurso por parte do Ministério Público em relação a essa

absolvição.

Na segunda sessão, tivemos julgamento de dois oficiais da COE —

Companhias de Operações Especiais. Trata-se do caso citado pela Profa. Angélica,

em que houve execução. Foi justamente esse pelotão que atuou nessa fase da

desocupação, digamos assim. Esses sem-terra, para terem uma idéia, resistiram

efetivamente. Houve troca de tiros, mas a morte deles foi causada por disparos na

nuca, salvo engano. Não é incrível que na troca de disparos os dois viraram as

costas e tomaram tiro na nuca? E foram disparos à curta distância. Portanto, houve

execução clara e simples. O Ministério Público de Rondônia, por meio do Prof.

Tarcísio Leite de Matos, pediu a absolvição desses dois oficiais da COE. Inclusive,

foi feito um discurso que repercutiu muito mal em todo o Brasil. Saiu na mídia falada,

impressa e televisada que ele sintetizou seu pedido de absolvição numa frase

maravilhosa: “Ou o Brasil acaba com os sem-terra ou eles acabam com o Brasil”.

Apenas em relação a esses dois oficiais o Ministério Público recorreu, sendo que o

Tribunal de Justiça manteve, há dez dias, a decisão de absolvição, como manteve

também todas as apelações interpostas.

Quanto ao cabo, houve a desclassificação da lesão corporal. O tiro de

metralhadora, depois de uma discussão, foi considerado acidental. Quanto ao

soldado Claudenilson, foi absolvido a requerimento do Ministério Público. Houve

mais as absolvições dos soldados Luiz Carlos Fernandes, Moisés de Oliveira Lima e

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Vilson Luiz Pedon, a pedido do Ministério Público. José Ventura Pereira, o

comandante da operação, foi absolvido. O Ministério Público pediu sua condenação,

mas o júri entendeu que deveria ser absolvido por não ter tido responsabilidade na

morte que lhe fora atribuída, especificamente a de Sérgio Rodrigues Gomes, que foi

o sem-terra retirado do acampamento, levado num Toyota e encontrado crivado de

balas, depois de ter sido barbaramente espancado, na beira de um igarapé do nosso

Estado. E Vitório Regis Mena Mendes, o subcomandante da operação, foi

condenado a 19 anos de reclusão.

Para os senhores terem uma idéia, o que levou, na concepção desse

advogado, à condenação do subcomandante não foi a sua participação no conflito,

mas denúncias por parte de um capitão e um sargento da própria Polícia Militar, de

que ele teria recebido um Monza do fazendeiro Antenor Duarte. Tendo o Ministério

Público explorado essa situação à exaustão, parece-me que o Júri o condenou não

pelo massacre, mas pelo recebimento do Monza.

Então, vejam os senhores que esses dados mostram bem o que aconteceu

com os PMs. Com relação aos sem-terra, dos quatro pronunciados um se evadiu, foi

apartado, tendo sido sua prisão preventiva decretada; os outros três, para o Sr.

Adelino Ramos, que não se encontrava presente no dia, conseguimos a

impronúncia, tendo o Juiz de Primeiro Grau entendido que ele não deveria ser

levado a Júri. Os dois que foram levados a Júri foram condenados. Em termos

percentuais, é muito fácil verificar como o processo foi conduzido: dos 20 policiais

militares denunciados, 13 pronunciados, três condenados; entre os sem-terra

levados a Júri, dois foram condenados, 100%.

Pois bem, como disse há pouco, a condenação de Claudemir Gilberto Ramos

e de Cícero Pereira Leite Neto, dadas as questões ideológicas, os preconceitos que

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permearam esse julgamento, foi idêntica. Ambos foram pronunciados da mesma

forma. Eles não responderam ao Tribunal do Júri por homicídio direto, mas por co-

autoria. E a sentença de pronúncia foi absolutamente a mesma para os dois.

Claudemir Gilberto Ramos foi condenado a oito anos e seis meses de reclusão, pelo

homicídio dos dois policiais militares — o tenente e o soldado —, e Cícero Pereira

Leite Neto foi condenado a seis anos, por homicídio. Ora, se os dois foram co-

partícipes, se ambos tiveram a mesma atuação, por que um foi condenado por dois

homicídios e outro por um só. E mais ainda: Claudemir foi condenado a mais dois

meses de detenção, por cárcere privado, enquanto Cícero foi condenado a dois

meses de detenção por crime de resistência. Ora, a participação foi a mesma,

ninguém achou nada diferente.

Nós nos insurgimos contra essa decisão do Tribunal do Júri, interpusemos

recurso de apelação ao avaliarmos o julgamento manifestamente contrário à prova

dos autos. Infelizmente, o Tribunal de Justiça do nosso Estado entendeu que,

havendo duas teses conflitantes e tendo o Júri entendido que apenas uma delas

deveria ser agasalhada, não teria como reverter o processo, acatando a decisão,

com fundamentação prevista na Constituição Federal, de que o Tribunal do Júri é

autônomo e independente.

Estou querendo mostrar aos senhores que o processo foi mais ou menos

direcionado. Na minha opinião, o Ministério Público pecou no momento em que não

exigiu investigação mais profunda. Porque não me parece crível que um simples

major, comandante de um batalhão, determine a invasão de um acampamento às

4h30min da madrugada, mesmo com ordem judicial. A ordem poderia ser legal, mas

o horário em que ela foi executada tornou-a ilegal. Esse ato não poderia acontecer

antes das 6h da manhã, como é do conhecimento de todos. Mesmo assim, Cícero

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foi condenado por resistência, e Claudemir, por cárcere privado, num acampamento

com mais de quinhentas famílias. É crível que duas ou três pessoas consigam

manter quinhentas famílias sob cárcere privado? Nada disso foi levado em

consideração. Tudo foi mantido como estava pelo tribunal, ou seja, não tivemos êxito

em nossa apelação. O tribunal manteve a decisão do Júri, não mudou

absolutamente nada. Agora, nosso próximo passo é apelar para o Superior Tribunal

de Justiça.

Finalmente, esperamos que haja mobilização da sociedade para que essa

injustiça seja desfeita, pois estamos vivendo, na visão da defesa, flagrante estado de

injustiça. Nós sabemos que o julgamento do STJ é demorado, não deverá sair

agora, por isso, é preciso que haja mobilização, para que as pessoas não se

esqueçam de que dois trabalhadores sem-terra foram condenados como co-

partícipes na morte de dois policiais militares.

Cito um dado importante para o qual gostaria de chamar a atenção dos

senhores: nenhuma arma dos sem-terra foi positivada em relação aos projéteis

retirados dos corpos dos dois policiais militares. Os projéteis foram analisados pelo

Instituto de Criminalística do Estado do Paraná, e não houve positivação em relação

às armas apreendidas com os sem-terra. Não se tem certeza absoluta de que das

armas dos sem-terra partiram os disparos que mataram os dois PMs. Podem ter sido

os sem-terra, existe essa possibilidade; podem também ter partido dos jagunços

infiltrados na tropa. Os sem-terra foram condenados por pressuposição; julgaram

terem sido os sem-terra que atingiram os policiais militares. A partir dessa

pressuposição, foram condenados como co-partícipes de dois homicídios. A meu

ver, isso é um absurdo. Não se pode condenar ninguém por pressuposição. Tem de

haver prova cabal nos autos.

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O Ministério Público explorou à exaustão a prova obtida na fase do inquérito

policial civil, quando não houve acompanhamento sistemático por parte dos

advogados e de membros daquele órgão. Foi feito acompanhamento pessoal pelo

Dr. Ernande, que se arriscou sua integridade física ao comparecer, no dia seguinte,

ao local do conflito. Nós o parabenizamos publicamente pelo destemor.

Posteriormente, fiz o acompanhamento do inquérito policial militar. Nele não

existe prova contra os sem-terra. Na fase de instrução processual, ou seja, nos

depoimentos em juízo, apenas um sem-terra informou que Claudemir seria o líder.

Foi um entre dezenas de depoimentos. Em relação a Cícero não há sequer menção.

Ambos foram condenados como co-partícipes de um crime, embora não se tenha

certeza de que o disparo partiu das armas dos sem-terra. Foram condenados por

pressuposição, repito.

Esperamos que durante o julgamento no STJ seja feita uma mobilização, a

fim de sensibilizar os Ministros de que ocorreu uma injustiça e de que a Justiça

brasileira, a consciência jurídica nacional reveja a questão. Não podemos deixar que

essa condenação prevaleça.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) – Agradecemos ao Dr.

Raul Ribeiro Fonseca Filho a participação.

