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ISSN on-line: 1982-2014
Doi: 10.17058/signo.v42i74.8594

Recebido em 13 de Novembro de 2016 Aceito em 17 de Maio de 2017 Autor para contato: dschittine@yahoo.com.br

Uma miopia clarividente: A análise afetiva do sertão de Miguilim


Una miopia clarividente: Analises afectiva del sertão de Miguilim

Denise Schittine
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC – Rio de Janeiro - Brasil

Resumo: O presente artigo trata do deslocamento apontado por Merleau-Ponty do


campo da razão para os caminhos do sensível através do olhar míope do personagem
Minguilim, da novela “Campo Geral”, de João Guimarães Rosa. Usando como fio
condutor a deficiência visual da personagem principal vamos acompanhá-lo na
transição do mundo infantil para o mundo adulto. Nesse percurso do microsaber (olhar
das miudezas) para o macrosaber (o olhar turvo), Minguilim encontra passagens
através de adultos como o alegre seu Aristeu e a contadora de histórias Siàrlinda ou
do discurso do irmão Dito, que consegue conversar com os mais velhos. Em oposição
ao “falar”, Minguilim desenvolve o “olhar” numa percepção do mundo que passa pela
observação do detalhe. Há duas travessias no texto: o luto pela perda do irmão Dito e
a descoberta da beleza de Mutum através do uso dos óculos, emprestados por um
estranho. É por meio de dicotomias básicas entre as cores e o negro, o perto e o
longe, o visto e o não visto, a fé e o luto, o lúdico e o real que o menino realiza os seus
primeiros questionamentos e a sua entrada ao universo dos adultos. Miguilim vai
encontrar as respostas ao enfrentar o pai e a doença e pelo alargamento da visão e da
linguagem proposto com maestria por Guimarães Rosa.

Palavras-chave: Literatura brasileira. João Guimarães Rosa. Fabulação.

Resumen: El presente artículo analiza el desplazamiento propuesto por Merleau-Ponty


que se produce del campo de la razón a los caminos de la sensibilidad a través de la
mirada miopía del personaje Minguilim de la novela corta “Campo Geral”, de
Guimarães Rosa. Tomando como hilo conductor el problema de visión del personaje,
observaremos el pasaje del mundo infantil al mundo adulto. En ese trayecto del
microsaber (mirada de los detalles) a el macrosaber (mirada turbia), Miguilim
encuentra pasajes a través de los adultos que cantan y cuentan historias (señor
Aristeu y Siàrlinda) así también por medio del discurso de su hermano Dito, quien
logra dialogar con los mayores. Miguilim opone el hablar al mirar, desarrollando una
percepción del mundo basada en la observación del detalle. En el texto él realiza dos
travesías: el duelo por la pérdida del hermano Dito y el descubrimiento de la belleza
del Mutum a través de los lentes prestados por un extraño. Es a través de las
dicotomías elementales entre las colores y el negro, cerca y lejos, lo que se ve o lo
que no se ve, la fe y el duelo, lo lúdico y lo real es que el personaje hace sus primeros
cuestionamientos y su ingreso en el universo de los adultos. Las respuestas de
Minguilim aparecerán cuando enfrenta el padre y a la enfermedad y mediante la
extensión de la visión y el lenguaje, propuesta magistralmente por Guimarães Rosa.

Palabras-clave: Literatura brasileña. João Guimarães Rosa. Ficcionalizar.

A matéria publicada nesse periódico é licenciada sob forma de uma


Signo. Santa Cruz do Sul, v. 42, n. 74, p. 20-30, maio/ago. 2017. Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional
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Uma miopia clarividente 21

1 Introdução: Uma sensibilidade agreste entre o corpo da linguagem e o corpo do leitor”.


(NOGUEIRA, 2004, p. 1). O desafio de Miguilim será
O que enxergar de um mundo agreste? De um desenvolver sua clarividência e ela virá
mundo triste e sujo? Um lugar como Mutum, primeiramente pela sua capacidade de fabulação.
chuvoso, escuro, cercado de morros? A novela Ele terá não apenas a sensação de ver pelo contato
“Campo Geral”, de Guimarães Rosa, mostra como do próprio corpo com o corpo das coisas, mas com o
Miguilim, um menino de oito anos, vai mudando o que emana delas. Os vazios, os intervalos e os
seu ponto de vista em relação ao lugar onde vive. A vestígios dessas coisas revelam bastante sobre elas,
história começa com afirmação de um estranho de ou seja, o estado invisível que está por trás do corpo
que o Mutum era um lugar bonito. Miguilim sabia? sólido e que pode ser preenchido com narrativa e
Não sabia. Até então via o lugar pelos olhos fantasia. Nesse sentido, o conhecimento infantil é
daqueles que amava, os da mãe principalmente. E epicurista, feito através dos sentidos como
ela não gostava de viver ali, queria estar próxima da mensageiros, sem a ajuda da razão ou do conceito.
luz do mar, se queixava da tristeza dos meses Ora, este saber não pertence aos adultos.
chuvosos que embaçavam o tempo: “tudo tão Em contraposição ao macrosaber dos mais
sozinho, tão escuro, o ar ali era mais escuro”. O velhos instaurado pelo racional, Miguilim insiste em
entusiasmo do estranho se opunha à negatividade apreender o seu mundo através do microsaber
lastimosa da mãe. Em que olhos acreditar? infantil, dos detalhes, das pequenas coisas,
Durante toda a narrativa, o trabalho desse agravado pelo seu olhar de míope. A qualquer sinal
menino vai ser o de tentar decifrar as posturas dos de incompreensão do mundo maduro, o menino se
adultos, sair do campo do sentimento para encontrar refugia no seu microcosmo, na observação sensível.
a razão, operar o seu ritual de passagem e Depois do castigo imposto pelo pai:
compreensão deste mundo adulto. Guimarães Rosa A mãe suspirava soluçosa, era um chorinho
sem verdade, aborrecido, se ele pudesse
vai optar por escrever o relato com um narrador em estava voltando para a horta, não ouvia aquilo
terceira pessoa responsável por partilhar e sempre assim, via as formiguinhas entrando e
saindo, trançando, os caramujinhos rodeando
apreender a experiência da personagem. O ponto de as folhas, no sol e na sombra, por onde
rojavam sobrava aquele rastrío branco, que
vista se desvia para Miguilim e, na pele do menino, o
brilhava. (ROSA, 2001, p. 37).
leitor pode começar a tentar redescobrir o sensível
A relação sensório-poética que o menino
como forma universal de aprendizagem. É um
instaura com o mundo vai se dar, então, longe do
conhecimento do olhar míope de criança que,
corpus social e através do corpo da natureza: ao
conforme observa Merleau-Ponty: não se dá pelas
contrário da troca que tem com as pessoas, essa
vias da razão, mas pelos caminhos do sensível, da
relação é mediada pelo prazer. O corpo da
percepção.
personagem castigado, separado dos irmãos,
É possível saber o mundo dessa maneira?
proibido de comunicação e trocas, abandona-se,
Merleau-Ponty assegura que “todo saber se instala
então, aos prazeres da alma, alcançados com a
nos horizontes abertos pela percepção”. O desafio
abertura para o trabalho da consciência e da
de Miguilim é o de retomar o pensamento anterior ao
imaginação. E o canal imaginativo de Miguilim está
da racionalidade e investi-lo de sentido, fugir da
no olhar, é na consciência do que é visto que opera
entrega da consciência ao positivismo e da
a sua fantasia infantil: ponto de resistência contra a
responsabilidade do ser adulto. Paralela à
interdição racional paterna. Até que ele desenvolva a
experiência sensorial da personagem existe uma
própria clarividência e realize sua travessia particular
outra no interior da própria linguagem: “a experiência
entre os mundos.
poética – que também se concretiza numa
Nessa sua percepção singular de mundo
aproximação radical, convocada pelo texto de Rosa
surge uma visão inédita de descoberta de um

