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ISSN on-line: 1982-2014
Doi: 10.17058/signo.v42i74.8594
Recebido em 13 de Novembro de 2016 Aceito em 17 de Maio de 2017 Autor para contato: dschittine@yahoo.com.br
Denise Schittine
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC – Rio de Janeiro - Brasil
Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 42, n. 74, p. 20-30, maio/ago. 2017.
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acontecer sem que os objetos se iluminem, a Miguilim é salvo por uma quadrilha. Mais uma
fantasia é uma maneira de colocar foco sobre o pista de como a obra de Guimarães Rosa se
mundo e de conhecê-lo. organiza como um todo: suas histórias são narrativas
de onde se extrai a música.
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Longe dos adultos responsáveis pela ordem tio Terêz e começa a entender que existe uma
da casa – o pai e a avó – sem as obrigações e as diferença lógica entre a mentira e a fabulação:
exigências de seriedade, por parte do pai, e de “Miguilim de repente começou a contar estórias
religiosidade, pelo lado da avó, as crianças podem tiradas dele mesmo: uma do Boi que queria ensinar
realizar suas fantasias próprias. Não é por acaso que um segredo ao Vaqueiro, outra do Cachorrinho que
nos dias em que não chove em Mutum, que o pai em casa nenhuma não deixavam que ele morasse
está distante cuidando da roça, o espaço para a (...) Essas estórias pegavam.” (ROSA, 2001, p. 104).
imaginação aumenta: a irmãzinha Chica pode brincar Do efeito dessas narrativas, o menino tira a
de batizar bonecas, a avó começa os preparativos sua vocação: é um fabulador. Vocação retirada do
para o presépio e os vaqueiros começam a contar seio de sua imaginação. Essa voz que se descobre
suas histórias. São esses heróis, que em contato como fabuladora é a mesma que está conduzindo o
com a rude natureza, temida por Miguilim, voltam leitor pelo texto. Além das fábulas que Miguilim
com seus relatos das vaquejadas. Em torno das conta, existe a sua própria história: a de uma criança
histórias desses homens, Guimarães Rosa escreve sensível no meio do agreste. E, construindo esse
uma outra história: aquela contada pelas denso relato infantil está a vida de tantos outros
personagens do sertão. Eles são a memória de um meninos do sertão e um pouco da própria infância de
mundo adulto de perigos e crueldades que o menino Rosa, em Cordisburgo. Nessas narrativas inventadas
ainda não conhece e, justamente por isso, as está a chave para saída poética que o próprio Rosa
transforma também em ficção. aponta para a feitura do texto: o apoio franco na
Junto com o bom tempo e as boas histórias oralidade. Como pesquisador, Guimarães Rosa
aparece Siàrlinda, mulher do vaqueiro Salúz, outra permaneceu de ouvidos abertos, desde a infância,
amante da prosa. As lembranças agora são a para estes relatos:
mistura alegre do paladar dos doces de queijão (...) nós, os homens do sertão, somos
fabulistas por natureza. (...) Desde pequenos,
moreno e de leite que Siàrlinda faz e da escuta das estamos constantemente escutando as
histórias infantis: “Da moça e da Bicha-Fera”, da narrativas multicoloridas dos velhos, os contos
e lendas, e também nós criamos um mundo
“Gata-Borralheira”, do “Papagaio Dourado que era que, às vezes, pode se assemelhar a uma
um Príncipe”, do “Rei dos Peixes.” É Siàrlinda que lenda cruel. (ROSA, in: Coutinho, 1983, p. 69).
