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O ESTADO SOU EU

Por José Alves de Souza Junior


FAHIST E PPGHIST do IFCH, da UFPA

A frase atribuída a Luís XIV, na França do século XVII, adquiriu atualidade inusitada
no Brasil de hoje. Luís XIV, no processo de consolidação de seu poder absoluto,
reduziu a nobreza francesa à condição de nobreza cortesã, levando-a a abandonar seus
domínios e a se concentrar ao seu redor na Corte de Versalhes, tornando-a ociosa e
parasitária, pois passou a viver das sinecuras, hoje mordomias, oferecidas pelo Estado.
Segundo Michèle Ansart-Dourlen, ao analisar a Revolução Francesa, a revolta se
cristalizou a partir do momento em que os nobres deixaram de desempenhar o papel
respeitado de administradores e protetores de seus domínios, deixando seus camponeses
desamparados, ao aceitarem a condição de cortesãos do rei. Na Corte de Luís XIV,
todas as atividades privadas do rei se tornaram públicas, já que eram assistidas pela
nobreza, inclusive quando o rei defecava no pinico real.
Assim como Luís XIV buscou concentrar todos os “holofotes” sobre si, criando em sua
volta uma corja de lacaios fieis, no Brasil, Jair Bolsonaro, alimenta seus superego,
eliminando do seu governo qualquer um que ameace seu pseudoestrelato, como foram
os casos recentes de dois dos seus lacaios que ousaram contrariar sua vontade soberana:
Luís Henrique Mandetta e Sérgio Moro. Não que qualquer um dos dois tivesse
compromisso com a coisa pública, pois se locupletam dela há anos, mas porque estavam
em maior evidência junto à opinião pública do que seu “imperador”.
Sujeitos a uma série de investigações por parte da Polícia Federal, os Bolsonaros, que
pretendem constituir uma nova oligarquia no país, tentam, por meio do Bolsonaro mór,
impedir a todo custo que as investigações avancem e, por isso, a necessidade de controle
sobre o órgão investigativo, colocando em seus cargos-chave lacaios de sua inteira
confiança.
Uma das investigações gira em torno da organização e patrocínio das manifestações
antidemocráticas, as quais assistimos estupefatos no domingo 19, que exigiam
intervenção militar e a restauração da Ditadura e do AI 5, tendo por trás, com certeza, a
família que está transformando este país numa “república dos generais”. O mais grave
ainda foi ver a presença maciça nas manifestações de jovens que não vivenciaram o
período da ditadura militar e que desconhecem o que significa viver sob tal regime. Se
no medievo, a dicotomia dominante era o bem contra o mal, hoje, no Brasil, é a do
conhecimento contra a ignorância, pois nele a obtusidade e a insanidade se tornaram
virtudes. Como explicar tal fenômeno?
Segundo Hannah Arendt, “as soluções totalitárias podem bem sobreviver à queda dos
regimes totalitários na forma de fortes tentações que surgirão sempre que parecer
impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do
homem”. Ao interpretar o regime totalitário à luz da teoria das formas de governo de
Montesquieu, Arendt acrescenta aos dois critérios do autor – a natureza (aquilo que faz
o governo ser o que é, sua estrutura particular) e o princípio de ação de um regime
(aquilo que o coloca em movimento por meio de ações) – um terceiro critério: uma
experiência fundamental que sustenta o regime. “Com efeito, enquanto a monarquia
repousa sobre a honra e a república sobre a virtude, ambas respondendo à condição
humana da pluralidade, a tirania se assenta sobre a angústia do isolamento e do medo e
o totalitarismo se apoia na experiência fundamental do desemparo”.
Vivemos já há algum tempo no Brasil, uma situação de grave crise econômica, social e
política, com altas taxas de desemprego, deterioração acentuada das condições de vida
das camadas populares, achatamento do poder aquisitivo da classe média, classe que,
segundo Wilhelm Reich, foi a base da ascensão e sustentação dos regimes fascistas,
concentração da riqueza cada vez em um menor número de mãos, desencanto político e
busca de uma tábua de salvação.
Nesse contexto, ocorreu a eleição presidencial de 2018, na qual Jair Bolsonaro, ex-
capitão do Exército, reformado aos 33 anos com soldo integral ao se eleger como
vereador pelo Rio de Janeiro, com uma longa história de insubordinação e defesa da
ditadura, mostrou-se na campanha como “um raio em céu azul”, procurando apagar seu
passado, mesmo recente, fascista, misógino, racista e homofóbico, e assumir o papel de
paladino da democracia . Eleito democraticamente, Jair Bolsonaro começou e continua
a montar a “república dos generais” com a qual tanto sonhou, trazendo também para o
governo figuras, para ele, estratégicas para lhe dar credibilidade: Paulo Guedes e Sérgio
Moro.
Muito cedo, a “equipe fantástica”, montada com critérios “técnicos”, esbarrou no
extremo autoritarismo de Jair Bolsonaro, havendo, então, as primeiras baixas e outras
que se sucederam no primeiro ano de governo e que culminaram com as duas mais
recentes. Permanecer ao lado de alguém que não vê nada a não ser a si mesmo exige o
despojamento de toda e qualquer dignidade humana e uma postura de plena
subserviência.
O “eu” de Bolsonaro é absoluto e se manifesta, sempre, nas suas declarações: a