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menino de oito anos e, consequentemente, a E como se não bastasse a observação, a


experimentação infantil da língua. É a surpresa curiosidade, a perscrutação, Miguilim também
diante de cada coisa ainda não observada e a desenvolve a própria fantasia com histórias. Os olhos
capacidade de nomeá-las que faz com que o próprio dele, que possuem a visão curta das coisas, limitam
leitor embarque nesse ponto de vista de Miguilim. o olhar para fora, mas o expandem para dentro
Rosa de traz para a narrativa a contribuição do olhar através da imaginação. Contar histórias vai ser a sua
irreal, imaginativo das crianças, que perscrutam os primeira resistência ao mundo sério dos adultos, mas
mistérios do mundo através de uma perspectiva também o que vai possibilitar encontrar pontos de
fresca, embora ainda tenham a dificuldade de contato com esse mundo. Seu interesse recai
colocá-la pela síntese das palavras e organização circunstancialmente sobre adultos que são capazes
discursiva (in NOGUEIRA, 2004). A exceção é do de contá-las e realizar uma ponte imaginativa entre o
irmão Dito, o caçula é o ponto de equilíbrio e seu mundo e o das crianças. Invariavelmente, são
comunicação com os mais velhos. personagens ligadas à alegria e aos prazeres da
É nessa leitura específica, infantil, que ocorre vida. Um deles é seu Aristeu – uma mistura de
o alargamento da linguagem e surgem expressões: curandeiro, músico e criador de abelhas – um
“sessepe”, “serelé”, “sopressado”, “trovoeira”. As homem alegre e “desinventado de uma estória”, que
palavras não vão se formar dentro das regras de trilha o caminho poético através da música. Perto
dicionário. A experimentação da linguagem, dele, o desejo era de escutar narrativas.
característica fundamental de Rosa, encontra sua É seu Aristeu que vai resgatar Miguilim do
justificativa poética no conhecimento sensível de medo de estar tísico. Influenciado pelo discurso
uma criança. “Por serem criaturas não alfabetizadas pessimista de seu Deográcias, contra as dificuldades
e de poucas letras não significa que não tenham de encontrar medicamentos no sertão, Miguilim se vê
linguagem, que não percebam o mundo ainda que presa de uma tristeza enorme e um desejo de
com certo pasmo e muita originalidade”, explica doença. Refugiado nas mágoas da mãe, o menino
Eliana Yunes. A originalidade de Miguilim é toda da inventa uma enfermidade imaginária, conta os dias
descoberta de um universo através de um menino da morte, se esconde na oração e no desespero.
míope que entrega ao leitor uma lente de aumento, Seu ponto de vista exagerado é apenas partilhado
que impõe um outro olhar sobre as coisas. pela mãe, marca do irracional no mundo adulto. Nem
a avó, nem o pai acreditam na fantasia e impõem a
2 De fantasia e de histórias realidade. A salvação virá pela alegria e o otimismo.
É por meio do canto, da dança e do jogo lúdico que
O olhar de Miguilim é aquele que está ligado à seu Aristeu recupera o desejo de vida do menino:
ação óphis: que, em grego, é o ver em sua sede, a Seo Aristeu sossegava para almoçar. Supria
de aceitar cachaça. Oh homem! Ele tinha um
curiosidade. Mas é também a aparência do visto, ramozinho de ai-de-mim de flôr espetado na
tudo o que está relacionado ao espetáculo, à copa do chapéu, as calças ele não
arregaçava. Só dizia aquelas coisas dançadas
aparição, ao sonho, à visão mística. Por isso, um no ar, a casa se espaceava muito mais, de
alegrias, até Vovó Izidra tinha de se rir por ter
olhar de fantasia. E é da valorização da visão como o
boca. Miguilim desejava tudo sair com ele
sentido mais desenvolvido que surgirá a palavra passear – perto dele a gente sentia vontade
de escutar as lindas estórias (...)
imaginação, do grego phantásia, uma palavra que _ “Escuta, meu Miguilim, você sarou e foi
deriva de phótos (luz). Ou seja, além da visão não assim, sabe:”. (ROSA, 2001, p. 78).

acontecer sem que os objetos se iluminem, a Miguilim é salvo por uma quadrilha. Mais uma
fantasia é uma maneira de colocar foco sobre o pista de como a obra de Guimarães Rosa se
mundo e de conhecê-lo. organiza como um todo: suas histórias são narrativas
de onde se extrai a música.