Concedo a palavra ao Dr. Ernande da Silva Segismundo, representante da

Comissão Pastoral da Terra.

O SR. ERNANDE DA SILVA SEGISMUNDO – Exmo. Deputado Orlando

Fantazzini, Presidente da Comissão de Direitos Humanos desta Casa, Sr. Gercino

José da Silva Filho, Exmo. Sr. Deputado João Paulo, senhoras e senhores

servidores, companheiros e companheiras, imaginem uma ação violenta perpetrada

por Israel contra os palestinos e, posteriormente, o Estado de Israel instaurando o

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inquérito policial para apurar a agressão, conduzido por um israelense e apreciado

por um tribunal em que o juiz e os jurados são israelenses. Qual será o veredicto? O

mesmo poderia se dizer de uma ação perpetrada por ingleses contra irlandeses no

auge da disputa entre a Irlanda e a realeza britânica. São os agressores julgando a

si mesmos.

Em relação ao caso de Corumbiara, ocorreu exatamente isto: na máquina

burocrática estatal de repressão ao crime existe animus contra os trabalhadores

rurais sem-terra, contra o movimento agrário. Isso é secular. Os membros dos

movimentos agrários sempre foram vistos como marginais, como delinqüentes,

desde Antônio Conselheiro. É natural que tenha havido esse animus desde o

inquérito, contra a Justiça nesse caso.

Cheguei a Colorado do Oeste no dia seguinte, dia 10, e fiquei espantado ao

ver aquela confusão. Não há polícia do mundo com know-how para administrar o

inquérito de uma confusão que envolva quase mil pessoas. Se instruir inquérito para

apurar homicídio ocorrido em boteco já é difícil, imaginem para apurar briga que

envolve mil pessoas. Nesse conflito foram disparados dois mil tiros, fora os das

armas particulares. Como cada policial utiliza, além da arma da corporação, outra

particular, presume-se que pelo menos três a quatro mil tiros foram disparados.

Chegando lá, fui para o ginásio de esportes, que estava cheio de gente.

Estava tudo quebrado. Eu não sabia o que fazer, apesar de ser advogado. A Polícia

não queria deixar eu entrar. Eu disse que era advogado, criei confusão e entrei. Ao

conversar com as pessoas, a primeira coisa que ouvi é que não comiam e não

bebiam há 24 horas, inclusive as crianças. Esqueci do inquérito; fui atrás do padre

para arrumar comida e leite. Essa foi a minha primeira preocupação. Conseguimos

providenciar sopa e leite.

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Ao chegar à delegacia, o delegado pediu-me as credenciais, apesar de me

conhecer. Começou a confusão. Fizeram um auto de prisão em flagrante com cerca

de 20 depoimentos. Posteriormente, soube que havia mais de 200 pessoas

seviciadas, torturadas, como foi mostrado no vídeo. O que os senhores viram não

representa 10% da realidade. A minha luta foi tentar construir provas. Sumi, criei

uma grande confusão para que se elaborassem os laudos de exames de corpo de

delito, que não queriam fazer. Foi difícil arrumar médicos para fazer os exames.

Queria ouvir cada uma das vítimas, mas o delegado não permitia. Depois nos

aplicaram um golpe: trouxeram delegados de várias partes do Estado. Houve muita

pressão de minha parte e do Bispo, além de Lula, do Deputado Luiz Eduardo

Greenhalgh e de outros.

Instalaram dez bancas para ouvir dez pessoas ao mesmo tempo, mas éramos

só dois advogados. Como a maioria das pessoas era analfabeta, eles registravam o

que bem entendiam nos depoimentos, e tínhamos de assinar sem ouvir as pessoas.

Aplicaram-nos um golpe. Saíamos de mesa em mesa, ouvindo um pouquinho aqui,

um pouquinho ali. Quando acabou o show no circo, quando a mídia foi embora,

todos sumiram. Fiquei sozinho.

Tivemos grande trabalho para acompanhar os primeiros dias dos inquéritos

civil e militar. Tive de rodar a região inteira de Toyota, com medo de levar um tiro na

cabeça, mas vasculhamos casa por casa, para checar se havia mais mortos.

A notícia era de que havia 30 desaparecidos. Comprovamos que havia dois

desaparecidos. Seria impossível 30 pessoas desaparecerem sem que ninguém as

procurassem. Mesmo que fossem peões de trecho, alguém procuraria. Tenho a

convicção de que foram dois desaparecidos. Dois senhores morreram em novembro,

em conseqüência do massacre.

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Muitas das histórias incríveis que foram contadas fazem parte da imaginação.

Ouvíamos as histórias e íamos atrás da comprovação. Aquela história de que

passaram uma motosserra na barriga de uma senhora gestante e que a criança

pulou fora não foi confirmada. A história de que deceparam o pênis de um senhor

também não foi confirmada. São várias histórias criadas naquela loucura, naquela

paranóia de violência extremada.

Como dizia, ninguém tem know-how para cuidar de um inquérito dessa

natureza. O Governo do Estado não dava a mínima para o caso. Conversei com o

Governador Raupp por várias vezes, tentando obter a ninharia de 5 a 10 mil reais,

porque não havia dinheiro para fotocopiar o inquérito. O delegado que ia presidir os

inquéritos não tinha mais crédito na cidade para comprar fiado gasolina e papel. O

inquérito foi conduzido em situação pior do que a de Timor Leste. O animus do

Ministério Público contra mim era muito forte, porque ele queria tudo, menos minha

participação no processo na condição de advogado da Comissão Pastoral da Terra

e do Movimento Sem Terra. De forma que a tensão entre mim e o Ministério Público

cresceu muito. Até meus clientes foram convencidos pelos magistrados a revogar os

mandados que me haviam outorgado. E acabei fora do processo, para evitar o que

citou o Dr. Raul há pouco: o recurso de decisões absurdas. Havia provas cabais

como execução sumária com tiro na nuca, e eles foram absolvidos.

Há indiscutível impunidade nesse caso. Não encontro forma de revê-la. A

CPT nacional e a de Rondônia têm esperança no processo que corre na OEA. Foi

formalizada uma denúncia àquele órgão. Estamos jogando nossa força nesse

processo, porque poderá vir de lá algo mais justo em relação ao caso.

Em Rondônia, para falar só da região em que vivo e que conheço, outra

violência que me parece muito mais drástica do que o massacre de Corumbiara,

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muito mais dolorida, muito mais profunda, muito mais atroz é cometida: a criminosa

concentração da posse da terra causada pelo Governo Federal.

Aqui estão colegas do INCRA, com os quais trabalhamos quase todos os dias

naquela região. Não existe fundamento jurídico, filosófico, religioso, histórico ou

político que garanta uma propriedade, mesmo na Amazônia, de 10, 15, 20, 30 mil

hectares. E isso existe lá. O INCRA sabe disso. Tenho em mão cópia da decisão do

Tribunal de Justiça de Rondônia, que, nesse aspecto, é um dos mais avançados do

Brasil: ele negou a reintegração de posse em áreas licitadas de Rondônia.

O fato é que lutamos. Para os senhores terem uma idéia, ontem à noite

cheguei do interior de Rondônia, onde visitei assentamento de cem famílias, que

estão acuadas. Tentei negociar com o Juiz, porque além das famílias, eles querem

tirar da área a igreja, a escola, a garagem e o balcão. Até brinquei com eles,

dizendo: “Ao policial que vier aqui vocês vão dizer que, se tocar na igreja, vai para o

inferno”. É um absurdo. A escola não é um tapiri. É de madeira, bem organizada,

mas querem tirá-la.

Cito também o caso do Acampamento Antônio Conselheiro, também do

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Faço um parêntese aqui para

esclarecer que trabalho na Comissão Pastoral da Terra e atendo também MST e

MCC — Movimento Camponês Corumbiara. Há outros casos graves em Rondônia,

de outros movimentos sociais, mas não os acompanho.

O caso do Acampamento João Teixeira é muito grave, neste exato momento,

e pode ocorrer algo semelhante ao episódio de Corumbiara. A Polícia Militar visitou

a área para cumprir mandado de reintegração de posse. Não conseguiu e está

agindo de forma delinqüente, porque obstruiu a estrada, não deixa entrar nem sair

ninguém, impedindo também a entrada de alimentos. Eu e o Arcebispo da Capital

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negociamos com o Governador do Estado intervenção para que Polícia Militar,

cumprindo ou não a ordem judicial, deixe de obstruir a entrada de alimentos, porque

isso é delinqüência estatal e oficial.

E temos o caso do Acampamento Paulo Freire, no Município de Nova

Brasilândia D’Oeste, em que 90 famílias estão instaladas na beira da estrada, para

ver se conseguem resolver o problema fundiário.