desperta em Miguilim o gosto por contar histórias. Dentro de casa os dois companheiros que
Pronto, o limite que impedia a fala do menino estava mais participam de seu voo pela ficção são a mãe e
rompido, não precisava mais cuidar para que os o irmão mais novo, Dito. Da mãe, Miguilim herdou a
relatos fizessem sentido aos adultos, apenas melancolia e o romantismo. Em comum tinham a
descobrira que era possível fazer ficção. visão turva e distorcida de Mutum: ele pela miopia,
Aos poucos, ele ultrapassa a interdição ela pela negação da liberdade. Em comum também
religiosa de não poder inventar histórias para tinham a vontade de ver o mar e uma saudade de
entender que elas podem ser um jogo lúdico e contá- coisas nunca antes vistas. “‘_ Dito, eu às vezes
las como fábulas. A primeira reação da irmã Drelina tenho saudade de uma coisa que eu não sei o que é,
quando Miguilim explica que um jacaré comeu os nem de donde, me afrontando...’; ‘ _Deve de não,
presentes que trazia para os irmãos da viagem é: Miguilim, descarece. Fica todo olhando para a
“Mentira. Você mente, você vai para o inferno!”. Com tristeza não, você parece Mãe’”. (ROSA, 2001, p 73).
o salvaguardo de ter sido crismado, em oposição aos Ao chegar de sua viagem, Miguilim traz um presente
irmãos, e a crença na fé que a avó se certificava de simbólico para a mãe: a descoberta de que o Mutum
que ele possuía, Miguilim encontra licença poética era bonito por um segundo ponto de vista, o de um
para contar histórias. Passa por uma prova moral estranho. A entrega verdadeira deste presente só
que testa a sua lealdade ao pai e a amizade com o será feita, de fato, no fim do texto. Antes disso, resta
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a ansiedade de guardá-lo: “a ideia de poder trazê-lo vezes, vendo de perto. O mais importante é observar
desse jeito de cor, como uma salvação, deixa-o febril que a leitura que a personagem faz do mundo está,
até nas pernas”. Longe de todos, ele conta o quase sempre, mediada por um tipo diferente de cor.
“segredo” à mãe como uma revelação, um As experiências de medo e desamparo estão,
desvelamento de um universo desconhecido aos invariavelmente, ligadas ao negro: a mata negra do
olhos cansados de enxergar o mesmo lugar e ávidos Mutum é o temor do território desconhecido. O
por mudanças. O resultado é decepcionante. A castigo mais temido não é o da surra ou da dor, mas
fantasia de Nhanina é maior que a de Miguilim, seus o de ser obrigado a entrar em contato com o escuro:
sonhos ultrapassam o Mutum. Ela deseja ver o que “Mas o pai não devia de dizer que um dia punha ele
existe por trás daqueles morros. É esse olhar para Miguilim de castigo pior, amarrado em árvore, na
adiante que estabelece o seu ponto de ligação com a beirada do mato. Fizessem isso, ele morria da
mãe sonhadora, mas que também encontra o estrangulação do medo? (...) Como pai podia
entrave na própria miopia. imaginar judiação, querer amarrar um menino no
O segundo ponto de apoio de Miguilim está no escuro do mato?” (ROSA, 2001, p.38).
irmão Dito, mas através enunciação, não pelo sonho. A noite e os animais que pertencem a ela –
Dito – que “era menor, mas sabia o sério, pensava corujas, morcegos – são enigmas para Miguilim, ele
ligeiro as coisas, Deus tinha dado a ele todo o juízo” é quase sempre o que mais teme dormir, embora
– é aquele que fala, e Miguilim, o vidente. É o caçula não tenha medo de sonhar. Os perigos da noite
que dá corpo em palavras ao pensamento de estão todos relacionados a uma mitologia de seres
Miguilim e possibilita a ligação do mundo de fantasia imaginários – “almas friosas”, “mulheres
infantil com o adulto: Dito é uma criança improvável. assombradas” – e à chuva, parte do cenário
Ele vai ter o discurso aceito e compreendido pelos invariável da cidade. Os medos noturnos são
mais velhos, mas no momento em que está próximo compensados pelas constantes tentativas de afastar
da morte vai acionar o mundo de imaginação infantil as “tentações” através da oração e pelas conversas
por meio de Miguilim. É quando Dito perde a força de com Dito, com quem Miguilim divide o mesmo catre.
sua fala, que o irmão mais velho vai recuperá-la, de “Conseguia era outro medo, diferente. O Dito já tinha
outra maneira, voltando a contar suas histórias adormecido. O que dormia primeiro, adormecia. O
inventadas. O poder da fabulação, que pertence a outro herdava os medos, e as coragens. Do mato do
Miguilim, vai ser a saída para Dito suportar a doença. Mutum.” (ROSA, 2001, 92).