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Longe dos adultos responsáveis pela ordem tio Terêz e começa a entender que existe uma
da casa – o pai e a avó – sem as obrigações e as diferença lógica entre a mentira e a fabulação:
exigências de seriedade, por parte do pai, e de “Miguilim de repente começou a contar estórias
religiosidade, pelo lado da avó, as crianças podem tiradas dele mesmo: uma do Boi que queria ensinar
realizar suas fantasias próprias. Não é por acaso que um segredo ao Vaqueiro, outra do Cachorrinho que
nos dias em que não chove em Mutum, que o pai em casa nenhuma não deixavam que ele morasse
está distante cuidando da roça, o espaço para a (...) Essas estórias pegavam.” (ROSA, 2001, p. 104).
imaginação aumenta: a irmãzinha Chica pode brincar Do efeito dessas narrativas, o menino tira a
de batizar bonecas, a avó começa os preparativos sua vocação: é um fabulador. Vocação retirada do
para o presépio e os vaqueiros começam a contar seio de sua imaginação. Essa voz que se descobre
suas histórias. São esses heróis, que em contato como fabuladora é a mesma que está conduzindo o
com a rude natureza, temida por Miguilim, voltam leitor pelo texto. Além das fábulas que Miguilim
com seus relatos das vaquejadas. Em torno das conta, existe a sua própria história: a de uma criança
histórias desses homens, Guimarães Rosa escreve sensível no meio do agreste. E, construindo esse
uma outra história: aquela contada pelas denso relato infantil está a vida de tantos outros
personagens do sertão. Eles são a memória de um meninos do sertão e um pouco da própria infância de
mundo adulto de perigos e crueldades que o menino Rosa, em Cordisburgo. Nessas narrativas inventadas
ainda não conhece e, justamente por isso, as está a chave para saída poética que o próprio Rosa
transforma também em ficção. aponta para a feitura do texto: o apoio franco na
Junto com o bom tempo e as boas histórias oralidade. Como pesquisador, Guimarães Rosa
aparece Siàrlinda, mulher do vaqueiro Salúz, outra permaneceu de ouvidos abertos, desde a infância,
amante da prosa. As lembranças agora são a para estes relatos:
mistura alegre do paladar dos doces de queijão (...) nós, os homens do sertão, somos
fabulistas por natureza. (...) Desde pequenos,
moreno e de leite que Siàrlinda faz e da escuta das estamos constantemente escutando as
histórias infantis: “Da moça e da Bicha-Fera”, da narrativas multicoloridas dos velhos, os contos
e lendas, e também nós criamos um mundo
“Gata-Borralheira”, do “Papagaio Dourado que era que, às vezes, pode se assemelhar a uma
um Príncipe”, do “Rei dos Peixes.” É Siàrlinda que lenda cruel. (ROSA, in: Coutinho, 1983, p. 69).

desperta em Miguilim o gosto por contar histórias. Dentro de casa os dois companheiros que
Pronto, o limite que impedia a fala do menino estava mais participam de seu voo pela ficção são a mãe e
rompido, não precisava mais cuidar para que os o irmão mais novo, Dito. Da mãe, Miguilim herdou a
relatos fizessem sentido aos adultos, apenas melancolia e o romantismo. Em comum tinham a
descobrira que era possível fazer ficção. visão turva e distorcida de Mutum: ele pela miopia,
Aos poucos, ele ultrapassa a interdição ela pela negação da liberdade. Em comum também
religiosa de não poder inventar histórias para tinham a vontade de ver o mar e uma saudade de
entender que elas podem ser um jogo lúdico e contá- coisas nunca antes vistas. “‘_ Dito, eu às vezes
las como fábulas. A primeira reação da irmã Drelina tenho saudade de uma coisa que eu não sei o que é,
quando Miguilim explica que um jacaré comeu os nem de donde, me afrontando...’; ‘ _Deve de não,
presentes que trazia para os irmãos da viagem é: Miguilim, descarece. Fica todo olhando para a
“Mentira. Você mente, você vai para o inferno!”. Com tristeza não, você parece Mãe’”. (ROSA, 2001, p 73).
o salvaguardo de ter sido crismado, em oposição aos Ao chegar de sua viagem, Miguilim traz um presente
irmãos, e a crença na fé que a avó se certificava de simbólico para a mãe: a descoberta de que o Mutum
que ele possuía, Miguilim encontra licença poética era bonito por um segundo ponto de vista, o de um
para contar histórias. Passa por uma prova moral estranho. A entrega verdadeira deste presente só
que testa a sua lealdade ao pai e a amizade com o será feita, de fato, no fim do texto. Antes disso, resta