Sr. Presidente, é impressionante, mas não há qualquer iniciativa por parte do

Governo Federal nem do Estadual no sentido de resolver a questão. Tratamos do

caso de Rondônia e de outros verificados em todo o Brasil da mesma forma como se

tratava a escravidão, ou seja, com muita insensibilidade. Acho que existe também

muita incompetência, além de faltar vontade política para resolver o problema.

Temos em Rondônia vastas áreas nessa situação. Visitei há poucos dias os

Seringais Lago da Brasileira e Escalerita. Os dois totalizam cerca de 29 mil hectares

e estão na mão do ex-Presidente do Tribunal de Justiça. Não se sabe como ele

conseguiu adquirir 29 mil hectares de terra, que estão totalmente ocupados.

Entrando-se com qualquer demanda judicial, a Justiça dá a liminar.

Penso que o grande aliado do latifúndio no Brasil não é o Governo Federal

nem o INCRA, mas o Poder Judiciário, que se nega, terminantemente, a

constitucionalizar a questão da posse de terra no País. Se discutisse os litígios com

fundamento na Constituição Federal, haveria muita mais justiça nesse casos. Mas o

Poder Judiciário teima em garantir a posse da terra altamente ilegítima.

Sr. Presidente, em Rondônia, os seringueiros não queriam terra, assim como

os garimpeiros também não a querem; eles querem a seringa. Assim, haveria

condições técnicas para o Judiciário reverter essas áreas para a União Federal,

fazer assentamento ou dar-lhes outra finalidade social. O fato é que a situação

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continua grave, e não é difícil ocorrerem novos casos semelhantes ao de

Corumbiara.

Muito obrigado e desculpe-me se excedi o tempo.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) – Agradeço ao Sr.

Ernande. Desculpe-me V.Sa. por ter de exercer esse papel desagradável de

interrompê-lo, mas o tempo nos obriga a isso.

Passamos a palavra à Sra. Patrícia Galvão Ferreira, representante do Centro

pela Justiça e o Direito Internacional — CEJIL.

A SRA. PATRÍCIA GALVÃO FERREIRA – Boa-tarde a todos. Em primeiro

lugar, agradeço, de forma muito especial, aos Deputados Orlando Fantazzini e João

Paulo. Sabemos como é difícil realizar uma audiência pública como esta na véspera

das eleições. É a prova cabal do compromisso real desses dois Parlamentares com

as questões tratadas aqui: o caso de Corumbiara, reforma agrária, justiça e paz no

campo.

O CEJIL é organização não-governamental que atua em todo o hemisfério

americano, no apoio jurídico às vítimas da violação de direitos humanos e a

organizações não-governamentais, para que possam acessar os mecanismos

internacionais de proteção aos direitos humanos, em especial os do sistema

americano, incluídos na Organização dos Estados Americanos.

Conhecemos o caso logo após o massacre, no desenrolar das investigações.

Em 6 de outubro de 1995, o CEJIL e a Comissão Teotônio Vilela apresentaram

denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso

Corumbiara. Sem familiaridade ou mesmo com alguma familiaridade com a denúncia

internacional, é de se estranhar a atitude, porque se o fato ocorreu no dia 9 de

agosto deste ano e foi apresentado menos de dois meses depois, é claro que a

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regra básica do esgotamento dos recursos internos poderia ser alegada pelo Estado.

Mas depois de ouvir os integrantes da Mesa, fica claro porque a denúncia foi

apresentada tão cedo.

Desde o início, realmente, era fácil observar a parcialidade, as diversas

tentativas de obstrução das investigações, a falta de vontade política e de condições

técnicas e práticas das autoridades do Estado para fazerem inquérito eficiente que

viesse a sugerir a punição dos responsáveis e a reparação dos danos causados a

todas aquelas vítimas.

A petição alegava violações ao direito à vida, à integridade física, à honra, à

dignidade e à proteção judicial, bens esses protegidos pela Comissão

Interamericana de Direitos Humanos. O objetivo era fazer, nessa primeira parte,

pressão internacional para que as investigações fossem realizadas de forma mais

séria e eficaz. Infelizmente, nem a pressão externa, nem a pressão interna foram

suficientes.

Na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Estado, desde o início,

não contestou os fatos — nem poderia, depois do que ouvimos aqui —, mas usou

defesa técnica: a do não-esgotamento dos recursos internos. Durante alguns anos, a

Comissão apenas escutou os argumentos dos peticionários e do Estado. A nossa

primeira vitória ocorreu em 1998, quando a Comissão decidiu rejeitar a defesa

técnica, que alegava o não-esgotamento dos recursos internos. A Comissão decidiu

que aqueles recursos, que já duravam alguns anos, não estavam sendo conduzidos

de forma eficaz, séria e estavam demorando muito. Dessa forma, admitiu o caso,

abrindo oficialmente a sua análise.

Em março deste ano, a Comissão promoveu audiência em Washington, à

qual eu e o Pe. Léo comparecemos. O Estado novamente alegou que ainda existiam

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recursos contra julgamentos ocorridos em 2000 e, por isso, os recursos internos

ainda não tinham sido esgotados. No entanto, a Comissão Interamericana decidiu

solicitar às partes que enviassem suas alegações finais e as provas de que

dispusessem. A partir daí, abriu-se a análise de mérito sobre o caso Corumbiara.

Este é o estágio atual. Consideramos que nos próximos meses a Comissão

deverá tomar a decisão, porque o prazo para apresentação das alegações finais

pelas partes já está esgotado.

Quero comentar ainda a denúncia internacional. Esse caso poderá ser o

primeiro contra o Brasil a ser apreciado pela Comissão após a modificação do

regulamento, que determina que todas as recomendações finais que não forem

implementadas pelo Estado serão encaminhadas automaticamente à mesma.

Dessa forma, caso a Comissão venha a decidir em favor das vítimas, no

sentido de que houve violação do Estado brasileiro, e a fazer suas recomendações

— e acreditamos, obviamente, que será feita investigação correta, que haverá

punição dos responsáveis, reparação dos danos causados às vítimas e medidas

para evitar novos casos —, o caso poderá ser enviado à Corte Interamericana de

Direitos Humanos, cuja jurisdição contenciosa o Brasil aceitou em 1998.

A Corte é o órgão máximo do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Suas decisões têm força de sentença judicial de Direito Internacional e alcançam

sempre grande repercussão internacional. Acreditamos nós, os peticionários, que

nenhum brasileiro gostaria que o País recebesse a sentença condenatória da Corte

Interamericana e que ficasse com a imagem de um país onde há tanta violência e

impunidade no campo. No entanto, pelo andar da carruagem, por tudo que já

ouvimos aqui e tendo em vista que as vítimas de Corumbiara esperam há sete anos

sem que nada tenha sido feito em seu favor, que outros tantos casos continuam

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ocorrendo no campo — depois desse ocorreu o massacre de Eldorado dos Carajás

—, que os relatórios anuais da CPT não nos deixam esquecer do alto índice de

violência e de impunidade no campo, a condenação é quase certa.

Vamos lutar — e esperamos o apoio de V.Exas., se for possível — para que

esse caso, se necessário, chegue à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Vai

ser o primeiro do Brasil e do hemisfério americano. Acreditamos que poderá servir

para mostrar ao Tribunal Internacional a triste realidade que enfrentamos hoje:

fazendeiros e autoridades locais, com a conivência do Estado, escolhendo a via da

opressão contra os trabalhadores rurais que lutam pela reforma agrária, seja com

repressão policial violenta às manifestações, seja com assassinatos e massacres

impunes, seja com a prisão ilegal e a tortura desses trabalhadores.

Pela experiência que o Centro pela Justiça e o Direito Internacional — CEJIL

já tem no litígio de vários casos na Corte, como assessores da Comissão

Interamericana, acreditamos que, com as provas documentais que já conseguimos

reunir e com as testemunhas de trabalhadores sobreviventes, temos muitas

possibilidades de conseguir que, ao menos no âmbito internacional, seja feita justiça

neste caso de Corumbiara, e esperamos que essa denúncia internacional nos ajude

a mobilizar esforços no âmbito interno para que possamos modificar essa situação.

Muito obrigada.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) - Agradecemos à

Patrícia Ferreira a participação.

Atendendo à solicitação do Dr. Gercino, vamos conceder também a palavra a

um representante do INCRA: ou ao Sr. Francisco Nascimento ou ao Sr. Renato.

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Convidamos o Deputado Adão Preto, que é membro da Comissão de Direitos

Humanos, para assumir a Presidência dos trabalhos, para que eu possa me

ausentar por alguns instantes.

