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Adão: A Aliança do Começo 97

Satanás no coração de alguns. Esses indivíduos representam a


sem ente da m ulher. O utros continuam em sua condição de
decaídos. Esses representam a sem ente de Satanás. O progresso
na história do program a de Deus para redim ir um povo para si
mesmo pode ser traçado ao longo da linha de inim izade entre
essas duas sementes.
Finalm ente, essa aliança com Adão antecipa a consum ação
dos propósitos de Deus na redenção. A exigência a Adão no
sentido de trabalhar ecoa o m andado cultural original da aliança
da criação com o seu encargo de trazer toda a terra à sua sujeição
para a glória de Deus.
O alvo últim o da redenção não será alcançado puram ente
por um a volta aos princípios prístinos do jardim . U m a nova
imagem do paraíso surge n a Escritura - a im agem de um a cidade
- um centro pleno de atividade e anim ação para os redimidos.
Esta consum ação gloriosa focaliza a redenção do hom em no
contexto das suas potencialidades totais. N a inteireza d e u m a
criatura feita à im agem de Deus, o hom em será trazido à
redenção pela visualização da plenitude das possibilidades ao seu
alcance.
Até esta altura, não vemos todas as coisas sujeitas ao hom em .
A criação em sua totalidade não tem liberado aos redim idos seu
pleno potencial.
Todavia, a esperança do futuro perm anece selada em certeza.
Porque agora vemos Jesus coroado de glória e honra. Sentado à
mão direita de Deus, Ele tem todas as coisas sujeitas a si m esm o
(Hb 2.8, 9). Da sua exaltada posição de poder, Ele finalm ente
Irará todas as coisas ao serviço dos hom ens que têm sido p o r Ele
redim idos para a glória de Deus.
7
Noé: A Aliança
da Preservação
N a ALIANÇA de Deus com Adão, aparece a prim eira referência às
duas linhas de desenvolvimento entre a hum anidade. U m a linha
pertence à sem ente de Satanás, a outra pertence à sem ente da
m ulher. Gênesis 4—11 esboça o desenvolvimento primitivo destas
duas linhas divergentes.1
A aliança com Noé aparece no contexto do desabrochar
destas duas linhas, e m anifesta a atitude de Deus para com ambas.
Destruição total e absoluta se acum ulará sobre a sem ente de
Satanás, enquanto livre e im erecida graça será prodigalizada
sobre a sem ente da m ulher.
Q uatro passagens apresentam , prim ariam ente, a natureza da
aliança estabelecida com Noé: Gênesis 6.17-22; 8.20-22; 9.1-7 e
9.8-17.2 Podem-se notar, à base destas passagens, as seguintes
características da aliança com Noé.

1. G erh ard von Rad, T eologia do V elho T estam ento (Old Testament TJwoIogy, New York,
1962), 1: 154 refere-se a G n 3-11 com o “a g ran d e ham artologia doJaw ista”. A inda que von
Rad te n h a visto c o rre ta m e n te a ênfase do desenvolvim ento da linha de Satã, deixou de
n o tar a m an u ten ção p aralela d a linha de “a m u lh e r”.
2. Os co m p ro m etim en to s d e Deus a N oé, pré-diluviano e pós-diluviano, ajustam-se ao
freq ü e n te m o d elo d a m inistração da aliança n a Escritura. N ão é necessário postular duas
alianças com N oé, u m a antes e o u tra depois do dilúvio. E ntendim entos prelim inares

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100 Cristo dos Pactos

1. A aliança com Noé enfatiza a estreita inter-relação das


alianças criativa e redentiva. M uito do pacto de Deus com Noé
implica um a renovação das estipulações da criação e até reflete
claram ente a linguagem da aliança original. A referência às “...
aves... gado... e aos répteis que rastejam ” de Gênesis 6.20 e 8.17
compara-se com a descrição sem elhante em Gênesis 1.24, 25, 30.
A ordem de Deus a Noé e à sua família no sentido de “frutificar-
se, m ultiplicar e encher a terra” (Gn 9.1, 7), reflete m andam ento
idêntico dado na criação (Gn 1.28).
Ainda mais, o m andado cultural de “subjugar” a terra (Gn
1.28) encontra estreito paralelo na aliança com Noé. O julga­
m ento de Deus contra o pecado trouxe desarm onia no papel do
governo do hom em sobre a criação. Com o conseqüência, o m edo
e o terror do hom em deviam cair sobre todo animal, ave e peixe
da criação (Gn 9.2). O governo do hom em será exercido em um
contexto anorm al de “terror” e “m edo”. Todavia, ele continua a
m anter sua posição criada como “subjugador”.
A repetição explícita desses m andados recebidos na criação no
contexto da aliança da redenção expande a visão dos horizontes da
redenção. O hom em redimido não deve interiorizar sua salvação de
m odo a pensar estreitamente em termos de um livramento de
“salvação da alma”. Ao contrário, a redenção envolve seu estilo de
vida total como criatura social e cultural. Ao invés de retrair-se
estreitamente a um a form a restrita de existência “espiritual”, o
hom em redimido deve avançar com um a perspectiva total de
m undo e vida.
Ao mesmo tem po, essas implicações mais amplas da aliança de
Deus com Noé devem ser vistas em um contexto distintivamente
redentivo, em vez de em um contexto mais generalizado.3 Deus
não se relaciona com a criação através de Noé em separado de seu
program a de redenção em andam ento. Mesmo as estipulações
concernentes às ordenanças das estações devem ser entendidas na
estrutura dos propósitos de Deus com respeito à redenção.
preced em os procedim entos d e inauguração formal. O com prom etim ento de Deus d e '
“preservar” Noé e sua fam ília antes do dilúvio relaciona-se integralm ente com o princípio
de “preseivação” q u e fo rm a o coração do com prom etim ento de aliança de Deus depois do
dilúvio. Cf. D. J. Mc.Carthy, “Berith e Aliança na H istória D euteronom ística, Suplem entos
ao V elho T estam ento” (Supplements to Vetus Testament um, 1972), p. 81. M cCarthy nota vários
exem plos na Escritura nos quais um pacto de aliança sela um relacionam ento já existente.
3. Cf. em particular com a discussão de L. D equeker, “N oé e Israel: A E terna Aliança
Divina com a H u m an id ad e” (Noah and Israel. TheEverlastmgDivme Covenant with Ilumanity),
em Questões D isputadas d o V elho T estam ento. M étodos e Teologia (Qiiestions Dispiitées
(ÍAncien Testament, Mêthodeet Théohgie, G em bloux, 1974), p. 119.
Noé: A Aliança da Preservaçao 101

Um dos mais primitivos escritos dos profetas de Israel


enfatiza, de m aneira vigorosa, a unidade dessas dim ensões mais
amplas da aliança com Noé com os propósitos redentivos de
Deus. Oséias expressa-se na linguagem da aliança de Deus com
Noé em questões relativas aos propósitos da divina redenção em
andam ento para Israel.4 Deus “fará um a aliança” com o universo
criado, incluindo os anim ais do campo, as aves do céu e os répteis
que rastejam na terra (Os 2.18; cf. com Gn 6.20; 8.17; 9.9, 10).
Em antecipação da atividade redentiva futura a Israel, Oséias
em prega as categorias distintivas do universo achadas na aliança
de Deus com N oé.5
Assim, Oséias a n tecip a a c o n tin u a d a significação dos
com prom etim entos da aliança mais am pla de Deus diretam ente
no contexto dos propósitos de Deus de redim ir um povo para si.
O sustento de todas as criaturas de Deus pela graça da aliança
com Noé relaciona-se im ediatam ente com o fato de Deus
restabelecer Israel num a relação frutífera com Ele mesmo.
A aliança com Noé u n e os propósitos de Deus n a criação com
seus propósitos n a redenção. Noé, sua sem ente, e toda a criação
se beneficiam desse relacionam ento gracioso.
2. U m a segunda característica distintiva da aliança com Noé
relaciona-se com a particularidade da graça redentiva de Deus.
Antes do dilúvio, a im piedade do hom em provocou a decisão de
Deus de destruí-lo da face da terra (Gn 6.5-7) .r>Em contraste com
esta determ inação solene, Deus expressou um a atitude graciosa
4. Cf. especificam ente Oséias 2.18-23 (H b 2.20-25).
5. E ssencialm ente, estas m esm as categorias descrevendo o universo acliani.se na
o rd en ação original d o m u n d o p o r D eus (cf. G n 1.20, 24-26, 28, 30). Assim, a aliança de
Deus com N oé enfatiza q u e a presente continuação da ordem da criação descansa na
palavra d e aliança falada a Noé.
6. O a u to r faz observações sobre a tradução de Gênesis 6.6 na Versão A utorizada
("A uthorized V ersion’’, dispensáveis à tradução para o português). A tradução de Gênesis
(3.6 n a V ersão A utorizada (A ulhorized V ersion do inglês, assim com o versões em
português) freq ü e n te m e n te causa indevida preocupação. Assim se traduz: “E o S en h o r se
a rre p e n d e u d e ter feito o h o m em .” O problem a desta tradução resulta da corrente
lim itação n o uso d o term o arrepender-se. Hoje, o term o é usado som ente p ara descrever
a m u d a n ç a d e pen sar com respeito a algo errado.
P or certo q u e D eus n ad a fez de m o ralm en te e rra d o ao criar o h o m em de q u e precisasse
“arrep en d er-se”, e o verbo h eb raico em pregado ( DjJJ ) n ão envolve tal conotação. Mas
Deus n ão resp o n d eu a p ro p riad a m e n te ao desenvolvim ento histórico da depravação
h um an a. “Moveu-se d e tristeza” p o rq u e fizera o h o m em sobre a terra à luz das
circunstâncias q u e surgiram . Esta asserção de m aneira algum a im plica que Deus havia
com etid o u m erro ao criar o hom em , ou que foi ap an h ad o de surpresa ante o
ap arecim en to d o pecado. A penas deixa evidente que Deus responde significativam ente às
circunstâncias q u e surgem n a história hum ana.
102 Cristo dos Pactos

para com Noé: “Mas Noé achou graça aos olhos do Senhor” (Gn
6.8). Do m eio de toda a massa da hum anidade depravada, Deus
dirigiu sua graça a íim h o m e m e sua família.
Pode ser que a graça de Deus im pediu Noé de afundar-se no
nível de depravação encontrado entre seus contem porâneos. Mas
nada indica que a posição favorecida de Noé surgiu de qualquer
outra coisa que não a graça do Senhor para com ele. O termo
“graça”, q u e descreve a atitude de Deus para com Noé,
ocasionalm ente se refere a algum a outra coisa que não uma
resposta de m isericórdia a um a situação de pecado (cf. Gn 39.4;
50.4; Nm 32.5; Pv 5.19; 31.30). Porém quando descreve a resposta
de Deus ao hom em decaído, “graça” descreve um a atitude
misericordiosa para com um pecador que não m erece. Nos dias
de Noé, toda form ação inicial dos pensam entos do coração do
hom em ("Q1? rOÜIlQ "K r*??!, Gn 6.5) era só m á continuamente.
Mas Noé achou graça aos olhos do Senhor.7
E m bora Gênesis 6.9 afirm e que Noé era “hom em justo”,
considerações estruturais características do livro de Gênesis
proíbem a conclusão de que Noé recebeu “graça” p o r causa de
um a justiça previam ente existente. A frase “estas são as gerações
de...” que inicia Gênesis 6.9 ocorre 10 vezes em Gênesis. Cada
vez, a frase indica o com eço de o u tra seção principal do livro.8
Esta frase separa decisivam ente a afirmação de que “Noé achou
graça” (Gn 6.8) da afirm ação de que Noé era um “justo” (Gn
6.9). A graça de Deus para com Noé não foi concedida p o r causa
da justiça do hom em , mas p o r causa da particularidade do
program a de redenção de Deus.
O princípio de particularidade tal como é visto no favor de
Deus para com Noé representa um a antiga manifestação de um
tem a que continua através da aliança da redenção. Como
aparece sublinhada pelo apóstolo Paulo, toda a experiência de

7. W. Zim m erli, cm “X ap içfetc.]” no D icionário T eológico do Novo Tcslamenlo


( Theologiail Dicfioraiy o f the, New Testament, ed. G erh ard Friedrich, Granel Rapids, 1974),
9:380, diz desse lexio: “Indubitavelm ente há im plicado aqui o m istério da livre decisão
divina pela qual N oé veio a ter essa atratividade diante de Deus.” Ele define ][! como uma
“aproxim ação afetuosa d e u m a pessoa a o u tra com o expressa n u m ato de assistência” (p.
337), n o tan d o q u e é “sem p re a livre graça de D eus” (p. 378) e m uitas vezes é unido com
nni
8. Gênesis 2.4; 6.9; 10.1; 11.10; 11.27; 25.12; 25.19; 36.1; 36.9; 37.2. Para um a discussão
da significação d a frase, ver W illiam H enry G reen, A U nidade do Livro de Gênesis ( The
Unity oj the Book ofGenesis, New York, 1895), pp. 9ss.; M artin II. W oudslra, “O Toledot do
Livro d e Gênesis e Sua Significação Histórico-Redentiva’’, Periódico T eológico Calvino, 5,
1970:184-191.
Noé: A Aliança da Preservação 103

salvação d e g raça m e d ia n te a fé vem com o d o m de D eus aos q u e


estão m o rto s em delitos e pecados (cf. E f 2.1, 2, 8-10).
3. U m terceiro p rin cíp io in e re n te ao estabelecim ento d a
alian ça co m N o é relaciona-se com a in ten çã o de D eus d e trata r
com as fam ílias em seus relacio n am en to s d e aliança. D eus
d estru irá to d a a terra. Mas disse a Noé:
“Contigo, porém , estabelecerei a m inha aliança; entrarás na
arca tu, e teus filhos, e a tua m ulher, e as m ulheres de teus
filhos.” (Gn 6.18)
A rep etição d este tem a n o tra ta m e n to d e D eus com a fam ília
d e N o é através d a narrativa in d ica a significação d o conceito p a ra
a alian ça com N o é .9 Deve-se n o ta r u m texto em particular:
“Disse o S enhor (Yahweh) a Noé: entra na arca, tu e toda a
tua casa; porque reconheço que tens sido ju sto diante de
mim no m eio desta geração.” (Gn 7.1)
A ju stiç a d o cab eça singular d a fam ília serve d e base p a ra a
e n tra d a d e to d o s os seus d escen d en tes n a arca. P o rq u e N oé era
ju sto , to d a fam ília e x p e rim e n to u o livram ento d o dilúvio.
4. E m q u a rto lugar, a aliança com N oé p o d e ser caracterizada
p rim aria m e n te com o a aliança d a preservação. Esta dim ensão d a
aliança com N o é torna-se evidente n a resposta d e D eus à oferta d e
gratidão d e N oé, depois d e baixadas as águas d o dilúvio:
“Levantou Noé um altar ao Senhor e, tom ando de animais
limpos e de aves limpas, ofereceu holocaustos sobre o altar.
E o S enhor aspirou o suave cheiro e disse consigo mesmo:
não tornarei a am aldiçoar a terra por causa do hom em ,
p orque é m au o desígnio ím pio do hom em desde a sua
m ocidade; nem tornarei a ferir todo vivente, como fiz.
E nquanto d u rar a terra, não deixará de haver sem enteira e
ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite.” (Gn 8.20-22)
P o r este d ecreto , D eus obriga-se a preservar a te rra n a sua
p re s e n te o rd e m universal até o te m p o d a consum ação.
E m alguns aspectos, a razão d a d a p a ra a afirm ação d e D eus
de n ã o m ais am ald iço ar a te rra parece ser u m non sequitur.
“P o rq u e é m a u o desígnio ím pio d o h o m e m desde a m o c id a d e ”,
D eus n ã o m ais am ald iço ará a terra. Poder-se-ia e sp e rar q u e D eus
d e te rm in a ria am ald iço ar a te rra re p e tid a m e n te p o r causa d a
p ersisten te d ep ravação do h o m em .

9. Cf. Gênesis 7.1, 7, 13, 23; 8.16, 18; 9.9, 12.


104 Cristo dos Pactos

E ntretanto, Deus entende que o problem a do pecado nunca


seria resolvido p o r m eio de julgam ento e maldição. Para que
devesse aparecer alívio apropriado da corrupção do pecado, a
terra deveria ser preservada, d u ra n te algum tem po, de
julgam ento tal com o o dilúvio.
Deus exerceu sua prerrogativa de ju sto julgam ento nos dias
de N oé não po rq u e Ele ignorasse a incapacidade do julgam ento
p ara curar o pecado. O Senhor conhecia precisam ente o estado
do coração do hom em antes do dilúvio, e certam ente entendia
as limitações do p o d e r do julg am en to para m udar o coração do
h om em (cf. G n 6.5-7).
E ntretanto, p ara prover um a apropriada dem onstração
histórica do destino últim o de um m u n d o sob o pecado, Deus
consum iu a terra com o dilúvio. Este evento cataclísmico torna-
se mais tarde o m odelo do julgam ento final da terra po r Deus e
a base p ara a refutação dos argum entos dos escarnecedores que
zom bariam da certeza de um últim o dia de acerto de conta (cf.
2 Pd 3.4-6).
O m odo divino de tratar com o hom em depois do dilúvio deve
ser visto com esta perspectiva global na m ente. O hom em é total­
m ente depravado, inclinado à autodestruição, e digno de julga­
m ento. Mas Deus em graça e misericórdia determ ina preservar a
vida do hom em e promove a multiplicação dos seus descendentes.
O co m p ro m etim en to d e D eus de preservar o h o m em depois
do dilúvio torna-se tam b ém evidente nas provisões de Gênesis 9.3-6:
“T udo o que se move, e vive, ser-vos-á para mantimento;
com o vos dei a erva verde, tudo vos dou agora. Carne,
porém , com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis.
C ertam ente requererei o vosso sangue, o sangue da vossa
vida; de todo anim al o requererei, com o tam bém da mão do
hom em , sim, da m ão do próxim o de cada um requererei a
vida do hom em . Se alguém derram ar o .sangue do homem,
pelo hom em se derram ará o seu; porque Deus fez o homem
segundo a sua im agem .” (Gn 9.3-6)
T oda vida criada c sagrada. Todavia, o valor mais alto deve-se
vincular à vida do hom em . Para m anter a vida, o hom em pode
com er de todos os animais da criação de Deus (v. 3). Todavia,
deve-se m ostrar reverência pelo princípio de vida da criatura,
simbolizado pelo seu sangue (v. 4).10
10. A subseq ü en te elaboração bíblica deste tópico indica que, p o rq u e o sangue foi um
sím bolo da “vida”, ele p erten ce a Deus. Este princípio acha representação vivida no
requisito d e q u e o sangue (que corre) de anim ais n ão deve ser com ido, mas deve ser
a p resen tad o sobre o altar d e Deus (Lv 17. ] 0-14).
Noé: A Aliança da Preservação 105

Mais particularm ente, o hom em ou o anim al que com eter


hom icídio sujeita-se a sanções especiais (w. 5s.). Deus req u er que
a vida do hom icida seja tirada pela m ão do hom em .
A preservação da h u m an id a d e n ão é explicitam ente
estabelecida com o a razão dessa exigência. A razão vai mais
fundo. E p orque a im agem do próprio Deus está estam pada no
hom em que o assassino deve m orrer.11
Todavia, a preservação da raça desem penha um papel m aior
nessa legislação. O versículo que se segue im ediatam ente reitera
o m andam ento anterior a Noé e sua família no sentido de “ser
frutífero, e multiplicar-se, e encher a terra” (v.7; cf. Gn 9.1). Para
que este m andato divino de multiplicação seja efetuado, a
hum anidade deve ser preservada das forças assassinas do hom em
e dos animais, que estão presentes de m aneira tão óbvia em um
m undo depravado. Tirar a vida do assassino acentua a santidade
da rid a h u m an a e preserva a raça para a sua futura multiplicação.
Antes, Deus havia reservado para si somente o direito de tratar
com o homicida. No caso de Caim, Deus profere julgam ento
contra quem ousasse tocá-lo (Gn 4.15). Mas agora, deliberada­
m ente, Deus coloca a responsabilidade da execução do malfeitor
sobre o próprio hom em . Se o caráter degenerado do hom em deve
ser refreado da autodestruição total, devem-se adotar freios
adequados ao avanço da iniqüidade. Na sabedoria de Deus, a
execução do hom icida provê um freio superior para conter os
excessos da iniqüidade.
A inda que as palavras ditas a Noé não apresentem um a
teologia elaboradam ente desenvolvida do papel do estado, certa­
m ente o conceito de sem ente acha-se presente.12 Com efeito,
Deus institui o p o d e r tem poral do estado com o seu instrum ento
na insistente necessidade de controlar o mal. Esse p o d er da
espada, agora posto pela prim eira vez nas mãos dos hom ens,

11. P ara u m a discussão das duas m aneiras prim árias pelas quais essas frases pod em ser
interp retad as, ver John M m ray, Princípios de C o n d u ta (Prindples ofComlud, G rand Rapids,
1957), pp. 11 lss. M eredilh Kline, “G enesis”, Novo C om entário Revisado da Bíblia (Neto
Bibk Commentary Reviwcl, G ran d Rapids, 1970), p. 90, funde am bos os entendim entos
possíveis d a frase: “Isto (i.e., o fato de o h o m em ter sido feito à im agem de Deus) podia
explicar tan to a e n o rm id ad e do assassínio qu an to a dignidade do h o m em que justificou
atribuir-lhe tão grave responsabilidade judicial.”
12. João Calvino, em C om entários sobre o P rim eiro Livro de Moisés C ham ado Gênesis
( Commentary on the First Book ofMoses Called Genesis, G rand Rapids, 1948), J: 295, ju lg a que
o versículo an tecip a o desenvolvim ento posterior do p o d er do estado, mas tam bém que o
escopo d a declaração inclui mais ainda. P o r u m a variedade de ord en am en to s providen­
ciais, D eus velará p ara q u e aquele que d erra m a sangue não íique im pune.
106 Cristo dos Pactos

intim ida o m alfeitor potencial e restringe a atividade consciente


da iniqüidade.13
Os com entadores tendem geralm ente a modificar a referên­
cia à p e n a capital na aliança com Noé. O u eles negam a presença
de tal referência, ou se opõem à aplicação do princípio às estru­
turas sociais correntes.
U m a série d e p erg u n ta s relativas ao assunto p o d e aju d ar a
esclarecer o p ro b lem a:
Primeira pergunta: A aliança de Deus com Noé sanciona o tirar
a vida do hom icida em qualquer circunstância?
Esta pergunta pode ser feita sem entrar im ediatam ente nos
problem as particulares envolvidos na determ inação da relevância
corrente desta estipulação para o crente da nova aliança. A
aliança com Noé oferece em si m esm a sanção divina à pena
capital?
Gênesis 9.5,6 pode ser interpretado como afirm ando simples­
m ente um fato que ocorrerá. Se alguém derram a sangue, seu
sangue será derram ado. Do outro lado, o versículo pode ser
entendido com o oferecendo sanção divina para se tirar a vida do
assassino.
A prim eira consideração no sentido de decidir-se entre estes
pontos de vista opcionais relaciona-se com a significação precisa
da frase que pode ser literalm ente traduzida assim: “da mão (do
hom em ou animal) eu a requererei.” A frase pode significar: “Pela
instrum entalidade (do hom em ) eu exigirei conta.” Neste caso, o
hom em seria o instrum ento pelo qual Deus levará o assassino à
prestação de conta. Assim ficaria estabelecido o princípio da pena
capital.
E ntretanto, esta interpretação desta frase particular esbarra
em dificuldade imediata. Porque o versículo diz que “pela m ão
de anim ais”, tan to q u an to “pela m ão do ho m em ”, Deus
requereria a vida. Seria m uito difícil im aginar um animal
selvagem servindo de instrum ento do julgam ento de Deus no
m esm o sentido em que o hom em funcionaria nesta função.