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a ansiedade de guardá-lo: “a ideia de poder trazê-lo vezes, vendo de perto. O mais importante é observar
desse jeito de cor, como uma salvação, deixa-o febril que a leitura que a personagem faz do mundo está,
até nas pernas”. Longe de todos, ele conta o quase sempre, mediada por um tipo diferente de cor.
“segredo” à mãe como uma revelação, um As experiências de medo e desamparo estão,
desvelamento de um universo desconhecido aos invariavelmente, ligadas ao negro: a mata negra do
olhos cansados de enxergar o mesmo lugar e ávidos Mutum é o temor do território desconhecido. O
por mudanças. O resultado é decepcionante. A castigo mais temido não é o da surra ou da dor, mas
fantasia de Nhanina é maior que a de Miguilim, seus o de ser obrigado a entrar em contato com o escuro:
sonhos ultrapassam o Mutum. Ela deseja ver o que “Mas o pai não devia de dizer que um dia punha ele
existe por trás daqueles morros. É esse olhar para Miguilim de castigo pior, amarrado em árvore, na
adiante que estabelece o seu ponto de ligação com a beirada do mato. Fizessem isso, ele morria da
mãe sonhadora, mas que também encontra o estrangulação do medo? (...) Como pai podia
entrave na própria miopia. imaginar judiação, querer amarrar um menino no
O segundo ponto de apoio de Miguilim está no escuro do mato?” (ROSA, 2001, p.38).
irmão Dito, mas através enunciação, não pelo sonho. A noite e os animais que pertencem a ela –
Dito – que “era menor, mas sabia o sério, pensava corujas, morcegos – são enigmas para Miguilim, ele
ligeiro as coisas, Deus tinha dado a ele todo o juízo” é quase sempre o que mais teme dormir, embora
– é aquele que fala, e Miguilim, o vidente. É o caçula não tenha medo de sonhar. Os perigos da noite
que dá corpo em palavras ao pensamento de estão todos relacionados a uma mitologia de seres
Miguilim e possibilita a ligação do mundo de fantasia imaginários – “almas friosas”, “mulheres
infantil com o adulto: Dito é uma criança improvável. assombradas” – e à chuva, parte do cenário
Ele vai ter o discurso aceito e compreendido pelos invariável da cidade. Os medos noturnos são
mais velhos, mas no momento em que está próximo compensados pelas constantes tentativas de afastar
da morte vai acionar o mundo de imaginação infantil as “tentações” através da oração e pelas conversas
por meio de Miguilim. É quando Dito perde a força de com Dito, com quem Miguilim divide o mesmo catre.
sua fala, que o irmão mais velho vai recuperá-la, de “Conseguia era outro medo, diferente. O Dito já tinha
outra maneira, voltando a contar suas histórias adormecido. O que dormia primeiro, adormecia. O
inventadas. O poder da fabulação, que pertence a outro herdava os medos, e as coragens. Do mato do
Miguilim, vai ser a saída para Dito suportar a doença. Mutum.” (ROSA, 2001, 92).
Miguilim contava, sem carecer de esforço, Esse escuro do mato é quase uma
estórias compridas, que ninguém nunca tinha
sabido, não esbarrava de contar, estava tão personagem: que engole as pessoas, que levou o tio
alegre nervoso, aquilo para ele era o Terêz em meio a uma noite de temporal, que, um
entendimento maior. Se lembrava de seo
Aristeu. Fazer estórias, tudo com um viver dia, sumiu com o pai enforcado em remorsos. Tem
limpo, novo, de consolo. Mesmo ele sabia, uma simbologia angustiante magicamente ligada à
sabia: Deus mesmo era quem estava
mandando! (...) O Dito tinha alegrias nos história de João e Maria, abandonados pelos pais na
olhos; depois, dormia, rindo simples, parecia
floresta (mato) porque não tinham o que comer. A
que tinha de dormir a vida inteira. (ROSA,
2001, p.115) negatividade de Vovó Izidra está, também,

3 Entre cores e sensações relacionada à cor: as verrugas e os fios de cabelo no


rosto são negros. É uma das pessoas menos

Durante todo o relato de “Campo Geral” a amadas e mais respeitadas pelas crianças da

miopia de Miguilim é suposta, mas nunca anunciada. família, porque tem o poder de rezar e obter graças,

O que o leitor vê, aqui e ali, é uma criança que mas também porque “enxergava no escuro”. É ela

explora o universo através do conhecimento dos que se locomove na noite, que olha pelas pessoas

sentidos e que exprime suas experiências, muitas da família, que faz o uso das velas.

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Rio-Negro é nome do touro que machuca a minoritários, ou oprimidos, ou proibidos, ou


mão de Miguilim quando ele procura fazer um afago revoltados, ou sempre na borda das instituições
e é do mesmo negro - o “mais grosso preto, um preto reconhecidas, mais secretos ainda por serem
de boi” – que é feita a cor de Mãitina, a feiticeira da extrínsecos, em suma anômicos.” (DELEUZE/
casa. Uma espécie de força descomunal e GUATTARI, 2005, p.30). Mãitina vai se encontrar
incompreendida que rivaliza com a beatitude de justamente nessa posição de fronteira, na margem
Vovó Izidra. “_ Traste de negra pagã, encostada na familiar que vai restringi-la às dependências internas
cozinha, mascando fumo e rogando para os e afastá-la das sociais. Mas, a despeito de sua
demônios dela, africanos.” (ROSA, 2001, p.46). posição marginal, ela será respeitada porque terá a
Então, a primeira reação de Mãitina é a procurar aliança com o demônio, e é essa aliança que garante
fazer parte do bando, dos iguais. Junto ao resto da a sua potência. As rodas de oração que Vovó Izidra
família, ela se propõe a rezar e encontra a sua convoca têm o objetivo, então, de afastar o demônio
maneira própria de opor resistência ao culto rezando de uma casa que, para ela, já estava construída no
“porqueado”, modificando o rumo das orações e o pecado: as infidelidades de Nhanina, a disputa entre
sentido das palavras. dois irmãos de sangue, o paganismo de Mãitina.
Mãitina é o anômalo dentro do grupo. No entanto, é também o feiticeiro que opera
Desterritorializada de sua religião, incompreendida, os transportes locais pela aliança que possui com o
obrigada a repetir orações que não fazem sentido submundo. Então vai ser Mãitina que vai conseguir
para si, roubada dos santinhos de madeira que ajudar Miguilim a realizar uma primeira transição,
teimosamente esculpia às escondidas, ela que é a do medo do escuro. Ela também, como Vovó
permanece na casa reduzida ao espaço da cozinha, Izidra, pode se locomover nas sombras. Mesmo
como a desigual. “Vovó Izidra ralhava (...) e mandava escondida em casa – “assim preta encoberta, como
Mãitina voltar para cozinha, lugar de feiticeiro era que deve ser a morte” – e cozinhando no tacho em
debaixo dos olhos do fogo, em remexendo borralho!” que as pessoas da família acreditavam que fazia
(ROSA, 2001, p.47). Quando estava disposta, a seus feitiços, Mãitina não provoca medo em Miguilim.
cozinheira era capaz de obedecer, e a sua reação Entre a escuridão da mata e a da casa, o menino
era a de, animalizada, voltar para cozinha e prefere ficar no colo da cozinheira. Fecha os olhos
permanecer de cócoras. Mas, se estava bêbada, para não precisar encontrar com os dela e acaba
portanto em pleno desvio, dificilmente se enquadrava dormindo. A feiticeira vai ser importante também
nas regras familiares e se transformava numa para Miguilim enfrentar a difícil transição de seu
espécie de “animal indomesticável” que encontrava irmão Dito da vida para a morte. O consolo não está
suas formas de expressão próprias, diferentes da na religião familiar, mas na opção de entendimento
formação católica da família. Sua primeira reação, do desconhecido. Mãitina, que era mulher
então, é a de atirar-se no chão, “descomposta”, “imaginada”, dá uma explicação para o espaço em
rogando pragas sentidas para os outros. que Dito habita agora, mostra que o menino vem em
Quem não conheceu a violência dessas sonhos para acenar para todos. Encontra também
sequências animais, que o arrancam da
humanidade, mesmo que por um instante, o uma maneira de transportar simbolicamente o corpo
fazem esgaravatar seu pão como um roedor do irmão para o quintal: junta uma série de roupinhas
ou lhe dão os olhos amarelos de um felino?
Terrível involução que nos chama em direção e brinquedos de Dito e enterra no fundo da casa.
a devires inauditos. (DELEUZE/GUATTARI, “Só os dois conheciam o que era aquilo.
2005, p.21)
Quando chovia, eles vinham olhar; se a chuva era
Segundo Deleuze-Guattari, o feiticeiro é
triste, entristeciam. E Miguilim furtava cachaça para
aquele que participa de agenciamentos sombrios e
Mãitina.” (ROSA, 2001, p.125). Um novo pacto se
distantes das organizações da família, da religião e
estabelece, agora entre um membro familiar e o
do Estado. Os feiticeiros “exprimiriam antes grupos

