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AULA 4 – UMA LONGA INTRODUÇÃO AO SEGUNDO

REINADO
1. Características do processo escravocrata
Em geral, não havia conflitos e preconceitos étnicos, tanto por parte da Coroa portuguesa
quanto por parte da Coroa brasileira. Em outras palavras, de maneira nacional não houve uma
segregação institucionalizada, como ocorreu nos Estados Unidos, por exemplo. No Brasil, há a
marca da miscigenação, que é uma virtude do passado português.
Dentro desse processo de início de escravidão, ocorre também a falência do padroado, que
vai aumentar a mão de obra escrava. Há, além disso, os diferentes tipos de exploração da mão
de obra humana: existe aquele estruturado em premissas religiosas e aquele ancorado nas linhas
de iniciativa privada da época. Existiu todo um empreendimento sobre as rotas que o escravo
poderia fazer ao sair da África: cair dentro de uma ordem religiosa, e também ir para um
engenho a partir de um contrabando.
As documentações no que envolve o escravo, o seu papel e os seus direitos, relatam que o
famoso navio negreiro tinha que comportar com dignidade aquele. É claro que ao olhar para
isso com afastamento temporal parte-se da ideia de que ter escravos já é em si um sinal de um
sistema bárbaro. Mas, dentro da realidade da época, ele tinha direitos: alimentação quatro vezes
por dia, lugar para dormir, um diretor espiritual no navio, por exemplo. Essa era a lei, apesar de
na maioria das vezes não ser seguida.
O sistema escravocrata no Brasil foi tão complexo que só ele vale, sem dúvidas, uma longa
imersão. Como exemplo, em alguns momentos há escravos que são senhores de outros; vendia-
os e as vezes negociavam com seu próprio senhor. Este sistema no século XIX foi uma das
explicações para o atraso social e industrial, e também tem influência na queda da família real,
além de possibilitar diferentes tipos de abolicionistas, alguns inclusive alinhados com essa
história do negro escravo no país.
É importante também dizer que os velhos clichês muitas vezes repetidos – apesar de pouco
lidos de verdade –, tem sentido: o negro era tido como propriedade, algo bárbaro e absurdo,
apesar deles por vezes terem escravos e possibilidade de ascensão. Quando se fala desse ser
propriedade, é importante ter em mente que já se dá um tipo diferente de tratamento.
Para ilustrar toda a complexidade deste sistema, tem-se o seguinte testamento [1] de
Francisco Nunes de Moraes, que permitirá ter uma visão bem geral sobre o assunto. Em suma,
há uma conexão entre os abolicionistas do Segundo Reinado e esse antigo sistema que é
importante que seja entendida. Falar-se-á também das irmandades, o que elas eram e a relação
que terão com a Questão Religiosa no Brasil. O testamento é esse:
“Registro do testamento e de seu codicilio deixado após o falecimento pelo negro Francisco
Nunes de Moraes, falecido em 13 de janeiro de 1811. O executor do testamento é sua mulher
Efigenia Maria da Trindade, que mora no Pillar (na rua depois do trapiche).
Em nome do Senhor, amém. Eu, Francisco Nunes de Moraes, estando doente, mas em
pé e em perfeito juízo e de entendimento, temendo no entanto a morte e querendo
tomar providências necessárias a minha salvação, ordenei que meu testamento fosse
redigido da maneira seguinte:
Eu sigo a Lei de Deus e nessa religião faço profissão de fé desde o batismo, nela vivo
e quero morrer, pois fora dela não há salvação.”
Vê-se aqui um escravo tridentino, um homem forte, ortodoxo e incisivo.
Continuando:
“Nasci na Costa da Mina e batizado no grêmio da igreja como verdadeiro cristão e fui
escravo do defunto Capitão-mor Antonio Nunes de Moraes que me libertou na sua
morte pela quantia de duzentos e cinquenta mil réis que recebeu seu testamenteiro
Francisco Rodrigues Vianna em bom dinheiro de contado.”

Tem-se aqui um argumento contra a mentira dos que dizem que os negros não tinham alma,
pois se Francisco foi batizado, ele tinha alma. Observa-se também que ele foi escravo, e foi
libertado: há, bem ou mal, uma forma de tratamento que, ainda que não fosse a regra, não foi
exceção com este homem, ou seja, ele foi um antigo escravo que foi libertado e isso aconteceu
com outros também.
Logo em seguida:
“Sou casado com Efigenia Maria da Trindade, mulher crioula, e desse casamento
nunca tive filhos nem filhas até o presente, e solteiro também nunca tive filho, e se
alguém vier reclamar o contrário, não consinto, pois em consciência nunca o tive.”