(Não identificado) - Só quero fazer uma correção. Viemos acompanhados

por uma pessoa que vai fazer uma pequena palestra, muito rápida, a respeito do

Estado de Rondônia, principalmente no que diz respeito a sua questão fundiária

hoje. Trata-se do nosso Engenheiro Florestal, do INCRA de Rondônia, Joel Mauro

Magalhães.

O SR. JOEL MAURO MAGALHÃES – Boa-tarde. O Estado de Rondônia,

salvo engano, é um dos primeiros do País a ter sua superfície territorial levantada e

estudada tecnicamente. De 1986 a 1988 foi feita uma primeira aproximação do

zoneamento socioeconômico e ecológico de Rondônia, quando se estabeleceram as

condições de aproveitamento do uso da terra e a sua destinação de acordo com sua

vocação, aptidão e oferta ambiental. Estava previsto que dez anos depois seriam

feitos novos estudos, em razão da evolução tecnológica; uma segunda aproximação,

que já aconteceu. Embora 12 ou 13 anos depois, temos a segunda aproximação do

Estado de Rondônia normatizada em lei.

Com a edição da Medida Provisória 2.166, havia uma contradição entre o que

preconiza o zoneamento do Estado e o que CONAMA, Governo Federal e Ministério

do Meio Ambiente determinam para conservação e preservação de recursos

naturais.

Na sua segunda aproximação do zoneamento, a superfície territorial do

Estado foi dividida em três grandes zonas, com algumas subzonas. Por exemplo:

uma grande zona é a Zona 1. O que é a Zona 1? Essa é uma zona onde pode se ter

aproveitamento integral para usos econômicos, agropecuários, agrícolas. Assim, em

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razão da característica pedológica — boa qualidade de solo, condições de acesso,

infra-estrutura geral, assistência técnica, crédito, informações, pesquisas disponíveis

—, essas áreas, insertas no contexto da Zona 1, necessitariam de baixa quantidade

de insumos para aproveitamento agrícola por pequenos, médios e grandes

agricultores — não haveria exigência de correção por calagem, adubação, enfim, o

custo da produção seria menor, o que contribuiria para a minimização do Custo

Brasil, por exemplo.

Numa outra escala estaria uma segunda porção de terras chamada de Zona

2, cuja categoria da oferta ambiental seria de menor qualidade do que a da primeira,

por exigir mais insumos para a produção agropecuária em geral e em razão,

sobretudo, de a cobertura florística oferecer potencialidade de aproveitamento

florestal não apenas da madeira, mas de tudo aquilo que a floresta pode produzir

econômica e ecologicamente.

A terceira zona compreende todas aquelas áreas que, por lei — Código

Florestal e Medida Provisória 2.166 — seriam de preservação ambiental, além de

outras áreas institucionalizadas como unidade de conservação de uso indireto:

parques nacionais, florestas nacionais, reservas biológicas etc.

Nessa condição, Rondônia ficou com sua potencialidade zoneada, e isso

implicava que determinadas áreas poderiam ser utilizadas para determinados fins e

outras não, a não ser para fins de turismo, visitação, pesquisa, estudos, não para

aproveitamento direto do potencial da oferta ambiental.

Isso acarreta uma situação peculiar para a reforma agrária. Sabe-se que o

INCRA é o gestor das terras pública, e Rondônia advém de um território, o Território

Federal de Rondônia, e, como tal, toda sua superfície territorial era gerida pela

União Federal, por meio do INCRA. O Estado, unidade federada, não tem terras sob

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sua gestão político-fundiária, e o INCRA, gestor das terras públicas federais, ficou

com função de empreender a reforma agrária, que foi, digamos assim, dificultada,

porque a demanda social reprimida é muito grande, e a oferta de recursos para

disponíveis tem limitações de uso, manejo diferenciado — o manejo florestal difere

do manejo agrícola.

Criou-se um impasse. O INCRA ficou numa camisa-de-força, porque não

poderia ir contra a lei, sobretudo durante o período em que vigeu, de 1998 até agora.

Com o decreto que regulamentou a Medida Provisória 2.166, tínhamos de ter 80%

de área sob reserva legal. Antes era de acordo com o Código Florestal, art. 44, ou

seja, 50%. Com essa Medida Provisória, esse índice subiu para 80%.

Então, qualquer imóvel — terras de particulares e as terras públicas da União

— que tivesse menos de 20% de sua superfície antropizada não seria objeto de

intervenção da União para reforma agrária. Nessas condições, ficaria, sim, difícil

fazer a reforma agrária, porque aquelas áreas cujos 80% fossem recobertos de

cobertura florística poderiam ser aproveitadas para o extrativismo vegetal.

Mas vejam: o potencial de demanda para o acesso à terra é de trabalhadores

rurais tradicionais, não de seringueiros. Os seringueiros estão todos contemplados.

Há muito mais áreas para seringueiro do que demanda de seringueiro, e para o

trabalhador florestal existe mais áreas do que a demanda hoje existente para

manejo florestal.

Então, o Estado teria de fazer a adequação de uso e manejo da terra para

poder proceder à reforma agrária. Com isso, fica difícil atender ao contingente de

pessoas que demandam o acesso à terra para produzir alimentos, sobretudo grãos.

Ademais, a própria situação histórica das terras do Estado de Rondônia, que

passaram a ser geridas pelo INCRA a partir dos anos 70, criou uma situação

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diferenciada. Na época, a política fundiária exigia a ocupação da Amazônia e, para

fazê-la, foram empreendidas licitações de terras para empresas e empresários do

setor rural. Com isso, as áreas de alguns setores do Estado foram vendidas em

concorrência pública. E para acessar essas concorrências, as pessoas que tinham

interesse tinham de apresentar um projeto de como seria o aproveitamento dessas

terras. Ao longo do tempo, muitos aproveitaram de acordo com os projetos, mas

outros não.

O próprio Estatuto da Terra define a função social da terra tendo em vista o

grau de utilização e a eficiência na sua exploração. Isso significa que se esses

parâmetros condizem com o aproveitamento da terra, se não tem trabalhador

escravo, se quem está lá trabalhando entrou legalmente, se a produção é

condizente com a característica da oferta ambiental, a área é considerada produtiva.

Dependendo do tamanho, pode ser latifúndio ou não, mas, se é produtiva, não é

passível de desapropriação.

Pode ser que algumas áreas objeto de licitação estejam enquadradas como

produtivas, porém fossem inadimplentes quando houve o aproveitamento original, na

época da licitação. Então, determinadas áreas são de difícil aproveitamento para

reforma agrária.

A outra situação é que, com o advento da medida provisória, ficamos sem

saber como desapropriar áreas que não têm mais do que 20% de área antropizada.

Depois foi editada portaria do INCRA, e a própria legislação que dizia: áreas que

foram ocupadas, consideradas invadidas, não podem ser objeto de desapropriação,

porque existe gente vivendo ali. Para conter o avanço do processo de invasão de

terras, determinou-se uma normatização. Todas as áreas tidas como ocupadas

ficam impedidas de serem objeto de desapropriação. Por isso há um número muito

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grande de propriedades consideradas improdutivas que, embora passíveis de

desapropriação, não podem ser objeto de vistoria para desapropriação, por estarem

ocupadas.

Estamos enfrentando certas dificuldades para a condução do processo de

reforma agrária na linha da legalidade, de acordo com a legislação tanto ambiental

quanto agrária.

O Estado tem uma peculiaridade diferenciada dos outros, até mesmo da

própria Região Norte, que, embora tenha uma estrutura fundiária com grandes

seringais, não resta a menor dúvida, é das mais justas comparativamente. Rondônia

teve 76 mil famílias assentadas pelo processo da reforma agrária ao longo dos

últimos trinta anos; 5 milhões e 500 mil hectares de terras reformadas. Isso dá um

resultado em torno de 25% da superfície territorial do Estado em áreas reformadas,

mediante assentamento de famílias. São 125 os projetos de assentamento no

Estado de Rondônia, e existem alguns megaassentamentos, com até 5 mil famílias,

como é o caso de Ouro Preto.

Embora hoje o processo esteja avançando, há dificuldades impostas pelas

contradições da própria legislação agrária, há conflitos entre legislação ambiental e

agrária.

Essa é, em linhas gerais, a história do que acontece em Rondônia. Temos

uma carta que mostra a fitofisionomia do Estado, mas infelizmente não trouxe um

programa de computador para mostrá-la. Mas o INCRA não pode agir à margem da

lei. Então, enquanto vigerem essas regulamentações, ficamos no cume da meada,

sem maneira de conduzir o processo.