Miguilim contava, sem carecer de esforço, Esse escuro do mato é quase uma
estórias compridas, que ninguém nunca tinha
sabido, não esbarrava de contar, estava tão personagem: que engole as pessoas, que levou o tio
alegre nervoso, aquilo para ele era o Terêz em meio a uma noite de temporal, que, um
entendimento maior. Se lembrava de seo
Aristeu. Fazer estórias, tudo com um viver dia, sumiu com o pai enforcado em remorsos. Tem
limpo, novo, de consolo. Mesmo ele sabia, uma simbologia angustiante magicamente ligada à
sabia: Deus mesmo era quem estava
mandando! (...) O Dito tinha alegrias nos história de João e Maria, abandonados pelos pais na
olhos; depois, dormia, rindo simples, parecia
floresta (mato) porque não tinham o que comer. A
que tinha de dormir a vida inteira. (ROSA,
2001, p.115) negatividade de Vovó Izidra está, também,
Durante todo o relato de “Campo Geral” a amadas e mais respeitadas pelas crianças da
miopia de Miguilim é suposta, mas nunca anunciada. família, porque tem o poder de rezar e obter graças,
O que o leitor vê, aqui e ali, é uma criança que mas também porque “enxergava no escuro”. É ela
explora o universo através do conhecimento dos que se locomove na noite, que olha pelas pessoas
sentidos e que exprime suas experiências, muitas da família, que faz o uso das velas.
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o que há de menor, o microcosmo, o que não se gerar a partir da ideia da morte. Com essa intenção,
encaixa na visão prática dos mais velhos. se afasta das crianças da casa, para de brincar e
A história central de “Campo Geral” é a de começa a dedicar o seu tempo a “agarrar” os
uma família que procura manter-se unida, do pensamentos grandes com as próprias mãos. Sem a
trabalho do pai para escapar da fome, das ajuda da avó, que “devia ter competência enorme
infidelidades da mãe, das mortes e doenças que para o lucro de rezarem reunidos”, Miguilim se
acontecem no sertão pela mais absoluta falta de empenha em começar uma novena e a fazer
estrutura e informação. Mas tudo isso é contado pelo promessas em benefício da própria saúde. E imagina
ponto de vista de um menino que, por mais que que, sobrevivendo à doença, poderia chegar a
cresça, imagina que jamais poderá estimar os amadurecer. “Se escapasse, achava que ia ficar
adultos, “nem ser sincero companheiro”. “Numa sabendo, de repente, as coisas de que precisava.”
produção mágica da visão infantil, episódios (ROSA, 2001 p. 70).
insignificantes criam volume e acontecimentos Dito é a saída. O canal através do qual
trágicos se reduzem a meras impressões.” (RÓNAI Miguilim consegue se relacionar e entender os
In: Rosa, 2001, p.21). Sem compreender o drama de adultos. Apesar de mais novo, Dito é seguro e
Nhô Berno – do excesso de trabalho, do número de tranquilo, além disso, tem o poder da enunciação. É
filhos para criar – Miguilim tem vergonha da postura ele que põe em palavras o que o irmão mais velho
do pai: que “não podia vender as filhas e os filhos” confusamente vê. Miguilim tem o poder da visão,
para comer. Seu maior desejo é crescer rápido para Dito – como o próprio nome mostra – tem o dom da
ajudar e trabalhar também. palavra. Michel Foucault explica em O nascimento da
No entanto, a maior dificuldade que enfrenta é clínica que:
a do crescimento. Dificilmente consegue (...) paira um mito de um puro Olhar que seria
da Linguagem pura: olho que falaria (...)