nomeação é competência exclusiva minha; sou eu quem decide; não preciso dar
satisfações a ninguém. Julgando-se “o iluminado”, não admite discordâncias às suas
formas de pensar, apesar de, no pronunciamento, enfatizar que sempre recorre ao
diálogo, pousando de “todo poderoso”, numa versão medíocre de Luís XIV.
Aliás, há alguém mais próximo historicamente para fazer analogia com Bolsonaro.
Adolf Hitler, indivíduo frustrado pessoal e profissionalmente, viu na política a
possibilidade de redenção, pois sua profissão era soldado, humilhado pela derrota alemã
na Primeira Guerra Mundial. Após a guerra, de volta à Alemanha, mais precisamente a
Munique, trabalhou como alcaguete do Departamento Político do Exército alemão, que
lhe ordenou, em setembro de 1919, que participasse de uma reunião do Partido dos
Trabalhadores Alemães, partido minúsculo de sete membros, fundado por Anton
Drexler, de tendência nacionalista e militarista. Na saída da reunião, um desconhecido
(Anton Drexler) lhe entregou um panfleto intitulado “O meu despertar político”, onde
eram defendidas ideias afins as suas: nacionalismo, militarismo, antisemitismo e
unipartidarismo fundado nas massas, mas longe dos socialistas.
Hitler se filiou ao partido em 1º. de abril de 1920, data pra lá de emblemática, que
passou a se denominar de Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães,
estratégia para atrair a massa trabalhadora, mergulhada, nesse momento, num caos
social, econômico e político. Com um programa anticomunista, o partido foi recebendo
o patrocínio de financistas alemães, inclusive judeus, e ganhando a adesão das massas
com seu discurso nacionalista e salvacionista, o que permitiu a Hitler chegar
democraticamente ao poder em janeiro de 1933, ao ser nomeado como primeiro
ministro, depois que o seu partido obteve maioria no Reichstag (Parlamento alemão).
No ano seguinte, com a morte do Presidente Hindenburg, o Parlamento aprovou a
acumulação dos cargos por Hitler, abrindo caminho para a totalitarização da Alemanha
e consumando tal fato ao aprovar uma lei especial entregando ao agora führer todo o
poder. Também Hitler eliminou àqueles que lhe faziam sombra, promovendo, na noite
de 3 de junho de 1934, o que ficou conhecido como “A noite dos longos punhais”, na
qual Ernest Roehn, então comandante das SA, e dezenas de seus oficiais foram
assassinados.
Alguns dos possíveis leitores deste texto exclamarão: mas que exagero! Assim como
Hitler foi o mandante dos assassinatos dos oficiais das SA, a família Bolsonaro é
fortemente suspeita de estar por trás dos assassinatos de Marielle e Anderson, haja vista
suas estreitas ligações com o chefe miliciano Adriano da Nóbrega, morto recentemente
por forças policiais na Bahia, o que teria sido provavelmente queima de arquivo.
Além disso, como Hitler em relação aos judeus, Jair Bolsonaro defende uma política
genocida na luta contra o corona vírus, estimulando pelo discurso e pelo seu próprio
exemplo o rompimento com as orientações dos órgãos de saúde nacionais e
internacionais de isolamento social, de ausência de contato físico, de evitar
aglomerações, tudo isso em nome da necessidade de retomar o desenvolvimento
econômico. O pior é que uma boa parte da população segue o seu “herói” e está
promovendo a disseminação cada vez maior da Covid 19 pelo país inteiro. Isto parece
confirmar a máxima defendida por Marx em O 18 do Brumário..., de que a história
acontece duas vezes, uma como tragédia e outra como farsa.
Na visão de Bolsonaro, o econômico é prioritário e a vida humana supérflua. Isto nos
faz, mais uma vez lembrar de Hannah Arendt, nas Origens do totalitarismo, que, ao
refletir sobre os efeitos da crise do capitalismo na segunda metade do século XIX e que
levou ao Imperialismo, nos informa que, além de mercadorias supérfluas e dinheiro
supérfluo, a crise também produziu “homens supérfluos”, ou seja, uma massa de
trabalhadores expurgada do mercado formal de trabalho, com pouca ou quase nenhuma
perspectiva de retorno. O crescimento assustador do mercado informal de trabalho
atualmente no Brasil é uma demonstração, guardando-se as proporções é claro, de que
não estamos em situação tão diferente hoje.
Como no Estado totalitário, onde há a existência de uma dupla autoridade, o partido,
que representa o poder real, e o Estado, que representada o poder formal, hoje no Brasil
nós temos tal duplicidade: o Estado, que serve de fachada e de instrumento para que a
família Bolsonaro efetive os seus interesses esdrúxulos e atue nos bastidores do poder
para atacar seus adversários. Não percamos de vista o chamado “gabinete do ódio”, que
funcionaria no Palácio do Planalto, sob a liderança do vereador Carlos Bolsonaro, o 03.
Esperemos que, como Narciso, personagem mitológico grego que se afogou no lago,
extasiado por sua própria imagem, Jair Bolsonaro se afogue no seu superego, o que
parece já estar acontecendo. Resta àqueles que ainda mantém um mínimo de sanidade e
lucidez continuar lutando para mudar tal situação. Já passa da hora do impeachment. Já
é tempo de se buscar um novo tempo, em que o sol da liberdade verdadeiramente brilhe
em nossa pátria a todo instante. #fiquemos em casa.

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