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Cientistas têm lugar de fala?


Renata Lacerda
08/07/2019
Link: https://www.deviante.com.br/noticias/cientistas-tem-lugar-de-fala/

Perguntas que não querem calar

“Você não tem lugar de fala, é homem.”


“Você tá roubando meu lugar de fala de mulher.”
“Só pode falar da ditadura quem viveu na época, taokey?”

É verdade esse bilhete?

Alguns pesquisadores e pesquisadoras de diferentes áreas do conhecimento vem


discutindo os questionamentos trazidos pela ideia de lugar de fala há uns anos em salas
de aula e redes sociais.

Nesse meio, tem aqueles críticos que nunca gostaram muito da ideia e usam frases
como as três acima como exemplo para justificar sua opinião, diagnosticando que tudo se
trata de fragmentação identitária, pensamento pós-moderno, censura à liberdade de
expressão, desqualificação do interlocutor (falácia Ad Hominem), ou qualquer outra coisa
que considerem desprezível.

Realmente, é legítimo indagar como seria possível a ciência ou a filosofia se só


quem falasse sobre algo fosse quem vivenciou aquilo – imagina se historiadores não
pudessem falar sobre períodos históricos que não viveram!

Mas e se déssemos dez passos para trás para questionar se afirmações como “você
não tem lugar de fala” não estariam baseadas em um profundo mal entendido? Estamos
todos falando sobre a mesma coisa?
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Afinal, essa expressão foi reinterpretada e transformada pelo senso comum.


Difundida pelos Sete Reinos de Westeros por youtubers, programas de televisão, grupos
de Whatsapp e influenciadores digitais em geral, parece que todo mundo tem algo a dizer
sobre.

Isso não seria necessariamente ruim, se não tivesse sido apropriada por quem que
nunca mostrou se preocupar com a promoção de equidade social, ou seja, de
oportunidades iguais para todos os grupos sociais, embora a expressão em si tenha surgido
nesse sentido. Fora que muitos parecem usá-la em trocas de acusações que não costumam
chegar a lugar nenhum. A não ser ganho de likes e seguidores.

Mas então, o que diabos é lugar de fala e como surgiu?


Muitas dessas preocupações que se repetem no debate público foram respondidas
de forma bem direta pela filósofa e feminista negra Djamila Ribeiro em seu livro “O que
é lugar de fala?” de 2017. Só faltou ela desenhar que sim, todos temos lugar de fala
(TODOS, até aquele seu tio do pavê).

Segundo Ribeiro, a expressão tem uma origem incerta. Porém, sabe-se que ganhou
força desde a segunda metade do século XX com o questionamento de movimentos
sociais feministas, antirracistas e críticos ao colonialismo acerca da autoridade discursiva
(quem pode falar?) e de sua pauta pela marcação do lugar social a partir do qual cada um
fala.

Isso não quer dizer que só oprimidos podem falar sobre oprimidos, pois a filósofa
enfatiza que quem se beneficia de uma opressão não pode ser dispensado da
responsabilidade de combatê-la, seja falando, escrevendo, lendo ou escutando. Inclusive,
estudando temas pouco populares como a branquitude, a masculinidade e as relações de
poder na sociedade.

Ao invés de calar alguém, perguntar sobre lugares de fala é questionar por que
tanta gente foi calada até hoje. Por que a autoridade para falar sobre tudo e todos foi
sistematicamente a de quem se beneficiou das opressões? Por que costumam falar como
se estivessem num não-lugar, como se fossem sujeitos universais?
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A ilusão da neutralidade e da visão universal científica


É como a metáfora do cientista no topo de uma montanha observando de forma
neutra os meros mortais abaixo. Homens brancos da elite (sobretudo europeia e norte-
americana) que historicamente predominaram no meio científico, achavam que estavam
nessa montanha aí. Apreciando, analisando e debatendo a paisagem entre si, de boas.

Acontece que foi provado por A + B que a montanha não existe. Isto é, nenhuma
análise científica é feita no cume da montanha, como se o sujeito da ciência fosse um
“deus único, cujo Olho produz, apropria e ordena toda a diferença”, como bem
argumentou Donna Haraway no artigo “Saberes Localizados” de 1988.

Estamos todos lá embaixo, na sociedade, marcados e afetados por interseções de


desigualdades e relações de poder. O homem branco também é marcado, não só por
gênero e raça (no sentido social), mas por classe, sexualidade, local de moradia e por aí
vai.

Mesmo assim, tem quem se agarre no cume da montanha e acuse essa visão crítica
de “pós-moderna” ou identitarista. Em contraposição a acusações como essas, basta
lembrar da vertente teórico-política que analisa as interseções de opressões, que está longe
de se colocar para além da modernidade, do capitalismo ou de pautar o reconhecimento
de identidades e vivências particulares sem relação entre si. O título de um dos livros da
feminista negra socialista Angela Davis resume tudo: Mulheres, Raça e Classe (1981).
As hierarquizações da modernidade permanecem e a nossa posição social se dá numa
matriz de dominação.