13. ”Se Deus, p o r causa cia inala pecam inosidade do hom em , não mais trouxesse um
julgam ento e x lerm in ad o r sobre a criação terrena, seria necessário que po r m andados e
auto rid ad es Ele erguesse u m a barreira contra a suprem acia do mal, e assim lançasse o
fu n d am en to p ara o desenvolvim ento civil bem orden ad o da hum anidade, de acordo com
as palavras d e b ên ção q u e são repetidas n o versículo 7, m ostrando a intenção e o objetivo
desse novo p erío d o histórico.” C. F. Keil e F. Delitzsch, C om entário Bíblico do Velho
T estam ento: O P en tateu co (Biblical Conunmtcny on the Okl Testament.: The Pcn.tateu.ch, G rand
Rapids, 1949-50, 1: 153.)
Noé: A Aliança da Preservaçao 107

A interpretação mais provável desta frase “pela m ão de


(hom em ou anim al) eu exigirei conta” é: “Do (hom em ou
animal) eu exigirei conta.” Isto é, Deus exigiria justiça quer do
hom em , quer do anim al que mata.
Esta interpretação da frase “da m ão de (hom em ou animal)
eu req u ererei” é apoiada em outro lugar n a Escritura. O profeta
Ezequiel afirm a que Deus “req u e re rá ” da m ão do atalaia o
sangue de quem não foi avisado, usando fraseologia idêntica à
en contrada em Gênesis 9.5, 6 (Ez 33.6; 34.10).
Gênesis 9.5 em si m esm o não pareceria decidir a questão
sobre se D eus ten cio n a ou não que o ho m em seja seu
instrum ento na execução da justiça contra o assassino. Na
verdade, Deus req u ererá a vida do assassino. Mas, irá requerê-la
especificam ente da m ão de outro hom em ?
Gênesis 9.6 responde a esta pergunta afirmativamente. Tanto
o paralelism o n a estrutura do versículo quanto a indicação do
instrum ento p ara executar ajustiça apontam nesta direção.
O paralelism o de fraseologia tal com o se encontra no texto
original da Escritura pode ser representado com o segue, em
tradução para o português:
a Aquele que derram a
b o saneue
o
de
c hom em ,
c pelo hom em
b seu sangue
a será derram ado (G n9.6).
A estrutura do versículo sugere em si m esm a a lex talionis, a
lei de olho p o r olho e dente p o r dente. O hom em que derram a
sangue de hom em terá seu sangue derram ado pelo hom em .
Mais especificam ente, o hom em é indicado com o o agente pelo
qual o sangue do assassino será derram ado. Q uando este pensa­
m ento é com binado com a afirmação, no versículo 5, de que
Deus “exigirá conta” do assassino, torna-se claro que a intenção
da passagem é designar o hom em com o agente de Deus na
execução da justiça contra o assassino.
Esta conclusão é apoiada p o r subseqüente legislação escritu-
rística. Êxodo 21.28 indica que o animal que tirar a vida de um
hom em deve ter sua vida tirada pelo hom em . Em acréscimo, Israel
é explicitamente incum bido da responsabilidade de executar a
pena capital contra o assassino (Ex 21.12; Nm 35.16-21).
108 Cristo dos Pactos

Em conclusão, o texto indica que o hom em tem responsa­


bilidade dada por Deus, com respeito ao assassino. A exigência é
inequívoca. A pessoa que tira a vida de um hom em deve ter a vida
tirada pelo hom em .14
Segunda pergunta: Pode-se considerar a aliança com Noé
com o a prim eira revelação desta exigência?
Aqueles que laboram a partir da estrutura da reconstrução
crítica do texto de Gênesis teriam genuína dificuldade com esta
pergunta. Grande parte da narrativa concernente a Noé é
atribuída pelos críticos eruditos à escola “sacerdotal” e datada
dentro do século sexto a.C., ou mais tarde. Se fosse este o caso, o
m aterial relativo à p e n a capital na aliança com Noé m uito
possivelmente seguir-se-ia, cronologicam ente, às estipulações
relativas à pena capital encontrada na aliança mosaica.
Entretanto, a proem inência, em Oséias, de material forte­
m ente reminiscente da aliança de Deus com Noé levanta sérias
dúvidas concernentes ao caráter “sacerdotal” do sexto século, do
material em discussão. Oséias, escrevendo no oitavo século, ecoa a
linguagem de um relacionam ento de aliança estabelecido antes
dos seus próprios dias.15 Na base de um relacionamento de aliança
precedente ao seu próprio tem po, Oséias antecipa a situação
futura de Israel. Nesta luz, toma-se dificilmente apropriado sugerir
que as estipulações distintivas da aliança com Noé não houvessem
aparecido até cerca de 200 anos depois de Oséias.
Em um nível ainda mais básico, é essencial aceitar as Escritu­
ras como relatando fielm ente o caráter da aliança de Deus com
Noé. Desta perspectiva, a aliança com Noé deve ser considerada
como a prim eira revelação da sanção da p en a capital. O conceito
não surgiu na legislação dada para Israel nos dias de Moisés, que
foi subseqüentem ente projetada em passado legendário. Em vez
disto, originou-se no ponto do novo com eço da hum anidade
com a família de Noé.
Terceira pergunta: E esta injunção concernente à pena capital
limitada a um sentido tem poral ou étnico, ou é universalmente'
obrigatória em suas exigências?
As estipulações concernentes à execução do homicida não
têm, obviamente, limitações étnicas. A aliança de Noé não fala de

14. V on Rad, op. cit., p. 129, n ão hesita em aíirm ar que estes versículos indicam q u e o
hom em é o ex ecu to r cia p e n a de m orte. Sugere qu e esta responsabilidade com unica o
“tom legal forte que a co m p an h a a graciosa dispensação com N oé”.
15. V er acima, p. 111,
Noé: A Aliança da Preservaçao 109

m aneira estreita a um a raça. O prim eiro pai da nova hum ani­


dade, juntam ente com toda a família, constituem a parte
hum ana dessa aliança. Deus faz a sua aliança para sancionar a
vida com “toda criatura vivente” (Gn 9.9, 10).
De m aneira interessante, a legislação etnicam ente universal
concernente à santidade da vida reaparece num m om ento
crucial posterior, n a história da redenção. No tem po da
confirm ação apostólica da extensão do evangelho aos gentios,
tanto quanto aos judeus, reaparece a lei concernente a não
com er sangue. A decisão do concilio de Jerusalém libera os
gentios das leis ritualistas de Moisés. Mas eles devem abster-se “...
do que é sufocado e do sangue” (At 15.20, 29).
Esta passagem evidentem ente alude à aliança com N oé.16 A
entrada do evangelho n a corrente mais am pla da hum anidade
passa mais um a vez através das estipulações cia aliança com Noé.
N ão é necessário reter até o presente a letra das leis rituais da
aliança com N oé para apreciar sua significação com o legislação
de transição. A fim de evitar tropeços desnecessários entre ju deus
convertidos a Cristo, esta legislação mais am pla do Velho
Testam ento, tirada da aliança de Deus com Noé, foi reativada po r
algum tem po, e m b o ra mais tard e a evidência do Novo
T estam ento aponte no sentido da sua revogação rem ota (Rm
14.14; 1 Co 10.25s.).
A questão de um a limitação tem poral da legislação específica
concernente à p e n a capital é ponto mais polêmico. O problem a
centra-se, prim ariam ente, na relação da legislação concernente a
não com er sangue com a exigência de que a vida do hom icida
lhe deve ser tirada. Se um aspecto da legislação é tem poralm ente
lim itado, não podia isto indicar limitação tem poral para a
totalidade d a legislação relacionada a Noé? R espondendo a esta
questão, podem -se n o tar dois pontos:
Em prim eiro lugar, a possível presença de alguns elem entos
tem poralm ente limitados em um a aliança divina não torna auto­
m aticam ente tem poralizado todo elem ento da aliança.17 A
16. Cf. Claus W eslerm ann (Genesis Biblischer Kommentar Alies Testament, N eukirchen-
Vluyn, 1974) p. 628; F. F. Bm ce, C om entário do Livro de Atos: Novo C om entário
Intern acio n al d o Novo T estam ento (Commmtary on the Booh oj the Acts: New Intematumal
Commmtary on the Neto Testament, Granel Rapids, 1954), p. 312. Para u m a discussão da
tradição rabínica c o n cern en te ãs sete leis da aliança com Noé, e a sua aplicação ao m un d o
gentio, ver E nciclopédia Judaica (EncyclopaediaJudaica, New York, 1971, 12: cols. 1189s.
17. D erek K idner, em Gênesis. In tro d u ção e C om entário. C om entários do V elho
T estam en to T yndale ( Genesis. A n Introd.ur.tion and Commmtary. The Tyndale Old. Testament
Comment.ari.es. Chicago, 1967), p. 101, conclui q u e o caráter tem p o ralm en te lim itado da
110 Cristo dos Pactos

aliança com Abraão tinha seu rito de circuncisão. A aliança com


Moisés tinha seu sistema sacrificial. Todavia, a essência de ambos
os pactos continua a desem penhar papel vital na vida do povo de
Deus.
Em segundo lugar, a santidade da vida do hom em encontra
reforço p e rm a n en te através de reconhecim ento do p o d er
atribuído ao estado na Escritura (cf. Rm 13.1ss; 1 Pe 2.13, 14). As
autoridades civis continuam a trazer espada em nome de Deus.
De qualquer m odo, o caráter preservativo da aliança com Noé
desem penha papel central no progresso da história redentiva. O
hom em hoje ainda vive sob as estipulações inauguradas nessa
aliança. A regularidade das estações deriva-se diretam ente da
determ inação de Deus de preservar a terra até que se possa
cum prir a libertação do pecado. A instituição do estado indica o
propósito de Deus de restringir o mal inerente na hum anidade.
5. Em quinto lugar, a aliança com Noé possui um aspecto
distintivamente universalista. Com relação a isto, deve-se notar a
ênfase particular nas dimensões cósmicas da aliança com Noé.
Todo o universo criado, incluindo a totalidade da hum anidade,
beneficia-se dessa aliança. Não só Noé e a sua semente, mas “todos
os seres viventes” subsistem sob o sinal do arco-íris (cf. Gn 9.10).
Esta inclusão da totalidade do universo na aliança redentiva
de Deus acha vivido reconhecim ento n a expressão de Paulo
concernente à expectação final do redim ido:
P orque sabem os que toda a criação gem e e suporta
angústias até agora. E não som ente ela, mas tam bém nós que
temos as prim ícias do Espírito, igualm ente gememos em
nosso íntim o, aguardando a adoção de filhos, a redenção do
nosso corpo (Rm 8.22s).
Não som ente o hom em , mas o universo inteiro experim en­
tará a libertação final da maldição.
Este caráter universal da aliança com Noé provê o funda­
m ento para a proclam ação universal do evangelho no século
presente. O com prom etim ento de Deus de m anter fielmente a
ordem da criação revela a sua paciência para com toda a hum a­
nidade. Ele deseja to rn a r conhecido o testem unho da sua
bondade através do universo.

legislação relativa a co m e r certa espécie d e carne tem o efeito d e lim itar tem poralm enle a
legislação relativa à p e n a capital. Ele com enta: “... não se p o d e sim plesm ente transferir o
versículo 6 p ara o livro d e estatu to a m enos q u e se esteja prep arad o p ara transferir com ele
os versículos 4 e 5.”
Noé: A Aliança da Preservação 111

Em um p o n to subseqüente n a história da redenção, o


salmista reflete sobre a regularidade do dia e da noite com o
testem unho da universalidade do program a redentivo de Deus.
U m dia discursa a outro dia e um a noite revela conhecim ento a
outra noite. A “voz” dessas ordenanças reguladas prossegue
através da terra toda e suas palavras alcançam os confins do
m undo (SI 19.2-4). O n d e se acha o hom em o testem unho das
ordenanças de Deus, tais com o determ inadas pela aliança com
Noé, testifica da glória do Criador.
O com prom etim ento de Deus no sentido de m anter um teste­
m unho universal através da ordem da criação desem penha mais
tarde papel significativo no m andado missionário do apóstolo
Paulo. Ao estabelecer que o evangelho deve ser proclam ado entre
todas as nações, ele apela para o testem unho universal provido po r
Deus através da criação (cf. Rm 10.18 em sua referência ao SI 19.4).
O escopo universal do testem unho da criação provê o fundam ento
para a proclam ação universal do evangelho. O Deus que comis­
sionou o testem unho de si mesmo até os confins da terra através
da criação tam bém mostrou-se ser “Senhor de todos, rico para com
todos os que o invocam” (Rm 10.12).
Esse testem unho universal da ordem da criação enraíza-se
profundam ente n a palavra da aliança com Noé. Pelas provisões
da aliança com N oé Deus com prom eteu-se a um a jo rn a d a de
testem unho universal. O testem unho de graça da criação para
com o hom em pecador provê ainda a plataform a da qual será
lançada a proclam ação universal do evangelho.18

18. 2 Pe 3.3-10 p arece tam bém estabelecer sua base p ara a proclam ação universal do
evangelho n a aliança co m N oé. Os pecadores p o d em escarnecer da palavra da profecia da
nova aliança co n cern en te ao ju lg am en to final (w. 3, 4). Mas o dilúvio de N oé indica a
certeza das últim as in tenções d e Deus (w. 5, 6). Assim com o “pela palavra de D eus”
( t ô j t o u O e o u Âóyuj) o p rim eiro m u n d o veio a existir, assim tam bém “pela m esm a palavra”
( t w auTÚj Àáyiü) o universo p resen te está reservado p ara o ju lg am en to de fogo (w. 5, 7).
A referên cia à “m esm a palavra” indica, de m aneira am pla, a palavra de D eus qu e se
m an ifesto u tão p o d e ro sa m e n te n a criação. Mas, p a re c e tam b ém referir-se m ais
especificam ente à palavra d a aliança falada a N oé. N a base dessa palavra pós-diluviana, a
terra co n tin u a a ser m an tid a até o presente.
A p aciência d e Deus, q u e n ã o deseja qu e n in g u ém se perca (v. 9), manifesta-se no
contexto desta palavra d a aliança q u e D eus m an terá toda a criação até o ju lg am en to de
fogo (w. 7, 10). N o con tex to cósm ico destes versículos qu e descrevem os propósitos de
Deus com respeito a to d a a criação (w. 6, 7), o “desejo” de D eus de qu e “todos” se
a rre p en d am deve ser in terp retad o universalm ente. O fato de q u e Deus p o d e “desejar” o
que ex plicitam ente n ão “d ec re to u ” deve ser tom ado sim plesm ente com o u m a dessas áreas
dos propósitos d e D eus q u e n ão p o d em ser co m preendidos pela m en te finita. O contexto
não favoreceria a lim itação desse desejo aos “eleitos”, a despeito da possibilidade de q u e “a
paciência p a ra convoscd’ pudesse se r in terp retad o com o significando paciência p ara com os
112 Cristo dos Pactos

6. Em sexto lugar, o selo da aliança com Noé enfatiza o


caráter gracioso dessa aliança. N um contexto de julgam ento
am eaçador simbolizado pelas carregadas nuvens chuvosas, Deus
designa a beleza abrangente do arco-íris para representar sua
graça em julgam ento. T endo destruído o m undo um a vez, assim
pintando a im utabilidade de seus justos decretos, o Senhor Deus
agora une as nuvens com o seu arco-íris para manifestar seu
propósito de graça livre e im erecida.19
N ão é p o r acidente que o trono do justo Juiz dos céus e da
terra é descrito com o tendo “ao red o r do trono um arco-íris
sem elhante no aspecto a esm eralda” (Ap 4.3). Q uão grande será
o gozo do verdadeiro participante da graça da aliança de Deus
em Cristo que o sinal e o selo dos bons propósitos de Deus se
vejam como um arco no lugar da sua disposição final.
Em conclusão, deve-se fazer algum a tentativa no sentido de
avaliar a definição do term o “aliança”, previamente sugerido, tal
como ele se relaciona à aliança com Noé. Pode a aliança com Noé
ser descrita como “pacto de sangue soberanam ente ministrado”?
Em um sentido, a aliança com Noé oferece o m aior ponto de
tensão para a sugerida definição do term o “aliança”. A aliança
com Noé é um “pacto”; é um pacto “soberanam ente ministrado”.
Mas, em que sentido a aliança com N oé pode ser descrita como
um “pacto de sangue?” Com o este “p e n h o r de m orte” está
envolvido na aliança com Noé?
Dois fatores na aliança com N oé indicam a presença deste
aspecto da idéia de aliança. Prim eiro, notem-se as alternativas
envolvidas no p eríodo que antecipa a ratificação formal da
aliança com Noé. Deus destruirá o hom em da face da terra; mas
Noé achará graça aos olhos do Senhor. N a verdade, vida e morte
são motivos que alicerçam a época de Noé, tal como vista na
crentes q u e recebiam a caria d e Pedro. O p o n to capital do texto não é que Deus é paciente
com os eleitos, não desejando q u e n e n h u m eleito se perca. A d em o ra presente do
ju lg am en to do m u n d o indica sua paciência para com toda a hum an id ad e, a despeito do
fato d e qu e, finalm ente, n e m todos serão salvos. Cf. J o h n M urray e N. B. Slonehouse, em
O O ferecim ento Livre d o Evangelho {The Free Offèring of the Gospel, Phillipsburg, n.d.) pp.
21-26.
19. V on Rad, op. cit., p. 130, n o ta q u e a palavra para “arco-íris”, no texto, é a palavra
no rm alm en te usada p ara “arco de b atalha”. Sugere que o arco-íris colorido indica que
Deus pôs de lado seu arco d e batalha depois d o dilúvio. Cf. M eredith G. Kline, em
“Gênesis”, Novo C o m entário Bíblico Revisado {"Genesis”, New fíible Comrnmtary Revised,
G ran d Rapids, 1970), p. 90. “M eu arco irad u z qeshet, cujo sentido usual é a arm a. Assim, o
reco rren te arco-íris im posto sobre a tem pestade que se ab ran d a pelo sol que novamente
brilha é o arco de batalha d e Deus posto de lado, sím bolo d a graça d eten d o as flechas
cintilantes d a ira.”
Noé: A Aliança da Preservação 113

representação dram ática da atitude de Deus para com a sem ente


da m ulher e a sem ente de Satanás. Em segundo lugar, note-se a
solene estipulação c o n c ern e n te à punição capital: “quem
derram ar o sangue do hom em , pelo hom em se derram ará o seu”
(Gn 9.6). Indubitavelm ente, a vida e a m orte estão envolvidas
nestas palavras. A m orte virá sobre o infrator da aliança que tirar
a vida do hom em , ao passo que a preservação será o resultado da
observância própria dessas estipulações.20
Para resum ir, a aliança com N oé provê a estrutura histórica
em que o princípio E m anuel pode receber sua realização
com pleta. Deus veio em julgam ento; mas tam bém providenciou
um contexto de preservação no qual a graça da redenção pode
operar. Da aliança com N oé torna-se m uito claro que o fato de
Deus estar “conosco” envolve não som ente o derram am ento da
sua graça sobre o seu povo; envolve tam bém o derram am ento da
sua própria ira sobre a sem ente de Satanás.

20. Cf. D elb eri R. Hillers, em Aliança: a H istória de u m a Idéia Bíblica ( Covmant: The
Ilistory o fa Biblical Idea, Ballim ore, 1969), p. 102, que sugere a presença de autom aldição
11(>falo d e q u e o “arco” está ap o n tad o p ara Deus. Cita o poem a medieval:
M eu arco en tre ti e m im
Estará n o firm am ento.

P ara seu lado volta-se a corda,


E co n tra m im curva-se o arco,
Q u e tal convulsão jamais aconteça
E o q u e p ro m eto a ti.
A inda q u e seja in trigante a sugestão de autom aldição divina, o contexto não provê apoio
.tdcquado p ara a idéia. E difícil ver corno tais idéias se harm onizariam com subseqüentes
descrições d o tro n o d e D eus ostentando graciosam ente um arco na abóbada (cf. Ap 4.3).
8
Abraão:
A Aliança da Promessa
O a specto soberano do relacionam ento de Deus com Abraão
tornou-se m uito claro po r ocasião da cham ada inicial do
patriarca. Deus n ão sugeriu suavem ente a Abraão que, se ele
deixasse a sua terra, o abençoaria. Ao invés disto, a palavra de
Deus lhe veio em term os de um a ordem solene: “Sai da tua terra
c da tua p a re n tela ” (Gn 12.1).
Este m esm o tom apareceu na instituição da aliança selada
com a circuncisão. O Senhor declarou a Abraão: “Eu sou o Deus
Todo-poderoso; an d a n a m inha presença e sê perfeito. Farei um a
aliança entre m im e ti...”(Gn 17.1, 2). Em lugar algum dessas
narrativas em erge qualquer sugestão de “acordo” ou “contrato”.
O S enhor Deus dita soberanam ente os term os de sua aliança
com Abraão.
A passagem mais significativa da narrativa patriarcal que trata
especificam ente d o conceito da aliança é, de longe, a intrigante
descrição do estabelecim ento form al da aliança abraâmica, que
se en contra em Gênesis 15. Esta narrativa indica claram ente a
essência da aliança como sendo um “pacto de sangue
soberanam ente m inistrado”.
Essa m inistração particular do com prom etim ento de Deus de
efetuar a redenção pode, apropriadam ente, ser designada “a
aliança d a p ro m e ssa ”. Deus confirm a so b eran am en te as
promessas da aliança com Abraão.

115
116 Cristo dos Pactos

A INSTITUIÇÃO FORMAL
DA ALIANÇA ABRAÂMICA
U m a perg u n ta que rasga o coração ocasiona o estabe­
lecim ento form al da aliança de Deus com Abraão. O patriarca
interroga com preocupação: “Senhor Deus, como saberei que hei
de h e rd a r (a terra prom etida?)” (Gn 15.8). Abraão crê na palavra
de Deus. Mas necessita de um a reforçada certeza.
Deus havia assegurado promessas magnânimas a Abraão. Mas,
agora, o patriarca tomara-se idoso. Sua m ulher perm anecia sem
filho. A cultura dos dias de Abraão fazia sensatamente provisão no
evento de pais estéreis.1 Era possível “adotar” na família um servo
do lar. Este “filho” adotivo tomava-se o herdeiro legal.
Seria este procedim ento legal de adoção a m aneira pela qual
Abraão, sem filho próprio, devia in terpretar a palavra de
prom essa de Deus? Seria inevitável que Eliézer de Damasco se
tornasse seu herdeiro? (w. 2.3).
O Senhor declara, inequivocamente, suas intenções sobe­
ranas. N inguém senão um filho saído dos próprios lombos de
Abraão possuiria as promessas de Abraão (v. 4).
Mas, afinal, que garantia podia ser oferecida? Havia algum
m eio pelo qual a palavra da promessa podia ser confirmada?
O S enhor graciosam ente garante ao patriarca m ediante a
ratificação form al de um pacto-aliança. O rd en a a Abraão que
apresente diante dele determ inados animais (v. 9).
O p atriarca não necessitava de instruções posteriores.
Conhecia bem a m aneira de proceder. De acordo com os
costumes dos seus dias, Abraão dividiu em duas metades os
animais, e dispôs os pedaços correspondentes uns defronte dos
outros. M atou as aves, mas não as dividiu.2
A esta altura, a narrativa indica que a cam e simbólica da
m atança atraía as aves de rapina que tentavam devorar a came que
Abraão havia preparado. O patriarca reconhece a necessidade de
intervir e enxotar as criaturas aladas com seu voraz apetite, (v. 11).
Com o Abraão passa para um estado de visão, Deus lhe
com unica o curso cios acontecimentos que devem preceder o

1. Cf. E. A. Speiscr, Gênesis ( Genesis, Garclen City, 1964), p. 112; Derek Kiclner, Gênesis
(Genesis, Chicago, 1967), p. 123.
2. Este tratam en to distintivo das aves acha codificação subseqüente na legislação bíblica
(cf. Lv 1.14-17). N ão é que a legislação mosaica coloriu a narrativa admissivelmcnle antiga
de Gênesis 15; ao invés disto, a mais antiga tradição-penhor de m orte da inauguração da
aliança sob A braão fo rn ec eu o m odelo para o sacrifício de animais sob Moisés.
Abraao: A Aliança da Promessa 117

p len o cu m p rim en to das prom essas. A braão não se devia


desesperar. Ele não deveria ficar inquieto p o r causa da dem ora
do cum prim ento. Deus oferece um a vista panorâm ica do curso
da história que eventualm ente conduzirá à posse da terra pela
sem ente de Abraão. Ao ser-lhe concedida esta perspectiva, o
patriarca sente-se encorajado a esperar pacientem ente.
D urante 400 anos os descendentes de Abraão sofreriam
opressão em um a terra estranha. Depois deste período, eles
sairão com grandes posses. Finalm ente, entrarão na terra que
lhes tinha sido p rom etida (w. 13, 14).
Por que deveria ser suportado tão extenso período de priva­
ção? Por que não poderia Abraão m esm o possuir im ediatam ente
a terra?
Som ente a graça de Deus para com os pecadores provê
resposta adequada a tais perguntas. A graça d a paciência de Deus
expressada para com os habitantes com uns da terra explica a
dem ora. Porque “a m edida da iniqüidade dos am orreus ainda
não está cheia” (v. 16), os descendentes de Abraão deviam
suportar 400 anos de exílio longe da terra da promessa.
Na conclusão dessas palavras de profecia, Abraão testem unhou
um m ui surpreendente fenôm eno. Um “fogaréu fum egante” e
um a “tocha de fogo” passaram entre aqueles pedaços de carne que
haviam sido arranjados antes (v. 17).
Q ual é a significação desta extraordinária cerimônia? Por que
um a m anifestação visível da divindade “passa entre os pedaços?”
A afirmação da narrativa que se segue im ediatam ente supre a
necessária explicação: “N aquele m esm o dia fez o Senhor aliança
com A braão” (v. 18). A divisão dos animais un id a com a passagem
entre os pedaços resulta no “fazer” (literalm ente “cortar”) de
um a aliança.
M ediante a divisão dos animais e o passar entre os pedaços,
os participantes de um a aliança com prom etem -se para a vida e a
m orte. Estes atos estabeleciam um ju ra m en to de autom aldição.
Se quebrarem o com prom etim ento envolvido na aliança, estarão
ped in d o que seus próprios corpos sejam cortados em pedaços
com o os animais foram divididos cerim onialm ente.
Paralelos extrabíblicos confirmaram a significação desse ato de
autom aldição envolvido na cerim ônia de firmar aliança. Vários
exemplos de m atança simbólica de um animal em processo de
ürm ar aliança têm sido recentem ente descobertos. Um texto sírio,
datado dentro dos séculos dezoito/dezessete a.C., registra o
118 Cristo dos Pactos

acordo em que certo Abba-An doou um a cidade a Yarimlim;


“Abba-An está ligado a Yarimlim po r um juram ento e cortou a
garganta de um a ovelha.” Outros textos de Mari, datados do século
dezoito a.C. referem-se à m orte de um asno na conclusão de um a
aliança. Mesmo a expressão “m atar um asno” parece ser um a
expressão técnica para firm ar um a aliança.3
Pelo p e n h o r inerente à m orte no processo relativo ao
estabelecim ento de aliança, um “pacto em sangue” é firmado. As
partes da aliança com prom etem -se pela vida e pela m orte no
relacionam ento da aliança.
No caso da aliança abraâmica, Deus o Criador liga-se ao ho­
m em , a criatura, m ediante solene juram ento de sangue. O Todo-
Poderoso decide com prom eter-se a cum prir as promessas ditas a
Abraão. Em virtude deste com prom etim ento divino, as dúvidas
de Abraão são eliminadas. Deus prom eteu solenem ente e selou
esta prom essa com um ju ra m e n to de autom aldição. Está
assegurado o cum prim ento da palavra divina.

ALUSÕES POSTERIORES À CERIMÔNIA


DE INSTITUIÇÃO DA ALIANÇA ABRAÂMICA
O com prom etim ento de Deus para com Abraão, tal com o foi
vivificado na cerim ônia do estabelecim ento da aliança, continua
a avolumar-se em significação através da história da redenção. O
p e n h o r de m orte do Senhor estabelecido com Abraão lança seu
m olde distintivo em toda a subseqüente história israelita.
U m a referência a essa cerim ônia de estabelecim ento da
aliança, logo antes de o Reino de Ju d á ser levado para o cativeiro,
indica que a significação dessa cerim ônia de firm ar a aliança
continuou, sem ser dim inuída, através da história. D ecorreram
mil e quatrocentos anos. Todavia, a cerim ônia inaugural da
aliança te ste m u n h a d a p o r A braão n ad a p e rd e ra da sua
relevância cultural.