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“aliado demoníaco”. Embora a família conjure o remanescentes da memória de infância, vão


feiticeiro, ela também vai continuar a realizar aparecer mais tarde quando a barriga de Miguilim
alianças com ele, mesmo que sua influência seja ficará com as manchas vermelhas da catapora.
corrosiva para a instituição doméstica. Numa família A sua memória é feita de lembranças
de crentes haverá, muitas vezes, a necessidade de “fugidas”, “afastadas” que terminam muitas vezes por
uma feiticeira como Mãitina, porque é ela que vai formar uma ideia de sonho. A capacidade de sonhar
conseguir abrir diálogo com o sombrio, o talvez seja a maior contribuição de experiência de
desconhecido e negociar com o Demônio que, em linguagem de Miguilim. É a influência mágica que
última instância, é a escuridão mais temida nessa Guimarães Rosa pede emprestado ao linguajar
narrativa. Ele, que até Vovó Izidra respeita. infantil para realizar seus processos de inovação
Mas não é só da escuridão que Miguilim se mais ousados. Depois do acidente com o menino
nutre para construir o seu relato. Uma palheta de mais velho, as recordações de Miguilim passam a ter
cores se abre para o leitor a cada descrição com uma espécie de brilho: são moças limpas e cheirosas
uma nitidez peculiar para um menino de olhos com “claros risos bonitos”, refeições em uma mesa
míopes. As experiências de percepção sensorial de grande onde provava um líquido quente que
Miguilim são fortíssimas e, nos momentos de maior “cheirava à claridade”. A mesma luz que aparece
inteireza poética, de comunhão completa com depois nos olhos do gato Sossõe roncando de
natureza, a sua vista parece cristalina. “Depois das alegria: “os olhos de um verde tão menos vazio – era
piteiras, com aquelas verdes pontas, aquelas flores uma luz dentro de outra, dentro doutra, dentro outra,
amarelas, principiava o pasto, depois do jacarandá- até não ter fim.” (ROSA, 2001, p. 52). Todas essas
violeta. Tinha aquelas árvores... De já, tinha um boi sensações desembocam numa última: o “cheiro de
vermelho, boi laranjo, esbarrado debaixo do alto alegriazinha”. É em busca dessa alegria, proveniente
tamboril. Tantas cores!” (ROSA, 2001, p.85). É o que da visibilidade das frutinhas vermelhas, que Miguilim
Henriqueta Lisboa chama de “a clara vai perseguir em toda a sua narrativa.
perceptibilidade” do menino. Desta maneira, portanto, o movimento que se
estabelece é de reversibilidades: as frutinhas
Mas, sem dúvida, uma das mais importantes têm o “cheiro de alegria”, a alegria tem o
marcas visuais é a presença da cor vermelha. Ela “cheiro das frutinhas”. Desmancham-se na
linguagem noções excludentes como
está no sangue dos bichos mortos (o coelho que tio realidade interna e externa, sujeito e objeto,
Terêz traz da caça com a cabeça ensanguentada, o corpo e mundo, ou categorias entendidas
separadamente, como sensação e
tatu que morre para que Miguilim sare), e no sangue sentimento. (NOGUEIRA, 2004, p 10).
da briga que, provavelmente, provocou sua miopia:
4 O olhar turvo adulto
E aí meninão grande levantava com as duas
mãos uma pedra, fazia careta pior: _ “Aãã!...”
Depois, era só uma confusão, ele carregado, Em busca dessa alegria Miguilim esbarra, na
a mãe chorando: _ “Acabaram com o meu
filho!...” _ e Miguilim não podia enxergar, uma maioria das vezes, com a seriedade do universo
coisa quente e peguenta escorria-lhe da testa, adulto. Essa atmosfera de sonho e fantasia que o
tapando-lhe os olhos. (ROSA, 2001, p. 30).
menino vive não é uma postura de alienação, mas
Segundo Erich Nogueira, em sua tese
antes uma resistência da vida física e psicológica da
Percepção e experiência poética: estudo para a
criança constantemente esmagada pela mão do
análise de Campo geral, o sentido da cor pode variar
adulto. Para o teórico Franklin de Oliveira,
da cruel alegria avermelhada dos vaqueiros que
Guimarães Rosa interpõe o mundo lúdico infantil em
matam o tatu às frutinhas vermelhas espalhadas pelo
contraposição ao real para empreender uma luta que
chão na fazenda que visitou quando ainda era bebê:
“não imponha à infância a violência de nossa
com o “cheiro pingado e respingado, risonho, cheiro
compreensão violatória.” Então, a miopia do menino
de alegriazinha.” As mesmas pintinhas vermelhas,
aparece como uma maneira de enxergar os detalhes,