Dog das Humanas: “Tem ponto de vista que não quer se reconhecer como ponto de vista…”
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O ofício de formular perguntas


As Humanas tão aí pra isso. Pra pensar os significados, os por quêse os comosdas
ações e relações humanas no presente e no passado, as éticas que nos movem ou nos
moveram no nosso estar no mundo. Éticas no sentido de conjuntos de valores. Do que
acreditamos ser o bem e o mal, o justo e o injusto, as condutas exemplares e as
reprováveis. Isso é construído e compartilhado socialmente, variando de acordo com os
grupos sociais, em suas interseções. E o melhor de tudo: valores podem mudar no tempo.

Contudo, é bom lembrar que o ato de duvidar do que cremos saber não se restringe
às Humanas. É parte da tal da “vigilância epistemológica” do “espírito científico” que
deveria permear todas as ciências para não se confundirem com opiniões, como defendia
o filósofo e poeta Gaston Bachelard.

Que bom que sabemos dos perigos da opinião! Senão em pleno século XXI ainda
teria cientista que naturalizaria diferenças socialmente construídas. E que direta ou
indiretamente buscaria provar preconceitos e justificar discriminações com a máscara de
ciência.

É inevitável que nós cientistas sejamos tentados a buscar “encontrar” aquilo que,
pelos nossos valores, gostaríamos ou supomos que fosse a realidade. Mas como Bachelard
já alertava em “A Formação do Espírito Científico” (1938), isso é um obstáculo ao
conhecimento, pois a realidade não pode ser achada: “Se não há pergunta, não pode haver
conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído”.
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Produzimos dados científicos através das perguntas que fazemos. E como a crítica
à neutralidade evidenciou, essas perguntas são feitas a partir de nossos pontos de vista,
marcados por diferenças construídas historicamente. Por isso é fundamental explicitá-los.

Ou sejE, a pergunta inicial desse texto, “cientistas têm lugar de fala?”, está mal
formulada de propósito, porque o debate por vezes desandou para esse “ter ou não ter
lugar de fala, eis a questão”. E isso foi apropriado até por correntes que defendem a
desigualdade de oportunidades e o silenciamento de vozes plurais. Como na ideia de que
“só pode falar sobre a ditadura militar quem viveu o período e que concorda com minha
opinião favorável à ditadura” (Bachelard se revira no túmulo). Ou ainda “você homem
que discorda da minha opinião, está roubando meu lugar de fala de mulher”, sendo que
esta defende falas machistas e aquele denuncia o machismo (pois é, tá tendo!).

Acima dessa neblina de apropriações da expressão, o que pode surpreender a


muitos ainda hoje é a relevância ética e científica da problematização acerca do lugar de
fala, que poderia nos ajudar a levantar questões que não querem calar ninguém, mas sim
situar e pluralizar vozes:

• Qual é a sua posição na sociedade (lugar social)?


• Como a ciência que produzimos é feita a partir de nossos lugares sociais e das
relações que construímos?
• O que podemos fazer para que uma maior diversidade de conhecimentos
socialmente situados ganhem espaço no meio científico e no nosso cotidiano?

Sugestões de mais perguntas são mais que bem vindas ;)

Esse texto é apenas o primeiro de uma série sobre a produção científica: quem faz,
como se reproduz, como é representada?

Da onde tirei isso:


O livro “O que é lugar de fala?” de Djamila Ribeiro, da coleção Feminismos
Plurais, voltou a ser vendido em 2019 pela Pólen Livros, com o título “Lugar de Fala”. É
só jogar no Google e comprar. Vídeos nos quais explica o conceito:

Saia Justa (10/11/2017)

Canal Curta! (21/12/2017)


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Canal Brasil (18/04/2018)

Angela Davis, “Mulheres, Raça e Classe”, Boitempo, 2016. Tradução do original


de 1981, prefaciado por Djamila Ribeiro. Uma das leituras mais reveladoras que tive
como mulher branca de classe média e socialista.

Donna Haraway, “Saberes localizados: questão da ciência para o feminismo e o


privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, n.5, 1995, p. 07-41. Originalmente
publicado em Feminist studies, v. 14, n.3, 1988.

Gaston Bachelard, “A formação do espírito científico”, 1938. Tem online.


Influenciou a sociologia através da leitura de Pierre Bourdieu.

Para saber mais sobre a crítica ao colonialismo, recomendo muito o Podcast do


Chutando a Escada n.42, “Pós-colonialismos e Relações Internacionais”:

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