3. Cf. D. J. M cCarthy, T ratad o e Aliança (Treaiy and Covenant, Rom e, 1963), pp. 52s., que
indica q u e a frase “co rtar u m a aliança” ocorre em textos cuneiform es de Q atna, datados
do século quinze a.C., b em com o em textos hebraicos, aram aicos e fenícios. Cf. tam bém
M eredilh Kline. P ro m etid o Sob Ju ra m e n to ( By Oath Consigned, G rand Rapids, 1968), p. 17;
L eon Morris, A P regação A postólica da C iuz (The Apostolic Preaching of the Cross, L ondon,
1956), p. 64. Estes dois últim os autores citam am bos um tratado da Babilônia do oitavo
século a.C.; “(e ju stam en te com o) este bezerro é cortado em pedaços, assim p o d e M ati’el
ser cortado em pedaços e seus n o bres serem cortados em pedaços.”
Abraão: A Aliança da Prom essa 119

Merece análise cuidadosa o reaparecim ento de um a referência


de semelhante m étodo concreto de estabelecim ento de aliança,
após o transcurso de 1400 anos. De acordo com o contexto de
Jeremias 34, Jerusalém estava debaixo de sítio, imposto pela
Babilônia (w. 1, 6, 7). Em esforço aparente de recuperar o favor
perdido do Deus de Israel, o rei Zedequias reuniu todo o povo
para um a cerimônia de renovação da aliança (w. 8, 9). O povo
resp o n d eu a essa convocação de rededicação m ediante a
obediência às estipulações elem entares da aliança mosaica original
sobre a libertação sabática dos escravos israelitas (v. 10).
E ntretanto, o povo vacilou n a firm eza da sua decisão. Mal
tinham sido postos em liberdade todos os escravos israelitas, os
seus senhores os recuperaram o u tra vez (v. 11). Neste m om ento,
o profeta apresentou ao rei e ao povo a palavra de seu Deus cuja
aliança fora desrespeitada:
“Portanto, assim diz o Senhor: vós não me obedecestes para
apregoardes a liberdade, cada um a seu irm ão, e cada um ao
seu próxim o, pois eis que vos apregôo a liberdade, diz o
Senhor, para a espada, para a peste e para a fome; farei que
sejais um espetáculo h o rren d o para todos os reinos da terra.
Farei aos hom ens que transgrediram a m inha aliança e não
cum priram as palavras da aliança que fizeram perante mim,
com o eles fizeram com o bezerro que dividiram em duas
partes, passando eles p o r m eio das duas porções; os
príncipes de Judá, os príncipes de Jerusalém , os oficiais, os
sacerdotes e todo o povo da terra, os quais passaram por
m eio das porções do bezerro, entregá-los-ei nas mãos de seus
inimigos, e nas m ãos dos que procuram a sua m orte, e os
cadáveres deles servirão de pasto às aves dos céus e aos
animais da terra.” (Jr 34.17-20)
Para se apreciar com pletam ente a enorm e significação desta
passagem, fazem-se necessárias várias observações:
1. A linguagem de Jerem ias 34 ecoa m uito claram ente a lingua­
gem de Gênesis 15. A dupla referência ao ato de “passar entre as
m etades do bezerro” (Jr 34.18, 19) e a descrição detalhada de
serem devorados pelas aves de rapina os corpos malditos no
cerimonial do estabelecimento da aliança (v. 20) refletem inques­
tionavelmente a linguagem que descreve o estabelecimento da
aliança de Deus com Abraão. Esta alusão à experiência de Abraão
é ainda mais notável em sua especificidade, em virtude da
confirm ada antigüidade de Gênesis 15.4 Todavia, a alusão de
4. N o tar a avaliação de G erh ard von Rad, Gênesis ( Genesis, Philadelphia, 1961), p. 184:
“A narrativa acerca d e Deus fazermo pacto (w. 7-18) é u m a das m ais velhas narrativas da
120 Cristo dos Pactos

Jerem ias não dá n en h u m a impressão de ser extraída de páginas


em poeiradas da antigüidade. O profeta não tem nenhum m edo
de que sua descrição particular da renovação da aliança pudesse
parecer irrelevante ou incom preensível ao seu auditório.
2. O apelo de Jerem ias ao p e n h o r de m orte com base na
aliança não p o d e envolver apenas alusão literária à experiência
d e A braão. N a verdade, é descrição m uito real de um a
cerim ônia de renovação de aliança que acabava de ser celebrada
p o r Zedequias e seu povo.5 Notem-se novam ente as palavras dos
versículos 18 e 19; "... com o eles fizeram com o bezerro que
dividiram em duas partes, passando eles pelo meio das duas
porções; os príncipes de Ju d á e os príncipes de Jerusalém , os
oficiais, os sacerdotes e todo o povo da terra os quais passaram
pelo m eio das porções do bezerro”. Com efeito, Jerem ias disse:
“vossos príncipes, vossos sacerdotes, o próprio povo, vós sois os
que destes o p e n h o r de m orte passando entre os pedaços que
representavam a aliança”. Estas palavras não são linguagem de
m era alusão literária relativa à velha experiência de Abraão. O
contexto de um a verdadeira cerim ônia de renovação de aliança
m ilita contra esta interpretação. O povo fez algo nos dias de
Jerem ias que co rrespondeu ao p e n h o r de sangue envolvido na
aliança abraâm ica.
3. Q ue fizeram Zedequias e o povo para renovar a aliança? A
conclusão mais simples sugere que Zedequias copiou, bastante,
literalm ente, a cerim ônia de firm ar aliança seguida por Abraão,
descrita em Gênesis 15. E ntretanto, outras considerações
apontam um a situação mais complexa do que poderia ser
im aginada de início. A despeito da natureza direta das referências
de “passar entre os pedaços”, pareceria muito mais certo que
Zedequias seguisse a cerim ônia de firmar aliança instituída nos
dias de Moisés, ao invés da cerim ônia nos dias de Abraão.
O processo de firm ar aliança desenvolvido nos dias de Moisés
forneceu a Zedequias o m odelo para a renovação da aliança. A
assembléia formal, a leitura da lei, a resposta do povo - estes

tradição a respeito dos patriarcas... em nossa narrativa sobre fazer aliança tem os um
segm ento original d a mais velha tradição patriarcal. “E nquanto von Rad apóia um a análise
docu m en tária d o capítulo criticam ente orientada, afirm a ele, não obstante: “Os versículos
7-18 são iraclição m uito antig a d o próprio p eríodo patriarcal.”
5. D. R. Hillers, M aldições de T ratado e os Profetas do Velho Testamento ( Trmty-Cnrses
and the Old Testament, Prophets, Rom a, 1964), p. 26, assum e q u e um bezerro era m orto e que
o povo realm en te desfilava e n tre os pedaços.
Abraão: A Aliança da Promessa 121

elem entos pertenciam integralm ente ao sancionam ento de um a


aliança tal com o a estabelecida p o r Moisés, não p o r Abraão.6
A evidência d en tro do texto de Jerem ias 34 indica que foi
justam ente este o procedim ento seguido. O p o n to crucial da
narrativa gira em to m o da libertação sabática dos escravos
hebreus (w. 8-12). Zedequias estava ten tan d o recu p erar o favor
de Deus em um contexto de im inente condenação p o r este ato.
Mas p o r que teria ele escolhido essa o rdenança única de toda a
legislação do V elho Testam ento? Por que deveria ele com eçar
com a dram ática libertação de todos os hebreus que se tornaram
escravos?
Zedequias com eça com a libertação dos escravos hebreus
p orque tal ação se seguiria naturalm ente com o a conclusão de
um a cerim ônia de renovação de aliança de acordo com o
m odelo mosaico. A leitura da lei teria sido parte essencial dessa
cerim ônia. A prim eira da lista de ordenanças específicas no livro
d a aliança (Ex 20-24) diz respeito à libertação sabática dos
escravos hebreus:
“São estes os estatutos que lhes proporás: se com prares um
escravo hebreu, seis anos servirá, mas ao sétimo sairá forro,
de graça. Se en tro u solteiro, sozinho sairá; se era hom em
casado, com ele sairá sua m ulher.” (Êx 21.1-3)7
Portanto, parece claro que o procedim ento seguido po r
Z edequias conform ava-se com as cerim ônias m osaicas de
renovação da aliança, envolvendo com o fator crucial, a leitura do
livro da lei.
4. Mas algum a explicação deve ser dada para a evidente
percepção do significado do proceder abraâm ico p o r parte de
Zedequias e do povo. Se a cerim ônia de renovação da aliança
seguiu o m odelo mosaico, p o r que o profeta indica que o povo
“passou entre os pedaços?”
As circunstâncias da narrativa de Jerem ias indicam que algo
na redecretação da cerim ônia mosaica correspondia ao p e n h o r
de m orte associado com a aliança abraâmica. A totalidade do
povo pode não ter desfilado literalm ente entre os cadáveres

6. Este: m o d elo aparece n o m o m en to da instituição inicial da aliança m osaica (Ex 24.1-


8). Cf. p o sterio rm en te com Js 24, 2 Rs 23 e N e 8 para cerim ônias de renovação da aliança
se gu in d o o m odelo mosaico.
7. Esta lei foi especialm ente significativa p ara Israel. Ele havia sido redim ido da servidão;
n ã o deveria jamais voltar à servidão. T odos os três códigos legais do P entateuco registram
esse prin cíp io (cf. Êx 21.1-3; Lv 25.39-43; D t 15.1, 12-18).
122 Cristo dos Pactos

divididos dos animais. Mas deve ter havido, inerente à cerimônia


mosaica, um a atividade que envolvia o m esm o compromisso.
Um ritual que estava embasado nos procedim entos formais
de estabelecim ento da aliança mosaica com prom etia o povo a
um envolvimento de vida e m orte com o Senhor da aliança.
Evidentem ente, o ritual de aspergir sangue, descrito em Exodo
24.8, substituiu o literal “passar entre os pedaços”, de Gênesis 15.
Em prim eiro lugar, leu-se a lei. O povo respondeu com um a
promessa verbal de obediência (Ex 24.7). Então Moisés espargiu o
sangue sobre o povo enquanto declarou: “Eis aqui o sangue da
aliança que o Senhor fez convosco” (Ex 24.8). Este sangue
espargido não simbolizava apenas a purificação do povo.
Consagrava-o tam bém a obedecer a aliança sob pena de morte. O
m esm o p e n h o r de m orte que desem penhou papel tão
p ro em in en te no estabelecim ento da aliança abraâm ica
manifestou-se no estabelecimento da aliança mosaica. Simples
considerações estatísticas podem ter ocasionado a substituição do
ritual da aspersão de sangue em lugar de cerimônia de passar entre
os pedaços. U m a nação inteira dificilmente poderia desfilar entre
os pedaços de animais mortos. Mas um a cerimônia igualmente
im portante de aspersão de sangue podia ser instituída.
A sugestão de que Jerem ias viu n a cerim ônia mosaica o
m esm o p e n h o r de m orte encontrado no ritual mosaico acha
forte apoio nos aparecim entos repetidos das maldições distintivas
implicadas n a aliança abraâmica através da história de Israel. Na
sua visão, Abraão enxotou as aves de rapina que se reuniram em
volta dos cadáveres cerimoniais (Gn 15.11). Esta porção da sua
visão simbolizava o destino final do infrator da aliança. Não só o
seu corpo seria m orto; seria tam bém devorado pelas aves
selvagens dos céus. Ai do infrator da aliança que um a vez fez
promessa de morte!
Ai idêntico é pronunciado sobre Israel no contexto das
maldições e bênçãos envolvidas na aliança mosaica. O Senhor
adverte solenem ente aos potenciais infratores da aliança de Israel:
“O teu cadáver servirá de pasto a todas as aves dos céus e aos
animais da terra e ninguém haverá que os espante” (Dt 28.26).8

8. A íntim a conexão d o p ensam ento de Jeremias 34 com as m aldições da aliança de


D euleronôm io 28 é acen tu ad a ainda mais pela alusão específica de Jerem ias a respeito de
haver D eus feito d e Israel “u m espetáculo h o rre n d o p a ra todos os reinos da terra” (Jr 34.17;
cf. D t 28.25).
Abraao: A Aliança da Promessa 123

A história subseqüente de Israel exibe, de m aneira m uito


vivida, as conseqüências da violação da aliança. Israel, sob Moisés,
d e u p e n h o r de m o rte se quebrasse a aliança. Com o
conseqüência, o profeta Aías proclam ou a maldição da aliança
sobre a casa d eje ro b o ão :
“Q uem m o rrer a Jeroboão na cidade os cães o com erão, e o
que m o rrer no cam po aberto, as aves do céu o com erão,
p o rque o S enhor o disse.” (1 Rs 14.11)
Idêntica m aldição cai sobre a casa de Baasa:
“Q uem m o rrer a Baasa na cidade, os cães o com erão, e o que
dele m o rrer no cam po aberto, as aves do céu o com erão.”
(1 Rs 16.4)
N em a casa de Acabe escapa à m aldição fmal do julgam ento
da aliança:
“Q uem m o rrer de Acabe na cidade, os cães o com erão, e
quem m o rrer no campo aberto, as aves do céu o com erão.”
(1 Rs 21.24)
Esta m aldição se aplicou, em particular, a Jezabel, rainha de
Acabe:
“Os cães com erão a Jezabel no campo d ejezreel; não haverá
quem a en terre.” (2 Rs 9.10)
Esta exata m aldição específica perm eia a profecia do próprio
Jerem ias:
“Os cadáveres deste povo servirão de pasto às aves do céu e
aos animais do campo; e ninguém haverá que os espante.”
(Jr 7.33)
... “e seus cadáveres servirão de pasto às aves do céu e aos
animais da terra.” (Jr 16.4)
... “e darei os seus cadáveres às aves dos céus e aos animais da
terra.” (Jr 19.7)
U m a referência posterior sobre esta maldição da aliança
aparece no lam ento do salmista sobre Jerusalém caída:
“Deram os cadáveres dos teus servos por alim ento às aves dos
céus, e a carne dos teus santos às feras da terra. Derram aram
com o água o sangue deles em torno de Jerusalém e não
houve quem lhes desse sepultura.” (SI 79.2, 3)
A continuada aplicação profética destas maldições através da
história de Israel dem onstra a vitalidade da autoconsciência da
aliança em toda a nação. O julgam ento fmal de devastação pode
124 Cristo dos Pactos

ser entendido som ente em term os do compromisso original de


vida e m orte no Sinai, que, p o r sua vez, reflete a form a pactuai
em pregada p o r Deus ao ligar-se a Abraão.
Esta percepção da ameaça das maldições da aliança explica
tam bém a vitalidade do m odelo da aliança abraâmica tal como
aparece em Jerem ias 34. N enhum a outra passagem na Escritura
reflete o caráter específico do ritual da aliança abraâmica com a
vividez de detalhes que se encontra neste texto, à m edida que
descreve a conclusão da história nacional de Israel.
A prim eira vista, pareceria que um lapso de 1400 anos
ocorreu na reflexão consciente de Israel sobre o ritual abraâmico
de fazer aliança. Mas, se o espargir da nação, no ritual de Moisés,
tinha o m esm o efeito do “passar entre os pedaços”, não existia
lacuna alguma. A cerim ônia da aliança mosaica incorporou a
substância do com prom isso sob Abraão, em bora houvesse
m udado na forma. A história subseqüente de Israel indica que
jam ais ocorreu a diminuição da consciência concernente ao
comprom isso da aliança.

REFERÊNCIA DO NOVO TESTAMENTO


À CERIMÔNIA DA INSTITUIÇÃO
DA ALIANÇA ABRAÂMICA
A referência sobre as maldições da aliança instituída sob
Abraão não term ina com a profecia de Jerem ias e a destruição de
Israel. M uito significativamente, o Novo Testam ento interpreta a
nova aliança em term os de libertação dessas mesmas maldições.
E m bora se possa achar, no Velho Testam ento, promessa de
livramento futuro das maldições da aliança, o testem unho do
cum prim ento real dessa promessa ocorre prim eiro em o Novo
Testam ento. Este testem unho aparece particularm ente em
H ebreus 9.15-20, e no registro do evangelho da instituição da
nova aliança (Mt 26.28; Lc 22.20).

Hebreus 9.15-20
A apresentação do livramento da maldição da quebra da
aliança, tal com o ocorre no livro aos Hebreus, aparece no
contexto em que se discute a cerim ônia da instituição da aliança
mosaica. Para que o feliz livramento da nova aliança seja
Abraão: A Aliança da Promessa 125

com pletam ente apreciado, deve-se considerá-lo sobre o pano de


fundo do p e n h o r de m orte envolvido n a instituição da aliança de
Deus com Israel, com o m ediada através de Moisés.
A chave para a com preensão da significação desses versículos
está na análise da relação de m orte e um diatheke. Esta única
referência une todo o progresso do pensam ento em H ebreus
9.15-20.
O term o diatheke, em grego, pode ser traduzido ou com o
“testam ento e disposição de últim a vontade”, ou com o “aliança”.
Em bora estes dois conceitos possam confundir-se na m ente do
leitor da Bíblia do século vinte, eles m antinham significações
m uito nítidas no período bíblico. O fator crucial para se distin­
guir entre estes possíveis sentidos do term o em H ebreus 9 é a
relação de m orte com diatheke através da passagem.
A conexão entre m orte e um “testam ento e disposição de
últim a vontade” é óbvia. Este conceito se registra im ediatam ente
n a m ente do intérprete m oderno, desde que o “testam ento e
disposição de últim a vontade” desem penhem papel continuado
na cultura corrente. A m orte de um testador ativa as estipulações
da sua vontade. Pela m orte, o testam ento entra em vigor.
A relação entre a m orte e um a “aliança” não é tão im edia­
tam ente óbvia. Desde que as “alianças”, de acordõ com o m odelo
bíblico, não desem penhem papel vital nas culturas m odernas de
hoje, o leitor com um achará mais difícil conseguir com preender
a essência do conceito. Particularm ente, a relação integral da
m orte com um a “aliança” escapa ao leitor m oderno.
Todavia, a m orte é tão inseparavelm ente ligada à “aliança”
com o ao “testam ento”. Se o presente estudo da aliança de Deus
com Abraão estabelece algum a coisa, é indicar a relação vital de
m orte com aliança. A representação simbólica da m orte do autor
da aliança foi essencial à instituição, quer da aliança abraâmica,
q u er da mosaica. A longa história dos julgam entos finais de Deus
sobre Israel acha interpretação profética n a luz da execução de
Deus da m aldição de m orte sobre os infratores da aliança.
M orte e aliança relacionam-se claram ente. Relacionam-se
concretam ente de duas m aneiras. Em prim eiro lugar, a m orte
do a u to r da aliança recebe representação simbólica no tem po da
instituição da aliança. O processo de firm ar aliança não se
com pleta sem este aspecto de com prom isso de m orte. Em
se g u n d o lugar, a m o rte do violador da aliança recebe
atualização histórica quando é executado o julgam ento da
126 Cristo dos Pactos

aliança. U m a vez ocorrida um a transgressão de compromisso da


aliança, a m orte é inevitável.
Assim, tanto “testam ento” quanto “aliança” envolvem morte.
A m orte ativa um testamento. A m orte institui e vindica um a
aliança.
O versículo inicial nessa seção de Hebreus está claramente
vinculado com esta relação de m orte com “aliança”:
“Por isto mesmo ele é o M ediador da nova aliança a fim de
que, intervindo a morte para a remissão das transgressões
que havia sob a primeira aliança, recebam a promessa da
eterna herança aqueles que têm sido cham ados.” (Hb 9.15)
O c o rre u u m a evidente m orte para a remissão de
transgressões cometidas sob a prim eira aliança. O diatheke em
H ebreus 9.15 é a aliança mosaica. Deus não estabeleceu, através
de Moisés, um “testamento e disposição de últim a vontade”.
Estabeleceu, em vez disto, um a “aliança”.
Esse versículo fala da m orte de Cristo com o o fator que
remove as transgressões cometidas sob o prim eiro diatheke. A
m orte de um “testador” de m odo algum remove transgressões
cometidas contra um testamento e disposição de últim a vontade.
A m orte de um testador não é m orte vicária ou substitutiva.
Mas a m orte de Cristo, autor da nova aliança, provê redenção
das maldições incorridas em virtude da violação cia velha aliança.
O seu “sangue da aliança” instituiu a nova aliança enquanto, ao
m esm o tem po, rem oveu as m aldições da antiga aliança. Diatheke,
em H ebreus 9.15, refere-se claram ente a “aliança” e não a
“testam ento”.9
A relação de m orte com “aliança” é o assunto de Hebreus
9.18-20 ainda mais claramente do que no versículo 15:
“Pelo que até mesmo a primeira aliança não foi sancionada
sem sangue; porque, havendo Moisés proclam ado todos os
m andam entos segundo a lei, a todo o povo, tom ou o sangue

9. A referên cia n o v. 15 a u m a “herança” não deve tentar o in térp rete a reverler-se ao


conceito “testam en tãrio ”. P orque a herança tam bém d esem penha papel m uito vital na
estru tu ra d a aliança d o Velho Testamento. A herança de vida igualava-se à bênção da
aliança. E ra o oposto exato da opção-maldição. A herança da aliança encontra sua
representação tipológica n a posse da terra de Canaã, sim bolizando a vida de paz e
segurança provida p o r Deus ao sen povo. A posse desta “h eran ça” não devia d ep en d er de
m orte, m as d a fidelidade à aliança. A m orte relacionava-se à herança na aliança não como
o pré-requisito necessário para reivindicar a herança, mas com o o oposto diam etral de
possuir a heran ça. Em H ebreus 9.15 Cristo é “M ediador de u m a nova aliança, a fim de
que... receb am a prom essa d a eterna herança aqueles que têm sido cham ados”.
Abraão: A Aliança da Promessa 127

dos bezerros e dos bodes, com água, lã, tinta de escarlate e


hissope, e aspergiu não só o próprio livro, mas tam bém todo
o povo, dizendo: “este é o sangue da aliança a qual Deus
prescreveu para vós outros.” (Hb 9.18-20)
“S angue” e “Diatheke”, nestes versículos, reco rd am a
cerim ônia de instituição no Sinai. Espargindo o sangue, Moisés
não institui um testam ento e disposição de últim a vontade. Deus
não m orreu a fim de ativar um testam ento para Israel. Em vez
disto, a cerim ônia no Sinai instituiu um relacionam ento de
aliança. O “sangue da aliança”, so len em en te espargido,
consagrou Deus e Israel um ao outro para vida e m orte.
O “sangue” no Sinai, com o está discutido em H ebreus 9.18-
20, representou um arranjo com caráter de aliança, antes que de
testam ento. A m orte selou a aliança.
A relação de m orte e diatheke em H ebreus 9.16, 17 levanta
d eb ate m aior. Inserido e n tre versículos que claram ente
relacionam “m o rte ” com um a estru tu ra de aliança, estes
versículos, não obstante, levantam o u tra vez a questão do
significado do term o diatheke10
P or causa da clareza de H ebreus 9.15 e 18-20, parece
apropriado com eçar pela suposição de que o term o diatheke
possuiria a m esm a significação de H ebreus 9.16, 17.11 Desta
perspectiva, a fraseologia, no princípio do versículo 17, é notável:
“Pois um testam ento só é confirm ado no caso de mortos.”
10. Para u m a discussão mais detalhada do sentido de diatheke em H ebreus 9.16, 17, e
anotações concernentes a relevante biografia, ver a dissertação não publicada do presente
escritor, U m Povo do D eserto: O C onceito da Igreja na Epístola aos H ebreus (A Peopíe oj the
WiMerness: The Concept ojihe Church in the.KpistJe to the Hei/retos, R ichm ond, VA., 1966), p. 43ss.
11. O utros fatores em acréscim o ao contexto favorecem a suposição de que diatheke em
H eb reu s 9.16, 17 significa “aliança”, em vez de “testam ento”. Prim eiro, o uso consistente
do term o diathehe com o “aliança” na S eptuaginta ap o n ta em direção à pressuposição de
q u e a m esm a significação seria en co n trad a em H ebreus. Cf. E. H atcb, Ensaios no G rego
Bíblico (Kssays in Biblical Greeh, O xford, 18S9), p. 47s., que diz que pode haver “pouca
d m id a d e que a palavra deva ser invariavelm ente tom ada no sentido de ‘aliança’ em o
Novo T estam ento, especialm ente em um livro q u e está tão im pregnado com a linguagem
da LX X .” Cf. lam bem com Vos, op. cit., pp. 33s.
E m seg u n d o lugar, a consistência no uso do term o pelo pró p rio Novo T esiam ento, tanto
d e n tro q u an to fora d e H ebreus, favorece a significação “aliança”. Das 31 vezes qu e o term o
o corre fora desses dois versículos, 31 vezes a palavra significa “aliança” e não “testam ento”.
S om en te em Gálatas 3.15 pode-se firm ar u m a questão séria a favor da significação
“testam en to ”. Este uso consistente revela os m odelos-pensam ento dos teólogos do Novo
T estam ento. Eles trab alh aram com o conceito de “aliança”, e n ão de “testam ento”.
Em terceiro lugar, o caráter n ão convincente de um arg u m en to baseado em um
trocadilho verbal arg u m en ta co ntra o sentido “testam ento”. A lgum a força de persuasão
certam en te seria p erd id a se o leitor fosse solicitado a mover-se da significação “aliança”
para a significação “testam en to ”, e voltar à significação “aliança” d en tro do espaço de
q u atro versículos.
128 Cristo dos Pactos

U m testam ento (singular) não é confirm ado “no caso de


m ortos” (plural). Som ente um corpo é requerido para a ativação
de um testam ento e disposição de últim a vontade. Mas um a
necessária m ultiplicidade de corpos m ortos se associa
im ediatam ente com a instituição de um relacionam ento de
aliança. Muitos animais são m ortos para simbolizar o potencial de
maldição da aliança.
Com a cerim ônia de instituição da aliança em m ente, a
linguagem do versículo 16 deve tam bém ser notada: “Porque
onde [há] testam ento é necessário que intervenha a m orte do
testador.” A linguagem conforma-se precisam ente com o processo
pelo qual o compromisso de aliança foi vivificado no Velho
T estam ento. Ao ser selado o relacionam ento de aliança,
“interveio” a m orte do testador.12
A conexão contextual de H ebreus 9.16 com o versículo
precedente em presta apoio à suposição de que arranjos “de
aliança”, não “de testam ento”, fornecem a estrutura para a
com preensão da argum entação do escritor. Cristo m orreu para
redim ir das transgressões cometidas debaixo da prim eira aliança
(v. 15). Esta m orte se fez necessária porque “a m orte do autor da
aliança” “interveio” no m om ento da instituição da aliança (v. 16).
Pela graça de Deus, Cristo se fez substituto no lugar dos
violadores da aliança. M orreu em lugar deles, recebendo sobre si
m esm o as m aldições da aliança.
A últim a frase do versículo 17 apresenta o mais difícil
problem a para um a tradução consistente de diatheke com o
“aliança”, através da passagem. A frase diz literalm ente: “visto
que, de m aneira nenhum a, [um a aliança] tem força de lei
enquanto vive o testador.”
E compreensível que esta frase tenha inclinado os intérpretes
no sentido da tradução “testam en to ”. C laram ente “um
testam ento” não é válido enquanto vive o testador. Mas o oposto

12. Mereclilh Kline, em Traiaclo cio G rande Rei ( Trenty of lhe Great King, G rand Rapids,
1963), p. 41, está certam en te correto em p rocurar o m odelo antigo de íirm ar aliança com o
chave ã com preensão d e H ebreus 9.16, 17. Mas, em vez de focalizar o p e n h o r de m orte,
que é o coração d a instituição d a aliança, volta-se ele às estipulações da sucessão dinástica
dos traLados antigos. Desta m aneira, procura ele base para justificar o jogo de palavras
“testa m e n to /a lian ç a” em diatheke em H ebreus 9. E ntretanto, o tem a em H ebreus 9.15ss.
não é o de cristãos com o sucessores dinásticos de Cristo, ainda que esta “sucessão” seja
m odificada p ara significar “co-regência com o testador vivo”. Em vez disso, o tem a de
H eb reu s 9.15ss. é a celebração d a aliança. O escritor aos H ebreus desenvolve diretam ente
o âm ago d a cerim ônia d e íirm ar aliança, em vez de desenvolver em um a form a até nova
u m aspecto secundário d o antigo m odelo da cerim ônia de firm ar aliança.
Abraão: A Aliança da Promessa 129

pareceria verdadeiro com respeito à “aliança”. U m a aliança é, na


verdade, válida en q uanto vive o autor da aliança.
E ntretanto, esta últim a frase do versículo 17 não ocorre
isolada do contexto. E um a cláusula secundária, gram aticalm ente
d ep en d en te do que precede.
A prim eira parte do versículo 17 indica que um a aliança é
to m a d a firme sobre m ortos. Esta linguagem harmoniza-se m uito
apropriadam ente com os procedim entos antigos de firm ar
aliança. A segunda parte do versículo 17 refere-se ao “ter força de
lei” da aliança. Pareceria que o to rn ar firm e ( (3e|3aía ) da aliança
e o “dar força de lei” ( íct^ úsi ) aludem ao m esm o princípio que
opera nas relações de aliança. A porção secundária do versículo
deve ser interpretada à luz da porção prim ária.
Além disto, o forte conectivo entre os versículos 17 e 18 deve
ser considerado. “Pelo que [Õ0£v]”, de acordo com o versículo
18, “nem a prim eira aliança foi sancionada sem sangue”. Agora,
a referência é, claram ente, ao processo de derram am ento de
sangue associado com a instituição da aliança. Se o versículo 18
está tiran d o in ferên cia do versículo 17 com respeito ao
derram am ento de sangue da instituição da aliança, pareceria
obrigatório ler o versículo 17 em term os de instituição da aliança,
e não em term os de disposição testamentária.
Por estas razões, pareceria mais apropriado ler a últim a
porção do versículo 17 em term os de instituição de aliança. U m a
aliança não se to rna forte (válida) “enquanto vive o testador”,
p orque a instituição de um a aliança deve incluir a m orte
simbólica do autor da aliança. N enhum processo de firm ar
aliança é com pleto à parte da representação simbólica da m orte
daquele que firm ou a aliança.13
Não se deve perm itir que a argum entação detalhada da
discussão prévia nos distraia do ponto mais alto da passagem. As
m aldições incorridas p o r causa das transgressões da velha aliança
caíram sobre Jesus Cristo. Sua m orte deve ser entendida em
term os da longa história do tratam ento de Deus com seu povo.

