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a literatura fantástica, o seu poder, é também o local em que Mas desenganem-se se julgam que é

o tema do Apocalipse os combatentes jihadistas acreditam que um fenómeno que se limita ao Médio
exerce um fascínio ine- Jesus Cristo irá regressar à Terra para Oriente. O próprio percurso de Do-
gável para muitos auto- lançar a batalha apocalíptica contra o nald Trump na campanha para as Pre-
res. Das fantasias tradi- Anti-Cristo. Os exércitos serão então li- sidenciais americanas de 2016 apanhou
cionais aos livros de ficção científica derados por um escolhido, o Mahdi, que o Ocidente de surpresa, mas, vistas
mais complexos, o fim do mundo é um irá selar a vitória das forças do Islão. bem as coisas, o que distinge o novo
tema recorrente, que ecoa em parte os Não muito diferente das incontáveis presidente norte-americano de um
próprios mitos narrados nos grandes li- sagas de fantasia que já lemos. O que auto-proclamado messias que incita os
vros e epopeias sagrados, desde a Bíblia surpreende é ver essas crenças a se tor- seus seguidores a desafiar a autoridade?
e Corão ao Mahabharatta ou o Torah. narem parte da intriga da política inter- Conseguiu incendir multidões que se
Robert Jordan escreveu uma série nacional e a afetarem as nossas vidas de reveem no seu discurso radical e xenó-
de 14 volumes em torno de Tarmon formas insuspeitas, como refugiados fobo.
Gai’don, o evento apocalíptico que em massa a escaparem de Iraque, Síria O veneno do messianismo que gras-
confronta as forças do bem contra o e territórios sob jugo do Daesh, conde- sa no Oriente começa a contagiar o
Shaitan, tal como profetizado desde o nados a uma vida sem pátria. Ocidente e ameaça destruir todas as
primeiro volume. George R. R. Mar- E depois temos Aleppo. Aquela conquistas progressistas alcançadas.
tin também não fugiu ao tema, sendo que foi outrora a maior cidade síria Arriscamo-nos a que o nosso futuro
que o mote da casa Stark é todo ele um tornou-se o território simbólico dos seja manchado por leituras fanáticas
prenúncio apocalíptico, o Inverno está choques ideológicos que ameaçam des- religiosas que descredibilizam a pala-
a chegar. carrilar a nossa civilização. O Inferno vra dos livros sagrados. E se é verdade
O tempo evolui de forma linear até habita na cidade, e só uma réstia de que nesses livros anunciam que virá um
chegar a um fim. Mas não precisamos Humanidade sobrevive nela. As po- verdadeiro profeta para confrontar os
de ler as ansiedades e temores sobre o tências mundiais estão dispostas a tudo falsos profetas, agarremos nós no nos-
Apocalipse espelhados na ficção, quan- em Aleppo, incluindo aniquilação. Para so presente, sem esperar que a salvação
do, no mundo de hoje, o messianismo uma criança que sobrevive a tais atroci- surja dos céus. Pois se há coisa que os
e milenarismo estão de mãos dadas e dades, que futuro podemos dar-lhe que livros de literatura fantástica nos ensi-
marcam tanto a atualidade. Desde o não seja manchado por hipocrisia? naram é que cabe sempre a heróis im-
início da guerra do Iraque e a guerra Na maioria das vezes, insurreições prováveis salvar o mundo das Trevas.
civil da Síria, o braço de ferro entre as messiânicas partem da iniciativa de lí-
várias correntes ideológicas do Islão, deres oportunistas que se aproveitam
pondo xiitas contra sunitas, mais uma das crenças religiosas para pegar fogo
vez se apoderou da religião do Profeta ao rastilho da dissidência. A essa luz,
Maomé. Grupos como o Daesh vivem conseguimos compreender fenómenos
da interpretação fundamentalista do como o Daesh que basearam muita da
Corão. Síria não é só um palco para as sua influência e apelo em propaganda
forças das potências mundiais testarem radical apocalíptica.

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strela Lourenço nasceu em 1986
e comecou a desenhar Ban-
da-Desenhada e posters para o
seu grupo de dança aos sete anos.
Poucos anos antes desenhava múltiplas
casinhas em folhas de papel, blocos de
desenho e mesas de restaurante. De-
pois de dois anos no Ensino Secun-
dário frequentando o curso de Ciên-
cias, tomou conhecimento do curso
profissional de Desenho Animado na
Escola Técnica de Imagem e Comuni-
cação de Lisboa para onde se dirigiu e
frequentou durante três anos. Depois
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de terminado o curso de Arte e Multi-2
média na Faculdade de Belas Artes de
Lisboa e alguns trabalhos em regime
freelance (Ilha das Cores, Animanostra
(RTP), Saari, Sardinha em Lata) esta-
va montado o Portfólio de Animação
para enviar para estúdios europeus. De
entre dezenas de emails um estúdio
respondeu positivamente, situado na
Irlanda, um país que, por coincidên-
cia, já tinha visitado com o programa
europeu Leonardo DaVinci, onde de-
senvolveu animação para uma empresa
de webdesign. Portanto, o salto para o
estúdio BoulderMedia tornou-se numa
corrida de produções entre a animação
no Amazing World of Gumball (Car-
toon Network), Randy Cunningham 9th
Grade Ninja (Disney XD), filme Fresh
Cut Grass, a louca série Wander Over
Yander (com um prémio Annie 2016
para “Best Animated TV/Broadcast
Production For Children’s Audien-4
ce” pelo episódio The Breakfast onde
foi Supervisora de Animação), Danger
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Mouse (BBC) e agora com animação e
realização de episódios em novas pro-
duções para a Hasbro. A paixão pelo
mundo da animação e ilustração conti-
nua em casa com a realização de novos
trabalhos em formato
Banda-Desenhada e
curtas metragens de
animação!

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seguro que H.G. Wells terá sido o Estas e muitas outras das tecnologias que só se encontram
primeiro a escrever sobre a bomba nas páginas dos romances e contos da Ficção Científica
atómica, ou que Roger Zelazny terá não existem no mundo de hoje porque a tecnologia não
pensado num carro que se conduzisse evoluiu o suficiente, ou porque não há infraestruturas ou
a si próprio, muito antes de a Google o sequer interesse generalizado suficiente para que se
mos também
ter posto na estrada. Sabemos proceda à sua produção em
aginado um
que James Hogan terá imaginado
computador portátil ainda noo tempo em
nsivelmente
que o computador mais pequeno ocupava sensivelmente
o mesmo espaço que um guarda-fatos de uma família
numerosa.
Sendo também cientista, Isaac Asimov sabia da utilidade
ntes de elas
que teria uma máquina de calcular eletrónica antes
se terem tornado ferramenta banal de qualquer er estudante
ontas como
de matemática, e Frederick Pohl, pagante de contas
a maioria de nós, deu um curioso salto criativo ao imaginar
um telefone portátil que também funcionasse como omo cartão
de crédito, numa altura em que os telefones eram tudo
menos portáteis. E se William Gibson imaginouu a internet
enquanto alucinação coletiva e campo de batalhaa eletrónica,
taque a que
Philip K. Dick imaginou os pássaros-robôs de ataque
hoje chamamos drones, e Murray Leinster escreveu eveu sobre
algo que rondava a impressora 3D muito antes de hoje elas
mpresas e
serem uma curiosidade e uma ferramenta de empresas
instituições.
Todavia, por muito que gostássemos, hoje oje ainda
não temos os carros voadores imaginados pela la Ficção
ligente do
Científica do século XIX, nem a triagem inteligente
lixo que parecia tão óbvia a Harry Harrison, e os robôs de
ferentes das
Isaac Asimov, ainda que existam, são muito diferentes
entidades robóticas que habitam as nossas casas. E quão útil
não seria o raio detetor de objetos perdidos dee L.F. Stone
a todos nós que temos dificuldades em encontrar ar a carteira
quando temos de sair de casa para um encontro importante,
te no nosso
se se desse o feliz acaso de ele existir realmente
mundo.

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massa. É o caso dos robots, que, embora viáveis e existentes próprios ou de casas que acendem as luzes quando alguém
em alguns laboratórios, não têm ainda um custo e uma se aproxima.
utilidade suficientes para que possam ser produzidos em E, creio, essa mudança na evolução tecnológica já estava
quantidades que permitam a sua compra pela maioria inscrita na própria Ficção Científica. Este género literário
– mesmo que a maioria dos ocidentais possa comprar que sempre assentou na ideia de que os humanos são seres
numerosos eletrodomésticos – como torradeiras, máquinas infinitamente flexíveis, que podem ser transformados pelos
de lavar e outras – que incorporam tecnologias e mecanismos objetos e aparelhos que os rodeiam, a partir dos anos 70
robóticos. Mas convenhamos que uma revolta de chaleiras começou a acreditar cada vez menos no potencial dos
elétricas parece muito menos apocalíptica do que pareceria equipamentos para nos melhorarem, e começou a inquietar-
uma hipotética revolta de cyborgs. se antes com os limites do humano – desde o significado de
No entanto há muitas outras tecnologias que parece ser humano, como fazia Philip K. Dick, até à forma como
estranho não terem sido desenvolvidas, apesar da sua o humano pode ser moldado e dominado por forças sociais
evidente utilidade, e a exploração espacial, que era tão e económicas que o ultrapassam, como China Miéville e
urgente e incontornável nos anos 70, assemelha-se a muitos outros.
exibições de marketing de duas superpotências, que hoje foi
reduzida a mera curiosidade noticiosa. or outras palavras, a própria FC antecipou o limite da
O que aconteceu? inovação tecnológica e descobriu que a inovação está
Segundo o antropólogo David Graeber, o ritmo de dentro das nossas cabeças e dos pensamentos que somos
avanços tecnológicos tem vindo a decair desde os anos 70. capazes de pensar ou que somos levados a pensar: as
Entre o século XVII e 1970, o número de patentes de novas estruturas mentais e sociais que nos regem e que precisam,
invenções costumava duplicar todos os 15 anos, mas desde ou não precisam, de raios detetores de objetos perdidos, de
essa altura que tal número está em queda constante. carros voadores ou de robots sexuais.
Houve, é certo, o embaratecimento e massificação de
algumas tecnologias – como a comunicação sem fios que, este modo, o futuro que parecia tão presente nos anos
por muito impressionante que pareça, não serve para muito 60 – ao ponto de se poder acreditar que ele já existiria
mais do que reduzir o número de cabos em nossa casa onde nos anos 2000, como tantos livros e filmes imaginaram –
podemos tropeçar, e a internet é apenas a versão massificada foi-se afastando de nós. Pode ser que um dia venha a existir,
de misto de sistema de troca de mensagens com catálogo mas não o sabemos. Só sabemos que esse futuro – de naves,
de vendas incorporado, estando muito longe da realidade robots, alienígenas – ainda persiste no tempo presente nas
paralela do ciberespaço que William Gibson imaginou. páginas da Ficção Científica que, por mais científica que
Se Graeber tiver razão, encontramo-nos num ponto tenha sido, não deixou até agora de ser ficção. BANG!
curioso da história: a primeira fase de desaceleração
tecnológica, após os 300 anos de maior progresso científico
da história da humanidade.

ara o antropólogo norte-americano este abrandamento


deve-se à crescente centralização de conhecimento
e tecnologia, que implica que são cada vez menos os
indivíduos capazes de conceber autonomamente os seus
saberes e técnicas, estando os avanços cada vez mais nas
mãos de megacorporações capazes de as controlarem e
repararem à distância (através das comunicações sem fios e
a internet) se for preciso.

u seja, a inovação já não está num inventor solitário


que cria a seu bel-prazer no seu laboratório doméstico,
mas está nos grandes open spaces das multinacionais, geridos
por managers, fiscalizados por estrategas de marketing
e dirigidos por CEOs. Estas multinacionais que são
suficientemente espertas para darem tempo livre aos seus
funcionários para testarem ideias próprias, desde que
depois essas ideias possam ser comercializadas pela própria
empresa. Tal leva a que as ideias prioritárias não sejam as que
teriam maior impacto na vida da humanidade, mas aquelas
que são potencialmente mais lucrativas. E daí ter havido
tantos avanços tecnológicos no domínio da publicidade e da
análise dos gostos e interesses dos consumidores, como é o
caso do Facebook ou do Google, que simplificam a vida do
indivíduo comum em troca deste fornecer a sua informação
pessoal que o possa tornar mais rentável enquanto
consumidor. Deste modo a vida individual ganha mais
oferta comercial, mas torna-se também mais controlada e
menos desafiante, seja através de carros que se guiam a si

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uando praticamente toda a Enquanto me aventurava pelos Balcãs, o quanto se descobriu com glamour,
Terra foi mapeada, explorada, Grécia, Israel, levava comigo Sven morte e esperança a rodos. Lá em
descoberta, numa luta Hedin e as suas explorações no deserto, cima, no autocarro da tour, um torneio
desigual a favor do espírito científico, no Tibete proibido, na Ásia profunda de Need for Speed ocorre. É brutal,
da curiosidade humana; contra os de gelos e desertos escaldantes. Uma quase real, viciante. Sinto-me um alien
elementos, a ignorância, a política e a vez nas treze datas que fizemos na quando entro de livro debaixo do
religião (que mesmo assim se apresentou Rússia, Sibéria incluída, recuperei o braço a desejar boas-noites. Troco o
em todos os lugares próximos ou clássico Miguel Strogoff, o Correio do Lamborghini veloz pelo sprint de três
remotos), resta-nos direcionar o nosso Czar de Verne e encantei-me com o dias dos camelos selvagens quando
esforço e o nosso ímpeto para outras seu percurso parecido ao meu, Nizhyny farejam homens. Troco o comando
paragens. Marte, Lua, o Sistema Solar Novogorod até Irkustk. Hoje já em casa pelo marcador de livros que avança
que nos é possível, os mares, o interior sigo os ingleses até ao Pólo Norte, por aos poucos. Por fim deito-me e deixo o
da Terra. Em todas estas tentativas de mar, revelando e justificando passagens meu transporte engolir os quilómetros
conquista encontro um elo comum. Um impossíveis. de História, Tempos, e vidas que a seu
escritor que imaginou muita coisa que Verdade que nunca matei um urso tempo descobrirei num bom livro, num
se tornou real (mesmo sem a elegância com uma navalha, nem sorteámos bom autor, como que numa magnífica
da sua narrativa), paisagens que se qual de nós ia ser comido nem chupei prequela da vida que ainda tenho para
descobriram graças ao instinto da sua gelo sujo directamente de uma fonte. viver. Sem saltar de pára-quedas, sem
pena. Um legado que cobre céu, terra, Mas também não vi o céu estrelado me levantar de madrugada para correr
mares, espíritos. dos desertos antes de o Sol queimar, sem destino, sem as luzes fluorescentes
Farto das novas conspirações sobre o não dormi numa tenda em cima de do ginásio, apenas com o preto e branco
Vaticano, cansado de dragões já quase um barco deslizando por águas suaves, das letras que adentram a aventura e
hollywoodescos e de sagas que só desenhando e documentando o que via explicam o verdadeiro sentido do que é
terminarão quando o budget se esgotar, e talvez nunca irei ao Pólo Norte. Não estar vivo.
viro-me para Júlio Verne. Para os livros me sinto um explorador, mas gosto de
“secundários” (já que os outros comecei ler sobre eles e de aprender engenhos,
desde miúdo a devorar), editados rotinas, truques, exemplos que à
por pequenas editoras, de amigos, de minha maneira me têm servido para
escolas, de institutos, que compro, com aguentar uma vida passada na estrada.
alguma dificuldade e procura, nos sites São exemplos diferentes separados no
de livros usados e raros da Internet por tempo, indirectos, e possuídos de um
bons preços. Não são capas duras, nem espírito que quase morreu à mercê da
lombadas douradas, são uma porcariazita velocidade das redes sociais e de outro
de papel, com capas brilhantes e não tipo de experiência indirecta que pouco
mate (a fazer lembrar as edições das nos enriquece a não ser se gostarmos
editoras de Faculdade). Mas lá dentro: as de ver pessoas a dar erros ortográficos
expedições. quando reclamam o seu pedaço de
São estes os livros que leio e que faço atenção. Antes beber o sangue de um
coincidir com o período em que exploro camelo!
também, com a minha expedição Esta é a boa ficção. A que nos
musical e espiritual com os Moonspell. faz viajar e sentir vivos ao ler tudo

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ma das grandes sensações melhor moldarem a sua produção, enal- dos melhores clássicos do género, nas
televisivas do último defeso, tecendo a homenagem estética e evitan- escolhas musicais estão muito à frente.
«Stranger Things» constitui do as armadilhas da mera réplica, e se na
uma homenagem ao cine- narrativa e ambiente geral estão ao nível
ma de horror e ficção-científica ntes de irmos à música,
dos anos 80, mas o seu sentido que é sempre o nosso
de reverência e compromisso foco n’O Som de Dunwich,
pelos cânones do género é de e para quem ainda não viu
tal ordem que chega a confun- «Stranger Things», é sobre
dir-se com as obras originais. A um grupo de quatro rapa-
série da Netflix, realizada pelos zes em que um deles, Will
irmãos Duffer, é propensa ao Byers, desaparece miste-
binge watching e leva-nos a iden- riosamente, levando a uma
tificar referências em diversos mãe desesperada (brilhan-
momentos. Embora não seja temente interpretada por
um argumento marcado pela Winona Ryder) a tudo fazer
imprevisibilidade e originalida- para encontrar o filho, con-
de, e não obstante todas as ób- tando apenas com a ajuda
vias citações a alguns clássicos do xerife local. Porém, os
de época, estas não são feitas outros três encontram uma
por preguiçosa cópia mas sim rapariga, a Eleven, que tem
por tributo a um imaginário poderes telecinéticos e foi
muito caro aos nascidos nas sujeita a experiências se-
décadas de 70 e 80, para quem cretas do governo, e que
alguns filmes tiveram um pa- sabe onde está Will. «ET»,
pel formador. Tudo nesta série de Steven Spielberg é uma
remete para essa época: o ves- assumida influência e tem
tuário, os penteados, as perso- momentos em que tal é bas-
nagens estereotipadas, idiossin- tante óbvio: a cena em que a
crasias estéticas, a arquitectura, Eleven experimenta roupas,
a tecnologia, a linguagem dos a sua obsessão por snacks ou
diálogos e as referências direc- a cena da bicicleta a voar,
tas a vários filmes. A distância mas também há diversas re-
de 30 anos permite aos Duffer ferências ao imaginário de

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Stephen King, como «Carrie» (poderes jovem nos anos 80, bem como «Hazy como também passaram a editar-se
telecinéticos), «Firestarter» (a miúda Shade of Winter» das Bangles, «Elegia» bandas-sonoras completamente forma-
sujeita a experiências secretas), «Stand dos New Order, «Atmosphere» dos das por canções do género, e com resul-
By Me» (o grupo de crianças que se incontornáveis Joy Division ou os re- tados raramente positivos. Os AC/DC
vêm obrigadas a crescer devido também entraram nessa indústria,
a um acontecimento traumático) precisamente após o seu mais
ou também «IT», que conhecerá bem-sucedido disco, «Back In Bla-
nova versão em 2017 e que os ck», a que se seguiu uma década de
irmãos Duffer tentaram realizar. desinspiração da qual pouco recu-
Poderíamos continuar, citando peraram e que fica bem evidente
«Alien», a comunicação pelas lu- na xaropada «Who Made Who»,
zes que remete para «Encontros um misto de compilação com ban-
Imediatos do Terceiro Grau» ou da-sonora de «Maximum Over-
até «Pesadelo Em Elm Street», drive», a estreia de Stephen King
com monstros a sair das paredes como realizador. Bem melhor foi
e crianças a deixar-lhe armadilhas, a adaptação de Mary Lambert de
mas concentremo-nos também uma das obras mais aterrorizantes
em John Carpenter, não só pelo de King, «Pet Sematary», na qual
mesmo tipo de referências – «The nada temos a dizer da participação
Fog» ou «The Thing» são filmes dos Ramones. «Sheena Is A Punk
cuja atmosfera está muito presen- Rocker» tanto fica bem num casa-
te em «Stranger Things» (deste mento como num funeral e a can-
último, até se vê um poster na ção com o mesmo título escrita de
parede e o professor está a ver o propósito para o filme, com o ines-
filme numa cena) – mas essencialmen- gressos ao passado ao som de «White quecível refrão “I don’t wanna be buried in
te pela música. John Carpenter sempre Rabbit» e «She Has Funny Cars» dos a pet sematary” , pode não ter a energia
foi um mestre da banda-sonora de sin- Jefferson Airplane. dos primórdios dos Ramones mas va-
tetizador e a gerir o poder que a mesma leu-lhes a posição mais alta de sempre
pode dar a cada cena ou filme, e foi ele nos tops.
próprio o compositor da música dos mbora se possa discutir a eficá-
seus filmes, sendo ainda hoje inesque- cia da utilização de canções, e não eguindo uma tendência que teve o
cível o tema de «Halloween». apenas o tipo de bandas-sonoras mais seu auge com «You Could Be Mine»,
clássicas, como de Goblin ou Tangeri- dos Guns N’ Roses, que se tornou o
ne Dream para vários filmes no género, theme song de «Exterminador Implacá-
iéis a esse legado, Matt e Ross Du- isso foi uma marca dos anos 80 e que vel 2» e primeiro vislumbre dos dois
ffer desafiaram os Survive, banda perdeu o seu total controlo nessa e na volumes de «Use Your Illusion» que se
electrónica composta por Michael Stein década seguinte. As canções alusivas preparavam para lançar, nos anos 90 co-
e Kyle Dixon, para compor a banda-so- ao filme também foram uma cena dos meçaram a proliferar as bandas-sonoras
nora da série, tarefa que desempenham anos 80, que tanto passam pelo emba- mal-amanhadas procurando associar
de forma exemplar, originando trilhas raço de «Dream Warriors», com
sonoras que criam a atmosfera indicada. os Dokken a entrarem num dos
Em entrevista ao site Indiewire, Stein mais lucrativos franchises do hor-
revela: “discutimos que queríamos ter um tom ror, «Pesadelo Em Elm Street» (é
e sentimento clássico na música da série mas ir ao YouTube para sentir a ver-
que fosse reservado o suficiente para não ser gonha alheia), mas também por
azeite dos 80’s, e dando-lhe uma qualidade re- «Hellraiser», no terceiro capítulo
frescante para que soasse moderno também. Ter da adaptação da obra de Clive
uma familiaridade com a forma como os sin- Barker por intermédio dos Mo-
tetizadores clássicos funcionam mas com uma törhead, com o saudoso Lemmy
abordagem geral moderna e que pensa mais à Kilmister a jogar uma cartada
frente.” Mas aquilo que mais retemos de com o Pinhead, interpretado
«Stranger Things» são as escolhas musi- por Doug Bradley. Na realidade,
cais tomadas, especialmente nas mixtapes foi uma canção composta por
do Jonathan Byers, o irmão mais velho Lemmy com Ozzy Osbourne e
de Will, um adolescente inadaptado que Zakk Wylde, que saiu original-
encontra o seu escape na fotografia e na mente no disco «No More Tears»,
música, não se contentando com o que do Ozzy, e depois também em
passaria na rádio no Indiana em 1983, «March Or Die» dos Motörhead.
mas procurando alimento para a alma
na cena post-punk. «Should I Stay Or um filme a um género musical. No
Should I Go», dos The Clash, desempe- or um lado, os sets dos filmes pas- meio disso, é justo referir «The Crow»
nha um papel recorrente e que irá car- saram a albergar também bandas como um exemplo positivo de diversi-
regar em todos os botões de quem foi de rock para gravar os seus videoclips, dade estilística e de formato, tanto com

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originais como com versões (Nine Inch Nails fazem uma ex-
celente de «Dead Souls», dos Joy Division»), ou até «Demon
Knight», com Machine Head, Ministry, Biohazard, Sepultura
ou Melvins.

m suma, foram mais os tiros ao lado que os certeiros e


por isso é que «Stranger Things» nos diz tanto. Home-
nageia uma época do cinema de género, captando na perfei-
ção todas as suas idiossincrasias, mas evitando os excessos
que banalizaram muitos filmes, que foram directos para o
VHS, e a música tem, nesse aspecto, uma importância fulcral.
A série, que já tem confirmada uma segunda temporada, é
bem-sucedida nos dois aspectos da banda-sonora. Por um
lado, temos a vertente do ambiente narrativo, na tradição
Carpenter, criado pelos sintetizadores dos Survive, conferin-
do a atmosfera certa e não a deixando resvalar para a cópia
descarada ou para o exagero que caracterizou tantos filmes
da época de Reagan, mantendo um sentido de actualidade,
como por outro lado há o recurso à utilização da canção. Es-
tas, que não surgem por imposição de um estúdio ou editora,
mas para criar emoções reais, transmitidas pelos personagens
que vibram da mesma forma que nós quando ouvíamos os
The Clash e fazíamos mixtapes para escutar noites dentro e,
na manhã seguinte, no walkman a caminho da escola. Aqui
n’O Som de Dunwich procuramos ligações entre a música e
o fantástico, que podem não ser as mais óbvias como foram
nas edições anteriores, com a inspiração dos Iron Maiden no
fantástico e a influência de H.P. Lovecraft no metal, mas não
há como negar que a música marca «Stranger Things» de for-
ma indelével e – spoiler alert! – o hino da indecisão cantado por
Mick Jones, «Should I Stay Or Should I Go», serve de chave
à trama, como tantas vezes também terá servido nas nossas
próprias vidas. BANG!