compreender o universo adulto. “Miguilim não tinha doravante, só se vê o visível porque se
vontade de crescer, de ser pessoa grande, a conhece a linguagem; as coisas são
oferecidas apenas àquele que penetrou no
conversa das pessoas grandes era sempre as mundo fechado das palavras e se tais
mesmas coisas secas, com aquela necessidade de palavras se comunicam com as coisas é
porque lhes obedecem a gramática.
ser brutas, coisas assustadas” (ROSA, 2001, p.52). (FOUCAULT, 1972, p. 115)
Contra a brutalidade dos adultos, o menino responde
Mesmo distante da compreensão gramatical –
com sua sensibilidade. Uma sensibilidade que não
mais do que Miguilim, que já está na fase de
entende a violência com que tratam os bichos e a si
aprender a escrever, – Dito é o que vai saber usar o
próprios. As questões dos mais velhos, então, estão
vocabulário dos adultos e traduzi-lo para o irmão
envoltas numa mitologia própria, de interdição,
mais velho. O caçula – sensato, sério, que “pensava
cristalizada na figura dura e desconforme de Vovó
ligeiro as coisas” – é capaz de entender a
Izidra. A traição do pai pelo tio Terêz termina por ser
infidelidade da mãe, as regras dos castigos, os
traduzida na simbologia bíblica de Caim e Abel.
assuntos proibidos dentro de casa. Destemido, ele
Os adultos sabem resolver as coisas, os
consegue espantar o desconhecido: aponta o sono
adultos não têm medo do escuro ou da chuva e,
como remédio para as fantasias de Miguilim
principalmente, eles sabem rezar, têm o poder de se
(“Dorme, Miguilim. Se você ficar imaginando assim
aproximarem de Deus. O único momento em que
você sonha pesadelo...”) e explica ao irmão quais
Miguilim deseja crescer é quando está doente e
são os tabus dentro de casa (“Miguilim, eu acho que
pensa estar à beira da morte. A sua necessidade de
a gente não deve de perguntar nada ao tio Terêz,
acelerar o crescimento, então, é para pensar com a
nem contar a ele que pai ralhou com Mamãe,
mesma gravidade de “gente grande”, afastar as
ouviu?”). As palavras de um guiam o olhar curioso do
fantasias que a sua própria imaginação infantil pode
outro.
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Contrariamente a Miguilim, que deseja saber enfeitava os santinhos. A seriedade de Dito faz dele
tudo certo para que as pessoas não “ralhem”, Dito o mais santo: “Antes de subir, botava camisinha para
tem a certeza e a sabedoria das coisas. “Mas por dentro da calça, resumia o pelo sinal, o Dito era um
que era que o Dito semelhava essa sensatez – irmão tão bonzinho e sério, todas as coisas certas
ninguém não botava o Dito de castigo, o Dito fazia ele fazia.” (ROSA, 2001, p.109). Morre um menino
tudo sabido, e falava com as pessoas grandes especial e, simbolicamente, nasce Jesus. É quando
sempre justo, (...)” (ROSA, 2001, p. 67). Os medos e Vovó Izidra termina de montar o presépio, e coloca o
excitações de Miguilim não existem em Dito, suas menino Jesus na manjedoura que Dito morre.