13. A m aio r dificuldade com esta interpretação do v. 17b é que ele requer que a
referên cia à m o rte d o a u to r d a aliança .seja in terp retad a com o sím bolo, em vez de m o rie
real. Este p ro b lem a p o d e .ser resolvido m ediante a .sugestão de que o escritor presum iu
um a aliança violada. D ada a situação em que .se violaram estipulações, u m a aliança não se
(orna “fo rte ” e n q u a n to viver o a u to r da aliança. Neste caso, a m o rte prefiguracla seria real,
e n ã o sim bólica. Esta lin h a d e interpretação contém alguns aspectos recom endáveis. Mas
a forte ênfase contextual n a instituição da aliança ap o n ta em direção à m orte simbólica, ao
invés de m o rte real.
130 Cristo dos Pactos

Assumindo as conseqüências totais do p en h o r de m orte da


aliança, Cristo livra da maldição da aliança. Não se podia alcançar
n e n h u m a rem issão da culpa das transgressões sem
derram am ento de sangue. Portanto, Cristo apresentou seu corpo
com o vítima sacrificial da m aldição da aliança.
A Instituição da N ova A liança (M t 26.28; Lc 22.20)
Com esta perspectiva em vista, é apropriado olhar mais
detidam ente o registro da instituição original da nova aliança
pelo Senhor Jesus Cristo, com o se acha nos Evangelhos. Mateus
26.28 pode ser com parado com Lucas 22.20 para fornecer um
quadro mais com pleto do evento.
A presentando o cálice aos discípulos, Jesus disse: “Porque isto
é o m eu sangue, o sangue da (nova) aliança, derram ado em favor
de muitos, para remissão de pecados” (Mt 26.28). O “derram a­
m ento” ( ek^ eu) ) do sangue de Cristo reflete a linguagem sacrificial
do Velho Testam ento e o processo pelo qual as maldições da
aliança eram descarregadas sobre um a vítima substituta.14 Cristo
explica sua m orte como sendo “para remissão de pecados”. Sua
m orte produz livramento da maldição-morte da aliança pela
rem oção das violações da velha aliança. Jesus oferece seu sangue
como base do livramento das maldições da aliança.
O Evangelho de Lucas adiciona um a dimensão a este processo
ao m encionar a “nova” aliança sendo estabelecida po r Cristo:
“Este é o cálice da nova aliança no m eu sangue derram ado em
favor cie vós”(Lc 22.20). O sangue de Cristo não apenas remove a
m aldição da velha aliança; introduz tam bém sim ultaneam ente a
condição abençoada da nova aliança.
Esta dupla significação do sangue de Cristo ecoa o duplo
papel das palavras de Deus a Adão na instituição original da
aliança da redenção. A imposição das maldições da aliança da
criação foi im ediatam ente unida com o anúncio das bênçãos da
aliança da redenção.15 E nquanto ambos, hom em e m ulher,
experim entaram a maldição do pecado, receberam , ao mesmo
tem po, a prom essa da bênção através da redenção.
Em Cristo, este duplo papel de bênção e maldição acha agora
seu sentido consum ador. Com o Cristo tom a sobre si m esm o as
maldições da velha aliança, institui sim ultaneam ente a condição
abençoada da nova.
14. N otar o liso d o term o n a S epluaginta em relação ao sistema sacrificial de Israel com o
se en co n tra em Levítico 4.17, 12, 18, 29, 30, 34; 8.15; 9.9; 17.4, 13.
15. V er acim a, pp. 103-5.
Abraão: A Aliança da Promessa 131

Concluindo, a aliança de Deus com Abraão pode ser caracte­


rizada particularm ente como a aliança da promessa. Pela cerimô­
nia solene descrita em Gênesis 15, Deus prom ete redenção.
A ênfase à prom essa divina nessa aliança é adm iravelm ente
destacada p o r um aspecto distintivo da narrativa. Ao contrário
do que se podia esperar, Abraão não passa entre os pedaços divi­
didos que representavam a condenação de autom aldição da
aliança. O S enhor da aliança não requer que seu servo tom e
sobre si m esm o o juram ento de autom aldição. Som ente Deus
m esm o passa en tre os pedaços.
Por este ato, Deus prom ete. O Senhor assume sobre si m esm o
a total responsabilidade de ver que será cum prida toda prom essa
da aliança. Isto não q u er dizer que Abraão não tinha obrigações
na relação da aliança. Ele j á havia sido ordenado a deixar sua
terra pátria (Gn 12.1ss.). Mais tarde se lhe exigirá, de m aneira
inequívoca, a m inistração do selo da circuncisão em todos os seus
descendentes m achos (Gn 17.1, 14). Como, porém , a aliança é
form alm ente instituída em Gênesis 15, o Senhor dram atiza o
caráter gracioso d a relação da aliança m ediante o ato de passar,
Ele só, entre os pedaços. Esta aliança será cum prida porque Deus
assumiu sobre si m esm o a total responsabilidade em velar pelo
seu cum prim ento.16
A voz suplicante do patriarca apelava: “Com o poderei saber?
Com o poderei ter certeza?”
A cerim ônia solene de autom aldição da aliança fornece a
resposta do Senhor: “Eu prom eto. Eu me com prom eto solene­
m ente com o Deus Todo-Poderoso. A m orte pode ser necessária.
Mas as promessas da aliança serão cum pridas.”
Em Jesus Cristo Deus cum pre a sua promessa. Nele Deus está
conosco. Ele oferece o próprio corpo e o próprio sangue como
vítima das m aldições da aliança. Sua carne é rasgada para que
seja cum prida a palavra de Deus ao patriarca.
Agora, Ele se oferece a você. Diz: “Tom ai e comei; isto é o
m eu corpo. Isto é o m eu sangue da aliança derram ado po r
muitos. Bebei dele todos.”

16. O. Kaiser em ’IwditionsgeschichtlicJie Uniemichung von Geri. 15'\ Zeitschrift f ü r die.


Alftfístammtliche Wissenschaft, 70 (1958): 120, diz: ”I)ieser kühre Ant/impomorpiminus bctoni die
l huntjloslkhJmt. dergòttlichen Zusage, da sich Gott schhrhterdmgs nichi selbst zerstõren )<am\n (“Este
(m sado a n tro p o m o ríism o enfatiza a indestm tibilidade da prom essa divina, desde que Deus
não p o d e abso lu tam en te destruir-se.”)
9
O Selo da
Aliança Abraâmica
G ênesis 15 descreve a instituição form al da aliança abraâmica.
Deus, sim bolicam ente, “passa entre os pedaços”, e torna solene a
sua prom essa ao patriarca. Gênesis 17 registra a instituição do
selo oficial da aliança abraâmica. O patriarca e sua descendência
recebem n a carne o sinal da aliança.
E ntre estes dois capítulos m onum entais, a Escritura registra
um lapso da fé de Abraão. A despeito da visão espetacular da
instituição da aliança desfrutada p o r Abraão em Gênesis 15, ele,
não obstante, tropeça em virtude da sua confiança n a carne, em
Gênesis 16.
E, possivelmente, por causa desta falha por parte do patriarca
que se instituiu um a lem brança mais perm anente do relaciona­
m ento de Deus com ele. Algum sinal durável deve ser dado que
perm aneça além do estágio visionário da experiência. A circuncisão
como o selo da aliança abraâmica perm anece perm anentem ente
com o patriarca para lembrar-lhe a certeza das promessas.
E interessante n o tar neste contexto o caráter perm anente­
m ente durável do selo da nova aliança. O selo-aliança do Espírito
Santo habita com o crente até o dia da sua redenção com o um
símbolo do seu com prom etim ento de ser do Senhor (cf. E f 1.13,

133
134 Cristo dos Pactos

14). T ratando de selo pactuai da circuncisão, três áreas em


particular serão destacadas: o significado original da circuncisão,
a circuncisão na história e na teologia do Antigo Testam ento, e o
cum prim ento do selo veterotestam entário no Novo Testamento.

O SIGNIFICADO ORIGINAL
DA CIRCUNCISÃO

Comentários Exegéticos de Gênesis 1 7.9-14


A introdução form al do selo da velha aliança com eça com
um a injunção inequívoca dirigida ao patriarc a. Primeiro, Deus
relata seus num erosos com prom etim entos no relacionam ento
das alianças (C f Gn 17.6-8). Ele tom ará Abraão excessivamente
frutífero. Reis descenderão dele. Deus estabelecerá sua aliança
como um a aliança perpétua, para ser o Deus de Abraão e da sua
descendência. Dará a Abraão a terra das suas peregrinações.
Todas essas coisas Deus fará pelo patriarca.
“E tu (v. 9). Agora, enfaticamente, o Senhor da aliança lança
responsabilidade sobre sua criatura beneficiária. Antes, Deus
tinha ordenado que Abraão andasse diante dele em obediência
com a inteireza de um a vida transform ada (v. 1). Mas agora
anuncia, com ênfase, um a exigência específica. Abraão e a sua
descendência não têm escolha na matéria. O fiat divino fala de
m aneira inescapável: “Guardarás a m inha aliança, tu e a tua
descendência depois de ti, no decurso das suas gerações.”
“Esta é a m inha aliança... todo m acho entre vós será
circuncidado” (v. 10). O selo da aliança relaciona-se tão
in tim am en te com a p ró p ria aliança, que a aliança pode
identificar-se com o selo. Esta identificação da aliança p o r seu
selo é mais explicitamente expressa no versículo 13b: “A minha
aliança estará na vossa carne e será aliança perpétua.” Longe de
ser um aspecto opcional do pacto da aliança, o selo é a aliança.
“Será isto p o r sinal de aliança” (v. 11). O sinal dá um
testem unho. Testifica a respeito da realidade do relacionam ento
que foi estabelecido. A circuncisão oferece seu testem unho
perpétuo a favor da realidade do pacto da aliança.
“O que tem oito dias será circuncidado entre vós” (v. 12).
C ontrariando a prática geral das nações com o um todo, a
O Selo da Aliança Abraâmica 155

circuncisão não seria para Israel um sinal de introdução na


m aioridade, associado com a chegada da p u b erd ad e.1 Em vez
disto, envolve a criança de oito dias e, portanto, enfatiza o
princípio de solidariedade entre pais e filhos num relaciona­
m ento de aliança.
“... T anto o escravo nascido em casa, com o o com prado a
qualquer estrangeiro, que não for da tua casa, será circuncidado”
(v. 12b). Desde o dia da sua instituição original com o sinal de
aliança, a circuncisão esteve aberta aos gentios. Não se pretendia
que ela fosse exclusivamente um símbolo racial, mas, de m aneira
mais ampla, um sinal de aliança.
“O incircunciso... esta vida será elim inada do seu povo” (v.
14). Severíssimo julgam ento aguarda a pessoa que rejeitar este
sinal da aliança. Será elim inado da solidariedade, da com unidade
da aliança.
Na m edida em que esses anúncios escriturísticos introduzem o
selo da velha aliança, deve-se notar a solenidade da diretriz de
Deus. Deus declarou que este sinal será ministrado entre: o seu
povo. Tratar levianamente o sinal, ou ignorar as estipulações
associadas com ele, é expor-se aos julgam entos do Deus da aliança.

A Significação Teológica do Selo Originalmente Instituído


Não se pode sustentar que a prática da circuncisão originou-
se com Israel.2 Não só entre os semitas, mas entre representantes
de praticam ente todo grupo étnico, a circuncisão tem sido
p raticad a de um o u de o u tro m odo. Os cananeus
contem porâneos de Israel perm aneceram assinaladam ente fora,
com o um a exceção a esta regra.
Em virtude da prática generalizada da circuncisão entre as
nações, o papel singular da circuncisão no pensam ento de Israel
deve ser sublinhado. Os seguintes pontos devem ser notados
com respeito à im portância da circuncisão, tal com o original­
m ente instituída para Abraão:
1. A circuncisão simbolizava a inclusão na com unidade da
aliança estabelecida pela iniciativa da graça de Deus. Era o sinal
da aliança. Com o tal, introduzia o povo em relacionam ento com
o Deus da aliança, e em solidariedade com o povo da aliança.

1. Cf. Francis Ashley M ontagu, “C ircuncisão” na E nciclopédia Britânica ( "CÀrcumásion”


in Encydopedia Bntannica, C hicago, 1963), 5: 799.
2. C om o inclicaclo p o r Vos, T eologia Bíblica (Biblical Thrology), p. 103.
136 Cristo dos Pactos

2. A circuncisão indicava necessidade de purificação. O ato


higiênico da rem oção do prepúcio simbolizava a purificação
necessária para o estabelecim ento de um a relação de aliança
entre um Deus santo e um povo profano.
A aplicação da circuncisão ao prim eiro pai da linha familiar
da prom essa indicava que apenas a descendência física “não era
suficiente para fazer verdadeiros israelitas. A impureza e a inabi-
litação da natureza deviam ser eliminadas” 3
Esta com preensão da significação teológica da circuncisão
perm anece no mais absoluto contraste com a subseqüente falsa
apreensão judaica do rito. A circuncisão devia ter hum ilhado o
povo de Israel porque mostrava o seu dem érito inato para ser o
povo de Deus. Em vez disto, o sinal foi mal com preendido, com o
se significasse que ele era um povo especialmente dotado de
m érito perante Deus. O que devia ser para ele fonte de hum i­
lhação, tornou-se fonte de orgulho.
3. Com o originariam ente instituída, a circuncisão não sugere
m eram ente necessidade de purificação. Simboliza tam bém o
processo real de purificação que é necessário. Não apenas indica
que o hom em é im puro p o r natureza. Representa tam bém a
rem oção da m ácula essencial para se alcançar a pureza.
E significativo n o tar nesta conexão que o coração do
relacionam ento de aliança liga-se im ediatam ente à circuncisão-
selo. Porque Yahweh será o Deus de Israel (v. 7), o povo deve ser
circuncidado. A santidade do Deus de Israel requer que Israel
tam bém seja santo.
A significação de pureza da circuncisão é vigorosamente
ressaltada através da alusão de Jesus Cristo ao rito da velha
aliança, em João 7. 22, 23. No contexto do Evangelho de jo ão , os
oponentes de Jesus o acusam porque Ele curara um hom em no
sábado. O Senhor responde referindo-se à antiga prática da
circuncisão, rito que tinha sido instituído no período dos pais,
bem antes dos dias de Moisés. Se seus adversários prosseguiam
circuncidando alguém no oitavo dia, m esm o que este dia caísse
no sábado, po r que não poderia ele prosseguir curando um
hom em no sábado? Eles, no sábado, tornavam lim pa um a parte
do hom em , por m eio da circuncisão; não deveria ele tornar “o
hom em todo” são; (óAov âvGpioTTOV úyirj ) no sábado, p o r meio
da cura?
3. Ibicl., p. 105
O Selo da Aliança Abraâmica 137

Portanto, a circuncisão, que procedia “dos pais”, lim pa


parcialm ente. Não m eram ente com unica a necessidade de
purificação. Simboliza e sela realm ente a purificação necessária à
participação da aliança.
4. A purificação é realizada pela extirpação do prepúcio do
órgão reprodutivo masculino. O “extirpar” de parte natural do
corpo hu m an o com o símbolo de lim peza religiosa sugere a
necessidade da execução do julgam ento com o ato essencial à
purificação. Pela circuncisão o pecador submete-se a um julga­
m ento que purifica.
5. O ato de limpeza, com o foi originalm ente instituído, teve
para Abraão significação especial com relação à propagação da
raça. Diversos fatores relacionam o rito da circuncisão à questão
da propagação da raça:
(a) A circuncisão foi instituída, m uito explicitam ente, para os
descendentes de Abraão bem com o para Abraão mesmo. Antes
do nascim ento dos descendentes, determ inou-se que o sinal da
aliança lhes seria aplicado. Toda a descendência posterior, sem
exceção, devia receber em sua carne o selo da aliança.
(b) É o órgão reprodutivo m asculino que está envolvido no
rito da circuncisão. Por esta razão, a circuncisão tem significação
especial com relação à propagação da raça.
Este rito único serve com o o selo para o pacto total que Deus
fez com Adão. A prom essa concernente à descendência, à terra e
à bênção, tudo está selado p o r este sinal único. Mas porque é o
órgão reprodutivo m asculino que está envolvido na circuncisão,
parecerá que o rito tem significação especial com respeito à
propagação da raça.
(c) Em Israel, a circuncisão devia ser aplicada às crianças com
oito dias de idade. Por causa desta aplicação do sinal da aliança
às crianças, parecerá que o sinal tem significação especial com
respeito à propagação da raça.
Q ue se pode concluir do fato de que a circuncisão tem signifi­
cação especial com respeito à propagação da raça? Dois pontos
podem ser sugeridos.
Primeiro, pode-se concluir que o rito da circuncisão implica que
a raça é pecadora e necessita de purificação. O pecado não é apenas
assunto do indivíduo, mas tam bém da raça. Do ponto de vista de sua
instituição original, a circuncisão implica a culpa da raça.
138 Cristo dos Pactos

Em segundo lugar, a íntim a relação deste selo de aliança com


a propagação da raça indica que Deus deseja tratar com famílias.
Deus, em sua obra de redenção, deseja restaurar a solidariedade
da ordem da criação da família. Em vez de colocar a ordem
natural da criação contra a graça, Deus coloca o pecado em
oposição à graça. A prom essa da aliança, selada pelo rito inicial
da circuncisão, dirige-se à solidariedade da unidade familiar.

A CIRCUNCISÃO NA HISTÓRIA DO
VELHO TESTAMENTO E NA
SUA TEOLOGIA
Através da história de Israel, a circuncisão sempre é apresentada
como um rito que tencionava ter dimensão tanto direcionada para
Deus quanto para o hom em . Na sua verdadeira essência, a circun­
cisão é um sinal de aliança entre Israel e o seu Deus.
Este fato indica que a circuncisão nunca devia ser considerada
um em blem a puram ente nacional, simbolizando somente um rela­
cionam ento físico entre o povo de Israel. Na verdade, a circuncisão
tinha um a significação nacional. Servia para inUoduzir pessoas na
com unidade de Israel, externam ente organizada. Mas, também
tencionava representar o relacionam ento em direção a Deus que
era a essência da aliança.
Essa dim ensão em direção a Deus da circuncisão/selo
m anifestou sua presença em todas as épocas mais im portantes da
história do Velho Testam ento. Com eçando na época da institui­
ção e estendendo-se através da história de Israel, a circuncisão
indicava o status de um hom em em relação a Deus tanto quanto
seu status em relação à nação de Israel.
A im portância teológica do selo de circuncisão no tempo da
sua instituição já tem sido discutida. Esse aspecto do rito achou
reforço nos dias de Moisés. Moisés adm oestou Israel nas planícies
de Moabe para circuncidar o prepúcio dos seus corações, e não
serem mais endurecidos contra Deus (Dt 10.16). Em outro lugar,
Moisés indicou que Deus circuncidaria o coração de Israel e dos
seus descendentes, e assim eles amariam o Senhor com todo o
coração (Dt 30.6). O sinal externo de purificação simbolizava a
purificação interior necessária à vida de obediência e am or a Deus.
Esses textos claram ente se fundam entavam em um simbo­
lismo de purificação inerente ao rito da circuncisão. Falando de
purificação de coração, Moisés não introduz conceito novo que
O Selo da Aliança Abraâmica 139

não estivesse presente desde o princípio da sua instituição original.


Não é que a circuncisão um a vez significasse m eram ente ligação
externa à nação de Israel, e agora deva significar alguma coisa
adicional. Ao contrário, Moisés sim plesm ente está fazendo
aplicação vigorosa da significação da purificação espiritual que
sem pre pertenceu ao rito da circuncisão. A aplicação do term o
“circuncisão” a um processo de purificação de coração indica que
a intenção de Deus, desde o princípio, pelo rito da circuncisão, era
simbolizar a purificação interior necessária ao estabelecimento de
um a relação apropriada entre Deus, o Criador santo, e a criatura
profana. Pelo rito da circuncisão os hom ens eram identificados
perante o m undo com o o povo santo de Deus. Era para sua
vergonha que seus corações não se conformassem com a santidade
que o rito sagrado que ele recebeu tencionava retratar.
Êxodo 12.43-49 apresenta a exigência de que os não-israelitas
deviam ser circuncidados para participar da páscoa. A existência de
tal exigência não deve ser interpretada como evidência de senso de
superioridade dentro da nação israelita. Deve-se concluir pela
implicação exatam ente contrária. Qualquer gentio podia participar
do mais alto privilégio do Judaísmo, se ele indicasse disposição de
atender às exigências estabelecidas para o próprio judeu.
Esta a b e rtu ra absoluta à incorporação dos gentios na
co m u n id ad e de Israel tem significação de longo alcance,
afetando a interpretação de porções maciças do Velho e do Novo
Testam ento. Muitas tradições de interpretações fundam entam -se
n u m a assunção im plícita de que Deus tem um propósito
distintivo para os descendentes raciais de Abraão que os coloca
em separado dos gentios que respondem em fé e obediência ao
program a de redenção de Deus. T oda esta superestrutura
herm enêutica com eça a oscilar quando se com preende que
“Israel” podia incluir gentios não abraâmicos tanto quanto
ju d eu s etnicam ente relacionados. T ratando sobre o sentido da
aplicação da circuncisão à com unidade gentia, o com entador
ju d e u B enno Jacob diz:
“A circuncisão é um sím bolo nacional e religioso, e
p erm anece com o tal, além do povo que descende de Abraão
p o r nascim ento. Todo estrangeiro que se subm ete a ela
recebe Abraão com o seu pai e torna-se um israelita.”
4. B. Jacob, O P rim eiro Livro da Bíblia: Gênesis. Seu C om entário Abreviado, E ditado e
T rad u zid o p o r E m e sl I. Jacob e W alier Jacob ( The First. Booh of the Bible: Genesis. His
Commentaiy Abrid^ed, Ed.it.ed, and, Tmmlated by Ernest I. Jacob and Walterjacob, New York, 1974),
p. 115.
140 Cristo dos Pactos

O gentio circuncidado “torna-se israelita”. Desde que este é o


caso, “Israel” obviam ente não pode ser definido simplesmente
em term os de características raciais. Com o afirma B. Jacob mais
adiante:
“Na verdade, diferenças de raça nunca constituíram
obstáculo para se ju n ta r a Israel que não conhecia o
conceito de pureza de sangue... A Circuncisão tornava em
israelita um homem de origem estrangeira." (Êx 12.48)5
Esta participação da páscoa por parte de um gentio circunci­
dado não pode ser reduzida m eram ente ao envolvimento em um a
experiência étnica ou nacional. Gozar da solidariedade da refeição
da aliança com o Deus da aliança resum e a significação da Páscoa.
Os que com em o cordeiro pascal sentetn tranqüila segurança
enquanto “passa p o r cima” o anjo da m orte enviado p o r Deus.
A com unhão com Deus e com o seu povo em tão nobre
contexto req u e r preparação apropriada. O gentio, como o
ju d eu , deve ser circuncidado anfes deste privilégio. Deve receber
a a p ro p ria d a purificação da co rru p ção da sua condição
pecam inosa.
Por causa da m om entosa significação da participação da
refeição pascal, a circuncisão não pode ser reduzida m eram ente
a um sím bolo racial ou nacional. A relação do participante em
direção a Deus deve envolver-se tanto quanto a sua relação em
direção ao hom em .
A evidência nos livros de Josué e Reis tam bém apóia esta
conclusão. Q uando Israel entra na terra da promessa, o povo
chega em condição não circuncidada. A geração incrédula
to m b ara n o d eserto e a nova geração não tinha sido
circuncidada. Em significativo ato de obediência fiel ao
m andam ento de Deus, o povo se subm ete à debilitante operação
da circuncisão a despeito de se achar localizado no meio de
território hostil.
Depois de sarados, o S enhor in terp reta para Josué a
significação do evento. “Hoje revolvi retirar C'ni1?â) de sobre vós o
opróbrio do Egito.” Com o lem brança perm anente deste evento, o
lugar se tom a um m em orial recebendo o nom e de “Gilgal” ou
“Rolar” (VaVà-Js 5.9). Evidentemente, esta descrição da remoção
do opróbrio do Egito em termos de “rolar” alude ao processo pelo
qual o prepúcio é removido n a circuncisão,

5. Ibid., p .233, ênfase adicionada.


O Selo da Aliança Abraâmica 141

Inquestionavelm ente, o rito da circuncisão com unica mais do


que derivação étnica neste ponto. Pelo processo da circuncisão,
ocorreu um a purificação. O opróbrio do Egito foi rem ovido. O
povo não habita mais sob a servidão de um opressor em terra
estranha. Na verdade, eles se to m aram herdeiros participantes
de um a aliança feita com seus pais. A circuncisão, nesta ocasião,
relaciona-se especificam ente à prom essa concernente à possessão
da terra.
Para ser h erdeiro dessa terra que é santa possessão de Deus,
o povo tam bém deve ser santo. Esta santidade encontra sua
realização simbólica na circuncisão da nação em Gilgal.
O caráter profano dos filisteus incircuncisos aparece no mais
vivido contraste com a santidade do povo de Deus circuncidado.
R epetidam ente os filisteus, inimigos de Israel, são designados
“incircuncisos”. Golias é o “filisteu incircunciso” (1 Sm 17.26, 36).
Saul preferia antes m o rrer a cair nas m ãos do incircunciso (1 Sm
3J.4). Davi tem e diante da perspectiva da difusão da notícia da
m orte de Saul em território filisteu, porque, então, as filhas de
um povo incircunciso com eçariam a vangloriar-se (2 Sm 1.20).
Em passagens tais com o estas, é altam ente improvável que o
term o “incircunciso” se refira m eram ente ao caráter não israelita
das pessoas envolvidas. O term o está carregado com implicações
de im undície, im pureza e indignidade.
A mesm a conclusão encontra apoio no em prego da imagem
de circuncisão pelos profetas posteriores de Israel. Os hom ens de
Ju d á são advertidos a circuncidar-se diante do Senhor e a
circuncidar os seus corações (Jr 4.4) .Já eram israelitas. Já possuíam
a insígnia da “m em bresia” nacional. Mas não havia ainda sido
cum prida a transform ação do padrão de vida injusta para ajusta.
A essência da purificação simbolizada pela circuncisão necessita ser
cum prida em suas vidas.6
Desta vista panorâm ica da significação da circuncisão na
história e n a teologia do Velho T estam ento deve ter ficado
evidente que a circuncisão fala persistentem ente à questão da
relação do hom em com Deus. O rito jam ais se retrai ao nível de
ser m eram ente um sím bolo de “m em bresia” nacional. Desde o
m om ento de seu com eço e através da história de Israel, a
circuncisão funciona com o o sinal da aliança.