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Uma miopia clarividente 27

o que há de menor, o microcosmo, o que não se gerar a partir da ideia da morte. Com essa intenção,
encaixa na visão prática dos mais velhos. se afasta das crianças da casa, para de brincar e
A história central de “Campo Geral” é a de começa a dedicar o seu tempo a “agarrar” os
uma família que procura manter-se unida, do pensamentos grandes com as próprias mãos. Sem a
trabalho do pai para escapar da fome, das ajuda da avó, que “devia ter competência enorme
infidelidades da mãe, das mortes e doenças que para o lucro de rezarem reunidos”, Miguilim se
acontecem no sertão pela mais absoluta falta de empenha em começar uma novena e a fazer
estrutura e informação. Mas tudo isso é contado pelo promessas em benefício da própria saúde. E imagina
ponto de vista de um menino que, por mais que que, sobrevivendo à doença, poderia chegar a
cresça, imagina que jamais poderá estimar os amadurecer. “Se escapasse, achava que ia ficar
adultos, “nem ser sincero companheiro”. “Numa sabendo, de repente, as coisas de que precisava.”
produção mágica da visão infantil, episódios (ROSA, 2001 p. 70).
insignificantes criam volume e acontecimentos Dito é a saída. O canal através do qual
trágicos se reduzem a meras impressões.” (RÓNAI Miguilim consegue se relacionar e entender os
In: Rosa, 2001, p.21). Sem compreender o drama de adultos. Apesar de mais novo, Dito é seguro e
Nhô Berno – do excesso de trabalho, do número de tranquilo, além disso, tem o poder da enunciação. É
filhos para criar – Miguilim tem vergonha da postura ele que põe em palavras o que o irmão mais velho
do pai: que “não podia vender as filhas e os filhos” confusamente vê. Miguilim tem o poder da visão,
para comer. Seu maior desejo é crescer rápido para Dito – como o próprio nome mostra – tem o dom da
ajudar e trabalhar também. palavra. Michel Foucault explica em O nascimento da
No entanto, a maior dificuldade que enfrenta é clínica que:
a do crescimento. Dificilmente consegue (...) paira um mito de um puro Olhar que seria
da Linguagem pura: olho que falaria (...)
compreender o universo adulto. “Miguilim não tinha doravante, só se vê o visível porque se
vontade de crescer, de ser pessoa grande, a conhece a linguagem; as coisas são
oferecidas apenas àquele que penetrou no
conversa das pessoas grandes era sempre as mundo fechado das palavras e se tais
mesmas coisas secas, com aquela necessidade de palavras se comunicam com as coisas é
porque lhes obedecem a gramática.
ser brutas, coisas assustadas” (ROSA, 2001, p.52). (FOUCAULT, 1972, p. 115)
Contra a brutalidade dos adultos, o menino responde
Mesmo distante da compreensão gramatical –
com sua sensibilidade. Uma sensibilidade que não
mais do que Miguilim, que já está na fase de
entende a violência com que tratam os bichos e a si
aprender a escrever, – Dito é o que vai saber usar o
próprios. As questões dos mais velhos, então, estão
vocabulário dos adultos e traduzi-lo para o irmão
envoltas numa mitologia própria, de interdição,
mais velho. O caçula – sensato, sério, que “pensava
cristalizada na figura dura e desconforme de Vovó
ligeiro as coisas” – é capaz de entender a
Izidra. A traição do pai pelo tio Terêz termina por ser
infidelidade da mãe, as regras dos castigos, os
traduzida na simbologia bíblica de Caim e Abel.
assuntos proibidos dentro de casa. Destemido, ele
Os adultos sabem resolver as coisas, os
consegue espantar o desconhecido: aponta o sono
adultos não têm medo do escuro ou da chuva e,
como remédio para as fantasias de Miguilim
principalmente, eles sabem rezar, têm o poder de se
(“Dorme, Miguilim. Se você ficar imaginando assim
aproximarem de Deus. O único momento em que
você sonha pesadelo...”) e explica ao irmão quais
Miguilim deseja crescer é quando está doente e
são os tabus dentro de casa (“Miguilim, eu acho que
pensa estar à beira da morte. A sua necessidade de
a gente não deve de perguntar nada ao tio Terêz,
acelerar o crescimento, então, é para pensar com a
nem contar a ele que pai ralhou com Mamãe,
mesma gravidade de “gente grande”, afastar as
ouviu?”). As palavras de um guiam o olhar curioso do
fantasias que a sua própria imaginação infantil pode
outro.