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BANG! /// 15
m 2001, Elon Musk (o criador da Paypal) ção, nem capacidade económica de enviar nada vivo (muito
concebeu a Mars Oasis, uma pequena es- menos humanos) a Marte.
tufa com sementes que, depois de enviadas No ano seguinte, nasce a SpaceX com o propósito de revo-
para Marte, iriam germinar em condições lucionar a exploração espacial. Até este momento tem cum-
controladas. Dessa forma se poderia ob- prido o prometido e superado expectativas. Devido a uma
servar e compreender o comportamento nova forma de encarar a exploração espacial, ousando correr
de um biossistema em Marte, após a arris- riscos e desafiar barreiras, conseguiu rejuvenescer a indústria
cada viagem espacial. Após analisar as opções disponíveis, aeroespacial, sendo sem dúvida uma das principais culpadas
e o preço exorbitante que tanto americanos como russos da nova Corrida Espacial a que podemos hoje assistir. Em
pediam por lançamento, rapidamente percebeu que a NASA apenas 14 anos, esta empresa é já detentora de muitas inicia-
(aliás ninguém no planeta) não tinha qualquer plano, ambi- tivas pioneiras: foi a primeira empresa privada a transportar

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carga para a Estação Espacial
Internacional e a trazer carga
de volta para a Terra, foi tam-
bém a primeira (de sempre) a
conseguir aterrar um foguetão
espacial orbital tanto em terra
como em alto mar, e no pró-
ximo mês de Novembro, será
também a primeira a reutilizar
um foguetão espacial orbital,
apenas para nomear as proe-
zas mais emblemáticas.
No passado dia 27 de Se-
tembro, durante o 67.º Con-
gresso Internacional de Astro-
nomia (IAC) em Guadalajara
(México), Elon Musk (Presi-
dente da SpaceX) revelou pela primeira vez o plano que criou rondará uma centena, podendo chegar ao dobro mais tarde;
e em que a SpaceX tem estado a trabalhar desde a sua fun- numa segunda fase, já em pleno trânsito para Marte e depen-
dação, plano esse que promete tornar a Humanidade numa dendo do ano de lançamento, a viagem pode demorar entre
espécie verdadeiramente multiplanetária, estabelecendo uma 80 dias (em 2035) e 150 dias (em 2027); chegando a Marte, a
colónia permanente e auto-sustentável em Marte. nave será reabastecida por combustível criado in situ e regres-
A proposta de Elon Musk pode parecer apenas um sonho sará à Terra com tripulação e material, estabelecendo-se assim
para a maioria, e muitas pessoas que não conhecem o tra- uma ponte verdadeira interplanetária.
balho da SpaceX reagiram mesmo com desconfiança e indi- Poucos dias após a apresentação do ITS, outras compa-
ferença perante a apresentação na IAC, mas olhando para a nhias privadas manifestaram o seu interesse em entrar na
curta história desta empresa e para o impulso que um sonha- corrida a Marte, e no passado dia 11 de Outubro tanto o Pre-
dor como Musk deu à exploração espacial, se há alguém que sidente dos Estados Unidos, Barack Obama, como o Direc-
nos vai proporcionar a capacidade de nos estabelecermos em tor da NASA, Charles Bolden, comunicaram que o futuro da
Marte serão eles. agência espacial e do programa “Road to Mars” passará pela
O Sistema de Transporte Interplanetário (ITS) apresentado colaboração com entidades privadas que irão fazer com que
por Musk é nada mais nada menos do que a forma de trans- em menos de uma década possamos ver os primeiros resulta-
porte que nos levará a Marte. A chave de todo este sistema dos de uma Corrida Espacial.
foca-se em dois elementos chave: o motor “Raptor”, que no
dia anterior à apresentação era testado com sucesso, sendo
divulgado um vídeo e fotos nas redes sociais, e a reutilização
dos foguetões espaciais. Até este momento, só falta mesmo
demonstrar em Novembro próximo a viabilidade da reutiliza-
ção de um foguetão orbital Falcon 9 que aterrou em alto mar,
em Abril passado.
A reutilização dos foguetões irá ajudar a baixar os custos do
transporte e permitir que mais pessoas possam ter a possibi-
lidade de fazer a viagem Terra-Marte. Para podermos ter um
meio de comparação, se fôssemos a Marte utilizando tecno-
logia semelhante à das missões Apollo, cada viajante custaria
cerca de 10 mil milhões de dólares. Musk propôs baixar esse
valor para o custo médio de uma casa nos EUA, cerca de
200.000 dólares. Isto constitui a chave para conseguir criar
uma futura colónia com habitantes e recursos suficientes, de
modo a se tornar verdadeiramente independente de abasteci-
mentos periódicos da Terra (à semelhança do que acontece
actualmente com as Estações Espaciais).

esquema apresentado no IAC é trans-


posto aqui para que se possa perceber as
fases que irão compor cada viagem: pri- em:
op inião
meiro a tripulação é enviada para a Órbi- sua m
ta Terrestre Baixa, depois o foguete recu- e a
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perado levará um tanque de combustível d b
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que irá proceder ao abastecimento em


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órbita da nave (este passo, além de baixar o custo de transpor-


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te por pessoa, também baixa substancialmente os riscos para


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a tripulação). Nas primeiras viagens o número de passageiros


gostou

BANG! /// 17
“Of
course
in my
conscious self I am
always stupid, but the
Magus who uses me knows his
job”, escrevia Aleister Crowley no
seu livro Perante esta afirmação somos
levados a deduzir que Crowley estaria ciente de
que iria permanecer uma figura influente depois da
sua morte. Volvidas sete décadas após a mesma constata-se
que a escolha do seu “magical motto” (nome místico), Frater
Perdurabo, conteve um certo grau de presciência, ou então pelo
menos uma intuição bastante aguçada à qual se aliava um ego desmesurado.

18 ///
/ / BANG!
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ANG!
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frase “Don’t blame me, I voted atraindo muitos indivíduos para a Wicca, o
for Aleister Crowley”, consistiu movimento religioso neopagão alicerçado nos
no mote da plataforma ac2012.com, sistemas de crença pré-cristãos, introduzido por
uma iniciativa dedicada à promoção da Gerald Gardner no Reino Unido em 1954. Gardner
candidatura de Aleister Crowley para Presidente dos era, pelo menos desde a década de 1940, membro da
Estados Unidos da América aquando das eleições disputadas O.T.O (Ordo Templi Orientis, uma estrutura ocultista fundada
em 2012. Crowley, que se autoproclamava como a Grande no início do século XX, reformulada por Crowley em 1925, e
Besta 666, para além da sua nacionalidade inglesa, faleceu que se tornou uma organização de cariz internacional votada
em 1947. Porque teriam então os mentores à promoção da Lei de Thelema). Em 1943
desta iniciativa pautada por um sentido Gardner solicitou a Aleister Crowley que lhe
de humor mordaz escolhido o mestre redigisse alguns rituais de Feitiçaria, os quais
Thêrion como ícone de uma anti-campanha resultaram no The Book of Shadows, atribuído a
paralela? A resposta encontra-se no axioma uma feiticeira do século XVI, mas cujo estilo,
“Fazei como de vossa vontade deverá ser alguns anacronismos, e parágrafos inteiros
o todo da Lei”, uma das premissas centrais retirados do Livro da Lei e rituais da Golden
do seu LIBER AL vel LEGIS, vulgarmente Dawn (A Ordem Hermética da Aurora
designado como Livro da Lei, um poema em Dourada, sociedade secreta fundada em
três capítulos supostamente ditado por uma Inglaterra no ano de 1888, à qual pertenceu
entidade não-corpórea denominada Aiwass o mago até à sua expulsão em 1925) traem
nos dias 8, 9 e 10 de Abril de 1904, e que o pastiche do inglês isabelino e da pena de
é a base da sua religião, Thelema, (termo Crowley.
grego para Vontade que Crowley tomou de Apesar de só recentemente o seu
empréstimo a François Rabelais). pensamento ter saído do circuito dos
A irreverência e o tom jocoso desta conventículos ocultistas, a obra do mago
acção, Aleister Crowley 2012, contrasta no britânico afirmou-se na Contracultura da
entanto com a atitude de enlarvamento década de 1960, graças à força do seu carisma
— o voltar-se para si mesmo (a postura intelectual e à sua imagem de místico errante,
típica do indivíduo que se reclama de Thelema), numa recusa aliados ao seu espírito anárquico e contestatário. Artista outsider
de conflitos com o exterior e com os outros. Ou seja, a e poeta de versos por vezes esplêndidos, Crowley seduziu
consciência da impossibilidade numa mudança política do algumas das mentes inquietas dessa época, ainda que a sua fama
mundo é contraposta pelo desejo de mudar-lhe a percepção tenha sido sedimentada através de um fenómeno de moda e não
magicamente. como mestre espiritual, como teria sido de sua vontade.
Em 1951 o Parlamento Inglês anulou o Witchcraft Nos vinte anos que se seguiram à sua morte, a
Act, uma lei promulgada em 1542 (sucessivamente reputação de Aleister Crowley ficou adormecida,
actualizada até 1735) que criminalizava a prática tendo sido revitalizada apenas no final da
da Magia. Esta decisão despoletou um década de 1960 pelos famosos quatro
revivalismo Ocultista, cuja explosão se rapazes de Liverpool, os Beatles. “Those
efectuou nos finais da década seguinte, gifted young men, the Beatles,

ANNGG! ///
BANG!
BBA ///// 19
19
have added him to their escutcheon”, de drogas, advogava o
escreveu John Symonds1. mantra “Do what thou will
Nos inícios de 1967, Paul McCartney shall be the whole of the law”.
brincava com algumas ideias para a capa Uma exortação que assentava que
do Sgt. Pepper’s até que a arte gráfica nem uma luva no espírito dos anos
tivesse sido finalmente comissionada sessenta, com uma parte da população
a Peter Blake. McCartney solicitou determinada a criar uma nova civilização
aos restantes companheiros que cujos alicerces basilares se encontravam
fornecessem a sua lista de heróis no tom prosaico do lema “faz a tua
pessoais. George Harrison elencou os própria cena”.
seus gurus indianos, enquanto o próprio A 15 de Junho de 1969, o Sunday
Paul listava, entre outros, nomes como: Times Magazine dedicava um dossiê aos
William S. Burroughs, H.G. Wells, Jung 1000 makers of the 20th century. A foto
e Karl Marx. Ringo Star, por sua vez, de Aleister Crowley figurava à direita
optou pela divisa “Go with the flow”, da de Lenine, entre muitos outros
deixando a responsabilidade das escolhas notáveis. Desde essa época é recorrente
para os seus companheiros. Lennon a sua presença na memória colectiva do
nomeou Adolf Hitler (que esteve Ocidente, sempre com um magnetismo
mesmo para ser incluído até ao próprio recrudescido, ao qual é quase impossível
dia da sessão fotográfica), o Marquês de escapar: a geração Beat, a dos Hippies, a
Sade, Nietzsche, Dylan Thomas, James dos Rockers, e posteriormente a geração
Joyce, Oscar Wilde e Crowley — o mago Pós-punk, principalmente na sua
auto-estilizado, proponente seminal do ramificação Industrial, não lhe ficaram
amor livre e da indulgência narcótica. imunes. Dos Beatles a David Bowie, 1
O resultado foi incrível. Lançado na dos Rolling Stones aos Led Zeppelin,
Primavera de 1967, Sgt. Pepper’s Lonely dos Doors a Sting, de Marilyn Manson
Hearts Club Band tornou-se o disco a Ozzy Osbourne, passando pelos
mais influente da década. Os trinta Throbbing Gristle até aos Coil, todos
milhões de pessoas que a partir de 1967 eles foram continuamente seduzidos pela
adquiriram o oitavo álbum dos Beatles, sua figura lendária. Significativo é ainda
o facto da cena Pós-punk
— principalmente nas
vertentes Electrónica
e Industrial — desde
a década de 1970 até à
actualidade, ter elevado
Crowley ao estatuto de
mentor.

**

rowley foi um homem


fora do comum.
Mago e grande sedutor
de homens e mulheres,
poeta e alpinista de
renome, cocainómano
muito provavelmente nunca tinham e escritor prolífico2. Figura maldita
ouvido falar anteriormente de Crowley no seu próprio país e persona non grata
até visionarem o seu rosto transformado na Itália de Mussolini, Crowley, ainda
em ícone Pop na capa deste disco assim, deixou uma marca indelével em
lendário. Os seus inúmeros fãs sentiram artistas e escritores como Somerset
a necessidade de conhecer cada uma Maugham, Auguste Rodin, Man Ray,
das figuras presentes no panteão criado Jacob Epstein, Fernando Pessoa3, Henry
pelos seus ídolos. É fácil imaginar Miller, Ernest Hemingway e Anaïs Nin.
o deleite de muitos admiradores ao Como se pode facilmente constatar,
descobrirem que aquela figura calva e a sua influência no âmbito cultural
ameaçadora, desmedido consumidor não é negligenciável, seja por

2200 ///
//// BANG!
BAN
A G!
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intermédio do cineasta título de um poema pornográfico de
Keneth Anger, do Crowley publicado em 1998], projecto
vulgarizador do LSD musical dos suecos Carl Abrahamsson
Timothy Leary4, ou através e Thomas Tibert, cuja actividade se
da área que aqui nos ocupa — a desenvolveu entre 1987 e 1994).
Música.
Em 1969, o realizador Kenneth ***
Anger (um devoto Crowleyano)
alugou a Boleskine House, uma antiga o longo de toda a vida
propriedade de Crowley situada junto Crowley nunca descurou a sua
ao Loch Ness. No ano seguinte Jimmy autopromoção. De maneira a disseminar
Page, membro dos Led Zeppelin, as suas ideias junto de uma maior
foi informado por Anger de que audiência, em 1910 (ou em 1920 de
a propriedade se encontrava para acordo com outros autores) gravou-se
venda. A sua compra foi imediata, a si próprio a discorrer sobre temáticas
consagrando Page como um dos variadas. Nesses registos, Crowley recita
maiores coleccionadores de crowleyana, textos de magia cerimonial do mago
faceta reflectida na iconografia da sua isabelino John Dee, mas também lê
própria banda. O renascimento de de forma entusiasta diversos poemas
Aleister Crowley estava em curso. Desde da sua lavra como The Poet, La Gitana,
Graham Bond (organista e discípulo de One sovereign for the woman, At Sea, The
Crowley, que se considerava seu filho), Fingernails, The Titanic, aos quais adiciona
em 1970, com «Holy Magick», passando a leitura dos exuberantes Hymn to the
pelos Chakra (um exemplo inspirador do American People, Excerpts from the Gnostic
rock de contornos ocultistas, integrado Mass, e Vive la French Republic. A sua voz,
por Kennet Grant, secretário de Crowley registada em cilindro fonográfico (de
e fundador da Typhonian Ordo templi cera), tornou-se um artefacto cultural
Orientis) em 1976, com o seu 7’’ Scarlet de indiscutível valor na medida em
Woman, e culminando em John Zorn, que transportou o bramido da Grande
com os álbuns IAO: Music in Sacred Besta até ao século XXI, armazenando
Light, de 2002, e Moonchild: Songs Without e propagando simultaneamente o germe
Words, de 2006, é possível encontrar uma da sua perenidade.
miríade de grupos e individualidades que
reclamam a sua inspiração.
Importa no entanto proceder à
distinção dos três tipos de atitudes por
parte dos artistas que se reivindicam
influenciados pela Grande Besta: o longo desta exposição aprouve-me
para alguns, trata-se apenas de não delinear aqui não um estudo, nem
ignorar um efeito de moda (David mesmo um modesto ensaio, sobre a
Bowie, Sting, entre outros, podem ser influência de Crowley junto de alguns
alguns dos nomes aqui apontados), criadores fulcrais das últimas décadas
para outros, reclamarem-se do mestre (aspecto que na minha perspectiva se
Laird of Boleskine consiste apenas encontra relativamente bem estudado
numa estratégia de provocação em por musicólogos e jornalistas musicais,
várias direcções, totalmente desprovida mas cujo enquadramento não mereceu
de qualquer carga espiritual (Ozzy a melhor atenção por parte da História
Osbourne ou os Ministry, por exemplo), da Cultura e das Mentalidades nem da
contudo para uma pequena minoria História das Ideias), mas tão-somente
tal atitude encontra-se ligada a um fornecer uma vista de passagem sobre
compromisso existencial real (refira-se o legado desta figura ímpar da História
a título de exemplo a maior parte dos do século XX, e que apesar de já ter
artistas mapeados no livro England’s morrido há setenta anos ainda se revela
Hidden Reverse — A Secret History uma figura inspiradora, quer na Cultura
of the Esoteric Underground de Popular (por via da Música), mas também
David Keenan [Coil, Current a nível social, enquanto avatar libertário,
93 e Nurse With Wound]), como se pode comprovar pela campanha
ou então White Stains [o Aleister Crowley 2012.

NG! ///
BANG!
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ANG /// 211
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N OTA S

1
Paradoxalmente o biógrafo mais hostil à figura da Grande Besta, na
medida que foi o seu executor literário. Em conjunto com Kenneth
Grant — a dada altura secretário pessoal de Crowley —, Symonds, foi
também o responsável pela edição e republicação da sua autobiografia,
assim como de várias outras obras do mago inglês nas duas décadas
seguintes ao seu desaparecimento. Sem o trabalho sistemático de
ambos, Symonds e Grant, dificilmente os Beatles e outros músicos
da sua geração teriam tido acesso às suas obras, com a provável
impossibilidade de o adicionarem aos seus “brasões de armas”.
2
Crowley cultivou inclusivamente vários géneros literários, desde os
contos de contornos sobrenaturais, à novela fantástica, cujo exemplo
mais acabado pode ser encontrado em Moonchild — obra subordinada
ao tema do Homúnculo. A maior parte das incursões de Crowley no
domínio do Fantástico encontram-se compiladas no volume The Drug
& Other Stories, numa edição da Wordsworth.
3
Como se pode comprovar através da leitura do artigo September 1930,
Lisbon: Aleister Crowley’s lost diary of his Portuguese trip, da autoria do
académico italiano Marco Pasi.
4
Leary reivindicava publicamente a sua filiação thelemita, por exemplo
no seu artigo The Principle and Practice of Hedonic Psychology, publicado em
Psychology Today em Janeiro de 1973.

BIBLIOGRAFIA

BEBERGAL, Peter —Season of the Witch: How the Occult Saved Rock and Roll,
Penguin, New York: 2014.
BOUCHET, Christian — Aleister Crowley, Hugin, Lisboa: 2000.
CROWLEY, Aleister — O Livro da Lei, Hugin, Lisboa: 1999.
CROWLEY, Aleister — O Livro da Lei, Oficinas TK, Porto: 2015.
CROWLEY, Aleister — The Drug & Other Stories, Wordsworth, Ware: 2015.
DELL’AIRA, Alessandro — O Mocho e o Mago, Edições Afrontamento,
Porto: 1993.
HUTCHINSON, Roger — Aleister Crowley: The Beast Demystified,
Mainstream Publishing, Edinburgh: 1999.
PASI, Marco (ed.) — Peintures Inconnues d’Aleister Crowley, Arché, Milano:
2008.
PASI, Marco — September 1930, Lisbon: Aleister Crowley’s lost diary of his
Portuguese trip, Pessoa Plural, 253-282, 2012.
PILKINGTON, Mark — Sounds Of Blakeness, Fortean Times: 2001.
POUNCEY, Edwin — An Initiation into Occult Rock, The Wire, 390, 32-37,
1999.
TIBET, David — Return of the Beast, Flexipop, 666, sem paginação, 1983.
WILSON, Colin — The Occult: A History, Random House, New York:
1971.

JÚLIO MENDES RODRIGO


possui formação nas áreas de História, Museolo-
gia e Arte Multimédia. É autor e apresentador d’O
Arranca Corações, um programa radiofónico trans-
in ião em:
mitido semanalmente na Rádio NFM. Tem inúmeros a op
textos dispersos por várias publicações. Em 2010 as
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editou o seu primeiro livro de ensaios intitulado eix
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Summa Techno(i)logicae. Escreve regularmente no


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blogue Die Elektrischen Vorspiele.


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(https://dieelektrischenvorspiele.wordpress.com/)
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gostou

22 /// BANG!
omo se pode Alguns conhecidos escritores, separadamente e ordenan-
calcular, cada por exemplo, tinham o hábito do-as depois como melhor
escritor terá os de escrever em pé! Entre eles lhe parecia; Alexandre Du-
seus hábitos pe- contam-se Charles Dickens, mas gostava de utilizar cores
culiares quando Ernest Hemingway, Virginia diferentes consoante o tipo
se trata de con- Woolf, Winston Churchill, de texto que estava a escrever
ceber as suas obras. Uns, pro- etc.; já Agatha Christie era co- (azul para os romances, cor
fissionais da escrita, ocuparão nhecida por, durante um cer- de rosa para artigos ou outras
a maior parte dos seus dias to período da sua vida, con- peças não ficcionais, amare-
na pesquisa dos elementos de geminar os seus intrincados lo para a poesia…); conta-se
que necessitam e depois na argumentos dentro de uma que, para terminar o romance
construção pormenorizada banheira com água tépida e Notre-Dame de Paris, no prazo
e sucessiva revisão dos seus comendo maçãs! Por sua vez, que lhe era imposto, Victor
textos; outros, escrevendo escritores como Mark Twain, Hugo terá dado instruções
nas horas vagas, estarão ha- George Orwell ou Marcel para que lhe escondessem as
bituados a determinadas ro- Proust, entre outros, gosta- vestimentas, de forma a não
tinas com que estruturam os vam de escrever deitados nas ser tentado a sair de casa, es-
respectivos tempos. Certos suas camas; Vladimir Na- crevendo então embrulhado
costumes poderão mesmo bokov escrevia os seus traba- num cobertor. Os exemplos
parecer um pouco fora do lhos nuns pequenos cartões, de tais peculiaridades pode-
comum. redigindo as diversas cenas riam multiplicar-se…

BANG! /// 23
o que se refere aos autores de etc. Ao mesmo autor se deve a série em Hampstead no dia de Natal de 1913
histórias fantasmagóricas, a das aventuras de Harry Dickson, em e educado no Clifton College e no
mesma variedade se poderá, que o fantástico se mistura com o es- King’s College, em Cambridge. Come-
evidentemente, encontrar, começando tilo policial. çou a sua vida profissional como livrei-
desde logo por observar que enquanto Contudo, em 1926, Raymond de Kre- ro antiquário, actividade que o ocupou
alguns redigem os seus contos como mer foi acusado de um desfalque numa de 1935 a 1947, embora interrompida
mero exercício intelectual, outros tem firma para a qual trabalhava, julgado e durante a Segunda Guerra Mundial.
havido ao longo dos tempos que acre- condenado a seis anos e seis meses de Toda a sua vida foi passada entre livros
ditam de facto na existência de almas prisão, embora acabasse por ser liberta- e em bibliotecas, tendo sido nomea-
do outro mundo e demais seres sobre- do em 1929. Estando o seu nome man- do bibliotecário do King’s College em
naturais. chado por tão infeliz ocorrência, foi 1947. Foi também eleito Presidente da
No entanto, se pensarmos nas cir- justamente durante o período de encar- Bibliographical Society de Londres, em
cunstâncias em que cada autor exerce ceramento que começou a usar o pseu- 1974, ano em que, porém, acabaria por
a sua actividade e dá asas à sua ima- dónimo John Flanders, entre diversos falecer.
ginação, na confecção de histórias de outros, para os escritos que continuava Ao longo da sua carreira publicou
terror, talvez não imaginemos imedia- a publicar. É de admitir, em face das da- mais de uma dúzia de obras de refe-
tamente a possibilidade de a inspiração tas de publicação original, que contos rência, tais como Phillipps Studies (cinco
poder ocorrer a alguns enquanto deti- importantes da bibliografia de Jean Ray, volumes, 1951-1960), The Cult of the
dos em cadeias, por diversos motivos. como “La Ruelle Ténébreuse” ou “Le Autograph Letter in England (1962),
No entanto, podemos referir alguns Psautier de Mayence”, possam ter sido The Libraries of English Men of Letters
exemplos interessantes. compostos ainda atrás de grades. (1964) e Connoisseurs and Medieval
Nunca é demais sublinhar a impor- Miniatures, 1750–1850 (1972).
tância da obra fantástica de Jean Ray, Apesar dos seus méritos e múlti-
primeiro deles é o escritor bel- objecto, de resto, de um grande núme- plos trabalhos, nos nossos dias A. N.
ga Jean Ray (pseudónimo lite- ro de estudos e artigos. Foi sem dúvida L. Munby é principalmente conhecido
rário de Raymond Jean Marie a mais importante figura na escola bel- como autor de uma colecção de histó-
de Kremer, também conhecido como ga do fantástico, que inclui outros no- rias sobrenaturais, reunidas no volume
John Flanders). Nascido na cidade bel- mes de relevo, como Thomas Owen, The Alabaster Hand, inicialmente publi-
ga de Gante, em 1887, foi um prolífi- Franz Hellens, Michel de Ghelderode, cado em 1949. Ora o que nos importa
co escritor, tendo escrito romances de Jacques Sterneberg, etc. Oscilando fre- aqui salientar é que as catorze histórias
aventuras para jovens, histórias poli- quentemente entre o terror sobrenatu- fantasmagóricas ali incluídas foram es-
ciais e uma grande variedade de textos ral e a ficção científica, passando pelo critas, de acordo com o próprio autor,
sobre os mais diversos assuntos e até surrealismo, os contos de Jean Ray “entre 1943 e 1945 num campo-prisão
letras de canções, sob uma grande va- constituem um contributo ímpar para nos arredores da antiga cidade forti-
riedade de pseudónimos; no entanto, o a literatura fantástica europeia. ficada de Eichstätt na Alta Francónia
seu nome ficou indelevelmente ligado [estado federal da Bavária, Alema-
à literatura fantástica, de que é conside- nha]”. Na realidade, três das histórias –
rado um dos mestres, com obras como omo segundo exemplo, en- “The Four-Poster”, “The White Sack”
Malpertuis, La Cité de l’Indicible Peur, Les contramos Alan Noel Latimer e “The Topley Place Sale” – foram
Contes du Whisky, Le Grand Nocturne, Munby, escritor inglês nascido inicialmente publicadas numa revista