6. O utras passagens nos profetas que desenvolvem o tem a d a circuncisão p o d em ser


encon trad as e m je re m ia s 9.25, 26; Ezequiel 28.10; 31.18; 32.19-32.
142 Cristo dos Pactos

O CUMPRIMENTO NEOTESTAMENTÁRIO
DO SÍMBOLO VETEROTESTAMENTÁRIO
Com o com todos os elem entos essenciais da revelação do
Velho Testam ento, o selo da aliança abraâm ica encontra sua
verdade-em-símbolo cum prida no Novo Testam ento. Diversas
passagens no Novo Testam ento com entam explicitam ente a
consum ação da realidade do selo do Velho Testam ento. O utras
porções da Escritura do Novo Testam ento relacionam-se mais
indiretam ente à questão da perm an en te significação desse selo.
Em qualquer caso, o Novo T estam ento fornece base adequada
p a ra se c o m p re e n d e r o p ap el d a realidade do sím bolo-
circuncisão na vida do crente da nova aliança.
O fato da circuncisão de Jesus Cristo é de im pressionante
im portância n a apreciação do significado desse rito. Q uando as
glórias da nova aliança estão sendo introduzidas, as “coisas da
velha aliança não são precipitadam ente descartadas”.7 Para
redim ir hom ens que estavam sob a lei, Deus enviou seu Filho,
nascido de m ulher, nascido sob a lei (G14.4) .Jesus foi concebido
pelo Espírito Santo e não conheceu pecado. Todavia, “para
cum prir toda justiça” Ele se subm eteu aos ritos prescritos de
purificação (cf. Mt 3.15). Com o um sinal de que ele volunta­
riam ente estava tom ando sobre si m esm o as obrigações do seu
povo, Jesus submeteu-se, prim eiro, à circuncisão e, depois, ao
batismo de João.
O fato de que Jesus form alm ente recebeu seu nom e em
conjunção com o rito da circuncisão zyuda a ilum inar o
significado do ato p ara Cristo. Seu nom e é “Jesus”, “Jeová Salva”
(Lc 2.21). Sua purificação não é p o r sua própria causa, mas p o r
causa do povo p e c ad o r que Ele salva.
A clara indicação do alívio decisivo do processo externo da
circuncisão sob a nova aliança aparece na narrativa concernente
à difusão do evangelho entre os gentios, no livro de Atos. O
Espírito Santo p u rific a d o r passa a residir em gentios
incircuncisos para assom bro dos crentes judeus circuncidados
(At 10.44-48). Se a realidade da aliança de “Eu serei o vosso Deus”
pode acontecer separadam ente do rito externo da iniciação,

7. Norval G eldenhuys, C o m entário d o E vangelho de Lucas, O Novo C om entário


Intern acio n al d o Novo T estam en to ( Commentary on the Cospel of Lvke, The New International
Commentary on the New Testament, G rand Rapids, 1968), p. 117.
O Selo da Aliança Abraâmica 143

como seria possível continuar a insistir que os gentios fossem


circuncidados? A realidade da nova aliança não req u e r que os
gentios se tornem ju d eu s antes que possam tornar-se cristãos.
Pelo contrário, req u e r que ambos, ju d eu s e gentios, se tom em
novas criaturas através da sua unidade com Cristo, apenas por
m eio da fé.
Esta perspectiva revolucionária encontra ratificação form al no
tem po do Concilio de Jerusalém . Não podem ser apoiados
aqueles que exigiam que os gentios fossem circuncidados antes de
serem recebidos na com unhão do povo de Deus (At 15.1). Foram
respondidos m ediante a referência ao fato de que “Deus que
conhece os corações” deu testem unho da aceitabilidade dos
crentes gentios, não fazendo distinção entre circuncidados e incir-
cuncidados. Ele concedeu o seu Espírito aos gentios incircuncisos
tanto quanto o tinha feito aos crentes ju d eu s (At 15.8-9).
U m a vez reconhecido este princípio, jam ais p o d erá ser
revogado. Jam ais o ato form al da circuncisão poderá ser im posto
sobre o povo de Deus. Com o m atéria de fato, o “evangelho da
circuncisão” é um “anti-evangelho”. Paulo possivelmente não
podia expressar-se mais precisam ente: “... se vos deixardes
circuncidar, Cristo de nada vos aproveita” (G1 5.2).
Esta agressiva afirmação no que tange ao fim do rito form al
da circuncisão não deve ser en tendida em u m a form a dem asiado
literal. Paulo m esm o o rd e n o u a circuncisão de T im óteo,
im ediatam ente depois do decreto do concilio de Jerusalém (At
16.3). Ao a d o ta r este p ro ce d im e n to , ele d em o n stro u sua
liberdade em Cristo de “fazer-se tudo para todos com o fim de,
p or todos os m odos, salvar alguns” (1 Co 9.22).
A usurpação do rito d a circuncisão vai m uito mais fundo do
que a proibição form al da prática ex tem a da circuncisão. Fala do
caráter escatológico dos dias presentes. Jam ais se po d erá voltar às
velhas formas-símbolos envolvidas nas atividades ritualísticas de
Israel. A realidade teve sua m anifestação histórica. Exigir a
repetição das form alidades do sím bolo é substituir p o r um ritual
hum anam ente ordenado um a realidade divinam ente ordenada.
Não pode haver dúvida de que o rito form al da circuncisão
chegou ao fim, n o que tange à sua significação para a redenção.
O testem unho do Novo T estam ento afirm a claram ente este fato.
E n tretan to , a realidade sim bolizada no rito form al da
circuncisão tem certam ente significação para o crente da nova
aliança. A purificação da im pureza e a incorporação na com u­
144 Cristo dos Pactos

nidade da aliança m antém vital significação para o cristão. Várias


porções das Escrituras do Novo Testamento afirmam este fato.
Primeiro de tudo, várias passagens relacionam a essência da
nova aliança com o símbolo da circuncisão da velha aliança.
Assim como a realidade substitui o símbolo, assim a essência da
purificação substitui seu símbolo mais antigo.
Romanos 4.3, 9-12 diz o seguinte:
3. Porque, que diz a Escritura? “ABRAAO CREU EM DEUS
E ISTO LHE FOI IMPUTADO PARA JUSTIÇA.”

9. Vem, pois, esta bem-aventurança exclusivamente sobre os


circuncisos ou tam bém sobre os incircuncisos? Visto que
dizemos: “A FÉ FOI IMPUTADA A ABRAÃO PARA
JUSTIÇA.”
10. Com o, pois, lhe foi atribuída? Estando ele já
circuncidado ou ainda incircunciso? Não no regim e da
circuncisão, e, sim, quando incircunciso;
11. E recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da
íé que teve q u ando ainda incircunciso; para vir a ser o pai de
todos os que crêem , em bora não circuncidados, a fim cie que
lhes fosse im putada a justiça,
12. e pai da circuncisão, isto é, daqueles que não são apenas
circuncisos, mas tam bém andam nas pisadas da fé que teve o
nosso pai Abraão antes de ser circuncidado.
O versículo 11 é particularm ene significativo. O símbolo da
circuncisão da velha aliança é relacionado com a essência da
velha aliança. Abraão recebeu o sinal da circuncisão com o selo da
justiça da fé. A verdadeira justiça de Abraão é diretam ente
associada com o sím bolo externo da circuncisão. O objetivo da
circuncisão era selar a realidade da justiça.
Ao m esm o tem po, a passagem manifesta duas “paternidades”
para Abraão. Estas “paternidades” servem para interp retar a
realidade consum ada da nova aliança em termos que indicam
um a forte linha de continuidade com as estipulações da velha
aliança. Abraão é pai: (1) de todos que têm fé, em bora não
circuncidados (i.e., gentios crentes); é também pai (2) do povo
circuncidado que, em acréscimo ao fato de ter a experiência do
rito externo da circuncisão, tam bém anda nas pegadas da fé de
Abraão (i.e., crentes judeus).
O Selo da Aliança Abraâmica 145

Portanto, esta passagem indica que aqueles relacionados com


Abraão pelo sím bolo da circuncisão da velha aliança estão unidos
a Cristo pela fé, ao lado daqueles que experim entaram a essência
do simbolismo da circuncisão sem jamais conhecerem o próprio
rito externo. Com o resultado, o símbolo da circuncisão de
outrora acha um significativo ponto de encontro com a essência
da nova aliança. A purificação simbolizada em um corresponde à
realidade experim entada no outro. A circuncisão do Velho Testa­
m ento relaciona-se significativamente com a purificação do Novo
Testam ento.
Pode ser que a ênfase na “paternidade” de Abraão nestes
versículos tenciona aludir ao ritual de purificação da circuncisão.
T endo direta relação com o órgão de propagação, a circuncisão
do prim eiro pai do fiel simbolizava um a purificação apropriada
ao fato de tornar-se ele o cabeça da linha daqueles que seriam
justificados pela fé.
Rom anos 2.25-29 relaciona tam bém a essência da nova
aliança com o antigo símbolo da circuncisão. Podem-se n o tar os
seguintes pontos:
1. A circuncisão, símbolo da velha aliança, não tem qualquer
valor a m enos que seja unida com a verdadeira justiça que ela
representa. De acordo com o versículo 25, “a circuncisão tem
valor se praticares a lei; se és, porém, transgressor da lei, a tua
circuncisão já se to rn o u incircuncisão.”
2. O hom em que sente a essência da justiça através da nova
aliança será considerado “circuncidado”, em bora dc fato jam ais
tenha sentido o selo da circuncisão (w. 26, 27).
3. O sím bolo da circuncisão sob a velha aliança não é a coisa
que to rna o hom em aceitável a Deus. Som ente a verdadeira
circuncisão do coração pelo Espírito realiza a purificação que é
suficiente para to rn ar o hom em aceitável a Deus (w. 28, 29).
Estes versículos pressupõem que a circuncisão continua a ter
significação no contexto da nova aliança. Tem significação, não
com o rito externo, mas como representação simbólica da
realidade da justiça. A circuncisão no V elho T estam ento
simboliza ajustiça que vem da fé. Na época da nova aliança, o rito
externo da circuncisão não é um a exigência para o povo de Deus.
Mas a essência simbolizada pelo rito deve ter sua verdadeira
manifestação n o coração do crente.
146 Cristo dos Pactos

Filipenses 3.3 traça o mais estreito paralelo possível entre a


essência da nova aliança e o símbolo da circuncisão de outrora.
“Nós somos a circuncisão”, afirm a o apóstolo. Aquele que adora
n o Espírito de Deus personifica a realidade do rito de
purificação da velha aliança.
Esta série de passagens relaciona o símbolo da circuncisão da
velha aliança com a realidade da nova. Os versículos ajudam o
crente da nova aliança na apreciação do significado do selo da
velha aliança para si mesmo.
Em segundo lugar, a aplicação do mesmo vocabulário de
“selar” (CT^payíÇeaBai) ao rito da circuncisão e à posse do
Espírito Santo provê uma ponte para unir os dois conceitos. Em
Rom anos 4.11, a circuncisão é descrita como “um selo (ocfipayíç)
da justiça da fé”. Em outro lugar, Paulo aplica o mesmo term o em
sua form a verbal (a^payíÇeaGai) à posse do Espírito Santo pelo
crente do Novo Testamento:
“ (Deus) nos selou e nos deu q penhor do Espírito em nossos
corações.” (2 Co 1.22)
”...tendo nele também crido, fostes selados com o Santo
Espírito da promessa.” (Ef 1.13)
”E não entristeçais o Espírito de Deus, no qual fostes selados
para o dia da redenção.” (Ef 4.30)
A aplicação da mesma terminologia à circuncisão e à possessão
do Espírito une os dois conceitos. O ritual de selar da aliança
encontra seu cumprimento na realidade de selar da nova aliança.
Em terceiro lugar, a interconexão entre o selo da circuncisão
e o selo do Espírito Santo fornece a base formal pela qual os ritos
de purificação correspondentes da velha e da nova aliança
relacionam-se uns com os outros. A circuncisão sob a velha
aliança é substituída pelo batismo na nova aliança. O rito de
purificação de um a aliança é substituído pelo rito de purificação
na outra. Esta relação entre circuncisão e batismo acha evolução
específica em Colossenses 2.11, 12.
De acordo com Colossenses 2, o crente da nova aliança não
deve perm itir que a tradição hum ana o torne cativo (v. 8). A
razão básica p o r excelência pela qual ele não pode deixar-se
cativar é que agora ele está “em Cristo”, e nele se acha toda
suficiência. Note-se a ênfase repetida ao tema “em Cristo”:
“Nele (Èv aÜTÓj) habita corporalm ente toda a plenitude da
divindade (v. 9).
Nele (èv auTw ) estais aperfeiçoados (v. 10).
O Selo da Aliança Abraâmica 147

Nele (év (j ) tam bém fostes circuncidados (v. 11).


... tendo sido sepultados com ele (aÒTtu ) no batismo; no
qual (év (í)) igualm ente fostes ressuscitados m ediante a fé no
p o d er de Deus.” (v. 12)8
Os pontos mais significativos para a presente discussão centra-
lizam-se na referência à união com Cristo na circuncisão, e na
relação da circuncisão com o batismo. O versículo 11 afirma que
os participantes na nova aliança experim entam a circuncisão.
Nele fostes circuncidados. Obviamente, a alusão não pode ser ao
rito físico requerido sob a velha aliança. O cristão experim enta a
realidade de purificação da corrupção simbolizada no rito.
Esta circuncisão é descrita com o sendo “não feita por m ãos”.
Não deve a sua origem à operação m anual do hom em .9 Ao
contrário, Deus m esm o realizou a obra de purificação dentro do
coração do hom em .
O rito da circuncisão, que era a iniciação n a velha aliança, era
peculiarm ente suscetível ao puro externalism o na religião. Este
aspecto carnal, sangrento, do rito com unica bem sua form a de
símbolo da velha aliança. No sentido mais exato, é um rito “feito
com as m ãos”.
Depois de afirm ar que o cristão experim enta a realidade da
circuncisão, Paulo desenvolve a significação deste ponto. Envolve
o “despojar-se” do corpo da carne. M ediante o uso do term o
duplam ente prefixado a áTT-£K-5ÚCT£i, o apóstolo parece aludir
especificam ente ao processo da circuncisão, na c[ual o prepúcio,
simbolizando a poluição da carne, é “extirpado”. 0
N esta expressão, Paulo ofereceu am pla ilum inação do
significado p reten d id o n o ritual da circuncisão. O ato de cortar
fora o prepúcio do órgão procriador representava a rem oção
8. O ( £v 4» ) d o v. ] 2 p o d e ser tom ado com o referindo-se ao batism o (sv tlõ panT iajiôj).
De q u alq u er m o d o , é n a u n ião com Cristo (cxòtlu ) q u e se to rn a realidade a m o rte p a ia o
pecado e a vida p a ra a justiça.
9. De aco rd o com Edwarcl Lohse, x£lPOTTOlIÍ TOÇ sem pre é usado em o N.T. para
descrever “a an títese d o q u e é feito com as m ãos dos hom ens com o trabalho de D eus”.
D icionário T eológico do Novo T estam ento {Theologiad Dictionary o f the Neiu Testament,
G ran d Rapids, 1974), 9:436.
10. T o d as as ocorrências, em o Novo T estam ento, de cmSKÒúaiç e suas form as verbais
aparecem em Colossenses. São raram en te enco n trad as fora do Novo T estam ento. Alguns
têm sugerido que Paulo inventou a palavra. Cf. James H ope M oulton e G eorge Milligan,
O V ocabulário d o T estam en to G rego ( The Voc.ahidary ofthe Greek Testarnent, Lonclon, 1952),
p . 56. Possivelm ente Paulo p o d e ter acrescentado ótt Ò p ara èkouoj, “despojar-se (de suas
vestes)”, p ara co m u n icar a idéia de com pleto despim ento. C ertam ente o term o é
ap ro p riad o n a discussão d o assunto da circuncisão.
148 Cristo dos Pactos

violenta da natureza inerentem ente pecadora do hom em . Este


mesmo significado é agora aplicado ao rito de iniciação do
batismo.
Paulo declara que esta circuncisão do crente da nova aliança
é cum prida “n a circuncisão de Cristo”. Esta frase pode referir-se
à circuncisão que Cristo m esm o experim entou, ou à circuncisão
que Jesus instituiu. A decisão en tre estas duas alternativas é difícil.
Paulo podia estar dizendo que o cristão experim entou
circuncisão n o m o m en to da história em que Jesus foi
circuncidado. Esta “circuncisão” de Jesus podia referir-se ao rito
a que Ele se subm eteu quando criança de oito dias de idade, ou
à sua “circuncisão”, figurativam ente falando, no m om ento da sua
crucificação.11
Por outro lado, Paulo podia estar falando que o cristão
experim enta a “circuncisão” despindo-se do velho hom em no
m om ento do seu batismo em Cristo. Esta “circuncisão de Cristo”
podia estar se referindo à circuncisão que Cristo instituiu, em
contraste com a circuncisão da velha aliança.12
Ainda que a decisão e n tre estas duas interpretações seja
difícil, o peso do contexto parece apoiar o segundo p o n to de
vista. A “circuncisão de Cristo” é a circuncisão que Cristo
instituiu p ara o participante da nova aliança. A parte do fato de
que a m orte de Cristo não é explicitam ente desenvolvida na
11. Sobre este p o n to de vista, ver E. K. Sim pson e F. F. Bruce, C om entário às Epístolas
aos Efésios e aos Colossenses. O Novo C om entário Internacional do Novo T estam ento
(Commentary on theEpistles to theEphesians and the Colossians. TheNeiv International Commentary
on the New Testament, G ran d Rapids, 1957), p. 234; M eredith G. Kline, C onfirm ado sob
Ju ra m e n to (By Oath Consigned, G ran d Rapids, 1968), pp. 47, 71. Kline, seguindo com
consistência seu p o n to de vista de que a circuncisão simbolizava m aldição de ju ra m e n to no
V elho Testam ento, associa a circuncisão só com a m orte (p. 71), e tam bém não a relaciona
com a ressurreição. N a p. 47, ele indica que, p o r causa da união do crente com Cristo, a
circuncisão “assum e, ao lad o d a im p o rtâ n c ia d a co ndenação, a im p o rtân c ia da
justificação”. Todavia, deve-se n o tar qu e Kline n ão está apresentando este lado positivo do
rito com o essencial ao p ró p rio rito.
12. Este p o n to d e vista é sustentado p o r Jo ã o Calvino em As Epístolas do Apóstolo Paulo
aos Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses. C om entários de Calvino {TheEpistles o f Paul
the Apostle to the Galatians, Ephesians, Philippians and Colossians. Calvin’s Commentaries, G rand
Rapids, 1965), p. 184; Jo h n Eadie, C om entário da Epístola de Paulo aos Colossenses,
Biblioteca d o C om entário Clássico ( Commentary on the Epistle ofPaul to the Colossians, Classk
Commentary Library, G ran d Rapids, 1957), p. 151; R.C.H. Lenski, A Interpretação das
Epístolas d e P aulo aos Colossenses, aos Tessalonicenses, a T im óteo, a Tito e a Filemom.
C om entário d o Novo T estam ento (TheInterpretation of PauVsEpistles to the Colossians, to the
Thessalonians, to Timothy, to Titus and to Philemon, New Testament Commentary, G ran d Rapids,
1964), p. 115. P ara u m a discussão com pleta das alternativas, ver Larry G. M ininger, A
Circuncisão d e Cristo ( The Circumcision of Christ, Tese de M estrado em T eologia não
publicada n o S em inário de W estm inster, 1971), pp. 40-51.
O Selo da Aliança Abraâmica 149

Escritura com o um a “circuncisão”, a passagem em consideração


fala prim ariam ente a respeito da aplicação da redenção ao
crente, antes que da sua realização p ara o crente. Pode-se
adm itir que a experiência do crente relaciona-se im ediatam ente
ao conceito de “união com Cristo”. E “em Cristo” que o crente
m o rre e ressuscita outra vez. Todavia, o peso da passagem
relaciona-se especificam ente ao p o n to n a história em que o
cristão é iniciado experim entalm ente em Cristo.
U m a com pleta apreciação do significado destes versículos
dep en d e do entendim ento da relação da frase seguinte ao seu
contexto. Paulo diz: “vós fostes circuncidados... tendo sido
sepultados com ele no batismo.”13
A frase pode ser entendida de um a de duas m aneiras. Paulo
podia estar dizendo: “depois de ter sido sepultados com ele no
batismo, vós fostes circuncidados.” Neste caso, Paulo estaria
pensando em algum a experiência do cristão depois do seu
batismo que podia ser classificada com o sua “circuncisão”.
Entretanto, é m uito mais provável que os dois eventos descritos
fossem entendidos com o ocorrendo sim ultaneam ente.14 A
“circuncisão” do cristão não deve ser entendida como seguindo ao
seu batismo. Ao contrário, as duas ações devem ser consideradas
simultâneas. O rito da purificação achado na velha aliança encontra
seu cum prim ento no rito da purificação ordenado pela nova. O
impacto da declaração de Paulo deve ser representado pela
coordenação das duas ações. O sentido da passagem seria m elhor
comunicado por um a tradução como: “quando fostes sepultados

13. O parlicípio em p reg ad o pelo apóstolo ( o u v t o k |> £ v t £ ç ) está no caso nom inativo,
plural em n ú m ero , e assim m odifica o (subentendido) sujeito do verbo “vós fostes
circu n cid ad o s”, n o prin cíp io d o versículo onze. A palavra auvÕáriToj o corre som ente aqui
e em R o m an o s 6.4, em o N ovo T estam en to . Em am bos os casos refere-se ao
“sep u llam en lo " figurativo d o batismo.
14. A inda q u e o parlicípio aorislo possa d e n o ta r ação a n te rio r ao verbo principal, esta
n oção d o tem p o passado relativo “n ão é de m o d o n e n h u m necessariam ente in eren te ao
parlicípio aorislo”. (R obert W. Funk, U m a G ram ática G rega do Novo T estam ento e O utra
Primitiva L iteratura Cristã - A Greek Grammar o f the. New Testament and OtherEarly Chmtian
Literature, C hicago, 3961), p. 175. Se a força tem poral do particípio aorislo devesse colocar
sua ação antes d o verbo q u e m odifica, a im plicação seria q u e a “circuncisão” do cristão
seguir-se-ia ao seu balisnio.
E n tretan to , n ão é necessário p ô r a ação do parlicípio aorislo tem porariam ente antes do
verbo principal. De aco rd o com a tradução de F unk e a revisão da G ram ática G rega de F.
Blass e A. D e b m n n e r, “o elem ento do tem po passado está ausente do parlicípio aorislo
especialm en te se a sua ação é idêntica à de um verbo finito aorislo” (ibid., p. 175).
150 Cristo dos Pactos

com ele no batismo, fostes circuncidados”; ou: “sendo sepultados


com ele no batismo, fostes circuncidados.”15
O resultado líquido da declaração de Paulo é unir, da m aneira
mais firme possível, os dois ritos da circuncisão e do batismo. O
apóstolo simplesmente colocou um ato no topo do outro. No
mais completo sentido possível, o batismo sob a nova aliança
cum pre tudo o que era representado na circuncisão sob a velha.
Sendo batizado, o crente cristão experim entou o equivalente do
rito de purificação da circuncisão. Como tem sido dito:
Ter experiência da circuncisão de Cristo m ediante o despo-
jam ento do corpo da carne é o mesmo que ser sepultado
com Ele e ressuscitar com Ele no batismo por meio da fé. Se
é assim, a única conclusão que podem os alcançar é que os
dois sinais com o ritos externos simbolizam a m esm a
realidade interior no pensam ento de Paulo. Assim, pode-se
afirmar, positivamente, que a circuncisão é, 110 Velho
Testam ento, a contra parte do batismo cristão.

15. É im portante n o tar q u e a edição de 1978 da Nova Versão Internacional (Nau


Irlm iational Version) to rn a a estru tura gram atical cia passagem mais clara cio que em versões
anteriores. A edição de 1973 obscureceu a relação entre a circuncisão e o batism o nesses
versículos, traduzindo os versículos 11 e 12 com o unidades auloconlidas, e referindo o
“tendo sido sepultado no batism o” dito p o r Paulo adiante, de sorle que o parlicípio
m odificou o (subentendido) sujeito de “vós fostes ressuscitados”, no v. 12. Esta tradução
deixou de rep resen tar o significado básico dos versículos com o determ inado pela estrutura
gramatical das várias cláusulas, e d ep e n d e u m uito pesadam ente da tradicional divisão em
versículos, tantas vezes falha. “T e n d o sido sepultados com ele no batism o” pertence ao
versículo 11, e o versículo 12 deveria com eçar com nele tam bém fostes ressuscitados...”
èv (jj com o adicional x a í do versículo 12 faz divisão gram aticalm ente entre o velho e o
novo assuntos. Descle que “ten d o sido sepultados coin ele no batism o” íica antes deste
divisor estrutural, é altam ente improvável que se refira a “vós fostes ressuscitados”, po r
causa d a b arreira de “nele tam b ém ” que aparece no meio. Pode-se encontrar apoio para
esta análise n a construção paralela de E f 1.7-14. P orque “tendo sido sepultados com ele no
batism o” precede o èv w kccí d e Cl 2.12, seu referente im ediato deve ser achado em “vós
fostes circuncidados” d o v. 11, antes q u e em “vós fostes ressuscitados” do v. 12.
16. P.K Jewett, em Batismo e C onfirm ação (Baptism and, Confirmation). pp. 168s. em
David K ingdon, Filhos d e Abraão: Um P onto de Vista Batista Reform ado do Batismo,
Aliança e Crianças (.4 Rrfonned Baptist Vimi o f Baptism, the Covenant, and, Childrm - W orthing,
1973), p. 29.

Moisés:
A Aliança da Lei
A aliança com Moisés tem provocado alguns dos m aiores debates
n a história do Cristianismo. Os m arcionitas m odernos, tanto
quanto os antigos, que rejeitam a autoridade das Escrituras do
V elho T estam ento, dirigem h a b itu a lm e n te suas críticas à
m inistração mosaica da lei. O relacionam ento preciso da aliança
m osaica com as promessas que a precederam e ao cum prim ento
que se seguiu tem dem onstrado ser um dos mais persistentes
problem as de interpretação bíblica.

O LUGAR DA ALIANÇA MOSAICA NA


CRÍTICA BÍBLICA MODERNA
Antes de entrar n a discussão das ênfases teológicas da aliança
mosaica, devemos fazer algumas observações introdutórias a
respeito do lugar da aliança mosaica na crítica bíblica m oderna.
Tão infatigável quanto o debate sobre a im portância teológica da
m inistração mosaica da lei tem sido a discussão da perspectiva
crítico-histórica da origem e desenvolvimento dos materiais do
Pentateuco.

151
152 Cristo dos Pactos

Desde os dias de Julius W ellhausen, tem sido negada pelo


grosso da crítica erudita a autoria mosaica do Pentateuco.
Entretanto, décadas mais recentes têm visto o estudo da crítica da
form a insistindo rep etid am en te que m uito n o Pentateuco
pertence, com m uita propriedade, aos dias de Moisés. Com
relação a isto, devem-se reconhecer duas linhas especiais de
desenvolvimento.

O M aterial do Pentateuco e os Tratados H ititas


Prim eiro, devemos d ar atenção ao crescente núm ero de
trabalhos que reconhecem a relação do m aterial do Pentateuco
com os tratados de suserania hitita.1 No Antigo O riente Próxim o
desenvolveu-se um a fo rm a de tra tad o in te rn ac io n al que
a p a re n te m e n te foi c o m p a rtilh a d a e n tre as nações. As
referências a tais tratados retrocedem ao terceiro m ilênio a.C.
Em anos recen tes, textos d e tratad o s g en u ín o s foram
descobertos en tre os arquivos do im pério hitita. Da mais alta
im portância entre estes textos são os docum entos datados
den tro da Idade do Bronze (c. 1400-1200 a.C.).2
Essas form as particulares de tratado desenvolveram um
padrão clássico que foi em pregado em docum entos ligando os
vassalos do im pério hitita ao sen h o r que os conquistara. Os
elem entos mais essenciais da form a do tratado incluíam:
1. U m a declaração no preâm bulo a respeito do senhorio do
suserano conquistador.