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Contrariamente a Miguilim, que deseja saber enfeitava os santinhos. A seriedade de Dito faz dele
tudo certo para que as pessoas não “ralhem”, Dito o mais santo: “Antes de subir, botava camisinha para
tem a certeza e a sabedoria das coisas. “Mas por dentro da calça, resumia o pelo sinal, o Dito era um
que era que o Dito semelhava essa sensatez – irmão tão bonzinho e sério, todas as coisas certas
ninguém não botava o Dito de castigo, o Dito fazia ele fazia.” (ROSA, 2001, p.109). Morre um menino
tudo sabido, e falava com as pessoas grandes especial e, simbolicamente, nasce Jesus. É quando
sempre justo, (...)” (ROSA, 2001, p. 67). Os medos e Vovó Izidra termina de montar o presépio, e coloca o
excitações de Miguilim não existem em Dito, suas menino Jesus na manjedoura que Dito morre.
superstições esbarram na coragem do irmão. Dito é
capaz de escapar do castigo do pai quando, sem 5 A clarividência
avisar, manda o vaqueiro Saluz cortar a árvore de
pé-de-flor que crescia atrás da casa. Dito não sofre o Com a morte do irmão, Miguilim perde a
castigo porque explica racionalmente a fantasia conexão com o mundo adulto. Os diálogos paternos,
infantil: tinha sonhado com a morte anunciada do pai já difíceis, se tornam impossíveis. A rejeição
causada pelo crescimento da árvore. Coloca em aumenta quando o pai confessa que “menino bom
palavras o temor do irmão e recebe em troca o era Dito que Deus tinha levado para si, era muito
reconhecimento paterno. melhor tivesse levado Miguilim”. A relação edipiana
Pelo poder da palavra, Dito se revela a com a mãe é grande: o maior presente que traz de
“criança impossível, que não cabe no mundo” e viagem é para ela: a ideia de que o Mutum era
morre, mesmo não querendo “ir para o céu menino bonito. Miguilim peca por não gostar de Vovó Izidra,
pequeno”. Mas não sem antes deixar um que desdenha moralmente da mãe, e apanha do pai
ensinamento importante para Miguilim: a busca da por defender a mãe numa briga iniciada pelo ciúme.
alegria, daquele “cheiro de alegriazinha” que é uma Sem o apoio da palavra de Dito e com a chegada do
das lembranças mais remotas do princípio da irmão mais velho, Liovaldo, Miguilim perde a fala.
infância e que será perseguido durante toda o trajeto Perto de Liovaldo não queria conversar com Rosa,
dessa novela. É no momento de maior tristeza, com os vaqueiros, nem brincar com os irmãos.
quando sua morte paira como um lamento no O ódio do pai aumenta quando vê Miguilim
Mutum, que o caçula vai buscar no mistério de sua preso na melancolia dos dias posteriores à morte de
sabedoria infantil o poder da alegria para a Dito. Abandonando de vez a fala, ele volta para a
superação da morte. “_ Miguilim, Miguilim, vou maneira sensível-sensória de se relacionar com o
ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente mundo. Ao interrogar o mistério da vida, ao querer
pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda saber sempre mais, tem o desejo de curiosidade
coisa ruim acontecendo. A gente deve de poder ficar confundido com o de superioridade: “(...) o pai
então mais alegre, mais alegre, por dentro!...” desabusava mais _ ‘O que ele quer é sempre ser
(ROSA, 2001, p.119). Então, Miguilim, o vidente, não mais do que é, é um menino que despreza os outros
consegue encarar a passagem do irmão para a e se dá muitos penachos’.” (ROSA, 2001, p.126).
morte. Vai para o quarto escuro de Mãitina, mas não Inconformado com a injustiça do irmão mais velho,
conseguirá fugir. Mesmo lá, de longe, é capaz de que resolve bater no Grivo, menino pobre, Miguilim
sentir “uma coisinha caindo em seu coração”, e, procura fazer a sua primeira passagem da infância
então, adivinha a morte de Dito. para a vida adulta pedindo justiça e batendo no
Coincidentemente, o falecimento é no mesmo irmão. O episódio resulta no pai quase o matando a
período do Natal. Apesar de ser Miguilim o de “maior pancadas e se desfazendo do símbolo de sua
fé” – aquele que escapa de uma morte por infância: os passarinhos. Pela primeira vez, mesmo
engasgamento – é o Dito que melhor ajoelhava e apanhando nu, Miguilim decide não chorar. Na