24 /// BANG!
do próprio campo prisional, intitulada morto (“The Alabaster Hand”), um escritas e frequentemente de grande
Touchstone. Quando as histórias foram retrato animado (“The Topley Place originalidade. É portanto uma obra
finalmente reunidas em livro, Munby Sale”), abutres espectrais (“The Lec- que se recomenda vivamente aos apre-
acrescentou-lhes uma dedicatória a M. tern”) e o próprio Diabo (“The Devil’s ciadores do género. Se bem que a edi-
R. James, a quem designa como um Autograph”), para além de um sortido ção original seja difícil de encontrar e
“ímpar criador de histórias do género”. de fantasmas propriamente ditos nos dispendiosa, foram publicadas edições
Embora um campo prisional seja restantes contos. mais recentes, a última das quais pela
sem dúvida um ambiente estranho para Tal como as histórias de M. R. James, Sundial Press, de Dorset, na Inglaterra.
a concepção de histórias fantasmagó- as de A. N. L. Munby são tipicamente
ricas, a grande erudição do autor terá britânicas, descrevendo um modo de
compensado a necessidade de alguma vida próprio das classes mais elevadas, as dentro do tema que nos
pesquisa. Deve dizer-se, de resto, que o quer do ponto de vista económico, leva a reunir estas variadas
Oflag VIIB Offizierlager beneficiava de quer do ponto de vista académico, com obras de tão diferentes au-
uma vida cultural intensa entre os deti- professores, grandes proprietários ou tores, cabe ainda uma palavra para a
dos, que incluía música, palestras literá- eclesiásticos a desempenharem papéis escritora irlandesa Dorothy Macardle
rias e outros eventos. principais. Ambos os autores dominam (1889-1958). Romancista, dramaturga e
A escrita de Munby era, tal como a uma prosa elegante e convidativa, se historiadora, professora diplomada de
de M. R. James, meticulosa, misturando bem que diversos traços de humor fre- Inglês, teve participação política activa.
diversos pormenores plausíveis com os quentemente apontados nos textos do Em 1937, publicou a importante obra
enredos sobrenaturais e conferindo as- primeiro se encontrem ausentes dos do histórica The Irish Republic: A Documen-
sim às histórias o sentimento de auten- segundo. Outra diferença interessante é ted Chronicle of the Anglo-Irish Conflict and
ticidade necessário ao respectivo êxito. que enquanto James considerava que as the Partitioning of Ireland with a Detailed
A estrutura das catorze histórias é rela- aparições sobrenaturais, para serem efi- Account of the Period 1916-1923. A sua
tivamente constante em diversos aspec- cazes, deveriam forçosamente ser malé- produção literária iniciara-se muito an-
tos. Cada uma tem um narrador anóni- ficas, Munby apresenta numa das suas tes, quando era professora no Alexan-
mo, usualmente um erudito, figura cla- histórias um fantasma benévolo! Com dra College, com a publicação de diver-
ramente autobiográfica; por exemplo, o efeito, a aparição em “An Encounter in sos poemas e artigos, textos escolares
conto “The Tudor Chimney” começa the Mist” tenta auxiliar o alpinista per- e peças de teatro que foram levadas à
com a frase “Sou um incansável colec- dido, ainda que a sua falta de conheci- cena, inclusivamente em Dublin.
cionador de apontamentos. Uma vida mento das condições modernas da re- Dorothy nasceu em Dundalk, no con-
de estudos antiquários conduziu a uma gião quase provoque um desastre. dado de Louth, situado no nordeste
formidável acumulação de material”. Se bem que a comparação entre as da República da Irlanda. O seu pai,
Por sua vez, vários desses narradores obras dos dois autores se justifique Thomas Callan Macardle, era um em-
confessam ter interesse no sobrenatural pela apreciação que Munby tinha pela presário bem-sucedido, proprietário
e no oculto; por exemplo, em “Hero- obra de James, seria injusto limitar os da cervejaria Macardle, Moore & Co.,
des Redivivus”, o narrador, depois de comentários ao seu único livro de his- em Dundalk. Inicialmente apoiante das
visitar um certo Charles Auckland e de tórias fantasmagóricas a esse confronto. posições britânicas, como os demais
examinar a sua vasta biblioteca, comen- Na verdade, as histórias de Munby têm elementos da sua família, mudou radi-
ta: “um simples olhar revelou-me que mérito próprio, são muitíssimo bem calmente as suas posições políticas em
[os livros] eram todos do género que 1916, no seguimento do esmagar da
os alfarrabistas classificam generica- insurreição de Dublin, juntando-se
mente dentro do género ‘Oculto’”; ao Sinn Féin.
e em “The Alabaster Hand”, Cecil Quando rebentou a Guerra Civil,
Travers, que chama o narrador a em 1922, altura em que Dorothy
sua casa, justifica o convite dizendo Macardle gozava já de uma certa
“Espero que não pense que o trou- reputação como escritora, empe-
xe aqui em vão, mas sabendo do seu nhou-se seriamente no lado repu-
interesse em […], bom, naquilo que blicano anti-tratado anglo-irlandês,
se poderá chamar o sobrenatural…” envolvendo-se ao mesmo tempo na
A panóplia de criaturas sobrena- Women’s Defence League, editan-
turais nas histórias de Munby é va- do o jornal Irish Freedom. No início
riada, transcendendo largamente os de Novembro de 1922, Dorothy
fantasmas, em sentido estrito, ape- foi presa na sede do Sinn Féin em
sar de o subtítulo do livro anunciar Dublin e encerrada na cadeia de
“and other ghost stories”. De resto, Mountjoy, de onde viria depois a ser
também M. R. James não restringia transferida para a de Kilmainham.
as suas aparições às típicas almas pe- Nos seus escritos encontram-se
nadas, que estão mesmo em minoria pungentes relatos dos maus tratos
nas suas histórias. Os seres invoca- infligidos às prisioneiras.
dos por Munby incluem a reincar- Apesar de vários pedidos efectua-
nação de Gilles de Retz (“Herodes dos pelos pais junto de pessoas in-
Redivivus”), guardiões demoníacos fluentes com quem tinham contac-
(“The Inscription”), a mão de um tos, Dorothy Macardle permaneceu

BANG! /// 25
1

na prisão até Maio de 1923. Quando foi finalmente libertada,


trazia consigo uma colecção de contos sobrenaturais, que ti-
nha escrito para passar mais facilmente o tempo de encarce-
ramento, graças a fornecimentos de papel e canetas feitos por
uma das suas ex-alunas.
Não deverá constituir surpresa que as histórias escritas duran-
te o cativeiro tenham todas como pano de fundo o conflito
que grassava na Irlanda, incorporando mitos e lendas locais
e tratando de aparições fantasmagóricas, sonhos e premoni-
ções, clarividência e outras intervenções de um Outro Mundo
paralelo ao nosso. Quase todos os contos, que acabariam por
ser reunidos num volume sob o título Earth-Bound, são de-
dicadas a outras prisioneiras, identificadas por meras iniciais,
salvo duas que são dedicadas a escritoras que influenciaram o
estilo e as posições de Dorothy Macardle.
A primeira edição do livro apareceu em 1924, tendo uma nova
edição, ampliada com algumas histórias não incluídas na pri-
meira, sido recentemente publicada pela Swan River Press, de
Dublin. Há que reconhecer, porém, que os contos que se en-
contram em Earth-Bound têm mais interesse histórico, dadas
as circunstâncias em que foram redigidos e todo o envolvi-
mento histórico, social e político que lhes serve de base, do
que propriamente valor literário, aspecto em que não atingem
particular brilhantismo.
A partir da década de 1930, a produção literária de Macardle
foi abundante e variada, incluindo alguns romances de temá-
tica sobrenatural. Hoje em dia, é principalmente recordada
como autora de Uneasy Freehold (1941), romance adaptado ao ião em:
in
cinema em 1944, num filme que contou com interpretações a op
de Ray Milland e Ruth Hussey e teve o título The Uninvited. as
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26 /// BANG!
NOS TRINTA ANOS DE

POR JOÃO LAMEIRAS

BANG! /// 27
ublicado pela primeira vez em nema à BD e à literatura, que Sclavi faz com Groucho” disse. “Eu sou os mons-
Itália em Outubro de 1986, na questão de assumir e integrar de forma tros.”
história L’Alba dei Morti Viventi, harmoniosa nas suas histórias, fazendo Tendo ganho um prémio literário aos
uma história de zombies onde o terror sua a máxima de Totó, o grande actor dezanove anos, o reconhecimento pre-
se misturava com o humor, Dylan Dog e comediante italiano que dizia: “todos coce do seu talento não lhe serviu de
cedo se tornou uma personagem de são capazes de criar, copiar bem é que muito em termos de carreira pois, como
culto, capaz de conquistar tanto as lei- é mais difícil”. refere “o público recebeu os seus livros
toras, com a sua aura romântica, como Quanto à origem do estranho nome com uma indiferença entusiástica”, o
os apreciadores dos filmes de terror, do herói, o próprio Sclavi explica como que o obrigou a trabalhar como jorna-
que não ficavam indiferentes ao lado surgiu: “Dylan vem do poeta Dylan lista, revisor e argumentista de BD para
gore da série. E a época de ouro do ci- Thomas. Quanto a Dog, o nome vem poder sobreviver, enquanto os seus ro-
nema de terror italiano, representado do título de um romance de Mickey Spi- mances aguardavam por um editor dis-
por nomes como Dario Argento, Má- llane que vi na montra de uma livraria. posto a publicá-los.
rio e Lamberto Bava e Michele Soavi, é Mas Dylan Dog sempre foi o nome
uma das grandes referências de Sclavi, provisório que dei às minhas persona-
que leva mesmo o seu herói ao cinema gens (a prova é que escrevi uma história precisamente enquanto argumentis-
para ver Dawn of the Dead, de George curta desenhada por Lorenzo Mattotti ta de BD que Sclavi vai iniciar uma
Romero, um filme de zombies cujo tí- nos anos 70, com esse mesmo título). É colaboração com a editora Bonelli cujos
tulo Sclavi vai pedir emprestado para o caso típico do nome de trabalho, em fumetti são um verdadeiro fenómeno edi-
a primeira aventura de Dylan Dog. Do que pensamos “por enquanto, vamos torial e sociológico. Assim, além de criar
mesmo modo, o inspector da Scotland chamar-lhe assim, até encontrarmos um Gli Aristocratici, com Alfredo Castelli (o
Yard, a quem Dylan Dog ajuda nas suas nome melhor”. A diferença entre Dylan criador de Martin Mystere, outra das mais
investigações, chama-se Bloch, como o Dog e as minhas personagens prece- interessantes séries da Bonelli) Sclavi vai
escritor de Psycho e o apartamento e es- dentes é que desta vez o nome mante- assinar argumentos para outras séries da
critório do herói fica em Londres, no nº ve-se.” E, curiosamente, Mattotti, que editora, antes de criar finalmente Dylan
7 da Craven Road, uma morada no bair- desenhou esse primeiro Dylan Dog em Dog, abrindo assim as portas do sucesso
ro londrino de Paddington que, apesar 1977, num Western que nunca chegou com o carismático detective do para-
de remeter para o cineasta Wes Craven, a ser publicado, só voltaria a desenhar normal, cujas virtudes são gabadas até
existe mesmo e onde está instalado um o detective do oculto em 2015, na capa por Umberto Eco, que não tem pejo em
café que, a partir de 2013, mudou de da edição especial do Dylan Dog nº 350, colocar Dylan Dog a par da Bíblia e dos
nome para Café Dylan Dog. distribuído na edição desse ano do Fes- poemas de Homero, no topo das suas
tival de Lucca. leituras favoritas.
Curiosamente, antes de criar Dylan
esta primeira aventura de Dylan Dog, Sclavi tinha proposto a Bonelli
Dog, já estão presentes todos os e Dylan Dog é um herói fascinante, recuperar os personagens de um dos
elementos que contribuíram para o su- Tiziano Sclavi, o seu criador não o seus primeiros romances, Dellamorte
cesso da série, desde o humor (irónico é menos. Personagem torturada, afec- Dellamore e transformá-los em heróis
no caso de Dylan e delirante no do seu tada por várias depressões e bloqueios de uma série de BD, sendo Francesco
criado Groucho que, mais do que ins- criativos que o levaram mesmo a tentar Dellamorte uma espécie de estudo pre-
pirado no actor, é o próprio Groucho o suicídio, Sclavi é uma figura envolta paratório para Dylan Dog, com quem
Marx, ou melhor, um doente mental numa aura de mistério. Mistério para o compartilha o aspecto físico e a forma
que acha que é Groucho Marx); o ero- qual muito contribuiu o facto de quase de vestir. Essa ideia acabou por não se
tismo (há sempre uma bela cliente por não aparecer em público, raramente dar concretizar no papel, mas aconteceu de
quem Dylan se apaixona); uma angústia entrevistas e muito menos se deixar fo- forma indirecta no cinema, graças ao
existencial e uma sensação de claus- tografar. Numa dessas raras entrevistas, filme de Michele Soavi a partir do cita-
trofobia que o humor não consegue ficou célebre a resposta que deu quando do romance. Depois de ter servido de
apagar; e o uso desenfreado das mais lhe perguntaram se se identificava com modelo para Dylan Dog, o actor inglês
variadas citações e homenagens, do ci- Dylan Dog: “Nem com Dylan, nem Rupert Everett acabou por ser o prota-

28 /// BANG!
gonista de Dellamorte Dellamore, o filme Marx, teve que ser substituído por Mar- algumas das mais famosas aventuras de
que consegue transpor com sucesso o cus, o personagem de Huntington no Dylan Dog à rádio, numa série de 25
universo único de Tiziano Sclavi para o filme, responsável pelos momentos mais programas, emitidos em 2002 pela ca-
grande ecrã e que o próprio Sclavi con- divertidos, quando é transformado num deia Radio Due.
sidera mesmo “muito melhor do que o zombie e tem que aprender a adaptar-se Apesar do sucesso da série, que con-
livro”. à sua nova condição de morto-vivo. seguiu conciliar a crítica com o grande
Confirmando as ligações de Dylan Mas o humor da personagem de Mar- público, aliando o sucesso comercial ao
Dog e do seu criador com o cinema, o cus e de alguns bons diálogos não sal- prestígio cultural, traduzido numa série
herói emprestou o nome ao Dylan Dog vam um filme com um argumento cheio de artigos nos mais prestigiados jornais
Horror Fest, um festival de cinema de de buracos, uma direcção pouco criativa, e revistas italianas e não só, e em várias
terror, que teve quatro edições, entre efeitos especiais bastante fracos e que Teses de Mestrado e Doutoramento,
1987 e 1993, onde os desenhadores de não consegue preservar a originalidade Sclavi acabaria por se afastar gradual-
Dylan Dog partilhavam o protagonismo de Dylan Dog, que distinguia a série de mente da escrita das aventuras de Dylan
com grandes nomes do cinema de ter- outras abordagens ao género do terror, Dog. Mais do que o cansaço em relação
ror, como Dario Argento, Clive Barker, ficando bem longe dos filmes de fã es- à personagem, o afastamento foi moti-
Lamberto Bava, Herschell Gordon critos, dirigidos e realizados por Roberto vado pela dificuldade cada vez maior em
Lewis, Sergio Stivaletti, Robert Englund D’Antona com meios infinitamente in- escrever novas aventuras para o (anti)
(o actor que faz de Freddy Krueger na feriores. herói que criou. Conforme confessou a
série Nightmare in Elm Street) e Jeffrey Umberto Eco: “a força de Tex provém
Combs. do carácter repetitivo das histórias: duas
Essa ligação entre Dylan Dog e o ci- pesar do resultado estar muito ou três tramas e algumas variações sobre
nema acabaria por dar origem, em 2007, longe de ser brilhante, iniciativas esses temas. Isso nunca funcionaria com
a um filme realizado por Kevin Munroe, como o filme ajudaram à popularidade Dylan Dog, porque o leitor quer ser sur-
que já tinha dirigido o 4.º e último filme da série, que do estatuto inicial de série preendido. E asseguro-lhe que ao fim de
das Tartarugas Ninja. Um filme que pas- de culto com vendas não especialmen- 140 números é muito difícil continuar a
sou despercebido do público, apesar de te entusiasmantes, rapidamente evoluiu surpreender os leitores.”
contar com Brandon Routh no principal para um verdadeiro fenómeno de mas- Por isso, Sclavi abandonou o seu he-
papel e Sam Huntington no do seu as- sas, aspecto a que não será estranho a rói, regressando apenas por ocasião do
sistente Marcus. Um elenco muito habi- grande qualidade dos seus principais de- vigésimo aniversário, em 2006, no Dylan
tuado aos filmes inspirados na BD, pois senhadores, como Angelo Stano, Bruno Dog nº 240, assinando o argumento de
Routh participou no divertidíssimo Scott Brindisi e Corrado Roi. O sucesso de Ucronia, uma história ilustrada por Fran-
Pilgrim Vs the World, foi o Super-Homem Dylan Dog foi tal, que chegou mesmo a co Saudeli, desenhador que, depois de
em Superman Returns de Bryan Singer, ultrapassar Tex como o título mais ven- nos anos 80 e 90 se ter dedicado à BD
para além de participar actualmente nas dido da casa Bonelli, ao mesmo tempo erótica, trabalha actualmente para a edi-
séries televisivas Arrow e Legends of To- que a personagem, para além de ver as tora Bonelli. Um regresso que se reve-
morrow, como Ray Palmer, o Átomo da suas aventuras reeditadas nos mais va- lou temporário, pois, depois de escrever
DC. Apesar da reconhecida experiência riados formatos, era adaptada a outros também as histórias dos n.os 243 e 244, o
do elenco na transposição de BDs para meios de comunicação, desde os jogos escritor voltaria a afastar-se da escrita da
o cinema, esta adaptação não prima de computador ao teatro radiofónico. série que criou.
pela fidelidade à BD original, bem pelo Nesse campo, o mérito vai para o rea-
contrário, pois a acção foi transposta de lizador Armando Traverso que, depois
Londres para New Orleans e, por ques- do sucesso das versões radiofónicas de mbora continuasse a ser a segunda
tões de direitos, o ajudante de Dylan outros clássicos dos fumetti como Tex, mais popular série da Bonelli, logo
Dog na BD, inspirado no actor Groucho Lupo Alberto e Diabolik, decidiu adaptar a seguir ao cowboy Tex, a popularida-

BANG! /// 29
de do detective do oculto foi caindo e escritora da série. É o caso de Sílvia Me- num planeta ameaçado por uma grande
a própria editora apercebeu-se de uma ricone e Rita Poretto, duas fãs da série, invasão de zombies, de que Groucho,
certa estagnação criativa, que levou a que cresceram a ler Dylan Dog e que que Dylan Dog não teve coragem de
uma remodelação da série coordenada agora escrevem as suas aventuras. matar, foi o paciente zero.
por Roberto Recchioni, com a bênção Outra das características da série ago-
do próprio Sclavi. Os leitores italianos ra que chega aos 30 anos de publicação,
puderam ver os resultados dessa remo- é o multiplicar de títulos que fazem com u seja, trinta anos depois da sua
delação em finais de Outubro de 2013, que todos os meses haja dois ou mais primeira aventura, Dylan Dog está
a partir do n.º 338, em que o inspector títulos novos de Dylan Dog à venda nos mais vivo do que nunca, estando presen-
Bloch finalmente se reforma e vai viver quiosques italianos. Assim, além da série te em força nos quiosques, nas livrarias
para Wickedford, uma pequena e pacata mensal e das suas reedições, os fãs da e nas colecções dos jornais e até o seu
cidade de província que, como seria de fase anterior à actual remodelação têm criador Tiziano Sclavi voltou a escrever
esperar nesta série, esconde terríveis se- a revista Maxi Dylan Dog Old Boy, um duas ou três histórias novas do detective
gredos. A substituir Bloch na Scotland título quadrimestral de quase 300 pági- do oculto, a primeira das quais, Dopo un
Yard temos o inspector Tyron Carpen- nas, com histórias passadas na época em Longo Silenzio, foi lançada em finais de
ter, que para além de ser contra a cola- que Bloch ainda estava no activo. Outro Outubro durante o Festival de BD de
boração informal de Dog com a polícia, título interessante é o trimestral Dylan Lucca. E a editora Bonelli não deixou
o que vem introduzir um elemento de Dog Color Fest, uma edição temática a co- de comemorar devidamente a ocasião,
tensão novo na série, conta com uma res, geralmente composta por histórias através de uma série de iniciativas, como
assistente paquistanesa, Rania Rakim curtas, normalmente desenhadas por Dylan Dog Presenta, um ciclo de cinema
que usa véu, dando um toque mais mul- artistas pouco habituais na série, como em articulação com a Universal Itália,
ticultural a uma série em que as novas o argentino Enrique Breccia, ou o ita- que culmina com a exibição de 30 Anni
tecnologias têm uma presença cada vez liano Giuseppe Camuncoli, que traba- di Incubi, um documentário sobre a sé-
mais visível, sendo evidente a preocupa- lha para a Marvel. Outro título que foi rie, na noite de Halloween, uma nova
ção dos escritores em adaptarem o mais reformulado, foi o clássico Almanaque adaptação radiofónica das aventuras de
possível as aventuras de Dylan Dog à della Paura, uma publicação anual que Dylan Dog, que incluirá também a mais 1
realidade do mundo contemporâneo. foi substituída pelo Dylan Dog Magazine. recente história escrita por Sclavi e uma
Também é visível uma evolução a Também um dos títulos mais antigos, o Dylan Dog Experience, (que mais do que
nível dos argumentistas, com mais mu- Dylan Dog Speciale, publicado anualmen- uma exposição promete ser uma expe-
ntarem-se a
lheres a juntarem-se te, abrigou nos últimos dois anos a his- riência sensorial irrepetível, aproveitan-
bato, que
Paola Barbato, tória Pianeta dei Morti, uma saga escrita do um palácio abandonado no centro
se vai afirmando por Alessandro Bilotta, cuja acção de Lucca que vai ser transformado em
incipal
como a principal se passa vinte anos no futuro, Hotel) apresentada também em Lucca.

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30 /// BANG!
ma das características par- como da semente narrativa do livro: em lativa, os desertos eram ainda, no duplo
tilhadas por quase todos os vez de modificar os ritmos naturais, fa- sentido da expressão, tabula rasa.
clássicos de culto é a quali- zer com que esses ritmos contribuam A emancipação inscrita nas profecias
dade dos seus mitos de origem: C. S. para o objectivo pretendido; adaptação dos Fremen, o povo indígena do planeta
Lewis a improvisar Nárnia para entreter às circunstâncias substituindo a mera deserto que dá título ao romance, é si-
as crianças desalojadas que acolheu em subjugação tecnológica; e a importação multaneamente metafísica e materialista.
sua casa durante a II Guerra Mundial; de um elemento exterior para cumprir Anseia pelo Messias, mas também pela
Tolkien, enquanto corrigia exames, a um propósito salvífico. paciente terraformação que faça o Paraí-
anotar distraidamente a que viria a ser a A reportagem nunca viria a ser pu- so florescer.
primeira frase de O Hobbit. blicada, mas o esquema inflamou a Ecologia e Religião — à escala plane-
Poucas géneses, no entanto, serão tão imaginação de Herbert — que já antes tária. As melhores premissas são aquelas
apropriadas como a de Duna. A inspira- fervilhava com ideias soltas sobre uma que parecem óbvias a posteriori.
ção imediata para o livro surgiu em 1957, história (ainda de contornos indefinidos)
durante uma viagem do então jovem re- sobre as “convulsões messiânicas” que ***
pórter freelancer Frank Herbert ao estado periodicamente assolam a humanidade.
do Oregon para investigar um projec- Além da tendência dos desertos para Embora os doze milhões de exemplares
to-piloto do governo local destinado a atrair místicos e profetas, para produzir vendidos em meio século sirvam para
estabilizar a expansão descontrolada de religiões de antecipação, e para incutir o apresentar como o maior best-seller da
dunas costeiras, que ameaçavam engolir nos seus habitantes uma receptividade história da ficção científica, será legítimo
bosques, auto-estradas e povoações in- intensificada a narrativas teleológicas, questionar exactamente quão “científi-
teiras. Em vez dos métodos tradicionais Herbert viu também o cenário ideal para ca” é a ficção que Herbert nos apresen-
— construir paredões — a ideia passa- aplicar um dos métodos imaginativos ta. E quanto mais estrita for a definição
va por introduzir uma espécie não-au- centrais da literatura fantástica: construir operativa, maiores serão as dificuldades
tóctone de erva daninha que pudesse, um mundo, e deduzir as consequências de encaixe.
a longo prazo, conter organicamente de o habitar. Ao contrário das vastidões Duna terá sido um dos textos pionei-
o movimento das areias. Os leitores de nevadas dos Pólos terrestres, que inspi- ros em alargar o leque de recursos da
Duna identificarão com facilidade os ru- raram, desde Poe e Lovecraft, diversas FC, saindo do terreno seguro das cha-
dimentos, não só da ecologia de Kynes, expedições canónicas da ficção especu- madas ciências duras e transformando