1. U m a útil resen h a d e m ateriais p o d e ser en co n tra d a em D. J. M cCarthy. “ Cauenant in


the O. T.: ThePresent State ojInquiry”. CatholicBiblical Quarterly 27 (1965): 217-40. Cí. tam bém
W arren M alcolm Clark: Cauenant in Israel and in the A n á m t NearEast: A Biblwgraphy P)-efjared
By Dr. Warren Malcolm Clark fo r the Use oj his Students at Princeton Theological Seminary, (1968-
69). Talvez dois dos mais im portantes trabalhos sejam o de G. E. M endenhall, Law and
Covenant in Israel and theAncient NearEast (Pittsburgh, 1955), e o de M. G. Kline, Treaty oj
the Great King (G ran d Rapids, 1963). O trabalho de M endenhall oferece o estím ulo inicial
p ara com parações atuais entre os tratados do A ntigo O riente P róxim o e o m aterial do
P entateuco. Kline estendeu-se nas im plicações crítico-históricas e bíblico-teológicas desses
estudos.
2. Têm -se feito alguns esforços p ara relacio n ar essas form as de alianças bíblicas com
docu m en to s d o prim eiro m ilênio a.C., em vez dos do segundo m ilênio a.C. Para u m a dis­
cussão dos assuntos envolvidos, e u m a refutação d a alegação de q u e o m aterial do
P entateuco deve se r relacionado com d o cum entos do prim eiro m ilênio, ver K A. Kitchen,
Ancient Orient and the Old Testament (Chicago, 1966), pp. 90ss. E n tre outros pontos
im portantes, K itchen observa a ausência d e u m prólogo histórico e d e bênçãos correspon­
dentes a m aldições nos d o cu m en tos do prim eiro m ilênio, tanto qu an to u m a inconsistência
n a o rd em dos elem en to s literários.
Moisés: A Aliança da Lei 153

2. U m prólogo histórico enfatizando atos passados de


benevolência.
3. U m a extensa delim itação de estipulações envolvendo
tanto d em an d a de inteira lealdade quanto exigência de ação
específica.
4. Estipulações p ara se proceder ao depósito oficial das cópias
de duplicata dos docum entos do tratado n a presença dos
respectivos deuses do vassalo e do suserano.
5. Invocação de testem unhas, envolvendo, com freqüência, a
convocação de objetos inanim ados.
6. Declaração de m aldições e bênçãos potenciais relacionadas
à fidelidade à aliança.
Observando o esboço básico desta form a de aliança, a
erudição corrente tem encontrado notável sem elhança com o
m odelo da aliança mosaica. T anto a porção do Êxodo que trata
do estabelecim ento d a aliança (Êx 19-24), quanto todo o livro de
D euteronôm io têm sido estudados a este respeito.
Talvez que a descoberta mais im portante até o presente seja
a estreita sem elhança entre o am plo esquem a do livro de D eute­
ronôm io e o padrão clássico da form a de tratado hitita. Extensos
paralelos em detalhe pressionam fortem ente no sentido de datar
todo o livro de D euteronôm io, n a sua form a presente, no
período de Moisés.3
O M aterial do Pentateuco e o “H istoriador Deuteronom ista ”
A o m esm o tem po, um segundo filam ento de estudos
correntes tem tentado datar o livro de D euteronôm io, em sua
form a final, quase um m ilênio mais tarde. M artin Noth, em
particular, vê o D euteronôm io com o um a introdução teológica ao
trabalho de um “historiador deuteronom ista” que deve ser
separado dos prim eiros quatro livros do Pentateuco. N oth une
toda a seção da Escritura de D euteronôm io até 2 Reis com o um a
unidade, cuja form a final só apareceu nos dias do exílio de Israel.4
Seria m uito interessante ver qual escola de pensam ento
triunfará no jo g o de cabo-de-guerra acadêmico. Seria demais

3. N otar, em particular, a b em a rg u m en tad a alegação de M. G. Kline em Treaty o f the


GreatKing (G ran d Rapids, 1963), pp. 27ss.
4. M artin N o th , em Überliefmmgsgeschichtliche Studim (D arm stadt, 1943), pp. 12ss; 87ss.
N otar as in terações co m este p o n to de vista em J o h n Bright, The Interpreter’s Bible: Joshua
(New York, 1953), pp. 541ss; K. A. Kitchen, “A ncient O rient, ‘D eu tero n ism ’ a n d the O ld
T estam en t”, em Neio Perspectives on the Old Testament (Waco, 1970), pp. lss.
154 Cristo dos Pactos

esperar que a erudição crítica m o d ern a reconhecesse a data para


a form a final do D euteronôm io na época de Moisés, de acordo
com a sim ilitude da form a do D euteronôm io com os tratados
hititas clássicos, enquanto, ao m esm o tem po, reconhecesse a
notável unidade d a m ensagem bíblica com o se acha exibida pela
conexão de Josué - 2 Reis com a teologia de Deuteronôm io.
Q ualquer que seja o caso, a descoberta da form a de aliança hitita
clássica deverá continuar a ser um dos fatores im portantes nos
estudos bíblicos contem porâneos.

SIGNIFICAÇÃO TEOLÓGICA
DA ALIANÇA MOSAICA
Este tratam ento sum ário do relacionam ento possível de
porções do Pentateuco com os tratados de aliança hitita fornece
um a base natural para a discussão da im portância teológica da
aliança mosaica. A dispensação mosaica descansa diretam ente
sobre um relacionam ento de aliança, em vez de relacionam ento
legal. A inda que a lei desem penhe papel extrem am ente im por­
tante, tanto nas form as de tratado internacional quanto na era
mosaica, a aliança sem pre suplanta a lei.
O rec o n h e c im e n to do co n texto histórico em que as
estipulações legais funcionaram era essencial na form a de tratado
hitita. O prólogo histórico dos docum entos coloca a relação
com um do senhor conquistador com o vassalo conquistado à luz
de intercâm bios passados.5
N ada podia ser mais básico à com preensão própria da era
mosaica. O im portante não é a lei, mas a aliança. Q ualquer que
seja o conceito de lei que se possa apresentar, deverá ela perm a­
necer sem pre subserviente ao conceito mais am plo da aliança.
Esta característica toma-se mais óbvia pelo reconhecim ento
do contexto histórico em que foi revelada a aliança da lei.
H istoricam ente, a nação de Israel já estava em relação de aliança
com o S enhor através de Abraão. A narrativa do Êxodo começa

5. A sugestão d e G erh ard von Rad e M artin N oth d e que a tradição sinaitica de Israel
deve ser sep arad a das narrativas da conquista do Êxodo encontra forle oposição nos
estudos q u e co m p aram a form a de tratado hitita com o Decálogo. E m cada exem plo, a lei
e n c o n tra sua significação n u m contexto mais am plo da estrutura histórica da aliança. Para
um tratam en to d o assunto, e u m a resposta à argum entação de von Rad e N oth, ver J o h n
Bright, A History of Israel (Philadelphia, 1959), p. 115; A rth u r W eiser, The Old Testament: Its
Formation andDevelopment (NewYork, 1961), pp. 82-90.
Moisés: A Aliança da Lei 155

quando Deus ouve os gemidos de Israel e “lembra-se da sua


aliança com Abraão, com Isaque e c o m jã c ó ” (Ex 2.24). Depois
que Deus se estabeleceu com o o S enhor de Israel, através do fato
histórico da libertação do Egito, a aliança-lei do Sinai é
m inistrada. O “eu sou o Senhor vosso Deus que vos tirei da terra
do Egito, e da casa da servidão” do Decálogo oferece a m oldura
histórica essencial em que a aliança-lei sinaitica po d e ser
entendida. Com o tem sido dito:
“As leis têm seu lugar na doutrina da aliança. Yahweh escolheu
Israel como seu povo, e Israel reconheceu Yahweh como seu
Deus.” Este princípio fundamental do Velho Testamento é a
base direta dessas leis.6
Portanto, a aliança é o conceito m aior, que sem pre tom a
precedência com relação à lei. A aliança u n e pessoas; estipu­
lações legais externas representam um m odo de m inistração dos
laços da aliança.
Deus renova o com prom etim ento antigo com o seu povo
pela aliança de Moisés. A lei serve som ente com o um m odelo
único de m inistração da aliança de redenção. Estabelecido
originalm ente sob Adão, confirm ado sob Noé e Abraão, o
relacionam ento de aliança renovado sob Moisés não pode
p ertu rb ar o com prom etim ento de Deus em andam ento p o r sua
ênfase à dim ensão legal do relacionam ento da aliança.
O Caráter D istintivo da A lia n ça M osaica
Se a aliança mosaica subsiste em relação básica de unidade
com a m inistração de aliança primitiva de Deus, qual é, então, o
seu caráter distintivo? Q ue caracteriza, particularm ente, esta
m inistração de aliança? Com o se coloca ela em separado das
outras m aneiras do tratam ento de Deus com o seu povo?
A aliança mosaica m anifesta seu caráter distintivo como
sum ário externalizado da vontade de Deus. Os patriarcas
certam ente estavam conscientes da vontade de Deus em term os
gerais. De vez em quando, eles recebiam revelação direta a
respeito de aspectos específicos da vontade de Deus. E ntretanto,
com Moisés tornou-se explícito um sum ário total da vontade de
Deus através da inscrituração física da lei. Este sum ário da
vontade de Deus, externo ao hom em , form alm ente ordenado,
constitui o caráter distintivo da aliança mosaica.

6. W. G ulbrocl, “v ò jjo ç ” , TheotogjcalDictionary o fth e N m Testament (Granel Rapids, 1967),


4:1036.
156 Cristo dos Pactos

A ênfase do Pentateuco nas “dez palavras” (rrtolZ Q1-n Tin )


e a identificação explícita destas palavras com a própria aliança,
claram ente indicam que o caráter distintivo da aliança mosaica
reside neste sum ário externalizado da lei de Deus. Note-se, em
particular, a linguagem dos seguintes versículos:
“...e escreveu (Moisés) nas tábuas as palavras da aliança, as
dez palavras.” (Êx 34.28)
“E ntão vos anunciou ele a sua aliança, que vos prescreveu, os
dez m andam entos, e os escreveu em duas tábuas de pedra.”
(Dt 4.13)
“Subindo eu ao m onte a receber as tábuas de pedra, as
tábuas da aliança que o Senhor fizera convosco... ao fim de
q u aren ta dias e noites... o Senhor me deu as duas tábuas de
pedra, as tábuas da aliança.” (Dt 9.9, 11)
Estes versículos assinalam a proxim idade de identificação
entre a aliança mosaica e as “dez palavras”. Estas palavras resu­
m em a essência da aliança mosaica.
Os mesmos versículos enfatizam também o caráter exterio-
rizado da ministração da lei mosaica. O caráter da aliança mosaica,
gravado em pedra, não reflete simplesmente a m aneira pela qual
os docum entos da aliança foram preservados nos dias de Moisés.
Esta form a rígida, fria, exteriorizada, em que apareceram as
estipulações da aliança, manifesta eloqüentem ente um carac­
terístico m uito distintivo da aliança mosaica. Escreveu-se um a lei,
decretou-se um a vontade, mas esta lei permanece fora do hom em ,
exigindo conform idade. A “Lei”, tal como é usada em relação com
a aliança mosaica, não deve ser definida simplesmente como
revelação da vontade de Deus. Mais especificamente, a lei denota
um sum ário exteriorizado da vontade de Deus.
No caso da aliança de Moisés, a proem inência desta form a
exteriorizada da vontade de Deus proveria am pla justificação
para a caracterização da aliança mosaica como um a aliança de
lei. Esta caracterização tem inteiro apoio das Escrituras do Novo
T estam ento. “A lei foi dada po r interm édio de Moisés”, diz o
apóstolo Jo ão (Jo 1.17). Em sua carta aos Gálatas, Paulo
caracteriza claram ente o período de Moisés com o a época da
“lei” (G1 3.17).
Esta frase “aliança de lei” não deve ser confundida com a
term inologia tradicional que fala de um a “aliança de obras”. A
Moisés: A Aliança da Lei 157

expressão “aliança de obras” refere-se habitualm ente à situação


na criação em que se exigiu do hom em que obedecesse
perfeitam ente a Deus, a fim de entrar em um estado de bênção
eterna. C ontrariam ente a este estado estabelecido com o hom em
em inocência, a aliança mosaica da lei dirige-se claram ente ao
hom em em pecado. Esta últim a aliança jamais p reten d eu sugerir
que o hom em , p o r obediência m oral perfeita, pudesse entrar em
um estado de garantida bem -aventurança pactuai. O papel
integral de um sistema sacrificial substitucionário dentro das
provisões legais da aliança mosaica, m ui claram ente indica um a
sóbria consciência da distinção entre o tratam ento de Deus com
o hom em em inocência e com o hom em em pecado.
Com o já foi indicado, o com prom etim ento pactuai de Deus
de rem ir, do estado de pecado, um povo para si m esm o foi, com
efeito, anterior à doação da lei 110 Sinai. Israel reuniu-se no Sinai
som ente porque Deus o redim ira do Egito. Para que a aliança da
lei funcionasse com o princípio de salvação pelas obras, ter-se-ia
prim eiro de suspender a aliança da promessa.
A exteriorização concreta das estipulações da aliança escritas
nas tábuas de pedrajam ais teve a intenção de detrair da prom essa
graciosa da aliança abraâmica, com o Paulo tão apropriadam ente
argum enta. A aliança da lei, vinda 400 anos depois da promessa,
não podia possivelmente ab-rogar a aliança anterior (G1 3.17).
Não só a aliança da lei não ab-rogou a aliança da promessa;
mais especificam ente, ela não ofereceu alternativa tem porária à
aliança da prom essa. Esta perspectiva particular é muitas vezes
ignorada. Admite-se algumas vezes que a aliança da lei substituiu
tem porariam ente a aliança da promessa, ou de algum m odo
seguiu lado a lado com ela, com o m étodo alternativo de salvação
do hom em . A aliança da lei é considerada, com freqüência, como
unidade autônom a que serviu com o outra base para determ inar
a relação de Israel com Deus, no período entre a aliança
abraâm ica e a vinda de Cristo. Neste esquem a, a aliança da
prom essa é tratada com o se tivesse sido colocada de lado, ou
tornada secundária p o r certo período, em bora não “ab-rogada”.
E ntretanto, a aliança da prom essa feita com Abraão tem
estado sem pre em vigor, desde os dias do seu estabelecim ento até
o presente. A vinda da lei não suspendeu a aliança abraâmica. O
princípio enunciado em Gênesis 15.6 referente à justificação de
Abraão pela fé jamais sofreu interrupção. Através do período
mosaico de aliança-lei, Deus considerou justo todo aquele que
158 Cristo dos Pactos

creu nele.7 Por esta razão, a aliança da lei, tal como revelada no
Sinai, ficaria m elhor divorciada da term inologia de “aliança de
obras”. A “aliança de obras” refere-se a exigências legais feitas ao
hom em no tem po da inocência na criação. A “aliança da lei”
refere-se a um novo estágio no processo da revelação por parte
de Deus das riquezas da aliança da redenção. Como tal, a lei que
veio p o r interm édio de Moisés de m odo algum ab-rogou ou
suspendeu a aliança da promessa.

O L u g a r da A lia n ça da Lei n a H istória da Redenção


Três aspectos da aliança mosaica podem ser acentuados no
esforço de colocar esta aliança distintiva em seu próprio cenário
bíblico-teológico: a aliança da lei está organicam ente relacionada
com a totalidade dos propósitos redentivos de Deus; a aliança da
lei está progressivamente relacionada com a totalidade dos
propósitos redentivos de Deus; a aliança da lei tem a sua
consum ação em Jesus Cristo.
Primeiro, a aliança da lei está organicamente relacionada com a
totalidade dos propósitos redentivos de Deus. Falar de relacionam ento
orgânico é su g erir um a in terco n ex ão viva e vital em
contraposição com com partim entalização isolacionista. A clara
enunciação da vontade de Deus no tem po de Moisés não
apareceu com o algo novo na história da redenção. Ao mesmo
tem po, a lei não desapareceu depois de Moisés. A lei operou
significativamente no período que precedeu a Moisés e opera
significativamente no período posterior a Moisés. Em bora o
sum ário da lei, em form a exteriorizada, possa perm anecer como
propriedade distintiva da era de Moisés, a presença da lei através
da história da redenção deve ser reconhecida.

7. A linguagem cie M eredith Kline é enganosa neste ponto. Seu desejo de m anter a
ênfase distintiva da aliança d a lei pode ser apreciada. Mas pode-se facilm ente entender a
sua afirm ação d e m an eira legalista. Ele in terp reta Paulo com o dizendo que a aliança
sinaitica “fez a heran ça ser pela lei, não pela prom essa - não pela fé, mas pelas obras” (liy
Oath Consigned, p. 23).
O caráter distintivo d a aliança mosaica reside em sua form a exteriorizada de ministração
d a lei. Mas a lei sob Moisés não p ode ser en ten d id a com o abrindo um novo cam inho para
se alcançar a salvação p ara o povo de Deus. Israel deve m an ter a lei, não a fim de entrar na
condição favorecida d a aliança de redenção, mas a fim de continuar nas bênçãos do
relacio n am en to da aliança, depois de ter sido habilitado para fazer isto através da unidade
d e aliança com Deus alcançada exclusivam ente pela graça m ediante a fé. T anto sob a
aliança abraâm ica com o sob a mosaica o h o m em alcançou salvação pela graça p o r meio da
fé n a o b ra d e Cristo q u e devia viver e m orrer em lugar dos pecadores.
Moisés: A Aliança da Lei 159

1. A lei é im portante em toda a m inistração anterior a Moisés.


Referências à vontade de Deus e à necessidade de obediência a
essa vontade podem ser notadas em cada um a das alianças
bíblicas. Adão, enquanto recebia graciosam ente a prom essa de
um descendente salvador, devia trabalhar com o suor de seu
rosto para sustentar a vida até que o descendente viesse (Gn
3.19). N o é recebe com o parte integral da sua aliança cheia de
m isericórdia o decreto da vontade de Deus com respeito à
disposição sobre os assassinos: “Se alguém derram ar o sangue do
hom em , pelo hom em se derram ará o seu” (Gn 9.6).
De m aneira ainda mais compreensiva, a aliança abraâm ica da
prom essa edifica sobre a responsabilidade do povo de Deus com
referência à vontade revelada de Deus. A total fidelidade ao seu
S enhor exigida de Abraão req u er o envolvimento de toda a sua
vida (cf. Gn 12.1; 17.1). O patriarca devia deixar a casa de seu pai
e an d ar diante do Senhor em obediência integral.8
A contecim entos subseqüentes sob a m inistração da aliança
abraâm ica indicam ainda mais a presença da lei da aliança,
especialm ente com relação à o rd en a n ç a da selagem pela
circuncisão. De acordo com Gênesis 17.14, “o incircunciso, que
não for circuncidado na carne do prepúcio, essa vida será
elim inada do seu povo; quebrou a m inha aliança”. U m incidente
realm ente chocante em íntim a conexão com isto é o registrado
posteriorm ente em relação com a vida de Moisés. Depois de
haver recebido comissão para libertar Israel, em cum prim ento à
prom essa da aliança abraâmica, Moisés com eça sua viagem de
regresso ao Egito com sua família.
“Estando Moisés no caminho, num a estalagem, encontrou-o
o S en h o r e o quis matar. Então Zípora tom ou um a pedra
aguda, cortou o prepúcio do seu filho, e lançou-o aos pés de
M oisés e lhe disse: sem dúvida és p ara mim esposo
sanguinário.” (Ex 4.24-26).
De aco rd o com as cláusulas da aliança abraâm ica da
prom essa, Deus quase m atou Moisés po r haver ele deixado de
observar suas estipulações.9 A lei desem penhava, claram ente,
papel vital no relacionam ento da aliança.
S. C>. E. M end en h all, em “Form as de Aliança na T radição Israeliui”, “ The Biblical
Àrchaeologist, XVII (1954) 3:62, sugere que a singularidade da aliança bíblica com Abraão
reside cm su a ausência d e estipulações. Ele é com p eten tem en te respondido p o r M eredith
Kline, em Treaty of the Great King (G rand Rapids, 1963), p. 23.
9. A passagem está cheia d e afirm ações enigm áticas. A inda que perm an eçam algum as
questões, p a re c e que Moisés é a pessoa atacada pelo S enhor. Cf. com a discussão em
Brevard S. Childs, The Book o f Exodus (Phiíadelphia, 1074), pp. 95-104.
160 Cristo dos Pactos

A presença de estipulações nas alianças anteriores a Moisés


não deprecia o caráter único do código legal de Moisés.
N enhum a outra aliança podia caracterizar-se tão convincente­
m ente com o “a aliança da lei”. N enhum a designação mais
própria poderia ser aplicada à aliança mosaica. Todavia, a
presença perm anente das estipulações da aliança em toda a
ministração anterior relaciona, organicamente, a aliança mosaica
com aquela que a p reced e. A lei sim plesm ente torna-se
predom inante sob Moisés.
2. A lei é im portante em todas as ministrações subseqüentes
a Moisés.
Tanto a aliança davídica com o a nova aliança continuam a
reconhecer a im portância da lei divina na história da redenção.
No fim da época mosaica, a história de Israel começa imedia­
tam ente a mover-se “em direção ao reino”. O estabelecimento de
um a sólida m o n arq u ia p e rm a n en te em Israel realiza-se,
basicamente, com a instituição da aliança davídica. A dimensão
provisional da aliança de Deus com Davi expressa-se mui
incisivamente na época do estabelecimento da aliança. Com
respeito à linha de descendência d e Davi, diz Deus: “Q uando ele
vier a transgredir, castigá-lo-ei com a vara de hom ens...” A
m oldura em que esta punição potencial deve ser entendida é
explicada, m uito incisivamente, n a exortação que Davi, em seu
leito de m orte, dirigiu a Salomão, seu filho e sucessor.
“Aproximando-se os dias da m orte de Davi, deu ele ordens a
Salomão, seu filho, dizendo: eu vou pelo cam inho de todos
os mortais. Coragem, pois, e sê homem! G uarda os preceitos
do Senhor teu Deus, para andares nos seus caminhos, para
guardares os seus estatutos, e os seus m andam entos, e os
seus juízos e os seus testem unhos como está escrito na lei de
Moisés, para que prosperes em tudo quanto fizeres, e por
onde quer que fores, para que o Senhor confirme a palavra
que falou de mim, dizendo: se os teus filhos guardarem o seu
caminho para andarem perante a minha face fielmente, de
todo o seu coração e de toda a sua alma, nunca te faltará
sucessor ao trono de Israel.” (1 Rs 2.1-4)
Assim se vê que a lei de Moisés tem papel integral na aliança
davídica. T oda a narrativa histórica relativa aos reis de Israel pode
ser considerada como um a grandiosa verificação da promessa a
Davi, jun tam en te com a am eaça d e punição que a acompanha,
baseada nas estipulações da aliança mosaica da lei.
Moisés: A Aliança da Lei 161

Tanto os cantores salmistas quanto os profetas de Israel cantam


e profetizam da lei de Deus. “Q uanto amo a tua lei! E a m inha
m editação todo o dia”, canta o salmista (SI 119.97). “Em bora eu
lhe escreva a m inha lei em dez mil preceitos, estes seriam todos
com o coisa estranha”, lam enta o profeta (Os 8.12). De form a clara,
a lei opera de m aneira significativa no período da história de Israel
abrangido pela aliança davídica. A aliança davídica não pode ser
considerada com o operando com o um a entidade autônom a,
isolada dos decretos do Sinai. As “dez palavras” continuam a
m anter im portância prim ária para o povo de Deus.
É com respeito à nova aliança que se levantam os m aiores
problem as sobre o contínuo papel da lei. É ainda im portante a
aliança da lei p ara os participantes da nova aliança? Aplicam-se
prescrições legais aos cristãos ainda hoje? Esta difícil pergunta
será tratada prim eiro, observando-se algumas considerações
gerais que necessitam ser m antidas em m ente. Então será
considerada a evidência positiva do Novo T estam ento que
confirm a o papel da lei na vida do cristão.
Em parte, confusão e disputa sobre este tem a particular surge
de esforços p a ra e n te n d e r as afirm ações a p a re n te m e n te
contraditórias do próprio Novo Testam ento. De um lado, um a
variedade de passagens das Escrituras relativas à nova aliança
afirma claram ente:
“Porque o pecado não terá dom ínio sobre vós, pois não
estais debaixo da lei e, sim, da graça.” (Rm 6.14)
“Agora, porém, libertados da lei, estamos mortos para aquilo a
que estávamos sujeitos, de sorte que servimos em novidade de
espírito, e não na caducidade da lei.” (Rm 7.6)
“Mas antes que viesse a fé, estávamos sob a tutela da lei e nela
encerrados para essa fé que de futuro haveria de revelar-se.
De m aneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a
Cristo, a fim de que fôssemos justificados p o r fé. Mas tendo
vindo a fé, já não perm anecem os subordinados ao aio.”
(G1 3.23-25)
Por outro lado, a Escritura igualm ente afirma:
“Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas: não vim
para revogar, vim para cumprir. Porque em verdade vos
digo: até que o céu e a terra passem, nem um i, nem um til
jam ais passará da lei, até que tudo se cum pra. Aquele, pois,
que violar um destes m andam entos, posto que dos m enores,
e assim ensinar aos hom ens, será considerado m ínim o no
162 Cristo dos Pactos

reino dos céus; aquele, porém , que os observar e ensinar,


será considerado grande no reino dos céus.” (Mt 5.17-19)
“Que direm os, pois? E a lei pecado? De m odo nenhum . Mas
eu não teria conhecido o pecado, senão por interm édio da
lei; pois não teria eu conhecido a cobiça se a lei não dissera:
NÃO COBIÇARÁS.
P or conseguinte, a lei é santa, o m andam ento é santo, e justo
e bom .” (Rm 7.7, 12)

Qual é, então, o status do cristão? Tem ele obrigações com


relação à aliança mosaica da lei? O u está ele completam ente livre
da aliança da lei?
U m fator com plicante em toda esta m atéria relaciona-se com
as m aneiras variadas em que o term o (vópoç) é usado em o Novo
Testam ento. No curso de uns poucos versículos, o apóstolo Paulo
pode usar o m esm o term o de três ou quatro maneiras diferentes.
De acordo com Rom anos 3.21, ajustiça da fé tem sido testificada
pela “lei e os profetas”. O term o “lei”, nesta frase, refere-se ao
Pentateuco tido com o um a unidade literária. Mas a primeira
m etade deste m esm o versículo declara que ajustiça de Deus se
m anifestou “sem lei”. O sentido preciso do term o “lei”, nesta
frase, é difícil de determ inar. M uito provavelmente representa
um a “abreviação taquigráfica” em lugar de as “obras da lei”, em
termos da capacidade do hom em de agradar a Deus pelas suas
próprias obras de justiça (cf. v. 20, que precede imediatamente).
Mas em qualquer caso, o sentido de “lei” na prim eira metade de
Romanos 3.21 é m uito diferente do sentido do mesmo termo na
segunda m etade do m esm o versículo.
L endo um pouco adiante na argum entação do Apóstolo,
aparece um terceiro uso do term o vÓ|íoç . Em Romanos 3.27
Paulo apresenta a pergunta: “Por que ‘lei’ é a jactância excluída
do justificado?”
Agora Paulo usa o term o “lei” para referir-se a um princípio
geral. E pelo princípio da justificação pela fé que é excluída da
jactância de justiça.
Paulo parece ainda usar anteriorm ente o termo em um quarto
sentido (cf. Rm 2.21-23): Primeiro, ele cita três mandamentos do
Decálogo. Então aborda seu leitor: “Tu, que te glorias na lei,
desonras a Deus pela transgressão da lei?” Paulo parece agora usar
“lei” para referir-se mais estritamente aos Dez Mandamentos. São
as “dez palavras” que seus contem porâneos transgrediram.
Moisés: A Aliança da Lei 163