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Uma miopia clarividente 29

cabeça a vingança edipiana: aguentava a surra A sensação de que a personagem não possui
porque, quando crescesse, mataria o pai. No meio uma deficiência visual vem do fato de que, sem se
da contrariedade, como se tivesse, de repente, dar conta, o leitor já enxerga como Miguilim, já
absorvido o ensinamento de Dito, Miguilim sorri, e o participa da sua maneira poética de ver o mundo. De
sorriso assusta o pai. Essa é a sua primeira prova de fato, os olhos do menino começam a embaçar
crescimento: não teria mais medo de ninguém. quando precisa avistar além do que permite o seu
É o temor que causa a visão turva de universo infantil.
Miguilim. O medo e a incompreensão dos assuntos De todas as tentativas do pai para arrancar
que impõem a expressão violatória do mundo Miguilim da infância e fazê-lo enxergar com olhos de
maduro. Os seus olhos falham quando se vê diante adulto, muitas fracassam. Entre elas a vontade de
de um território adulto desconhecido: onde ocorre a colocar os filhos na escola. Intimidado com a
violência, a ação incoerente, o inexplicável. Paulo sabedoria de seu Deográcias, procura não se dobrar
Rónai explica que o maior triunfo de Rosa está no às superstições do curandeiro: se nega a cortar a
fato de fazer o leitor sentir o frescor das árvore que cresce atrás da casa porque não
“descobertas” e “espantos” do menino ao ser pretende receber ordens de alguém que o imagina
introduzido no universo dos adultos (in RÓNAI, 2002, pobre e ignorante. Ciente de que o estado de
P.23). Portanto, o olhar do menino é antes um foco penúria e desinformação vem da falta de instrução,
de leitura do que uma visão curta. Rosa faz do míope Nhô Berno decide pedir a seu Deográcias para
aquele que enxerga além, que, de detalhe em começar a alfabetizar os meninos, a justificativa era
detalhe, é capaz de ultrapassar a visão fechada do para não seguirem em “atraso de ignorância”. E essa
mundo. é uma maneira não só de acelerar a saída de
A miopia de Miguilim não é anunciada. Ao Miguilim da infância, como dar mais luz ao
contrário, o autor não dá pistas evidentes ao leitor. pensamento do menino. Associando o conhecimento
Este é convidado a compartilhar a visão do menino e à nitidez da visão observamos a declaração de um
aproximar o olhar de um microcosmo de pequenas morador do campo na década de 80 que, embora
formas. A personagem nos entrega uma lupa. E, a real, pode em muito coincidir com o caso de
princípio, envoltos no encantamento deste Miguilim:
micromundo não reparamos nos detalhes da visão É porque meu pai achou que eu necessitava
clarear a vista um pouquinho, não podia ser
do míope. São os pequenos pássaros, a pocinha que criado como cego. (...) Desde meu filho
forma o espelho d’água, caramujinhos, as formigas, pequeninho que eu comecei dar a ele um
caderninho para ver se ele não ficava cego.
joaninhas e abelhas. Elementos que passariam, a Porque pessoa que não sabe ler nem
princípio, despercebidos para um adulto. A visão de escrever, mesmo um pouquinho, é
considerado cego.” (RIZZOLI, 1988, p.159).
Miguilim, então, é considerada cristalina, porque,
Mas a clarividência de Miguilim não virá pelo
mais do que as formas, enxerga as cores, sentidos,
ingresso na escola ou pelo conhecimento das letras,
vibrações e o brilho que emana de cada uma das
mas pelo crescimento. O pai o expulsa violentamente
coisas.
do paraíso do Mutum aos poucos: primeiro vem a
Nos momentos de maior alegria e
surra, depois os castigos, a responsabilidade de
entendimento infantil é possível para Miguilim
levar a comida e, por último, o trabalho. Na sua dura
enxergar com bastante clareza:
tarefa em direção ao crescimento, a personagem vai
O sanhaço, que oleava suas penas com o
biquinho antes de se debruçar. O sabiá-peito- perdendo a capacidade de contar histórias e as
vermelho, que pinoteava com tantos
requebros, para trás e para frente, ali ele percepções sensoriais responsáveis pelas suas
mesmo não sabia o que temia. E o casal de fantasias infantis. Aos poucos, vai abandonando a
tico-ticos, o viajadinho repulado que ele vai,
nas léguas em três palmos do chão. (...) Tudo experiência sensível para sentir no corpo a dureza
caprichado de lindo!” (ROSA, 2001, pg. 60)
do trabalho na roça. A dura travessia para a

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maturidade se condensa com a extenuação pelo FOUCAULT, Michel. La naissance de la clinique.


Paris : Presses Universitaires de France, 2003. 232 p.
trabalho corporal, a perda de forças e o mergulho
numa doença em que não sabe distinguir o dia da LISBOA, Henriqueta. “O motivo infantil na obra de
Guimarães Rosa”. IN: ROSA, João Guimarães.
noite. Perde-se na cegueira.
Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
O retorno da visão só se dá num episódio que 1994. v. 1. 1.098 p.
reverte o mito edipiano: o pai mata Luizaldino e
MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito São
depois se mata. Ao contrário do herói grego, Miguilim Paulo: Cosac & Naif, 2004. 166 p.
não perde a visão, mas começa a ver melhor.
NOGUEIRA, Erich Soares. Percepção e experiência
Sobrevivendo ao pai e à catapora, o menino vai poética: estudo para a análise de Campo geral, de
J. Guimarães Rosa, 2004, 178 f.- Dissertação
procurar, então, o que está além dos morros que
(Mestrado emletras), Departamento de Letras,
cercam o mato do Mutum. Mas não sem antes olhar Unicamp, São Paulo.
para trás e dar a ele próprio o presente que gostaria
OLIVEIRA, Franklin. Guimarães Rosa. In:
de ter dado para a mãe no início da narrativa: uma COUTINHO, Afrânio (Org.) A literatura no Brasil.
Rio de Janeiro: Olympio/ Niterói: EDUF, 1986, 3.v.
nova visão do lugar. Um estranho empresta os
p.520.
óculos ao menino e é neste momento, e só aí, que o
RIZZOLI, A. O real e o imaginário na educação rural
leitor vai ser informado da miopia de Miguilim.
(Município de São Carlos), 1988, 190 f. - Tese
E Miguilim olhou para todos, com tanta força. (Doutorado em educação), Faculdade de
Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo,
do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo 1988.
e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os
olhos redondos e os vidros altos da manhã. RÓNAI, Paulo. Notas para facilitar a leitura de Campo
Olhou, mais longe, o gado pastando perto do geral de J. Guimarães Rosa. Matraga – Revista do
brejo, florido de são-josés, como um algodão. programa de pós-graduação em Letras, Rio de
O verde dos buritis, na primeira vereda. O
Janeiro, ano 9, n. 14. p. 23-59, jan./dez., 2002.
Mutum era bonito! Agora ele sabia. (ROSA,
2001, p.152).
____________. “Os vastos espaços”, in: ROSA, João
E é com o uso dos óculos que ele, finalmente, Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1975. 176 p.
vai ver mais além.
ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 265 p.
Referências
YUNES, Eliana. Infância e infâncias brasileiras: a
representação da criança na literatura, 1986, 220f.
COUTINHO, Eduardo de Faria (org.) Guimarães - Tese (Doutorado em letras) - Departamento de
Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; INL- Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Pró Memória, 1983. 227 p. Janeiro, Rio de Janeiro.

DELEUZE, Gilles/ GUATARI, Felix. Mil platôs vol. 4 –


Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora
34, 2005, 170 p

COMO CITAR ESSE ARTIGO

SCHITTINE, Denise Ferreira de Araújo. Uma miopia moral: A análise sensível do sertão de Miguilim. Signo,
Santa Cruz do Sul, v. 42, n. 74, maio 2017. ISSN 1982-2014. Disponível em:
<https://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/view/8594>. Acesso em:________________________. doi:
http://dx.doi.org/10.17058/signo.v42i74.8594.

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 42, n. 74, p. 20-30, maio/ago. 2017.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo

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