BANGG! ///
BBANG!
ANG! /// 31
31
ecologia, antropologia e até psicologia um obstáculo inicial para os leitores desobriga o autor de estabelecer uma
em objectos legítimos de extrapolação. neófitos. Os primeiros capítulos re- continuidade legível com o presente. O
Os poucos elementos tecnológicos que produzem os procedimentos típicos de nosso tempo é usado apenas como fun-
Herbert adopta são prontamente sub- uma telenovela: várias personagens vão do de maneio, e saqueado para fornecer
vertidos ou reduzidos a processos quase chegando a um conjunto reduzido de todo o tipo de artefactos: culturais, so-
sobrenaturais: as viagens interplanetá- cenários (os aposentos de Paul Atreides, ciais, intelectuais — e até fonéticos.
rias, que dependem do uso prolongado ou do Barão Harkonnen) para irem A paisagem onomástica e toponímica
de um fármaco poderoso, são explica- cumprindo as suas funções expositórias, de Duna é um dos triunfos tangenciais
das como algo a meio caminho entre por vezes em fogachos de voz off. A ges- do romance e revela um talento para
a alucinação e a magia; e o armamento tão do ponto de vista é particularmente nomear que não depende do potencial
militar é tão avançado que acaba por se atordoante para o leitor de hábitos con- alusivo de cada palavra. Harkonnen, de
cancelar mutuamente, fazendo com que temporâneos. Na mesma sequência, a Vries, Duncan Idaho, Atreides, Caladan,
qualquer escaramuça — de qualquer di- perspectiva pode saltitar de personagem Muad’dib: são nomes cuja ressonância
mensão — reverta ao combate corpo a em personagem, por vezes em parágra- é mais fonética do que cultural. Essas
corpo. fos sucessivos. escolhas vocabulares, de certa forma,
Ao abdicar adicionalmente de dois Sobre tudo isto, o melhor que se pode reforçam a plausibilidade da exorbitante
dos tropos centrais da FC de pura ex- dizer é que, por mais desestabilizadores escala temporal: remetem para um futu-
trapolação técnica (computadores e que os efeitos sejam à partida, quase ro tão distante que a Antiguidade Clás-
robots), Herbert reduziu o esqueleto tudo é uma escolha deliberada, e quase sica, o Islão ou os Estados Unidos são
narrativo aos elementos básicos de uma tudo tem um propósito. Como George apenas memórias difusas, e em que os
fantasia arturiana. É, aliás, difícil não R. R. Martin, Herbert exibe uma notória seus resquícios diluídos e misturados já
suspeitar que o curioso retrocesso tec- apetência para se desembaraçar subita- perderam significados específicos, pre-
nológico do universo de Duna obedece mente de personagens importantes. O servando apenas uma sonoridade elo-
menos a uma rigorosa extrapolação so- objectivo, no en- quente. Tudo o que hoje nos é familiar é
ciopolítica do que a meros expedientes tanto, não é o despromovido à condição de vintage.
narrativos: o sempre louvável desejo, pequeno
por exemplo, de incluir duelos de espa- sobres- ***
das numa história. salto do
O verniz futurista é aplicado a uma Mas Duna é também um produ-
estrutura quase medieval. Um sistema to do seu tempo. Herbert é difí-
feudal em que um Imperador concede cil de classificar politicamente e
planetas inteiros a famílias nobres (che- há elementos contraditórios na
fiadas por Duques, Barões, etc.); em que sua biografia: primo afastado do
confrarias detêm os monopólios mais caça-comunistas Joseph McCar-
importantes; em que os membros de thy, chegou a escrever discursos
ordens iniciáticas esotéricas cumprem para um Senador Republicano,
funções específicas, quer como conse- mas também fez as obrigatórias
lheiros da corte (caso dos Mentats, experiências alucinogénias, conver-
que substituem os Merlins), quer teu-se ao budismo, etc. Apesar de
como contrapoder matriarcal tudo, não é um percurso invulgar nos
(caso das Bene Gesserit, que anos 60 — especialmente na peculiar
substituem, por assim dizer, contracultura libertária da Califórnia.
as bruxas). Até os dragões Duna — juntamente com Stranger in
que protegem a caverna do a Strange Land, de Robert Heinlein —
tesouro são alvo de uma plot inaugura o período em que a ficção
glosa inspirada na imagem twist — até científica deixa de ser um zeloso
dos colossais vermes de porque cada morte interesse minoritário e passa a genuíno
areia. Tal como a saga Star Wars é anunciada previamente. fenómeno de massas, e parte do sucesso
(que usou, e usa, métodos muito seme- (A estratégia retórica predomi- deveu-se ao fanático evangelismo dos
lhantes), Duna é um tecido de absor- nante, aliás, é o spoiler: Nas primeiras baby boomers adolescentes. Os estudantes
ção de arquétipos, mitos e precursores sessenta ou oitenta páginas, todos os universitários que transformaram Duna
mainstream. Termina, como Hamlet, com desenvolvimentos narrativos mais im- num best-seller fizeram o mesmo com
um duelo pela honra de um pai assas- portantes são antecipados). O resultado Tolkien, Heinlein e Vonnegut — mas
sinado. A atmosfera, bem como uma cumulativo destes escândalos com aviso também com Catch-22 e Voando Sobre
parte substancial da carga temática, são de recepção é o reforço formal de um Um Ninho de Cucos.
tributárias tanto do Nostromo, de Con- mundo predestinado: um mundo onde Ao puro nível formal, e com a óbvia
rad, como da história de Lawrence da a omnisciência é um facto, mesmo que excepção da trilogia de Tolkien, Duna
Arábia. E até as maquinações genéticas não sirva como defesa. será uma obra mais conservadora que
das Bene Gesserit se assemelham a uma A acção do livro passa-se 21 mil anos todas as mencionadas. Mas exibe al-
versão psicadélica dos estratagemas ma- no futuro (um período que as posterio- gumas correspondências temáticas e a
trimoniais de Jane Austen. res sequelas prolongam por mais alguns mesma atenção ao zeitgeist formado pela
O estilo é tão anacrónico e aparente- incalculáveis milénios). Além do impac- détente nuclear e por conflitos periféricos
mente pedestre que pode representar to de desfamiliarização, o expediente (como o do Vietname): a preocupação

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com a possibilidade de a tecnologia “Ao agarrar-se ao presente, sentiu pela ***
poder finalmente cumprir os receios primeira vez a massiva firmeza dos
apocalípticos de gerações anteriores; e a movimentos do tempo, complicada por Uma heurística tentadora para interpre-
ideia de “ciclos” históricos, em que po- todo o lado por correntes inconstantes, tar obras de ficção especulativa é inter-
deres hegemónicos podiam entrar em por vagas, por afluxos e refluxos, como rogar a fantasia específica que está a ser
períodos de declínio às mãos de insur- ondas a rebentar contra falésias rocho- lisonjeada ou subvertida. As viagens no
reições coloniais. sas. Isso deu-lhe um novo entendimento tempo, por exemplo, dão forma a um
A maior proeza de inventividade de da sua presciência, e viu a fonte do tem- desejo pueril de omnisciência e omnipo-
Herbert terá sido unir uma série de po cego, a fonte de erro que nele havia, tência (o desejo de corrigir erros passa-
pontas soltas num único tropo — a “es- com uma sensação imediata de medo. dos ou aproveitar oportunidades perdi-
peciaria” (que é ao mesmo tempo fár- Compreendeu que a presciência era uma das) que pode ser reduzida à fantasia de
maco psicotrópico, recurso económico iluminação que incorporava os limites nunca ter de aprender nada.
vital e droga geriátrica). O que outros daquilo que revelava — simultanea- No caso de Duna, o espaço disponí-
livros talvez tratassem como macguffin, mente uma fonte de exactidão e de erro vel entre a intenção expressa do autor
Duna transforma na mercadoria mais significativo. Intervinha uma espécie de (que sempre disse querer denunciar
potente e determinante do Universo, indeterminação de Heisenberg: o gasto de principalmente o fascínio com líderes
colocando-a num relativamente plau- energia que revelava o que ele via, muda- carismáticos) e a margem interpretativa
sível contexto geopolítico. Traduzido va o que ele via.” do texto (não é que o problema sejam
em referências contemporâneas, este é os falsos messias; é que mesmo os verda-
o Universo de Duna: uma realidade em Os dons proféticos de Paul Atreides deiros messias podem não ser a solução)
que LSD, petróleo e o elixir da juven- não o emancipam em relação ao futuro; acaba por funcionar a favor do livro. Tal
tude são a mesma substância — e em pelo contrário: tornam-no escravo efec- como as dunas do Oregon que lhe de-
que o controlo dos meios de produção tivo de acções predeterminadas: ram origem, o romance respira melhor
é subitamente uma incógnita. se não o tentarmos subjugar com espar-
“A raça conhece a sua própria morta- tilhos interpretativos e demonstrarmos,
*** lidade e teme a estagnação da sua he- enquanto leitores, a mesma capacidade
reditariedade. A ânsia por fundir sem de adaptação ao estranho ecossistema
A ficção científica, sendo quase sempre plano linhagens genéticas encontra-se que encontramos — com os seus ecos
uma reflexão distorcida do período que no sangue. O Império, a Companhia míticos, Navegadores mutantes e criatu-
a produz, só raramente demonstra real CHOAM, todas as Grandes Casas, ras gigantescas.
presciência. E alguns dos aparentes jack- não passam todos de bocados de destroços Como outros fenómenos de popu-
pots de Herbert são menos profecia do no caminho da inundação.” laridade e saturação cultural equiva-
que ricochetes acidentais (o facto, por lentes, Duna é menos veículo didáctico
exemplo, de termos como jihad, bourka Esta “inundação” é um dos passos da ou enredo temporal do que localização
ou sharia, todos usados no livro, terem alegoria anti-imperialista e pós-colonial geográfica — com regras próprias, coe-
hoje uma ressonância no Ocidente que que as múltiplas sequelas (cuja leitura rência interna e um exotismo embutido.
não tinham em 1965). Mas não deixa de é tudo menos obrigatória) foram refi- Como os melhores mundos secundá-
ser curioso compará-lo com clássicos nando: a guerra santa — com sessenta rios, a sua maior virtude é a durabilidade
como a saga Foundation, de Asimov, ou mil milhões de vítimas — que varre o das imagens que cria, que continuam a
mesmo 1984, com as suas extrapolações Universo, sublimando uma reacção cega deslumbrar e inquietar muito depois da
tão presas aos contextos específicos da contra a estagnação imperial e racial, nossa breve passagem.
Guerra Fria, quer pela divisão do mun- num turbilhão incontrolável mesmo
do em blocos geopolíticos controlados pela figura messiânica que não a dese-
por potências rivais, quer pela irrelevân- java.
cia da religião. Acidentalmente ou não, Nas acções de Paul Atreides nos últi-
Duna mostra-nos um universo determi- mos capítulos, e na sua atitude perante
nado pela ressurgência de fundamen- tudo aquilo que consegue adivinhar sem
talismos religiosos e pela circunscrição conseguir impedir, a mensagem ecoló-
geográfica do recurso económico mais gica funde-se com a mensagem políti-
valioso do planeta. ca: as tentativas de subjugação política
Mas um dos objectivos do livro é in- e tecnológica, seja de um ecossistema,
terrogar o próprio conceito de profecia, seja de uma determinada ordem social,
e ilustrar os seus alçapões teóricos e acabam por gerar complacência sob a
práticos. Em contraponto à saga de Asi- máscara de uma falsa estabilidade, dei-
mov, com o seu tecno-optimismo sobre xando-nos impreparados para súbitas
a possibilidade quimérica de uma ciência anomalias e singularidades. Em Duna,
num estágio tão avançado que se torna “ganha” sempre quem se mostra mais
ião em:
capaz de descobrir as “leis naturais” da adaptável — mesmo que as vitórias se- opin
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História, e assim prever o futuro, Duna jam de Pirro, e não sirvam para mais do a . com
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argumenta que se a História é governa- que tornar os vencedores um mero ins- eix
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da por leis, as mesmas são irracionais trumento de execução de superstições ta
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ou, pelo menos inacessíveis à racionali- fictícias e utilitárias, que acabam por se
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dade humana (e até sobre-humana): cumprir sem que ninguém tire proveito.
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3 ///
38 //// BANG!
BANG!
ANNG!!
Mas Wolfe aceita a dualidade da
ficção especulativa enquanto litera-
tura de ideias e literatura escapista,
e cria narrativas que à superfície são
arrebatadoras e que nos prendem
desde a primeira página, mas que
escondem sempre algo mais entre as
linhas. Wolfe desafia-nos a ler cuida-
dosamente e a pensar, mas as suas
narrativas convidam-nos a percor-
rê-las uma e outra vez, sem fadiga
ou enfado, quer seja para encontrar a
saída do labirinto lupino ou simples-
mente para rever velhos amigos.

BANG! /// 39
4400 ///
///// BANG!
BAANNG!
G!
falavam acerca do discurso que tinham acabado de ou-
vir – não do conteúdo, que para a maioria não pode-
ria ter significado muito, mas do governante e do seu
jardim, trocando mexericos de palácio em centésima
mão. A porta abriu-se e a tempestade entrou e com
ela um jovem.
Era alto e magro. Tinha vestida uma gabardina
ensopada e um velho chapéu de feltro, coberto
com uma proteção de plástico transparente cujo
elástico tinha dobrado a aba lisa do chapéu até esta
se transformar num sino que agora se lhe apertava
em volta da cabeça. Um dos lados da cara do jovem
era uma cicatriz azul; a velha perguntou-lhe o que
ele queria.
– Têm quartos – disse ele.
– Temos pois. E baratinhos. Devias arranjar qual-
quer coisa para cobrir isso.
– Se incomoda – disse ele – não olhe.
– Mas achas que eu tenho de te alugar coisa alguma?
Ela olhou em volta para os seus clientes, à procura
de apoio, caso o jovem da cicatriz decidisse ressentir-se
dos comentários.
– Se te queixares só tenho de dizer que estamos
cheios. Podes ir a pé até à estação da polícia. – São
vinte quarteirões. – Talvez te deixem dormir numa
cela.
– Queria um quarto e qualquer coisa para comer. O
que é que têm?
– Sandes de fiambre – disse ela. Deu um preço. – O
quarto… – deu outro.
– Tudo bem – disse ele. – Queria duas sandes. E
café.
– O quarto fica por metade se dividires com alguém.
Se quiseres posso chamar a ver se alguém quer dividir.
– Não.

U
Ela arrancou a tampa a uma lata de café. A asa sal-
ma das paredes da sala fétida e suada começou tou para fora e os conteúdos começaram a fumegar.
a tremeluzir, e o portal mágico que se abrira Deu-lhe a lata e disse:
sobre um jardim quase incompreensivelmente – Não te devem acolher nos outros sítios, pois não?
belo começou a enevoar-se e a mudar. Fontes Com essa cara.
de mármore ondeavam como ervas, e roseiras, Ele virou-lhe costas, sorvendo o café, passando os
cujos ramos floridos vestiam colares de pérola e diamante, olhos pela sala. A porta pela qual ele acabara de entrar
desvaneceram até não serem mais do que amores antigos e (a água ainda lhe escorria pelo casaco e ele conseguia
macios. A cadeira do governante passou a bronze e depois senti-la nos sapatos, a burburejar e a ser sugada com
a umbra, e o próprio governante, paternal e astuto, sábio cada movimento) abriu-se novamente e entrou uma
e incognoscível, sofreu uma sucessão de transformações, rapariga cega.
tornando-se primeiro num retrato, depois num poster, e por Ele viu que ela era cega antes de ver qualquer ou-
fim num selo. tra coisa nela. Ela usava óculos escuros, o que naquela
A velhota coxa que era dona do sítio desligou a parede e noite impenetrável e assolada por chuva teria sido pista
várias pessoas protestaram. suficiente, e ao entrar ela olhou (na segunda aceção,
– Vocês ouviram o que ele disse – disse-lhes ela. – Sa- mais terrível e verdadeira, da palavra) para Nada.
bem os vossos deveres. Para que é que precisam de ouvir A velha perguntou:
um parolo do Ministério da Verdade a repetir tudo besun- – E de onde é que vieste tu?
tado de palavras caras e cuspe? – Vim do terminal – disse a rapariga. – A pé.
Os queixosos, após se terem feito ouvir, calaram-se. A Ela tinha uma bengala branca, que agitava à sua
velhota olhou para o relógio por trás do minúsculo bar ao frente enquanto caminhava cautelosamente em dire-
qual servia. ção à voz da velha.
– Faltam vinte minutos para o jogo – disse ela. – Faça – Preciso de sítio onde dormir – disse a rapariga.
chuva faça sol, vai começar a vir gente a querer beber. A voz dela era doce e clara e o jovem decidiu que,
Quem também quiser é favor vir agora. mesmo antes de a chuva lhe ter lavado a cara, ela não
Só dois o fizeram: brutamontes imundos que poderiam usara maquilhagem.
ter por ofício qualquer profissão desonesta. Algumas pes- Ele disse:
soas discutiam já o jogo que se aproximava. Outras tantas – Não queiras ficar aqui. Vou chamar-te um táxi.

BANG! ///
//// 41
– Quero ficar aqui – disse a rapariga – Ainda faltam cinco minutos. olhar para o problema do crime. Toda
com a sua voz clara. – Em algum lado Ela tirou uma fatia de fiambre de de- a gente se queixa do crime, mas são as
tenho de ficar. baixo do balcão e meteu-a entre duas fa- próprias pessoas que cometem crimes.
– Tenho um comunicador – disse o tias de pão, e depois repetiu o processo. Ele tenta limpar o ar, a água, tudo por
jovem. O jovem disse: nossa causa…
Abriu o casaco para lho mostrar – – Parecem comestíveis. Nada de espe- – Mas as pessoas fazem queimadas ao
uma caixa preta com um altifalante, te- cial, mas comestíveis. Queres uma? ar livre sempre que acham que não vão
clas, e um ecrã minúsculo – e só depois – Tenho algum dinheiro – disse a ra- ser apanhadas – acabou o jovem por ela
se apercebeu de ter feito figura de par- pariga cega. – Posso pagar a minha pró- – e atiram lixo aos rios. Os chefes vivem
vo. Alguém se riu. pria sandes. em luxo por causa dele, mas contornam
– Não estão a trabalhar. E para a velha: as regras sempre que podem. Ele devia
A velha disse: – Queria café. destruí-los.
– O que é que não está a trabalhar? – E que tal uma sandes? – Ele ama-os – disse a rapariga singe-
– Estou demasiado cansada para co- lamente. – Ele ama toda a gente. Quan-
mer. do se diz isso parece que estamos a di-
A porta abria-se agora quase cons- zer que ele não ama ninguém, mas não
tantemente, deixando entrar as pessoas é verdade. Ele ama toda a gente.
dos prédios circundantes que enfren- – Sim – disse o jovem após um mo-
tavam a tempestade e que molhavam a mento – mas ama sobretudo o Wes-
entrada para ver o jogo. A velha ligou twind. Amar toda a gente não significa
a parede e eles amontoaram-se à volta que não ame uns mais do que outros.
para ver o aquecimento antes do jogo, Esta noite chamou ao Westwind «os
praticando e aperfeiçoando a concen- meus olhos».
tração que usariam no jogo propria- – O Westwind observa por ele – disse
mente dito. O jovem da cicatriz e a a rapariga suavemente – e relata. Achas
rapariga cega foram sendo afastados que o Westwind é alguém muito impor-
e deram por si perto da porta da sala, tante?
que estaria agora completamente silen- – É importante – disse o jovem –
ciosa não fosse o som vindo da parede. porque o governante lhe dá ouvidos
O jovem disse: – e afinal de contas, é praticamente
– Este sítio é muito reles… não de- impossível outra pessoa conseguir uma
vias estar aqui. audiência. Mas acho que querias dizer
– Então o que é que estás tu a fazer «é alguém que nos pareça importante?»
aqui? Não me parece. Deve ser uma pessoa
– Não tenho lá muito dinheiro – disse obscura de quem nunca se ouviu falar.
ele. – É barato. – Acho que tens razão – disse ela.
– Não tens trabalho? Ele estava a acabar a segunda sandes
– Magoei-me num acidente. Agora e acenou, apercebendo-se depois de
estou bem, mas não me deixaram con- que ela não conseguia vê-lo. Ela era bo-
tinuar lá. Diziam que ia assustar os ou- nita, decidiu ele, de uma maneira franzi-
tros. Suponho que seja verdade. na, não muito alta, não usava anéis. Não
– Não há seguros para isso? tinha as unhas pintadas, o que, para ele,
– Não estive lá tempo suficiente para as fazia parecer as mãos de uma menina
ter direito a ele. de escola. Lembrou-se de ver as rapari-
– Estou a ver – disse ela. gas a jogar voleibol quando andava na
Levantou cuidadosamente o café, escola – de como ansiara por elas.
segurando-o com as duas mãos. Ele Ele disse:
queria dizer-lhe que estava quase a en- – Devias ter ficado no terminal hoje.
tornar – ela não estava a segurá-lo muito Não acho que este lugar seja seguro
direito – mas não se atreveu. Quando o para ti.
café estava prestes a verter, encontrou – Os quartos trancam?
– Não devias ficar aqui – disse o jo- os lábios dela. – Não sei. Não os vi.
vem. – Ouviste o governante – disse ele – – Se não trancarem ponho uma ca-
A velha disse: enquanto caminhavas na tempestade. deira debaixo da maçaneta ou assim.
– Tenho um quarto, se o quiseres. É Gosto disso. Arrasto a mobília. No terminal tentei
o último. – Aqui ouviram-no? – perguntou ela. dormir num banco. Acredita, não que-
– Quero – disse-lhe a rapariga. – Não sei. Não estava cá. A parede ria caminhar até aqui com aquela chuva
– É teu. Espera aqui um segundo, estava desligada quando cheguei . toda. Mas sempre que adormecia sen-
tenho de arranjar umas sandes a este – Toda a gente devia ouvi-lo – disse tia alguém a deitar-me a mão. Agarrei-a
moço. ela. – Ele dá o seu melhor por nós. uma vez, mas ele conseguiu tirá-la. Não
Alguém praguejou para a velhota e O jovem da cicatriz acenou. sou lá muito forte.
disse que o jogo estava prestes a co- – As pessoas recusam-se a cooperar – – Não estava lá mais ninguém?
meçar. disse ela. – Não querem cooperar. É só – Alguns homens, mas também esta-

42 ///
42 /// BANG!
BAN
ANG!
G!
vam a tentar dormir. Claro que era um também são os últimos quartos que te-
deles, e talvez fossem todos. Um deles nho.
disse aos outros que se não me deixas- O jovem da cicatriz estava a olhar
sem em paz matava alguém. Foi aí que para o corredor estreito, que estava for-
me vim embora. Tive medo que não rado de portas, a maior parte fechadas.
fosse ele a fazê-lo, que alguém fosse – Vou pôr-te mais perto da casa de
morto ou que houvesse uma luta. Foi banho – dizia a velha à rapariga.
ele que me chamou o táxi. Disse que – Há um gancho na porta da casa de
pagava. banho, por isso não fiques preocupada.
– Então não acho que fosse ele. Mas se ficares lá muito tempo alguém
– Eu também não. há de começar a bater à porta.
A rapariga calou-se por um momen- – Eu fico bem – disse a rapariga.
to, e depois disse: – Claro que ficas. O teu quarto é este.
– Não me tinha importado tanto se Os quartos eram apenas divisões dos
não estivesse tão cansada. quartos muito maiores de outrora. Ago-
– Eu percebo. ra tinham divisórias pintadas de verde,
– Importavas-te de encontrar a se- feitas de alguma coisa que se assemelha-
nhora e pedir-lhe que me leve ao quar- va a cartolina grossa. A velha entrou no
to? quarto da rapariga e ligou a luz.
– Se calhar podíamos encontrar-nos – A cama é aqui; o armário é ali – dis-
de manhã para tomar o pequeno-almo- se ela. – A pia está no canto, mas tens
ço. de trazer água do quarto de banho. Não
A rapariga cega sorriu, a primeira vez há bicharada; fumigamos duas vezes ao
que o jovem da cicatriz a via a sorrir. ano. Lençóis limpos.
– Isso seria bom – disse ela. A rapariga estava a apalpar a extremi-
Ele foi atrás do bar e tocou no braço dade da porta. Encontrou uma corrente
da velha. com os dedos e sorriu.
– Não queria estar a interromper-lhe – Também há uma tranca – disse o
o jogo – disse ele – mas a menina quer jovem da cicatriz.
ir para o quarto. A velha disse:
– Quero lá eu saber do jogo – disse a – O teu quarto é na porta ao lado.
velha. – Só o vejo porque toda a gente Anda.
vê. Vou chamar o Obie para ficar aqui a O quarto dele era muito como o da
tomar conta. rapariga, exceto que a divisória de car-
– Ela já vem – disse o jovem da ci- tão (que estava toda sarrabiscada de
catriz à rapariga cega. – Subo contigo. palavras e imagens obscenas) ficava
Também estou pronto para ir para a no lado esquerdo em vez de no lado
cama. direito. Ele apercebeu-se de que estava
A mulher estava já a gesticular para profundamente ciente dos movimen-
eles virem, e eles seguiram-na por umas tos dela atrás da divisória, do bater da
escadas estreitas que tresandavam a um bengala enquanto ela ia estabelecendo
odor fétido. a posição da cama, do armário, da pia.
– Eles fazem xixi aqui – disse ela. – Ele trancou a porta, tirou o casaco en-
Há casas de banho ao fundo do corre- charcado, pendurou-o num gancho, e
dor, mas não se dão ao trabalho de as depois tirou os sapatos e as meias. Não
usar. lhe agradava a ideia de andar com os
– Horrível – disse a rapariga. pés molhados no chão sujo, mas para
– Pois é. Mas assim pensam que es- além dos sapatos ensopados não ha-
tão a safar-se com alguma, que estão a via alternativa. Sentou-se na cama,
passar-me a perna porque sabem que se em cima das suas pernas dobradas, e
os apanhasse os metia no olho da rua. desengatou o comunicador do cinto e
Eu bem tento apanhá-los, mas sinto é marcou 555-333-4477, o número do
pena deles. É muito mau quando as úni- governante.
cas vitórias que nos restam são o jogo – É o Westwind – sussurrou o jovem
na parede e borrar as escadas a uma ve- da cicatriz.
lhota só para a arreliar. A cara do governante apareceu no
Ela parou no cimo das escadas para ecrã, minúscula e perfeita. Agora, como
recuperar o fôlego. tantas outras vezes antes, o jovem sentiu
– Vocês os dois vão ficar mesmo um que este era o tamanho real do gover-
ao lado do outro. Importam-se? nante, esta figura pequena e brilhante –
A rapariga disse «Não» e o jovem da mas ele sabia que não era verdade.
cicatriz abanou a cabeça. – É o Westwind e arranjei sítio onde
– Não achei que se importassem, e passar a noite. Ainda não encontrei ou-

BANG! /// 43
tro trabalho, mas conheci uma rapariga e acho que ela
gosta de mim.
– Isso são ótimas notícias – disse o governante. Sor-
riu.
O jovem da cicatriz também sorriu, do lado não ci-
catrizado.
– Aqui está a chover imenso – disse ele. – Acho que
esta rapariga lhe é muito leal, senhor. O resto das pes-
soas aqui… bem, não sei. Ela falou-me de um homem
no terminal que tentou abusar dela e de outro homem
que a queria proteger. Eu ia pedir-lhe que recompen-
sasse um e que castigasse o outro, mas receio que se-
jam o mesmo homem, que ele a quisesse conhecer e
que aquilo lhe tenha dado a oportunidade.
– Muitas vezes é o mesmo homem – disse o gover-
nante. Fez uma pausa como se estivesse perdido em
pensamentos. – Contigo está tudo bem?
– Se amanhã não encontrar nada não vou poder fi-
– É o Westwind – disse ela.
car, mas sim, hoje fico bem.
Ele não conseguiu ouvir a voz que lhe respondeu, mas a cara no
– Estás muito bem-disposto, Westwind. Adoro a
ecrã, pequena e brilhante, era a cara do governante.
boa disposição.
– Estou bem – disse ela. – A princípio não achei que fosse conse-
O lado bom da cara do jovem corou.
guir encontrar um sítio onde passar a noite, mas consegui. E conheci
– Para mim é fácil – disse ele. – Toda a minha vida
uma pessoa.
soube ser o seu espião, o seu confidente – é como sa-
O jovem da cicatriz voltou a pôr o painel no sítio tão delicadamen-
ber onde o tesouro está enterrado. Muitas vezes sinto
te quanto possível e deitou-se novamente na cama. Quando ouviu
pena dos outros. Espero que o senhor não seja dema-
outra vez o barulho da bengala da rapariga, bateu na divisória e disse:
siado severo com eles.
– Pequeno-almoço amanhã. Não te esqueças.
– Não te quero ajudar abertamente a não ser que o
– Não esqueço. Boa noite.
tenha de fazer – disse o governante. – Mas encontrarei
– Boa noite – disse ele.
maneiras que sejam discretas. Não te preocupes. – Pis-
No quarto por baixo do deles, a velhota estava a assapar o cabelo
cou o olho.
desgrenhado com uma mão e a marcar um número com a outra.
– Sei que o fará, senhor.
– Só não penhores o teu comunicador.
A imagem desapareceu, deixando apenas um ecrã
em branco. O jovem desligou a luz e continuou a
despir-se, tirando tudo menos os boxers. Estava dei-
tado na cama quando ouviu um baque do outro lado
da divisória de cartão. A rapariga cega, ao percorrer o
quarto aos apalpões, devia ter-lhe esbarrado. Ele esta-
va prestes a gritar «Estás bem?» quando viu que um
dos painéis, uma secção de cerca de noventa centíme-
tros por cem, estava a baloiçar no caixilho. Apanhou-a
antes de ela cair e pousou-a no chão.