Nas áreas ocupadas que podem ser objeto de desapropriação, cerca de 25

propriedades em Rondônia podem fazer parte do processo de reforma agrária, de

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forma a acelerar o desenvolvimento do Estado e a atender à demanda reprimida de

trabalhadores sem terra.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) - Agradecemos aos

representantes do INCRA a participação.

Passamos a palavra agora ao Desembargador Dr. Gercino José da Silva

Filho, Ouvidor Agrário Nacional.

O SR. GERCINO JOSÉ DA SILVA FILHO - Sr. Presidente, demais

componentes da Mesa, senhoras e senhores, volto a esta Casa com grande alegria

— estive aqui em 1999, quando denunciei o então Deputado Hildebrando Pascoal, o

homem da motosserra. Naquela oportunidade, pude mostrar fotografias que

repercutiram em todo o Brasil, em que aparecem as vítimas de Hildebrando, como

esta, por exemplo, de um homem com as duas pernas, os dois braços e o pênis

serrados.

Essas fotografias tiveram o grande poder de mudar a opinião de todas as

autoridades encarregadas de processar e julgar o ex-Deputado Hildebrando

Pascoal, inclusive os Parlamentares. Graças a Deus, hoje ele está condenado a

mais de trinta anos de prisão no Acre, juntamente com quarenta capangas. Ainda

não foi julgado pelos crimes mais violentos que cometeu. Houve uma verdadeira

limpeza no Estado.

Sr. Presidente, com relação ao massacre de Corumbiara propriamente dito,

tenho pouco a informar. Quase não participei do julgamento, da instrução e da fase

na polícia, mas o episódio fez com que a Ouvidoria Agrária Nacional, órgão que

represento e que está vinculado aos Ministérios do Desenvolvimento Agrário e da

Justiça, elaborasse um plano de execução de mandados judiciais de reintegração,

exatamente para evitar o que ocorreu no cumprimento desse mandado judicial.

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Esse plano diz o seguinte:

“Para evitar os embates fundiários decorrentes do

cumprimento de ordens judiciais, bem como para auxiliar

as autoridades encarregadas de garantir a aplicação da

lei aos casos concretos de natureza agrária levados ao

conhecimento e julgamento do Poder Judiciário, a

Ouvidoria Agrária Nacional do Ministério do

Desenvolvimento Agrário resolveu editar o presente

manual, intitulado ‘Plano de Execução de Mandados

Judiciais de Reintegração de Posse’, estabelecendo de

maneira rigorosa todos os passos que os encarregados

de cumprir a determinação judicial devem obedecer

durante o cumprimento de ação possessória, garantindo,

desse modo, o respeito às normas constitucionais,

essencialmente aquelas decorrentes dos arts. 1°, 3° e 4°

da Constituição Federal, onde está expresso que são

fundamentos da República Federativa do Brasil a

cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores

sociais do trabalho, a construção de uma sociedade livre,

justa e solidária, a erradicação da pobreza e da

marginalização, a redução das desigualdades sociais e

regionais, a prevalência dos direitos humanos e a

promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem,

raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de

discriminação nos seguintes termos”.

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Sr. Presidente, este manual, distribuído a todos os comandantes de Polícia

Militar das diversas Unidades Federativas do Brasil — aliás, algumas PMs já

incorporaram esse plano ao seu boletim geral e algumas obedecem a ele

rigorosamente —, diz que tem de haver a articulação do comandante com os

representantes dos Municípios; é necessário utilizar máquina filmadora durante a

execução do mandato judicial; a tropa deve obedecer unicamente ao ordenamento

jurídico; a PM deve estar ciente de que, havendo qualquer dúvida quanto ao

cumprimento da ordem, deve comunicar o fato ao juiz, a fim de que faça uma

inspeção judicial; o oficial encarregado deve chamar a atenção do Comandante da

PM para ele fazer uma fiscalização no local e verificar que a ordem corre grande

risco se for cumprida de qualquer jeito.

Havendo fatores adversos, o comandante deve recomendar a inspeção

judicial; garantir a segurança física do magistrado, se for o caso da inspeção judicial;

a Polícia Militar deve apenas resguardar a segurança física dos oficiais de justiça e

não substituí-los; a Polícia Militar não pode dar guarida a qualquer ação que não

esteja prevista no mandado judicial.

É comum que a polícia, durante o cumprimento da ordem judicial, destrua os

bens dos sem-terra, queime suas lonas, queime seus bens, inclusive sua bandeira e

outras coisas mais, como foi dito e mostrado no filme.

Ressaltamos ainda que os policiais militares não estão subordinados aos

oficiais de justiça; as informações sobre a execução do mandado judicial devem ser

fornecidas de maneira clara; os policiais militares devem estar cientes de que a ação

a ser desenvolvida possui conotação social; não se pode confundir

discricionariedade com arbitrariedade; o poder de polícia deve ser exercido de

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acordo com o interesse social; os limites do poder de polícia encontram medidas no

interesse social e nos direitos fundamentais do indivíduo.

Recomendamos ainda que o oficial responsável deve tomar as seguintes

providências: contactar os representantes dos ocupantes para fins de

esclarecimento e prevenção de conflito; localizar acampamentos provisórios com

apoio das autoridades municipais, estaduais e federais, inclusive da Ouvidoria

Agrária Nacional e das Ouvidorias Agrárias Estaduais, para remanejamento dos

despejados, e não colocá-los em qualquer lugar, como se fossem animais; indicar

também, com apoio das autoridades supramencionadas, prédios para a guarda dos

bens das famílias despejadas.

O Comandante-Geral da Polícia Militar deve dirigir-se às seguintes

autoridades: ao Prefeito do Município onde estiver localizado o imóvel objeto do

cumprimento do mandado de reintegração de posse; à Câmara de Vereadores do

Município; ao dirigente do órgão municipal e de promoção e defesa dos direitos

humanos; ao Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia

Legislativa; ao Superintendente Regional do INCRA e ao Ouvidor Agrário Estadual

ou, na sua falta, ao Ouvidor Agrário Nacional.

A comunicação deve obedecer às seguintes regras: informar a comarca, o juiz

e o número da ação em que foi determinada a reintegração de posse, bem como os

nomes das partes envolvidas; o número de famílias instaladas na área a ser

desocupada; a data e a hora em que deverá ser realizada a desocupação; indicar as

unidades da Polícia Militar que atuarão no auxílio ao cumprimento da ordem judicial,

inclusive a previsão do número de policiais que atuarão na operação; indicar

previamente os locais que servirão de alojamentos aos despejados e onde poderão

depositar seus bens.

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Isso tudo visa a evitar fatos como os que ocorreram em Corumbiara e os que

vinham ocorrendo no Paraná, há dois anos, pois os mandados de reintegração de

posse eram cumpridos durante a noite. Quem sabia o local da ordem judicial a ser

cumprida era apenas o oficial. Nem a própria tropa sabia.

Para evitar isso, fizemos esse plano de execução e o distribuímos a todas as

autoridades. Aliás, pedimos auxílio à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos

Deputados para sua implantação, se for conveniente.

Temos feito algumas audiências públicas, Sr. Presidente, senhoras e

senhores, para a prevenção dos conflitos agrários e na tentativa de evitar casos

como o de Corumbiara e o de Eldorado do Carajás. Temos sugerido às autoridades

as seguintes providências:

- Proteção aos ameaçados de morte. Para os senhores terem uma idéia, no

Estado do Pará, de uma relação de 34 ameaçados de morte, quatorze já foram

assassinados.

- Cumprimento dos mandados de prisão. Só na Fazenda Bamerindus,

também no Estado do Pará, existem aproximadamente dez pessoas contra as quais

foram expedidos mandados de prisão refugiadas em projetos de assentamento do

INCRA, e a Polícia Militar não consegue adentrar as áreas de assentamento para

prendê-las.

- Desarmamento geral na zona rural.

- Investigação das empresas de segurança privada.

- Reabertura de inquéritos cujos autos foram arquivados por falta de autoria.

Não que as pessoas não saibam quem praticou o crime. O Sr. Nascimento, aqui

presente, sabe disso. Quando o ex-Deputado Hildebrando Pascoal comandava o

esquadrão da morte no Acre e ninguém fazia nada, isso acontecia porque ninguém

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dava segurança a essas pessoas. A partir do momento em que eu, como Presidente

do Tribunal de Justiça do Acre, passei a dar cargo no Tribunal a essas pessoas,

colher depoimentos e mandá-las para fora do Estado, elas começaram a dizer quem

estava cometendo os crimes sob a ordem do ex-Deputado Hildebrando Pascoal.