Ele está falando aqui inclusive de um elemento um tanto quanto corriqueiro em certos
espaços que era a alegação de que a pessoa tinha filhos. Esse trecho foi escolhido porque muitas
vezes o Brasil é acusado de ter sido um país excessivamente promíscuo e sem êxitos no sentido
matrimonial, ou com raríssimos êxitos. E inclusive há todo um fetichismo em torno de uma
certa promiscuidade negra, coisas essa que o testamento e o fato de Franscisco não ter tido
filhos responde.
Adiante:
“Os bens que possuo foram adquiridos por mim e por minha companheira Efigênia
Maria da Trindade que depois de pagar meu funeral e as dívidas que poderia ter a
instituo minha herdeira universal de tudo o que possuo, pois essa é de fato minha
vontade, a cumprir o que abaixo declaro.
Meu funeral e enterramento deixo a cargo da dita mulher, pois confio em seu amor e
por causa de boa confiança mútua que sempre tivemos, obrará por mim como obraria
por ela se sobrevivesse.
Para executora do meu testamento nomeio a dita minha mulher Efigenia Maria da
Trindade, em primeiro lugar, e em segundo lugar José Pacheco Nunes, e em terceiro
lugar o Capitão Domingues Rodrigues Vianna. Rogo a eles pelo serviço de Deus e
por favor a mim de aceitar essa incumbência e dou-lhes todo poder para fazer tratos e
convenções que forem necessários. Em quarto lugar nomeio também Francisco
Gomes Pereira como testamenteiro e aquele que aceitar deixo três anos para acertar
as contas.
Porque me compadeci do abandono em que se encontrava a escrava Maria, órfã de
mãe, lhe ofereci graciosamente a liberdade e a trouxe viver em minha companhia,
esperando que se fosse mostrar honesta para merecer que minha mulher e eu a
déssemos em casamento, pois era essa a nossa intenção.”

Observa-se aqui que ele foi antigo escravo, e depois senhor de escravo. Tinha também um
zelo humano em torno da vida de sua escrava.
Logo mais:
“Mas não ocorreu assim porque se desonrou com pessoa diferente dela e se encontra
com dois filhos, um macho e uma fêmea, como me apiedo dela pelo amor da criação,
decido deixar de legado, em uma só vez, cinquenta mil réis e quarenta mil a cada um
dos filhos que se chamam Custódio e Vicencia, contando que os referidos legados [...]
a minha testamenteira antes do tempo concedido para as contas e ocorrendo o
contrário, perderão os ditos legados que no caso darei por revogados: e porque muitas
vezes acontece, as pessoas que queremos beneficiar pelo amor de Deus, argúem que
são filhos dos seus legadores, eu declaro que ela não é minha filha e que se ela
pretender o contrário o legado feito a ela e aos seus filhos serão suprimidos.
A negra Anna do Gentio da Costa, minha escrava, pelos bons serviços que ela me
prestou e porque é minha comadre, a deixo quartada pela quantia de trinta mil réis que
ela dará a minha testamenteira e herdeira nos dois anos que seguem, que serão livres
de pagamentos semanais para que os possa adquirir e pernoite sempre em companhia
de minha testamenteira.
Entre os outros escravos que possuo, há um crioulo que se chama Francisco, a quem
ensinei o ofício de barbeiro e de músico em vários instrumentos: era minha intenção
deixa-lo livre, mas como se portou muito mal, se ausentando sem causa nem razão, e
por sua vadiação, fico contente e é meu gosto que fique com minha testamenteira e
herdeira pelo prazo de cinco anos, ao final dos quais, e se comportando bem, lhe será
passada a carta de liberdade. No entanto, se minha mulher se casar novamente, então
ficará desse dia em diante forro, servindo este de título de sua liberdade e não
procedendo bem, fique cativo.
Não especifico os bens que possuo porque são do conhecimento de minha mulher,
testamenteira e herdeira.
A Confraria de Nossa Senhora do Rosário da Baixa do Sapateiro, de que fui indigno
juiz, deixo a esmola de vinte e cinco mil réis, de uma vez, para o que Nossa Senhora
necessitar.”