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44 ///
44 /// BANG!
BANG!
ANNG!
BANG! /// 45
Já vos contei do enjoo e da confusão organização. Acentuam demasiado a diferença, dão o mote
que advêm de viajar no tempo. para se formarem grupos e num instante estamos todos a
declarar alianças enquanto nos empenhamos a desconfiar
H. G. WELLS, A Máquina do Tempo
com algum desdém de certa facção. A taxonomia artística
é ademais um artifício significativamente limitado, despro-
vido quer da precisão quer dos benefícios concretos da sis-

N
temática classificativa dos seres vivos. Talvez devêssemos
o princípio era a palavra, as histórias contadas
liquidá-la. Ou talvez devêssemos abandonar de vez tanto
ao borralho, e então eis que o mundo se en-
as generalizações como os estereótipos. Não existem géne-
cheu de páginas e cenários e notas e imagens,
ros menores, só obras boas e más. Ou enunciando de outra
de vidas que embora inventadas são verdade.
forma, a reaproveitar o argumento de Theodore Sturgeon,
Por graça das várias artes, temos hoje um mundo povoado
noventa por cento da ficção científica é sem dúvida lixo,
de universos, realidades com gente e passados, aconteci-
porém noventa por cento de tudo é lixo. E esses dez por
mentos revistos ou reescritos, terras impossíveis e devires
cento restantes encantam, provocam, distendem fronteiras,
que talvez se concretizem. O futuro imaginado pertence in-
incitam buscas, propulsionam questões.
teiro à ficção científica. E contudo tende-se ainda a imaginar
O futuro chega hoje e agora.
este género como uma caixa pejada de Cefalópodes gigantes
Por graça da ficção científica entramos sem entraves no
e naves espaciais.
que poderá ocorrer um dia, em tipologias e arquitecturas se
Ultrapassadas as associações mais imediatistas, lá se
calhar diferentes e em hipotéticas sociedades onde variados
pensa em robôs, extraterrestres, planetas transbordantes de
paradigmas convergiram por simbiose de eventos históri-
fauna exuberante com hábitos alimentares a roçar a carnifi-
cos e técnica. Aliás, com quase tanta celeridade quanto se
cina, mais umas quantas reminiscências das velhas narrativas
evocam objectos voadores pouco identificados e hipotéti-
pulp apresentadas em tecnicolor. Outra pequena dilatação e
cos tripulantes de proporções insólitas, costuma aventar-se
surgem também inteligências artificiais assassinas, regimes
para a ficção científica a extraordinária faculdade de prever
opressivos feitos para controlar cada gesto e indivíduo, ma-
tecnologia futura. À semelhança de Jules Verne, cuja fama
quinaria atolada de botões, painéis e hologramas, cidades
de visionário presciente advém não de espantosas fugas
metálicas com arranha-céus de lisura rebrilhante ou sujos,
imaginativas mas antes de uma sopesada extrapolação da
acanhados, meras torres decrépitas enfeitadas por néons e
tecnologia sua contemporânea, a perspicácia da ficção cien-
erguidas em terras perpetuamente chuvosas. Fica-se sem
tífica deriva de uma observação da actualidade tão apurada
dúvida com uma caixa de limites menos constritos, mas de
quanto cuidada e que implica ponderar ciência, política e as
qualquer modo subjuga-se a ficção científica a uma meia dú-
consequências de ambas conjugadas, transformando depois
zia de motivos simplistas. Zero subtileza e nada de capacida-
esse pensar em narrativa, em situações que desencadeiem
des artísticas nem desenvolvimentos estimulantes.
outras reflexões.
Malgrado a longevidade, uma vasta disseminação e dé-
Aventura e filosofia conciliadas em diferentes doses e
cadas de debates sobre o assunto, o género onde ciência e
proporções. O presente ali ao virar da esquina. Nós a cami-
futuro se fazem enredo mantém essa reputação parasitária
nhar por possíveis ainda não acontecidos. O grande fascínio
de parente indesejado. Se nos meios anglo-saxónicos esta
da ficção científica reside precisamente aqui. Mesmo quan-
fama começa a inverter-se, fruto tanto de um público em
do os feitos descritos parecem advir mais da falta de conhe-
clara expansão como de um interesse académico e crítico
cimento científico do que do seu excesso ou quando, como
cada vez maior, por terras lusas retém-se a ideia de uma coi-
postulado pela terceira lei de Arthur C. Clarke, a tecnologia
sinha popularucha apreciada por uns quantos adolescentes
está tão avançada que se torna indiscernível da magia, algo
de cultura reduzida e parcas aptidões sociais.
muito frequente nos últimos anos mal se convoca a nano-
As caixas têm destes problemas: dividem e repartem e
tecnologia para a história, ainda assim conserva-se esta im-
no fundo servem mais para excluir do que para facilitar a

46 /// BANG!
pressão de realidade potencial. Os futuros que a ficção cien-
tífica tece viciam-nos, prendem-nos, ficam a levedar-nos no
raciocínio. Umas poucas imagens, algumas palavras sugesti-
vas, e às vezes há logo aí o início de uma descoberta.
Lembro-me de andar em miúda pela Feira do Livro
a cobiçar as escolhas dos meus pais, em especial os volu-
mes de páginas fininhas e capa azul adquiridos na banca
da Editorial Caminho. Via-os a circular pela casa o ano
inteiro, ouvia-os em conversas e elogios e queria absoluta-
mente escorregar ali para dentro. Que me achassem muito
nova para semelhantes enredos deixava-me fervente de
curiosidade.
Aos sete ou oito anos surripiei o Memórias encontradas
numa banheira (1961) de Stanislaw Lem, instigada mais por
uma vaga ideia romântica de ler livros às escondidas do que
por alguma proibição efectiva. Não retive qualquer frase e
sei que desisti em pouco tempo da aventura. Adiei-a para
leituras vindouras, resignada à ideia de que porventura aqui-
lo da ficção científica ainda não era de facto para mim. No
futuro, portanto. E nessa altura leria também A nebulosa de
Andrómeda (1957), a obra de Iván Efrémov que a minha mãe
afirmava estar guardadinha à minha espera.
Não a li. Vieram outros livros, novas sugestões que por
qualquer motivo ganharam precedente. Um dia será. Em
todo o caso, saia ou não desiludida da leitura, devo-lhe uma
certa gratidão. Contribuiu muito para a aura que durante a
infância montei em torno da ficção científica, convertendo-a
num mistério pleno de promessas espicaçado pelo tema dos
Ficheiros Secretos, essas seis notas que fui reproduzindo ao
piano e que volta e meia me punham a cirandar pela sala
numa tentativa pouco dissimulada de espreitar o episódio
que o meu pai e a minha irmã viam com afinco.
A ficção científica serve-me desde então de pequena
delícia, quase de jogo e desafio. Onde a fantasia tem o dom
encantatório do maravilhoso e do onírico, às vezes até do
pesadelo, a ficção científica tem o da descoberta inventiva
e criadora, o do raciocínio lógico aplicado a uma multiplici-
dade de aspectos. Trate-se de um livro, de um filme, ou de
uma série televisiva, gosto das ideias provocantes, das no-
ções que ficam a inquietar o pensamento, a perguntar pode-
ria ou não suceder, quais são as bases, os fundamentos, e se
isto acontecesse como ficaria o mundo, o que mudaríamos,
como mudaríamos. Há uma potencial panóplia de debates
gerados a partir de uma obra deste género e dos efeitos
práticos e éticos das premissas que apresenta. Convoque-se
alguém para a conversa, partilhe-se determinado livro, si-
ga-se uma série acompanhado de fulano ou sicrano, vá-se
ao cinema com os amigos, e depressa se inicia uma activida-
de comunitária tornada mais estimulante pela variedade de
intervenientes e posturas. Além disso as
interrogações conduzem a pesquisas, a
livros e filmes e quadros e teorias e a
uma infinidade de caminhos. Alguma
sorte, um pouco de enredo certeiro
na altura correcta para a pessoa cer-
ta, e gera-se inclusive uma paixão por
ciência e conhecimento.
Carecemos desta vertente de
usar a ciência como heroína ou Obra: As Primeiras Quinze
Vidas de Harry August
apenas mais-valia, sem andar ale-
Autor: Claire North
gremente a vilipendiá-la enquanto Género: Lit. Fantástica
criadora exclusiva e irreflectida de ISBN: 978-989-637-667-3
monstruosidades ou mera ferra- PVP (c/ IVA): 17,70 €

NGG! ///
BBANG!
BA /// 47
// 47
menta predilecta de indivíduos megalómanos que colocam (…) cem gerações mais tarde, o nosso bravo
sempre a humanidade na berma do precipício. Tamanho viajante dá por si desprovido de existência porque
apego à latência catastrófica e nefasta da ciência adequa-se a sua antepassada foi apanhada com o filho do
mais às narrativas do século XIX sobre cientistas loucos que talhante e, por isso, ao não existir, já não pode
tentam usurpar o lugar divino do que ao desenvolvimento regressar ao passado e impedir o seu próprio nas-
do século XXI onde os prodígios da biologia, da química, da cimento assustando um pardal, e portanto nasce,
física e da matemática nos rodeiam dia a dia de contínuos pelo que já pode regressar ao passado e… Será
benefícios. O que auxilia a distopia também a combate, des- que devemos introduzir Deus a esta altura?
monta-a, e segue mesmo na direcção oposta.
De uma infância em ânsias por ferrar os olhos nisso da Harry August vai evitando confusões desta ordem por
ficção científica, desemboquei com alguma surpresa numa viajar no tempo de maneira algo peculiar: ao morrer volta
juventude a investigar utopias, o seu subgénero mais genera- ao dia do nascimento e cresce e vive de novo na mesma
lizado e com melhor aceitação por parte do grande público, época até morrer mais uma vez e repetir todo o processo.
efeito quer da reputada tríade formada por Admirável mundo Contudo, embora Harry se esforce por não comprometer o
novo (Aldous Huxley, 1932), 1984 (George Orwell, 1949) e futuro nem o influenciar, talvez existam outros com capaci-
Fahrenheit 451 (Ray Bradbury, 1953), quer de uma frequência dades semelhantes e menor contenção. O mundo está a che-
crescente no cinema e de um uso assíduo por diversos escri- gar ao fim demasiado depressa. Harry sabe-o, avisaram-no,
tores, alguns assinantes de fenómenos comerciais significa- o próximo passo pertence-lhe.
tivos, alguns louvados pela crítica. Claire North, ou antes Catherine Webb sob o pseudó-
De facto, nessas disputas anquilosadas sobre as virtu- nimo de Claire North, maneja os meandros da ficção cien-
des inatas do género ou a falta delas, recorre-se amiúde à tífica e das viagens no tempo entrelaçando-os com as carac-
distopia de Margaret Atwood A História de uma Serva (1985) terísticas de um romance histórico situado entre o início e
para demonstrar que a ficção científica consegue produzir o término do século XX e onde a ciência figura de variadas
obras de elevada literacia. Podiam escolher-se outros livros. formas não redutoras. Nas páginas deste livro vogam mo-
Podia, por exemplo, falar-se do Matadouro Cinco (1969) de tivos originários de muitos géneros, técnicas comuns em
Kurt Vonnegut, mais próximo das viagens no tempo que obras bem diversas, e existem perguntas, dúvidas, inquie-
propulsionam este As primeiras quinze vidas de Harry August. tações. Nem todas se resolvem. Ficam para as analisarmos,
Séculos antes de H. G. Wells engendrar A Máquina do para as dissecarmos sozinhos ou em conversas com amigos,
Tempo (1895), uma viagem temporal a revelar um futuro familiares, gente mais ou menos conhecida que se reúne em
distópico, já a humanidade imaginava regressar ao passado argumentações geradas numa qualquer rede social.
ou espreitar o futuro por meio de um qualquer transporte Terminada a décima quinta vida de Harry August, es-
mágico ou através das visões dos oráculos. Os dois pólos taremos de pensamento invadido por passado e futuro, um
opostos das viagens no tempo cativam de tal modo a ima- outro futuro talvez possível. Como Harry, decidido a travar
ginação e o desejo que poucos autores do género resistem o cataclismo iminente, revisitaremos o passado e o presente
ao deslumbre. A maioria cai num vórtice de linhas tempo- movidos pela ideia da aproximação de um devir instável. Os
rais sobrepostas, contradições e paradoxos tão entranhados hipotéticos futuros que a ficção científica dá ao mundo cau-
que ponderar o assunto por mais de breves instantes resulta sam às vezes destas turbulências e, ao alertarem para equilí-
num invariável nó mental e numa sobrecarga do sistema. brios trémulos, dão-nos vontade de mudança, de engenhos
Como se explica num dos muitos debates de As primeiras e atitudes que adiem o fim por vários séculos.
quinze vidas de Harry August: Boa viagem.

48 /// BANG!
No futuro, a Humanidade foi asso-
lada pela guerra contra as máquinas.
Um cyborg indestrutível é enviado
para o passado para eliminar John
O realizador francês Chris Marker Connor, o futuro líder dos humanos,
conseguiu a proeza de, em 28 minutos, antes que ele nasça. Em simultâneo,
criar uma das histórias mais assom- os humanos enviam o seu próprio
brosas sobre viagens no tempo. Num soldado (Arnold Schwarzenegger)
futuro pós-apocalíptico, é concedido para proteger a mãe (Linda Hamil-
a um prisioneiro (Davos Hanich) a ton) em 1984. A sequela revelou-se superior, tornando-se um
oportunidade de sujeitar-se a experiên- enorme sucesso e uma referência no cinema de FC.
cias no tempo de modo a poder sal-
var a sua própria sociedade destruída.
Após o sucesso da experiência, o prisioneiro deseja regressar
ao passado e ao amor que encontrou, mas está condenado à Donnie Darko é talvez dos filmes mais
tragédia. originais e profundos a inaugurar a
primeira década do milénio, revelan-
do Jack Gylenhaal que com esse fil-
me lançaria a sua carreira. Torturado
Baseado no romance de Pierre Boule, por visões de um coelho gigante que
O Planeta dos Macacos revelou bastante lhe revela que o mundo irá acabar
arrojo na altura da sua estreia com a em 28 dias, o jovem é manipulado a
história de um astronauta sobreviven- cometer uma série de ações bizarras.
te (Charlton Heston) que aterra num Embora pareça à partida bastante surreal, acaba por ser uma
estranho planeta, no futuro distante, reflexão tocante e madura sobre a vida e morte.
onde a espécie humana se extinguiu e
deu lugar à supremacia dos macacos.
A revelação final quando o astronauta descobre a verdade
sobre o planeta tornou-se um dos momentos mais icónicos Um dos filmes de maior sucesso
no cinema. sobre viagens no tempo, Looper de-
corre em 2074 numa sociedade em
que a máfia envia os seus alvos para
o passado para serem eliminados
Embora não tenha envelhecido tão por um assassino (Joseph Gordon
bem como outros filmes de viagens no Levitt). Quando esse assassino é
tempo, esta é uma história fascinante, confrontado com a sua própria ver-
centrada na personagem do escritor H. são vinda do futuro (Bruce Willis),
G. Wells que acabou de inventar a má- apercebe-se então de que a sua vida
quina do tempo. Quando esta é roubada pode estar em perigo. Um filme bem construído e com um
por Jack, o Estripador, Wells é forçado enredo cativante, mesmo que o final possa parecer um pouco
a viajar ao séc. XX e travar o criminoso. previsível.
Um dos momentos no filme que mais impressiona é o quanto
o vilão (David Warner) se sente como um peixe na água entre
a violência da década de 70.
Baseado numa história de Robert A.
Heinlein, este filme surpreendente
conta a história de um agente tem-
Um clássico de viagens no tempo, a poral (Ethan Hawke) que tem de
trilogia de Robert Zemeckis conseguiu perseguir um bombista nos anos 70.
a proeza de envelhecer bem e imortali- O time loop presente neste filme é de
zar Michael J Fox no papel do estudan- tal complexidade que se torna difícil
te Marty Mcfly que é enviado para o de descrever, mas basta dizer
passado num carro Delorean inventa- que a atriz Sarah Snook ião em:
desempenha um dos a opin
do pelo seu amigo cientista louco Doc
.c o m
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Brown. A dupla inesquecível marcou a papéis mais inacreditáveis e desafiantes em ie x e n g
década de 80 e ainda hoje as aventuras de Mcfly inspiram filmes de viagens no tempo. d ba
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go

divertimento, muita emoção e nostalgia.


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dest
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gostou

BANG! /// 49
nquanto fenómeno cultural, os role playing ga- de grande parte da discussão que se segue, mas, quer
mes (RPG) tiveram um impacto profundo no gostemos ou não, é sobretudo dos sobrinhos do Tio
desenvolvimento da cultura pop mundial dos Sam de quem falamos quando consideramos a cultura
últimos 40 anos. Mais, os preceitos e mundi- pop.
vidência que os suportam enraizaram-se de tal forma As ramificações deste processo são de tal modo ten-
nas sociedades ocidentais que, em avaliação geral, não taculares que, mesmo para o aspecto particular que
é inteiramente disparatado pensar que o mundo se- agora mais nos interessa, o da referência e tratamento
ria um sítio muito diferente se não existissem jogos dos RPG na ficção cinematográfica e televisiva (com
de personagem. Desde o aparente triunfo da cultura um piscar de olho à banda-desenhada), temos de nos
geek até à tão alardeada e omnipresente gamification, a fazer acompanhar de alguns elementos básicos da sua
sua marca encontra-se por toda a parte. Será que o história e recepção.
sucesso de O Senhor dos Anéis, Harry Potter e A Guer- Considerem-se, então, três sensibilidades e aborda-
ra dos Tronos seria o mesmo caso não existissem? É gens distintas, que, de forma tosca, podemos designar
possível conceber a indústria dos videojogos sem os como negativas, estereotipadas e positivas. Cada uma
seus contributos? A própria ideia de interagir social- é mais predominante num período histórico específi-
mente através de avatares, um dos esteios das redes co, mas as categorias são suficientemente fluidas para
sociais actuais, deve alguma coisa ao velho dado de permitir sobreposições cronológicas e temáticas. Por
20 lados… outras palavras, não há exclusividade entre elas e é co-
No entanto, por um conjunto de factores diversos, mum a partilha, em graus diferentes, de características
entre os quais a permanência dos jogos em comuni- cruzadas.
dades – e, admitamos, segmentos de mercado – de ni- Uma nota: como seria de esperar, quase todos os fil-
cho, esta influência correu por meios em larga medida mes e séries televisivas fazem referência a um único
silenciosos. Apesar do extensíssimo rol de personali- jogo, Dungeons & Dragons (D&D). Mesmo quando o
dades provenientes de todos os campos criativos para título explicitado é outro, em alguns casos por motivos
quem os RPG desempenharam um papel formativo, legais, é ao D&D que se faz alusão; tendo em conta
o seu verdadeiro alcance continua quase inteiramente o seu peso simbólico, não é de estranhar. Porquê este
por valorizar. Este grupo é composto quase exclu- destaque? Para compreendê-lo, recuemos aos contur-
sivamente por norte-americanos, tal como a origem bados anos da longínqua e bárbara década de 1970…

50 /// BANG!
Apesar de as pretensões destes virtuosos caçadores de bru-
xas – que acusavam o D&D de promover e ensinar demono-
logia, vudu, blasfémia, homossexualidade, prostituição, cani-
balismo, necromancia, entre outras perversões – terem sido
nquanto por cá nos ocupávamos de outro tipo de liber- desmontadas tanto pela via dos argumentos científicos como
dade, o primeiro jogo de personagem, D&D, foi publica- do bom senso, não se evitou o inquinar da percepção pública.
do nos EUA em 1974. O que começou por ser uma iniciativa Foi neste contexto que, em 1982, surgiu a adaptação cine-
caseira – literalmente, já que os manuais de regras eram do- matográfica do romance homónimo Mazes & Monsters, uma
brados, agrafados e empacotados à mão na cave de um dos dramatização sensacionalista dos acontecimentos relativos ao
seus autores, Gary Gygax – depressa cresceu para além da caso de James Dallas Egbert III, um estudante universitá-
pequena comunidade de aficionados que lhe serviu de berço. rio desaparecido (e rapidamente reaparecido) em 1979. Para
No final da década, em apenas 5 anos, a originalidade do jogo além da honra duvidosa de dar corpo artístico à imagem dos
trouxe-lhe notoriedade nacional e boa parte dos adolescentes RPG como actividade inerentemente perigosa, o filme é no-
norte-americanos de classe média teria, no mínimo, conheci- tável ainda por incluir o primeiro papel como protagonista de
mento da sua existência. um jovem Tom Hanks. Pouco ou nada mais, aliás, o merece.
Aquela que é provavelmente a primeira menção cinema- Na senda da profilaxia moral ficcionada, representan-
tográfica a D&D encontra-se em O Clarim da Revolta (1981, do com maior ou menor proeminência a suposta ameaça
Taps, no original), onde vemos Tom Cruise a desafiar Timo- proto-esotérica e desestabilizadora dos jogos, encontramos,
thy Hutton e Sean Penn – todos desempenham papéis de por exemplo, os telefilmes Skullduggery (1983) e Cruel Doubt
cadetes adolescentes numa escola militar – para uma sessão. (1992), o episódio Flesh and Blood (1989) da série policial britâ-
Apesar de brevíssima, a referência casual sugere um apreciá- nica Taggart, e a delirante (e, não intencionalmente, hilariante)
vel grau de familiaridade e aceitação do jogo. banda desenhada Dark Dungeons (1984), do fundamentalista
Outro caso, mais significativo, é o de E.T. – O Extraterres- evangélico Jack T. Chick. Fora uma ou outra excepção, como
tre (1982). Para qualquer pessoa que tenha jogado RPG na o inenarrável Knight Chills (2001), esta corrente felizmente
adolescência, a animada sessão que se mostra no início do não sobreviveu no discurso público muito além do início da
filme é surpreendentemente verosímil, desde a ubiquidade da década de 90.
junk food, passando pelo pedinchar do jogador mais novo, até
à curiosidade parental acerca do estranho jogo (“E como é
que se ganha este jogo? Não se ganha, é como a vida. Não se
ganha à vida”). Sabe-se, aliás, que antes do começo das filma-
gens o próprio Spielberg organizou uma partida com os jo-
vens actores, com a intenção de fomentar o espírito de grupo.
Ao jeito de um imaginário fecho do primeiro acto narrati-
vo, esta representação sincera e terna não tardou em ser posta
à prova. No início dos anos 80, o oportunismo mediático
de alguns sectores conservadores da sociedade norte-ame-
ricana encontrou nos jogos de personagem um bode
expiatório para as suas pretensões moralistas,
à semelhança do que mais tarde aconteceu
com o heavy metal e os videojogos, no
fenómeno que veio a ser conhecido
como Pânico Satânico.