superstições esbarram na coragem do irmão. Dito é
capaz de escapar do castigo do pai quando, sem 5 A clarividência
avisar, manda o vaqueiro Saluz cortar a árvore de
pé-de-flor que crescia atrás da casa. Dito não sofre o Com a morte do irmão, Miguilim perde a
castigo porque explica racionalmente a fantasia conexão com o mundo adulto. Os diálogos paternos,
infantil: tinha sonhado com a morte anunciada do pai já difíceis, se tornam impossíveis. A rejeição
causada pelo crescimento da árvore. Coloca em aumenta quando o pai confessa que “menino bom
palavras o temor do irmão e recebe em troca o era Dito que Deus tinha levado para si, era muito
reconhecimento paterno. melhor tivesse levado Miguilim”. A relação edipiana
Pelo poder da palavra, Dito se revela a com a mãe é grande: o maior presente que traz de
“criança impossível, que não cabe no mundo” e viagem é para ela: a ideia de que o Mutum era
morre, mesmo não querendo “ir para o céu menino bonito. Miguilim peca por não gostar de Vovó Izidra,
pequeno”. Mas não sem antes deixar um que desdenha moralmente da mãe, e apanha do pai
ensinamento importante para Miguilim: a busca da por defender a mãe numa briga iniciada pelo ciúme.
alegria, daquele “cheiro de alegriazinha” que é uma Sem o apoio da palavra de Dito e com a chegada do
das lembranças mais remotas do princípio da irmão mais velho, Liovaldo, Miguilim perde a fala.
infância e que será perseguido durante toda o trajeto Perto de Liovaldo não queria conversar com Rosa,
dessa novela. É no momento de maior tristeza, com os vaqueiros, nem brincar com os irmãos.
quando sua morte paira como um lamento no O ódio do pai aumenta quando vê Miguilim
Mutum, que o caçula vai buscar no mistério de sua preso na melancolia dos dias posteriores à morte de
sabedoria infantil o poder da alegria para a Dito. Abandonando de vez a fala, ele volta para a
superação da morte. “_ Miguilim, Miguilim, vou maneira sensível-sensória de se relacionar com o
ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente mundo. Ao interrogar o mistério da vida, ao querer
pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda saber sempre mais, tem o desejo de curiosidade
coisa ruim acontecendo. A gente deve de poder ficar confundido com o de superioridade: “(...) o pai
então mais alegre, mais alegre, por dentro!...” desabusava mais _ ‘O que ele quer é sempre ser
(ROSA, 2001, p.119). Então, Miguilim, o vidente, não mais do que é, é um menino que despreza os outros
consegue encarar a passagem do irmão para a e se dá muitos penachos’.” (ROSA, 2001, p.126).
morte. Vai para o quarto escuro de Mãitina, mas não Inconformado com a injustiça do irmão mais velho,
conseguirá fugir. Mesmo lá, de longe, é capaz de que resolve bater no Grivo, menino pobre, Miguilim
sentir “uma coisinha caindo em seu coração”, e, procura fazer a sua primeira passagem da infância
então, adivinha a morte de Dito. para a vida adulta pedindo justiça e batendo no
Coincidentemente, o falecimento é no mesmo irmão. O episódio resulta no pai quase o matando a
período do Natal. Apesar de ser Miguilim o de “maior pancadas e se desfazendo do símbolo de sua
fé” – aquele que escapa de uma morte por infância: os passarinhos. Pela primeira vez, mesmo
engasgamento – é o Dito que melhor ajoelhava e apanhando nu, Miguilim decide não chorar. Na
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cabeça a vingança edipiana: aguentava a surra A sensação de que a personagem não possui
porque, quando crescesse, mataria o pai. No meio uma deficiência visual vem do fato de que, sem se
da contrariedade, como se tivesse, de repente, dar conta, o leitor já enxerga como Miguilim, já
absorvido o ensinamento de Dito, Miguilim sorri, e o participa da sua maneira poética de ver o mundo. De
sorriso assusta o pai. Essa é a sua primeira prova de fato, os olhos do menino começam a embaçar
crescimento: não teria mais medo de ninguém. quando precisa avistar além do que permite o seu
É o temor que causa a visão turva de universo infantil.