Nota-se uma característica importante da época: houve casos em que escravos aprendiam
um ofício. E a menção à Nossa Senhora do Rosário, que envolve as irmandades negras, também
é muito importante. Havia uma característica sociológica no ambiente de fé: a devoção àquela
era algo das irmandades negras, e isso acontece em Recife, Bahia, Rio de Janeiro, Ouro Preto
etc.; enquanto as irmandades brancas tinham devoção à Nossa Senhora da Conceição.
Em suma, é possível observar um antigo escravo que passou a ser senhor de outros, foi
católico tridentino, invocando que fora da Igreja não há salvação já no início de seu testamento,
e que doou dinheiro à Confraria Nossa Senhora do Rosário da Baixa do Sapateiro.
Continuando:
“Em um livro de contas que tenho contará tudo o que está declarado, o que possuo e
o que me é devido, e lhe será dado crédito, sem que meus testamenteiros tenham por
isso de registrar com este testamento, pois assim é minha vontade.

Deixo que minha testamenteira me tome quatro mil réis para satisfação de encargos
ou dívidas que poderia ter de restituir a alguém que não me ocorre.
A Alcandro da Conceição, morador de Palma, como gratificação pelo trabalho que
tem sido a formação de meus escravos no ofício da rebeca deixo doze mil e oitocentos
réis.
Pela alma de meu antigo senhor, deixo de esmola para mandarem rezar seis missas a
duzentos réis cada uma.”

Ele, em seu testamento, lembra da alma de seu antigo senhor. Observa-se que o sistema
escravocrata no Brasil era complexo e Francisco não foi uma única exceção, como dito. Não se
está falando de um singular; fala-se inegavelmente de uma minoria, porém esta não era irrisória.
E se testemunhos arrastam, este é um capaz de fazer isso.
Adiante:
“E por minha alma minha testamenteira e herdeira mande rezar quatro missas da
mesma esmola e uma outra, metade pelas almas dos meus escravos falecidos outra
metade pelas almas do fogo do purgatório, à intenção do meu Senhor Jesus Cristo.
Minha mulher e herdeira distribuirá minhas roupas usadas para meus escravos.
Eu dou por terminado meu testamento e pedi e roguei a Francisco da Cunha e Araujo
de escrever a meu pedido e eu assino com meu sinal costumeiro, rogando a justiça de
Sua Majestade de cuidar para que seja plenamente executado na forma declarada.
Bahia 7 de setembro – dizemos 6 de setembro de 1790. Francisco Nunes de Moraes,
escrito a seu pedido por Francisco da Cunha e Araujo.”

Com este documento e com o que aqui foi exposto, é de se esperar a compreensão do quão
complexo foi o século XIX e também a tradição prévia a ele, e que ele ainda irá portar: a de um
legado escravocrata nefasto. Este testamento foi escolhido por ser anterior ao Segundo Reinado
justamente para dar uma ideia de continuidade.

2. Irmandades
As irmandades negras serão mescladas: continham maçons – assim como nas brancas e
pardas –, católicos, alforriados, escravos, enfim, havia um ambiente plural dentre destes grupos.
Nem todos tinham um caráter espiritual; muitos possuíam a característica de confrarias. Além
disso, uma irmandade parda poderia depois ser uma branca, negra, ou seja, acontecem
mudanças. Um exemplo é a Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito que teve essas
transições. Ela já foi inclusive a Igreja mais importante da cidade. Dali há os vestígios do Mestre
Valentim e do Padre José Maurício Nunes Garcia, homens não citados por não terem feito parte
do recorte aqui utilizado.

Igreja Nossa Senhora do Rosário e São benedito, Rio de janeiro.

Nas irmandades havia uma preocupação espiritual, e um empreendimento e um


protagonismo leigo nas construções dos templos. Exemplo: a Igreja Nossa Senhora dos Pretos
(a primeira imagem abaixo), de Ouro Preto, ou ainda a Igreja Nossa Senhora da Candelária (a
segunda imagem abaixo), no Rio de Janeiro.
É importante saber que elas existiram e tiveram essas características, além de serem refúgio
sociológico para o escravo, assim como espiritual. O ambiente escravocrata no Brasil e de
século XIX, novamente, foi complexo, pois a própria escravidão o foi também, uma vez que
ela tinha uma característica espiritual e social, uma disputa com o padroado e um efeito de
consequência. As irmandades também estarão diretamente envolvidas com a Questão Religiosa
– que será explicada em outro momento – mas, assim como no movimento abolicionista, há
uma ligação entre essas três pautas. As irmandades e a própria pluralidade da escravidão
atestam a pluralidade desses movimentos e indivíduos abolicionistas. Se o sistema era assim,
os efeitos e as respostas a ele também serão.