BANG! /// 51
maldosa. Como seria expectável,
o registo em que surgem é quase
sempre a comédia.
Por exemplo, nos Simpsons
(Homer Goes to College, 1993),
processo de resposta e descobrimos que Homer já foi
adaptação ao Pânico Satâni- jogador de D&D, e nos Ficheiros
co por parte da indústria, a que Secretos (Unusual Suspects, 1997;
alguns críticos chamaram a “dis- Three of a Kind, 1999) vemos
neyficação do D&D”, teve início Langly, o mais novo do trio de
com a exibição da série animada hackers Lone Gunmen, jogar
Dungeons & Dragons (1983-1985), com a sua personagem favorita,
claramente dirigida a um público Lord Manhammer. O facto de,
infantil. Esta tendência, liderada num destes episódios, se faze-
pelo jogo mais popular e que se rem apostas de dinheiro como
aprofundou com o passar do parte integral de uma sessão de
tempo, pautou-se pela elimina- D&D diz bastante acerca do
ção de referências a demónios, (des)conhecimento dos argu-
sexualidade e escolhas morais mentistas acerca do jogo.
complexas. Em jeito ilustrativo, veja-se ain-
Privadas de munição, as bate- da Dexter’s Laboratory (D&DD,
rias censórias puritanas aponta- 1997), That 70’s Show (Radio Daze,
ram para outros alvos. Muitos 2001), The IT Crowd (Jen the Fredo,
dos próprios criadores de RPG 2010), 30 Rock (St. Patrick’s Day,
agradeceram este resguardo das 2012), e, claro, A Teoria do Big
luzes da ribalta, ainda que isso Bang (The Santa Simulation, 2012; 1
significasse chegar a um público The Love Spell Potential, 2013).
mais restrito. Lenta e inexoravel- Esta última destila dezenas de
mente, os jogos de personagem anos deste tipo de abordagem, ao
abandonaram a sua aura de pe- enveredar pela mais despudorada
rigo imaginado e passaram, aos e condescendente nerdsploitation,
olhos da opinião pública, a passa- neste e em todos os restantes te-
tempo inócuo, em larga medida mas.
incompreendido e incompreen- Ao contrário de Gamers (2006),
sível, e por isso passível de troça. que acrescenta humor boçal à ca-
Como resultado, na televisão, racterização habitual, o filme in-
passaram a proliferar as referên- dependente Zero Charisma (2013)
cias, quase sempre passageiras e é um caso mais difícil de avaliar,
remetendo invariavelmente para pelo invulgar tom tragicómico,
o mesmo estereótipo. Sempre que conjuga o pleno estereótipo
que um argumentista procurava do jogador sociopata com um
caracterizar uma personagem olhar autocrítico.
geek ou nerd, bastava transmi-
tir ao público um dos chavões
recorrentes, que, do ponto de
vista narrativo, são intercam-
biáveis: ciência, computadores,
banda desenhada, ficção cien-
tífica, ansiedade social, imaturi-
dade, inépcia romântica e, claro,
D&D. Em certa medida, este pesar de todos os altos e bai-
último representa uma espécie xos, os RPG nunca conse-
de patamar rarefeito, reservado guiram entrar assumidamente no
apenas aos cromos mais dedica- mainstream cultural. Ainda assim,
dos. a enorme influência que exerce-
A tendência chegou, viva e de ram na geração que cresceu nos
boa saúde, até aos nossos dias. anos 70 e 80 acabaria, inevitavel-
Inventariar todas as suas ocor- mente, por dar frutos. No come-
rências seria aborrecido e des- ço do novo século, começaram a
necessário, tanto pela extensão surgir referências de cariz inédi-
como pela falta de substância, to. Pela primeira vez, os jogos de
que raramente vai além da cari- personagem foram tratados de
catura trocista, mais ou menos forma sincera, bondosa, nalguns

52 /// BANG!
casos até afectuosa. Não é que, de um momento para o outro, mais recente, deste género de empatia no mundo da anima-
se tenha mudado radicalmente de discurso; antes, apareceu ção veja-se Gravity Falls (Dungeons, Dungeons & More Dungeons,
a ideia que estes jogos não seriam nem perigosos nem uma 2015).
perda infantil de tempo. Dan Harmon, em dois episódios distintos de Community
No último episódio da série Freaks & Geeks (Discos & Dra- (Advanced Dungeons & Dragons, 2011; Advanced Advanced Dun-
gons, 2000), os espectadores vêem as suas expectativas viradas geons & Dragons, 2014), consolida a ideia de que, de facto, se
do avesso quando Daniel, a personagem de James Franco, o operaram mudanças significativas na percepção geral dos jo-
típico jovem rebelde, conflituoso e blasé, decide experimen- gos de personagem. Subvertendo todos os preconceitos his-
tar D&D com os miúdos cromos da escola. Para espanto de tóricos, Harmon mostra os potenciais efeitos positivos dos
todos, gosta tanto da sessão que imediatamente sugere mais jogos, não apenas ao nível lúdico mas no reforço da auto-es-
um jogo para o dia seguinte, deixando os restantes jogadores tima e das capacidades sociais. A mensagem é clara: os RPG
com a emblemática interrogação se será Daniel que se está a devem ser celebrados, não censurados.
transformar num geek ou se serão eles que passaram a ser cool.
Hoje, a resposta é evidente.
Num tom mais casual mas ainda assim
positivo, também o último episódio de
Buffy (Chosen, 2003) mostra os heróis a
jogarem RPG, à semelhança de Angel,
a seguinte série de Joss Whedon, onde ão poucos (e de muito baixo orçamento) os filmes
voltamos a encontrar referências espo- sobre RPG feitos por e para jogadores, mas merece
rádicas. uma referência a trilogia de comédias The Gamers (2002), The
Por outro lado, em Futurama (An- Gamers: Dorkness Rising (2008) e The Gamers: Hands of Fate
thology of Interest I, 2000) o reconhe- (2013). Todos seguem a fórmula de intercalar os jogadores e
cimento elogioso é absoluto. O pró- as suas personagens, utilizando o acto de jogar para derrubar
prio Gary Gygax é representado parcialmente a quarta parede, à semelhança das bandas
como uma espécie de super-herói desenhadas Order of the Stick e Knights of the Dinner Table.
cuja responsabilidade é proteger o No registo da sátira implícita, a curta Dark Dungeons (2014)
contínuo espaciotemporal, ao lado limita-se a adaptar, da forma mais fiel possível, a banda
de Al Gore, Stephen Hawking, a te- desenhada de 1984 com o mesmo nome – aliás, os produtores
nente Uhura e o computador Deep só assim conseguiram os direitos para o filme, dissimulando a
Blue. A série é pródiga em alusões abertura de portas a um cavalo de Tróia rolístico. Por vezes, a
a D&D, e inclui a longa-metragem vingança é um prato que se serve… 30 anos mais tarde!
Futurama: Bender’s Game (2008), cujo
enredo é construído em torno do
jogo e da incapacidade de Bender,
por ser robô e não ter imaginação,
de jogar. É evidente a importância
que David X. Cohen, o co-criador
de Futurama, atribui aos jogos de
personagem. Para outro exemplo,

BANG! /// 53
assados 35 anos das primeiras representações cinematográficas e televisivas destes
nossos jogos peculiares, onde se situa a opinião colectiva acerca deles? Evidente-
mente, o gosto e as sensibilidades actuais são muito diferentes do que eram no início
da década de 80, desde logo pela valorização generalizada de certas temáticas. Para o
bem e para o mal, a cultura geek massificou-se, levando consigo uma das suas pedras
angulares, os RPG. A atestá-lo, a lista de personalidades públicas que afirmam a sua
paixão pelos jogos, passada ou presente, que cresce a olhos vistos: Stephen Colbert,
Elon Musk, Anderson Cooper, Vin Diesel, Patton Oswalt, Joseph Gordon-Levitt, Wil
Wheaton, entre tantos outros.
Num processo temperado pelo importante factor nostálgico, os jogos de personagem
foram definitivamente inscritos no património cultural contemporâneo, ainda que, pelo
menos por enquanto, a sua visibilidade e difusão efectiva não tenham acompanhado a
consagração. Esta circunstância coloca-nos perante uma espécie de mundo pós-geek –
desculpem-me a expressão trapalhona – do qual os RPG fazem parte intrínseca, com
os seus defeitos e virtudes.
Em House of Lies (Game Theory, 2016), o D&D é apresentado como uma actividade
lúdica “normal”, ainda que idiossincrática, mesmo para mulheres de negócio bem-su-
cedidas. Em sentido complementar vão as séries web HarmonQuest, Critical Role e Titans-
grave, que transformam o próprio acto de jogar em espectáculo. De facto, Toto, já não
estamos no Kansas.
O que se segue? Só o tempo o dirá. Para já, a extravagância retro de Stranger Things
(2016), que carinhosamente coloca o D&D no centro da narrativa, como elemento
fundamental para o enredo e para os protagonistas, simboliza na perfeição o caminho
percorrido. De E.T. a Eleven, derrotado o Demogorgon, fechou-se o primeiro ciclo. 1

Qual foi a tua primeira personagem de RPG?


,
A minha primeira personagem de RPG foi um meio-elfo ladrão-guerreiro
criado com regras de AD&D 1.ª edição, no Verão de 1981. Passei férias em
Paris, e em Dauphine, uma faculdade onde andava um amigo meu, fiz uma

sessão experimental e não arredei pé de lá durante vários dias seguidos! Vim de
a
com uma mistura de Player’s Handbook AD&D fotocopiado, uma caixa vermelh
os a
de D&D Basic, meia-dúzia de aventuras, e logo no mês seguinte estávam
jogar em Lisboa!
el?
Como jogador, mestre, escritor, ilustrador ou editor de RPG, qual o teu momento mais memoráv
de
Creio que o momento mais memorável foi já recentemente, depois de deixar
anos,
ter que ver com RPG profissionalmente: quando o meu filho tinha uns 7-8
eles
criei uma campanha para ele e uns amigos, e jogámos uma série de sessões que
dizer:
adoraram. O meu filho é doente da Playstation, e foi espectacular ouvi-lo
é o melhor jogo que jamais se fez, porque o ecrã de jogo nunca
‘Pai, D&D é brutal,
acaba, é na nossa cabeça!’

Que jogo de RPG gostarias que fosse editado amanhã?


Sempre fui um mestre de jogo fiel aos (poucos) jogos que
joguei, durante muitos anos: AD&D, Traveller e Cthulhu. ião em:
Como jogador, joguei muitos outros, mas a verdade é que opin
sua
não acompanho o que se faz em termos de RPG há a . com
ang
e
muitos, muitos anos. Por isso a minha resposta eix
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é de certo modo muito ‘bota de elástico’, mas ta
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adorava ver o Call of Cthulhu bem editado e


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lançado em Portugal.
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54 ///
54 /// BANG!
//
BANG! /// 55
série centra-se em impérios passados e
atuais. O mais importante para a nossa
história é o Império Malazano. De origens
humildes, começou numa pequena taverna suja.
Kellanved, o primeiro imperador, construiu-o de
raiz com a ajuda de alguns companheiros poderosos:
Surly e Dancer, que têm um determinado leque de
habilidades; Whiskeyjack, Dujek e Dassem Utor que
lideram os exércitos; Tayschrenn, um Alto Mago e
sacerdote do deus D’rek; e Cartheron e Urko Crust
(irmãos) que lideram a Marinha. Estabelecidos na
ilha de Malaz, prolongaram o seu domínio para norte
até ao continente de Quon Tali, e de seguida Kartool
e ainda mais a norte até às Sete Cidades Livres, uma
aliança mercantil de cidades-estados na parte norte
de Genabackis; todas elas, exceto uma, Darujhistan,
foram conquistadas pelo Império Malazano. Pouco
depois de quase todas as Sete Cidades terem sido
conquistadas, o Imperador Kellanved desapareceu e
Surly, o mestre espião e líder da organização assassina
chamada “A Garra”, governou em seu lugar. Por esta
altura, Surly alterou o seu nome para Laseen, que tem
o significado de “Mestre do Trono” na sua língua
nativa. O prólogo de Jardins da Lua tem lugar neste
período de tempo, pouco após o desaparecimento
do Imperador, à medida que decorrem motins na
cidade de Malaz. Este é um episódio que tem imenso
impacto na história e recomenda-se que se leia com
muita atenção.

Após o regresso do Imperador, ele foi assassinado


por Laseen e grande parte da Velha Guarda e os seus
aliados mais próximos foram mortos ou removidos
dos cargos. Laseen lança então a expansão do Impé-
rio e, no momento em que se inicia o primeiro ca-
pítulo, já terão decorrido muitos anos e o Império
Malazano já avançou com a conquista de Genabackis
e controla o território norte do continente.
Grande parte do livro decorre
em Genabackis, abrindo com o
massacre de Itko Kan, o cerco em
Pale e a infiltração em Darujhistan,
a única cidade conhecida que usa o
gás natural como fonte de energia.
À semelhança do Império Romano
no nosso mundo, o império
Obra: Jardins da Lua
Malazano é bem gerido e nas Saga: Império Malazano
cidades por eles anexadas acaba por Autor: Steven Erikson
Tradutor: Carol Chiovatto
imperar a lei, ordem e prosperidade. Nº de páginas: 656
PVP: 19,90 €
56 ///
56 /// BANG!
// BAN
ANGG!!
magia na saga do Império Malazano deriva dos Labirintos, que podem ser considerados uma es-
pécie de reinos extradimensionais. Alguns estão sobrecarregados de energia mágica, ao passo que
outros não. Estes reinos consistem em espaços físicos com habitantes, fauna, flora, água, ecos-
sistemas e qualquer indivíduo com o conhecimento certo consegue abrir uma passagem de entrada num
desses reinos ou convocar uma das suas criaturas. Um feiticeiro pode canalizar o excesso de energia de um
desses reinos para o seu corpo. A m ma aio
i ria
maioria ria dos
ri do os magos
m go
ma gos só s consegue
con
onsesegu
se guue te
terr ac ceessso
acesso s a uum m lalabi
abi
biri
rriint
nto,
labirinto, o,, eembora
m or
mb oraa al
algu
guuém
alguém ém
sig
verdadeiramente talentoso consiga iga te tter
er ac
aces
acesso essso a uum m ouo ddois.
ois.
oiis. H
Háá duduasas ddistinções
as issti
t nççõe
õess immport
port
po rtan
importantesannte
tess efet
effet
e uuaada
efetuadas das pep ela
las
las
pelas
personagens relativamente ao ssistema
iisste
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ao Caminho da Morte, adquiree por poror exemplo
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BA NGG!! ///
BBANG!
BANG
ANG ///// 57
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58 /// BANG!
BANG! /// 59
s deuses são muito ativos na saga, à semelhança dos deuses da Antiguidade Clássica. Abandonam os seus reinos
e interferem nas vidas dos humanos, por razões específicas ou para ganho pessoal. Cada deus tem a sua própria
Casa, em que todos os membros do panteão desempenham um papel. Os outros membros da Casa podem ou não
ser divindades, como também podem ser agentes mortais cujas vidas e ações estão alinhadas com a natureza da Casa. Por
exemplo, o deus da Alta Casa da Morte é o Encapuzado. Ele é uma divindade. Governa os mortos e é sua responsabilidade
trazer as almas dos defuntos ao seu reino. Na Alta Casa da Morte há o Rei, o Encapuzado, mas há também uma Rainha
(Rainha dos Sonhos), Campeão, Sacerdote, Arauto, Soldado, Fiandeiro, Construtor e Virgem. Cada um dos membros das
Altas Casas tem as suas próprias cartas no Baralho dos Dragões, que é semelhante a um baralho de Tarot usado para artes
divinatórias. Apesar de crípticas, as leituras dos Baralhos de Dragões revelam detalhes sobre eventos futuros da série.

T
Trono Sombrio-Ammanas
S bi A A Corda
C d – Cotillion
C illi é O bobo do acaso de Líder dos Tistii An-
é o governante do Labirin- companheiro de Tro- duas caras. Desempe- dii. Senhor da Cria da
to da Sombra. É descrito no Sombrio e Patrono nha um papel muito Lua, Filho da Escuri-
como alguém que enverga dos Assassinos. importante em Jardins dão, Cavaleiro da Es-
sempre um capuz, e por da Lua. curidão.
vezes uma bengala. Co-
manda os Cães da Sombra.

6600 ///
///// BANG!
BAN
ANGG!!
Membro do pelotão de
Whiskeyjack é apresentado pela Whiskeyjack. Um assassino nativo
primeira vez no prólogo como das Sete Cidades e amigo íntimo
comandante do Terceiro Exército, de Ben Ligeiro. Tem por hábito
que constitui parte da elite do enegrecer as suas espadas.
Imperador. Mais tarde, volta
a surgir como um sargento de
patente baixa, despromovido em
consequência da purga de Laseen após o assassinato do
Imperador. Um Escavador no pelotão de
Whiskeyjack e desenvolveu uma
forte amizade com Violinista.
Surge pela primeira vez no prólogo
como um jovem rapaz que sonha
ser um soldado. Grande parte do
primeiro volume é centrado nesta
personagem.

Feiticeira do Quadro, Segundo


Exército, e uma leitora do Baralho
de Dragões.
Um mago das Sete Cidades,
ao serviço de Whiskeyjack.

Pertence ao Nono Pelotão,


desempenha as funções de
curandeiro do grupo.

Uma nova recruta no pelotão


de Whiskyjack. Piedade cresceu
em Itko Kan, uma pequena vila
piscatória em Quon Tali. É uma
assassina mortífera com a aparência
de uma jovem.
Oriunda de Napan, possui
uma pele azul com tons de
cinza-escuro. Começou por ser
uma empregada de mesa numa
taverna, mas ascendeu a soberana
Um Escavador no pelotão de do Império Malazano.
Whiskeyjack. Um amigo próximo
de Azarve.

Um jovem ladrão oriundo


de Darujistan, é sobrinho de
Mammot, um erudito e mago que
tem conhecimentos de Alquimia.

BANG! /// 61
62 /// BANG!
ANNGG! ///
BBANG!
BA //// 63
63
reinvenções da roda, qualquer coisa de diferente que fosse
capaz de provar a quem o lesse que não estávamos a viver no
fundo de um poço, que também éramos capazes de criar algo
de novo, algo dotado da viçosa frescura de um futuro realista
e original, sem contudo perder o toque luso que tão bem
nos caracteriza. Pensávamos ser os primeiros e acabámos
por descobrir, com grande pena nossa, que afinal fomos os
últimos. O Terrarium floresceu na indiferença, no meio do
mato, a milhões de quilómetros da estrela mais próxima. E ali
ficou, enquistado, à espera de uma nova renascença.

Como foi gerido o processo colaborativo de escrita a dois?

LFS: Com muitos telefonemas e trocas de ficheiros


entregues em mão (parece incrível pensar que existiu uma
era anterior aos emails). Telefonemas para trocar ideias
e combinar peças do enredo — umas que funcionaram
melhor do que outras. Houve pouco planeamento prévio,
foi um desbravar de mato, orgânico, à deriva, com o seu quê
de descoberta e orientação.
JB: Foi difícil. Pela minha parte já tinha escrito 80% da
obra, sempre à espera que me fossem entregues as partes
que faltavam vindas de um colaborador que entretanto se
especializou em roer cordas. Por fim pedi ajuda ao LFS, o
único talento que julguei capaz de preencher todos esses
vazios. É preciso lembrar que há 20 anos não havia net e
portanto as transferências de ficheiros eram ainda coisas que
só existiam no mundo da fc. O trabalho fazia-se através de
trocas de disquetes, várias, passadas de mão em em mão no
universo real, e conversas telefónicas. Horas a fio. E tudo
isto com a Editora a clamar na distância que se estava a
fazer demasiado tarde, que havia deadlines a cumprir, que o
texto era demasiado vasto, difícil, cataclísmico, politicamente
incorrecto, que era preciso cortar, cortar, cortar...
Cortar uma história. Não cortámos nada. Valentemente
fizemos finca-pé. A escrita do Terrarium foi um daqueles
Há 20 anos, Terrarium foi publicado pela Caminho e desdee epifenómenos que provavelmente nunca mais será repetido.
então a edição desapareceu de circulação e tornou-se umaa
as
obra de culto e digna de colecionadores. Quais eram as vossas O que os leitores podem esperar desta nova edição de
expetativas para a publicação nessa altura? Terrarium? Mantém a estrutura de romance em mosaicos?

Luís Filipe Silva: As expectativas não passavam por se tornar ar LFS: Mantém e intensifica-a, pois acrescenta uma nova
obra de culto. Passaria desapercebida pela massa leitora, isso o variante de escrever a dois. Se no livro original, cada qual
sim, incompreendida pelos críticos dos jornais, ignorada atéé tinha escrito a sua parte, excepto no derradeiro mosaico em
certo ponto — embora não totalmente, porque a edição o que houve contribuição de ambos para diversos capítulos,
original tornou-se estandarte dos primeiros Encontros de FC C o novo texto da versão Redux conta uma história em duas
de Cascais, em 1996, em jeito de anúncio do surgimento dee partes, escritas por cada um de nós. Um mosaico feito por
uma nova época de afirmação da FC portuguesa (o que não o dois semi-mosaicos, por assim dizer.
veio necessariamente a acontecer, mas essa é outra história). ). JB: O romance em mosaicos mantém-se, claro. Haja respeito.
Viajar está no sangue da literatura, e a Ficção Científicaa Mas cresceu. Olá se cresceu. O prólogo original desapareceu
assumidamente cavalgou nas ondas da globalização do pós-2.ª.ª e transformou-se numa novela original dividida ao meio,
Guerra Mundial. Contudo, Portugal tinha-se esquecido do o parte minha, parte do LFS. São cerca de 100 páginas a mais,
fascínio que, poucas décadas antes, sentira pelo sonho dee que não existiam na edição original. E nela demos a voz que
ir à Lua, de transcender o espaço. E assim, Terrarium, cujo o faltava ao Mr. Lux. Trouxemos à vida os pais da Clara de
parentesco foi difícil de ser assumido pela editora na época, a, Sousa. Justificámos a presença da revista pulp que assombra
mergulhou nas águas turvas do mercado nacional, um m toda a obra.
livro volumoso e caro e escrito por portugueses (!). Que see Entretanto, pela calada, o LFS reviu, reescreveu, reconstruiu,
tenha mantido perto da superfície, não desaparecendo por or subverteu toda a parte chamada a “Madrugada dos Deuses”.
completo, creio que é a sua maior vitória. A Primeira Alternativa original, que nós considerámos pouco
João Barreiros: Inocentes que nós éramos. O Terrarium m adequada e frágil, desapareceu e foi substituída por um
pretendia ser o primeiro passo para o advento de uma nova eraa microconto bem melhor ( na nossa humilde opinião).
da ficção científica escrita por portugueses. Algo que estivessee Cortámos parte do texto que nos pareceu estar
ao nível do que se estava a fazer lá fora, sem décalages, sem m desactualizado, ou pouco aplicável ao mundo actual.

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/// BANG!
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G
Actualizámos diálogos em discretas buchas. Este Terrarium é Terrarium vai ser apresentado na Comic-Con 2016 para uma
outro Terrarium. Até tem ilustrações. E uma BD onde figura nova geração de leitores. Que mensagem gostariam de lhes
a Triste Judite. transmitir?

O que mudou nos últimos 20 anos na ficção científica LFS: Que a literatura de género escrita em português já
portuguesa, tanto a nível de editoras como novos autores e tem uma tradição – um passado que merece ser descoberto,
leitores? mesmo se hesitante e trôpego. E tal como tem um passado,
terá um futuro, mesmo se parecer negro a quem o antevir
LFS: Talvez uma consciência de si mesma. Já não choca que da presente perspectiva. Um futuro que pode, e deve, ser
alguém se assuma como escritor de FC. Nem choca nem sonhado.
espanta – é daqueles fenómenos que se tornaram normais. JB: Pequenada, comprem o livro. É um tomo enorme, capaz
Depois da Caminho, foi normal (talvez inevitável!) que a nova de competir com as obras do George R R Martin. Uma obra
colecção de FC da Presença aceitasse — quisesse, inclusive de peso. Boa para ter na estante. Boa para ser lida e relida. Foi
— romances escritos por portugueses, ainda que a boa escrita há 20 anos, mas conta um futuro que é agora o nosso
experiência tida com a vertente da Fantasia também facilitasse presente.
as decisões de gestão. E que esta vontade se repetisse na Ajudem estes dois autores lusos e venham todos à
Gailivro-Leya, e que até surgisse a Saída de Emergência como Comic-Con para conversar connosco. Vão ver que somos os
projecto editorial dedicado ao género Fantástico. Todas estas dois muito fofinhos e prazenteiros.
vitórias dos tempos modernos teriam dado muito jeito se
existissem quando era adolescente...
JB: Na fc portuguesa não sei se mudou alguma coisa. A meu
ver, desapareceu, tornou-se invisível, encontra-se ausente
em parte incerta. A Editoras parecem ter desistido de a
publicar. Alegam que não vende. Afirmam a pés juntos que a
pequenada só se interessa por mundos onde os heróis tenham
a idade dela. Tudo bem, mas atentem no seguinte: No nosso
Terrarium, o Joel e o seu companheiro vulpis bem poderiam
pertencer ao mundo dos jovens adultos. Embora haja neste
Terrarium outros personagens bem mais velhos.
É por isso que o esforço da SdE é meritório. Veio trazer
de volta a fc lusa. Provar que ela existiu e que pode voltar a
existir. Esperemos que o Terrarium abra as portas a uma nova
geração de leitores e escritores, que só ouviu falar dele como
algo mítico que se perdeu nos abismos do tempo.