Em outros lugares, o contexto parece exigir que o term o “lei”


seja entendido com o a referir-se especificam ente a guardar a Lei
com o um m eio de justificação. Nestes casos, o term o torna-se o
equivalente da errônea interpretação dos judaizantes sobre o
papel próprio da lei n a história da redenção.
Em Gálatas 4.21, Paulo dirige-se aos que desejam viver
“debaixo da lei”. Fala aos que tentavam alcançar justiça perante
Deus m ediante a observância pessoal da lei. O apóstolo apresenta
detalhadam ente um a “fórm ula de equivalências” abarcando a
história da redenção.
Os gálatas se defrontam com duas alternativas antitéticas para
alcançar a aceitação de Deus. A prim eira retrocede sua linhagem
a Ismael, filho da escrava de Abraão, que nasceu dos esforços do
patriarca de assegurar o cum prim ento das promessas de Deus na
base de seus p róprios recursos. Esta alternativa p a ra a
justificação” manifesta-se outra vez na aliança-lei do Sinai, que
corresponde à ‘Jerusalém atual”.
E essencial entender a referência de Paulo ao Sinai no
contexto das equivalências que ele desenvolveu. A aliança da “lei”
corresponde à “Jerusalém atual”, ajerusalém dos judaizantes. E o
equívoco legalista da aliança-lei sinaitica que está na m ente do
apóstolo. A escravidão inevitavelmente resultará do ato de apelar
aos recursos hum anos naturais como um m eio de agradar a Deus.
Ismael, os judaizantes comuns, e o Israel incrédulo conjuntam ente
tornam-se escravos.
Pela m aneira com o é considerada esta “fórm ula de equivalên­
cias”, deve-se acentuar que a com preensão da lei mosaica com a
qual Paulo está co n ten d en d o não pode ser vista com o o
propósito divinam ente pretendido da entrega da lei no Sinai.
M esmo que o m em bro m édio desta prim eira tríade (Agar-Sinai-
Jerusalém atual) seja identificado com o o “M onte Sinai” (v. 25),
não representa o verdadeiro propósito da doação da lei sinaitica.
Esta afirmativa se apóia no claro propósito da outorga da Lei,
tal com o explicado por Paulo em Gálatas 3.24. O propósito da lei
era levar a Cristo, não afastar de Cristo. O efeito da lei sobre os
judaizantes contem porâneos não foi de acordo com o propósito
de Deus ao dar a lei. Pela leitura da lei em termos de um a form a
alternativa de salvação, o Judaísm o contem porâneo cegou-se à
verdadeira intenção de Deus ao dar a lei.
O verdadeiro propósito de outorga da Lei de Deus no Sinai não
encontrou sua manifestação apropriada nos judaizantes do primeiro
164 Cristo dos Pactos

século. O orgulho deles os levou a perverter o propósito de Deus em


outorgar a Lei. Ao invés de servir para convencê-los da absoluta
impossibilidade de agradar a Deus mediante a observância da lei, a
lei fom entou neles um a determinação profundamente entrin­
cheirada de depender dos seus recursos pessoais a fim de agradar a
Deus. Assim, a lei não serviu aos propósitos da graça de levar os
judaizantes a Cristo. Em vez disso, alijou-os de Cristo. A “lei” e o
“Sinai”, neste contexto, devem referir-se ao equívoco legalista do
propósito de Deus de outorgar a Lei antes que à apreensão apro­
priada da revelação da lei por parte de Deus.
A “fórm ula de equivalências” contrária avança de Sara,
m ulher livre, através da aliança da promessa, até a “Jerusalém lá
de cima”. A soberana e graciosa intervenção de Deus na vida do
pecador produz, invariavelmente, filhos que são livres.
Pode-se reconhecer que alguma coisa na forma de ministração
legal prestou-se a um fácil mau entendimento do seu propósito
próprio na redenção do homem. A forma exteriorizada, codiÊcada,
da lei veio a ser prontam ente entendida como oferecendo um outro
caminho de vida que não o do princípio da fé cristalizado sob
Abraão. Era possível entender a lei propriamente como um mestre
que conduziria a Cristo mediante crescente consciência do pecado.
O u era possível entender mal a lei como um feitor que se afastou de
Cristo, desviando a concentração da justificação pela fé para
justificação pelas obras. E esta última perspectiva que o apóstolo tem
em m ente quando se dirige aos que desejam viver “debaixo da lei”.
“Lei, neste contexto, indica a incompreensão do propósito da lei, tal
como refletida nos esforços equivocados de Abraão de prover um
filho po r si mesmo e nos esforços dos judaizantes de prover
justificação por eles mesmos.
Até esta altura, têm-se notado diversos usos diferentes de “lei”
em Paulo. Outros sentidos mais refinados podem ser admitidos. E
claro que é necessário tomar extrem o cuidado no avaliar as
afirmações bíblicas sobre o papel da “lei” na vida do cristão.
Q uando o Novo Testam ento afirma taxativamente “vós não estais
debaixo da lei, e, sim, da graça” (Rm 6.14), claramente não quer
significar “vós não estais debaixo do Pentateuco”. Não significa:
“Não estais debaixo dos Dez M andam entos.” M uito prova­
velmente, no contexto de Romanos 6, significa: “Vós não estais
debaixo da aliança mosaica como um princípio que faria a justiça
d epender dos recursos pessoais do indivíduo como observador da
lei.”
Moisés: A Aliança da Lei 165

U m passo positivo no sentido de resolver a difícil questão da


relação do cristão com a lei pode ser dado notando-se mais um a
vez o caráter distintivo da ministração da lei enfatizada sob Moisés.
Sob a aliança mosaica, a lei apareceu com o sumário exteriorizado
da vontade de Deus. O cristão não vive debaixo de um a
exteriorizada ministração da lei gravada em tábuas de pedra. Ao
invés disto, ele vive com a lei escrita em seu coração. Ainda que o
cristão esteja sem pre obrigado a refletir a santidade e a justiça
requeridas na lei de Deus, ele não mais se relaciona com esta lei
com o um código impessoal que perm anece fora dele. Em vez
disto, o Espírito de Deus m inistra constantem ente a lei dentro do
coração do crente.
Esta com preensão do assunto empresta reconhecim ento à
form a evanescente da ministração da Lei debaixo da aliança
mosaica, enquanto tam bém trata seriam ente da perm anente
importância da essência dessa mesma lei. Ainda que esta explicação
possa não satisfazer todos os problemas que surgem da relação do
cristão com a lei, oferece um a área frutífera de reflexão.
Em acréscimo a estas considerações gerais, é im portante
apresentar a evidência positiva do Novo Testam ento que afirma o
significado perm anente da aliança mosaica da lei.
Antes de mais nada, a evidência presuntiva favorece o
perm anente significado da essência, e até mesmo da form a da
aliança da lei mosaica nos dias presentes. A luz da Escritura é
óbvio que os hom ens hoje continuam debaixo das cláusulas de
outras ministrações da aliança da redenção. O texto de Romanos
16.20 refere-se ao esm agam ento final da cabeça da serpente
debaixo dos pés do cristão. A linguagem claram ente indica a
p erm anente significação da aliança de Deus com Adão. 2 Pedro
3.5-7 m ostra o significado do julgam ento de Deus sobre os ímpios
nos dias de Noé, e apela à palavra da aliança falada a Noé, que
preserva atualm ente a terra.
A designação de Abraão como “o pai de todos nós” (Rm 4.16,
17) indica o significado hoje da promessa da aliança a respeito de
um a descendência inumerável. Mesmo hoje, a “raiz de Jessé”
governa com o a esperança dos gentios, de acordo com a aliança
com Davi (Rm 15.22). Estas referências ao p e rm a n en te
significado das alianças com Adão, Noé, Abraão e Davi, até o
presente, poderiam ser grandem ente desdobradas.
Devemos nós concluir que todas as várias m inistrações
pactuais do Velho Testam ento têm significado perm anente para
166 Cristo dos Pactos

o crente hoje, com a única exceção da aliança mosaica? Devemos


presum ir que só a aliança da lei, entre as alianças divinamente
iniciadas, perdeu sua significação de obrigatoriedade?
Pelo contrário, a inferência favoreceria o p e rm an en te
significado da aliança mosaica para o crente de hoje. Aquelas
outras alianças desem penham papel vital na rida dos crentes. Será
a aliança da lei mosaica tão m aterialm ente diferente que não
possa tam bém continuar a desem penhar papel im portante na
rida do crente da nova aliança? Ainda que um argum ento desta
natureza possa não ser conclusivo em si mesmo, terá algum
propósito. A inferência favoreceria a im portância perm anente da
aliança mosaica da lei.
Várias outras considerações estabelecerão mais concretamente
o significado perm anente das estipulações da aliança da lei para o
cristão. Ainda que a form a exteriorizada da aliança mosaica possa
ser substituída pelas realidades interiores da nova aliança, a essência
central da aliança da lei entra vitalmente na vida do crente hoje.
Notem-se, em particular, as seguintes observações.
(a) Tem-se dito repetidam ente aos cristãos que seu estado
pleno de bênçãos decorre de sua observância cia lei de Deus.
Numerosas exortações nas cartas de Paulo pressupõem a neces­
sidade da observância dos m andam entos de Deus. Até mesmo a
prom essa de vida dilatada, associada com o quinto m andam ento,
é m antida com o prom essa de Deus aos filhos da nova aliança. Se
eles cum prirem o m andam ento de honrar pai e mãe, receberão a
bênção distintiva de Deus (Ef 6.1-3). Esta mesma atitude é
refletida de m aneira enfática po r Cristo, no fim do sermão do
m onte. Não é aquele que ouve, mas o que observa as palavras de
Cristo que será abençoado pela firmeza de fundam ento (Mt 7.24-
27). N enhum leitor pode entender mal a exortação de Tiago:
“Tornai-vos, pois, praticantes da palavra, e não somente ouvintes,
enganando-vos avós mesmos” (Tg 1.22).
Debaixo da nova aliança, o Espírito Santo opera da m aneira
m ui vital no sentido de conduzir o crente a conformar-se com a
vontade de Deus. Mas o crente é ativamente responsável em fazer
uso dos meios de graça ao seu alcance. Sc não obedece à lei de
Deus, não viverá em estado de mais pleno gozo das bênçãos de
Deus.
(b) Os cristãos que vivem em iniqüidade são castigados pelo
Senhor. O escritor aos H ebreus aplica diretam ente aos crentes
do Novo T estam ento um a advertência do Velho Testamento:
Moisés: A Aliança da Lei 167

“Porque o Senhor corrige a quem ama, e açoita a todo filho a


quem recebe” (H b 12.6). Paulo sacode os cristãos de Coríntios
pelo seu procedim ento irresponsável na m esa do Senhor. Muitos
deles estavam fracos e enfermos, enquanto outros sofriam o juízo
da m orte p o r causa dos seus pecados (1 Co 11.30-32).
Tais referências à atividade disciplinadora do Senhor não
seriam concebíveis em separado da im portância p erm anente da
lei para o povo de Deus. A realidade da atividade disciplinadora
entre os cristãos hoje serve de prova indisputável de que os
crentes vivem debaixo da obrigação perm anente de fazer a
vontade de Deus.
(c) Os cristãos serão julgados de acordo com as suas obras. A
Escritura é m uito consistente a este respeito.10 Em bora a salvação
seja exclusivamente pela fé na obra de Cristo, o julgam ento será
de acordo com as obras do próprio hom em , sejam boas ou más.
Desde que as “dez palavras” da aliança mosaica oferecem um
sum ário básico da vontade de Deus, sua perm anente significação
n a vida do crente está assegurada.
A aliança mosaica da lei relaciona-se organicam ente com a
totalidade dos propósitos redentivos de Deus. Jam ais deve ser
considerada com o um apêndice à m anifestação da revelação
redentiva. Pelo contrário, a lei desem penha papel significativo
em cada fase da história da redenção.
Em segundo lugar; a aliança da lei está progressivamente relacionada
com a totalidade dos propósitos redentivos de Deus. U m segundo
aspecto im portante da aliança mosaica deve ser notado, para que
esta m inistração distintiva da graça de Deus na salvação seja
colocada de acordo com o seu próprio cenário bíblico-teológico.
A aliança da lei não apenas se relaciona organicam ente, mas
tam bém relaciona-se progressivam ente com a totalidade dos
propósitos redentivos de Deus.
A caracterização da revelação da lei de Deus com o ajustando-
se no desdobram ento progressivo da vontade de Deus não
p reten d e sugerir, de m aneira nenhum a, que a revelação foi
deficiente em qualquer ponto. Pelo contrário, a progressão da
revelação bíblica oferece reconhecim ento apropriado à mais
plena manifestação da verdade de Deus em cada época sucessiva.
Para provar a relação progressiva da aliança da lei com a
totalidade da revelação de Deus, devem-se estabelecer dois pontos.

10. Cf. com Leon Morris, The BihlicalDoctrire ofJadgmeM (Granel Rapicls, 1960), pp. 66s.
168 Cristo dos Pactos

Primeiro, deve-se m ostrar que a aliança mosaica representa avanço


que vai além de todos os tratam entos anteriores de Deus para com
o seu povo. Em segundo lugar, deve-se estabelecer que a era da
legislação mosaica representa um estágio menos m aduro da
manifestação dos propósitos de Deus na redenção do que os
desenvolvimentos que se seguem.
1. A aliança m osaica é um avanço que vai além de todas as que
a precederam .
Prim eiro, então, a aliança mosaica representa um avanço que
vai além de todo o tratam ento anterior de Deus com o seu povo.
Este avanço não se relaciona com algum aspecto incidental da
aliança mosaica. O avanço não é feito m eram ente na periferia da
aliança, afetando apenas as suas bordas. Ao invés disto, o avanço
se relaciona com o próprio coração e cerne do elem ento
distintivo do m osaísm o. Com ap resen tar um sum ário
exteriorizado da vontade de Deus, a aliança mosaica avança
positivam ente à reveíação dos propósitos de Deus na redenção.
Muitas vezes se faz a sugestão de que o povo de Deus estava em
m elhor condição sob a aliança abraâm ica da promessa do que sob
a aliança mosaica da lei. Em vez de aceitar precipitadam ente a
aliança condicional m ediada p o r Moisés, Israel deveria antes ter
suplicado hum ildem ente no Sinai o “continuado relacionam ento
da graça”.11 Tal sugestão implicaria claram ente que Israel estava
em m elhor situação debaixo dos term os da aliança abraâmica do
que dos term os da aliança mosaica.
O conceito de um a progressão contínua na manifestação da
verdade redentiva de Deus não pode perm itir tal movim ento de
retrocesso. Diversos pontos podem ser notados em particular que
m ostram que a revelação da lei sob Moisés foi um avanço claro
sobre as m inistrações anteriores de aliança.
(a) Na sua nacionalização do povo
A aliança da lei representa avanço na nacionalização do povo
da aliança. Até esta altura, o tratam ento de Deus tinha siclo com
um a família. Agora, ele estabelece aliança com um a nação. Tal
aliança nacional seria impossível sem lei ex tern am en te
codificada.
O contexto im ediato da cerim ônia de ratificação da aliança de
Moisés enfatiza esta form ação de Israel eni um a nação que devia
ser de Deus mesmo. Escolhem-se entre o povo setenta anciãos
] 1. C. I. Scofield, Rightly D ivklm g the Woid ofTrulh (New York, 1023), p. 22.
Moisés: A Aliança da Lei 169

representativos (Èx 24.1). Erguem -se doze pilares p ara


representar as 12 tribos de Israel (Ex 24.4). O efeito dessa
cerim ônia form al já tinha sido solenizado pelas palavras anteriores
de Deus dirigidas a Israel po r interm édio de Moisés:
“Agora, pois, se diligentem ente ouvirdes a m inha voz, e
g u ard ard es a m inha aliança, então sereis a m inha
p ropriedade peculiar dentre todos os povos; porque toda a
terra é m inha. Vós me sereis reino de sacerdotes e nação
santa. São estas as palavras que falarás aos filhos de Israel.”
(Êx 19.5, 6)
A revelação definitiva da vontade de Deus para conduzir o
seu povo era essencial à solidificação nacional deste povo para ser
o povo cio próp rio Deus.
(b) Em inclusividade
A aliança da lei representa avanço na com preensividade da
revelação da vontade de Deus. As “dez palavras” contêm um
su m á rio c o m p ie to da vontade c)e Deus. R e c e b e n d o essa
revelação mais ampla, Israel se coloca em relação m uito m elhor
p ara com o Deus da aliança.
Algumas formas de perfeccionism o podem deleitar-se na
libertação de “todo pecado conhecido”. Não se pode im aginar
estado mais perigoso. O pecado estará sem pre presente n a vida
do povo de Deus, até a consumação. E m uito m elhor para o povo
de Deus estar perfeitam ente consciente da natureza precisa dos
seus pecados particulares do que c o n tin u a r a p ecar n a
ignorância. A lei de Deus presta-se com o ferram enta especial
para fazer seu povo com preender a natureza dos seus pecados.
Por esta razão, a revelação mais com pleta da vontade de Deus
na aliança m osaica deve ser considerada com o grande dádiva. O
cristão não deve olhar de soslaio para o judeu antigo que
considerava a lei como um grande raio de luz no m eio das trevas
do paganism o. Talvez ten h a m érito, pelo m enos de um a
perspectiva, o dito antigo que se originou da escola de Hillel:
“O n d e há m uita carne, há muitos vermes; onde há m uito
tesouro, h á m uita preocupação; onde há muitas m ulheres, há
grande superstição; c onde há m uita lei, há m uita vida.”12
(c) Na capacidade de tomar humilde
A aliança da lei representa um avanço sobre a que precede
em seu p o d e r de tornar os hom ens hum ildes, preparando-os,

12. Giuido cm H. N. Ridderbos, VV7um the TimeHadFully Come (G rand Rapids, 1957), p. 63.
170 Cristo dos Pactos

assim, para as riquezas da graça de Cristo. O apóstolo Paulo


enfatizou acertadam ente este papel im portante da lei, que pode
ser considerado com o algo parecido a um a “bênção pelo avesso”.
Paulo observa que a lei foi adicionada “por causa das
transgressões, até que viesse o descendente...” (G1 3.19). Como
reveladora do pecado, a lei supre um serviço vital à aliança
abraâmica da promessa. Expondo totalm ente a inadequabilidade
do hom em para estabelecer sua própria justiça m ediante a
observância da lei, a aliança mosaica contribuiu para a causa da
graça redentiva.
(d) Em significação tipológica
A aliança da lei representa um avanço em sua significação
tipológica. Os preceitos da lei ofereceram um esboço para o tipo
de vida esperada para o povo santo de Deus. Embora Israeljam ais
tenha atingido as potencialidades completas desse tipo de
santidade, a lei, não obstante, serviu para traçar o padrão de vida
desejada para o povo de Deus. Referidas potencialidades devem
ser caracterizadas p o r um a vida que reflita a santidade do Deus
da aliança.
Portanto, pode-se concluir que a aliança mosaica da lei foi um
avanço sobre a aliança abraâmica da promessa. Aquilo que era a
própria essência da aliança mosaica representou um passo de
progresso nos propósitos redentivos de Deus.
Conseqüências m uito sérias inevitavelmente decorrerão da
negação de que a revelação de Deus progride consistentemente
através da história redentiva. Pode-se adm itir muito prontam ente
que a chegada do delineam ento com pleto da vontade de Deus
tr ouxe com ela problem as que não tinham existido previamente.
Pergunte-se a qualquer pai desesperado de um adolescente
m oderno se considera o estado da adolescência como um avanço
sobre a infância. O pai pode hesitar em responder im ediata­
m ente, enquanto considera a m ultiplicidade de problem as
envolvidos na chegada abrupta dos anos da adolescência. Mas, no
fim, não poderá negar que o jovem desengonçado está m uito
mais perto da sua plena realização de virilidade do que a criança.
De m aneira justam ente idêntica, a confiança infantil de
Abraão pode parecer que tem vantagens definidas sobre a
freqüentem ente desordenada aventura de Israel debaixo da lei.
Todavia, o estudioso paciente da E scritura detectará um
progresso definido em direção ao alvo de Cristo.
Moisés: A Aliança da Lei 171

Não é isto, basicam ente, a substância do exem plo em pregado


p o r Paulo em Gálatas 3.23-26? A lei é o pedagogo, um discipli-
n ad o r exteriorizado, para levar-nos a Cristo. Com o adolescentes
sob um tutor, assim era a condição de Israel debaixo da lei.
Todavia, a sua condição debaixo da lei era passo vital de avanço
sobre a infância que a tinha precedido.
2. A aliança m osaica é m enos do que tudo que a sucedeu.
Em segundo lugar, a aliança mosaica representa um estágio
de m aturidade m en o r da m anifestação dos propósitos de Deus
n a redenção do que tudo o que se segue. Revela m enos da
verdade de Deus do que a aliança davídica ou a nova aliança.
A aliança de Deus com Davi incorpora claram ente um
avanço sobre Moisés n a revelação da lei. Particularm ente, o
estabelecim ento p e rm an en te de um rei representativo sobre
Israel indica um avanço em m inistração legal. Moisés m esm o
pode ter incorporado traços de um representante real do Deus
da aliança. Mas não foi incluído n e n h u m princípio perm an en te
de conservação da sucessão na legislação mosaica. No fim do
perío d o da liderança de Josué, Israel desintegrou-se no período
tum ultuado dos juizes. Não foi estabelecida antes da palavra da
aliança de Deus com respeito à casa de Davi qualquer segurança
de estabilidade m antida dentro da teocracia. Com a unção de
Davi, a lei com eçou a ser m inistrada em Israel p o r “um hom em
segundo o coração de D eus”.
A localização do tro n o de Deus no conjunto Sião/Jerusalém
representa tam bém um avanço além das revelações precedentes
da lei de Deus em Israel. O santuário móvel de Moisés foi
substituído p o r um a situação mais estável. Sob Davi, o governo de
justiça de Deus estabeleceu-se de m aneira perm anente.
A inda mais incisivamente, deve-se salientar que a aliança de
Moisés é m enos do que a nova aliança em sua m anifestação do
papel da lei de Deus n a vida do povo da aliança. A ênfase na
Escritura acentua o novo m odo pelo qual a lei de Deus é
m inistrada debaixo da nova aliança. Debaixo da velha aliança, a
lei veio através das tábuas de pedra. Mas, agora, a aliança é
m inistrada de m aneira dram aticam ente nova.
A descrição da nova aliança no livro de Jerem ias enfoca o
caráter distintivo deste novo m odo de m inistrar a lei de Deus:
“Porque esta é a aliança que firm arei com a casa de Israel,
depois daqueles dias, diz o Senhor. Nas m entes lhes
im p rim irei as m inhas leis, tam bém no coração lhas
172 Cristo dos Pactos

inscreverei; eu serei o seu Deus e eles serão o m eu povo. Não


ensinará jamais cada um ao seu próxim o, nem cada um ao
seu irm ão, dizendo: Conhece o Senhor, porque todos me
conhecerão, desde o m enor até o m aior deles, diz o Senhor.
Pois, perdoarei as suas iniqüidades, e dos seus pecados
jamais me lem brarei.” (Jr 31.33, 34)
O caráter distintivo do m inistério da lei debaixo da nova
aliança reside em sua natureza interna. Em vez de ser ministrada
externam ente, a lei será m inistrada de dentro do coração. De
acordo com Jeremias, a conseqüência será que não restará
n e n h u m a necessidade para a apresentação exteriorizada da lei
de Deus. T odos o c o n h e ce rão e todos se conform arão
naturalm ente com a sua vontade. M uito obviam ente, a escrita
em tábuas de p e d ra da aliança mosaica não pode comparar-se
com as glórias dessa nova aliança.
Vários problem as surgem com respeito à apreensão do
sentido pleno desta palavra profética de Jeremias. Com o sc deve
relacionar esta declaração com as outras passagens que associam
a escrita in tern a da lei com a própria ministração da aliança
mosaica? Com o se relaciona a afirmação de Jerem ias com
respeito à ausência da necessidade de um m inistério docente
com o estado real dos crentes hoje debaixo da nova aliança?13
Perguntas com o estas enfatizam a necessidade de manter-se
um equilíbrio entre a unidade harm onizadora de um a única
aliança de redenção e a sua diversidade histórica.
A experiência da vida do crente em qualquer época terá
sem pre um relacionam ento direto com a revelação que se fez
acessível até esse ponto. A auto-revelação de Deus através dos
tem pos pode ser considerada como “m atéria-prim a” usada pelo
Espírito Santo p a ra aplicar os benefícios da redenção à
experiência de vida do crente. Por esta razão, o avanço na
revelação implica avanço na experiência de vida. O crente,
debaixo da velha aliança, pode ter experim entado, em essência,
as mesmas realidades de redenção experim entadas pelo crente
debaixo da nova aliança. Mas revelação aum entada implica
tam bém experiência mais profunda e mais rica da libertação do
pecado e suas conseqüências.
Questões associadas com a realidade da novidade da nova
aliança devem ser consideradas nesta estrutura. Porque o Cristo veio
agora em form a encarnada, o grau de intensidade da revelação se

13. CX com D eu lero n ô m io 6.6; 30.14; Salmo 37.31; 40.8; 119.11.


Moisés: A Aliança da Lei 173

inflou muito além das circunstâncias prevalecentes em épocas


históricas pretéritas. As Escrituras da nova aliança tom am agora
acessíveis à igreja, em form a perm anente, um a interpretação
inspirada por Deus dos magníficos benefícios que se tom aram
disponíveis pela vinda de Cristo. A revelação mais completa acessível
hoje traz com ela um a experiência mais rica da graça da redenção.
U m a passagem de igual im portância para a declaração clássica
de Jerem ias que m ostra a superioridade da nova aliança sobre a
m inistração mosaica da lei acha-se em 2 Coríntios 3. Nesta
passagem da Escritura, Paulo indica m ui claram ente que a aliança
mosaica da lei é m enos do que a nova aliança que a sucedeu.
Nesse capítulo Paulo expõe para o crente do Novo Testam en­
to três símbolos que apareceram em conexão com a instituição
da aliança mosaica. Cada um desses símbolos corporifica um a
verdade prim ária com respeito à velha aliança e, ao m esm o
tem po, oferece um a base de com paração com a nova aliança. Os
três símbolos são: (a) o símbolo da glória do rosto de Moisés; (b)
o sím bolo da glória evanescente do rosto de Moisés, e (c) o
sím bolo do véu que cobriu o rosto de Moisés.
(a) O símbolo da glória do rosto de Moisés
Paulo refere-se ao sím bolo da glória da face de Moisés em 2
Coríntios 3.7ss.:
“E se o m inistério da m orte, gravado com letras em pedra, se
revestiu de glória, a ponto de os filhos de Israel não
pod erem fitar a face de Moisés, p o r causa da glória do seu
rosto, ainda que desvanecente, com o não será de m aior
glória o m inistério do Espírito? Porque, se o m inistério da
condenação foi glória, em m uito m aior proporção será
glorioso o m inistério d aju stiça.” (2 Co 3.7-9)
O fato de que a face de Moisés irradiava a glória de Deus no
tem po em que foi dada a lei simbolizou claram ente a grandeza
da velha aliança. Paulo jamais trata a velha aliança de m aneira
depreciativa. M uito ao contrário, ele atribui plena h o n ra à
aliança mosaica com o dispensação instituída por Deus.
E ntretanto, Paulo não se detém com o reconhecim ento da
glória da aliança mosaica. Continua, ressaltando que a glória da
nova aliança excede à glória da velha aliança. De fato, a glória da
velha aliança deve ser reconhecida como tendo sido empalidecida
em im portância pela glória superior da nova aliança:
174 Cristo dos Pactos

“Porque, na verdade, o que outrora foi glorificado, neste


respeito já não resplandece, diante da atual sobreexcelente
glória.” (2 Co 3.10)
A inda que a velha aliança tivesse tido a sua glória, não podia
ela comparar-se com a glória m aior da nova aliança.
As “glórias” comparativas dessas duas épocas relacionam-se
com aquilo que cada aliança ministrava. Em bora um a revelação
de Deus que veio em glória, a velha aliança m inistrou “m orte” e
“condenação”. P or causa da eficácia da lei em revelar o pecado,
ela sujeitou o hom em à maldição.
Em contraste agudo, a nova aliança pode ser caracterizada
com o um “ministério do Espírito”, um “ministério de justiça”. Ao
invés de trazer condenação e m orte em sua esteira, a nova aliança
opera justiça e vida. A superioridade desta aliança que conduz à
consumação reside não m eram ente em ter tido ela alguma
característica material de m aior glória. Em vez disto, aquilo que a
nova aliança efetua é o que proclamíi ao m undo a sua m aior glória.
(b) O símbolo do desvanecimento da glória do rosto de Moisés
Paulo com enta, em segundo lugar, o símbolo do desvane-
cim ento da glória da face de Moisés. Em 2 Coríntios 3.7, 13,
Paulo observa que a glória da face de Moisés desvaneceu-se. Sua
interpretação do sentido desse desvanecer aparece no versículo
11, onde o m esm o term o usado para descrever o declínio da
glória da face de Moisés (Kcrrapyéoj) é aplicado a toda a aliança
mosaica da lei: “Porque, se o que se desvanecia [i.e., a ministração
sob Moisés] teve sua glória, m uito mais glória tem o que é
perm an en te [i.é., a m inistração da nova aliança].” Não som ente
foi a glória da velha aliança sim bolicamente representada no
tem po em que foi dada a lei; o caráter provisório e transitório da
velha aliança recebeu tam bém representação simbólica. O
em palidecer da radiância de Moisés retrata sim bolicam ente o
desvanecim ento da m inistração da lei.
Esse caráter desvanecente da m inistração mosaica contrasta
com a perm anência da nova aliança. A nova aliança supera a
velha aliança não som ente na grandeza da sua glória; supera
tam bém na perm anência dessa glória. A nova aliança é “a que é
p e rm an en te” (v. 11).
(c) O símbolo do véu do rosto de Moisés
O terceiro sím bolo presente ao ser dada a lei relaciona-se
com o véu do rosto de Moisés:
Moisés: A Aliança da Lei 175

“Tendo, pois, tal esperança, servimo-nos de m uita ousadia


no falar. E não somos como foi Moisés, que pu n h a véu sobre
a sua face para que os filhos de Israel não atentassem para a
term inação do que se desvanecia. Mas os sentidos deles se
em botaram . Pois até ao dia de hoje, quando fazem a leitura
da antiga aliança, o mesmo véu perm anece, não lhes sendo
revelado que em Cristo é removido. Mas até hoje, quando é
lido Moisés, o véu está posto sobre o coração deles.”
(2 Co 3.12-15)
Paulo não pára sim plesm ente ao reconhecer, pragmati-
cam ente, a presença de um véu n a seqüência da doação da lei.
Oferece um a interpretação m uito p rofunda do valor simbólico
do véu em pregado po r Moisés. Mais longe ainda, Paulo afirma a
p erm anente presença desse véu simbólico no m eio do Judaísm o
atual.
Observemos cuidadosam ente o versículo 14: “... pois até o dia
de hoje... o m esm o véu perm anece na leitura da velha aliança,
não lhes sendo revelado que em Cristo é rem ovido.” Observemos
que é o “m esm o” véu ( o í ú t ó ç ) que apareceu nos dias de Moisés
que continua até o presente. Paulo não p retende sugerir que
ainda existe um a velha relíquia de 1500 anos de idade. N em tam ­
pouco p reten d e evocar algum a interpretação alegórica do véu de
Moisés. Em vez disto, deseja apenas expor a significação original
do “m esm o véu”.
Qual é o efeito de um véu? G eralm ente um véu im pede que
algum a coisa seja revelada.
Q ue é que o véu simbólico de Moisés im pede de ser revelado
a Israel ainda hoje? Paulo responde explicitam ente a esta
pergunta no versículo 14: “... o m esm o véu perm anece, não lhes
sendo revelado... que (i. é., a velha ministração da lei) em Cristo é
rem ovido.”14A coisa trágica a respeito do Judaísm o no tem po de
Paulo foi que ele não com preendeu o caráter transitório da
dispensação mosaica. O Judaísm o com preendeu corretam ente a
glória da velha aliança. Mas não percebeu o caráter desvanecente
daquela glória. Portanto, o véu simbolizou a cegueira de Israel
com relação à transitoriedade e ao caráter desvanecente da
aliança mosaica. Não pôde ver o fim da lei que devia ser cum prida
em Cristo.