- Agilização dos julgamentos. E estou cortando minha própria carne, porque

também sou juiz, embora aposentado. A Justiça, de fato, é muito lenta.

- Retirada de posseiros das terras públicas.

- Combate ao trabalho escravo, o que precisa ser mais incentivado. Está

sendo feito um trabalho maravilhoso, principalmente no Pará, mas é preciso mais

incentivo.

- Combate ao tráfico de drogas. Dentro dos próprios projetos de

assentamento do INCRA, é grande o tráfico de drogas.

- Combate à violência contra os índios e os quilombolas. Tive a oportunidade

de requerer, na sexta-feira passada, a suspensão de uma reintegração de posse,

decretada por um juiz no Estado de Mato Grosso, de pessoas descendentes de

negros que ocupam uma área denominada Mata Cavalo. O parecer relativo à área

dá a posse aos descendentes negros, mas o juiz deu reintegração de posse a favor

de um grileiro, pretendendo tirar os legítimos donos da área. Entrei com um pedido,

com o apoio do Presidente do Tribunal de Justiça e consegui a suspensão do

mandado de reintegração.

- Cumprimento dos mandados de reintegração de posse das áreas

produtivas. Não estamos apenas do lado dos sem-terra, mas também do lado dos

fazendeiros, desde que estejam de acordo com a lei. Se a área é produtiva e está

cumprindo sua função social, é justo que seja feita a reintegração de posse a essas

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pessoas, e é dever do INCRA arranjar área para assentar quem está em áreas

produtivas.

- Combate à venda de lotes nos projetos de assentamento do INCRA.

- Capacitação das polícias estaduais e da Polícia Federal.

- Melhoria da segurança pública.

- Combate à extração ilegal de madeira.

- Combate à impunidade.

- Fortalecimento da Polícia Federal.

- Incentivo ao PROVITA.

Tudo isso é preciso para melhorar o combate à violência na zona rural.

Passo às mãos de V.Exa. este material, que é da Ouvidoria Agrária Nacional

do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Temos buscado prevenir, em primeiro

lugar, e diminuir os conflitos agrários. Quando não é possível, pelo menos tentamos

resolvê-los de maneira respeitosa aos direitos humanos e sociais, para evitar que

ocorram novos conflitos, como o de Corumbiara, no Estado de Rondônia, e o de

Eldorado do Carajás, no Estado do Pará.

Era o que tinha a dizer inicialmente. Muito obrigado.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) - Agradecemos ao Dr.

Gercino a participação e expressamos nosso reconhecimento pelo trabalho que vem

desenvolvendo na Ouvidoria Agrária. Sabemos do comprometimento do senhor com

a defesa dos direitos das pessoas e do seu empenho para que não haja, em

hipótese alguma, violação deles.

Obviamente, muitas vezes as coisas fogem ao controle. Digo isso porque fui

parte na questão da Fazenda de Buritis e sabemos que foi grande o seu empenho

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para que a ocupação terminasse de forma tranqüila e pacífica. Infelizmente o

controle total da ação não ficou em suas mãos.

Deixo claro desde já nosso interesse em difundir este trabalho, inclusive o

plano de cumprimento de mandados, para todos os movimentos sociais. É

importante que não apenas as polícias tenham conhecimento de como devem

proceder, mas que as pessoas dos movimentos sociais também saibam qual é a

obrigação das polícias na hora de dar cumprimento às ordens judiciais.

Quero aproveitar a presença da Sra. Maria Eliane e fazer uma sugestão. Se

os Srs. Deputados assim consentirem, pois isso não é regimental, após a

participação dos Deputados abriremos a palavra à Sra. Maria Eliane. Existe a

intenção de a Comissão de Direitos Humanos e o Ministério Público Federal

procurarem o Ministro da Justiça para solicitar a reabertura das investigações a

respeito de Corumbiara, uma vez que houve violações aos direitos humanos, e a Lei

n° 10.446 claramente expressa que a Polícia Federal pode fazer as investigações

em alguns casos, entre eles quando há violação aos direitos humanos.

Gostaria de consultar a Sra. Maria Eliane quanto à possibilidade de o

Ministério Público Federal, junto com a Comissão de Direitos Humanos, provocar o

Ministro da Justiça, porque esse caso depende única e exclusivamente da vontade

política de S.Exa. em determinar a investigação sobre Corumbiara pela Polícia

Federal e pelo Ministério Público Federal.

Passo a palavra, pela ordem de inscrição, ao Deputado João Paulo.

O SR. DEPUTADO JOÃO PAULO - Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados,

nossos convidados, queria saudar a todos e dizer que é muito importante esta

audiência pública. Há um hábito na história do Brasil de acreditar que o tempo vai

fazendo com que esqueçamos essas marcas e se encarregando de colocar outros

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desastres no nosso caminho, e nos preocupamos sempre com o mais recente.

Como vivemos em um mundo em que as coisas acontecem com muita fugacidade e

esquecemos facilmente, também temos a tendência de ser tragados por esse

mundo e de esquecermos as coisas tristes, mais longas ou mais distantes.

Já se passaram alguns anos, e o caso de Corumbiara, a cada ano que passa,

tem o seu debate reduzido. Depois de uma conversa com o companheiro Orlando

Fantazzini, Presidente desta Comissão, resolvemos propor esta audiência pública e

o fizemos correndo o risco de, por ser agosto um mês de baixíssima presença e

debate na Casa, não vê-la tão concorrida como o seria numa situação de

normalidade, mas fizemos questão de realizá-la agora para não deixar passar este

acontecimento. No mês de agosto, todos sabemos, faz sete anos que ocorreu

aquele massacre. E a Câmara dos Deputados, quando desse acontecimento, tomou

uma iniciativa imediata. Lembro muito bem que o Deputado Padre Roque esteve in

loco para verificar as atrocidades cometidas na ocasião. Depois, apresentou um

relatório a esta Casa e subsidiou outras personalidades que quiseram ir até o local.

Enfim, S.Exa. acabou dando uma contribuição enorme para que pudéssemos

ressaltar o quão forte tinha sido aquela ação de policiais e de jagunços, a mando do

poder do latifúndio. Sua atuação foi muito importante.

Queremos deixar isso muito forte na nossa memória, inclusive por conta das

injustiças praticadas no desenrolar do caso. Se, de fato, no dia 9 de agosto de 1995

houve um verdadeiro genocídio, posteriormente outras injustiças foram cometidas,

em particular a que condenou duas pessoas vivas mas atormentadas, porque não é

fácil — todos nós sabemos como funciona a nossa cabeça — conviver com as

cenas a que pudemos assistir. E se o vídeo passado mostra somente 10% dos fatos,

como foi dito aqui, então imaginem o que aconteceu.

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As duas pessoas condenadas pagam injustamente por um crime que não

cometeram, com o comprometimento de sua própria vida, porque é muito difícil se

reinserir na sociedade e na vida cotidiana após ter passado por aquela tormenta e

visto aquelas cenas.

Ao Estado cabe reparar esse dano. Se não é possível fazê-lo no Estado de

Rondônia, por intermédio da Justiça local, temos de buscar um órgão superior.

Desde aquela ocasião, o Parlamento e a sociedade como um todo sabiam que, caso

o julgamento transcorresse em Rondônia, da forma como caminhava, seria

contaminado por outros critérios que não o da lei. De algum tempo para cá,

começamos a perceber que não foram somente os parâmetros da lei que

determinaram aquele julgamento. Isso precisa ser reparado.

A Comissão de Direitos Humanos da Casa pretende — falo em nome da

Liderança, mas com certeza a Presidência da Comissão também pensa assim —

que seja reparado esse dano perante as pessoas injustamente condenadas e as que

sobreviveram e carregam seqüelas, transitando de um acampamento para outro, de

um pedaço de terra para outro, nas esquinas de Rondônia. O Estado tem a

obrigação de fazer isso. Afinal, foi ele que provocou essa situação.

Estamos circunscrevendo nossa fala ao caso de Corumbiara, tema do debate,

mas poderíamos falar de Eldorado do Carajás ou do número de pessoas que

morrem diariamente na luta pela terra. Impressiona-me, por exemplo, ouvir o Dr.

Gercino dizer que, dos vinte marcados para morrer, dez já foram mortos. É

inacreditável. É como se os marcados para morrer marchassem inexoravelmente

para a morte.

Minha idéia, companheiro Orlando, é dar potencialidade a este ato singelo,

modesto e restrito à Comissão de Direitos Humanos. Podemos potencializá-lo

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levando à OEA, ao Ministério da Justiça, ao Tribunal de Justiça de Rondônia, ao

Superior Tribunal de Justiça, ao Ministério Público Federal e ao Ministério Público do

Estado esses depoimentos de pessoas isentas, que lá viveram e não querem nada

além de justiça, para que sejam divulgados.