NG! ///
BANG!
BBA
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Leia nas páginas seguintes
um excerto pré-publicado
deste grande clássico
português da FC.

sualizar Sector 500, identificação de tro desta confusão, deste negru-


alvos e essas coisas! me que só as lentes das câmaras
A parede dissolve-se, solícita. passivas alumiam, que o avatar
Mr. Lux está agora a contemplar resolveu esconder um dos seus
um abismo feito de ferragens, cofres: Uma esfera de vinte me-
tubos de acesso esventrados, tros de diâmetro, brilhante e po-
anteparas torcidas, gotas flu- lida como uma jóia, a fulgir no
tuantes de luciferina, óleos lu- meio da gigantesca lixeira. O co-
brificantes e outros fluidos para fre está ali há mais de vinte anos,
os quais não existem nomes. De sem que ninguém o descobrisse,
vez em quando, a rodopiar nes- calmo, quedo e passivo. Preso
ta microgravidade sem lei nem por cabos de monofilamento às
grei, pode ver-se um esqueleto anteparas que o rodeiam, a flu- 1
serpentóide, uma casca vazia de tuar na treva como um ninho de
alarme toca, insistente, algo parecido com uma lagosta, aranhas.
e Mr. Lux acorda, meio milhares e milhares de cubos Mas esses tempos de pacata
confuso, depois de ter es- coloridos, parafusos, placas de acalmia desapareceram de uma
tado toda a noite a sonhar com identificação, tapetes, jarras, vez por todas. Há gente a salti-
a Montanha Mágica. Os lençóis colares, jóias, frasquinhos por tar de antepara em antepara, na
estão ensarilhados nas pernas, milagre intactos, com qualquer direcção do cofre. Minúsculos
pegajosos e a cheirar a corpo substância a tremeluzir no inte- por comparação, mas elegantes
encardido, a luz da madrugada rior. Aqui não há alto nem bai- como pulgas. Sem escafandro ou
escorre, tristonha, através das ja- xo, a noção de perspectiva não escudo atmosférico. O que não
nelas que ninguém se deu ao tra- existe, o Sector 500 não passa pressagia nada de bom.
balho de lavar, e o avatar tossica, de uma caverna composta pelo Ainda sentado na cama, Mr.
para limpar a garganta, como se conglomerado de cinco naves Lux franze o sobrolho, coça a
isso fosse necessário, como se es- exóticas, que resolveram mes- barriga, range os dentes de raiva.
tivesse a representar perante uma clar-se num amplexo cataclís- Só podem estar a gozar comigo, mur-
audiência de milhões, o papel de mico. Naves sem dono. Coladas mura. Então isto admite-se?
um velho sujo e desleixado. umas às outras, num choque Porque as sete figurinhas que
O alarme tem a forma de um titânico que ocorreu quando o tão alegremente se aproximam
relógio passé, daqueles onde o Anel se formou. Hoje em dia, as do cofre, são humanas, embora
Rato Mickey aponta para as ho- espécies que as pilotavam já não disformes. Anões, explica a In-
ras com os dedos enluvados, mas existem. Extintas ou executadas fopédia aos ouvidos do avatar.
em boa verdade não se trata de pelas autoridades competen- Anões humanos. Bonecos animatróni-
um simples despertador, mas algo tes, vá-se lá saber. A realidade cos, teleoperados. O responsável deve es-
que o avisa que houve intrusão neo-Darwinista do Anel não tar longe. Nada a fazer quanto a isso.
no Sector 500, que anda alguém permite tanto desleixo. Quem Mr. Lux abana devagarinho a
a mexer no que não lhe pertence. estraga, paga. Muitas vezes com cabeça perante a crueldade in-
Só chatices, murmura Mr. Lux, a a vida. O Sector 500 deveria es- sultuosa de um mundo onde re-
morder os lábios com os poucos tar por isso abandonado, inter- solveu esconder-se, para sua des-
dentes que lhe restam. Esta gente dito ao mais comum dos mor- graça. Os anões invasores têm
até parece que nasceu para me dar cabo tais, os selos de acesso tranca- calçadas tamancas com atilhos de
do juízo! dos para sempre e mais um dia, cobre. Colãs castanhos de várias
Levanta-se num gesto ágil, mas, para uma criatura como o cores cobrem-lhes as partes bai-
que nega o estado do corpo e a Mr. Lux, não pode haver portas xas, provavelmente para fazer jo-
idade aparente, poisa os pés no fechadas. Um lugar onde nin- lie. Envergam uma jaqueta presa
chão, enfia os dedos no chinelos, guém vai, é o local ideal para se à cintura por um cinto de fivela
aponta para uma das paredes do esconderem coisas. de ouro. E, no topo das cabeças,
quarto de dormir e ordena: Vi- De qualquer modo, foi no cen- a cobrir as orelhas de abano, bar-

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/// BANG!
// BAANNG!
G
retes. Barretes compridos, que adejam a gada, Mr. Lux olha para os dois tanques aos portões do jardim. Em seguida, vai
cada salto. Os narizes das criaturas sãocilíndricos, um deles cheio de qualquer ter de aguentar dois quilómetros de cur-
enormes, abatatados. Narizes onde não coisa semelhante a mel líquido, sempre vatura ao longo da interminável Sunset
se consegue descobrir qualquer tipo de a borbulhar. Os parâmetros da produ- Boulevard. Em passo de caranguejo. A
orifício. Como se não precisassem de ção de Sacramento continuam no topo respeitar as regras de trânsito. Raios par-
respirar. Como se a parca atmosfera, da escala, o nível de pureza do fluido é tam as Simulatrix e o nauseante rigor histórico.
carregada de toxinas deste Sector 500, absoluto, nenhuma contaminação exte- Bom, depois do vivarium onde bio-
lhes fosse indiferente. Seis têm barbas rior, tudo bem, nenhum problema nesse constructos berram por uma libertação
brancas, à excepção de um que é imber- aspecto. O avatar pergunta a si mesmo que nunca chegará, passado o átrio, ves-
be e com o aspecto típico de um idiota se alguma vez vai voltar aqui, se vai tida a gabardine retirada do bengaleiro,
da aldeia. Todos eles transportam uma precisar daquilo que é o seu sangue, a aberta a porta principal do solar, ali está
lamparina, onde arde uma doce chama. sua «essência», ou se esta vai ficar para ele no jardim, rodeado de artefactos li-
Na outra mão, apoiada ao ombro, uma o outro, aquele que repousa no interior terários que um dia, minuciosamente,
picareta. Os lábios destes pequenos do segundo cilindro. Ao fim e ao cabo construiu para se entreter da modorra
monstros abrem-se e cerram-se em con- tanto faz. São todos a mesma pessoa, o de anos e anos de tédio.
junto, como se estivessem a trautear. Eumesmo Mr. Lux, o mesmo avatar. Mr. Lux lá vai seguindo por um carrei-
vou, eu vou trabalhar, eu vou, informa-o a Mr. Lux dá uma palmadinha na su- ro de gravilha que contorna este jardim
Infopédia que consegue ler lábios. O pa-perfície curva do segundo contentor crepuscular. O jardim está cheio de flo-
trão quer que eu busque mais referências?
onde repousa uma enésima cópia ainda res sintéticas (com um
Negativo, responde Mr. Lux, levantan-em formação, suspira fundo (como se
do-se enfim, de uma cama que não lhe quisesse imitar os inefáveis compor-
trouxe o devido sossego. Contas feitas, tamentos da espécie que lhe deu
quer lá saber o que aqueles bonecos an- guarida), abandona a sala, desce
dam a cantar. Vai ter de se dirigir sem a escada circular, e acede ao
demoras ao Sector 500, para salvaguar- Museu.
dar o que ainda puder ser salvo, mas Aqui, a dificuldade
qualquer coisa lhe diz que vai chegar está na escolha. O sec-
demasiado tarde. O cofre encontra-se tor das «armas im-
na outra extremidade do diâmetro do possíveis» alarga-se
Anel, a 100.000 cliques de distância da num labirinto con-
nave Simulatrix. Tempo útil de viagem: voluto de espaço
uma hora standard, tempo terrestre. E comprimido. Não lhe
isto em passo de corrida, através dos la-
interessam espadas cantan-
birintos do Anel. tes, hover-tanques, e mechas de assalto. tempo
Aos tropeções, veste as calças que Enfim, nada que seja capaz de furar o de activação limitado), e árvores e plan-
usou na véspera, a mesma camisa, só Anel de um lado ao outro e alertar a se- tas moribundas que o avatar fez crescer à
é diferente o pequeno laçarote que lhe nil atenção de nós sabemos quem. Te- força e sem grandes resultados. Algures,
prende o colarinho. Desta feita o laço mos de ser discretos. Usar meias me- na penumbra, há árvores que raspam as
é vermelho com pintinhas brancas. didas. Permanecer invisíveis. Por isso raízes umas contra as outras como se
Olha-se no espelho da casa de banho, Mr. Lux opta por uma pequena pistola quisessem rejeitar o solo que as acolheu.
contempla um fácies esquálido onde so- capaz de ficar escondida no bolso da Corolas de flores carnívoras abrem a
bressaem as maçãs do rosto, a barbicha gabardine. O punho da arma é feito de boca e chamam por insectos que nunca
branca e desarrumada, os óculos gros- marfim esculpido em múltiplas espi- virão ter com elas. E há outras que can-
sos que acabou de enfiar. Não que estes rais. O cano retorcido lembra a tromba tam, sim, trauteiam doces melodias. Mr.
sirvam para ver ao perto ou ao longe, contraída de uma mariposa. Luzinhas Lux está farto do mundo que construiu.
não passam de hololentes, com acesso azuis piscam nos indicadores de carga. Algum dia vai ter de limpar tudo isto e
a todos os sistemas da Inforede. Diz ao Ali não há gatilho, apenas um pequeno recomeçar com uma página em branco.
corpo para esquecer as necessidades fi- botão digito-eléctrico. Daqueles que Mr. Lux chega junto do portão de fer-
siológicas, pois outros valores mais altos
funcionam por contacto e só obede- ro forjado, pede ao cadeado que se abra,
se alevantam. E o corpo esquece, obe- cem às ordens de um utente particular. e acede à rua onde já espera o Táxi que
diente. Desapareceu a sede, a garganta Mr. Lux lembra-se de Buck Rogers e convocou. O veículo é amarelo e axadre-
seca, a vontade de urinar. Mr. Lux está do bom velho Flash. E ao pensar ne- zado (as Simulatrix nunca entenderam
aos poucos a transformar-se numa pe- les, nesses heróis de outras eras, cujas as correspondências topográficas mais
quena máquina de guerra, capaz de su- aventuras enchem centenas de metros correctas), ao volante está um indivíduo
portar quase todas as maldades que lhe quadrados do Museu, dá-se ao luxo de moreno e de cabelo encaracolado, não
queiram fazer. esboçar um pequeno sorriso. Tem en- aquele em que estão a pensar, mas outro
Como se isso lhe fosse servir de algu-
tre os dedos um blaster, com carga para taxista famoso, que os pseudo-insectos
ma coisa. duzentos impulsos na potência máxi- reconverteram em pessoa; a chapinha
ma. Deve chegar para dar cabo de uma sinalética junto ao volante identifica-o
mão cheia de anões feitos de resina. para quem esteja interessado nestas coi-
Na sala ao lado, mesmo ao centro, sob a Entretanto as hololentes já chamaram sas: Philip Glass.
luz coada pela clarabóia onde se derra- um táxi para o levar aos elevadores. Este Mr. Lux acomoda-se no assento tra-
ma uma tristonha e crepuscular madru- deve estar em breve parqueado junto seiro, resmunga: elevador, fulcrum, exit, o

ANNGG! ///
BBANG!
BA /// 67
// 67
taxista responde, perfeito, patrão, e o veí- chegou a vez dos parques de estaciona- franze o sobrolho perante os guardas
culo arranca a rugir numa baforada de mento desertos, das gigantescas lojinhas Simulatrix que por ali adejam como
vapores tóxicos, os pneus estremecem de conveniência a emergir das sombras moscas, ignora por completo os scan-
sobre os buracos abertos no macadame, como cogumelos venenosos, encalha- ners que eles agitam nas mãos enluvadas
rumo ao primeiro desvio que lhe permi- das no meio de uma quantidade inacre- de branco, e acede enfim, à Torre que
ta passar de um toróide a outro. ditável de Night clubs onde anacrónicos conecta a nave com o restante Anel.
O táxi não precisa de motor de com- hologramas exibem Girls, Girls, Girls, a E desce. Ou sobe. Aqui toda a verti-
bustão, visto que funciona a macrobaté- mostrar as glândulas mamárias em cícli- calidade é ambígua. Está sozinho, quan-
rias. Não precisa de pneus. Não precisa ca e erótica alegria. do as comportas do elevador se abrem,
de amortecedores. O táxi poderia ser Ao longo do caminho, palmeiras pe- após múltiplos avisos em trade sobre a
qualquer coisa mais moderna, mas aqui riclitantes inclinam-se sobre os passeios, composição tóxica da atmosfera exte-
tudo é simulacro, falsidade, nostalgia enquanto nuvens falsas como tufos de rior. Mr. Lux não quer saber. Disse ao
dos anos 50 que as Simulatrix cinéfilas algodão escorregam sob a curvatura do corpo humano que deixasse de respirar
tanto parecem apreciar. Mr. Lux quer lá céu artificial. e o corpo obedeceu-lhe. A IA do ele-
saber, mas a verdade é que não há lugar Mais depressa, insiste Mr. Lux, sabendo vador calou-se, após múltiplos avisos
melhor para permanecer invisível do que o tempo se faz escasso. Phil Glass de perigo iminente. Nem sequer já lhe
que ali, na reconstituição de uma Sunset encolhe os ombros e continua a circular pergunta qual foi o último filme que viu.
Boulevard que nunca chegou a existir na velocidade que entendeu ser a ideal, A nova gare é uma esfera imensa cheia
no mundo real. com um vago sorriso nos lábios, a cru- de ecos. Por todo o lado há um fervilhar
zar-se com descapotáveis que seguem de espécies não humanas a cacarejarem
Enquanto conduz, Philip Glass trauteia no sentido contrário, onde jovens Lo- umas com as outras em alienês, como se
qualquer coisa minimalista para compe- litas em biquíni lhe acenam com flautas não houvesse uma linguagem comum e
tir com a música vinda da rádio onde cheias de champanhe. O avatar morde fraterna com a qual todos se poderiam
Armstrong insiste num «It´s a Wonder- os lábios, morto por cometer um acto entender sem grandes esforços. Veícu-
ful World». O mundo nunca foi maravilhoso, de extrema violência, mas contém-se. los ovóides deslizam na curvatura inte-
pensa Mr. Lux, a puxar pela barbicha. Bem queria abrir um buraco-verme e rior da esfera, uns cheios, outros vazios, 1
É sinistro e terrível. É aí que se esconde a sua emergir directamente no meio daquela num zunido de vespas eléctricas. Por
verdadeira beleza. cáfila de anões humanóides, mas não vezes mergulham na gelatina das pare-
Entretanto, lá fora, vão ficando para pode, não pode. Às vezes o contacto des com um ruído suave de deglutição
trás filas e filas de moradias e solares gó- com a realidade tem a força de um im- e desaparecem da vista. Avídeos, rapo-
ticos que mais não são do que simples pacto contra uma parede de tijolos. sóides, baratas Kreepo, lagartos, miriá-
fachadas. Mussolini fez o mesmo, p para De qqualquer
q modo, está qquase a che- p
podes, aracnóides, cada uma das mil e
convencer Hitler da Glória de Roma. As gar à Central: ou seja, àquela parte do quinhenta
quinhentas espécies exóticas aqui pre-
Simulatrix apressaram-se a repetir estes elevador que liga a nave Simulatrix à res- sentes cocorre de um lado para o outro,
delírios. Passadas as tante estrutura do Anel. saltita, esv
esvoaça, arrasta-se, repta, como
moradias, E depois disso, longe desta anónima se não ho houvesse amanhã. Hologramas
obscuridade onde passou em sossego apontam possíveis direcções. Solidogra-
tantos anos, ainda vai ter de tomar mas agita
agitam braços, presas e tentáculos.
a bala periférric
i a que o irá con-
periférica Aqueles que podem sorrir, sorriem.
duzir, tão próximo quanto Outros tritrinam. Alguns dos funcionários
possível, juunt
n o do devastado
junto raspam mandíbulas
m a compasso.
Sector 500. Mr. Lux
Lu não liga. Sabe perfeitamen-
Chatices, sóó chatices. te para o onde quer ir. Conhece todos
os camin
caminhos secretos deste Anel que
circunda a Terra. Com as mãos a segu-
Mr. Lux toma m um ele- rar as aba
abas da gabardine, desloca-se até
vador VIP P na Gare uma pequ
pequena plataforma que ninguém
do Metropolitano
Mete ropolitano usa, tipo prancha de salto para as pis-
da Sun uun
nset Boule-
Sunset cinas que os humanos tanto parecem
va
arrdd, repleta de
vard, apreciar, dobra
d os joelhos e lança-se no
cartazes vivos a abismo. O Ou seja, para o alto. Rumo ao
anunciar filmes centro da esfera.
que ninguém Liberto
Libertos os pés da gravidade artificial,
viu, desvia-se outras forças
for tomam conta do corpo do
dos turistas avatar. Mr.
Mr Lux ascende como um anjo
humanos que senil, afas
afasta-se de todo o bulício que in-
insistem em ferniza a curvatura interior da Estação
pisar-lhe os de Trânsi
Trânsito, sobe (ou mergulha) até ir
calos como poisar na nova esfera que repousa ao
se ele fos- centro da esfera maior. Bate com o ta-
se mais cão da bobotina na superfície flácida e ploc,
um figu- esta deixa
deixa-o penetrar sem mais demoras.
rante, Já no interior,
i vozes ciciam-lhe aos

6 ///
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BAN
ANGG!!
ouvidos informando-o que estas pas- de que uma aceleração de duzentos gês, esquecidas desde que o Anel é Anel. Pe-
sagens são de acesso restrito, para uso não é nada, mesmo nada, adequada à quenos cadáveres de parasitas colam-se,
exclusivo dos seguranças, técnicos de fisiologia humana. Mais informa que devido ao visco congelado dos corpos, a
apoio vital, agentes de autoridade e ins- quem viaja a tais velocidades, não vai paredes e anteparas. Gotas solidificadas
pectores alfandegários. O avatar abre poder chegar funcionalmente vivo ao de combustível chocam umas contra as
a boca e mostra-lhes quem manda. As seu destino. Mr. Lux, claro, não é hu- outras, num tinir cristalino, sempre que
vozes calam-se, os sinais apagam-se, mano. Nem de perto nem de longe. Por sopra uma brisa. Estalam anteparas,
outros acendem-se permitindo-lhe um isso, ignora tais recomendações, diz à IA anunciando uma catástrofe próxima.
rápido acesso. da bala para prosseguir, concorda com Dobram-se vigas de sustentação, deva-
Aqui, nesta micro esfera ao centro de todas as isenções de responsabilidade gar, devagar.
outra esfera (apenas uma entre os mi- pedidas pela Companhia de Transpor- O Sector 500 deveria permanecer as-
lhares que permitem a passagem aos tes que construiu o sistema de Viagens sim, por mais uns quantos anos, nesta
sectores mais confidenciais do Anel), Intraorbitais, assina por baixo, guarda os calma inquieta, neste quase silêncio e
podem ver-se várias balas conectoras óculos no bolso da gabardine, poisa as desolação.
prontas a disparar. Cada uma aponta mãos sobre o colo, e deixa-se ficar. A Mas não é isso que está agora a acon-
para uma comporta diferente, todas elas IA lava daí as mãos, e começa a encher tecer. Algo mudou. Existe luz, existem
de momento cerradas. Ao vê-lo, um o interior do veículo com um agradável sons e movimentos anómalos.
agente de autoridade humano, vestido e odorífico gelóide. O corpo de Mr. Lux Neste preciso instante, sete lampa-
com o uniforme da UE, desprende-se afunda-se no interior deste aquário que rinas orbitam em torno daquele lugar
da parede, desliga-se dos cabos de sus- cheira a menta e às florestas da Amazó- onde se escondem os desejos dos nos-
tentação, aponta-lhe um neurodisruptor nia onde escondeu a Montanha Mágica. sos corações. Sete lamparinas a óleo, a
num gesto viril, ordena-lhe que se iden- O ecrã virtual conta os poucos segun- bruxulear numa atmosfera destituída de
tifique, mas Mr. Lux limita-se a mostrar dos que faltam até ao disparo. Tempo de oxigénio. A superfície do cofre reflecte
os dentes, ergue a mão direita onde se viagem: 45 minutos standard. parte desta doce tonalidade alaranja-
desprende uma gotícula de suor com a Vão pagar-mas, pensa Mr. Lux enquan- da. O cofre não reage. Depois de ter
cor dourada do Sacramento, sacode-a e to desliga, uma atrás da outra, as com- transmitido o alarme a quem de direito,
a gotinha descreve um doce arco até se ponentes mais delicadas da sua fisiolo- deixou-se simplesmente ficar à espera
ir colar à bochecha do guarda. gia. Vai haver hiperviolência e extremo prejuí- que aconteça algo de novo. E enquan-
Às vezes não é necessário mais do que zo, não tarda nada. Não esperem pela demora! to o cofre espera, os luzeiros dançam
um simples aceno. O guarda estremece, O corpo de Mr. Lux rigidifica-se qua- como pirilampos, a alumiar a actividade
pisca os olhos, baixa a arma, e sorri a se de imediato, os olhos transformam-se dos sete anões humanóides. Todos es-
Mr. Lux numa atitude mais que servil, em duas pequenas esferas de irredutível tas criaturas, feitas de resina mótil, têm
exprimindo-se no trade regulamentar: solidez, pela boca escancarada infiltra-se as tamancas aderentes à curvatura do
— Exa., como posso servi-lo? uma boa litrada do gelóide oxigenado, cofre. As picaretas flutuam-lhes frente
— Bala hiperquinética para um único até que o avatar mais não é do que um aos narizes. Os anões cantam e batem
passageiro. Eu próprio. Acesso total. E boneco sólido, preso ao arcaboiço de palmas, estalam as mãos enluvadas de
desampara-me a loja! uma cadeira elástica, no interior de uma quatro dedos umas contra as outras,
O guarda encolhe os ombros e deglu- bala azul prestes a ser disparada. como se estivessem a dançar ao som de
te em seco. Custa-lhe falar. Não conse- A contagem chega a zero, a IA diz cá uma orquestra invisível. Como se escu-
gue fazer outra coisa senão acenar com vamos nós numa vozinha prazenteira, e a tassem as canções perdidas da Adriana
a cabeça, apontar para um dos projéc- bala arranca, desliza pelo veio de aces- Caselotti. Cantam, para alegrar quem os
teis translúcidos, e teclar sobre a su- so através da esfera exterior, mergulha acompanha nesta secreta aventura. São
perfície um qualquer código de acesso. através de um dos opérculos que logo se extensões de um Bonecreiro. Alguém
Obediente, a bala abre-se ao meio mos- abriu para a receber, e por fim acelera no que os controla à distância, em plena se-
trando uma cadeira ergonómica para interior do túnel electromagnético, mais, gurança, a muitos e muitos cliques dali.
uso exclusivo da fisiologia humana. mais e mais, rumo ao Sector 500, onde Pois os alegados assaltantes formam,
Mr. Lux afasta-o com um gesto seco, um crime de roubo prossegue com todo claro, uma tontina composta por três es-
encolhe-se no interior da bala, dobra as o desplante de que algumas espécies são pécies diferentes.
pernas, assenta a nuca no encosto, aca- capazes. Dois humanos vestidos com um fato
ricia o teclado virtual que lhe apareceu Mr. Lux não dá por nada. térmico a chupar ar respirável pelo bocal
à frente, a bala volta a fechar-se com do oxigenador: um macho e uma fêmea.
um ruído húmido, e eis que é chegado Contra o peito, o ideograma 3D de um
o momento de programar uma rota, a tal Alfred E. Newman, com um denti-
aceleração mais adequada ao tempo do nho aguçado a emergir da boca desden-
percurso requisitado, o ETA. tada, balbucia silenciosos insultos. É de-
Embora a superfície da bala seja à les o algoritmo secreto que lhes permitiu
partida transparente, esta começa agora ector 500. abrir todas as comportas e passagens
a polarizar-se numa delicada tonalidade Cem graus negativos de tempera- secretas, ter acessos aos elevadores parti-
azul para não perturbar com vertigens a tura ambiente. Treva absoluta, pois culares, às câmaras de máxima seguran-
quem nela viaja a tais velocidades. Uma aqui não penetra um único fotão vindo ça, consultar mapas e cartas topográficas
vozinha solícita pergunta-lhe aos ouvi- do exterior. Atmosfera composta ape- de todas as unidades que constituem o
dos, em trade, se o respeitável utente tem nas por CO e uma quantidade incalcu- intricado labirinto do Anel. O casal Sou-
a certeza do que está a fazer, e informa-o lável de toxinas exóticas que ali ficaram sa pode impunemente penetrar em todo