14. Seria p u ra conversa desconexa eq u acio n ar o sujeito de “retirado” com o véu, desde
que o véu é o sujeito d e “p erm a n e c e r” na cláusula im ediatam ente p recedente. Paulo
estaria e n tã o d izendo q u e o véu da cegueira deles ainda p erm anece, u m a vez que o véu da
cegueira deles foi retirado.
176 Cristo dos Pactos

Geralm ente se supõe que a função do véu de Moisés era


proteger Israel da intensidade excessiva da glória do seu rosto.
Esta interpretação parece concordar com a declaração em 2
Coríntios 3.7. Neste versículo, Paulo lem bra aos coríntios que a
velha aliança veio em glória, “a ponto de os filhos de Israel não
poderem fitar a face de Moisés, p o r causa da glória do seu rosto,
glória que era desvanecente”.
E n tre tan to , diversas considerações ap ontam em o u tra
direção para a análise da significação do véu de Moisés na
narrativa do Sinai.
Prim eiro, a estrutura desse versículo coloca ênfase sobre o
caráter desvanecente da glória da face de Moisés.15 A face de
Moisés, n a verdade, estava radiante; mas, o que marcava o seu
sem blante era um a radiância desvanecente.
Em segundo lugar, não se faz qualquer m enção do véu de
Moisés, nem de sua função, neste versículo. Posteriorm ente, em
sua discussão, Paulo indica a função do véu. Moisés colocou o véu
sobre a sua face “p ara que os filhos de Israel não atentassem para
a term inação do que era desvanecente” (v. 13). Em bora o sentido
desta frase seja vigorosam ente controvertido, a posição mais
convincente parece ser que Paulo está dizendo que Moisés
colocou seu véu p ara que os filhos de Israel não contem plassem
a sua face, enquanto a glória estava se desvanecendo.
Em terceiro lugar, um a olhada mais cuidadosa em Êxodo
34.29-35 apóia firm em ente o ponto de vista que entende o véu
com o escondendo o caráter desvanecente da glória de Moisés, em
vez do caráter excessivo da sua glória.
De acordo com Êxodo 34, o Moisés radiante apareceu
prim eiro perante o povo que fugiu dele (w. 29, 30).16 Este m edo
da parte do povo não implicava necessariam ente que a glória era
tão intensa que o povo não podia suportá-la. O próprio fato de
raios de luz serem emitidos pelo rosto de Moisés ofereceria base
adequada para despertar terror em seus corações. Na verdade, o
povo voltou a Moisés quando ele o convocou, e ele se colocou na
sua presença sem véu enquanto lhe entregava a lei (w. 31, 32).

15. A separação cia caracterização adjetiva da glória de Moisés do substantivo que ela
m odifica enfatiza o caráter desvanescente da glória. Cf. com F. Blass e A. D ebrunner, A
G reek G ram m ar o f the New T estam en t (Chicago, 1961), n (J 473.
16. O texlo realm ente diz que a pele d a face de Moisés ficou “provida de chifre”. O uso
do term o "Qj? em hebraico, refletido na Vulgata Latina, oferece, evidentem ente, a origem
das representações artísticas posteriores de um Moisés com chifres projetados de sua cabeça.
Moisés: A Aliança da Lei 177

O texto indica explicitam ente que Moisés com pletou o ato de


dar a lei ao povo antes de p ô r o seu véu. Som ente depois de haver
Moisés term inado de falar ao povo é que pôs o véu sobre a sua
face (v. 33)17
A narrativa passa a indicar o m odelo pelo qual Moisés
entregou a lei ao povo em suas várias partes (w. 34, 35). Moisés
voltaria à presença do Senhor, tiraria o véu, e receberia um a
porção adicional d a revelação da lei. O texto é bastante explícito
quanto ao fato de que o povo (habitualm ente) veria a pele do
rosto de Moisés que resplandecia (v. 35). Depois de transm itir
sua m ensagem , Moisés recolocaria o véu sobre o rosto (v. 34).18
Na sua exposição desta passagem, Paulo m ostra incisiva­
m ente que a glória da face de Moisés se estava desvanecendo em
intensidade. Com o determ inou ele este fato? N ada na narrativa
de Êxodo 34 m enciona explicitam ente que a glória da face de
Moisés jamais se desvaneceu.19
P aulo, a p a re n te m e n te , d ed u ziu o fato do caráter
desvanecente da glória da face de Moisés da função do véu na
narrativa. Moisés estava repetidam ente pondo o véu, diz Paulo,
para que Israel não atentasse na term inação do que se desvanecia
(2 Co 3.13).
E difícil determ inar o grau de significação que o povo de Israel
percebeu do símbolo do véu de Moisés.20 Paulo interpreta o simbo­
lismo do véu em termos da cegueira de Israel com relação ao
caráter transitório da lei mosaica (v. 14).

17. P ara u m a discussão com pleta do sentido da construção hebraica com o m ostrando
que Moisés co m p leto u sua com unicação da lei antes de p ô r o seu véu, ver U m berto
Cassuio, A Commentaiy on the Book of Exodus (Jerusalém, 1067), p. 450 e sua extensa
discussão d a força d e “e ele te rm in o u ” (bo'.D em A Commentary on the Book ofGenesis, Part I
(Jerusalém , 1961), pp. 61s.
A LXX é bastante incisiva: Kai è íra ò ri KaTÉTTaoae ÀaÀwv irpòç ccutoúç, £TT£0r)K£v zm
t ò TTpòawrrov auTou KáAujj|aa.
18. N o tar a ênfase co rre sp o n d en te de Paulo com respeito à m aneira habitual de Moisés
p ô r o seu véu. Moisés “estava p o n d o ” ( £TÍ0£i) um véu sobre sua face, para que os filhos
d e Israel n ão pudessem ver o íim daquilo que se estava desvanecendo (2 Co 3.13).
19. Os rabinos realm en te concluíram que a glória da face de Moisés nu n ca se desvaneceu,
mas p erm an eceu com ele até a m orte, e m esm o depois da m orte, em sua sepultura. Cf. com
I Ie n n a n n L. Strack e Paul Billerbeck, em Kominentar Zum Neuen Testament Aus Talmud and,
Midrasch (M ünchen, 1926), 3: 515.
20. Philip E dgcum be H ughes, em P auis SecondEjnsile to the Corinthians (G rand Rapids,
1962), p. 109, sugere que o cobrir com um véu a desvanecente glória de Moisés envolveria
subterfúgio q u e seria in digno d o apóstolo.
E n tretan to , é possível e n te n d e r o desvanecim enio da glória q u e se extinguia com o
len d o significação sim bólica, em vez de rep re sen tar subterfúgio. N ão é necessário postular
que os israelitas n ão tin h am n e n h u m a consciência do caráter desvanecente da glória de
178 Cristo dos Pactos

O próprio fato de que o véu simbolizava “cegueira” infere


que Israel estava em estado de im perceptibilidade com respeito à
significação do véu. Se Israel houvesse com preendido o signifi­
cado pleno do véu, então a sua apreensão se constituiria num a
contradição da verdade que o véu tencionava simbolizar.
Todavia, é duvidoso que Israel não tivesse consciência algum a
do caráter desvanecente da glória da face de Moisés. Não seria
essencial que o véu escondesse com pletam ente a glória desvane­
cente de Moisés a fim de funcionar de m aneira simbólica. Além
disto, Israel deve ter visto o rosto de Moisés mais tarde, sem o
fenôm eno do “chifre”, a m enos que se postule que Moisés peregri­
n o u no deserto o período inteiro de 40 anos com a face velada.
Mas o coração de Israel estava cego com relação à significação
simbólica do véu. A sua própria cegueira foi abertam ente exibida
perante ele de m aneira simbólica. Todavia, nem este auto-retrato
pôde despertá-lo quanto à transitoriedade da aliança mosaica.
Ainda hoje perm anece o m esm o véu. O nde quer que Moisés
seja lido, Israel perm anece cego com relação à transitoriedade da
lei (2 Co 3.15). Ele perm anece tão impressionado com as glórias
da revelação da lei de Moisés que se tom ou cego ao caráter
tem porário da ministração mosaica da lei.
Entretanto, Paulo não se desespera com respeito a Israel.
Porque nenhum véu cobre o m inistério da nova aliança. Sua
glória não se desvanece. Com a “face descoberta” (v. 18), todo
crente da nova aliança coloca-se na presença imediata do Senhor.
Ele partilha da posição singularm ente privilegiada de Moisés, em
lugar de simplesmente receber de Moisés o relato a respeito da
revelação de Deus. C ontem plando constantem ente, com o num
espelho, a glória do Senhor, ele é “m etamorfoseado” de glória
em glória.
Moisés passou da glória para a glória desvanecente. Sua face
irradiou a glória de Deus só tem porariam ente, após confrontação
imediata com o Senhor.

Moisés. Viram Moisés em sua glória. Viram -no sem a sua glória (exceto se, com os rabinos,
m antém -se que a glória d e Moisés jamais se desvaneceu). O que eles não viram foi o
processo desvanecente em transição. Foi o véu que im pediu os israelitas de verem esse
desvanecim ento, e este fato p o d ia ter sido deduzido pelos contem porâneos de Moisés. Eles
viram sua glória não velada d u ra n te longo espaço de tem po, enquanto ele en treg ara as
várias prestações da lei. P or que, então, devia Moisés p ô r o véu? Não porque os israelitas
fossem pecadores cuja visão d a glória de Moisés devesse ser interrom pida p o r causa da sua
indignidade. E m vez disto, Moisés pôs o véu p ara qu e os israelitas não vissem a term inação
da glória da sua face. Esse ato de p ô r o véu simbolizava sua cegueira ao caráter tem porário
da legislação mosaica.
Moisés: A Aliança da Lei 179

Mas o participante da nova aliança passa de glória em glória.


Porque o Senhor, que é o Espírito, vive dentro do crente e sua
glória nunca se desvanece. Pelo Senhor, o Espírito, ele é
transform ado n a sem elhança do próprio filho de Deus.
A velha aliança pode ter vindo com glória. Mas sua glória
desvanecente dificilm ente se com para com a glória perm anente
d a nova aliança. Sob todos os aspectos, a nova aliança supera
aquela que a precedeu.
A aliança mosaica foi gloriosa. Mas a nova aliança é mais
gloriosa. A aliança mosaica jam ais p reten d eu ser o fim do
tratam ento pactuai de Deus com o seu povo. Em vez disto, na
m esm a época em que foi instituída, a aliança mosaica foi
representada com o sendo progressivam ente relacionada com a
to talidade dos p ropósitos de Deus. E m b o ra c o n te n d o
m anifestação mais clara da verdade redentiva do que a que a
precedeu, tam bém continha m uito m enos verdade do que a
consum ação da aliança que se seguiria.
A aliança da lei se consuma em Jesus Cristo. De acordo com
M ateus 5.17, Cristo m ostrou que não veio para revogar a lei, mas
para cumpri-la. Pela sua vinda, ele consum ou todos os propósitos
de Deus ao dar a lei.
No serm ão do m onte Jesus se m anifesta com o o novo
legislador. Seu “eu, porém , vos digo” (Mt 5.22, etc.) revela seu
papel com relação à lei com o superior ao de Moisés. Em vez de
relatar um a revelação que tinha recebido, Cristo propôs a lei da
nova aliança como seu próprio autor.
N o m onte da transfiguração Jesus apareceu em glória m aior
do que Moisés. O resplendor do sol irradiava dele na m edida em
que Ele manifestava a sua verdadeira glória interior. Em vez de
refletir m eram ente os raios do resplendor de Deus, Ele tinha em
si m esm o a origem da sua glória transfiguradora (Mt 17.2).
E m bora Moisés e Elias aparecessem com Ele, de m aneira algum a
eram iguais a Ele. No fim, os discípulos viram “só Jesus”, e
ouviram a voz divina declarar: “Este é m eu filho amado... ouvi-o”
(Mt 17.5).
Moisés, o m ediador da lei, m inistrou com o servo na casa de
Deus. Mas Cristo, o originador da lei, governa com o Filho sobre
a casa de Deus (Hb 3.5, 6).
O apóstolo Paulo m ostra que Cristo é o fim da lei para todo
aquele que crê (Rm 12.4). O p o d e r sentenciador e condenador
da lei esgota suas acusações em Cristo.
180 Cristo dos Pactos

Para ser este fim, Cristo cum priu toda a justiça. Observou
perfeitam ente toda a lei, enquanto, ao m esm o tem po, levou
sobre si m esm o as maldições da lei. De todas as perspectivas, a
aliança da lei se consum a em Cristo.
11
Excurso
Alianças ou Dispensações:
Qual Destas Estrutura a
Bíblia?
As i n i c i a t i v a s de Deus no estabelecim ento dos relacionam entos
de aliança estruturam a história da redenção. Suas soberanas
intervenções provêem a estrutura essencial para a com preensão
das grandes épocas bíblicas. Tal perspectiva tem caracterizado de
m aneira com pleta o presente tratam ento dos materiais bíblicos.
U m a alternativa im portante para se analisar a estrutura da
história bíblica é oferecida po r um a escola de pensam ento evangé­
lico mais popularm ente conhecida como “dispensacionalismo”.1
O dispensacionalismo tem-se colocado em oposição à teologia da
aliança com o m eio de com preender a estrutura arquitetônica da
revelação bíblica.
N a m edida em que a perspecdva dispensacionalista estiver
sendo avaliada, não se deve esquecer que os teólogos da aliança
e os dispensacionalistas colocam-se lado a lado na afirmação dos

1. P ara u m exam e histórico do m ovim ento, ver C larence B. Bass: Backgroumls to


Dhpmsalionalisrn (Granel Rapids: W m . B. E erdm ans, 1960), pp. 64ss.).

181
182 Cristo dos Pactos

princípios essenciais da fé cristã. Com m uita freqüência, estes


dois grupos, dentro do Cristianismo, apresentam-se sozinhos em
oposição ã invasão do m odernism o, do neo-evangelicalismo e do
emocionalismo. Os teólogos da aliança e os do dispensacio-
nalismo devem m anter na mais alta consideração a produtivi­
dade erudita e evangélica uns dos outros. Pode-se esperar que a
continuação desse intercâm bio se baseie no am or e no respeito.
N o dispensacionalismo tem-se manifestado, mais recente­
m en te, a tendência de minimizar a im portância das
“dispensações” com o fator que caracteriza seu sistema distintivo.
Os dispensacionalistas notam que os teólogos da “aliança”
tam bém fazem uso da term inologia “dispensacional”.2
Todavia, o uso de terminologia sem elhante não envolve
inevitavelmente concordância em princípio. Na verdade, o
conceito das dispensações sustentado pelos “dispensacionalistas”
coloca sua perspectiva da história bíblica em oposição ao ponto
de vista m antido pela teologia da aliança.
De m aneira interessante, a diferença de abordagem da
estruturação histórica do dispensacionalismo e da aliança
manifesta-se em dois sistemas diferentes que aparecem dentro do
próprio dispensacionalismo. Se os teólogos da aliança fazem uso
do term o “dispensação”, da m esm a forma os dispensacionalistas
usam com freqüência o term o “aliança”. Na verdade, dois
sistemas alternativos de estruturar a história da redenção
funcionam dentro do próprio pensam ento dispensacional. Um
destes sistemas é “de aliança”, e o outro, “dispensacional”.
Q uando se com param observações interpretativas feitas por
dispensacionalistas sobre alianças e dispensações, surge
im portante tensão. E com o se a história da redenção tivesse duas
estruturas. Em certos instantes, essas duas estruturas se inter-
relacionam intim am ente um a com a outra. O utras vezes, elas
e n tra m em com petição pela proem inência. N ão é fácil
d eterm inar qual destes sistemas deve realm ente ser entendido
com o a chave da com preensão do progresso da história da
redenção na m ente do próprio dispensacionalista. A questão
avança ainda mais: quais das duas estruturam a Escritura? - as
alianças ou as dispensações?

2. V er a discussão de C harles Caldwell Ryrie em Djspensationafom Today (Chicago: Moody


Press, 1965), pp. 43s. Ryrie m ostra q u e nem o reconhecim ento das dispensações na
Escritura n em o acordo com relação a um núm ero específico de dispensações provê o
m arco essencial do “dispensacionalism o”.
Alianças ou Dispensaçoes: Qual Destas E strutura a Bíblia? 183

A presente investigação irá mover-se através das várias épocas


da história da redenção, observando as perspectivas opcionais
propiciadas na teologia da aliança e no dispensacionalismo. Em
virtude da natureza desenvolvim entista do p en sam en to
dispensacional, terão de ser notadas mais de um a descrição de
algumas épocas. Os teólogos dispensacionais têm sido m uito
ativos durante estas últimas poucas décadas no sentido de
aperfeiçoar seu sistema de análise bíblica. Não seria certam ente
justo tratar o dispensacionalista de hoje com o se sua m aneira de
pensar fosse idêntica à daqueles que caracterizavam a “velha”
Bíblia Scofíeld, quando do seu prim eiro aparecim ento, em 1909.
Todavia, ao mesmo tem po, esses fundam entos antigos não
p o d e m ser totalm ente ignorados. P o rq u e a teologia
dispensacional primitiva continua a oferecer o m odo básico de
abordagem ao dispensacionalismo atual.
N a m edida em que progredirm os nesta “jornada” através das
várias estruturas da história da redenção, três fatos devem tomar-se
evidentes. Primeiro, deve ficar claro que alguns aperfeiçoamentos
im portantes desenvolveram-se em expressões mais recentes da
perspectiva dispensacional. Segundo, deve ficar claro que existe
um im portante ponto de tensão dentro do próprio dispensacio­
nalismo na m aneira com o ele vê as alianças e as dispensaçoes como
duas opções para estruturar a história da redenção.3 Terceiro, deve
ficar claro que existe um a diferença básica de perspectiva entre a
estrutura da história da redenção tal como é entendida pelos
teólogos da aliança e pelos dispensacionalistas.

A ALIANÇA DA CRIAÇÃO
A teologia da aliança entende o relacionam ento de Deus com
o hom em na criação em perspectiva de aliança. A responsabilidade
do hom em como ser criado à imagem de Deus no sentido de

3. A esta altura, u m equívoco potencial deve ser desfeito, o qual p o d e surgir com o
resultado d o arranjo dos materiais n a presente sinopse de opiniões. Não se deve su p o r que
a “velha” Bíblia Scoíield (1909) co n tin h a só u m a série de notas tratando das dispensaçoes,
e n a d a com respeito às alianças. N em se deve su p o r que a “nova” Bíblia Scoíield (1967)
c o n tin h a so m en te notas acerca das alianças, e n ão tinha n a d a a dizer a respeito das
dispensaçoes. E apenas p o r causa d e um desejo de contrastar o tratam ento das
dispensaçoes e das alianças n a teologia dispensacional enq u an to , ao m esm o tem po,
ind ican d o algo d a progressão d o p ensam ento no dispensacionalism o, que os com entários
foram lim itados prim ariam ente às notas acerca das “dispensaçoes” n a “velha” Bíblia
Scoíield, e às notas acerca das “alianças” n a “nova” Bíblia Scoíield.
184 Cristo dos Pactos

form ar um a cultura para a glória do Senhor indica algo da


am plitude da responsabilidade hum ana estabelecida pela criação.
O universo inteiro devia ser posto sob sujeição à glória de Deus. A
ordenança do casamento e a instituição do Sábado implicavam
que a obrigação do hom em para com o seu Autor estendia-se a
toda área da atividade humana. Ao mesmo tem po, um teste
especial de prova com respeito ao não com er da árvore do
conhecim ento do bem e do mal enfocou atenção sobre a responsa­
bilidade específica do hom em de obedecer à palavra do Senhor,
simplesmente porque era a palavra do Senhor. Por meio deste
relacionamento de abrangência total, Deus ligou-se à criatura
hum ana. Este relacionamento estabelecido pela criação seive de
base fundam ental para a compreensão de toda a história hum ana,
na m edida em que ela se desenrola, a partir desse m om ento.
A época que corresponde à aliança da criação se chama, de
acordo com a “velha” Bíblia Scofield, a dispensação da
“in o cên cia”. Esta dispensação é descrita com o “um teste
absolutam ente simples” que term inou com a sentença da
expulsão.4 Esta dispensação particular recebe m uito pouca
elaboração na “velha” Bíblia Scofield. Não se dá n en h u m a
explicação com respeito às responsabilidades mais amplas do
hom em criado à imagem de Deus. Só a referência ao “teste
simples” descreve o caráter real desse relacionam ento. Tal
perspectiva resumida sobre as responsabilidades do hom em
com o ser criado deveria, eventualm ente, ter im portante efeito
sobre a visão global da significação do Cristianismo.
O pensam ento dispensacional mais recente sobre a dispensa­
ção da “inocência” pode ser achado n a obra de C. C. Ryrie,
intitulada Dispensacionalismo Hoje5 (Dispensationalism Today).
Ryrie m ostra que as responsabilidades de Adão envolviam m anter
o jardim e não comer do fruto da árvore do conhecim ento do
bem e do mal. Ele acentua a responsabilidade mais am pla do
hom em com respeito ao jardim , em bora não trate com extensão
m aior a importância desta obrigação. Introduz tam bém na
discussão um aspecto im portante neste estágio primitivo que
caracteriza seu tratam ento das dispensações. T enta oferecer
limitações escriturísticas que colocam entre parênteses esta
época particular sob discussão. Neste caso, ele coloca os limites
4. C. I. Scofield, ecl., The Scojiekl Reference Biblc: The Holy Bibk (New York: O xford Universily
Press, 1909), p. 5, n. 5. Este trabalho será referido, daqui em diante, com o a “velha” Bíblia
Scofield.
5. Ryrie, op. cil., pp. 57s.
Alianças ou Dispensaçoes: Qual Destas Estrutura a Bíblía? 185

da dispensação da inocência, com o Gênesis 1.28-3.6. Com o se


verá posteriorm ente, este esforço para fornecer os pontos nos
quais cada dispensação com eça e term ina cria alguns problem as
perturbadores para a interpretação dispensacional.
U m a perspectiva m uito mais com pleta do relacionam ento de
Deus com o hom em n a criação encontra-se nas notas da Bíblia de
Referência Scofield com respeito à “aliança” que Deus estabele­
ceu com o hom em n a criação. A “nova” Bíblia Scofield encerra
num a síntese a substância da aliança original de Deus com o
hom em , com o se segue:
A prim eira aliança, ou aliança edênica, requeria as seguintes
responsabilidades de Adão: (1) p ro p a g ar a raça; (2)
subjugar a terra para o hom em ; (3) ter dom ínio sobre a
criação animal; (4) cuidar do jardim e com er dos seus frutos
e ervas; e (5) abster-se de com er de um a árvore, a árvore do
conhecim ento do bem e do mal, sob pena de m orte pela
desobediência.6
Excetuada a falta de referência ao papel do Sábado nas
ordenanças da criação, esta descrição do relacionam ento original
do hom em com seu Criador tem m uito para recom endá-la. Trata
m uito adequadam ente das responsabilidades mais amplas do
hom em , enquanto, ao m esm o tem po, aponta o teste específico
sob o qual foi colocado o hom em na criação.
Comparando-se o tratamento dispensacional da primeira das
“dispensaçoes” com a prim eira das “alianças”, não se pode dizer que
estas duas perspectivas realmente conflitam um a com a outra.
Entretanto, o relacionamento original do hom em com Deus
encontra tratamento muito mais completo na análise dispensacional
da “aliança edênica” do que na análise dispensacional da “dispensa­
ção da inocência”.

A ALIANÇA DA REDENÇÃO

A dão: A A liança do Começo


A teologia da aliança en tende toda a história, depois da
q u e d a do hom em em pecado, com o unificada sob as cláusulas da
(5. C. I. Scofield, ecL, The New Scofield Rcfenmce Bible: The Holy Bible (New York: O xford
Universily Press, 1967), p. 5, n. 2. Este trabalho será referido, daqui em diante, com o a
“nova” Bíblia Scoíield.

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