3. Questão Religiosa
E no caso da Questão Religiosa, há primeiro a unificação da Itália, e depois uma resposta
de Pio IX à ela. Não se pode esquecer também da decadência dos padroados. O Syllabus reforça
o primado de Pedro, coisa essa que no Concílio Vaticano I o mesmo Pio IX também faz, e ao
fazer isso ele responde a essas decadentes Igrejas que passaram a ser igrejas católicas nacionais.
Esse reforço que Pio IX deu à Santa Sé provocará respostas. E as excomunhões da
maçonaria e a forma incisiva com que o Papa se porta como autodeclarado prisioneiro de Roma
durante a unificação italiana, irá ecoar no Brasil, porque dois bispos – Dom Vital e Dom
Macedo Costa – irão obedecer ao Papa, e por conseguinte desobedecer Dom Pedro II. Ao
fazerem isso, irão disputar com o sistema burocrático brasileiro, uma vez que o bispo era
funcionário do Estado, e então seu chefe era o Imperador e não o Sumo Pontífice. Houve uma
imensa disputa, que culminará nas prisões de padres e inclusive de Dom Vital, este com
testemunho de santidade e talvez de martírio, pois morreu sob suspeita de ter sido envenenado.
Os dois foram símbolos de um sistema que já estava falido desde antes de Pombal. É
importante observar esta ligação. Para existir Dom Vital, fez-se necessário que o padroado
estivesse decadente. Com isso, aconteceu inclusive no meio do caminho, Reformas Pombalinas,
e também um padroado autoproclamado, em certo sentido, no Segundo Reinado.
Dom Macedo Costa esteve presente na condecoração da Princesa Isabel quando ela recebeu
as rosas de ouro do Papa Leão XIII. Isso foi uma condecoração máxima e ele estava ali, quando
uma Princesa era acusada de ultramontanismo. É importante observar a amarra: um bispo
considerado ultramontano estava presente neste evento.
A briga que ocorria entre católicos e liberais, entre maçons e católicos, agnósticos e
católicos e entre esses e políticos, era uma briga entre a soberania do Estado brasileiro contra a
soberania do Estado do Vaticano, na interpretação de alguns. Enquanto que para os bispos
citados, era uma obediência ao Papa. Então há uma disputa que terá como consequência
simbólica a presença, neste evento de uma princesa chamada de carola, de um bispo acusado
de ser ultramontano, conceito este associado de maneira pejorativa.
Aqui já se encontra um dos motivos que ligam a Questão Religiosa com a queda da
monarquia, pois ela irá acentuar a rejeição à princesa. Além disso, ela também irá respingar no
ambiente abolicionista, ainda que não haja uma pluralidade nela, pois há somente duas veredas:
obedecer ou não ao Papa. Mas haverá homens que vão interpretar de fora e vão narrar a celeuma
muito bem documentada em jornais – inclusive existe os trabalhos de Nilo Pereira sobre a
questão romana no país – e muitas vezes não compreenderão com qualidades necessárias que
não era uma disputa entre estados políticos, mas sim uma entre obediência espiritual e
desobediência.

4. Conclusão
Foi percorrido a complexidade – isso não quer dizer que seja impossível estudar e enxergar
as coisas – do sistema escravocrata, com exemplos, sem, porém, esgotar seu estudo. O contexto
abolicionista no Brasil está amalgamado a essa complexidade, às irmandades, à esse contexto
de escravos etc., e inclusive no testamento exposto é possível ver um ardor espiritual. Tudo isso
está em contato, não apenas pela temporalidade, mas também pela relação entre agentes, e a
figura chave é João Alfredo, que vai ser em certo sentido crítico a Dom Vital, e ao mesmo
tempo presidente do Conselho de Ministros no momento da assinatura da Lei Áurea, além de
conservador e abolicionista. Enfim, tudo está relacionado.
O objetivo destas primeiras aulas, chamadas Longa Introdução ao Segundo Reinado, é
justamente dar uma visão geral sobre os principais pontos do período antes de entrar nos
ambientes mais tumultuados do século XIX. Procura-se desenvolver esse “relato de uma vida
que findou-se”, como disse Machado de Assis. Existe o propósito de apresentar um todo sobre
o Segundo Reinado, e depois concluir certos pontos, amarrar outros e destacar alguns.

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[1] O testamento foi retirado do livro Ser escravo no Brasil, da historiadora Katia Mattoso.

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