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o lado, desde que seja essa a sua inten- Uma plataforma, ainda ligada por vista pulp —, temos perante nós artefac-
ção. Penetrar em segredo, sem ser visto dois ou três cabos às anteparas mais tos preciosos, que vão render-nos um
ou detectado por qualquer exótico, yu- próximas, onde podem ver-se três su- bom capital logo que forem vendidos
rulans ou Inspectores humanos. portes, semelhantes a um braço com a quem mais puder pagar. Cada um de
Mais para a direita, a espreitar por uma garra no topo. As três garras segu- nós vai recolher um, e investir na bus-
detrás de um emaranhado de cabos, ram os seguintes objectos: ca de um comprador específico. Neste
esvoaçam cinco Kreepos do ninho Kir- 1 - Uma caixa de madeira amarele- caso, a dispersão é a alma do negócio...
relpolt com os escudos atmosféricos a cida pelo assédio do tempo. Existem Vamos ter de confiar na firme integri-
funcionar em pleno. As patas lagosteiras baixo-relevos esculpidos em toda a su- dade dos restantes parceiros. Porque,
tamborilam nos botões dos disrupto- perfície da tampa, incompreensíveis a quando os lucros forem divididos, cada
esta distância. um de vós receberá mais do que rece-
2 - Uma estatueta beria se tivesse fugido apenas com um
de um Falcão negro e com destes objectos, correcto?
os olhos a luzir. Por baixo da estatueta, Os Kreepo enrolam e desenrolam
res. Estão nervosos com tanta demora. uma placa sinalética informa a quem se as trombas aspirantes. Os restantes
No dorso queratinoso semelhante ao interesse por essas coisas, que o Falcão anões batem palmas, a compasso. As
de uma joaninha, as pintinhas piscam não é mais do que um «Macguffin». lamparinas rodopiam em volta, cada
e mudam de lugar. Sinal evidente de 3 - Finalmente, na terceira garra a vez mais frenéticas. O casal humano
stress, mas ninguém quer saber disso. contar da esquerda, uma revista pulp, encolhe os ombros e começa a exa-
São guerreiros contratados e estão ali AMAZING STORIES de seu nome, minar os objectos de mais perto. A
para o que der e vier. impressa algures nos anos vinte do sécu- revista pulp não é mais do que aquilo
— E se nos despachássemos? — lo passado, protegida por um saquinho que pretende ser: um memorabilae com
pede a fêmea humana. — Não acham de gelatina, brilhante e lustrosa como se mais de duzentos anos, preservada e
que já é altura de pararmos com as pa- tivesse acabado de ser impressa. Até que intacta como por magia. A Sociedade
lhaçadas? Vocês querem confrontar-se enfim, algo capaz de despertar de ime- da Nostalgia Anacrónica deve pagar
com o dono disto? diato a cobiça de quem a quiser chamar bons euros por ela. O Bonecreiro que 1
Atchim espirra, libertando ácido pe- sua! Na capa, a imagem de um ser hu- se encarregue dessa parte. A caixa de
las fossas nasais invisíveis. Zangado bate mano, vestido de vermelho, dotado de madeira é algo mais peculiar. Levezi-
com a tamanca direita na superfície do um salta-cinto e de um barrete de avia- nha, como se nada tivesse dentro. A
cofre. Mudo saliva pela boca e arregala dor, acena parvamente à namorada que tampa encontra-se lacrada por uma
os olhos imensos numa expressão de se encontra em terra firme. resina vermelha. No topo da caixa, um
idiotia profunda. Só o Mestre responde, Só isto e nada mais. Após tanto tra- baixo relevo mostra um templo dóri-
com as mãos cruzadas sobre a pança: balho investido na busca deste cache, co coberto de trepadeiras, a tresandar
— Tudo bem, afirmativo, o que tem aquilo que encontraram parece ser coisa a Antiguidade Clássica. Sentada com
de ser, tem muita força! pouca. a caixa ao colo, uma rapariga huma-
E estala os dedos. Mas é quanto basta para enriquecer na, pré-adolescente e de peito ao léu,
Sete anões pegam nas respectivas pi- de um modo desmedido quem dele se contempla com atenção a tampa desta
caretas. Sete extensores comunicativos aproprie. mesma caixa que está prestes a abrir.
erguem-nas no ar, seis bocas clamam Laureen franze o sobrolho, acende o
Zás!, e todos eles batem na superfície do foco instalado no topo do capacete,
cofre em perfeita sincronia. O grupo aproxima-se do expositor que e esforça-se por compreender aquilo
Como não poderia deixar de ser, as as lamparinas mal alumiam. Em primei- que tem na frente. Porque a imagem
picaretas não são propriamente picare- ro lugar avançam cinco dos sete anões, da caixa que a rapariga segura entre as
tas. Uma pancada delas perturba de um pois estes nada têm a perder. Logo de mãozinhas juvenis, tem uma imagem
modo terminal a coerência molecular seguida, esvoaça o casal de humanos, no topo, quase imperceptível tão pe-
da superfície contra a qual impactaram. com os jactos dorsais a lançarem pe- quena é, onde se vê uma rapariga a se-
Perante tal assédio, o cofre estremece, quenas baforadas de vapor na atmosfe- gurar uma…
grita em agonia, fendilha-se, e finalmen- ra gélida. Por fim, chegam-se os cinco — Recessão infinita… — comen-
te estala à quinta martelada. Fragmentos Kreepos, a trinar canções de vitória por ta Jorge de Sousa. — Um preciosismo
do invólucro dispersam-se pela caverna mais esta pequena conquista contra a dispensável, acho eu… Curioso, mas…
do Sector 500, acrescentando mais uns crueldade açambarcadora do universo — No fundo da caixa existe uma linha
quanto destroços ao caos ambiente. Sete capitalista. As patas lagosteiras sacodem de caracteres gregos, até aí oculta, que a
anões são projectados no ar, até que os as respectivas armas. Os pedúnculos vi- Infopédia imediatamente traduz: «Esta
pequenos propulsores que transportam suais estremecem de entusiasmo. prenda pertence à menina Pandora para
às costas voltem a reuni-los num peque- — Que raio... — resmunga Laureen, seu uso exclusivo», como se isso expli-
no enxame. Os Kreepos encolhem-se a fêmea humana. casse fosse o que fosse. Uma mão cheia de
ainda mais, no peito dos humanos Al- — Que treta vem a ser esta? — con- nada, outra de coisa nenhuma, pensa Jorge,
fred Newman resmunga um impro- clui Jorge de Sousa, o seu companheiro. enquanto entrega a caixinha às pinças
pério, mas a verdade é que o cofre se — Nada disto chega para pagar a edu- sequiosas dos Kreepo.
deixou abrir, tal como o Bonecreiro lhes cação da Clarinha… — As baratas que fiquem com esta
tinha prometido, deixando à vista, sob a — Meus senhores, estimados compa- treta — explica aos ouvidos de Laureen,
luz esmaecida das candeias, o respectivo nheiros — comenta o Mestre, com uma não pela rádio mas através das vibrações
conteúdo: das mãos já estendida na direcção da re- transmitidas pelas duas bolhas do esca-

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fandro. — Que lhes faça muito bom yurulan. Como já vos disse, é alguém aqui recolhi. Ainda temos tempo. Seis,
proveito… pior, muito pior, que distribuiu por todo sete minutos, pelas minhas contas, antes
Desinteressado, o humano vira as o Anel caches de Metatecnologia de que chegue alguém cuja presença nos é
costas à caixa que pertenceu à alegada Grau 2+ ou mesmo 3. Milhares de Ar- estranha. Sugiro que se retirem daqui
Pandora e aproxima-se da estatueta do tefactos que têm sido um cabo de traba- para fora, rapidamente e em força. Os
Falcão. A Infopédia informa-o de que lhos para recolher. Algo que foi escon- camaradas Kreepo que tomem conta
a palavra «Macguffin» significa «estraté- dido in illo tempore, sem o conhecimento da caixa e o estimado e simpático casal
gia narrativa representada na forma de do Fragmento. Até agora, nenhum dos Sousa que cuide dessa estatueta que tan-
um objectivo a atingir, objecto desejado, colectores teve sucesso. Houve umas to parece apreciar…
ou qualquer outro motivador de busca». quantas tentativas frustradas de recolha, Laureen abana a cabeça:
Ora vai-te lixar, replica Jorge. E pega no podem crer. Todas elas com um final — Como assim? Mesmo que os nos-
Falcão negro. muito infeliz. Como podem imaginar, sos algoritmos possam abrir e trancar
— Que objecto de culto vem a ser não quero que aconteça o mesmo com portas e passagens, cinco minutos não
esse, estimado camarada? — pergun- os meus dilectos companheiros… bastam para nos escondermos. Ele, se
ta-lhe um dos Kreepo. — Que divinda- Ao ouvir isto, dois dos Kreepo avan- é que estamos a falar de um ele, vai vir
de representa? çam na direcção do Mestre com os dis- atrás de nós. Atrás dos Kreepo. Atrás
Jorge de Sousa encolhe os ombros. ruptores artilhados. Os restantes três de si, Bonecreiro. Devia ter-nos avisado
Os anjinhos que te respondam! A estatueta é viram-se para a passagem que leva ao com antecedência que uma coisa destas
maciça. Não é feita nem de madeira nem exterior, envolta em trevas. Miras laser ia acontecer.
de loiça. Então de quê? O indicador di- dançam sobre as anteparas, reflectem-se O Mestre suspira, farto de dialogar
reito do escafandro estende-se na forma nas bolhas congeladas de combustível. com a plebe. Por fim aponta com o
de um pequeno canivete. O humano — Aqui estamos nós preparados para dedo enluvado para o túnel envolto em
raspa na base espalmada do Falcão, até proteger os dilectos camaradas de qual- escuridão por onde entraram.
que um risco de cor dourada comece a quer abuso moral ou agressão física. — Antes do cofre ter sido aberto, fi-
fulgir à luz do capacete. Ouro, só pode ser — Clama um dos Kreepos em pose he- quem sabendo que tomei a liberdade de
ouro… O raio da estatueta é de ouro… e os róica. — Aqui estamos nós preparados armadilhar toda esta zona com centenas
olhos são rubis… E no interior desta camada para morrer por uma boa causa, se tal e centenas de microbombas de contac-
de ouro deve haver um outro metal, mais raro, for necessário. Seremos os mártires de to que nos acompanharam sem que os
mais precioso… mais… um Ninho que nos criou. cavalheiros dessem conta, e que estão
O casal humano acena com a cabeça, O Mestre ergue um dos quatro dedos agora a instalar-se por todo este Sector
mostra o Falcão à ridícula criatura que para pedir mais um minuto de silêncio e 500, preparadas para detonar às minhas
se chama Mestre, e informa-o de que passa a revista para as mãos do Rezinga. ordens. Podem ficar descansados que o
escolheu ficar com a estatueta, que vai As lamparinas flutuantes aproximam-se utente espoliado vai ter muito com que
tentar vendê-la na Feira dos Coleccio- dele como pirilampos atraídos por in- se ocupar nos próximos minutos. Eu
nadores de Anacronismos, ou qualquer tensas feromonas. Lá ao longe, estalam fico cá para o receber. Vai ser divertido,
coisa no género... E o Extensor Comu- vigas e anteparas sujeitas a alterações da vai ser uma festa, vou
nicativo do Bonecreiro, que pertence à temperatura ambiente. enfim des-
espécie dos zotifix, acena que sim, con- — Estamos feitos? É isso que que-
descendente, pois a tontina é composta res dizer? — pergunta Jaime de Sousa,
por três membros, e tem de haver entre enquanto a Laureen abraça a esta-
todos um acordo de cavalheiros. Ele tueta do Falcão. — Diabos te le-
próprio quer ficar com a revista, os pa- vem, Bonecreiro. Tenho uma
tetas dos Kreepo devem gostar mesmo filha em Luna para sustentar.
de caixinhas de surpresas, e os parvos Uma miúda traumatizada
dos humanos que guardem com a esta- que precisa do capital e
tueta, se isso lhes dá prazer. apoio dos pais... Qual o
Enfim, distribuído o espólio, o Mes- sentido deste assalto, se
tre bate as palmas para que todos, hu- é para morrermos to-
manos, Kreepo e restantes anões, se dos aqui?
reúnam à sua volta. Chegou a hora de — Meu caro hu-
serem dadas revelações um tanto ou mano — prossegue
quanto desagradáveis. o Mestre, enquanto
— Caros colegas — começa o Mestre os restantes anões
num tom didáctico —, lamento infor- acenam com as
mar-vos de que o tempo que nos sobra cabeças —, cla-
é escasso. Este compartimento está ro que ninguém
cheio de avisadores passivos, capazes de vai morrer.
detectar o mais pequeno som e movi- Como é ób-
mento. Mal aqui entrámos, informaram vio, pretendo
o dono que entretanto já se deve ter dispor para
posto a caminho para vir ter connosco. uso pró-
Não se trata da polícia ou das forças de prio, das
segurança do Anel. Nem sequer de um coisas que

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cobrir mil mistérios. E os cavalheiros sim cantarola, baixinho, para se entreter, em fase decadente, mas humano é que
ponham-se ao fresco, por favor. Quatro nestes minutos que lhe restam. Canta ele não é, isso de certeza! Será uma Si-
minutos e a contar… High Ho, off to the work I go. Desafina mulatrix? Duvidoso, pensa o Bonecreiro
— Um sacrifício altruísta, Bonecrei- com With a smile and a song. Grita em alta à distância de 5.000 cliques. O mistério
ro? — pergunta Jaime Sousa com um voz Bluddie-Uddile-Um-Dum. adensa-se.
sorriso retorcido. — É disso que esta- E finalmente algo começa a dese- — Permita-me que me apresente?
mos a falar? O senhor quer atrair o res- nhar-se a partir da escuridão. Como se Sou o Bonecreiro, talvez o único desta
ponsável e depois suicidar-se com ele? esta se tivesse tornado visível: eis a figu- espécie a residir neste lugar infecto onde
Para nosso bem? Para o bem do Anel? ra de um quinquagenário humano, de as Potestades me Exilaram. Mas não te-
O Mestre solta uma gargalhada. Cinco barbicha e óculos grossos, vestido com nho a certeza. Podem haver mais. Não
anões acompanham-no num risinho de uma gabardina um tanto ou quanto costumamos conversar uns com os ou-
falseto. mastigada. Flutua em plena imponde- tros... E Vossa Excelência? Com quem
— Ah, meu caro... eu não passo de rabilidade como se não necessitasse de tenho o prazer de conversar?
um Extensor Comunicativo... feito de jactos dorsais. Chega afogueado e rai- — Pode chamar-me de Mr. Lux. Por
resina mótil. Na minha barriga escon- voso ao dar-se conta que apareceu de- favor, vamos deixar-nos de conversas
de-se apenas um pequeno pólipo reti- masiado tarde. Coisa de pouca importância, fiadas! Você sabe perfeitamente ao que
rado do meu corpo. Corpo esse que se conclui Mr. Lux de si para si. O Sector eu venho, Bonecreiro!
encontra a uma distância segura, longe 500 tresanda às feromonas dos Kreepo, O Mestre sorri, divertido. Com um dos
do Anel. Entre este pólipo e o Oceano cujo Ninho é facilmente identificável. quatro dedos aponta
Primordial foi estabelecida uma comu- Por todo o lado flutuam partículas de
nicação sináptica. O que este boneco pele do casal de humanos expelidas
sabe, também eu fico a saber. E vi- pelos recicladores de ar dos dois
ce-versa… Mas isso agora não interessa escafandros. Se não os capturou
nada. Dois minutos e meio e a contar… aqui e agora, vai capturá-los
Despachem-se! mais tarde, isso de certeza.
Jaime acena que sim. Finalmente Porque marcas de identifi- 1
compreendeu. Os Kreepo soerguem as cação como estas não se
armas e batem em retirada, com a cai- desvanecem facilmen-
xinha de Pandora presa entre as pinças. te. Duram e perdu-
Seis anões esvoaçam com os jactos dor- ram nas paredes, nos em
sais a funcionar em pleno e perdem-se esgotos, nos filtros de volta, para
no negrume ambiente. ar. O que lhe interessa a escuridão de-
— Meu caro e estimado Jaime… — é reaver o que lhe roubaram. Sem solada do Sector 500.
pede o Mestre à guisa de despedida. — Já mais demoras. Antes que as Irmãs Po- — Quer recuperar aquilo que perdeu?
agora uma pequena pergunta. Não esta- testades se dêem conta que há Metatec- Impossível. Os meus associados já le-
ria interessado em vender-me esse seu nologias à solta no Anel. varam tudo. Aliás, foi coisa pouca. Um
algoritmo? É que me fazia grande jeito Por isso cruza os braços, cofia a bar- cache destes, tão bem escondido, apenas
para as minhas actividades… bicha, arregala os olhos ao descobrir com três artefactos? Boff!
— Vai-te lixar, Bonecreiro! — rosna que ficou alguém para trás, à sua espera. Mr. Lux senta-se na borda da plata-
Laureen, como uma boa mãe a defender Um simples boneco teleoperado. Um forma ao lado do anão. Retira o blaster
a cria. — O algoritmo pertence exclu- Disneydroide ridículo. A prenda enve- do bolso e aponta-o ao nariz do Exten-
sivamente à Clarinha. Vai ser dela e só nenada de um Zotifix Bonecreiro. sor Comunicativo. Apetecia-lhe estoirar
dela. Não está à venda. — Ora bom dia — exclama o Mestre. com aquela carranca animada, mas há
O Mestre suspira, resignado: — Pelos vistos o meu amigo atrasou-se muito, muito tempo que não conversa
— Não precisa de ser desagradável alguns minutos. Que pena. Teria sido com ninguém. Tem saudades de uma
com os seus superiores, cara Laureen. uma reunião assaz interessante. Daquele boa e ácida cavaqueira antes do acto fi-
Já esperava uma resposta dessas. Tudo tipo de encontros capaz de descambar nal de extermínio.
bem. Perguntar não ofende. Falamos em actos de violência sem limites. — Podiam ser coisas poucas, mas
disso mais tarde. Quando nos reunir- Mr. Lux aproxima-se da plataforma eram as minhas coisas. Uma caixa. Uma
mos outra vez. Para comparar notas e como se deslizasse sobre uma placa de estatueta. Uma revista escrita por huma-
lucros. Tenham uma boa vida. Desapa- gelo. Os pés não tocam em lado ne- nos.
reçam! nhum. As mãos, enfiadas nos bolsos — Unh? Metatecnologia, todas elas?
da gabardina, não se agarram aos cabos Grau 3? Daquele tipo de artefactos que
ou anteparas. Tem os lábios crispados o Fragmento não aprecia?
Finalmente o Mestre está sozinho, na num acto de fúria mal contida. Por fim, — A revista não passa de uma revis-
caverna destroçada do Sector 500, à es- com os olhos fixos no olhar cristalino ta. A espécie humana adorava imaginar
pera que aconteça qualquer coisa mais do anão, pergunta: aquilo que o futuro lhe traria. Este nú-
interessante. Sentou-se na borda da pla- — Onde estão os outros? Quem foi mero foi publicado em 1928, segundo
taforma. Iluminam-no sete lamparinas que levou as minhas coisas? Quem fi- o calendário terrestre. Comprei-o num
que não deveriam permanecer acesas cou com o que não lhe pertence? quiosque de jornais, em Manhattan, em
numa atmosfera composta apenas de O Mestre dá uma palmadinha na pan- pleno Verão. Manuseei as páginas com
CO. O corpo feito de resina mótil não ça. O barrete dança no ar morto. Mr. luvas de plica. Sempre com o maior dos
respira. O coração não bate. Mesmo as- Lux parece-se com um ser humano já cuidados. Por isso ela tem para mim

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um especial valor afectivo. Não vou di- dados. Deixaram sinais da vossa presen- por uma camada de ouro. Quem lhe
zer-lhe qual, era o que mais faltava! ça em todos os corredores de acesso. tocar, desperta os sintomas mais agres-
O Mestre encolhe os ombros e soer- Quando sair daqui, mais minuto, menos sivos da Lei de Murphy. É um objecto
gue uma das mãos, num gesto de paz e minuto, tenho intenções de me vingar que só dá azar, entendido? Um azar
concórdia. com o máximo de danos. E receber ju- total. Um azar de morte. Apareceu pri-
— Tudo bem. O meu amigo lá terá ros de mora. meiro num livro, depois num filme 2D.
direito às suas idiossincrasias. Para que Pela boca escancarada do Mestre corre Coloquei lá dentro o gerador, para me
conste, fui eu quem ficou com ela. Por um sorriso enorme: divertir, por uma opção estética. Quem
esta altura já deve estar muito longe da- — Você lá sabe. E, já agora, a Esta- foi que ficou com ele? Os Kreepo ou os
qui. Conto revendê-la por bom preço. tueta do passarouco? Que tem ela de humanos?
Unh? Não estará o cavalheiro interessa- especial? Uma lágrima enorme escorre pelo
do em comprá-la de volta? Mr. Lux brinca com o botão digitoe- olho direito do Mestre. Uma lágrima ge-
— Não tenho de pagar por aquilo que léctrico do blaster. Quase, está quase. latinosa de crocodilo, mas o Extensor
é meu, Bonecreiro. Vou reaver tudo em — A estatueta tem escondido no ven- não tem outro modo de demonstrar
breve. Vocês foram por demais descui- tre um Gerador de Entropia. Protegido tristeza.

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1

— Foi o casal de humanos… coita- boça um movimento de recuo. Por pou- instalaram milhares de microbombas
dos… pareciam tão contentes… Pelos co não prime o gatilho. térmicas que vão explodir mal eu me
vistos, há uma menina em Luna que em — Caro, Mr. Lux, lamento, mas disse desligue. São dois quilómetros de forna-
breve vai ficar órfã. Enfim… E já ago- aos meus companheiros que lhes dava lha, Mr. Lux. Por muito depressa que se
ra, pergunto eu, para descargo da cons- tempo para se poderem escapar. De desloque, não vai conseguir abandonar
ciência… esse gerador, não pode ser modo que possam efectuar em seguran- o Sector 500 a tempo. É a vida, como
devolvido a quem de direito, antes que ça as respectivas transacções comerciais. bem disse há pouco. Tive muito gosto
aconteça tal desgraça? Portanto, não vou, não posso, deixá-lo em conhecê-lo, garanto. Mas espero
Mr. Lux sacode a cabeça. Está quase, sair daqui. Pelo menos nos próximos nunca mais voltar a vê-lo.
está quase. dias. O prometido é devido. Mr. Lux resmunga um impropério
— Não, Bonecreiro, não pode. Estão Mr. Lux levanta-se da plataforma e dispara, enfim, quanto mais não seja
ambos mortos à partida. E quem quer onde estava sentado num arremesso para mostrar que não existem meias
que se aproxime deles. O azar é viral. de fúria. Flutua agora, sombrio e amea- medidas. O anão desfaz-se como go-
Cataclísmico. Cresce exponencialmente. çador, apenas iluminado pelo voltejar tas de cera. Lá no interior da rotunda
Pode até propagar-se ao Anel inteiro. É das lamparinas. A mão direita sacode o pança, arde o pequeno pólipo que per-
a vida! blaster. Perdeu por completo a paciência. tenceu ao corpo do Bonecreiro. Cientes
— Tudo bem — prossegue o Mestre. Como podem estas espécies Exiladas ser tão disto, os circuitos das microbombas
— O problema não é meu. Os huma- arrogantes? activam-se, despertando milhares de pe-
nos que se cuidem… E… a caixa de — E o Bonecreiro vai impedir-me? quenos sóis.
madeira? Que tem ela dentro? Pelo to- Assim sem mais nada? Posso saber Ignição.
que, pareceu-me estar vazia… como? No interior do sombrio Sector 500,
— Incorrecto. Está cheia. Com o — Ora, meu caro amigo — expli- brilha uma luz esplendorosa, mil mi-
oposto do gerador de Entropia. Com ca o Mestre — nada mais fácil. Sei que lhões de vezes mais intensa do que as
algo que… bom, mas isso agora não todo este sector onde guardou o cofre tristes lamparinas que desde logo per-
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tem importância. Vamos aos factos. Já está cravejado de alarmes, de sensores deram forma, coerência e utilida- o p inião
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conversámos o suficiente sobre peque- passivos, capazes de detectar qualquer de.
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nos nadas. Tenho de ir andando. Há presença estranha, tal como detectaram d e
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contas a ajustar. a nossa. Correcto? O interior, mas não o ta
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O Mestre toca com a mão enluvada no exterior. E nós, ou seja, os Kreepo, que
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cano do blaster. Mr. Lux, repugnado, es- gostam de organizar estas brincadeiras,
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Miguel Montenegro foi o primeiro
autor português a trabalhar
para a Marvel Comics, tendo
também colaborado com outras
editoras americanas, como
a Image Comics e a Dynamite
Entertainment. Também
trabalha em publicidade, tendo
feito mais de mil storyboards
para algumas das maiores
agências e produtoras de filmes.
É ainda Psicólogo Clínico, com
artigos científicos publicados
em revistas internacionais,
e membro da Sociedade
Portuguesa de Psicoterapia
Existencial. Atualmente,
dedica-se à sua tira humorística
PSICOPATOS, de sua criação,
que vai ser publicada em
França pela editora Marabout.
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mercado português é é verdade que nas páginas aparecem
finalmente contempla- muitos “mascarados”, não deixa de ser
do com uma edição do complicado descobrir um verdadeiro so-
aclamado, e já clássico, bre-humano entre eles, com a excepção
Watchmen, obra de banda desenhada do “Doutor Manhattan”, que possui po-
que para além de ter recebido inú- deres extraordinários e uma enorme falta
meros prémios e galardões dentro de empatia em relação aos problemas dos
do seu género, entrou para lista dos comuns mortais, mantendo-se distante
100 melhores Romances de sempre mesmo tendo em conta a sua origem e
da revista Times. vida amorosa.
Considerada como a mais impor- Por tudo isto, Watchmen é uma obra
tante novela gráfica da história da para adultos que quebra as barreiras do
banda desenhada, a história segue género, não aconselhada para quem pre-
duas gerações de super-heróis, dos tende os habituais enredos dos comics
anos do pós-Guerra até aos tempos americanos. É sim essencial para perce-
sombrios da Guerra Fria. A América ber a razão da
venceu a guerra do Vietname, Ni- Banda Desenha-
xon ainda é presidente, e a Guerra da ser denomi-
Fria está no seu auge, num mundo nada por 9ª arte
transformado pela presença de su- e compreender
per-heróis. Um misterioso assassino que apesar de
persegue os heróis, mas aquilo que ter desenhos, é
parece ser uma investigação criminal revela-se como uma literatura de qualidade.
conspiração mundial, que vai levar os heróis a questiona- Para terminar, relembrar que
rem a linha ténue que separa o Bem do Mal, ao mesmo Watchmen já foi adaptado para o ci-
tempo que o próprio conceito de super-herói é dissecado nema, embora neste caso não seja
de maneira impiedosa. um trabalho tão consensual como
A Levoir, editora que tem apostado tanto em obras de BD o original.
Franco-Belga como nos mais tradicionais comics Ame-
ricanos, apresenta uma excelente edição desta história,
sendo uma alternativa à versão original e à tradução da
Panini feita no Brasil. Estamos a falar de um livro que
foi publicado há mais de 30 anos e que tem sido regu-
larmente reeditado, sempre com capas que indiciam o
icónico Smiley adornado com uma gota de sangue.
Mas então o que pode ser dito sobre Watchmen que
ainda não tenha sido mencionado? A verdade é que é
recomendado pela maior parte dos leitores de BD, ge-
ralmente pelo facto de ser uma história totalmente fora
do que é “normal” no mundo dos comics, já que é uma
desconstrução dos super-heróis, temática que parece
ser uma das especialidades do génio que é Alan Moore.
A estrutura de Watchmen é única no seu caos, alter-
nando uma série de sub-enredos aparentemente desco-
nexos e pesados, que acabam por se revelar paralelos e
fundamentais para o principal, sendo usados para nos
fazer reflectir e avançar a história. Em relação à arte,
Dave Gibbons não desilude – a violência é gráfica mas
não muito exagerada, tal como a nudez e as cenas de
sexo, elementos que em conjunto contribuem para que
o leitor tenha uma visão mais humanizada deste mundo
onde os super-heróis existem.
São vários os que afirmam que Watchmen, em con-
junto com Dark Knight Returns de Frank Miller, lançou
a era dos super-heróis complexos e sombrios, tanto na
literatura em si, como nas adaptações para cinema – se

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