Vamos socializar ao máximo a iniciativa de V.Exa., para que possamos

remeter esse debate a todos os órgãos. A Câmara dos Deputados, por intermédio

da Comissão de Direitos Humanos, só quer que seja reparada a injustiça cometida

no julgamento feito em Rondônia, para que pessoas como Claudemir — que vive

zanzando no Rio de Janeiro — tenham o direito de se inserir na sociedade e contar,

pelo menos, com acompanhamento psicológico para si próprio e para sua família.

Vamos reservar o debate iniciado pelo representante do INCRA de Rondônia

para outro momento. O problema da terra em Rondônia não é a fronteira agrícola ou

a necessidade de preservação. É político, como, de resto, no Brasil inteiro, ou seja,

como se definem as terras existentes e se as distribuem para as pessoas que delas

necessitam.

É importante considerar a questão da preservação, mas podemos fazê-lo em

outra ocasião. Importa-nos, agora, dizer que a Casa, na pessoa do Presidente da

Comissão de Direitos Humanos, quer que se faça justiça. Vamos potencializar este

debate ao máximo, para que mais pessoas saibam que estamos empenhados nisso.

O Parlamento brasileiro quer que esse caso, passados sete anos, não caia no

esquecimento, após terem sido condenadas duas pessoas que só cometeram o

crime de querer um pedacinho de terra para construir e criar suas famílias.

Parabenizo a Comissão de Direitos Humanos pelo produtivo debate. O

plenário não esteve lotado, mas os participantes podem ter certeza de que seus

depoimentos serão divulgados. Dessa forma, a Câmara dos Deputados ratifica sua

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solidariedade à luta pela reforma agrária e à busca por justiça, para reparar o erro

que se cometeu em Corumbiara.

Obrigado.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) - Agradeço a intervenção

ao Deputado João Paulo.

Relembro que a Comissão de Direitos Humanos também tem sete anos. À

época, a Presidência cabia ao Deputado Nilmário Miranda, que não mediu esforços

para acompanhar a questão de Corumbiara, o que vem fazendo desde então.

No momento, temos de intensificar as pressões sobre o Estado brasileiro,

porque o tempo está passando, e não vemos ações adequadas. Vimos apenas a

condenação de dois trabalhadores que lutavam pelo direito constitucional de acesso

à terra, enquanto os verdadeiros mandantes, responsáveis pelo massacre,

continuam transitando livremente pelo Estado de Rondônia e, pelo que nos consta,

com a conivência das autoridades. Isso é lamentável. Por outro lado, o Estado

brasileiro não se manifestou em relação às vítimas, que merecem ter reparados os

danos que sofreram.

Deputado João Paulo, tenha certeza de que, com o apoio de V.Exa., vamos

potencializar os resultados desta audiência pública e levá-los ao conhecimento das

autoridades de Rondônia, do Ministério da Justiça e do Ministério do

Desenvolvimento Agrário. A Comissão se compromete a acompanhar o recurso

enviado à Casa em razão da decisão do Tribunal de Justiça de Rondônia em manter

o julgamento, além de fazer as gestões políticas necessárias para que possamos

reverter esse quadro.

Passo a palavra ao Deputado Adão Pretto, grande companheiro de luta pela

reforma agrária e por uma política agrícola no País.

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O SR. DEPUTADO ADÃO PRETTO - Muito obrigado, Sr. Presidente.

Cumprimento os prezados amigos e as autoridades presentes.

Um debate como este me toca profundamente. Já participei de muitas

discussões sobre esse e outros casos. Tenho a honra de ter sido um dos fundadores

do movimento dos sem-terra, não como Deputado, mas como pequeno agricultor e

sindicalista.

Participei das primeiras reuniões, após o golpe militar, para a organização da

luta pela terra, e ajudei nesse movimento. Hoje, vemos com muito entusiasmo o

resultado de nossas realizações. Só no Rio Grande do Sul, temos 280

assentamentos e mais de 12 mil famílias assentadas. No País, temos em torno de

800 mil famílias acampadas em 582 Municípios e 102.849 famílias assentadas em

1.490 Municípios. Quando dei início a esse movimento, nossas reuniões ocorriam

debaixo de árvores, dentro dos potreiros, porque as escolas e as igrejas se negavam

a nos ceder espaço.

No final do ano, tive a honra de representar o movimento dos sem-terra no

encontro do Partido Comunista de Portugal, que teve a presença de 2.000

delegados e em torno de 52 países representados. Os portugueses apresentaram

todos os convidados, e o povo os aplaudia. Quando chegou nossa vez, a platéia se

levantou e nos aplaudiu de pé, por aproximadamente 30 segundos. Imaginem a

emoção que sentimos, nós, que começamos a organizar esse movimento.

No Brasil, os integrantes do MST são tratados como marginais. No exterior, o

movimento já recebeu honrarias. O rei da Bélgica entregou, pessoalmente, prêmio

de honra ao movimento dos sem-terra, como defensor da vida, da paz e da

cidadania.

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Meses atrás, estive num assentamento na fronteira do Rio Grande do Sul.

Fizemos uma reunião com os agricultores assentados e, após uma pelada de

várzea, tomamos uma cerveja com os agricultores. Eu tinha de sair logo para uma

reunião, mas um dos agricultores me puxou pela camisa e disse: “Deputado, deixe

aqui uns trocos, para tomarmos uma cerveja”. Vi que alguém imediatamente o

pegou pelo braço e o arrastou para o lado. Fiz de conta que não vi, mas fiquei

escutando a conversa. O companheiro passava nele um sermão: “Mas tu não toma

jeito mesmo! Tu não tá vendo que agora nós somos assentado? Nós, agora, semo

cidadão, e você mendigando cerveja?”

Então, vejam, meus amigos: para essas pessoas, a terra representa

cidadania, liberdade e integração à sociedade. É por esse motivo que existe essa

malvadeza, e não porque os agricultores querem um pedaço de terra ou porque vão

produzir mais alimento. Não dá para entender por que fazem assim com quem quer

trabalhar. Temos de compreender exatamente isto: o modelo atual não quer que os

pobres se tornem cidadãos. Esta é a verdade.

Temos dezessete partidos políticos, mas, na verdade, dois projetos em

disputa: um é o Brasil partilhado, sem violência, fome ou miséria, com liberdade e

democracia; o outro é o que está aí, que quer que os ricos fiquem cada vez mais

ricos e, os pobres, cada vez mais pobres.

Esse projeto já quebrou a Argentina e o Paraguai, está quebrando o Uruguai

e a Colômbia, e o próximo será o Brasil. Temos de compreender que está em

disputa não simplesmente a partilha da terra, mas um modelo carrasco de

sociedade, implantado há quinhentos anos no País. Aqueles que o mantêm sentem

que ele começa a ser ameaçado.

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CÂMARA DOS DEPUTADOS - DETAQ COM REDAÇÃO FINAL
Nome: Comissão de Direitos Humanos
Número: 0770/02 Data: 28/08/02

Quanto ao que aconteceu em Corumbiara, como bem disse nosso Líder João

Paulo, o fato mais recente anula o anterior. Podemos começar pelo Rio Grande do

Sul. Também foi notícia nacional um conflito na Praça da Matriz, em que agricultores

que reivindicavam desapropriação de terras e alimentos para os acampamentos

foram violentamente espancados pela Polícia. A pancadaria foi tão violenta que

atingiu até quem se parecia com colono. Um motorista da empresa Sadia, que fazia

entrega de frango a um supermercado de Porto Alegre, teve um braço fraturado

simplesmente por ter sido confundido com um agricultor. Um policial foi assassinado,

talvez vítima dos próprios companheiros.

Prenderam seis companheiros, só julgados depois de dezessete meses,

quando a Constituição diz que ninguém pode ficar preso por mais de oitenta dias

sem julgamento. Depois deste, foram libertados por falta de provas. Criaram outro

quesito para os jurados: se, de alguma maneira, os acusados haviam contribuído

para que o crime acontecesse. Por isso, eles foram condenados a seis, sete ou oito

anos de cadeia.

Eu e outros companheiros nos apresentamos ao Supremo Tribunal Federal

para que também fôssemos presos, já que, de alguma forma, também tínhamos

contribuído com o que ocorreu, porque defendemos a reforma agrária. Então, quem

defende a reforma agrária, de alguma maneira, é cúmplice de um crime como esse.