Miguilim. O medo e a incompreensão dos assuntos De todas as tentativas do pai para arrancar
que impõem a expressão violatória do mundo Miguilim da infância e fazê-lo enxergar com olhos de
maduro. Os seus olhos falham quando se vê diante adulto, muitas fracassam. Entre elas a vontade de
de um território adulto desconhecido: onde ocorre a colocar os filhos na escola. Intimidado com a
violência, a ação incoerente, o inexplicável. Paulo sabedoria de seu Deográcias, procura não se dobrar
Rónai explica que o maior triunfo de Rosa está no às superstições do curandeiro: se nega a cortar a
fato de fazer o leitor sentir o frescor das árvore que cresce atrás da casa porque não
“descobertas” e “espantos” do menino ao ser pretende receber ordens de alguém que o imagina
introduzido no universo dos adultos (in RÓNAI, 2002, pobre e ignorante. Ciente de que o estado de
P.23). Portanto, o olhar do menino é antes um foco penúria e desinformação vem da falta de instrução,
de leitura do que uma visão curta. Rosa faz do míope Nhô Berno decide pedir a seu Deográcias para
aquele que enxerga além, que, de detalhe em começar a alfabetizar os meninos, a justificativa era
detalhe, é capaz de ultrapassar a visão fechada do para não seguirem em “atraso de ignorância”. E essa
mundo. é uma maneira não só de acelerar a saída de
A miopia de Miguilim não é anunciada. Ao Miguilim da infância, como dar mais luz ao
contrário, o autor não dá pistas evidentes ao leitor. pensamento do menino. Associando o conhecimento
Este é convidado a compartilhar a visão do menino e à nitidez da visão observamos a declaração de um
aproximar o olhar de um microcosmo de pequenas morador do campo na década de 80 que, embora
formas. A personagem nos entrega uma lupa. E, a real, pode em muito coincidir com o caso de
princípio, envoltos no encantamento deste Miguilim:
micromundo não reparamos nos detalhes da visão É porque meu pai achou que eu necessitava
clarear a vista um pouquinho, não podia ser
do míope. São os pequenos pássaros, a pocinha que criado como cego. (...) Desde meu filho
forma o espelho d’água, caramujinhos, as formigas, pequeninho que eu comecei dar a ele um
caderninho para ver se ele não ficava cego.
joaninhas e abelhas. Elementos que passariam, a Porque pessoa que não sabe ler nem
princípio, despercebidos para um adulto. A visão de escrever, mesmo um pouquinho, é
considerado cego.” (RIZZOLI, 1988, p.159).
Miguilim, então, é considerada cristalina, porque,
Mas a clarividência de Miguilim não virá pelo
mais do que as formas, enxerga as cores, sentidos,
ingresso na escola ou pelo conhecimento das letras,
vibrações e o brilho que emana de cada uma das
mas pelo crescimento. O pai o expulsa violentamente
coisas.
do paraíso do Mutum aos poucos: primeiro vem a
Nos momentos de maior alegria e
surra, depois os castigos, a responsabilidade de
entendimento infantil é possível para Miguilim
levar a comida e, por último, o trabalho. Na sua dura
enxergar com bastante clareza:
tarefa em direção ao crescimento, a personagem vai
O sanhaço, que oleava suas penas com o
biquinho antes de se debruçar. O sabiá-peito- perdendo a capacidade de contar histórias e as
vermelho, que pinoteava com tantos
requebros, para trás e para frente, ali ele percepções sensoriais responsáveis pelas suas
mesmo não sabia o que temia. E o casal de fantasias infantis. Aos poucos, vai abandonando a
tico-ticos, o viajadinho repulado que ele vai,
nas léguas em três palmos do chão. (...) Tudo experiência sensível para sentir no corpo a dureza
caprichado de lindo!” (ROSA, 2001, pg. 60)
do trabalho na roça. A dura travessia para a
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SCHITTINE, Denise Ferreira de Araújo. Uma miopia moral: A análise sensível do sertão de Miguilim. Signo,
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<https://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/view/8594>. Acesso em:________________________. doi:
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