Logo depois, aconteceram os fatos de Corumbiara e de Eldorado dos

Carajás. Recentemente — não foi comentado, porque não houve vítima —, um fato

semelhante ocorreu no Estado de Goiás. Lá estive presente, com o Deputado Babá,

do PT do Pará, junto com a direção dos sem-terra.

Mais de cem famílias haviam sido despejadas às dez horas da noite, tiradas a

laço do acampamento e levadas para a cidade. As mulheres ficaram presas num

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pavilhão, os homens, noutro, e os chamados líderes, na cadeia. Dos homens,

nenhum estava são. Todos tinham marcas de laço; alguns, costela ou braço

quebrado. As crianças choravam. Todos tinham sede, pois não tomaram água desde

que saíram do acampamento — a laço — até o meio-dia seguinte. Até um

adolescente de 15 anos se encontrava preso na cadeia, porque, segundo eles, era

líder do movimento.

Fomos providenciar a soltura daqueles companheiros. O delegado nos disse

que eles teriam de pagar uma fiança de 300 reais. Achamos que era muito, era

desleal. O delegado pediu que fôssemos falar com o juiz da Comarca. Este, que era

jovem, nos disse que realmente os agricultores teriam de pagar. Argumentei que,

além de ser injusto, os agricultores não possuíam aquele dinheiro. Ele respondeu:

“Não, o delegado me informou que ele revistou os agricultores e todos têm mais de

500 reais. Então, dá para pagar e ainda sobra”.

Perguntei a ele se era legal ter criança encarcerada. Ele disse que não tinha.

Eu disse: “Como não? Estão sem tomar água, inclusive!” Ele respondeu: “Isso serve

para os agricultores sem-terra aprenderem que, quando vão fazer essas ações, não

devem levar crianças junto”.

Esses fatos acontecem. Talvez um episódio como esse esteja ocorrendo

agora. É bom termos presente que essa não é uma disputa pela terra, mas pela

soberania e pela liberdade de um povo que, por ser pobre, é tratado como escravo.

Quero parabenizar o Presidente da Comissão de Direitos Humanos pela

realização de mais esta audiência. O que podemos fazer é protestar, reivindicar,

provar as injustiças e ter esperança de que as autoridades, um dia, tomem vergonha

e façam alguma coisa.

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O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) – Agradecemos a

participação ao Deputado Adão Pretto.

Com anuência dos Deputados, concedemos a palavra à Dra. Maria Eliane

Menezes de Farias, Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão.

A SRA. MARIA ELIANE MENEZES DE FARIAS – Sr. Presidente, quero

agradecer, inicialmente, a oportunidade de falar nesta audiência. Cumprimento todos

os presentes a este debate e parabenizo os Deputados Orlando Fantazzini e João

Paulo pela iniciativa.

Ouvi todos os relatos com muita atenção. Como produzi o relatório do último

julgamento de Eldorado dos Carajás, verifico que há um padrão de repetição de

todas as atitudes do Estado, representado pelos seus diversos segmentos: Polícia,

Ministério Público, Poder Judiciário, enfim, por todos aqueles envolvidos na

apuração, no seguimento, na denúncia e no posterior julgamento de atos que

envolvem a disputa fundiária.

Isso tem causado grande preocupação à Procuradoria Federal dos Direitos do

Cidadão, porque 90% das causas para as quais somos acionados contêm um

conflito fundiário subjacente.

Há mais ou menos dez dias, estive em Nova Mutum, Mato Grosso, para

julgamento que envolvia questão fundiária. O fato já saíra no noticiário: dois

Procuradores do INCRA grilavam terras da União destinadas à reforma agrária. A

situação se perpetua até hoje, de forma que ainda permanecem ameaçadas as

famílias assentadas na área. De 150 que originariamente estavam num pré-projeto

do INCRA, hoje restam cinqüenta, porque a Justiça Estadual deu liminar em favor

dos dois grileiros.

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Estive lá e tomei as providências que considerei devidas. No dia 15 de agosto

passado, criamos, na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, mais um grupo

temático para realizar estudos, orientações e estratégias dirigidos aos Procuradores

da Cidadania de todo o Brasil, para que vejam como abordamos e gerenciamos

esse tipo de questão que vem se repetindo amiúde e tem como base o conflito

fundiário.

Nesse sentido, peço a todos que participaram da Mesa — vou deixar meu

cartão com os senhores — que me enviem o material sobre Corumbiara, porque

teremos outra reunião com aquele grupo no dia 28 de setembro.

Temos levantado esses casos emblemáticos, que servem também para a

identificação de aspectos padronizados. O comportamento do Estado, por exemplo,

principal responsável por esses conflitos — como disse o Deputado, o problema da

terra no Brasil é político —, nos mostra que ele não quer resolvê-los. Sendo assim, a

organização e o estudo desses casos nos darão subsídios para, pelo menos,

procurar uma solução para essas situações que vêm ocorrendo com freqüência.

Deputado Orlando Fantazzini, eu me disponho a apelar para o Ministro da

Justiça no sentido de que sejam reabertas as discussões sobre como e por que o

julgamento em Corumbiara aconteceu daquela forma. De resto, é o que

pretendemos fazer também em relação a Eldorado de Carajás.

Quero dizer que, por despacho do Secretário de Estado de Direitos Humanos,

o relatório de Eldorado de Carajás também foi remetido ao CEJIL — Centro pela

Justiça e o Direito Internacional — e teve uma divulgação razoável. Também o

enviei a esta Comissão.

Obrigada.

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O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) – Agradecemos a

participação à Dra. Maria Eliane Menezes de Farias.

O SR. CELSO ARRUDA FRANÇA – Sr. Presidente, peço a palavra pela

ordem.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) – Só há um problema:

regimentalmente, só posso ceder a palavra aos Deputados, mas vou abrir uma

exceção.

O SR. CELSO ARRUDA FRANÇA – Sr. Presidente, com a anuência de

V.Exa. e dos Parlamentares presentes, gostaria de transmitir mensagem do Prof.

Paulo Sérgio Pinheiro, Secretário de Direitos Humanos, que tem especial interesse

no caso e instruiu um de seus assessores, o Sr. Guilherme de Almeida — que

estava presente no julgamento de Corumbiara —, a procurar o escritório do CEJIL

no Rio de Janeiro, na semana retrasada, para tratar desse e de outros assuntos.

Até então, o Governo brasileiro, por dever de ofício, havia insistido no

esgotamento dos recursos internos na Comissão Interamericana, porque, como

agentes do Estado, não podemos trabalhar sob a presunção de maracutaia. Havia

um julgamento marcado, que só ocorreu agora. Em março, pedimos que fosse

aguardado o resultado. Agora já o temos, e ele é claramente desfavorável às

vítimas.

Por isso, estamos buscando uma solução junto ao CEJIL, que talvez não seja

propriamente amistosa. Antes disso, a Comissão poderá elaborar relatório com base

no art. 50, mas esperamos, como em outros casos, dar assistência às vítimas dessa

grave violação e também buscar formas de efetivar a perseguição criminal dos

culpados.

Era o que gostaria de registrar, a pedido do Prof. Paulo Sérgio Pinheiro.

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O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) – Agradeço a V.Sa. o

registro.

Lamento muito que o Estado brasileiro espere a situação chegar a tal ponto,

para só depois tomar uma atitude. O caso de Corumbiara é um entre vários. Se o

Governo tivesse acompanhado as ações que estavam se desencadeando, talvez

tivesse impedido esse desfecho.

Teremos de nos empenhar no sentido de buscar reverter a condenação de

dois trabalhadores que estavam reivindicando seus direitos constitucionais, e, quem

sabe, de recomeçar a investigação. Digo “quem sabe”, porque, se o Ministro não

tiver vontade política para determiná-la, ela não ocorrerá. Nesse caso, teremos de

apelar para a Comissão Interamericana e para a Corte Interamericana de Direitos

Humanos.

Lamento que a posição do Governo seja assumida de forma tardia, sempre

na tentativa de amenizar a ação já consumada. Ele poderia ter adotado medidas

preventivas, para não deixar a situação chegar a esse ponto.

Algum convidado gostaria de fazer uso da palavra? (Pausa.)

Agradeço a presença e a colaboração aos companheiros de Corumbiara, aos

advogados, à professora, à Sra. Patrícia Ferreira e ao nosso Ouvidor Agrário

Nacional.

Registro a presença do Padre Léo, incansável lutador pela causa de

Corumbiara, que não permite que as pessoas de São Paulo esqueçam o que ali

ocorreu. É preciso que se mantenha vivo, na mente de todos, mais esse crime

cometido contra os trabalhadores, que continua impune — como regra, e não

exceção — no Estado brasileiro.

Nada mais havendo a tratar, dou por encerrada a presente reunião.

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